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FC . DEZEMBRO . 2013 | FC . DEZEMBRO . 2013 | 28 29 SOCIEDADE SOCIEDADE Jesus nasceu para que todos «tenham vida e a tenham em abundância». Há os que estão nas periferias da humanidade que precisam de uma mão para voltarem ao centro da vida. A FAMÍLIA CRISTÃ foi saber como é sentido e vivido o Natal dos mais pobres. Há histórias que não são bonitas de contar, mas interpelam à caridade – não aquela que apenas é praticada no Natal. E stamos no centro da capital – mas na periferia da vida de um país. A noite começa a cair. Não tarda nada as luzes de Natal vão ilumi- nar as montras da cidade. Os transeuntes passam pelas ruas da cidade e olham para o lado para não verem outra realidade nos confins dos passeios que é bem menos iluminada e colorida. Há vidas sem cor. Vidas periféricas. Vidas pobres. Que lembram as de alguém que nasceu há 2000 anos no estábulo da vida, sem auréola. Quero falar sobre o Natal com estas pessoas que são sem-abrigo, mas que precisam de seres que sejam abrigo para eles durante o ano inteiro. Que lhes deem o Natal todos os dias do ano. Junto do Refeitório dos Anjos, mais conhecido pela Sopa dos Pobres, alguns tentam trocar-me as voltas e querem ape- nas contar as razões de queixa da Santa Casa da Misericórdia, a quem chamam de Santa Casa da Miséria, ou das assistentes sociais que não lhes resolvem a situação. E insultam com todos os nomes alguns governantes e ex-governantes e até as mães deles. Um faz questão de me dar umas folhas soltas de um jornal velho para me sentar ao lado deles e não sujar as calças. Sento-me no meio deles e aqueles homens continuam sem vontade de falar de como são as suas vidas na rua e como é viver o Natal ao deus-dará. Insistem em falar apenas naquilo que lhes apetece. Já criaram as suas defesas e também tentam levar a água ao seu moinho. Um deles, aquele que me quis ir buscar as folhas do jornal velho para me sentar no meio deles, leva-me até outro sem-abrigo que está a arrumar carros, num sítio mais tranquilo. Talvez a conversa por outros lados seja mais sossegada. Rui dos Santos – que ironia de nome, sem santos que o valham – está a viver há quatro anos na rua. Por trás da Igreja dos Anjos, à porta de uma estação de correios desativada – o espelho de um Portugal que parece estar a fechar –, está o seu porto de abrigo. «Aqui a única coisa que está ativada sou eu e os meus dois com- panheiros que dormem também aqui», ironiza este homem com pregas no rosto que denunciam uma vida dura e os dedos amarelos pelos muitos cigarros de enrolar que fuma por dia. Pergunto-lhe a idade. «Sei lá», hesita. Mas logo acrescenta: «Sou um puto novo, tenho 53 ou 54 anos…» Os anos passam e a memória tem destas coisas quando se vivem os dias sempre iguais. Há quatro anos que vai deambulando pelas ruas dos Anjos. Por vezes cruza-se com alguns anjos que lhe dão comida ou outras coisas que vai precisando. Como aquele rapaz que um dia lhe deu um saco cama para poder dormir e sonhar com os anjos. Com mais conforto. Rui foi mecânico durante 22 anos e tra- balhou posteriormente nas obras até O Natal dos simples Histórias para contar texto Sílvia Júlio

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Jesus nasceu para que todos «tenham vida e a tenham em abundância». Há os que estão nas periferias da humanidade que precisam de uma mão para voltarem ao centro da vida. A FAMÍLIA CRISTÃ foi saber como é sentido e vivido o Natal dos mais pobres. Há histórias que não são bonitas de contar, mas interpelam à caridade – não aquela que apenas é praticada no Natal.

Estamos no centro da capital – mas na periferia da vida de um país. A noite começa a cair. Não tarda nada as luzes de Natal vão ilumi-

nar as montras da cidade. Os transeuntes passam pelas ruas da cidade e olham para o lado para não verem outra realidade nos confins dos passeios que é bem menos iluminada e colorida.

Há vidas sem cor. Vidas periféricas. Vidas pobres. Que lembram as de alguém que nasceu há 2000 anos no estábulo da vida, sem auréola. Quero falar sobre o Natal com estas pessoas que são sem-abrigo, mas que precisam de seres que sejam abrigo para eles durante o ano inteiro. Que lhes deem o Natal todos os dias do ano.

Junto do Refeitório dos Anjos, mais conhecido pela Sopa dos Pobres, alguns tentam trocar-me as voltas e querem ape-nas contar as razões de queixa da Santa Casa da Misericórdia, a quem chamam de Santa Casa da Miséria, ou das assistentes

sociais que não lhes resolvem a situação. E insultam com todos os nomes alguns governantes e ex-governantes e até as mães deles. Um faz questão de me dar umas folhas soltas de um jornal velho para me sentar ao lado deles e não sujar as calças. Sento-me no meio deles e aqueles homens continuam sem vontade de falar de como são as suas vidas na rua e como é viver o Natal ao deus-dará. Insistem em falar apenas naquilo que lhes apetece. Já criaram as suas defesas e também tentam levar a água ao seu moinho. Um deles, aquele que me quis ir buscar as folhas do jornal velho para me sentar no meio deles, leva-me até outro sem-abrigo que está a arrumar carros, num sítio mais tranquilo. Talvez a conversa por outros lados seja mais sossegada.

Rui dos Santos – que ironia de nome, sem santos que o valham – está a viver há quatro anos na rua. Por trás da Igreja dos Anjos, à porta de uma estação de correios

desativada – o espelho de um Portugal que parece estar a fechar –, está o seu porto de abrigo. «Aqui a única coisa que está ativada sou eu e os meus dois com-panheiros que dormem também aqui», ironiza este homem com pregas no rosto que denunciam uma vida dura e os dedos amarelos pelos muitos cigarros de enrolar que fuma por dia. Pergunto-lhe a idade. «Sei lá», hesita. Mas logo acrescenta: «Sou um puto novo, tenho 53 ou 54 anos…»

Os anos passam e a memória tem destas coisas quando se vivem os dias sempre iguais. Há quatro anos que vai deambulando pelas ruas dos Anjos. Por vezes cruza-se com alguns anjos que lhe dão comida ou outras coisas que vai precisando. Como aquele rapaz que um dia lhe deu um saco cama para poder dormir e sonhar com os anjos. Com mais conforto.

Rui foi mecânico durante 22 anos e tra - balhou posteriormente nas obras até

O Natal dos simples

Histórias para contar

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o dispensarem. Vivia numa barraca com a companheira, que já faleceu. Tem dois filhos, um de cada companheira, mas não quer ter muito contacto com eles «para não fazerem muitas perguntas». A vida não voltou a ser a mesma depois de ter perdido a mãe da sua filha. Limpa os olhos quando se recorda dela. «É triste não ter a minha mulher comigo.» Se ainda a tivesse, podia passar «um Natal mais bacano». Agora o Natal é «um dia como os outros». «Sabe», acrescenta, «só sinto que é Natal porque as pessoas aqui dos prédios ajudam mais uma pessoa. Dão bolos, dão tudo…» Não tem razão de queixa da vizinhança dos prédios circundantes que lhe dão um prato de sopa numa tijela de plástico sempre que lhes pede qualquer coisa.

No Natal, também arrecada mais uns trocos a arrumar carros. Em dias normais recebe sete, oito ou nove euros por ajudar a fazer as manobras de estacionamento. No Natal pode receber quatro ou cinco vezes mais. Gostava de viver uma vida diferente, mas para isso «precisava de ter papel».

«Eu gostava era de estar numa casa e dentro de uma cama que fosse minha.

Assim estava sossegado e longe de tudo…» Queria trabalhar, mas dispara a pergunta: «Onde é que há trabalho?» Fala com este e aquele para ver se lhe arranjam qualquer coisa para trabalhar, porque «nada lhe mete medo». «Eu até já fui limpa-chaminés, mas já nem isso há… Já falei também aqui com empreiteiros e dizem-me “aguenta-te, por-que também estou a despachar outros”».

Entretanto vai permanecendo na rua, na liberdade que só aquela vida permite, até porque «sempre foi vadio». Vai continuar a arrumar carros: «É o meu trabalhinho para ganhar uns tostões, beber um copinho, comer algumas coisas…»

É para estas pessoas que existem algumas organizações no terreno que levam comida, dois dedos de conversa e uma proposta de vida diferente. «A ceia que lhes levamos todas as noites funciona como uma estra-tégia para abrir a porta da relação. A nossa função e missão é criar uma relação que per-mita cativar a pessoa para ela se deixar aju-dar», explica Henrique Joaquim, presidente da Comunidade Vida e Paz (CVP). Todos os dias do ano, a CVP procura ser abrigo para os sem-abrigo. O dia de Natal não é exceção e não falta procura da parte dos voluntários para aquela noite (e também para as res-

tantes do ano). No Natal os sem-abrigo veem os mesmos voluntários que os

procuram nos outros dias.Como o Natal é uma quadra festiva por excelência, merece

uma celebração especial. A CVP organiza uma festa

na cantina da Cidade Uni-versitária. A reitoria da Universidade de Lisboa disponibiliza o espaço e os equipamentos para

esta causa. Aquela

festa, que dura três dias (este ano realiza-se a 20, 21 e 22 de dezembro), junta cerca de 1200 voluntários para acolher 3000 pessoas. Ali satisfazem-se as necessidades básicas, distribui-se roupa, fazem-se rastreios de saúde e proporcionam-se espaços para a higiene pessoal e mudanças de imagem. Trata-se dos dentes dos sem-abrigo com a parceria da Faculdade de Medicina Dentária. Naquele lugar é possível também restituir a cidadania aos homens e mulheres há muito fora do centro do mundo. O Instituto dos Registos e Notariado transporta para ali equipamentos que permitem emitir car-tões de cidadão na hora. Renasce-se para a cidadania. Mais: há também um espaço dedicado à espiritualidade, à oração e ao recolhimento com um grupo de voluntários que motiva estas pessoas a conjugarem o verbo ser: ser pessoas. Há técnicos que lhes propõem um projeto de vida diferente, uma transformação. E não pode faltar também a componente de festa com artistas que não querem faltar de ano para ano.

«Criamos um ambiente de confiança, carinho e amor. Temos de encontrar antí-dotos para a resistência à mudança e nada melhor que a pessoa se sentir afetivamente querida, amada, acolhida, para depois dar o passo para o projeto que lhes estamos a pro-por», conta Henrique Joaquim. Este ano a festa vai ser ainda mais especial. Celebram--se os 25 anos da CVP. Uma exposição de fotografias tiradas pelas pessoas que estão em processo de inserção vai estar patente na festa. É um ano para se falar mais do que nunca de esperança: «Queremos continuar a ser abrigo na esperança, um abrigo para a acolher a pessoa e depois autonomizá-la», diz o presidente da CVP.

No domingo da festa está previsto que o Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente,

presida à celebração eucarística. Como a Eucaristia é uma festa, é mesmo ali naquele lugar de festa que se vai ouvir falar de um pobre que também nasceu para as pessoas sem-abrigo. Nasceu para todos.

«Estas pessoas humanizam-nos, fazem--nos tomar consciência de que aquilo que

nos separa delas é muito ténue. Os sem--abrigo recordam-nos que a simplicidade e a pobreza são uma condição comum a todos. Estas pessoas fazem-nos um grande ato de caridade de nos ajudarem a tomar consciência dos muitos dons que recebemos gratuitamente», remata Henrique Joaquim.

Nas condições mais simples a austeras pode nascer vida, se as pessoas forem aju-dadas a transformarem os seus mundos. Rose, 34 anos, também viu a sua vida ser transformada quando lhe mostraram outros caminhos longe da prostituição.

Chegou do Brasil pela ambição de ter uma vida melhor. Para si e para a mãe. «A minha mãe trabalhava de sol a sol, de domingo a domingo», recorda com

Henrique Joaquim realça que os sem-abrigo nos ajudam a tomar consciência dos dons que recebemos gratuitamente.

Rui Santos está na rua há quatro anos. O Natal, sem a mulher, que já faleceu, é um dia «como os outros».

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a emoção a despontar nos olhos. Uma amiga pagou-lhe a passagem de avião para vir para o Eldorado português no início dos anos 2000. Começou por trabalhar num café a receber 300 euros, mas isso quase não chegava para pagar o quarto na pensão, a alimentação e o bilhete de avião à amiga. Entrou na prostituição um ano depois de aterrar em Portugal. Chegou a receber 400 euros em 24 horas de “trabalho” nos anos bons. Habituou-se à liberdade de ter o seu dinheiro, gerir as notas que recebia, por dez ou quinze minutos com cada cliente.

Nunca tinha conhecido aquela vida até atravessar o Atlântico. Do outro lado do oceano, no Brasil, fez múltiplas coisas para não passar fome: vendeu gelados, cosmé-ticos e foi doméstica. Chegou cá, vendeu o corpo. Teve três filhos, todos do mesmo companheiro português que estava desem-pregado. Até ao final das duas primeiras

gravidezes prostituiu-se. Passou inúmeros Natais com clientes. «É muito deprimente prostituir-me no Natal, mas também é um consolo. A gente conhece pessoas boas, que não têm família. A gente acaba por fazer companhia um ao outro», conta. Nesses dias os clientes eram sobretudo imigrantes, em especial africanos. Deixou essa vida no quarto mês de gravidez do terceiro filho.

Todos os dias do ano, Rose lembrava--se de Deus e não se esquecia de fazer as suas orações. Esperava que um dia tudo pudesse mudar. «A fé é essencial a todo o ser humano, principalmente para uma mulher que trabalha na rua. Fé em Deus e esperança são as últimas coisas que morrem.»

Para Rose, «o dia de Natal simboliza o nascimento de Cristo, o ser maior que nós, maior que tudo». Esta mulher conta que o mais importante no Natal «não é a comida nem a bebida, mas o pensar no próximo». Diz que aproveita sempre o dia de Natal, em que está mais introspetiva sem a mãe por perto, naquilo que fez de bom e mau durante o ano: «Não é na passagem

de ano que reflito sobre isso, é mesmo no dia de Natal.»

Hoje vive numa casa com os filhos e o compa-nheiro, que entretanto já encontrou trabalho. Há três anos que depende financeiramente do com-panheiro e não se prostitui. Não ganhar o seu dinheiro ainda a incomoda, mas

tem falado com muita gente para arranjar um trabalho como doméstica. Enquanto não aparece trabalho, vai fazer um curso de jardinagem. Voltar para a rua e vender o corpo está fora de questão. Sente-se

tão arrependida do passado: «Havia outros meios. Eu é que nos primeiros tempos não sabia… Tinha 22 anos. Se soubesse o que sei hoje não me tinha prostituído, porque essa marca a gente leva para o fim da vida. É como um animal marcado com um ferro. Podem passar muitos anos e um dia a gente vai encontrar alguém que vai apontar o dedo.»

No Centro de Acolhimento e Orientação da Mulher – Irmãs Oblatas (CAOMIO) nunca lhe apontaram o dedo. Foi ali que aprendeu que «há outras saídas». «A gente pergunta, as irmãs indicam, acompanham na procura de trabalho… Eu passei fome, mas se tivesse conhecido o CAOMIO não tinha passado fome nem tinha ido para a prostituição.» Ali também ouviu falar que «Jesus nasceu para todos… Se existia Maria Madalena, então nasceu para todos.»

Sente-se perdoada por Deus mas con-fessa que ela é que ainda tem dificuldades em se perdoar a si própria. Lembra-se de alguns Natais em que ficou furiosa com Deus: «É Natal e estou aqui... O que é que eu fiz?» Fez escolhas na vida – umas mais acertadas que outras – mas agora quer olhar para a frente. Pela sua dignidade. E pela dos filhos, «que frequentam a escola, andam sempre limpinhos e não faltam às vacinas». Por mais dificuldades que esteja a passar, desabafa: «Peço a Deus que me mostre sempre outros caminhos.»

A Ir. Maria Angeles Gorena Zabalza, dire-tora da Obra Social das Oblatas, conta que «estas senhoras são religiosas; não são praticantes, mas são religiosas por den-tro». Podem não ir à missa, mas sentem, no seu íntimo, a presença de um Deus que as ama e acolhe.

É naquele cantinho, no Intendente, que está o CAOMIO. À entrada estão flores de

várias cores para receberem aquelas mulhe-res, como que a dizer-lhes que também elas podem florir para uma vida diferente, adquirindo novas competências pessoais e sociais. Em primeiro lugar são acolhidas por um homem, para perceberam que há outros sujeitos de barba rija que não lhes pedem nada em troca. Naquele centro há ações de formação que as ensinam a ser agentes da sua própria vida: «O CAOMIO ajuda as mulheres a viver o momento pre-sente com valores, carinho, acolhimento, partilha, esperança – valores do Evangelho que vão interiorizando aos poucos.»

A festa de Natal no CAOMIO é sempre um momento preparado com estas mulhe-res. Cada festa é diferente de ano para ano: «Com estas senhoras temos de ser criativas», conta a Ir. Maria Angeles. Umas vezes fazem teatro, outras fazem postais de Natal, cantam, dançam. O prior dos Anjos vem sempre apresentar-lhes o Natal cristão em powerpoint. «É um momento de partilha muito bonito.» Conversa-se muito sobre o que elas sentem e quais

Rose aprendeu a ser uma mulher inteira com as Irmãs Oblatas.

A Ir. Maria Angeles diz que muitas mulheres que se prostituem «são religiosas por dentro».

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as suas opiniões sobre a festa do consumo e a festa do nascimento de Jesus Cristo entre pastores e pobres. Confronta-se a oferta comercial com as suas realidades. Estas mulheres decoram o espaço, fazem enfeites com material reciclado para a árvore e o presépio. Na árvore de Natal não há bolas mas molas da roupa com uma palavra que toca no coração de cada uma delas: paz, solidariedade, esmola, partilha, perdão, soli-dão… e tantas outras palavras que cabem no vocabulário. Fazem-se viagens interiores pelo significado das palavras. O importante para estas religiosas que trabalham com prostitutas é transmitir-lhes que «podem ser felizes mais um bocadinho a cada dia».

As irmãs oblatas oferecem sempre a estas mulheres um miminho de Natal: casacos quentinhos, luvas e cachecóis para suportarem a vida fria na rua. Rece-bem ainda um cabaz com bacalhau e outras iguarias natalícias para saciar as barrigas. As delas e a dos filhos. A Ir. Maria Angeles fica sempre muito comovida

quando ouve histórias de mulheres que vão passar o Natal com

os filhos depois de anos de institu-

cionalização.

Quem está institucionalizado e passa o Natal sem a família é o André (nome fictício). Vive sem a família desde bebé. Hoje tem nove anos, frequenta o terceiro ano, «chumbei só uma vez», justifica--se, e está num dos lares da Casa Pia. Tem problemas de comportamento, tal-vez pela falta de referências familiares, e não consegue estar quieto a conversar. Está quase deitado na mesa a falar comigo, é difícil para ele estar sentado numa cadeira. Conta que passa sempre ali o Natal e já está habituado. O pai está emigrado e a mãe está no norte do país. Os irmãos estão «noutro lado». Diz que o Natal no lar «é divertido, porque se come muito». O que comes tu no Natal? – pergunto-lhe. «Mousse, chocolates, gelatina, pudim… muitas coisas.» Quero saber mais coi-sas sobre a noite de Natal ali no lar e ele responde assim: «Brincamos à luta, às escondidas e não sei mais.» Do que representa o Natal, talvez saiba o essen-cial: «Jesus é um bebé. Já me disseram que o Menino Jesus era uma pessoa que quando morria voltava a renascer.» Estas palavras simples proferidas pelo André, misturando o Natal com a Páscoa, falam da essência das coisas: nascer, morrer e ressuscitar para outra vida.

Isilda Jerónimo é educadora social há 25 anos no Centro de Educação e Desen-volvimento de Santa Catarina (CED), perto do Cais do Sodré. Ali estão os lares Cle-mente José dos Santos e o Joaquim José

Branco. Um e outro têm no total 30 educandos com idades compreendidas entre os 6 e os 16 anos. A grande maio-

ria das crianças que habita nestes lares tem problemas relacionados

com negligência familiar: «Antes recebíamos muita pobreza

económica; hoje recebe-

mos pobreza económica junto de pobreza moral. Chegam-nos miúdos de famílias muito desestruturadas, desorganizadas moralmente.»

A educadora tem passado alguns Natais com estas crianças. Deixa o marido e filhos em nome do seu trabalho. «Custa-me quando saio de casa, mas quando chego aqui já me passou, porque vimos por uma boa causa, para estar com os miúdos com quem estamos o ano inteiro. Estamos aqui para os educar e lhes dar um pouco daquilo que não têm em casa.»

Isilda já chegou a levar meninos para passarem o Natal consigo em casa. Como aqueles dois irmãos que pensavam que o pai os ia buscar na noite de Natal e não chegou a aparecer.

Tenta-se, quando é possível, que a criança passe o Natal com alguma refe-rência familiar – mas isso nem sempre acontece. Há sempre três ou quatro crian-ças que acabam por ficar no lar – restri-ções do tribunal para não terem contacto

com a família que os negligenciou. Os que vivem o Natal no lar veem os outros partir e «ficam magoados».

Há sempre uma festa de Natal para todos os meninos dos lares assim que ter-mina o primeiro período das aulas. Nesse momento festivo recebem uma cheque--prenda para depois comprarem o que quiserem. A verba atribuída pela Casa Pia é de 25 euros. Muitos deles compram CD e jogos que gostam. Os que ficam no lar na véspera de Natal já não têm direito a mais presentes, mas os educadores acabam sempre por comprar algo simbólico para marcar a diferença naquela data especial para as crianças. Nem que seja um cho-colate, carrinhos ou peões. Comem todas as iguarias de Natal a que têm direito, mas preferem bacalhau com natas em vez de cozido.

Por vezes, a educadora Isilda leva-os à missa do galo. É mais fácil falar de Jesus aos mais pequenos do que aos mais cres-cidos. Um dia, uma dessas crianças mais velhas perguntou-lhe: «A Isilda fala tanto em Deus mas Ele esqueceu-se de mim por-que vim aqui parar e a minha mãe abando-nou-me.» Não raras vezes interrogam-se porque foram abandonados e violentados. A vida é dura e crua. Há respostas que ficam incompletas…

Incompleta está também a vida dos filhos ainda pequenos de Sofia (nome fic-tício), de 34 anos. Separada do marido por sofrer maus-tratos, Sofia sente desgosto por os seus dois rapazes não poderem ter uma «família completa». Afinal, «ele é o pai dos meus filhos. Eles têm a noção de que estão a passar o Natal sem o pai.»

Esta jovem mulher está neste momento desempregada e a tirar um curso de paste-laria e cozinha. Sem rendimentos, depende agora da ajuda da família. No passado foi

A educadora Isilda Jerónimo já levou os meninos do lar para sua casa, no Natal.

“André” é um menino que costuma passar o Natal num dos lares da Casa Pia.

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ela que ajudou a mãe a cuidar dos irmãos mais novos. Hoje é ela que precisa de apoio. A família não tem faltado à chamada.

«O meu maior presente de Natal era ter trabalho», desabafa. Sofia, que já recebeu o apoio da Cáritas Diocesana de Setúbal, é considerada pelos técnicos uma mulher

lutadora, proativa na procura de traba-lho e agarra-se a qualquer coisa para levar dinheiro para casa. «Há só duas coisas que não fiz na minha vida: roubar e prostituir-me. Até cocó de pombo já lavei num telhado com uma mangueira de pressão. Ninguém queria fazer esse trabalho, mas eu subi um escadote para o fazer», conta.

Para subir uns degraus na vida, sente--se grata à Cáritas por tudo e tanto que aconteceu de bom na sua vida: «Quando estava no fundo do poço e quando não havia nenhuma luz, a Cáritas foi a única esperança e luz.» Tinha cinco meses de renda atrasada. Por pagar estavam tam-bém as contas da água, luz e gás. Foi-lhe entregue comida e roupa para as crianças e até eletrodomésticos para recomeçar a vida. No Natal veio um mimo especial que as crianças adoraram: «Um cabaz bom que, para além dos bens essenciais, tinha também sobremesas de chocolate para os miúdos.» Este ano ainda não sabe como

vai viver o seu Natal mas está convicta de que vai ser melhor: «Tenho esperança de passar o Natal a trabalhar, com o meu curso já feito e muito feliz ao lado dos meus filhos.» O dinheiro não abunda, «mas basta uma canja de galinha ou um caldo verde mais um bolo-rei» para viver um Natal bonito em família, apesar das muitas perdas que foi sofrendo pelo caminho. «No Natal não é preciso ter uma mesa farta. Muitas vezes tem-se uma mesa farta e as pessoas estão ali com uma cara, parece que o mundo lhes caiu em cima. Nem que eu tenha só uma sopa para comer no Natal, mas se estiver com a minha família, fico feliz.»

A Cáritas estima que neste Natal sejam apoiadas, pelo menos em média, 5 mil famí-lias. Mas o número pode pecar por defeito. «Só conseguimos ter informações das 20 Cáritas Diocesanas e de 65 paróquias e nem sempre com a regularidade dese-jável. Se das 4350 paróquias existentes, metade tiverem serviços de atendimento, os números que dispomos estão muito longe da realidade. Mesmo assim, são já significativos: durante o ano de 2012, foram atendidas 158 329 pessoas, que correspondem a 56 235 famílias», informa Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas.

Este responsável não tem dúvidas de que este Natal vai ser mais difícil para os pobres portugueses: «Basta analisar-mos a relação existente entre desemprego, trabalho precário, redução de salários e de prestações sociais com vulnerabilidades socioeconómicas, a juntar às consequên-cias resultantes das várias medidas de austeridade e compreende-se bem como o país está mais empobrecido. Objetiva-mente, temos as imparáveis procuras

nos muitíssimos atendimentos sociais existentes em todo o território nacional.»

No Natal, a Cáritas apenas reforça o apoio concedido ao longo do ano, acres-centando-lhe o que é, em termos tradicio-nais, específico dessa quadra. Este reforço verifica-se, sobretudo, em géneros ali-mentares que, nesta ocasião, assumem a designação de “cabazes de Natal”. «Dentro do espírito natalício, o que se acrescenta são as lembranças a crianças. O que é mesmo diferente são as quantidades dos apoios, porque são muitas as iniciativas de solidariedade, pessoais e coletivas, cujos proveitos nos são confiados para distribuirmos. Porque muitos dos bens são perecíveis têm de ser entregues, de imediato, fazendo aumentar as quantida-des por família. No Natal “enriquecemos” os pobres para os voltarmos a deixar na pobreza a partir do dia 26. Assim corre--se o risco de tornar o espírito do Natal numa ilusão.» E é nesta ilusão que vale a pena refletir… π

Cada Cáritas Diocesana tem o seu programa específico que passa pela distribuição de géneros alimentares com as iguarias típicas desta quadra; realização de ceias nos dias próximos ou mesmo na véspera de Natal para pessoas sós, idosas ou sem-abrigo; distribuição de brinquedos e outras prendas a crianças; promoção de festas e convívios para diferentes públicos. Comum a todas é a Operação 10 Milhões de Estrelas – um gesto pela paz que «pretende levar cada cidadão a adquirir uma pequena vela para ser acesa nas janelas de cada casa na noite de 24 de dezembro para que se saiba que os seus habitantes querem uma sociedade mais pacífica, pelo que lutam pela justiça e pela solidariedade. 65% da verba angariada com a aquisição das velas ficará em cada diocese para responder aos variados problemas sociais e os restantes 35% destinam-se às crianças e jovens refugiados da Síria», informa Eugénio Fonseca, que adianta ainda que «será editado um livro para que as crianças possam viver, com maior profundidade, o tempo de Advento».

INICIATIVAS DA CÁRITAS PARA O NATAL

Eugénio Fonseca alerta para o risco de se tornar o espírito de Natal numa ilusão.

A “Sofia”, que está desempregada, gostaria de receber como presente de Natal um trabalho.