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O Mundo e Eu Vá ao quintal e apanhe quatro flores. Qualquer flor. Quatro rosas ou quatro angélicas, digamos. Se mora em apartamento, vá à copa e traga quatro frutas. Quatro laranjas, digamos, ou quatro bananas. Estou com flores na mesa. Rosas. Sete rosas áericó. Duas delas ainda em botão. Observemos as rosas. Observemos atentamente. Metodicamente. Olhemo-las. A mesma cor. Todas róseas, de um róseo suave, da primeira a última. O mesmo róseo nas pétalas, o mesmo verde no caule, o mesmo amarelo nos pistilos. A mesma forma nas pétalas, a mesma forma e o mesmo número nas sépalas (sempre cinco), a mesma forma nos pistilos, a mesma forma na corola, a mesma disposição ao redor do pedúnculo. Apalpemo-las. Nossas rosas apresentam os mesmos fenômenos táteis, a mesma maciez. Em nenhuma delas existe aquela agressiva aspereza que é sempre a mesma em todas as urtigas. Cheiremo-las. Sim. Mastiguemos qualquer rosa. Oferecerão ao nosso paladar o mesmo sabor. Rompamo-las. Se examinarmos no microscópio qualquer pétala rompida constataremos a mesma aparência (os botânicos dizem: idêntica estrutura tecidual). Esta identidade de características em todas as rosas, esse ser da mesma maneira, essa MESMIDADE é um objetivo para o qual tenderam todas as rosas de minha mesa, para o qual tendem todas as rosas do mundo, para o qual caminham todas as sementes de rosas antes de se tornarem rosas. Veja os botões. Ainda são botões, não são rosas abertas. Mas vão para lá. Estão indo amarrados. Acorrentados. Cada dia, de dia e de noite. Cada hora, cada minuto é uma hora de cativeiro, um minuto de escravidão. Avançam inexoravelmente na pista da rosa. Desta pista não se afastam. Há dentro deles um dinamismo complexíssimo e organizadíssimo. As substâncias corantes caminham para aquele objetivo: o róseo. As substâncias aromáticas caminham para aquele objetivo: o perfume. Todos os fenômenos que acontecem ali dentro caminham para aquele objetivo global: a rosa. Este objetivo perseguido revela uma intenção no movimento íntimo das rosas. Os botões não se movem em balbúrdia, à toa, sem rumo. Movem-se sujeito a uma ideia (o objetivo), contendo um pensamento (o objetivo e os processos de atingi-lo). O cinema já constatou em ritmo lento a assombrosa mesmidade daquilo que é visualizável nessa dialética das rosas. Não é desordenado, babelizado. Move-se sempre na mesma linha, dentro do mesmo percurso. Não é livre. É determinado. Sempre o mesmo. Fixo. O que constatamos é precisamente isto. A dialética interna das rosas é uma dialética profundamente dinâmica e profundamente fixa. Move-se incessantemente, perpetuamente. Mas se move sempre no mesmo rumo, sempre do mesmo modo, sempre com o mesmo intuito. Subordinada a uma ideia.

O Mundo e Eu -(João Mohana-)

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Page 1: O Mundo e Eu -(João Mohana-)

O Mundo e Eu

Vá ao quintal e apanhe quatro flores. Qualquer flor. Quatro rosas ou quatro angélicas,

digamos. Se mora em apartamento, vá à copa e traga quatro frutas. Quatro laranjas, digamos,

ou quatro bananas.

Estou com flores na mesa. Rosas. Sete rosas áericó. Duas delas ainda em botão.

Observemos as rosas. Observemos atentamente. Metodicamente. Olhemo-las. A mesma cor.

Todas róseas, de um róseo suave, da primeira a última. O mesmo róseo nas pétalas, o mesmo

verde no caule, o mesmo amarelo nos pistilos. A mesma forma nas pétalas, a mesma forma e o

mesmo número nas sépalas (sempre cinco), a mesma forma nos pistilos, a mesma forma na

corola, a mesma disposição ao redor do pedúnculo.

Apalpemo-las. Nossas rosas apresentam os mesmos fenômenos táteis, a mesma maciez. Em

nenhuma delas existe aquela agressiva aspereza que é sempre a mesma em todas as urtigas.

Cheiremo-las. Sim. Mastiguemos qualquer rosa. Oferecerão ao nosso paladar o mesmo sabor.

Rompamo-las. Se examinarmos no microscópio qualquer pétala rompida constataremos a

mesma aparência (os botânicos dizem: idêntica estrutura tecidual).

Esta identidade de características em todas as rosas, esse ser da mesma maneira, essa

MESMIDADE é um objetivo para o qual tenderam todas as rosas de minha mesa, para o qual

tendem todas as rosas do mundo, para o qual caminham todas as sementes de rosas antes de

se tornarem rosas.

Veja os botões. Ainda são botões, não são rosas abertas. Mas vão para lá. Estão indo

amarrados. Acorrentados. Cada dia, de dia e de noite. Cada hora, cada minuto é uma hora de

cativeiro, um minuto de escravidão. Avançam inexoravelmente na pista da rosa. Desta pista

não se afastam. Há dentro deles um dinamismo complexíssimo e organizadíssimo. As

substâncias corantes caminham para aquele objetivo: o róseo. As substâncias aromáticas

caminham para aquele objetivo: o perfume. Todos os fenômenos que acontecem ali dentro

caminham para aquele objetivo global: a rosa.

Este objetivo perseguido revela uma intenção no movimento íntimo das rosas. Os botões não

se movem em balbúrdia, à toa, sem rumo. Movem-se sujeito a uma ideia (o objetivo),

contendo um pensamento (o objetivo e os processos de atingi-lo).

O cinema já constatou em ritmo lento a assombrosa mesmidade daquilo que é visualizável

nessa dialética das rosas.

Não é desordenado, babelizado. Move-se sempre na mesma linha, dentro do mesmo percurso.

Não é livre. É determinado. Sempre o mesmo. Fixo. O que constatamos é precisamente isto. A

dialética interna das rosas é uma dialética profundamente dinâmica e profundamente fixa.

Move-se incessantemente, perpetuamente. Mas se move sempre no mesmo rumo, sempre do

mesmo modo, sempre com o mesmo intuito. Subordinada a uma ideia.

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Uma roseira dá sempre rosas. Não dá cravos. O movimento caminha dentro da ideia de rosas.

Isto acontece não apenas com as rosas. Acontece com todas as flores. Os pés de angélicas dão

sempre angélicas. As violeteiras dão sempre violetas. A dialética caminha dentro da ideia de

angélica e da ideia de violeta.

Podemos reforçar experimentalmente esta constatação semeando no mesmo canteiro

cinquenta sementes diferentes, a pequena distância uma das outras. Embora a terra seja a

mesma para todas, cada uma segue a sua própria trilha. Da terra parda vai saindo numa

maravilhosa alquimia dialética, o róseo dos crisântemos, o azul das hortênsias, o branco das

camélias, o tecnicolor dos amores-perfeitos, o alaranjado das dálias, o roxo das saudades, o

verde das folhas... Da terra inodora e por vezes fétida vão evolando os mais peculiares

perfumes nos jasmins, nos lírios, nos bogarins... Nenhuma flor foge ao seu destino odorífero,

nenhuma escapa à coloração prevista.

Tudo isto acontece não só com as cores. Acontece com as frutas; com todas as frutas. As

mangueiras dão sempre mangas. Os coqueiros sempre dão cocos. Também brotam da terra os

eternos sabores de ambos. O dinamismo caminha permanentemente dentro da ideia de

manga e da ideia de coco. Mais. Constatamos igualmente no reino animal.

Pegue uma borboleta e verifique a caprichosa simetria da dialética nas asas. Dimensão, forma,

espessura, matizes, desenhos, minuências dos desenhos, dimensões dos desenhos, etc. Do

casulo até ao voo a dialética não foi simplesmente fixa. Foi rígida. Dinamismo de ferro dentro

da ideia de borboleta.

Constante a mesmidade sonora, dialética, fixista na garganta dos canários, dos galos, dos cães.

Não só na garganta. Em qualquer parte do corpo animal. Nas patas dos cavalos. Nas orelhas

dos burros. Nas asas das graúnas. No bico dos papagaios. No papo dos perus. Na cauda dos

pavões. No focinho dos porcos. No couro das zebras. Nas tetas das vacas. Nos chifres dos

bodes. Nos mil detalhes dos mil animais, subordinados cada um a uma ideia.

Não só na anatomia externa. Internamente também. Os corações das rãs. Os pulmões das

marrecas. O intestino das emas.

Não só na anatomia. Na histologia e na citologia, nos tecidos e nas células.

No reino mineral também. Nas moléculas e nos átomos. O interessante dinamismo atômico é

rigorosamente o mesmo, invariavelmente o mesmo para cada substância. Fiel, absolutamente

fiel a uma ideia, a um mesmo pensamento.

O físico Erwin W. Muller, da Universidade de Pensilvânia, fotografou os átomos da ponta de

um alfinete. A ampliação pelos microscópios, cinco mil vezes maior que a imagem obtida pelos

microscópios comuns, possibilita-nos olhar e medir o extasiante fixismo dialético dentro de

cada átomo.

Cada átomo, qualquer átomo do cosmo, está sujeito a uma ideia particular. Todo o cosmo.

Nada se subtrai.

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Tudo se move no cosmo e tudo se move escravizadamente sem fugir ao percurso e ao

objetivo. Sem furtar ao pensamento que comanda cada movimento.

Confirmam a dialética fixista no cosmo todas as leis físico-químicas.

São um pensamento inflexível comandando o movimento. A lei de Newton, acerca dos corpos

e das distâncias; a lei de Lavoisier, acerca da conservação das massas; a lei de Proust, acerca

dos compostos e proporções definidas; a lei de Richter-Wenzel, acerca dos compostos e

equivalentes das substâncias; a lei de Einstein, acerca da matéria e da energia; a lei de Gay-

Lussac, acerca do volume dos gases; a lei de Faraday, acerca da corrente elétrica e da

quantidade de substância liberada nos eletrodos; a lei de Soddy, acerca dos raios alfas e do

número atômico dos corpos químicos; e inúmeras outras, descobertas por outros cientistas.

É ainda a dialética fixista que permite a conversa entre os homens. Seria impossível

conversarmos, se na natureza não fosse fixo o dinamismo dos seres, se cada ser não realizasse

escrupulosamente o pensamento previsto. Como poderíamos passar anos falando em água,

em petróleo se o movimento interno não seguisse sempre o mesmo itinerário, concretizando a

ideia de água, a ideia de petróleo?

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Na natureza, de quem depende o objetivo visado em cada flor, em cada ser? Quem é

responsável pela ideia contida em cada flor, em cada ser? Quem responde pela realização de

cada ideia contida em cada flor, em cada ser? Quem traz as flores para a mesa do gerente?

Quem traz os seres para a mesa do mundo?

Há uma resposta fácil.

As flores, elas mesmas responderiam por sua própria existência. As flores se autocriariam.

Tudo se teria criado a si mesmo. A realidade inteira assumiria a responsabilidade de estar fora

do nada. A matéria teria emigrado, sozinha do não-ser. Por uma força contida nela, por um

poder inerente a ela e dela inseparável, a matéria iria desabrochando aqui em flor,

entumecendo-se ali em fruta, eclodindo acolá em pássaro, transmudando-se mais adiante em

água, em ar, em espírito, em pensamento. A matéria conteria em si esta aptidão como

essência de sua existência. A aptidão de se tornar tudo o que se tem tornado. A aptidão de se

explicar sozinha e sozinha se realizar, dispensando tudo o que não fosse ela, pois na verdade

aquilo que pretendesse ser diverso dela, entraria na fronteira do nada. A solução é tentadora

pelo que contém de fantástico e de mágico. Contudo a constatação de alguns fenômenos que

têm a própria matéria como sujeito, impedem-nos de aceita-la como a responsável única e

última dessa incessante dialética criadora.

Um desses fenômenos: a desintegração biológica, sob qualquer uma de suas modalidades.

Na terra, jamais constataríamos a putrefação de uma célula, se fosse da matéria o poder de se

tornar célula. Nada apodreceria se fosse inerente à natureza da matéria o poder de se formar

qualquer coisa.

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Uma banana jamais apodreceria, porque o poder de ser banana seria dela, intrínseco a ela, da

essência dela. Não poderia ela desaparecer; sob pena de voltar ao nada.

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Ainda no campo biológico constatamos outros fatos, passíveis de experimentação

sistematizada como os anteriores, que nos impedem de aceitar a matéria como sujeito de sua

própria criação, de admitir órgãos e seres como forjados no dinamismo da solicitação vital, da

função.

Inúmeros órgãos funcionalmente inúteis na vida intrauterina e entretanto já existentes exigem

outra solução. Se abrirmos o minúsculo tórax de qualquer feto, no silencioso claustro de

qualquer útero, depararemos com dois pulmões quietos, virginalmente vazios, murchos como

fole sem ar, à espera. À espera da função. À espera do objetivo. À espera da realização da ideia

de respiração.

O feto ainda não precisa deles, pois não respira por via pulmonar, respira por via placentária,

recebe oxigênio do sangue materno, como recebe do sangue materno os alimentos, (os quais

também não transitam ainda pelo estômago já existente).

Inúteis no presente, tais órgãos não poderiam motivar essa preferência na conservação se não

estivessem subordinados a um plano prévio, a um pensamento anterior, a um conhecimento

antecipado.

Além disso, como são desprovidos de função intelectual, são inaptos para conhecer, não se

dirigem por si mesmos ao objetivo.

Estes fatos apelam para uma solução fora da matéria, anterior à matéria, diferente da matéria.

Plano quer dizer ideia. Plano quer dizer pensamento. Sendo o plano de respiração anterior ao

funcionamento dos pulmões, sendo o plano de digestão anterior ao funcionamento do tubo

digestivo, sendo o plano de olhar anterior ao funcionamento dos olhos, sendo o plano de

andar anterior ao funcionamento da rótula e dos meniscos, só existe uma conclusão: a ideia

completa é anterior ao órgão completo.

O pensamento completo é anterior à expressão de um pensamento concreto. O cosmo é uma

expressão sólida, líquida, gasosa e espiritual de uma ideia. Tudo o que existe fora do nada é a

concretização de um plano.

Essa dialética fixista, este plano minucioso, grandioso, apelando para um pensamento fora do

cosmo, apela simultaneamente para um pode que se revela eficaz em fazer surgir a cada

instante pelo movimento, no movimento, com o movimento bananas em bananeiras, não

azeitonas; olhos dentro do útero para quem só precisará deles dentro do cinema.

Dispomos hoje do depoimento de um respeitável físico, que soube observar com objetividade

o universo e interpretá-lo com honestidade.

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Após uma existência de convívio diário com os átomos e as estrelas, Einstein conclui que seria

cientificamente desleal continuar a afirmar o que afirmava em sua juventude, isto é, que o

universo se explicaria a si mesmo.

A observação e estudo levaram o grande sábio a constatar que o universo não é explicável

satisfatoriamente sem um PODER PENSANTE, diverso dele, sem um PODER OPERANTE, diverso

dele.

“O universo não é explicável satisfatoriamente sem Deus”, escreveu Einstein.

João Mohana.

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Nota: Este prefácio foi extraído da obra “O MUNDO E EU” de João Mohana, publicado em

1963, pela livraria AGIR Editora.

Prefácio publicado no livro: BIOLOGIA (Aurélio Bolsanello / José Daniel Van Der Broocke Filho /

Félix Conte / Ruperto Félix). 1966. Editora F.T.D. S/A. São Paulo – SP.