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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1 O Mundo Atlântico Militar durante o período Filipino Augusto SALGADO Escola Naval Centro de Investigação Naval [email protected]/[email protected] Enquadramento Para alguém que se inicie, neste momento, no estudo das actividades marítimas realizadas pelos portugueses, depressa ficará convencido que a denominada Época de Ouro das navegações portuguesas, se resumiu à Carreira da Índia 1 . Uma consulta à bibliografia marítima portuguesa, resultará em obras, quase na exclusividade, sobre essa temática, abordando quase todas as suas vertentes, desde a vida a bordo, a torna-viagem, as escalas, etc... Não querendo, de modo alguma minimizar a importância e, até, o carácter único dessa navegação que percorria dois grandes oceanos, importa realçar que os portugueses também tiveram um papel activo noutras áreas da história marítima. É verdade que, embora Portugal nunca se tenha imiscuído nos acontecimentos que ocorriam no Norte da Europa, estas potências protestantes, inicialmente a França e, posteriormente, a Inglaterra, após longos períodos de conflitos locais, cedo começaram a cobiçar as riquezas que aportavam aos portos da Península Ibérica através do corredor entre os Açores e a Península. No entanto, em termos navais, o Atlântico, durante grande parte do século XVI, e ao contrário com o que aconteceu no Mediterrâneo, nunca foi palco do confronto entre Estados, apenas entre súbditos, nomeadamente entre corsários e mercantes, embora muitos dos meios fossem navios das respectivas coroas. Contudo, a Coroa espanhola, ao contrário da sua congénere portuguesa, que também se encontrava grandemente dependente da chegada dos navios das suas conquistas, nunca estabeleceu uma força naval militar no Atlântico, utilizando, para esse fim, e apenas quando necessitava, navios mercantes requisitados. 1 Apesar dessa realidade deixar de ser verdade a partir de 1580, a historiografia nacional, em particular, mantém o Atlântico apenas nessa realidade, desvalorizando-o, completamente, por exemplo, em relação ao Oriente ou às Caraíbas. Por exemplo, Alberto VIEIRA, Las islas y el mundo Atlântico.1580-1640, online, Funchal, CEHA, disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/aieira/islasatlantico.pdf, data da visita: 02 de Janeiro de 2011.

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Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

O Mundo Atlântico Militar durante o período Filipino

Augusto SALGADO

Escola Naval – Centro de Investigação Naval

[email protected] /[email protected]

Enquadramento

Para alguém que se inicie, neste momento, no estudo das actividades marítimas

realizadas pelos portugueses, depressa ficará convencido que a denominada Época de Ouro

das navegações portuguesas, se resumiu à Carreira da Índia1.

Uma consulta à bibliografia marítima portuguesa, resultará em obras, quase na

exclusividade, sobre essa temática, abordando quase todas as suas vertentes, desde a vida a

bordo, a torna-viagem, as escalas, etc...

Não querendo, de modo alguma minimizar a importância e, até, o carácter único dessa

navegação que percorria dois grandes oceanos, importa realçar que os portugueses também

tiveram um papel activo noutras áreas da história marítima.

É verdade que, embora Portugal nunca se tenha imiscuído nos acontecimentos que

ocorriam no Norte da Europa, estas potências protestantes, inicialmente a França e,

posteriormente, a Inglaterra, após longos períodos de conflitos locais, cedo começaram a

cobiçar as riquezas que aportavam aos portos da Península Ibérica através do corredor entre

os Açores e a Península. No entanto, em termos navais, o Atlântico, durante grande parte do

século XVI, e ao contrário com o que aconteceu no Mediterrâneo, nunca foi palco do

confronto entre Estados, apenas entre súbditos, nomeadamente entre corsários e mercantes,

embora muitos dos meios fossem navios das respectivas coroas.

Contudo, a Coroa espanhola, ao contrário da sua congénere portuguesa, que também

se encontrava grandemente dependente da chegada dos navios das suas conquistas, nunca

estabeleceu uma força naval militar no Atlântico, utilizando, para esse fim, e apenas quando

necessitava, navios mercantes requisitados.

1 Apesar dessa realidade deixar de ser verdade a partir de 1580, a historiografia nacional, em particular, mantém

o Atlântico apenas nessa realidade, desvalorizando-o, completamente, por exemplo, em relação ao Oriente ou às

Caraíbas. Por exemplo, Alberto VIEIRA, Las islas y el mundo Atlântico.1580-1640, online, Funchal, CEHA,

disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/aieira/islasatlantico.pdf, data da visita: 02 de

Janeiro de 2011.

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Por seu lado, a Coroa de Portugal, desde os reinados de D. Manuel I e D. João III,

organizava anualmente armadas com a função de proteger os navios portugueses no Atlântico,

em especial na aproximação final. Das suas missões, destacavam-se as de “limpar” as

respectivas áreas de operações de navios corsários, antes da chegada dos navios das

respectivas conquistas mas, também, as de escoltar esses navios em segurança até Lisboa.

Assim, neste oceano e ainda antes de 1580, a presença de forças navais portuguesas já

era uma constante, tanto em acções navais, como foi o caso das expedições de D. Sebastião a

África, como através do patrulhamento efectuado entre os Açores e a Península Ibérica, estas

últimas em estreita colaboração com a Coroa de Castela. Por norma, Portugal ficava

responsável por enviar até aos Açores forças navais para escoltar os navios de Portugal e os

de Castela até o Sul de Portugal2.

Naturalmente que estas armadas reais de protecção, financiadas e organizadas pela

Coroa lusitana, variaram grandemente em composição e em número de navios ao longo dos

anos dependendo, normalmente, dos recursos financeiros disponíveis3.

Entretanto, o agravamento da situação no Atlântico Norte e Central, devido,

nomeadamente, ao agudizar da situação de conflito nos Países-Baixos, acabou por obrigar a

monarquia espanhola a transferir o seu interesse do Mediterrâneo para o Atlântico.

Essa transição do ponto focal do Império de Filipe II de Espanha, futuro I de Portugal,

entre os dois oceanos, ocorre definitivamente com a conquista ou anexação do reino de

Portugal, em 1580. Segundo afirma I.A.A. Thompson, foi a guerra contra os ingleses que

transformou as marinhas num instrumento permanente da guerra na Europa4.

Não é, pois, de estranhar, que a historiadora Pi Corrales afirme que, em termos da

monarquia Hispânica, os principais confrontos navais tenham decorrido no Atlântico e no

Mediterrâneo5.

Contudo, essa transferência não foi linear e nem directa, conforme foi comprovado

logo com o fracasso da expedição aos Açores de 1581. Efectivamente, quando neste novo

teatro de operações, os recursos navais Mediterrânicos empenhados fracassaram totalmente,

2

Luís R. GUERREIRO, “Pirataria, corso e beligerência no sudoeste peninsular e ilhas adjacentes (1550-1600)”, As

Rotas Oceânicas. Sécs. XV-XVII, Lisboa, Edições Colibri, 1998, p.135.

3 Luís R. GUERREIRO, op. cit., pp.119-148, e Artur Teodoro de Matos, “O diário de bordo das viagens de

Francisco de Faria Severim aos Açores em 1598”, in BIHIT, vol.XLIII, t.II, Angra do Heroísmo, 1985, pp.419-

458. 4

I.A.A. THOMPSON, Guerra y decadência. Gobierno y administración en la España de los Austrais, 1560-1620,

Barcelona, Editorial Crítica, 1981, p.235. 5

Magdalena de Pazzis Pi CORRALES, “La Armada de los Austrias”, Estudis. Revista de Historia Moderna,

Valência, Real Sociedad Económica de Amigos del País, 2001, p.143.

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não subsistiram dúvidas quanto à necessidade de serem utilizados outro tipo de meios navais

no Atlântico6.

Essas limitações prendiam-se com dois factores naturais. O primeiro eram as

condições meteorológicas prevalecentes no Atlântico que, ao contrário do Mediterrâneo, tem

um período de navegação segura mais curto. A outra razão está relacionada com o maior

distanciamento em relação às bases e locais de apoio às esquadras no Atlântico, quando

comparados com as existentes no Mediterrâneo.

Uma estratégia comum

Após a união entre as duas coroas, e estando ambas sob ameaças comuns, não é de

admirar que, neste período, a doutrina naval da Coroa de Portugal se encontre intrinsecamente

ligada à de Castela, influenciando esta não só as estratégias militares navais seguidas mas,

também, nos tipos de navios de guerra.

Em termos puramente teóricos e, segundo Jan Glete, as estratégias navais podem

dividir-se em operações ofensivas – com acções dirigidas contra os territórios inimigos e as

suas linhas de navegação –, e as defensivas – com a protecção dos territórios e linhas de

comunicação. Como facilmente se pode compreender, ambas implicam organizações,

estruturas e meios diferentes7.

Durante os 60 anos do período aqui em análise, e no que respeita ao Atlântico, a coroa

lusitana viu-se na necessidade de utilizar ambas, muitas vezes simultaneamente,

principalmente por imposição de Castela.

Inicialmente e, mais concretamente, até aos inícios do século XVII, a Coroa de

Portugal utilizava as suas forças navais – nomeadamente através das Armadas das Ilhas e da

Costa – numa estratégia defensiva, protegendo as suas conquistas atlânticas, e também as

rotas entre essas conquistas e as conquistas do Oriente e Portugal continental. Contudo, e

simultaneamente, os meios lusos – incluindo os navios, o pessoal e os estaleiros –, também

eram integrados nas forças da Coroa de Castela, que utilizavam uma estratégia ofensiva,

6

Apesar das as galés deixarem de ser o principal meio das acções navais no Atlântico, onde desempenhavam

apenas funções menores, como defender portos e apoiar os movimentos dos navios nos mesmos e apoiando

desembarques, podiam contudo operar com sucesso no Atlântico, como ocorreu na conquista de Portugal, nos

desembarques dos Açores e nos finais do século XVI, no Mar do Norte , em operações contra as actividades

marítimas costeiras (Augusto SALGADO, "As galés no Atlântico", ACMN, vol.CXXVII, Lisboa, Jul-Set 1997,

pp.679-684). No entanto, sempre que actuaram contra os navios eminentemente atlânticos, os galeões, estes

últimos normalmente levavam a melhor. David Goodman, "El dominio del mar y las armadas de la monarquía",

in Congresso internacional «As sociedades ibéricas e o mar a finais do século XVI», tomo II, [Madrid], Pavilhão

de España, 1998, pp.369-370. 7 Jan GLETE, Navies and Nations, vol. I, Stockholm, Almqvist & Wiksell International, 1993, pp.18-21.

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contra as potências protestantes do Norte da Europa – Campanhas dos Açores (1581, 1582 e

1583), Grande Armada (1588), Armadas contra Inglaterra (1596 e 1598) e Armada contra a

Irlanda (1601).

Nestas campanhas, os navios portugueses constituíram um núcleo fundamental da

força naval atlântica criada pelos monarcas castelhanos, a denominada Armada del Mar

Oceano, a qual integraram, isoladamente ou em agrupados.

Contudo, nos inícios do século XVII, Castela alterou o seu paradigma operacional no

Atlântico, fruto das tréguas entretanto estabelecidas com a Inglaterra, em primeiro lugar e,

posteriormente, com as províncias rebeldes holandesas, passando a seguir uma estratégia

defensiva. Assim, e embora a Armada del Mar Oceano se tivesse mantido com a

implementação desta nova estratégia, o seu paradigma estrutural foi profundamente alterado,

pois esta passou a ser constituída por pequenas Armadas locais – Armada de Portugal,

Armada da Galiza, etc... – que apenas em caso de necessidade se juntavam para formar a

Armada del Mar Oceano.

Esta alteração é iniciada em Agosto de 1606, quando o monarca consulta o Conselho

de Guerra sobre a sua intenção de dividir a Armada del Mar Oceano em três grupos, de modo

a fechar o Atlântico às acções inimigas e, simultaneamente, a negar-lhes as presas. Esta

medida é definitivamente implementada no ano seguinte, pelo próprio monarca8.

A dualidade inicial de estratégias colocava a Portugal uma das mais complicadas

situações em termos da definição dos meios necessários, obrigando a Coroa a preparar navios

de tipos diferentes para dois modos de fazer a guerra naval. Tradicionalmente, a estratégia

defensiva necessita de navios com capacidade para aguentar grandes períodos no mar,

nomeadamente com resistência estrutural e grande capacidade de transporte de

abastecimentos. Por sua vez, a estratégia ofensiva implica navios que combinem as

capacidades de fogo, manobra e protecção, acima das restantes9.

Adicionalmente, as necessidades de galeões para as campanhas no Oriente levaram a

uma sobrecarga das capacidades financeiras e de construção naval da Coroa, o que ocasionou,

ainda antes do final do século XVI, que os estaleiros portugueses tivessem deixado de ser

capazes de construir os meios navais em número suficiente para satisfazer as diferentes

necessidades da Coroa.

8

Bernardo José GARCÍA GARCÍA, La Pax Hispanica. Política exterior del Duque de Lerma, Leuven, Leuven

University Press, 1996, pp.161-162 e AGS, G. y M., leg. 653, doc. 95. 9 Jan GLETE, op. cit., pp.18-21.

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Para se ter uma ideia desse esforço, só de Lisboa e com destino o Oriente largaram 24

galeões, entre 1580 e 1600, sendo 10 com destino a Malaca, conforme estabeleciam os

contratos, e de 1601 a 1640, largaram de Lisboa cerca 60, embora alguns efectuassem mais do

que uma viagem10

. O número total de navios utilizados, apenas no Atlântico, é uma incógnita

quase total.

A estrutura administrativa

Antes de entrar nas questões navais, e no que respeita aos níveis administrativos e

operacionais, importa compreender como estava organizada a estrutura administrativa da

Coroa de Portugal entre 1580 e 1640, num momento da sua história em que se encontrava

integrado no império Habsburgo.

Segundo afirma Hespanha, o sistema de governação utilizado pela monarquia de

Castela era mais “moderna”, do que a forma “portuguesa” de governar. A primeira partia de

um poder central, liberto de limitações corporativas, o que a tornava, portanto, mais eficaz,

enquanto que a segunda forma de governação, embora mais próxima do sistema tradicional

político europeu-ocidental, era menos eficaz11

.

Não é portanto de estranhar que, as reformas de carácter estrutural, introduzidas

durante o espaço de tempo já mencionado, tivessem apurado não apenas o modo como era

realizada a comunicação político-administrativa entre o monarca e o reino, mesmo tendo o

factor da distância entre os dois tido pouca influência, mas também as próprias modalidades

do exercício do poder12

.

Na prática, Filipe II de Espanha e os monarcas que o sucederam no trono dualista,

governavam o seu império através de um sistema de Conselhos, divididos genericamente

entre os conselhos de Assessores e Ministeriais e os conselhos Territoriais.

Contudo, a integração desta complexa organização institucional dos múltiplos estados

que compunham a Monarquia Hispânica, com os seus respectivos interesses individuais,

distâncias geográficas, assim como a fragilidade das comunicações e rotas comerciais, era

uma das debilidades deste sistema.

Efectivamente, essa estrutura sinodal – Conselhos, com atribuições determinadas por

lei – era o suporte organizacional da monarquia castelhana e que garantia a expressão dos

10

K.S. MATHEW, Indo-Portuguese trade and the Fuggers of Germany, Nova Deli, 1997, pp.256 ss.

11 Antonio Manuel HESPANHA, “O governo dos Áustria e a “Modernização” da constituição política portuguesa”,

Penélope, Nº2, Lisboa, Fev. 1989, p.51.

12 Guida MARQUES, “O Estado do Brasil na união Ibérica. Dinâmicas politicas no Brasil no tempo de Filipe II de

Portugal”, Penélope, nº27, Lisboa, 2002, p.7.

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6 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

diferentes pontos de vista dos membros dos diversos conselhos, para posterior decisão do

monarca13

.

Perceber o modo como se encontrava organizada a estrutura de decisão da Coroa

lusitana, é fundamental para o estudo da estrutura naval do período filipino, porque os

Armazéns da Índia e, subsequentemente, a Ribeira das Naus e toda a área ligada com a

construção naval e com o próprio funcionamento de toda a estrutura marítima, encontrava-se

sob a dependência de um dos diversos novos órgãos - o Conselho da Fazenda de Portugal -

que foi criado em 1591 e estava baseado em Lisboa.

Este Conselho foi criado por Filipe II de Espanha, com o objectivo de reformar a

fazenda da Coroa de Portugal. Era formado por um inspector presidente e mais outros quatro

inspectores, dois dos quais letrados e substituía os anteriores Vedores da Fazenda. O

Conselho encontrava-se dividido em diversos departamentos, alguns de âmbito geográfico,

outros com um carácter mais específico, como era a Casa da Índia e o Armazém da Índia.

Conforme é comummente sabido, este Armazém era responsável por tudo o que se

relacionava com os navios, a sua documentação e construção, para além de recrutar

tripulações. Funcionava também como órgão de natureza técnica para os instrumentos de

navegação14

e exercia através do já mencionado Provedor15

, o controle da execução da

actividade de construção naval16

.

A ORGANIZAÇÃO OPERACIONAL NAVAL

Em termos mais práticos, nomeadamente no que se refere à atribuição de missões aos

navios da Coroa de Portugal, estas eram estabelecidas pela estrutura governativa da Coroa, e

eram, normalmente, influenciadas pelas necessidades globais da monarquia dos Habsburgos.

Uma vez definidas as missões eram, por sua vez, identificados e aprontados os meios navais

que permitiriam a realização das mencionadas missões, dependendo da disponibilidade dos

recursos financeiros.

Assim e, depois do Provedor “dar” os meios navais como prontos, os primeiros a

serem retirados, face à necessidade de aproveitar as monções, eram os galeões que iam seguir

13

Antonio Manuel HESPANHA, ibidem, p.58.

14 Id., op. cit., pp.167-169.

15 Augusto SALGADO, Os navios de Portugal na Grande Armada, Lisboa, Editora Prefácio, 2004, p.67.

16 É o que ocorre, por exemplo, em 1626, em que este Conselho ordena a construção de 2 galeões, por conta do

Consulado. AHU CU REINO, Cx. 5A, pasta 31.

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para o Oriente. Naturalmente, tal apenas ocorria se, anteriormente, ou seja o monarca ou o

Conselho de Portugal, tivessem determinado, face às necessidades de defesa, o envio de

galeões para auxiliar a defesa do Oriente.

Os restantes meios navais ficavam sob as ordens do Vice-rei ou dos governadores (um

dos quais desempenhava também as funções de Capitão-General do Reino de Portugal) e

eram, então, agrupados ou distribuídos pelas diversas armadas, conforme as necessidades e as

missões planeadas.

Por norma, a condução dos meios navais portugueses, quando reunidos em forças de

caris apenas nacional, ficava a cargo de nobres portugueses. O mesmo também ocorria após

1588, quando os meios navais eram aprontados para missões conjuntas. Anteriormente, o

comando dos navios em missões conjuntas era entregue a oficiais castelhanos. No que se

refere ao comando de forças navais conjuntas, só em 1638 é que um português assumiu o

comando total de uma esquadra conjunta.

De modo a evitar possíveis situações de conflito, o capitão-general de uma armada que

tinha sob o seu comando várias esquadras de diversos reinos sob o domínio filipino, incluía,

especificamente, no seu título, referência à armada de cada reino participante. No caso da

Armada del Mar Oceano e, em particular, para a Coroa de Portugal, o título incluía o de

«Capitão-general de Portugal».

Apesar desses cuidados, esta complexa realidade deu origem a verdadeiros “conflitos”

escritos entre os navios das duas Coroas e, inclusivamente, com as fortalezas de Lisboa,

mesmo quando os navios se encontravam integrados em forças conjuntas. Após uma curta

fase inicial de coexistência pacífica entre as forças navais das duas coroas, em que existia uma

separação bem demarcada entre as esquadras, a partir de determinado momento, a situação

agudizou-se surgindo diversos “conflitos” protocolares, em que os almirantes portugueses

tentam mostrar a “independência” das suas forças navais, num claro desafio às determinações

de Castela.

O culminar desta “disputa” ocorre em 1639 quando ao conde da Torre, que era o

primeiro súbdito português a comandar uma força naval conjunta, lhe foi proposto que

mudasse de navio capitania, que era o galeão São Domingos, por este ser um navio da Coroa

de Portugal, ao que este, naturalmente, recusou17

. Mais tarde durante um período de

manutenção do navio chefe, surgiu a necessidade de transferir o estandarte real para um outro

17

AGS GA, Leg.1292 de 2 de Junho de 1639.

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navio e, mais uma vez, surgiram conflitos entre portugueses e castelhanos, com o argumento

das grandes dimensões do já mencionado estandarte18

.

O PESSOAL

Embora existam alguns números dispersos relativamente à quantidade de indivíduos,

de todas as classes sociais, ligados ao mar, existentes no reino ou nos territórios ultramarinos,

pouco ou nada sabemos sobre as suas identidades e, muito menos, sobre a respectiva vida

social e económica. No entanto, os textos contemporâneos referem que eram tidos em menor

consideração social do que a gente de guerra19

.

Talvez por essa razão não seja de estranhar que, durante o reinado de Filipe II, apenas

quatro mareantes, incluindo um piloto-mor e dois mestres de construção naval, tivessem sido

agraciados com títulos das ordens de Cristo ou de Santiago20

.

Gente de mar

No que se refere à denominada gente de mar – i.e. tripulantes de navios - sabemos

que, em 1581, as forças de Castela já se debatiam com uma grave falta destes elementos pelo

que a contratação de portugueses era fundamental para garantir as necessidades daquela

coroa21

.

Em Portugal, e até ao final do século XVI, as principais áreas de recrutamento de

gente de mar, com experiência, para as armadas, eram as zonas de Entre o Douro e Minho e o

Algarve22

. No Algarve, em particular, estes tripulantes eram recrutados entre os pescadores

que trabalhavam nas almadravas23

, o que se tornava difícil nos períodos em que se

encontravam em faina no mar24

.

Para tentar controlar o paradeiro da gente de mar experiente, em 1591, mais

concretamente a 26 de Outubro desse ano, Filipe II de Espanha promulga um regimento com

o objectivo de combater a crescente falta de gente de mar experiente voluntária para embarcar

18

AGS GA, Leg.1292 de 10 de Março de 1639 e um outro documento do mesmo legado sem data. 19

Francis A. DUTRA, “The social and economic world of Portugal’s elite seafarers, 1481-1600”, Mediterranean

Studies, XIV, 2005, pp.95-96.

20 Id., op. cit., p.99.

21 Amélia POLÓNIA, Vila do Conde. Um porto nortenho na Expansão Ultramarina Quinhentista. Tese

policopiada, vol. II, Porto, Faculdade de Letras, 1999, pp.406-407. 22

AGS GA, Leg.143, fol.109. 23

Armação da pesca do atum do Sul da Península Ibérica. 24

AGS GA, Leg.162, fol.63.

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nas armadas reais. Foi implementado que estes fizessem o seu registo mas, também, que

obrigatoriamente embarcassem nas armadas reais, no ano seguinte ao seu regresso do Oriente.

Caso não o fizessem, não poderiam embarcar de novo na Carreira da Índia.

Esse registo, inicialmente local, era depois enviado para Lisboa, para o Provedor dos

Armazéns da Guiné e da Índia, de modo a que os respectivos funcionários pudessem controlar

as necessidades e a sua distribuição pelos navios.

Em 1609, e possivelmente já com o objectivo de melhorar o sistema, foi promulgada

uma nova legislação, definindo novas regras e procedimentos para a emissão das certidões por

serviços prestados, nas diversas armadas do reino. As certidões dos serviços efectuados no

Reino, nas Armadas da Costa, das Ilhas e lugares de África - S. Jorge da Mina, Cabo Verde e

Guiné - nas quais constariam o tempo e a qualidade dos serviços prestados, teriam de ser

emitidas até 6 meses após o final do serviço. As restantes seriam de um ano. Competia ao

capitão-mor das armadas assinar essas certidões25

.

Aparentemente, o sistema não funcionou bem pois, em 25 de Maio de 1626, a ordem

dos embarques foi alterada, passando os homens de mar a embarcar primeiro nas armadas

reais e, só depois, na Carreira da Índia, mas nos mesmos cargos que tinham desempenhado

nas primeiras26

.

Graças a estes levantamentos, e também segundo alguns oficiais de Castela, sabemos

que, no virar do século XVI para XVII, as necessidades de gente de mar experiente da

monarquia Habsburgo, podiam continuar a ser preenchidas por gente de Portugal mas, agora

principalmente oriundos da zona de Lisboa. A documentação refere que este recrutamento

devia ser efectuado de uma forma discreta, de acordo com as orientações dos governadores27

.

Alguns anos mais tarde, mais concretamente durante os anos 20 e 30 do século XVII,

chegou a ocorrer um aumento no número de recrutamentos, em especial de naturais de Lisboa

e do Algarve28

. Esse aumento de homens fez com que, em Março de 1623, e mais uma vez

face à escassez de tripulantes de Castela para a Armada del Mar Oceano, tivesse sido decidido

que o recrutamento da gente de mar para essa força naval fosse efectuado no Algarve29

.

Infelizmente, nenhum dessas conjuntos de certidões ou de registos chegaram aos dias

de hoje...

25

Madrid, 24 de Julho de 1609, Livro das Monções, nº25, fl.5, nº 3, Documentos remetidos da Índia - Livro das

Monções (1625-1736), vol. II, Universidade Nova de Lisboa, [Lisboa], 2002, p.154. 26

Leonor Freire COSTA, “Os regimentos sobre a matrícula dos oficiais da navegação, da Ribeira e bombardeiros

de 1591 e 1626”, Revista de História Económica e Social, nº 25, Lisboa, Janeiro-Abril 1989, pp.89-125. 27

AGS GyM, Leg.635, fol.2. 28

Fernando Serrano MANGAS, Armadas y flotas de la plata (1620-1648), [s.l.], Banco de España, 1989, p.221. 29

Robert A. STRADLING, La Armada de Flandres. Política naval Española y guerra europea. 1568-1668,

Madrid, Cátedra, 1992, p.86.

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Por vezes, e apenas quando por razões específicas existiam grandes dificuldades em

recrutar marinheiros, era necessário recorrer a outros expedientes de recrutamento, sendo um

deles o recurso de retirar dos navios particulares que se encontravam em Lisboa, nacionais e

estrangeiros, os homens do mar que eram necessários. Este expediente ocorreu em 1588 e

também no aprontamento da armada que seguiu para a Irlanda em 1601 e para a armada da

costa em 160230

.

Treze anos depois, mantinha-se a situação de falta de gente de guerra e gente de mar

de Castela para as armadas, e Portugal continuava a funcionar como uma alternativa, em

especial as zonas limítrofes de Lisboa. No entanto, nesta altura, e aos olhos das chefias

castelhanas, os portugueses eram elementos poucos disciplinados e com pouca experiência e

não haviam em número suficiente para satisfazer as necessidades de ambas as coroas31

.

Durante os anos 20 e 30 do século XVII, e apesar de algumas das notícias que

surgiram na época mencionarem que Portugal teria falta de gente de mar para as armadas do

Atlântico, em particular, ocorre um aumento no seu número, em especial de naturais de

Lisboa e do Algarve32

. É esse aumento de homens que, em Março de 1623, e mais uma vez

face à escassez de tripulantes de Castela para a Armada del Mar Oceano, leva a que o

recrutamento para essa força naval fosse efectuado no Algarve33

.

No que respeita ao modo como era efectuado o recrutamento do portugueses para as

armadas, i.e. se eram recrutados ou se eram obrigados a embarcar, esta dependia da realidade

do momento.

Assim, na preparação da armada que iria seguir para os Açores em 1581, como a gente

de mar de Lisboa que se encontrava apta estava prevista ir toda para a Índia, foi necessário ir

buscar marinheiros a Aveiro da pesca do bacalhau34

, Porto e Vila do Conde35

. Mas, tal como

ocorreu noutras situações semelhantes noutras áreas, esta cooperação não foi imposta, pois

esta gente de mar só embarcou após saber qual seria o soldo que iriam receber36

.

O mesmo já não ocorreu na Campanha de Inglaterra de 1588, em que o recrutamento

de gente de mar, em Lisboa, foi efectuado através de mecanismos com forte teor repressivo37

.

30

AGS, GyM, Leg. 640, fol.21. 31

AGS E, Leg.436, fol.159. 32

Fernando Serrano MANGAS, op. cit., p.221. 33

Robert A. STRADLING, op. cit., p.86. 34

AGS GA, Leg.111, fol.113. 35

Amélia POLÓNIA, op. cit., p.47. 36

AGS GA, Leg.111, fol.205. 37

Augusto SALGADO, op. cit., p.83.

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O Mundo Atlântico Militar durante o período Filipino

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Contudo, em Vila do Conde o recrutamento para as Armadas de 1588 e de 1589, foi

exactamente o inverso38

.

Sabe-se que o método mais suave foi utilizado no recrutamento de gente de mar para

as armadas régias de 1606, 1620 e 162839

e que o mesmo também ocorreu para as Armadas da

Índia dos anos de 1603 e de 1620.

Por vezes, mesmo para as Armadas Reais que operavam no Atlântico, era necessário

recrutar gente de mar sem experiência. Foi o que ocorreu em 1593, para a recém criada

Armada do Consulado, em que foi solicitado à Câmara do Porto que enviasse uma relação de

todos os que estivessem “desocupados e fossem de menos obrigações, incluindo vadios e

ociosos” para embarca-los40

.

O facto de, aparentemente, não existir nenhum padrão no recrutamento da gente de

mar, não permite extrapolar para todas outras Armadas Reais ou frotas da Carreira da Índia.

Os Oficiais41

Sendo os navios, na época, uma das máquinas mais complexas que o homem

construía, era natural que, para além da gente de mar e de guerra, os homens que os iam

comandar e orientar fossem fundamentais.

Nos finais do século XVI, e já sob o domínio filipino, para assumir o comando de uma

força naval ou de um navio, da Coroa lusitana, não bastava apenas que fossem nobres, com

posses e experiência; era também necessário que fossem fiéis aos monarcas castelhanos42

.

Mas quem eram esses nobres que tinham título e, principalmente, experiência nas

coisas de mar? E onde é que obtinham essa experiência?

Conforme já mencionei anteriormente, pelo menos, desde meados do século XVI, que

existia uma estrutura naval, com um cariz essencialmente militar, que guarnecia os navios e as

armadas reais. Estas forças navais executavam diversas missões reais, nomeadamente,

proteger a costa e a chegada dos naus da Índia, assim como missões reais, como foram as

duas campanhas de D. Sebastião a África. Em paralelo, temos também alguma informação,

que permite colocar esses nobres menores, nas praças do Norte de África, onde tentavam

obter um reconhecimento régio.

38

Amélia POLÓNIA, op. cit., p.47. 39

Amélia POLÓNIA, op. cit., p.47. 40

Francisco Ribeiro da SILVA, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder. Tese

policopiada, vol.II, Porto, 1985, p.1113. 41

Importa relembrar, que na época, eram designados como oficiais, todos aqueles que tinham a bordo dos navios

funções específicas. 42

AGS E-Portugal, Leg.2763 (L-1550), fol. 157 in BMO, vol.II, doc.560, p.75.

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O que desconhecemos é porque razão alguns nobres lusitanos optavam por participar

activamente na estrutura militar naval do Atlântico, na certeza que, o Norte de África ou o

Oriente, eram os locais com o mesmo reconhecimento militar por parte do monarca mas,

garantidamente, com maior retorno financeiro43

. E, entre as duas, indiscutivelmente, que as

idas para o Oriente permitiam obter não apenas mais honras e mercês públicas mas, também,

facilmente arrecadavam grandes fortunas44

.

Exemplo dessa situação, são as queixas efectuadas por um dos primeiros portugueses a

comandar uma armada conjunta, que alerta o monarca para a importância do seu soldo mensal

de 500 escudos ser pago anualmente e em adiantado pois, ao longo dos 32 anos que tinha

servido os monarcas castelhanos, nunca tinha sido agraciado com quaisquer honrarias, não

tendo, portanto, dinheiro para manter o seu estatuto de comandante da força naval45

.

Apesar dessas vicissitudes e, encontrando-se o rei ausente, naturalmente que os nobres

que eram nomeados para esses cargos navais tinham de estar integrados nas imensas redes

clientelares pertencentes às grandes famílias que tradicionalmente ocupavam os principais

cargos no reino lusitano46

.

Infelizmente, e mais uma vez, desconhecemos quais os factores que eram utilizados na

selecção, pois são escassas as informações sobre os períodos anteriores à ida para o Oriente, o

que aumenta a dificuldade em identificarmos quem eram estes nobres.

Esta complexa estrutura que se encontrava montada levava a que, muitas vezes, que

algumas famílias acabassem por ficar ligadas ao mar por várias gerações47

, sendo a

recompensa dos serviços prestados à Coroa efectuada através do comando de uma nau da

Índia, por exemplo48

.

Contudo, e apesar da escassa informação que dispomos, podemos afirmar que a

maioria desses nobres, aparentemente, iniciavam as actividades bélicas ocupando funções de

43

Mafalda Soares da CUNHA, “O Império no tempo de Filipe III. Dinâmicas Político-administrativas”, p.13,

online, Évora, UE, disponível em: http://www.cidehus.uevora.pt/textos/artigos/msc_2009_Filipe_III.pdf, data da

visita: 02 de Março de 2011. 44

Francisco Carlos COSENTINO, “Enobrecimento, trajetórias sociais e remuneração de serviços no império

português: a carreira de Gaspar de Sousa, governador geral do Estado do Brasil”, Revista Tempo, nº26. 2009,

p.226. 45

AGS GA, Leg.1292 de 6 de Janeiro de 1640. 46

Fernando Jesús BOUZA ALVAREZ, “1640 perante o Estatuto de Tomar. Memória e Juízo do Portugal dos

Filipes”, Penélope, nº9/10, Lisboa, 1993, p.24. 47

Artur Teodoro de MATOS, “A Armada das ilhas e a Armada da costa no século XVI”, Academia de Marinha,

Lisboa, 1985, pp.3-57, Id., “O diário de bordo das viagens de Francisco de Faria Severim aos Açores em 1598”,

BIHIT, vol.XLIII, tomo II, Angra do Heroísmo, 1985, pp.419-458, Id., “Subsídios para a história da Carreira da

Índia. Documentos da nau São Pantaleão (1592)”, in Na Rota da Índia. Estudos de história da expansão

portuguesa, Macau, 1994, pp.111-238, Carlos Francisco MOURA, “Tristão Vaz da Veiga – Capitão-Mor da

Primeira viagem Macau-Nagasáqui”, Boletim do Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau, nº 3, Macau,

[s.d.], pp.103-168, BNL FG Códice 8750 e TT CC, parte I, maço 113, doc. 17 e maço 275, doc. 90. 48

Artur Teodoro de MATOS, op. cit., pp.206-208 e 213-227 e Carlos Francisco MOURA, op. cit., p.158.

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pequena importância. Por norma, e fruto desse desempenho, eram posteriormente nomeados,

em “jeito” de recompensa pelos serviços anteriormente prestados, para funções no Oriente.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com António de Abreu, que foi nomeado para capitão-geral

de uma armada da Carreira da Índia, pelos diferentes serviços que tinha prestado em

diferentes armadas, no Reino e na Índia49

.

Assim, podemos afirmar que os capitães dos navios lusitanos, conforme já mencionei,

eram oriundos da nobreza portuguesa e possuíam alguma experiência das coisas de mar50

,

contrariamente ao que sucedia com muitos dos comandantes dos navios da Carreira da

Índia51

.

Esta sua experiência provinha da participação em diversas armadas reais e diversas

vezes, mas não sempre, do comando de diferentes navios ao longo da sua carreira, que era

registada em documentos elaborados e assinados pelos escrivãos dos navios ondem tinham

estado embarcados52

.

Mas, não é apenas na nomeação dessas posições menores que temos poucos dados,

pois também são muito escassas as informações sobre a nomeação para as funções de

comandantes das Armadas de Portugal do Atlântico.

Neste caso, também estas nomeações eram no âmbito de um sistema de remuneração

de serviços e como trampolim para futuras nomeações mais rentáveis, como eram as do

Oriente, ou as comendas militares. Naturalmente que as nomeações para estas importantes

funções de comando, eram atribuídas a um estrato superior da nobreza e favoreciam aqueles

que viviam perto da corte, ou seja, em Lisboa, apesar da ausência do monarca53

.

No que se refere ao modo como se processavam as nomeações para os cargos de

chefia a ocupar nas Armadas de Portugal, normalmente, o primeiro a ser nomeado era o

capitão-mor da armada e, só depois, é que os restantes capitães eram escolhidos. A nomeação

formal dos capitães-mor das Armadas de Portugal, ou do “capitão de mar” de um navio da

Coroa de Portugal, era habitualmente efectuada pelo monarca, por proposta do Vice-Rei ou

49

Félix LABRADOR ARROYO, “Relación biográfica de los servidores de la casa real portuguesa (1581-1589)”, La

Casa Real en Portugal (1580-1621), Madrid, Ediciones Polifemo, 2009.

50 AGS GA, Leg.513, fol.77. Através de documentação apresentada recentemente por Amândio Barros, pode

confirmar-se esta situação, nomeadamente, não apenas no que se refere aos capitães-mores e capitães dos navios,

como a outros elementos embarcados. Amândio Jorge Morais Barros, “Algumas questões a propósito das

armadas de protecção dos mares, a partir do percurso militar de Fernão de Magalhães Caldeira (segunda metade

do século XVI)”, XI Simpósio de História Marítima, Lisboa, Academia de Marinha, apresentação efectuada em

26 de Novembro de 2009. 51

Francisco Contente DOMINGUES e Inácio GUERREIRO, “A vida a bordo na Carreira da Índia. (Século XVI)”,

sep. da Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXIV, 1988, p.199. 52

Mafalda Soares da CUNHA, op. cit., p.13. 53

Francisco Carlos COSENTINO, op. cit., pp.228 e 230.

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dos Governadores54

. Esta nomeação era registada na respectiva “relação da antiguidade das

patentes dos capitães da armada”, cujo registo, em si, era mantido nesses mesmos

armazéns55

.

Contudo, convém relembrar que tratando-se do denominado período “dualista”, por

diversas vezes os navios portugueses eram comandados por nobres castelhanos e vice-versa.

Tudo isto com uma agravante; é que, na documentação espanhola, os nomes dos portugueses

surge “castelhanizada”.

Adicionalmente, quando os navios da Coroa de Portugal se encontravam integrados

em armadas de Castela, a nomeação dos capitães dos navios era feita pelo comandante da

armada, podendo ser portugueses ou originários das diversas possessões da Coroa de

Castela56

.

Também aqui, por norma, mesmo estes indivíduos que não eram de origem

portuguesa, eram igualmente homens com prática e experiência das coisas de mar e de

guerra57

, habitualmente obtidas nos diversos teatros de operações, quer no mar58

, quer nos

célebres terços espanhóis em terra59

. Essa experiência era importante para evitar as situações

de conflito que, por vezes, surgiam entre os capitães da gente de guerra e o capitão de mar60

.

O facto do capitão de mar só ter como função apoiar o capitão da gente de guerra

“…no governo das coisas do mar…”61

, e este último ser o responsável pelas decisões de

combate do navio, no geral, debilitava a estrutura e a capacidade de comando dos navios

castelhanos. Essa complexa hierarquia de competências funcionava melhor quando o capitão

da gente de guerra era alguém com um estatuto social elevado, ou seja, nobre de categoria

mais elevada que o capitão de mar mas, também, com experiência na guerra no mar62

.

Quando tal não ocorria, conforme o próprio comandante da Felicíssima Armada constatou

54

AGS, E, Leg. 431, fols.2v e 3 e AGS E-Portugal, Leg.2763 (L-1550), fol. 157 in BMO, vol.II, doc.560, p.75.

Já para os navios de Castela, os comandantes dos navios que integravam a Armada del Mar Oceano, era ao

monarca que cabia a escolha final, a partir de uma lista elaborada pelo Conselho da Guerra. Carla Rahn

PHILLIPS, Seis galeones para el rey de España, Madrid, Alianza Editorial, 1991, p.191. 55

Apesar dessa obrigatoriedade, alguns não tinham as respectivas patentes registadas e outros encontravam-se

desactualizadas. AHU CU Reino, Cx. 38, pasta 39. 56

AGS GA, Leg.146, fol.65 in Pazzis Pi Corrales, Felipe II y la lucha por el dominio del mar, Madrid, 1989,

p.235 e AGS CS 2 E, Leg.286. 57

Por exemplo AGS GA, Leg.418, fol.170. 58

Por exemplo, Francisco de Aledo que tinha sido oficial da galé real de Lisboa, foi posteriormente capitão do

galeão São João em 1587 e em 1591, capitão do San Pablo. AGS CS 2 E, Leg.286, fol.663. Já o Alferez Juan

Iñinguez de Medrano, capitão de mar do São Mateus em 1588, tinha seguido como aventureiro na armada de

1587 que foi aos Açores. AGS GA, Leg.199, fol.85, in BMO, vol.III, t.II, doc.2307, p.705. 59

AGS GA, Leg.418, fol.170. 60

AGS GA, Leg.462, fol.217. 61

FERNANDEZ DURO, La Armada Invencible, t.II, Madrid, 1885, doc.185, p.373.

62 AGS GA, Leg.481, fol.183.

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durante os combates no Canal, a gente de mar não tinha respeito pelos capitães de guerra e a

prestação desses navios nos combates era muito inferior à dos restantes63

.

Relativamente a outros cargos a bordo dos navios, e à semelhança com o que

acontecia com os capitães dos navios, a cooperação entre os dois reinos também ocorria com

os pilotos. Aqui, e caso fosse necessário, os pilotos lusitanos podiam ser enviados para os

Açores esperar as frotas das Índias Ocidentais, para auxiliar os navios que vinham das Índias

Ocidentais na viagem até Lisboa, em vez de Sevilha. Aparentemente, e talvez um pouco

estranhamente, as costas da Galiza e de Portugal, em particular as aproximações de Lisboa,

não eram ensinadas aos pilotos de Castela, em Sevilha64

.

Os pilotos portugueses que operavam no Atlântico e, em particular para a carreira do

Brasil, eram maioritariamente provenientes das povoações a Norte de Lisboa, nomeadamente

de Aveiro, Viana e Caminha65

.

Sobre os outros oficiais embarcados nos navios da Coroa de Portugal, a operar noutras

armadas que não da Carreira da Índia, pouco ou nada se sabe mas, possivelmente, e à

semelhança com outras áreas, deveria existir uma relação directa com o que era aplicado nos

navios de Castela. Por exemplo, de acordo com a legislação marítima espanhola, de 17 de

Março de 1608, obrigava-se que cada galeão da Real Armada, sem destrinçar a origem,

tivesse embarcado dois carpinteiros e dois calafates66

.

Embora não sendo cargos especificamente ligados aos navios, importa ainda

mencionar a gente de guerra que embarcava sempre nos navios ibéricos. Também nestas

funções, os restantes nobres embarcados, normalmente com funções apenas militares, viam os

respectivos serviços também recompensados através da atribuição de cargos no Oriente ou no

Brasil67

. Contudo, por vezes e para este tipo de serviços, a recompensa era apenas a nomeação

para cargos no reino68

.

Esta prestação de serviço militar no mar acabou por ser formalizada em 1618, com a

criação de um corpo de soldados especializado da Coroa de Portugal69

, o Terço da Armada da

63

FERNANDEZ DURO, op. cit., doc.185, p.385. 64

AGS GA, Leg.166, fol.202. 65

AGS SP, Leg.1524, fols.8 e 16 e Jose Luis Casado Soto, Discursos de Bernardino de Escalante (1585-1605),

Santander, Universidad de Cantabria, 1995, p.125.

66 João Pedro Vaz, Pesca de naufrágios. As recuperações marítimas e subaquáticas na época da Expansão,

Lisboa, Tribuna da História, 2005, p.77. 67

São vários os exemplos identificados na seguinte obra, embora poucas vezes refira que cargos exerceram:

Félix LABRADOR ARROYO, “Relación biográfica de los servidores de la casa real portuguesa (1581-1589)”, in La

Casa Real en Portugal (1580-1621), Madrid, Ediciones Polifemo, 2009. 68

Félix LABRADOR ARROYO, La Casa Real en Portugal (1580-1621), Madrid, Ediciones Polifemo, 2009,

pp.424-425. 69

Lisboa, 17 de Abril de 1628, Livro das Monções, nº25, fl.5, nº 3, Documentos remetidos da Índia - Livro das

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Coroa de Portugal. Esta força, uma das mais antigas do mundo, foi utilizada principalmente

em acções no Atlântico e serviu para tentar suprir um problema comum às duas coroas na

época, que era a falta de qualidade e de formação dos soldados que embarcavam nos navios

das armadas70

. A criação desta estrutura permanente lusitana, surge, seguramente, do facto de

no ano anterior, ter sido criada a primeira Armada de Portugal, apenas guarnecida com

pessoal português71

.

No Oriente, só em Abril de 1628 é que o monarca sugere ao então vice-rei, o conde da

Vidigueira, a criação de um corpo de 600 homens, em tudo semelhante ao que já tinha sido

criado na Europa anteriormente72

.

Conclusões

Paralelamente à complexa estrutura da Carreira da Índia, funcionava uma outra de

cariz vincadamente militar no Atlântico, e com a qual partilhava grande parte da sua estrutura

administrativa e organizacional.

Embora com menos “glamour” que a primeira, esta estrutura militar atlântica permitia

não apenas garantir o regresso em segurança dos navios das conquistas ultramarinas mas,

também, que a Coroa de Portugal tivesse uma participação activa na política naval dos

monarcas de Castela.

Eram estas forças navais que, à semelhança com o que já ocorria anteriormente a

1580, alguns nobres elegiam para obter experiência militar naval e, simultaneamente, ganhar

o direito a serem recompensados com cargos mais lucrativos, como eram os postos no

Oriente.

Infelizmente, são muito escassos os dados que chegaram até aos dias de hoje sobre

quais eram esses nobres e que cargos e acções realizaram que lhes permitiram obter as tão

almejadas recompensas.

Tentar aumentar o nosso conhecimento sobre quem guarnecia os navios reais da Coroa

de Portugal, é um projecto em desenvolvimento e, seguramente, aliciante ou, no mínimo,

importante para o conhecimento desta talvez não tão pequena área da história naval.

Monções (1625-1736), vol. II, Universidade Nova de Lisboa, [Lisboa], 2002, p.12. 70

Jorge Semedo de MATOS, “O Terço da Armada Real”, ACMN, vol. CXXII, Abr-Jun 1992, pp.217-241. 71

Bernardo José GARCÍA GARCÍA, La Pax Hispanica. Política exterior del Duque de Lerma, Leuven, Leuven

University Press, 1996, pp.181. 72

Fernando Serrano MANGAS, op. cit., p.237.

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Importa aprofundar este tipo de estudos, agora que esta realidade militar permanente

está identificada pois, se já começamos a conhecer os meios navais que eram utilizados, muito

ainda falta conhecer daqueles que lhes davam vida – os homens de mar.

Embora não tenha aqui sido tratado, julgo que, a não ser com um carácter muito

pontual, falta realizar um estudo semelhante – em termos de forças navais militares e quem as

guarnecia – para o Oriente.