70
COSACNAIFY

O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Fotografia

Citation preview

Page 1: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

COSACNAIFY

Page 2: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Vilém Flusser

O MUNDO CODIFICADO P O R U M A F I L O S O F I A D O D E S I G N E D A C O M U N I C A Ç Ã O

o r g a n i z a ç ã o R a f a e l C a r d o s o t r a d u ç ã o R a q u e l A b i - S â m a r a

L I V R A R I A I N T E R N A C I O N A L

www.sbs.com.br l i v r a r i a i n t e r n a c i o n a l @ s b s . c o m . b r

Page 3: O Mundo Codificado - Vilém Flusser
Page 4: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

I N T R O D U Ç Ã O R a f a e l C a r d o s o 7

roísAs

F O R M A E M A T E R I A L 2 2

A F Á B R I C A 3 3

A A L A V A N C A C O N T R A - A T A C A 4 5

A N A O C O I S A [ 1 ] 51

A N A O C O I S A [ 2 ] 5 9

R O D A S 6 6

S O B R E F O R M A S E F O R M U L A S 7 5

P O R Q U E A S M A Q U I N A S D E E S C R E V E R E S T A L A M ? 8 0

C Ó D I G O S

O Q U E É C O M U N I C A Ç Ã O ? 8 8

L I N H A E S U P E R F Í C I E 101

O M U N D O C O D I F I C A D O 1 2 6

O F U T U R O D A E S C R I T A 138

I M A G E N S N O S N O V O S M E I O S 151

U M A N O V A I M A G I N A Ç Ã O 1 6 0

C O N S T R U Ç Õ E S

S O B R E A P A L A V R A D E S I G N 1 8 0

O M O D O D E V E R D O D E S I G N E R 187

D E S I G N O B S T Á C U L O P A R A A R E M O C A O D E O B S T Á C U L O S ? 193

U M A É T I C A D O D E S I G N I N D U S T R I A L ? 1 9 9

D E S I G N C O M O T E O L O G I A 2 0 5

F o n t e s d o s t e x t o s 2 1 6

B i b l i o g r a f i a 218

S o b r e o a u t o r 221

Page 5: O Mundo Codificado - Vilém Flusser
Page 6: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

C O I S A S

Page 7: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

F O R M A E M A T E R I A L

L

Page 8: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

A palavra "imaterial" {immaterielV) t e m s ido alvo de disparates 23 há bas tante t e m p o . Mas, desde que se c o m e ç o u a falar de

"cultura imaterial", e s s e s disparates n ã o p o d e m mais ser to ­lerados. Este ensa io t e m a in tenção de recuperar o conce i to , a tua lmente m u i t o distorcido, de "imaterialidade**.

A palavra materia resulta da tentativa dos romanos de traduzir para o lat im o t e r m o grego hylé. Originalmente , hylé significa "madeira", e a palavra materia deve ter designa­do algo similar, o que n o s sugere a palavra espanhola madera. No entanto , quando os gregos passaram a empregar a pala­vra hylé, não pensavam e m madeira n o sent ido genérico do termo, mas referiam-se ã madeira estocada nas oficinas dos carpinteiros. Tratava-se, para eles, de encontrar uma pala­vra que pudesse expressar oposição e m relação ao conceito de "forma" (a morphé grega). Hylé, portanto , significa algo amorfo. A idéia fundamental aqui é a seguinte: o m u n d o dos f enômenos , tal c o m o o percebemos com os n o s s o s sent idos , é uma geleia amorfa, e atrás desses f e n ô m e n o s encontram-se ocultas as formas eternas , imutáveis , que p o d e m o s per­ceber graças à perspectiva suprassensível da teoria. A geleia amorfa dos f e n ô m e n o s (o "mundo material") é uma ilusão

Page 9: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

2-4

e as formas que se encontram encobertas a lém dessa ilusão (o "mundo formal") são a realidade, que pode ser descoberta com o auxílio da teoria. E é ass im que a descobrimos, co­nhecendo c o m o os f e n ô m e n o s amorfos afiuem às formas e as preenchem para depois afluírem novamente ao informe.

Essa opos ição hylé-morphé, o u "matéria-forma", fica ain­da mais ev idente se traduzirmos a palavra "matéria" (Mate­riel por "estofo" (Stoff). A palavra "estofo" é o substant ivo do verbo "estofar" (jstopferi). O m u n d o material (jnaterielle VJelt) é aqui lo q u e g u a r n e c e as formas c o m e s t o f o , é o re­cheio (Füllsel) das formas. Essa i m a g e m é m u i t o mais escla­recedora d o que a da madeira enta lhada que gera formas, porque m o s t r a que o m u n d o "do es to fo" (stoffliche Welt) s ó se realiza ao se tornar o p r e e n c h i m e n t o de algo. A pala­vra francesa que c o r r e s p o n d e a "recheio" (Füllsel) é farce, o que torna poss íve l a afirmação de que, t eor icamente , t o d o material (Materielle) e todo es tofo (Stoffliche) do m u n d o não de ixam de ser u m a farsa. Com o d e s e n v o l v i m e n t o das c iên­cias, a perspectiva teórica entrou numa relação dialética com a perspect iva sensór ia ("observação — teoria — experi­mento") , que p o d e ser in terpretada c o m o opac idade da teoria . E a s s i m se c h e g o u a u m m a t e r i a l i s m o para o qual a matér ia é a real idade. Mas hoje e m dia, s o b o i m p a c t o da informát ica , c o m e ç a m o s a retornar ao c o n c e i t o original de "matéria" c o m o u m p r e e n c h i m e n t o trans i tór io de for­m a s a tempora i s .

Por razões cuja explicação ultrapassaria o objet ivo des te ensa io , desenvo lveu- se a opos ição "matéria-espírito", inde­p e n d e n t e m e n t e d o conce i to filosófico de matéria . O concei­to original nessa opos ição é que corpos só l idos p o d e m ser

Page 10: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

transformados e m l íquidos , e o s l íquidos , e m gases , p o d e n ­do e n t ã o escapar do n o s s o c a m p o de v isão. A s s i m se pode entender , por exemplo , o hál i to ( em grego, pneuma; e m la­t im, spiritus) c o m o a gas incação d o só l ido corpo h u m a n o . A transição d o sól ido para o g a s o s o (do corpo ao espírito) pode ser observada n o efe i to d o sopro e m dias frios.

Na ciência moderna , a idéia da mudança de e s tados da matéria (do só l ido ao l íquido, do l íquido ao g a s o s o — e vice-versa) d e u or igem a u m a nova i m a g e m d o m u n d o . Trata-se, grosso modo, de u m a mudança entre dois hor i zontes . Em u m deles (o do zero absoluto) , t u d o o que se mostra é sóli­do (material); já n o outro h o r i z o n t e (na ve loc idade da luz), tudo se apresenta n u m e s t a d o mais do que g a s o s o (energé­tico). (Vale lembrar aqui que "gás" e "caos" são a m e s m a pala­vra.) A opos ição "matéria-energia" que aparece aqui n o s re­m e t e ao espir i t i smo: p o d e - s e converter matéria e m energia (fissão) e energia e m matéria (fusão) — a fórmula de Eins­te in faz e s sa articulação. C o n f o r m e a v i são de m u n d o da ciência moderna , tudo é energia, ou seja, é a possibi l idade de aglomerações casuais, improváveis , é a capacidade de for­mação da matéria . A "matéria", nes sa v i são de m u n d o , equi­para-se a ilhas temporárias de ag lomerações (curvaturas) e m c a m p o s energét icos de poss ibi l idades , que se entrecru-zam. E daí provém o despropós i to , e m m o d a hoje e m dia, de se falar de "cultura imaterial". O que se e n t e n d e aqui é uma cultura e m que as in formações são introduzidas e m um campo e l e tromagnét i co e transmit idas a partir des se campo. O despropós i to cons i s t e não apenas n o abuso do conce i to "imaterial" ( e m lugar de "energético") c o m o t a m ­bém na c o m p r e e n s ã o inadequada do t e r m o "informar".

2 5

Page 11: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

R e t o m e m o s a opos ição original "matéria-forma", i s to é, "conteúdo-continente". A idéia básica é esta: se vejo a lguma coisa, u m a mesa , por exemplo , o que vejo é a madeira e m forma de mesa . É verdade que essa madeira é dura (eu trope­ço nela) , m a s sei que perecerá (será que imada e d e c o m p o s ­ta e m cinzas amorfas) . Apesar d isso , a forma "mesa" é eter­na, pois p o s s o imaginá-la q u a n d o e o n d e eu est iver (posso colocá-la ante m i n h a visada teórica) . Por i sso a forma "mesa" é real e o c o n t e ú d o "mesa" (a madeira) é apenas aparente.

26 Isso mostra , na verdade, o que os carpinteiros fazem: pe­gam u m a forma de m e s a (a "idéia" de u m a mesa) e a im­p õ e m e m u m a peça amorfa de madeira. Há u m a fatalidade n e s s e ato: os carpinteiros não apenas in formam a madeira (quando i m p õ e m a forma de mesa) , mas t a m b é m deformam a idéia de m e s a (quando a d is torcem na madeira) . A fata­l idade cons i s te t a m b é m na imposs ibi l idade de se fazer u m a m e s a ideal.

Isso tudo p o d e soar arcaico, n o e n t a n t o é de u m a atua­lidade, d igamos , abrasadora. Vejamos u m e x e m p l o s imples e p o s s i v e l m e n t e esclarecedor: o s corpos d e n s o s que n o s ro­de iam parecem rolar i n d e p e n d e n t e m e n t e de regras, m a s na realidade o b e d e c e m à fórmula da queda livre. O m o v i m e n t o percebido pe los s e n t i d o s (aquilo que é material n o s corpos) é aparente , e a fórmula d e d u z i d a t e o r i c a m e n t e (aquilo que é formal n o s corpos) é real. E es sa fórmula (ou essa forma) es tá fora d o t e m p o e do espaço , é inal teravelmente eterna. A fórmula da queda livre é u m a equação matemát ica , e as equações são desprovidas de t e m p o e de espaço: não faz sent ido perguntar se a equação "1 + 1 = 2" é igualmente ver­dadeira às quatro horas da tarde e m Semipalat insk. Mas

Page 12: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

t a m b é m faz p o u c o s e n t i d o d i z e r q u e a f ó r m u l a é " i m a t e -rial". Ela é o como d a m a t é r i a , e a m a t é r i a é o o quê d a for ­m a . E m o u t r a s pa lavras : a i n f o r m a ç ã o "queda l ivre" t e m u m c o n t e ú d o ( c o r p o ) e u m a f o r m a ( u m a f ó r m u l a m a t e m á t i c a ) . U m a e x p l i c a ç ã o c o m o e s s a p o d e r i a t e r s i d o d a d a n o p e r í o ­d o b a r r o c o .

M a s a p e r g u n t a i n s i s t e : c o m o Gal i leu c b e g o u a e s s a idéia? S e r á q u e a d e s c o b r i u t e o r i c a m e n t e , a l é m d o s f e n ô ­m e n o s ( i n t e r p r e t a ç ã o p l a t ô n i c a ) , o u a t e r i a i n v e n t a d o c o m a f i n a l i d a d e d e orientar-se e n t r e o s c o r p o s ? O u p o r a c a s o 27 ter ia p a s s a d o l o n g o t e m p o b r i n c a n d o c o m c o r p o s e i d é i a s a t é q u e s u r g i s s e a i d é i a d a q u e d a l ivre? A r e s p o s t a a e s s a p e r g u n t a d e c i d i r á s e o e d i f í c i o d a c i ê n c i a e d a a r t e p e r m a ­n e c e o u cai, e s s e p a l á c i o d e cr i s ta l d e a l g o r i t m o s e t e o r e m a s a q u e c h a m a m o s d e c u l t u r a o c i d e n t a l . Para aclarar e s s e p r o ­b l e m a e i lus trar a q u e s t ã o d o p e n s a m e n t o f o r m a l , c i t e m o s o u t r o e x e m p l o d o t e m p o d e Gal i l eu .

T r a t a - s e d a p e r g u n t a s o b r e a r e l a ç ã o e n t r e c é u e Terra. S e o c é u , j u n t a m e n t e c o m a Lua, o So l , o s p l a n e t a s e a s e s ­tre las f ixas , g ira e m t o r n o d a Terra ( c o m o p a r e c e a c o n t e ­cer) , o faz e n t ã o e m ó r b i t a s e p i c í d i c a s b a s t a n t e c o m p l e x a s , s e n d o q u e a l g u n s t ê m q u e girar e m s e n t i d o c o n t r á r i o . Se o Sol e s t i v e r n o c e n t r o , o q u e c o n s e q u e n t e m e n t e c o n v e r t e a Terra e m m a i s u m c o r p o c e l e s t e , a s ó r b i t a s c e r t a m e n t e v ã o a d q u i r i r f o r m a s e l í p t i c a s r e l a t i v a m e n t e s i m p l e s . A r e s ­p o s t a b a r r o c a para e s s a p e r g u n t a é a s e g u i n t e : n a r e a l i d a d e é o So l q u e s e e n c o n t r a n o c e n t r o , e a s e l i p s e s s ã o a s for­m a s rea i s ; n a s f o r m a s e p i c í d i c a s d e P t o l o m e u , a s f iguras d o d i s c u r s o , a s f i c ções , e r a m f o r m a s i n v e n t a d a s para m a n t e r as a p a r ê n c i a s (para sa lvar o s f e n ô m e n o s ) . H o j e p e n s a m o s

Page 13: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

mais f o r m a l m e n t e do que naquela época, e n o s s a resposta seria ass im: as e l ipses s ã o formas mais c o n v e n i e n t e s que os e p i c i d o s , e por i s so são preferíveis . As e l ipses , por sua vez , são m e n o s c o n v e n i e n t e s que o s círculos, m a s os círculos in­fe l i zmente n ã o p o d e m ser ut i l izados aqui. A ques tão já não é mais vol tada para o que é real, m a s s im para o que é con­veniente ; e e n t ã o se verifica que não se p o d e s i m p l e s m e n ­te aplicar formas c o n v e n i e n t e s aos f e n ô m e n o s (no caso, o s círculos), a não ser aquelas mais c o n v e n i e n t e s que harmo-

28 n i z e m c o m eles . Em suma: as formas n ã o são descobertas n e m invenções , nã.o são idéias platônicas n e m facções; são recipientes cons tru ídos e spec ia lmente para os f e n ô m e n o s ("modelos"). E a ciência teórica não é n e m "verdadeira" n e m "fictícia", m a s s im "formal" (projeta mode los ) .

Se "forma" for entendida c o m o o o p o s t o de "matéria", en tão não se pode falar de des ign "material"; o s projetos es ­tariam sempre vol tados para informar. E se a forma for o

"como" da matéria e a "matéria" for o "o quê" da forma, então o des ign é um dos m é t o d o s de dar forma à matéria e de fazê-la aparecer c o m o aparece, e não de outro modo . O design, c o m o todas as expressões culturais, mostra que a matéria não aparece (é inaparente) , a não ser que seja informada, e ass im, uma vez informada, começa a se manifestar (a tornar-se f enômeno) . A matéria n o design, c o m o qualquer outro aspecto cultural, é o m o d o como as formas aparecem.

Falar de des ign , n o e n t a n t o , c o m o algo s i tuado entre o material e a "imaterialidade" n ã o é t o t a l m e n t e s e m sent ido . Pois ex i s t em de fato do is m o d o s d i s t in tos de ver e de pen­sar: o material e o formal. Pode-se dizer que o m o d o pre­d o m i n a n t e n o per íodo barroco era o material: o Sol é real-

Page 14: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

rnente o centro , e as pedras caem rea lmente de acordo c o m uma fórmula. (Era material , e e x a t a m e n t e por essa razão não é material ista.) Hoje e m dia, é o m o d o formal que pre­valece: o s i s t e m a he l iocêntr ico e a equação da queda livre são formas práticas ( e x a t a m e n t e por se tratar de u m m o d o formal, n ã o é imaterial ista) . Esses dois m o d o s de ver e de pensar l evam a duas maneiras d is t intas de projetar: a ma­terial e a formal. A material resulta e m representações (por exemplo , as pinturas de an imai s nas paredes das cavernas) . A formal, por sua vez , produz m o d e l o s (por e x e m p l o , o s projetos de canais de irrigação nas tábuas m e s o p o t â m i c a s ) . A maneira material de ver enfat iza aquilo que aparece na forma; a maneira formal realça a forma daqui lo que apare­ce. Portanto, a história da pintura, por e x e m p l o , p o d e ser interpretada c o m o u m processo , n o decorrer do qual a visa­da formal se i m p õ e sobre a visada material (ainda que c o m alguns retrocessos) . É o que será m o s t r a d o a seguir.

U m p a s s o impor tante n o c a m i n h o que conduz iu à for­malização foi a introdução da perspect iva. Pela primeira vez tratou-se , de maneira consc iente , de preencher formas preconcebidas c o m matéria , de fazer o s f e n ô m e n o s apare­cer e m formas específicas. U m passo s egu in te talvez t enha sido dado por Cézanne , ao conseguir impor a u m a m e s m a matéria duas o u três formas s i m u l t a n e a m e n t e ( consegue

"mostrar", por exemplo , u m a m e s m a maçã s o b diversas perspect ivas) . Isso foi l evado ao ápice pe lo cubismo: trata­va-se de mostrar as formas geométr icas preconcebidas (en-trecruzadas); nelas , a matéria serve exc lus ivamente para deixar as formas aparecer. Pode-se dizer, p o r t a n t o , que a pintura cubista , entre o c o n t e ú d o e o c o n t i n e n t e , entre

2 9

Page 15: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

a matéria e a forma, entre o aspecto material e o formal dos f e n ô m e n o s , se m o v e sempre e m direção àquilo que é desig­nado e r r o n e a m e n t e de "imaterial**.

Mas tudo isso é apenas u m a preparação de caminho para a produção das chamadas "imagens artificiais". São elas as responsáve i s por tornar tão "abrasadora" hoje e m dia a per­gunta sobre a relação entre matéria e forma. O que es tá e m jogo são os e q u i p a m e n t o s técn icos que p e r m i t e m apresen­tar nas te las a lgor i tmos ( fórmulas matemát i cas ) e m forma de imagens coloridas (e poss ive lmente e m mov imento ) . Isso é diferente de projetar canais e m tábuas mesopotâmicas , de d e s e n h a r cubos e esferas n o s quadros cubis tas , e t a m b é m difere de projetar aviões a partir de cálculos. Porque n e s s e s casos s e trata de projetar formas para mater ia i s que serão c o n t i d o s ne las ( formas para a q u e d u t o s , para as Demoisel­les dAvignon, para os jatos Mirage); já o e x e m p l o anter ior diz respei to a formas platônicas "puras". As equações frac-tais , por e x e m p l o , que bri lham nas te las c o m o "bonecos de maçã" de Mandelbrot ,* n ã o p o s s u e m matér ia (embora p o s ­s a m p o s t e r i o r m e n t e ser preenchidas c o m mater ia is c o m o

Em a l e m ã o , Mandelbrots Apfelmánnchen. A expres são refere-se a o conjunto d e Mandelbrot , u m a i m a g e m fractal que parece produ­zir a si m e s m a in f in i tamente , gerada pela primeira vez n u m c o m ­putador pe lo m a t e m á t i c o francês Benoí t Mandelbrot . Por s e asse ­melhar a u m a maça c o m braços e pernas , o fractal foi c h a m a d o , por pesqui sadores a l e m ã e s , d e "boneco de maça d e Mandelbrot". N o livro de Ian Stewart , Será que Deus joga dados? A. nova matemática do caos (Jorge Zahar, 199a, p. 254.), o con junto de Mande lbrot é ident i ­ficado c o m o "boneco de pão d e mel". [iM.T.l

Page 16: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

formações m o n t a n h o s a s , n u v e n s de t o r m e n t a o u f locos de neve) . Essas i m a g e n s s inté t icas p o d e m (erroneamente ) ser chamadas de "imateriais", e não porque apareçam no campo e le tromagnét ico , m a s por m o s t r a r e m formas vazias , l ivres de matéria .

A questão "abrasadora" é, portanto , a seguinte: antiga­mente (desde Platão, ou m e s m o antes dele) o que importava era configurar a matéria ex i s tente para torná-la visível, m a s agora o que es tá e m jogo é preencher c o m matér ia u m a tor­rente de formas que brotam a partir de u m a perspect iva 31 teórica e de n o s s o s e q u i p a m e n t o s técnicos , c o m a finalidade de "materializar" e s sas formas . A n t i g a m e n t e , o que estava e m causa era a ordenação formal do m u n d o aparente da matéria, mas agora o que importa é tornar aparente u m m u n d o a l tamente codificado e m n ú m e r o s , u m m u n d o de formas que se mult ipl icam incontro lave lmente . Antes , o objetivo era formalizar o m u n d o ex is tente; hoje o objet ivo é realizar as formas projetadas para criar m u n d o s alterna­tivos. Isso é o que se e n t e n d e por "cultura imaterial"*, m a s deveria na verdade se chamar "cultura materializadora".

O que se debate aqui é o conce i to de informar, que significa impor formas à matéria . Esse conce i to tornou-se mui to claro a partir da Revolução Industrial . U m a ferra­m e n t a de aço e m u m a prensa é u m a forma, e ela informa o fluido de vidro o u de plást ico que escorre por ela para criar garrafas o u cinzeiros . A ques tão a n t i g a m e n t e era dist inguir as in formações verdadeiras das falsas. Verdadeiras eram aquelas cujas formas eram descobertas , e falsas aquelas e m que as formas eram ficções. Essa dis t inção perde o s en t ido quando p a s s a m o s a considerar as formas n ã o mais c o m o

Page 17: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

descobertas (aletheiai), n e m c o m o ficções, m a s c o m o m o ­delos . Fazia s en t ido , an t igamente , diferençar a ciência da arte, o que hoje parece u m despropós i to . O critério para a crítica da informação hoje e s tá mais para a s egu in te per­gunta: até que p o n t o as formas aqui impos tas p o d e m ser preenchidas com matéria? Em que med ida p o d e m ser rea­l izadas? Até que p o n t o as informações são operacionais ou produtivas?

Mas n ã o é o caso de se perguntar se as imagens são su-32 perfícies de matér ias o u c o n t e ú d o s de c a m p o s e le tromag­

nét icos . C o n v é m saber e m que medida e s sas imagens corres­p o n d e m ao m o d o de pensar e de ver material e formal. Seja qual for o significado da palavra "material**, s ó n ã o p o d e ex­primir o o p o s t o de "imaterialidade". Pois a "imaterialidade", ou , n o s en t ido estr i to , a forma, é prec i samente aquilo que faz o material aparecer. A aparência do material é a forma. E essa é c er tamente u m a afirmação pós-material .

Page 18: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

A F Á B R I C A

Page 19: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

3 4 O n o m e esco lh ido pela z o o t a x o n o m i a para identificar a n o s ­sa e spéc i e — Homo sapiens sapiens — expres sa a o p i n i ã o de que nos di ferenciamos dos h o m i n í d e o s que n o s precederam e x a t a m e n t e por u m a dupla sabedoria . Se cons iderarmos o que c o n s e g u i m o s fazer até aqui, e s sa d e n o m i n a ç ã o torna-se n o m í n i m o q u e s t i o n á v e l . Por o u t r o lado , a de s ignação Homo faber a f igura-se m e n o s i n v e s t i d a i d e o l o g i c a m e n t e , pe lo fato de apresentar u m caráter mai s antropo lóg ico do que z o o l ó g i c o . Ela d e n o t a que p e r t e n c e m o s àquelas e s p é ­cies de a n t r o p o i d e s que fabricam algo. E u m a des ignação f u n c i o n a l , u m a v e z q u e n o s p e r m i t e co locar e m c e n a o s e g u i n t e critério: s e e n c o n t r a r m o s resquíc ios de h o m i n í ­d e o s e m qua lquer lugar, d e s d e q u e n a s p r o x i m i d a d e s de a l g u m local de p r o d u ç ã o d e a r t e f a t o s ( fábrica) , e s e aca­s o n ã o h o u v e r d ú v i d a s d e q u e a a t i v i d a d e n e s s a fábrica era exerc ida por e s s e h o m i n í d e o , e n t ã o p o d e - s e d e s i g n á -lo c o m o Homo faber, o u , m a i s p r o p r i a m e n t e , c o m o h o ­m e m . Em s í t io s arqueo lóg icos de e s q u e l e t o s d e pr imatas , por e x e m p l o , fica e v i d e n t e que as pedras ao redor foram c o l e t a d a s e trabalhadas por e l e s m e s m o s d e m o d o fabril. A despe i to de todas as incertezas zoológicas , e s se s primatas

Page 20: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

deveriam ser c h a m a d o s de Homines fabri, ou , por que não , de h o m e n s propr iamente . A fábrica é, p o r t a n t o , u m a cria­ção c o m u m e característica da espécie h u m a n a , aquilo a que já se c h a m o u de "dignidade" h u m a n a . P o d e m - s e reconhe ­cer os h o m e n s por suas fábricas.

Os especial i s tas e m pré-história ded icam-se t a m b é m a esse e s tudo , e é o que os his tor iadores dever iam fazer, m a s nem sempre o fazem, o u seja: pesquisar as fábricas para identificar o h o m e m . Para investigar, por e x e m p l o , c o m o vivia, pensava , sent ia , atuava e sofria o h o m e m neol í t ico , não há nada mais adequado que es tudar de ta lhadamente as fábricas de cerâmica. Tudo, e e m particular a ciência, a política, a arte e a religião daquelas comunidades , p o d e ser reconst i tuído a partir da organização das fábricas e dos ar­tefatos de cerâmica. E o m e s m o p o d e ser af irmado para as demais épocas . A análise detalhada de u m a oficina de sa­pateiro do século XIV n o n o r t e da Itália, por exemplo , p o d e resultar e m e n t e n d i m e n t o mais profundo das raízes do H u m a n i s m o , da Reforma e da Renascença d o que aquele derivado do e s t u d o das obras de arte e de t e x t o s pol í t icos , filosóficos e teo lógicos . Pois as obras e o s t e x t o s foram e m sua maioria produzidos por m o n g e s , ao p a s s o que as gran­des revoluções dos séculos XIV e XV t iveram sua or igem nas oficinas e n o s confl i tos que ali insurgiram. Portanto, aquele que indaga sobre o n o s s o p a s s a d o dever ia concentrar- se na escavação de ru ínas das fábricas. E q u e m se in teressa por n o s s o t e m p o deveria e m primeiro lugar analisar criti­camente as fábricas atuais . Aquele que dirige sua pergunta para os dias futuros estará c o m certeza perguntando pela fábrica do futuro.

3 5

Page 21: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

3 6

Se cons iderarmos e n t ã o a história da h u m a n i d a d e c o m o uma história da fabricação, e tudo o mais c o m o meros co­mentá r i o s adicionais , torna-se poss íve l dist inguir, grosso modoy o s s e g u i n t e s per íodos: o das m ã o s , o das ferramentas , o das máquinas e o d o s aparelhos e le trônicos (Apparate'). Fa­bricar significa apoderar-se (entwenden') de algo dado na na­tureza, convertê- lo (umwenden) e m algo manufaturado, dar-lhe u m a aplicabilidade (anwenden) e uti l izá-lo (yerwenden). Esses quatro m o v i m e n t o s d e t rans formação iWenden') — apropriação, conversão , aplicação e uti l ização — são realiza­dos pr imeiramente pelas m ã o s , depois por ferramentas , e m seguida pelas máquinas e, por fim, pe los aparatos e letrôni­cos . U m a vez que as m ã o s h u m a n a s , a s s im c o m o as m ã o s dos pr imatas , são órgãos (Organé) próprios para girar (Wlen-den) coisas (e e n t e n d a - s e o ato de girar, virar, c o m o u m a informação herdada g e n e t i c a m e n t e ) , p o d e m o s considerar as ferramentas , as máquinas e o s e le trônicos c o m o imita­ções das m ã o s , c o m o próteses que pro longam o alcance das m ã o s e e m conseqüênc ia ampl iam as in formações herda­das g e n e t i c a m e n t e graças às informações culturais, adqui­ridas. Portanto , as fábricas são lugares o n d e aquilo que é dado (Gegebenes) é convert ido e m algo fe i to (Gemachtes), e com i sso as in formações herdadas t o r n a m - s e cada vez m e ­n o s significativas, ao contrário das in formações adquiridas, aprendidas , que são cada vez mais re levantes . As fábricas são lugares e m que os h o m e n s se tornam cada vez m e n o s naturais e cada vez mais artificiais, prec i samente pelo fato de que as coisas convert idas , transformadas , o u seja, o pro­d u t o fabricado, reagem à invest ida do h o m e m : u m sapatei­ro não faz u n i c a m e n t e sapatos de couro, m a s t a m b é m , por

Page 22: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

meio de sua atividade, faz de si m e s m o um sapateiro. Dito de outra maneira: as fábricas são lugares onde sempre são produ­zidas novas formas de h o m e n s : primeiro, o h o m e m - m ã o , de­pois , o h o m e m - f e r r a m e n t a , e m seguida, o h o m e m - m á q u i n a e, finalmente, o homem-apare lhos -e l e trôn icos . Repet indo: essa é a história da humanidade .

S o m e n t e c o m dificuldades c o n s e g u i m o s reconstruir a primeira Revolução Industrial, aquela e m que ocorre a subs­tituição da m ã o pela ferramenta, apesar de estar b e m docu­mentada por me io da arqueologia industrial. Mas uma coisa é certa: no m o m e n t o e m que a ferramenta — c o m o um ma­chado, por exemplo — entra e m jogo, é possível falar de uma nova forma de existência humana. U m h o m e m rodeado de ferramentas, isto é, de machados , pontas de flecha, agulhas, facas, resumindo, de cultura, já não se encontra no m u n d o como e m sua própria casa, c o m o ocorria por exemplo com o h o m e m pré-histórico que utilizava as mãos . Ele está alienado do m u n d o , protegido e aprisionado pela cultura.

A s e g u n d a Revolução Industrial , que s u p õ e a subst i tu i ­ção da ferramenta pela máquina , ocorreu há p o u c o mais de d u z e n t o s a n o s , e s o m e n t e agora c o m e ç a m o s a c o m p r e e n ­dê-la. As máquinas são ferramentas projetadas e fabrica­das a partir de teor ias científ icas, e e x a t a m e n t e por i s so são mais ef icazes , m a i s rápidas e m a i s caras. Inver te - se ass im a relação h o m e m - f e r r a m e n t a , e a ex i s tênc ia do h o ­m e m modif ica-se c o m p l e t a m e n t e . Q u a n d o se trata de fer­ramenta, o h o m e m é a c o n s t a n t e e a ferramenta , a variá­vel: o alfaiate s e n t a - s e n o m e i o da oficina e, q u a n d o quebra uma agulha, a subst i tu i por outra. N o caso da máquina , é ela a c o n s t a n t e e o h o m e m , a variável: a m á q u i n a encontra-

3 7

Page 23: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

3 8

se lá, n o m e i o da oficina, e, se u m h o m e m enve lhece o u fi d o e n t e , o proprietário da m á q u i n a o subst i tu i por outi É c o m o se o proprietário , o fabricante, fosse a c o n s t a n e a máquina , sua variável, m a s ao se analisar m a i s de p to verifica-se que t a m b é m o fabricante é u m a variável < máquina o u d o parque industr ial c o m o u m todo . A seg t da Revolução Industrial e x p u l s o u o h o m e m de sua cultu a s s i m c o m o a primeira o e x p u l s o u da natureza , e por is: p o d e m o s considerar as fábricas m e c a n i z a d a s u m a espéc de m a n i c ô m i o .

P e n s e m o s agora na terceira Revolução Industrial , aqi Ia que implica a subst i tu ição de máquinas por aparelh e letrônicos . Ela ainda es tá e m a n d a m e n t o , e seu final nãc passível de ser v i s to . Por i sso perguntamos : c o m o será a brica do futuro (ou seja, a de n o s s o s n e t o s ) ? M e s m o a si pies pergunta sobre o que afinal significa a expressão "a] relho eletrônico" esbarra e m dificuldades; uma respos poss íve l seria: as máquinas são ferramentas construídas i acordo c o m teorias científicas, e m u m m o m e n t o e m qu« ciência cons is t ia sobre tudo na física e na química, ao pas que o s aparelhos e le trônicos p o d e m ser t a m b é m aplicaçô teorias e h i p ó t e s e s da neurofis iologia e da biologia. Em < trás palavras: as ferramentas imi tam a m ã o e o corpo e pir icamente; as máquinas , mecan icamente ; e o s aparelh neurof i s io log icamente . Trata-se de "converter" (wende e m coisas as s imulações cada vez mais perfeitas de inf mações genét icas , herdadas . Pois o s aparelhos e letrônic c o n s i s t e m n o s mais adequados m é t o d o s para transf mar coisas para o uso . A fábrica do futuro será certameri m u i t o mai s compat íve l que as atuais , e s e m dúvida ref

Page 24: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

rnulará c o m p l e t a m e n t e a relação h o m e m - f e r r a m e n t a . Po­de-se, p o r t a n t o , esperar que a louca a l ienação do h o m e m com relação à natureza e à cultura, que a t ing iu o grau má­ximo na revolução das máquinas , pos sa ser superada. E as ­sim a fábrica do futuro não mais será u m m a n i c ô m i o , mas um lugar o n d e as potenc ia l idades criativas do Homo faber poderão se realizar.

O que es tá f u n d a m e n t a l m e n t e e m q u e s t ã o aqui é a re­lação h o m e m - f e r r a m e n t a . Trata-se de u m a ques tão topo ló -gica ou, se se quiser, arquitetônica. Enquanto se fabricava 39 sem ferramentas , i s to é, e n q u a n t o o Homo faber apreendia a natureza c o m as m ã o s , a fim de apropriar-se das coisas e transformá-las, e n q u a n t o n ã o se podia identificar a loca­lização de fábricas, não havia u m "topos" para elas. O h o ­m e m pré-histórico, da Idade da Pedra Lascada, não especi ­ficava lugares para fabricação, produzia e m qualquer lugar. Quando e n t r a m e m jogo as ferramentas , t orna - se necessá ­rio del imitar espaços n o m u n d o para a fabricação — c o m o os lugares o n d e se extraía o sí lex das m o n t a n h a s , o u o s lo ­cais o n d e o sí lex era convert ido e m objetos que receberiam uma aplicação e ser iam ut i l izados . Esses e spaços de fabri­cação são círculos e m cujo centro se encontra o h o m e m ; em círculos excêntr icos loca l izam-se suas ferramentas , que , por sua vez , e s t ã o rodeadas pela natureza. Verifica-se e s sa arquitetura fabril prat icamente durante toda a his tória da humanidade . Com a invenção das máquinas , e s sa arquite­tura t e m que mudar, e da maneira a seguir.

Já que a m á q u i n a d e v e es tar s i tuada n o m e i o , d e v i d o ao fato de durar mai s e d e ter maior valor que o h o m e m , a arquitetura h u m a n a terá de se s u b m e t e r à arqui te tura

Page 25: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

4 0

das m á q u i n a s . Surgem a g r u p a m e n t o s s ignif icat ivos de m á q u i n a s na Europa oc identa l e na América d o Norte , e, p o s t e r i o r m e n t e , e m t o d o o m u n d o , f o r m a n d o en tronca ­m e n t o s de u m a rede de circulação. Por s e r e m ambiva len ­t e s , o s f ios d e s s a rede p o d e m ser organ izados de m o d o c e n t r í p e t o o u centr í fugo . A o l o n g o dos fios c e n t r í p e t o s , as co isas re lac ionadas à natureza e aos h o m e n s s à o ab­sorv idas pe las m á q u i n a s para que lá p o s s a m ser conver­t idas e ut i l i zadas . Ao l o n g o dos fios centr í fugos , as co isas e o s h o m e n s t r a n s f o r m a d o s f luem para fora das máqui ­nas . As m á q u i n a s e m rede, c o n e c t a d a s en tre si, f o r m a m c o m p l e x o s , e e s t e s , por sua vez , s e u n e m f o r m a n d o par­q u e s industr ia i s , e o s a s s e n t a m e n t o s h u m a n o s f o r m a m aque les lugares , e m rede, a partir d o s quais o s h o m e n s são s u g a d o s pe las fábricas, para d e p o i s s e r e m regurgita-d o s p e r i o d i c a m e n t e , cusp idos outra v e z de lá. A natureza inteira é atraída, de forma concêntr ica , por e s sa sucção das m á q u i n a s . Essa é a e s trutura da arquitetura industr ia l d o s s écu los x i x e x x .

Essa estrutura mudará radicalmente e m função dos apa­relhos e le trônicos . N ã o s o m e n t e pelo fato de que os apare­lhos sejam mais adaptáveis ao u s o e, por i sso , radicalmente m e n o r e s e mais baratos que as máquinas , m a s t a m b é m por não mais serem u m a cons tante e m relação ao h o m e m . Fica cada dia mais ev idente que a relação h o m e m - a p a r e l h o e letrônico é reversível, e que a m b o s só p o d e m funcionar conjuntamente : o h o m e m e m função do aparelho, m a s , da m e s m a maneira , o aparelho e m função do h o m e m . Pois o aparelho só faz aquilo que o h o m e m quiser, m a s o h o m e m s ó p o d e querer aqui lo de que o apare lho é capaz. Está sur-

Page 26: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

g i n d o u m n o v o m é t o d o de fabricação, i s to é, de func iona­m e n t o : e s s e n o v o h o m e m , o func ionár io , e s tá u n i d o a o s apare lhos por m e i o de mi lhares de f ios, a l g u n s de les in­visíveis: a o n d e quer que vá, o u o n d e quer que esteja, leva cons igo o s apare lhos (ou é l evado por e les ) , e t u d o o que faz o u sofre p o d e ser in terpre tado c o m o u m a função de u m aparelho.

À primeira vista é c o m o se e s t i v é s s e m o s re tornando à fase de fabricação anterior às ferramentas. Exatamente c o m o o h o m e m primitivo, que s e m mediação alguma apreendia a 41 natureza c o m as m ã o s e, graças a elas, podia fabricar e m qualquer m o m e n t o e lugar, o s futuros funcionários , equi­pados c o m aparelhos p e q u e n o s , minúscu los o u até m e s m o invisíveis , es tarão sempre prontos a fabricar algo, e m qual­quer m o m e n t o e lugar. Ass im, não s o m e n t e os g igantescos complexos industriais da era das máquinas haverão de ex­t inguir-se c o m o o s d inossauros , e na m e l h o r das h i p ó t e s e s terminarão e x p o s t o s e m m u s e u s de história , m a s t a m b é m as oficinas vão se tornar supérfluas. Graças aos aparelhos , todos es tarão conectados c o m t o d o s o n d e e quando qui­serem, por m e i o de cabos reversíveis , e, c o m es se s cabos e aparelhos, t o d o s poderão se apropriar das coisas ex i s ten­tes , transformá-las e util izá-las.

Essa visada te lemática, pós- industr ia l e pós-histórica sobre o futuro do Homo faber apresenta , n o en tanto , u m p e q u e n o problema: quanto mais complexas se tornam as ferramentas , mais abstratas são suas funções . Ao h o m e m primit ivo, que fazia tudo e s senc ia lmente c o m as m ã o s , eram suficientes as informações concretas e herdadas para o uso das coisas apreendidas . Já o fabricante de machados ,

Page 27: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

4 2

p o t e s e sapatos , por exemplo , para fazer u s o das ferramen­tas, t inha que adquirir e s sas informações empir icamente . As máquinas ex ig iam n ã o apenas informação empírica, m a s t a m b é m teórica, e i s so explica o porquê da escolari­dade obrigatória: escolas primárias que e n s i n e m o manejo de máquinas , escolas secundárias para o e n s i n o da m a n u ­tenção das máquinas e escolas superiores que e n s i n e m a construir novas máquinas . Os aparelhos e letrônicos exi­g e m u m processo de aprendizagem ainda mais abstrato e o d e s e n v o l v i m e n t o de discipl inas que de m o d o geral a inda não se encontram acessíveis . A rede te lemática que conecta o s h o m e n s c o m os aparelhos e o c o n s e q ü e n t e desapareci­m e n t o da fábrica (para ser mais preciso: o c o n s e q ü e n t e pro­cesso de desmaterial ização da fábrica) p r e s s u p õ e m que to ­dos os h o m e n s devam ser c o m p e t e n t e s o suficiente para isso . Mas não se pode confiar nessa pressuposição.

P o d e - s e i m a g i n a r qual será o a s p e c t o das fábricas n o futuro: s erão c o m o e sco la s . D e v e r ã o ser locais e m que o s h o m e n s a p r e n d a m c o m o f u n c i o n a m o s a p a r e l h o s e l e t rô ­n i c o s , d e f o r m a q u e e s s e s a p a r e l h o s p o s s a m d e p o i s , e m lugar d o s h o m e n s , p r o m o v e r a t r a n s f o r m a ç ã o da nature ­za e m cul tura . E o s h o m e n s d o fu turo , p o r s u a v e z , n a s fábricas d o futuro , a p r e n d e r ã o e s s a operação c o m apare­l h o s , e m apare lhos e de apare lhos . Em função d i s s o , a fá­brica d o futuro deverá a s s e m e l h a r - s e m a i s a laboratór ios c i e n t í f i c o s , a c a d e m i a s d e a r t e , b i b l i o t e c a s e d i s c o t e c a s do que às fábricas a tua i s . E o h o m e m - a p a r e l h o (Apparat-menscheri) d o f u t u r o d e v e r á ser p e n s a d o m a i s c o m o u m a c a d ê m i c o d o que c o m o u m operár io , u m trabalhador o u u m e n g e n h e i r o .

Page 28: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Aqui surge, porém, u m problema concei tuai que const i ­tui o núc leo des sas reflexões: s e g u n d o as idéias clássicas, a fábrica é o o p o s t o da escola: a "escola" é o lugar da c o n t e m ­plação, do ócio (otium, scholé), e a "fábrica", o lugar da perda da contemplação {negotium, ascholia); a "escola" é nobre, e a

"fábrica", desprezível . M e s m o os f i lhinhos românt icos dos fundadores de grandes indústr ias compart i lhavam dessa opinião clássica. Agora começa a desvelar-se o erro funda­mental dos p latônicos e dos românt icos . Enquanto escola e fábrica e s t ã o separadas e se depreciam m u t u a m e n t e , go ­verna a maluquice industrial . Por outro lado, e n q u a n t o os aparelhos e letrônicos c o n t i n u a m expul sando as máquinas , fica ev idente que a fábrica n ã o é outra coisa s e n ã o a escola aplicada, e a escola n ã o é mais que u m a fábrica para aqui­sição de informações . E s o m e n t e n e s s e m o m e n t o o t e r m o Homo faher adquire total d ignidade.

Isso n o s p e r m i t e formular a p e r g u n t a sobre a fábrica do futuro de m o d o topológico e arquitetônico. A fábrica do futuro deverá ser aquele lugar e m que o h o m e m aprenderá, juntamente com os aparelhos eletrônicos, o quê, para quê e como colocar as coisas e m uso . E os futuros arquitetos fabris terão de projetar escolas ou , e m termos clássicos, academias, templos de sabedoria. Como deverá ser o aspecto desses t em­plos, s e estarão materia lmente assentados n o chão, se flutua­rão c o m o objetos semimateria is , se serão quase to ta lmente imateriais, é uma questão secundária. O que importa é que a fábrica do futuro deverá ser o lugar e m que o Homo faher se converterá e m Homo sapiens sapiens, porque reconhecerá que fabricar significa o m e s m o que aprender, i s to é, adquirir informações , produzi- las e divulgá-las.

•43

Page 29: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Isso s o a n o m í n i m o t ã o u t ó p i c o q u a n t o a soc i edade te l emát ica conec tada e m rede c o m apare lhos a u t o m á t i c o s . Mas na realidade trata-se de u m a projeção de t endênc ias que já p o d e m ser observadas . S e m e l h a n t e s escolas-fábri-cas e fábricas-escolas já e s t ã o surgindo e m toda parte.

44

Page 30: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

A A L A V A N C A C O N T R A - A T A C A

Page 31: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

AG As máquinas são s imulações dos órgãos do corpo h u m a n o . A alavanca, por exemplo , é u m braço prolongado. Potenciali­za a capacidade que t e m o braço de erguer coisas e descarta todas as suas outras funções . É "mais estúpida" que o bra­ço, m a s e m troca chega mais longe e pode levantar cargas mais pesadas.

As facas de pedra — cuja forma imita a d o s d e n t e s incisi­v o s — são u m a das máquinas mais ant igas . São mais ant igas que a espéc ie Homo sapiens sapiens e c o n t i n u a m cor tando até hoje: e x a t a m e n t e por não serem orgânicas , m a s feitas de pedra. Provave lmente o s h o m e n s da Idade da Pedra Las­cada t a m b é m d i s p u n h a m de máquinas vivas: o s chacais, por exemplo , que dev iam util izar na caça c o m o e x t e n s ã o de suas próprias pernas e incis ivos . Os chacais, a s s im c o m o os in­cis ivos , são m e n o s e s túp idos que as facas de pedra; por sua vez , es tas duram mais t e m p o . Talvez essa seja u m a das ra­z õ e s pelas quais , até a Revolução Industrial , empregavam-se t a n t o máquinas "inorgânicas" c o m o orgânicas: t a n t o fa­cas quanto chacais , t a n t o alavancas quanto burros, t a n t o pás q u a n t o escravos — para que se pudes se dispor de du­rabilidade e intel igência. Mas as máquinas "inteligentes"

Page 32: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

( c h a c a i s , b u r r o s e e s c r a v o s ) s ã o e s t r u t u r a l m e n t e m a i s c o m ­p l e x a s q u e a s " e s t ú p i d a s " . E s s e é o m o t i v o p e l o q u a l , d e s d e a R e v o l u ç ã o I n d u s t r i a l , s e c o m e ç o u a p r e s c i n d i r d e l a s .

A m á q u i n a i n d u s t r i a l s e d i s t i n g u e d a p r é - i n d u s t r i a l p e l o f a t o d e q u e a q u e l a t e m c o m o b a s e u m a t e o r i a c i e n t í f i c a . C e r t a m e n t e a a l a v a n c a p r é - i n d u s t r i a l t a m b é m t e m a l e i d a a l a v a n c a e m s e u b o j o , m a s s o m e n t e a i n d u s t r i a l sabe q u e a t e m . H a b i t u a l m e n t e i s s o s e e x p r e s s a a s s i m : a s m á q u i n a s p r é - i n d u s t r i a i s f o r a m f a b r i c a d a s e m p i r i c a m e n t e , a o p a s s o q u e a s i n d u s t r i a i s o s ã o t e c n i c a m e n t e . N a é p o c a d a R e v o l u - -47

ç ã o I n d u s t r i a l , a c i ê n c i a d i s p u n h a d e u m a s é r i e d e t e o r i a s a r e s p e i t o d o m u n d o " i n o r g â n i c o " , p r i n c i p a l m e n t e t e o r i a s d e m e c â n i c a . P o r é m , e m r e l a ç ã o a o m u n d o o r g â n i c o , a s t e o r i a s e r a m b a s t a n t e e s c a s s a s . Q u e l e i s t e m o b u r r o n o s e u v e n ­t r e ? N ã o s ó o p r ó p r i o b u r r o a s d e s c o n h e c i a , c o m o t a m b é m o s c i e n t i s t a s p o u c o s a b i a m s o b r e e l a s . D a í q u e , a p a r t i r d a R e v o l u ç ã o I n d u s t r i a l , o b o i d e u l u g a r â l o c o m o t i v a , e o c a ­v a l o , a o a v i ã o . O b o i e o c a v a l o e r a m i m p o s s í v e i s d e s e r f e i ­t o s t e c n i c a m e n t e . C o m r e l a ç ã o a o s e s c r a v o s , a c o i s a e r a a i n ­d a m a i s c o m p l i c a d a . A s m á q u i n a s t é c n i c a s n ã o a p e n a s i a m s e t o r n a n d o c a d a v e z m a i s e f i c a z e s c o m o t a m b é m m a i o ­r e s e m a i s c a r a s . D e s s e m o d o , a r e l a ç ã o " h o m e m - m á q u i n a " i n v e r t e u - s e d e t a l m o d o q u e a s m á q u i n a s n ã o s e r v i a m a o s h o m e n s , m a s e s t e s s e r v i a m a e l a s . H a v i a m - s e c o n v e r t i d o e m e s c r a v o s r e l a t i v a m e n t e i n t e l i g e n t e s d e m á q u i n a s r e l a ­t i v a m e n t e e s t ú p i d a s .

E s s a s i t u a ç ã o m u d o u u m p o u c o n o s é c u l o XX. A s t e o r i a s s e a p e r f e i ç o a r a m e, g r a ç a s a i s s o , a s m á q u i n a s s e t o r n a r a m a o m e s m o t e m p o c a d a v e z m a i s e f i c a z e s e m e n o r e s , e s o b r e t u d o m a i s " i n t e l i g e n t e s " . O s e s c r a v o s s e t o r n a m p r o g r e s s i v a m e n t e

Page 33: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

4 8

redundantes e f ogem das máquinas para o setor de servi­ços , o u e n t ã o ficam desempregados . Essas são as conheci­das conseqüênc ias da automação e da "robotização" que caracterizam o processo da sociedade pós- industrial . Mas essa não é a mudança rea lmente importante . Muito mais significativo é o fato de que e s t a m o s c o m e ç a n d o a dispor também de teorias que se aplicam ao m u n d o orgânico. Começamos a saber que leis o burro traz n o ventre. Em conseqüência , e m breve p o d e r e m o s fabricar tecnologica-m e n t e bois , cavalos, escravos e superescravos. Isso será chamado, provave lmente , a s e g u n d a Revolução Industrial ou a Revolução Industrial "biológica".

E ass im ficará explícito que a in tenção de construir má­quinas "inorgânicas inte l igentes" é, n o melhor dos casos , u m r e m e n d o e, n o pior, u m erro; u m a alavanca não t e m por que ser u m braço e s túp ido se receber u m s i s t ema n e r v o s o central. A elevada intel igência do boi p o d e ser inclusive superada pelas l ocomot ivas que es te jam b e m construídas

"biologicamente". Em breve, ao construir máquinas será poss íve l combinar a durabil idade d o "inorgânico" c o m a in­tel igência do orgânico. Logo haverá uma praga de chacais de pedra. Mas essa não é neces sar iamente u m a s i tuação paradisíaca: o s chacais, bois , escravos e superescravos de pedra se ag i tam frenet i camente à n o s s a vol ta , e n q u a n t o t e n t a m o s comer e digerir o s produtos industriais secundá­rios que de les jorram s e m parar. Isso não p o d e ser ass im. E não só porque essas "inteligências de pedra" es te jam se tornando cada vez "mais inte l igentes" e, c o n s e q u e n t e m e n t e , de ixando de ser es túpidas o suficiente para n o s servir; não p o d e ser as s im porque as máquinas , por mais es túpidas que

Page 34: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

sejam, contra-atacam, revidam nossas invest idas. Como vão golpear q u a n d o se tornarem mais espertas?

A velha alavanca n o s devo lveu o golpe: m o v e m o s os bra­ços c o m o se f o s s e m alavancas, e i s so d e s d e que p a s s a m o s a dispor delas . Imi tamos o s n o s s o s imitadores . Desde que criamos ove lhas n o s c o m p o r t a m o s c o m o rebanhos e neces ­s i tamos de pastores . A t u a l m e n t e , e s s e contra-ataque das máquinas es tá se t o r n a n d o mais ev idente: o s jovens dan­çam c o m o robôs, o s pol í t icos t o m a m dec i sões de acordo com cenários computador izados , os c ient i s tas p e n s a m di-g i ta lmente e o s art istas d e s e n h a m c o m máquinas de plota-gem. Por consegu in te , toda futura fabricação de máquinas também deverá levar e m conta o contragolpe da alavanca. Já nào é poss íve l construir máquinas cons iderando apenas a economia e a ecologia. É preciso pensar t a m b é m c o m o essas máquinas n o s devolverão seus go lpes . U m a tarefa difícil, se l evarmos e m consideração que, na atualidade, a maioria das máquinas é construída por "máquinas inteli­gentes" e n ó s apenas o b s e r v a m o s o processo para intervir ocas ionalmente .

Esse é u m problema de des ign: c o m o d e v e m ser as má­quinas, para que seu contragolpe não n o s cause dor? O u melhor: c o m o d e v e m ser e s sas máquinas para que o contra­golpe n o s faça b e m ? C o m o deverão ser os chacais de pedra para que nào nos esfarrapem e para que n ó s m e s m o s n ã o nos c o m p o r t e m o s c o m o chacais? Natura lmente p o d e m o s projetá-los de m o d o a que n o s lambam, e m vez de morder-nos . Mas queremos rea lmente ser lambidos? São questões difíceis, porque n i n g u é m sabe de fato c o m o quer ser. N o e n t a n t o , d e v e m o s debater e s s a s q u e s t õ e s a n t e s de come-

4 9

Page 35: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

çarmos a projetar cHacais de pedra (ou talvez c lones de invertebrados ou quimeras de bactérias) . E essas ques tões são ainda mais in teressantes do que qualquer chacal de pe­dra o u qualquer futuro s u p e r - h u m a n o . Será que o des igner estará preparado para colocá-las?

5 0

Page 36: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

CL] V S I O D O V N V

Page 37: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

5 2 Pouco t e m p o atrás, n o s s o un iverso era c o m p o s t o de coi­sas: casas e m ó v e i s , m á q u i n a s e ve ícu los , trajes e roupas , l ivros e i m a g e n s , latas de c o n s e r v a e c igarros. T a m b é m havia seres h u m a n o s * e m n o s s o a m b i e n t e , a inda que a c iência já o s t ivesse , e m grande parte , conver t ido e m o b ­jetos: e les se tornaram, p o r t a n t o , c o m o as d e m a i s co isas , m e n s u r á v e i s , calculáveis e pass íve i s de ser m a n i p u l a d o s . Em s u m a , o a m b i e n t e era a condição de n o s s a ex i s tênc ia (Dasein). Or ientar-se ne le significava diferençar as coisas naturais das artificiais. U m a tarefa nada fácil. Essa hera na parede de m i n h a casa, por e x e m p l o , é u m a coisa natural s i m p l e s m e n t e porque cresce e porque é obje to de e s t u d o da botân ica , u m a ciência natural? O u será u m a coisa arti­ficial por ter s ido cult ivada por m e u jardineiro c o n f o r m e u m m o d e l o e s té t i co? E m i n h a casa? Será a lgo artificial, u m a vez que projetar e constru ir casas é u m a arte? O u

N e s t a p a s s a g e m , t raduz imos "Menschen" por "seres h u m a n o s " para pôr e m ev idênc ia s e u contras te c o m "coisas". N a s d e m a i s ocor­rências do t e r m o , o p t a m o s invar iave lmente por "o h o m e m " o u "os homens" , v i s a n d o respeitar o registro coloquial d o t e x t o . [N.T.]

Page 38: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

será natural as p e s s o a s m o r a r e m e m casas , a s s i m c o m o os pássaros v i v e m n o s n i n h o s ? Fará s e n t i d o a inda querer dist inguir natureza de cultura q u a n d o se trata de se or ien­tar n o m u n d o das coisas? N ã o seria hora de buscar ou tros critérios "ontológicos", c o m o , por e x e m p l o , a d i s t inção e n ­tre coisas a n i m a d a s e i n a n i m a d a s , m ó v e i s e imóve i s? Isso t a m b é m cria dif iculdades. U m país , a p a r e n t e m e n t e , é u m a coisa imóvel ; n o e n t a n t o , a Polônia d e s l o c o u - s e para o e s ­te. U m a cama, pe lo que parece, é u m m ó v e l , m a s a m i n h a cama d e s l o c o u - s e m e n o s d o que a Polônia. Qualquer cata- 53 logo referente ao un iverso das co isas , i n d e p e n d e n t e m e n ­te dos cri térios ut i l i zados para c o m p ô - l o — "animado- ina-nimado", "meu-seu", "útil-inútil", "próximo-dis tante" —, apresentará lacunas e imprec isão . N ã o é fácil n o s m o v i ­m e n t a r m o s en tre as co isas .

N o e n t a n t o , ao o l h a r m o s para trás, c o m o f a z e m o s aqui, r econhecemos que era m a i s aconchegante viver e m u m m u n d o de coisas . É claro que havia, se q u i s e r m o s n o s ex­pressar c o m elegância, certas dificuldades ep i s temológ icas , mas era poss íve l saber mai s ou m e n o s o que se deveria fa­zer para poder viver. "Viver" significa ir e m direção à mor­te. N e s s e c a m i n h o topava-se c o m coisas que obs tru íam a passagem. Essas coisas chamadas "problemas" t i n h a m de ser c o n s e q u e n t e m e n t e retiradas da frente. "Viver" signifi­cava e n t ã o resolver problemas para poder morrer. E os pro­blemas eram so luc ionados q u a n d o as coisas que res ist iam o b s t i n a d a m e n t e eram transformadas e m dóceis , e a i s so se chamava "produção"; o u e n t ã o ao s e r e m superados — o que era identif icado c o m o "progresso". Até que f inalmente apareceram problemas que n ã o p o d i a m ser transformados

Page 39: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

5 4

e n e m superados . Eram d e n o m i n a d o s "as ú l t imas coisas", e morria-se por sua causa. Esse era o paradoxo da vida en­tre as coisas: acreditava-se que os problemas t i n h a m de ser resolvidos para l impar o c a m i n h o para a morte , a fim de, c o m o se cos tumava dizer, "libertar-se das circunstâncias", e morria-se j u s t a m e n t e por causa dos problemas insolú-veis . Isso p o d e até não soar de u m m o d o m u i t o aprazível, m a s não deixa de ser tranquilizador. Sabe-se ao m e n o s o que se t e m para ater-se à vida — ou seja, as coisas .

Mas essa s i tuação in fe l i zmente m u d o u . Agora irrom­p e m n ã o coisas por t o d o s o s lados , e invadem n o s s o espaço sup lantando as coisas . Essas não coisas são d e n o m i n a d a s

"informações". P o d e m o s querer reagir a i s so d i z e n d o "mas que contrassenso!", pois as in formações s empre exist iram e, c o m o a própria palavra "informação" indica, trata-se de

"formar em" coisas . Todas as coisas c o n t ê m informações: li­vros e imagens , latas de conserva e cigarros. Para que a in­formação se torne ev idente , é preciso apenas ler as coisas,

"decifrá-las". Sempre foi ass im, não há nada de n o v o n isso . Essa objeção é a b s o l u t a m e n t e vazia. As in formações

que hoje invadem n o s s o m u n d o e sup lantam as coisas são de u m t ipo que nunca exis t iu antes: são in formações ima-teriais (undingliche lnformationeri). As imagens e letrônicas na tela de te levisão, o s dados a r m a z e n a d o s n o computador , o s rolos de filmes e microfi lmes, ho logramas e programas são tão "impalpáveis" (software) que qualquer tentat iva de agarrá-los c o m as m ã o s fracassa. Essas n ã o coisas são, n o s e n t i d o preciso da palavra, "inapreensíveis". São apenas decodificáveis . E é b e m verdade que, c o m o as ant igas infor­m a ç õ e s , parecem t a m b é m estar inscr i tas nas coisas: e m

Page 40: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

tubos de raios catódicos, e m celulóides, e m microchips, e m raios laser. Ainda que i s so p o s s a ser admit ido "ontologica-rnente", trata-se de fato de u m a i lusão "existencial". A b a s e material des se n o v o t ipo de informação é desprezível do ponto de v is ta existencial . U m a prova d isso é o fato de que o hardware e s tá se t o r n a n d o cada vez mais barato, ao pas so que o software, mais caro. Os indícios de material idade ain­da l igados a essas não coisas p o d e m ser descartados ao se apreciar o n o v o ambiente . O e n t o r n o está se tornando pro­gress ivamente mais impalpãvel , mais nebu loso , mais fan- 55 tasmagórico, e aquele que nele quiser se orientar terá de partir d e s s e caráter espectral que lbe é próprio.

Mas não se faz sequer necessár io trazer à consciência essa nova configuração de n o s s o ambiente . Es tamos todos impregnados dela. N o s s o interesse existencial des loca-se , a olhos v i s tos , das coisas para as informações . Es tamos cada vez m e n o s interessados e m possuir coisas e cada vez mais querendo consumir informações . Não queremos apenas u m móvel a mais ou uma roupa, m a s gos tar íamos t a m b é m de mais uma v iagem de férias, uma escola ainda melhor para os filhos e mais u m festival de música e m nossa região. As coisas c o m e ç a m a retirar-se para o s egundo plano de n o s ­so campo de interesses . Ao m e s m o t e m p o , uma parcela cada vez maior da sociedade ocupa-se com a produção de infor­mações , "serviços", administração, s i s t emas , e m e n o s p e s ­soas se dedicam à produção de coisas. A classe trabalhadora, ou seja, o s produtores de coisas , es tá se t o r n a n d o minoria , enquanto os funcionários e o s apparatchiks, e s s e s produto­res de não coisas , t o rnam-se maioria. A moral burguesa ba­seada e m coisas — produção, acumulação e c o n s u m o — cede

Page 41: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

5 6

lugar a uma nova moral. A vida n e s s e ambien te que v e m se tornando imaterial ganha u m a nova coloração.

Pode-se reprovar a descrição dessa reviravolta por ela n ã o considerar a enxurrada de trastes inúte i s que a c o m ­panha a invasão das n ã o coisas . Essa reprovação, n o e n ­tanto , não procede: o s trastes inúte i s provam o ocaso das coisas . O que a c o n t e c e é q u e a l i m e n t a m o s as m á q u i n a s de in formações para que elas "vomitem" e s s e s trastes da for­m a mais mass iva e barata poss íve l . Esses res tos descartá­veis , i squeiros , navalhas , canetas , garrafas de plást ico , n ã o são coisas verdadeiras: n ã o dá para se apegar a elas . E à med ida que, progres s ivamente melhor , a p r e n d e r m o s a ali­m e n t a r de in formações as m á q u i n a s , todas as coisas vão se converter e m trastes d e s s e t ipo, inclus ive casas e ima­g e n s . Todas as co isas perderão s eu valor, e t o d o s o s valores serão transfer idos para as in formações . "Transvaloração de t o d o s o s valores." Essa definição, aliás, é apropriada para o n o v o imper ia l i smo: a h u m a n i d a d e é d o m i n a d a por g r u p o s que d i s p õ e m de in formações privi legiadas, c o m o por e x e m p l o a cons trução de us inas hidrelétricas e armas a tômicas , d e a u t o m ó v e i s e aeronaves , de engenhar ia g e n é ­tica e s i s t e m a s in formát icos de g e r e n c i a m e n t o . Esses gru­p o s v e n d e m as in formações por preços a l t í s s imos a u m a h u m a n i d a d e subjugada.

O que es tá e m marcha ante n o s s o s o lhos , e s se desloca­m e n t o das coisas do n o s s o hor izonte de interesses e a focali-zação dos in teresses nas informações , é s e m precedente na história. E, por isso , inquietante . Mas se qu i sermos n o s orientar me lhor n e s s e campo, t e r e m o s de buscar, apesar da ausência de precedentes , a lgum t ipo de paralel ismo. Senão,

Page 42: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

c o m o p o d e r í a m o s s e q u e r t e n t a r i m a g i n a r n o s s o m o d o d e v i d a e m u m a m b i e n t e i m a t e r i a l c o m o e s s e ? Q u e t i p o d e h o ­m e m s e r á e s s e q u e , e m v e z d e s e o c u p a r c o m c o i s a s , irá s e o c u p a r c o m i n f o r m a ç õ e s , s í m b o l o s , c ó d i g o s , s i s t e m a s e m o ­d e l o s ? E x i s t e u m para le lo : a p r i m e i r a R e v o l u ç ã o I n d u s t r i a l . O i n t e r e s s e s e d e s l o c o u n i t i d a m e n t e d a n a t u r e z a , d a s v a c a s e d o s c a v a l o s , d o s l a v r a d o r e s e a r t e s ã o s p a r a a s c o i s a s , p a r a as m á q u i n a s e s e u s p r o d u t o s , para a m a s s a d e t r a b a l h a d o ­res e p a r a o cap i ta l , e a s s i m s u r g i u o m u n d o " m o d e r n o " . N e s s a é p o c a p o d i a - s e a f irmar , e c o m r a z ã o , q u e u m c a m p o - 57 n ê s d o a n o 1750 a .C. s e r i a m a i s p a r e c i d o c o m u m c a m p o n ê s d e 1750 d .C. d o q u e c o m u m p r o l e t á r i o , s e u filho, d o a n o 1780 d .C. H o j e e m d i a o c o r r e a l g o p a r e c i d o . E s t a m o s m a i s p r ó x i m o s d o t r a b a l h a d o r e d o c i d a d ã o d a R e v o l u ç ã o Fran­cesa d o q u e d e n o s s o s p r ó p r i o s filhos, d e s s a s c r i a n ç a s q u e v e m o s aí b r i n c a n d o c o m a p a r e l h o s e l e t r ô n i c o s . A c o m p a r a ­ç ã o c e r t a m e n t e n ã o va i f a z e r c o m q u e a a t u a l r e v o l u ç ã o s e t o r n e m a i s c o n f o r t á v e l p a r a n ó s , m a s e la p o d e s e r v i r p a r a m e l h o r a p r e e n s ã o d o o b j e t o .

P o d e r e m o s e n t ã o c o m p r e e n d e r q u e o e s f o r ç o d e n o s a ter -m o s à s c o i s a s n a v i d a t a l v e z n ã o seja o ú n i c o m o d o rac iona l de v iver , o q u e va i a o e n c o n t r o d a q u i l o e m q u e e s t a m o s i n ­c l i n a d o s a acredi tar , q u e n o s s a "objet iv idade" (Objektivitat) é a l g o r e l a t i v a m e n t e n o v o . E n t e n d e r e m o s q u e s e p o d e v i ­ver d i f e r e n t e m e n t e , t a l v e z d e f o r m a a t é m e l h o r . A l i á s , a v ida "moderna" , a v i d a e n t r e a s c o i s a s , n ã o é t ã o e x c e p ­c i o n a l m e n t e m a r a v i l h o s a c o m o t a l v e z p e n s a s s e m n o s s o s pa i s . M u i t a s s o c i e d a d e s d o Terce iro M u n d o , e x c l u í d a s d o b l o c o o c i d e n t a l , p a r e c e m t e r b o a s r a z õ e s para reje i tá- la . S e n o s s o s filhos t a m b é m c o m e ç a r e m a r e p u d i á - l a , n ã o s e r á

Page 43: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

5 8

neces sar iamente m o t i v o de desespero . Pelo contrário, tere­m o s que imaginar essa nova vida com as n ã o coisas .

A d m i t a m o s : essa n ã o é u m a tarefa fácil. Esse n o v o ho­m e m que nasce a o n o s s o redor e e m n o s s o próprio interior de fato carece de m ã o s Çist handlos). Ele não lida (hehandelt) mais com as coisas , e por i s so não se p o d e mais falar de suas ações concretas (Handlungen), de sua práxis o u mes ­m o de s e u trabalho. O que lhe resta das m ã o s são apenas as p o n t a s dos dedos , que pres s ionam o tec lado para operar c o m os s ímbolos . O n o v o h o m e m não é mais u m a pessoa de ações concretas , m a s s im u m performer (Spieler): Homo ludens, e não Momo faber. Para ele, a vida de ixou de ser um drama e p a s s o u a ser u m espetáculo . N ã o se trata mais de ações , e s i m de sensações . O n o v o h o m e m não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja exper imentar , conhecer e, sobretudo , desfrutar. Por n ã o estar interessado nas coi­sas , ele n ã o t e m problemas . Em lugar de problemas , t em programas. E m e s m o ass im cont inua s e n d o u m h o m e m : vai morrer e sabe disso . N ó s m o r r e m o s de coisas c o m o problemas inso lúve is , e ele morre de não coisas c o m o pro­gramas errados. Essas reflexões p e r m i t e m que n o s aproxi­m e m o s dele. A irrupção da não coisa e m n o s s o m u n d o con­s is te n u m a guinada radical, que não atingirá a d ispos ição básica da ex is tência h u m a n a (Dasein), o ser para a m o r t e (das Sein zum Tod). Seja a m o r t e considerada c o m o a últ ima coisa o u c o m o u m a n ã o coisa.

Page 44: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

IZ~\ V S I O D O V N V

Page 45: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

6 0 O h o m e m , d e s d e sempre , v e m manipu lando s e u ambiente . E a m ã o , c o m seu polegar o p o s t o aos demais dedos , que d is t ingue a exis tência h u m a n a n o m u n d o . Essa m ã o pecu­liar do organ i smo h u m a n o apreende as coisas . O m u n d o é por ela apreendido c o m o u m conjunto de coisas , c o m o algo concreto . E não é apenas apreendido: as coisas são apanha­das para serem transformadas . A m ã o impr ime formas (ín-formiert) nas coisas que pega. E as s im surgem dois m u n ­dos ao redor d o h o m e m : o m u n d o da "natureza", das coisas ex i s t en te s (yorhanderi) e a s erem agarradas, e o m u n d o da

"cultura", das coisas d i sponíve i s (jzuhanden), informadas. Ainda há p o u c o se acreditava que a his tór ia da h u m a n i ­dade era u m processo de transformação progressiva da na­tureza e m cultura, graças ao trabalho das m ã o s . Hoje, essa opinião , essa "fé n o progresso", deve ser renegada. De fato, t e m se tornado cada vez mais ev idente que a m ã o n ã o deixa e m paz as coisas informadas , m a s s im cont inua agi tando-as até que se e s g o t e a informação que c o n t ê m . A m ã o con­s o m e a cultura e a transforma e m lixo. Portanto, não são dois m u n d o s que c ircundam o h o m e m , m a s s i m três: o da natureza, o da cultura e o do l ixo. Esse l ixo t e m se tornado

Page 46: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

cada vez mais interessante: diversas áreas do c o n h e c i m e n ­t o como por exemplo a ecologia , a arqueologia, a e t i m o l o ­gia e a psicanál ise , t ê m se dedicado a estudá- lo . O que se constata é que o l ixo retorna para a natureza . A história humana, por tanto , n ã o é u m a l inha reta traçada da natu­reza à cultura. Trata-se de u m círculo, que gira da natureza à cultura, da cultura ao l ixo, do l ixo à natureza, e a s s im por diante. U m círculo v ic ioso .

Para poder saltar desse círculo seria necessário ter à dis­posição informações inconsumíve i s , "inesquecíveis", que não poderiam ser manuseadas . Mas a m ã o agita todas as coisas, tenta alcançar tudo. As informações inconsumíve i s , portanto, não d e v e m ser armazenadas e m coisas. Seria preciso produzir uma cultura imaterial (undinglich). Se isso ocorresse, n ã o haveria mais e squec imento , e a s s im a história da humanidade consist ir ia e fe t ivamente n u m pro­gresso linear: u m a m e m ó r i a crescente, e m plena expan­são. S o m o s hoje t e s t e m u n h a s da tentat iva de se produzir uma cultura imaterial desse t ipo, uma m e m ó r i a expansível . As memór ias do computador são u m exemplo disso .

A m e m ó r i a do computador é u m a n ã o coisa. De forma similar, t a m b é m as i m a g e n s e letrônicas e o s ho logramas são não coisas, pois s i m p l e s m e n t e não p o d e m ser apalpa­das, apreendidas c o m a mão . São n ã o coisas pe lo fato de serem informações inconsumíve i s . É certo que essas n ã o coisas c o n t i n u a m enclausuradas e m coisas c o m o chips de silício, t u b o s de raios catódicos o u raios laser. O jogo das contas de vidro, de H e r m a n n Hesse , e trabalhos s imilares de futurologia p e r m i t e m que ao m e n o s se imag ine u m a li­bertação das não coisas c o m relação às coisas . A l ibertação

6 1

Page 47: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

6 2

do software c o m relação ao hardware. Mas n ã o é sequer ne­cessário que fantas i emos o futuro: a crescente imateriali-dade (Undinglichkeit) e a impalpabi l idade da cultura já são hoje u m a v ivência diária. As coisas ao n o s s o redor es tão e n c o l h e n d o , e m u m a espéc ie de "miniaturização", e fican­do sempre mais baratas; e m contrapart ida, as n ã o coisas e m n o s s o e n t o r n o inflam, c o m o é o caso da "informática". E essas não coisas são s i m u l t a n e a m e n t e e fêmeras e eter­nas . N ã o e s tão ao alcance da m ã o (vorhanderi), embora es­tejam disponíve i s (zuhanderi): são inesquecíve is .

Em u m c o n t e x t o c o m o esse , as m ã o s n ã o t ê m nada a procurar e nada a fazer. U m a vez que a s i tuação é inalcan-çável, não há nada a ser tocado ou manipulado . A mão , a at ividade de apanhar e de produzir, t ornou- se aí supérflua. E o que ainda precisa ser apreendido e produzido é e fe tuado a u t o m a t i c a m e n t e por não coisas , por programas: por "inte­l igência artificial" e máquinas robot izadas . D e s s e m o d o , o h o m e m se e m a n c i p o u do trabalho de apreender e de pro­duzir, e ficou desempregado . O atual d e s e m p r e g o não é u m

"fenômeno conjuntural", m a s u m s i n t o m a da superficiali-dade do trabalho n e s s e c o n t e x t o imaterial .

As m ã o s tornaram-se supérfluas e p o d e m atrofiar, m a s as pontas dos d e d o s não. Pelo contrário: elas p a s s a m a ser as partes mai s i m p o r t a n t e s do organ i smo. Pois, n e s s e e s tado de coisas imateriais (undinglich), trata-se de fabri­car in formações t a m b é m imateriais e de desfrutar delas . A produção de informações é u m jogo de permutação de s ímbolos . Desfrutar das informações significa apreciá-los, e nessa s i tuação imaterial , trata-se de jogar c o m eles e ob­servá-los . E, para jogar c o m o s s ímbolos , para programar, é

Page 48: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

n e C es sár io press ionar teclas . D e v e - s e fazer o m e s m o para se apreciar o s s ímbo los , para desfrutar d o s programas . As teclas são d ispos i t ivos que p e r m u t a m s ímbolos e p e r m i t e m torná-los perceptíveis: cons ideremos , por e x e m p l o , o p i a n o ou a máquina de escrever. As p o n t a s d o s d e d o s sào indis­pensáveis para pres s ionarmos as teclas . O h o m e m , n e s s e futuro de coisas imateriais , garantirá sua ex is tência graças às pontas dos dedos .

E aí se p o d e perguntar o que acontece , e m t e r m o s ex i s ­tenciais, q u a n d o press iono u m a tecla. O que ocorre quando press iono u m a tecla na m á q u i n a de escrever, n o p iano , n o aparelho de te lev isão , n o te le fone . O que acontece quando o pres idente dos Estados U n i d o s aciona o b o t ã o verme lho ou quando o fotógrafo press iona o b o t ã o d o obturador. Eu escolho u m a tecla, dec ido -me por uma tecla. Dec ido -me por u m a de terminada letra na máquina de escrever, por u m de terminado t o m n o p iano , por u m d e t e r m i n a d o pro­grama de te levisão, por u m n ú m e r o específ ico de te lefone. O pres idente opta por u m a guerra, o fotógrafo, por u m a imagem. As p o n t a s dos d e d o s são "órgãos" de u m a escolha, de u m a decisão. O h o m e m emanc ipa-se do trabalho para poder escolher e decidir. A s i tuação e m que se encontra , s e m trabalho e s e m coisas (.undinglicfi), lhe permi te a liber­dade de esco lha e de decisão.

Essa l iberdade das p o n t a s dos dedos , s e m m ã o s , é n o e n t a n t o inquietante . Se coloco o revólver contra m i n h a s têmporas e aperto o gat i lho, é porque decidi pôr t e r m o à minha própria vida. Essa é a p a r e n t e m e n t e a maior liber­dade poss íve l : ao press ionar o gat i lho , p o s s o m e l ibertar de t o d a s as s i tuações de opressão . M a s , na real idade, ao

*>*»;>

6 3

Page 49: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

press ioná- lo , o que faço é desencadear u m processo que já estava programado e m m e u revólver. Minha dec isão não foi ass im tão livre, já q u e m e decidi dentro d o s l imites do programa do revólver. E, i g u a l m e n t e , do programa da má­quina de escrever, do p r o g r a m a do piano, do programa da te levisão, do programa d o t e l e fone , do programa adminis­trativo americano, do p r o g r a m a da máquina fotográfica. A l iberdade de decisão de pres s ionar u m a tecla c o m a ponta do dedo mos tra - se c o m o u m a l iberdade programada, c o m o u m a escolha de poss ib i l idades prescritas. O que esco lho , o faço de acordo c o m as prescr ições .

Por i s so , é c o m o se a s o c i e d a d e do futuro, imaterial , se d iv id isse e m duas c lasses : a d o s programadores e a dos programados . A primeira ser ia daque les que p r o d u z e m pro­gramas , e a s e g u n d a , d a q u e l e s que se c o m p o r t a m confor­m e o programa. A c lasse d o s jogadores e a c lasse das ma­r ione tes . Mas e s sa v i são parece ser m u i t o o t imi s ta . Pois o que o s programadores f a z e m q u a n d o p r e s s i o n a m as teclas para jogar c o m s í m b o l o s e produzir in formações é o m e s ­m o m o v i m e n t o de d e d o s fe i to pe los programados . Eles t a m b é m t o m a m dec i sõe s d e n t r o de u m programa, que po­d e r í a m o s chamar de "metaprograma". E os jogadores do metaprograma, por sua v e z , p r e s s i o n a m m e t a t e d a s de u m

"metametaprograma". E e s s e recurso de m e t a a m e t a , de programadores d o s programadores de programadores , re­ve la-se inf inito. Não: a s o c i e d a d e do futuro, imaterial , será u m a soc iedade s e m c lasses , u m a soc iedade de programa­d o s programadores . Essa é p o r t a n t o a l iberdade de dec isão que n o s é aberta pela e m a n c i p a ç ã o do trabalho. Totalita­r i smo programado.

Page 50: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Mas trata-se cer tamente de u m tota l i tar i smo extrema­mente sat isfatório, po i s o s programas são cada v e z m e l h o ­res. Ou seja, e les c o n t ê m u m a quant idade as tronômica de possibil idades de escolha que ultrapassa a capacidade de decisão d o H o m e m . D e m o d o que , q u a n d o e s t o u d iante de uma dec isão , pres s ionando teclas , nunca m e deparo com os l imites do programa. São tão n u m e r o s a s as teclas . disponíveis que as p o n t a s dos m e u s dedos jamais poderão tocá-las todas . Por i s so t e n h o a impressão de ser t o t a l m e n ­te livre nas dec i sões . O to ta l i tar i smo programador, se e s - 65 tiver a lgum dia c o n s u m a d o , n u n c a será identif icado por aqueles que dele façam parte: será invisível para e les . Só se faz visível agora, e m seu e s tado embrionário . S o m o s talvez a últ ima geração que p o d e ver c o m clareza o que v e m acon­tecendo por aqui.

E p o d e m o s vê- lo claramente, pois ainda t e m o s m ã o s para alcançar as coisas e manipulá-las . E e n t ã o p o d e m o s re­conhecer c o m o não coisa o total i tarismo programador que se aproxima, por não p o d e r m o s apreendê-lo. Será que essa inabilidade de apreensão não seria u m sinal de que e s t a m o s

"ultrapassados"? Pois u m a sociedade emancipada do traba­lho e que acredita ser livre para decidir não seria por acaso uma daquelas utopias desde sempre imaginadas pela huma­nidade? Será que não e s t a m o s n o s aproximando da plenitu­de das eras? Para poder julgar isso, haveria de se analisar com mais precisão o que se e n t e n d e por "programa" — esse con­ceito fundamenta l dos t e m p o s atuais e futuros.

Page 51: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

R O D A S

.

Page 52: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Um dos e fe i tos do n a z i s m o que mais se pro longou n o t e m - 67 po foi a k i tschização da suást ica. E i s so n ã o significa p o u c o , se cons iderarmos que o s í m b o l o es tá a s s e n t a d o n a s profun­dezas da consc iênc ia h u m a n a . E encontra- se insta lado de uma forma tào arraigada a p o n t o de, meta for i camente , tor­nar raso o Atlântico: a suást ica t e m u m aspecto m u i t o s imi­lar para os cel tas e o s astecas . Este ensa io pre tende refletir sobre e s se s ímbolo , m a s a n t e s será apresentada u m a obser­vação metodo lóg ica .

As coisas p o d e m ser v is tas pe lo m e n o s de duas m a n e i ­ras: m e d i a n t e observação e por m e i o da leitura. Q u a n d o observadas, as coisas são v is tas c o m o f e n ô m e n o s . N o caso da suástica, por exemplo , v e m o s duas barras que se cruzam, e, nas ex tremidades das barras, ganchos . Q u a n d o l e m o s as coisas, p r e s s u p o m o s que elas s igni f iquem algo, e t e n t a m o s decifrar e s s e s s ignif icados. ( N o t e m p o e m que o m u n d o era considerado u m livro, natura libellum, e e n q u a n t o se tenta­va decifrá-lo, era imposs íve l u m a ciência natural s e m pres­supos ições . E, d e s d e que o m u n d o c o m e ç o u a ser observado , e não m a i s l ido, p a s s o u a não ter mai s significado.) Se al­g u é m se aproximar da suást ica para lê-la, verá quatro raios

Page 53: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

emi t idos a partir de u m e i x o ; e s s e s raios giram n o sentido dos ganchos , e o s g a n c h o s c o m e ç a m a descrever uma cir­cunferência. D o p o n t o d e v i s ta da leitura, o s igno manifes­ta-se d izendo: s o u a r o d a solar, e e s t o u irradiando.

E aqui d e v o c o n f e s s a r o m o t i v o des t e ensa io: se obser­varmos a condição d o m u n d o pós- industr ia l , f icaremos im­press ionados c o m o l e n t o , p o r é m irreversível, desapareci­m e n t o das rodas. N ã o s e o u v e mais s eu ruído n o s aparelhos e letrônicos . Aquele q u e q u e r avançar não se coloca mais so-

68 bre rodas , m a s s i m s o b r e a s a s , e u m a vez que a b io tecno­logia t iver superado a m e c â n i c a , as m á q u i n a s de ixarão de ter rodas e passarão a t er d e d o s , pernas e órgãos sexuais . Talvez a roda esteja p r e s t e s a se converter e m u m m e r o cír­culo, e depo i s e m m a i s u m a entre tantas outras curvas. An­tes que essa decadênc ia das rodas se e n c a m i n h e ainda mais rapidamente para o fim, parece indispensável interpretar a profunda inapreens ib i l idade da roda — ainda que n e s s e s m o m e n t o s finais e apesar da ki tschização — a partir da ima­g e m da roda solar.

A i m a g e m aponta d o s i g n o ao significado, da suástica ao Sol. É u m disco incandescente que gira ao redor da Terra. Mas s o m e n t e o semicírculo superior que descreve, do nascer ao pôr do sol, s e faz visível . O semicírculo inferior perma­nece u m segredo obscuro. Esse círculo e terno, que se repete e t e r n a m e n t e e m suas fases , é c o m p l e t a m e n t e ant iorgânico (antiorganisch'). N o re ino dos seres v ivos não ex i s t em rodas, e as únicas coisas que rolam são as pedras e os troncos de árvores derrubados. E a vida é u m processo: descreve u m trecho que vai do n a s c i m e n t o à morte , é u m devir e m dire­ção ao perecer. Mas a roda do Sol contradiz t a m b é m a morte ,

Page 54: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

e não s o m e n t e a vida: retorna secre tamente e completa o círculo, do ocaso à alvorada. A roda solar supera a vida e a morte, e o m u n d o t o d o se faz visível sob essa roda, pois é exatamente essa roda que o torna passível de ser v i s to .

E quando se o lha o m u n d o des se m o d o , e le parece o se­guinte: u m cenário e m que h o m e n s e coisas in teragem en­tre si, i s to é, trocam de pos ição u n s c o m o s outros . A roda do Sol, o círculo do t e m p o , coloca tudo e t o d a s as coisas de volta n o lugar que lhes é devido . Cada m o v i m e n t o é u m deli­to comet ido por h o m e n s e coisas contra si m e s m o s e contra a eterna ordem circular, e o t e m p o se m o v e e m círculo para expiar o s del i tos e voltar com os h o m e n s e as coisas para seu devido lugar. Portanto , n ã o e x i s t e m diferenças essenc ia i s entre h o m e n s e coisas: a m b o s são a n i m a d o s p e l o desejo de provocar d e s o r d e m , e a m b o s são levados pe lo t e m p o e com o t e m p o r u m o ao perec imento . Tudo n o m u n d o é a n i m a d o , pois tudo se m o v e e deve ter u m m o t i v o para s e mover . E o tempo é o juiz e o carrasco: ele circula pe lo m u n d o , d i spõe tudo e m s e u s dev idos lugares e passa c o m o u m a roda por cima de tudo , a trope lando e des t ru indo o que encontra e m seu caminho . Foi nes sa atmosfera de culpa, de expiação e de e terno re torno , ou , e m outras palavras, s o b o s igno da roda solar que a h u m a n i d a d e v iveu a maior parte de s eu t empo na Terra.

Sempre exist iram h o m e n s que t entaram se rebelar con­tra a roda d o des t ino . Mas o que c o n s e g u i a m c o m i s so era apenas provocar ainda mais o des t ino . Édipo d o r m i u c o m sua mãe e x a t a m e n t e porque n ã o o queria e, por e s se m e s m o mot ivo , t eve de arrancar s e u s próprios o lhos . A i s so o s gre­gos chamavam de "heroísmo". Os pré-socrát icos quiseram

6 9

Page 55: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

7 0

s u p e r a r a r o d a p e l o l a d o d e fora , pe la via d a t ranscendênc ia Eles a c r e d i t a v a m q u e m e s m o a r o d a , p a r a p o d e r s e mover t i n h a d e t e r u m m o t i v o , u m m o t o r (Beu/eger). A idéia desse m o t o r i m ó v e l s i t u a d o a l é m d o t e m p o , d e s s e m o t i v o nào m o t i v a d o e m si m e s m o , idéia a p r i m o r a d a p o s t e r i o r m e n t e p o r A r i s t ó t e l e s , é f u n d a m e n t a l p a r a se p e n s a r o conce i to o c i d e n t a l d e D e u s .

M u i t o a n t e s d o s p r é - s o c r á t i c o s , p o r é m , s u r g i u n a Meso­p o t a m i a u m t i p o d e h e r o í s m o b a s t a n t e d i f e r e n t e . Tente­m o s nos co locar n o p a p e l d e u m s a c e r d o t e s u m é r i o . A par­t i r d e s u a s p r e v i s õ e s , t e n t a v a dec i f ra r o m u n d o q u e girava s o b r e r o d a s . Via o n a s c i m e n t o , a m o r t e e o r e n a s c i m e n t o , via a cu lpa e a exp i ação , o d ia e a n o i t e , o v e r ã o e o i n v e r n o , a g u e r r a e a p a z , d i a s d e p r o s p e r i d a d e e d e m i s é r i a , e via c o m o e s s a s fases e s t a v a m c o m o q u e e n g r e n a d a s u m a s com as o u t r a s d e m o d o cíclico. A p a r t i r d e s s e s ciclos e epiciclos, o s a c e r d o t e p o d i a i n t e r p r e t a r o futuro — a s t r o l o g i c a m e n t e , p o r e x e m p l o — n ã o p a r a ev i t ã - lo , m a s p a r a p ro fe t i zã - lo . E d e r e p e n t e l h e o c o r r e u a incr íve l idé ia d e c o n s t r u i r u m a r o d a q u e g i r a s s e n a d i r e ç ã o c o n t r á r i a à d a r o d a d o d e s t i n o . U m a r o d a q u e , s e co locada n o Euf ra t e s , p o d e r i a m u d a r a d i r e ç ã o d a s á g u a s , d e m o d o q u e , e m vez d e f lu í rem p a r a o m a r , s e r i a m c o n d u z i d a s p a r a o s cana i s . D o n o s s o p o n t o d e v i s t a a t u a l , e s s e e ra u m p e n s a m e n t o t é cn i co . M a s , p a r a a q u e l a é p o c a e n a q u e l e lugar , r e p r e s e n t a v a u m a r u p t u r a di ­fícil d e s e r c o m p r e e n d i d a . A i n v e n ç ã o d a r o d a r o m p e u o c í rculo m á g i c o d a p r é - h i s t ó r i a , f r a t u r o u o d e s t i n o . A b r i u o c a m i n h o p a r a u m a n o v a f o r m a d e t e m p o — a h i s t ó r i a . Se h á a l g u m a coisa q u e m e r e ç a s e r c h a m a d a d e "ca tás t rofe" , e s s a coisa s e r i a a r o d a - d a g u a .

Page 56: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Esse giro filosófico n ã o n o s deve impedir de acompanhar os estágios seguintes do desenvolv imento da roda, ou seja, devemos nos lembrar daquelas carroças, puxadas por burros, que transportavam cereais para os m o i n h o s . Essa é u m a cena t o t a l m e n t e diferente daquela do sacerdote e n g e n b o s o e heróico. Ela se encontra n o m e i o da história e es tá mais próxima da Revolução Industrial que d o m i t o . Pois a idéia da roda veicular (Fahrrad),* i s to é, a roda na carroça, deve-se inte iramente à consc iênc ia histórica, e s ó p o d e surgir onde se v ive h i s tor icamente . 71

Por exemplo: i m a g i n e m o s uma roda hidráulica que se soltasse do e ixo e ainda fosse impuls ionada. Ela deveria ro­lar por u m espaço inf in i tamente e x t e n s o , durante um tem­po inf ini tamente longo, e é i sso o que se chama de "histó­ria": um rolar inf in i tamente l ongo e inf in i tamente ex tenso . Mas é ev idente que aqui não se trata disso , mas s im de que é necessário u m motor , por exemplo o cavalo, que precisa dar à roda impulso cont ínuo para mantê- la rolando. Como podemos afinal explicar o fato de que u m a roda veicular (Fahrrad) t e m de ser u m a roda motor izada (Motorrad) e não pode ser u m automóve l (Automobil) o u u m perpetuum mobile, e também não pode ser algo motivado eternamente? A idéia da roda veicular não pode esclarecer i sso por si só . Por ser u m círculo, a roda está sempre e m contato com o

Fahrrad, e m a lemão, significa bicicleta. N o e n t a n t o , a tradução mais apropriada aqui é "roda veicular", que seria u m a tradução literal do termo a lemão, c o m p o s t o das palavras "Rad" (roda) e "fahren" (con­duzir, guiar). N e s t e t ex to , Flusser joga c o m a e t imolog ia das palavras bicicleta, motoc ic le ta (.Motorrad") e automóve l (Automobil). [N.T.j

Page 57: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

s o l o m e d i a n t e u m ú n i c o p o n t o . C o m o u m p o n t o é a l g o s e m d i m e n s ã o (nulldimensionaO, u m n a d a , a roda e n t ã o n u n c a e s t á e m c o n t a t o c o m a r e a l i d a d e s o b r e a q u a l a v a n ç a , e por i s s o n ã o d e v e r i a d e m o d o a l g u m s e r i n f l u e n c i a d a p o r ela. N o e n t a n t o , a r o d a roça a s u p e r f í c i e i lu sór ia d o m u n d o , e o s c a v a l o s t ê m q u e p u x á - l a para m a n t ê - l a r o d a n d o .

P o d e - s e p e n s a r o q u a n t o n o s d i s t a n c i a m o s d o m u n d o m í t i c o d a r o d a s o l a r a o f o r m u l a r m o s o p r o b l e m a d a roda ve icu lar . D i g a m o s q u e a d i f e r e n ç a f u n d a m e n t a l e n t r e o

72 m u n d o d o m i t o e o n o s s o p r ó p r i o m u n d o s e j a e s t a : n o p r i m e i r o n ã o p o d e h a v e r m o v i m e n t o i m o t i v a d o . Se a l g o s e m o v e é p o r q u e t e m a l g u m m o t i v o , o u se ja , a l g u m a c a u s a o a n i m a . E m n o s s o m u n d o , a o c o n t r á r i o , o m o v i m e n t o e x i g e m a i o r e s e x p l i c a ç õ e s . N o s s o m u n d o é i n e r t e o u , para d i z e r d e f o r m a m a i s e l e g a n t e , a le i d a inérc ia e x p l i c a t o d o e qual ­q u e r m o v i m e n t o e t o d o e q u a l q u e r r e p o u s o . C e r t a m e n t e e x i s t e m t a m b é m e m n o s s o m u n d o m o v i m e n t o s q u e pare­c e m m o t i v a d o s , c o m o p o r e x e m p l o n o s s o s p r ó p r i o s m o v i ­m e n t o s . E s s e s m o v i m e n t o s a n o r m a i s , p o r s u a v e z , carac­t e r i z a m o s s e r e s v i v o s . O s é c u l o x v m n u t r i a a e s p e r a n ç a d e e x p l i c a r s a t i s f a t o r i a m e n t e o s m o t i v o s d o s s e r e s v i v o s c o m o f á b u l a s , e p r e t e n d i a e x p l i c a r o s s e r e s v i v o s c o m o m á ­q u i n a s . Essa e s p e r a n ç a n ã o s e r e a l i z o u , e a i n d a : o m u n d o d o s m i t o s é u m m u n d o a n i m a d o , t u d o n e l e s ã o s e r e s v i v o s , m o v i m e n t a d o s p e l a r o d a d o d e s t i n o ; já o n o s s o m u n d o é i n e r t e , s e m v i d a , a p e s a r d e o s s e r e s v i v o s o c o r r e r e m n e l e , e e s s e m u n d o i n e r t e r o d a s e m c e s s a r e s e m m o t i v o a l g u m .

C o m o é e n t ã o q u e , p o r e x e m p l o , o s c i c l i s ta s c o n t i n u a m p e r d e n d o o e q u i l í b r i o ? P o r q u e u m p o n t o a p e n a s n a t e o r i a p o d e s ign i f i car n a d a , e p o r q u e u m a r o d a , t a m b é m a p e n a s

Page 58: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

teoricamente, corresponde a u m círculo. Na prática, u m pon­to é sempre a longado e u m círculo, sempre irregular. Con­forme a lei da inércia, as rodas dever iam rodar e t e r n a m e n t e , mas na prática o atrito acaba freando-as . I sso n ã o quer di­zer que ao cons tru irmos bicicletas t e n h a m o s que renunciar à teoria. Pelo contrário: significa que t e m o s de introduzir uma teoria d o atri to dentro da teoria da inércia. Ao con­siderarmos a carroça puxada pe lo cavalo, e n c o n t r a m o - n o s no m e i o de u m a contradição entre teoria e observação, e n ­tre teoria e exper imento , e m s u m a , entre o p e n s a m e n t o 73 científico e o p e n s a m e n t o técnico .

Desde que, c o m a invenção da roda-d'água e, posterior­mente , da roda veicular, c o n s e g u i m o s romper a roda fatal do e t erno retorno do m e s m o , o m u n d o se t o r n o u inerte e inanimado, e por i sso i lusório e repulsivo. Mas graças à dia­lética entre teoria e e x p e r i m e n t o p o d e m o s superar a i lusão repulsiva Çwiderliche Tücke) do m u n d o inan imado e obri­gá-la a servir de base para u m progresso que rola de m o d o i l imitado. A roda do progresso não pode avançar de for­ma automát ica e t e r n a m e n t e , já que é forçada a superar re­s is tências cegas e imot ivadas do m u n d o inan imado , c o m o por e x e m p l o a gravidade terrestre e as irregularidades da superfície. A roda do progresso necess i ta de u m motor , e e s se m o t o r s o m o s nós m e s m o s , n o s s a própria vontade . Daí o slogan da tr iunfante Revolução Industrial: "Se depender de s eu braço forte, as rodas param de se mover", ou então:

"Somos os condutores de todas as rodas, o D e u s v ivo de u m universo morto".

M a s e s s a s i tuação i n f e l i z m e n t e n ã o vai durar m u i t o . Há pouco t e m p o tornou-se claro que os atritos que d e t ê m a

Page 59: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

7 4

roda do progresso p o d e m ser superados de m o d o efetivo, e

que o progresso começa e n t ã o de fato a rolar automatica­m e n t e . Ele se torna u m automóve l . E a s s im qualquer mu­dança de direção da roda por parte da h u m a n i d a d e s e torna desnecessár ia . O progresso começa a derrapar, c o m o acon­tece com os carros que e s tão n u m a pista n o ge lo . E existe o perigo de que, e m m e i o a u m progresso que desliza sem atr i tos , a h u m a n i d a d e seja atropelada e x a t a m e n t e quando t en ta pisar n o freio. U m a s i tuação que lembra aquela de Édipo, que se rebela contra a roda d o d e s t i n o e arranca os próprios o lhos . Talvez i s so consiga explicar o esforço atual n o sent ido de desconectar todas as rodas e de saltar deste m u n d o de rodas para outro a ser a inda exper imentado . O presente ensa io traduz-se e m uma tentat iva de olhar mais u m a vez para trás — a n t e s de saltar d o a u t o m ó v e l e m mo­v i m e n t o des l i zante e livre d e atr i tos — para capturar, pela úl t ima vez , atrás das rodas que derrapam, aquele mistério irradiante a partir do qual toda a história da humanidade foi colocada e m m o v i m e n t o .

Page 60: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

S O B R E F O R M A S E F Ó R M U L A S

Page 61: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

76 O E t e r n o O o u v a d o seja S e u n o m e ) f o r m o u o m u n d o a par­t i r d o c a o s , d o Tohuwabohu. O s n e u r o f i s i o l o g i s t a s ( será m e l h o r q u e p e r m a n e ç a m n o a n o n i m a t o ) d e s c o b r i r a m S e u s e g r e d o , e a g o r a q u a l q u e r d e s i g n e r q u e s e p r e z e é c a p a z d e i m i t á - l o e i n c l u s i v e d e f a z e r m e l h o r d o q u e Ele.

É o q u e parece : d u r a n t e m u i t o t e m p o a c r e d i t o u - s e q u e a s f o r m a s q u e o D e u s Cr iador h a v i a p r e e n c h i d o c o m c o n t e ú ­d o e s t a v a m o c u l t a s a t r á s d e s s e c o n t e ú d o , e s p e r a n d o para s e r e m d e s c o b e r t a s . Por e x e m p l o , p e n s a v a - s e q u e D e u s h a ­v i a i n v e n t a d o a f o r m a d o c é u e a h a v i a s u p e r p o s t o a o c a o s n o p r i m e i r o d ia d a cr iação . A s s i m h a v i a m s u r g i d o o s c é u s . D e p o i s , p e s s o a s c o m o P i t á g o r a s e P t o l o m e u h a v i a m d e s c o ­b e r t o e s s a s f o r m a s d i v i n a s p o r t rás d o s f e n ô m e n o s e a s h a ­v i a m a n o t a d o . T r a t a v a - s e d e c i c l o s e e p i c i c l o s ; i s s o é o q u e s e c o n h e c e c o m o p e s q u i s a : d e s c o b r i r o d e s i g n d i v i n o p o r t rás d o s f e n ô m e n o s .

D e s d e a R e n a s c e n ç a t e m o s n o s d e p a r a d o c o m a l g o sur ­p r e e n d e n t e e, a i n d a h o j e , n ã o t o t a l m e n t e d i g e r i d o : o s c é u s p o d e m s e r f o r m u l a d o s e f o r m a l i z a d o s , n a v e r d a d e , e m ci­c l o s e e p i c i c l o s p t o l o m a i c o s , m a s , m e l h o r a i n d a , e m c írcu­l o s c o p e r n i c a n o s e n a s e l i p s e s d e Kepler .

Page 62: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

Como é poss íve l isso? Deus , o Criador, u s o u ciclos , epi-ciclos o u e l ipses n o primeiro dia da criaçào? O u será que não foi D e u s , n o s s o Senhor, m a s s im os s e n h o r e s as trôno­mos que es tabe leceram essas formas? Será que as formas não são d iv inas , m a s s im h u m a n a s ? N ã o serão e t e r n a s n o a l ém-mundo , m a s plást icas e mode láve i s n o n o s s o m u n d o ? Não serão idéias e ideais , m a s fórmulas e m o d e l o s ? O difícil de digerir n e s s e a s s u n t o n ã o é o fato de d e s t i t u i r m o s D e u s para co locarmos os des igners c o m o criadores do m u n d o . Não, o que r e a l m e n t e n ã o se p o d e digerir é que , s e fosse 77 verdade que e s t i v é s s e m o s o c u p a n d o o t rono de D e u s , o s céus (e e m geral t o d o aspec to da natureza) dever iam poder ser formal izados do m o d o que q u i s é s s e m o s , e i s so não se dá ass im. Por que o s p lanetas descrevem órbitas circulares, ep ic íd icas o u e l ípt icas , e n ã o quadradas o u tr iangulares? Por que é q u e p o d e m o s formular as leis naturais de diver­sos m o d o s , m a s n ã o do m o d o que queremos? Existe por acaso a lguma coisa lá fora que esteja preparada para engo ­lir a lgumas de n o s s a s fórmulas, ainda que n o s cuspa na face outras? Haverá talvez u m a "realidade" exter ior que permi­ta ser in formada e formulada por n ó s , m a s que n o s exija n o e n t a n t o u m a certa adequação a ela?

A pergunta é difícil de ser digerida, u m a vez que n ã o se p o d e ser des igner e criador d o m u n d o e, ao m e s m o t e m p o , estar s u b m e t i d o a ele. Fe l i zmente (um "graças a Deus" não t e m m u i t o s e n t i d o aqui) descobr imos há p o u c o u m a solu­ção para e s s a aporia. U m a so lução que se retorce c o m o a fita de M o e b i u s . Ei-la: n o s s o s i s t ema n e r v o s o central ( S N C ) recebe de s eu e n t o r n o (que, é claro, inclui t a m b é m n o s s o próprio corpo) e s t í m u l o s codificados d ig i ta lmente . Esses

Page 63: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

7 8

e s t í m u l o s sã.o processados por m e i o de m é t o d o s eletro­magné t i cos e químicos ainda não t o t a l m e n t e conhec idos e o s i s t ema os converte e m percepções , s e n t i m e n t o s , dese jos e p e n s a m e n t o s . Percebemos o m u n d o , o s e n t i m o s e o dese­jamos conforme processado pe lo SNC. Esse processo é pré-programado n o SNC. E es tá inscri to nele , dentro de n o s s a informação genét ica . O m u n d o t e m para n ó s as formas que e s t ã o inscritas na informação genét ica desde o princípio da vida na Terra. Isso explica por que n ã o p o d e m o s impor ao m u n d o as formas que qu i sermos . O m u n d o s ó aceita aque­las formas que correspondem ao n o s s o programa de vida.

Es tamos pregando n ã o s o m e n t e uma, m a s uma série de peças n e s s e programa vital. Temos de fato inventado m é t o d o s e aparatos que func ionam de m o d o s imilar a o s i s ­t e m a nervoso , s ó que d e maneira diferente. P o d e m o s c o m ­putar e s s e s e s t í m u l o s (partículas) que chegam por t o d o s o s lados de m o d o d i s t in to ao do SNC. S o m o s capazes de criar percepções , s e n t i m e n t o s , desejos e p e n s a m e n t o s d i s t in tos , a l ternat ivos . A lém do m u n d o c o m p u t a d o pe lo SNC, pode­m o s t a m b é m viver e m outros m u n d o s . P o d e m o s estar-aí (dasein) de várias maneiras d is t intas . E a palavra "aí" (da) inclusive p o d e significar várias coisas . O que acabamos de dizer é c er tamente terrível, inclusive m o n s t r u o s o , mas ex is ­t e m t ermos mais familiares para isso: cyberespaço ou espaço virtual, que s ã o d e n o m i n a ç õ e s pal iat ivas . E e s s e s t e r m o s s ignif icam a s e g u i n t e receita: t o m e u m a forma, qualquer que seja, qualquer a lgor i tmo articulável n u m e r i c a m e n t e . Introduza essa forma, por m e i o de u m computador , e m u m plotter. Preencha tanto quanto possível essa forma (que se fez visível d e s s e m o d o ) c o m part ículas . E e n t ã o observe:

Page 64: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

m u n d o s surgirão. Cada u m desses m u n d o s é tão real quanto aquele d o s i s t ema n e r v o s o central (pelo m e n o s esse n o s s o SNC), desde que consiga preencher as formas tão comple­t a m e n t e quanto o SNC.

Esse é u m be lo caldeirão das bruxas: c o z i n h a m o s m u n ­dos com as formas que qu i sermos e o f a z e m o s ao m e n o s tão b e m c o m o o fez o Criador n o decorrer dos f a m o s o s se is dias. S o m o s os autênt icos mestres- fe i t ice iros , os autênt i ­cos des igners , e i s so n o s permite , agora que c o n s e g u i m o s superar Deus , jogar a ques tão da realidade sobre a m e s a e 79 dizer, junto c o m I m m a n u e l Kant: "real" é t u d o aquilo que é c o m p u t a d o e m formas, de m o d o decente , eficaz e consc ien­te; e "irreal" (onírico, i lusório) é aquilo que é c o m p u t a d o de m o d o desmaze lado . Por exemplo , a i m a g e m da mulher que a m a m o s n ã o é de todo real porque f izemos n o s s o trabalho onírico de m o d o descuidado. N o e n t a n t o , se encomendar­m o s essa i m a g e m a u m des igner profissional, que t enha e m m ã o s , se poss ível , u m hológrafo, ele s im n o s proporcio­nará mulheres que rea lmente a m a m o s , e n ã o s o n h o s d e s ­cuidados. É as s im que as coisas parecem estar caminhando .

Descobr imos as art imanhas do Eterno ( louvado seja Seu n o m e ) , roubamos suas receitas de coz inha e agora cozinha­m o s inclusive me lhor do que Ele. Será que e s t a m o s real­m e n t e e m u m a nova história? C o m o era m e s m o o conto de Prometeu e o fogo roubado? Q u e m sabe não acredi tamos estar s i m p l e s m e n t e s e n t a d o s d iante do computador , quan­do na realidade e s t a m o s encarcerados n o Cáucaso? E talvez a lguns pássaros já es te jam lá afiando o bico, preparando-se para n o s comer o fígado.

Page 65: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

P O R Q U E A S M Á Q U I N A S D E E S C R E V E R E S T A L A M ?

Page 66: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

A explicação é s imples: o estalar condiz mais com a meca- 81 nização do que o deslizar. As máquinas são gagás, m e s m o quando parecem estar des l izando. É o que se percebe por exemplo nos carros ou nos projetores de filme quando es tão func ionando mal. Mas a explicação não é suficiente. Pois o que está por trás da pergunta é o seguinte: por que as má­quinas gaguejam? E a resposta é: porque tudo n o m u n d o (e o m u n d o c o m o u m todo) gagueja. Mas isso s ó se percebe quando se observa b e m de perto . É b e m verdade que D e m ó -crito já o suspeitara, n o e n t a n t o s o m e n t e Planck pôde pro­vá-lo: tudo é quantizável . Eis por que os n ú m e r o s convém ao m u n d o , m a s as letras não. O m u n d o é calculável, m a s indescritível. Por i sso os n ú m e r o s deveriam livrar-se do có­digo alfanumérico e tornar-se independentes . As letras in­d u z e m meras conversas vazias sobre o m u n d o , e deveriam ser deixadas de lado c o m o algo inadequado a ele. E é isso, de fato, o que v e m ocorrendo. Os números migram do s i s tema alfanumérico para n o v o s s i s t emas (como por exemplo os digitais) e a l imentam os computadores . As letras, por sua vez (se quiserem sobreviver), d e v e m simular os números . Por i sso as máquinas de escrever esta lam.

Page 67: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

8 2

Mas ainda há o que dizer sobre o t ema. Por exemplo: o fato de que t u d o n o m u n d o gagueja s ó ficou ev idente quan­do se começaram a contar todas as coisas . Para contar, foi preciso fragmentar o t o d o e m pedr inhas (calculi), e a cada u m a dessas pedr inhas foi anexado u m número . Será, por­tanto , que o fato d e o m u n d o ser u m a dispersão de partícu­las é conseqüênc ia do n o s s o contar? Quer dizer e n t ã o que n ã o se trataria a b s o l u t a m e n t e de u m a descoberta , m a s s im de u m a invenção? Por acaso não descobr imos n o m u n d o aquilo que n ó s m e s m o s ter íamos inserido nele? O m u n ­do talvez seja calculável apenas porque n ó s o c o n s t r u í m o s para os n o s s o s cálculos. N ã o são os n ú m e r o s que são ade­quados ao m u n d o , m a s o contrário: n ó s m o n t a m o s o m u n ­do de m o d o que se tornasse adequado ao n o s s o código nu­mérico . P e n s a m e n t o s c o m o e s s e s são inquie tantes .

São inqu ie tan te s e x a t a m e n t e por levarem à s e g u i n t e conclusão: o m u n d o cons i s t e a t u a l m e n t e n u m a dispersão de partículas porque n ó s o e n g e n d r a m o s de m o d o a adaptá-lo aos n o s s o s cálculos . A n t e s , p o r é m (pelo m e n o s d e s d e os f i lósofos gregos ) , o m u n d o era d e s c r i t o a l f a b e t i c a m e n t e . Portanto , ele t inha de se adaptar às regras do d iscurso dis ­c ipl inado, às regras da lógica, e n ã o às da matemát ica . De fato, Hegel a inda era da opin ião , que hoje n o s parece in­sensata , de que tudo n o m u n d o seria lógico. A t u a l m e n t e s o m o s de opinião contrária: tudo n o m u n d o é redutível a cont ingênc ias absurdas , que p o d e m ser p e r f e i t a m e n t e ava­l iadas por m e i o d o cálculo de probabi l idades . Hegel p e n ­sava e x a t a m e n t e por palavras ( e m "discursos dialét icos"), e n q u a n t o n ó s p e n s a m o s ca lcu lando ( p r o c e s s a n d o d a d o s pontua i s ) .

Page 68: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

A coisa se torna ainda m a i s inquie tante se p e n s a r m o s que Russell e Whi tehead , e m seu Principia mathematica, de­monstraram que as regras da lógica não ser iam t o t a l m e n t e redutíveis àquelas da matemát ica . Os dois t entaram, c o m o se sabe, manipular m a t e m a t i c a m e n t e o p e n s a m e n t o lógico ("função proposicional"), e depararam-se aí c o m essa irre-dutibil idade. Portanto , n ã o é poss íve l es tabelecer uma p o n ­te rea lmente adequada entre o m u n d o descr i to ( c o m o o de Hegel) e o m u n d o calculado (a e x e m p l o de Planck). D e s ­de que apl icamos m e t o d i c a m e n t e o cálculo ao m u n d o (ou 83 seja, pe lo m e n o s desde a geometr ia analítica de Descartes) , a estrutura do m u n d o modif icou-se a p o n t o de tornar-se irreconhecível . E i s so foi s e n d o l e n t a m e n t e divulgado até se fazer sabido.

Daí p o d e m o s n o s ver impel idos a concluir que o m o d o como o m u n d o está estruturado depende de n ó s próprios. Se desejarmos descrevê-lo, então ele figurará c o m o u m discurso lógico, mas , se preferirmos calculá-lo, ele se assemelhará à dispersão de partículas. Seria u m a conclusão precipitada. Somente quando c o m e ç a m o s a calcular é que p a s s a m o s a dispor de máquinas (como, por exemplo , as máquinas de escrever), e s e m elas não poder íamos viver, m e s m o se qui­s é s semos . Portanto, s o m o s obrigados a calcular e m vez de escrever, e se, apesar disso , quisermos escrever, t eremos de fazer as máquinas estalar. Fica parecendo o seguinte: que o m u n d o teria de ser construído de fato para o cálculo, mas que ele m e s m o exigiria e s se m o d o de construção.

Nes se p o n t o do quebra-cabeça é recomendável u m pouco de prudência. Caso contrário, pode-se correr o risco de cair onde não há chão n e m fundamento (no campo rel igioso) .

Page 69: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

8 4

Para evitar s e m e l h a n t e queda na sacralização pitagórica d o s n ú m e r o s , deve - se examinar o g e s t o envolv ido n o ato de fazer contas , que é o p o s t o ao g e s t o de escrever. Q u a n d o a escrita ainda era manual , o que se fazia era traçar, da es ­querda para a direita (no que diz respei to aos p o v o s oc iden­tais) , uma l inha toda torcida c o m interrupções e m certos lugares. Consist ia n u m g e s t o linear. Para calcular, é preciso esco lher pedr inhas n u m m o n t e e acumulá- las e m p e q u e n o s mont í cu los . Trata-se de u m g e s t o pontual . Em primeiro lugar, calcula-se (ao escolher) e depo i s c o m p u t a - s e (ao acu­mular). Anal isa-se primeiro para depo i s s intet izar. Eis a radical diferença entre escrever e contar: o contar procura alcançar s ín te se s , m a s o escrever não.

Aqueles que se dedicam a escrever t e n t a m negar isso . N o ato de contar, v ê e m apenas o cálculo, que acreditam ser frio e carente de s e n t i m e n t o s . Esse é u m mal -en tend ido quase malévolo . Q u a n d o se fazem contas , trata-se de, pe lo a to de computar, transformar aquilo que é fr iamente cal­culado e m algo novo , algo que nunca existira antes . Esse í m p e t o criativo é v e d a d o àqueles que não se dão b e m c o m as contas , por verem nelas apenas números . Essas p e s s o a s não e s tão aptas a exper imentar a beleza e a profundida­de filosófica de certas equações extraordinárias ( como, por exemplo , as de Einste in) . Mas desde que os n ú m e r o s fo­ram transcodif icados e m cores, formas e tons , graças aos computadores , a beleza e a profundidade do cálculo torna­ram-se percept íveis aos s en t idos . Pode-se ver nas telas dos computadores sua potênc ia criativa, pode - se ouvi-la e m forma de música s intet izada e fu turamente talvez se possa , n o s ho logramas , tocá-la c o m as m ã o s . O que é fasc inante

Page 70: O Mundo Codificado - Vilém Flusser

n o cálculo n ã o é o fato de que ele constrói o m u n d o (o que a escrita t a m b é m pode fazer), m a s a sua capacidade de proje­tar, a partir de si m e s m o , m u n d o s perceptíveis aos sent idos .

Seria pouco provei toso desprezar esses universos proje­tados s in te t i camente c o m o ficções ou s imulações do m u n ­do efet ivo (eigentlichen). Esses primeiros sào acumulações de p o n t o s , computações de cálculos. Perceba-se que i sso vale t a m b é m para o m u n d o "efetivo** e m que f o m o s jogados. Também ele é computado med iante cálculos por n o s s o s is­t ema nervoso a partir de e s t imulos pontuais . Portanto, o u 85 os m u n d o s projetados são tão reais (wirklich) quanto o "efe­tivo" (caso p o s s a m reunir o s p o n t o s c o m a m e s m a densida­de c o m que o faz e s t e ú l t imo) , o u o m u n d o percebido c o m o

"efetivo" é tão fictício quanto o s universos projetados. A re­volução cultural hoje cons i s te n o fato de que n o s t o r n a m o s aptos a construir universos alternativos e paralelos a es te que n o s foi s u p o s t a m e n t e dado; de que, de sujei tos de u m único m u n d o , e s t a m o s n o s convertendo e m projetos de vá­rios m u n d o s ; e de que c o m e ç a m o s a aprender a calcular.

Diz Ornar Khayyam: "Oh, amor, se pudéssemos conspirar com o dest ino, / d e m o d o a compreender essa melancólica e ín­tegra estrutura das coisas! /Acaso não a desintegraríamos e m pedaços /para computá-la conforme o desejo do coração?". To­dos percebem que es tamos desintegrando e m pedaços (Bits) a desprezível estrutura íntegra das coisas. Mas não vêem que podemos transcodificá-la de acordo com a vontade do coração. As pessoas deveriam de uma vez por todas aprender a contar.