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www.franklingoldgrub.com O Neurônio Tagarela - franklin goldgrub Capítulo V Psicanálise e psicosomática Se os capítulos anteriores descreveram a incursão organicista em território psicológico, será preciso agora considerar um campo onde se apresenta a situação simetricamente inversa. Efetivamente, o estado atual do problema mente-corpo pode ser ilustrado pela metáfora do túnel escavado simultaneamente a partir de direções opostas. De um lado, a psiquiatria biológica procura estender sua jurisdição à histeria e à fobia, rebatizadas de síndrome do pânico, enquanto simultaneamente coloniza a neurose obsessiva (TOC) e reafirma com ênfase crescente sua soberania sobre as psicoses; de outro, o desenvolvimento em ritmo acelerado da psicosomática ilustra a crescente participação da psicologia na esfera da patologia, até então reservada exclusivamente à medicina. Ambos os processos atestam profundas modificações impostas à cartografia cartesiana, que no século XVII havia instituído a distinção entre res extensa e res cogitans. Lenta mas inexoravelmente, a separação estanque entre matéria e espírito cedeu ao trânsito fronteiriço, marcado por intercâmbios e invasões, situações de cooperação (na prática) e de conflito (na teoria). O século XX testemunhou o retorno do caos ao universo tão bem organizado pelo racionalismo. Poucas posições filosóficas foram tão vituperadas quanto o dualismo cartesiano, mas até agora nenhuma outra maneira de enquadrar o enigma da relação mente/corpo sequer se aproximou da sua clareza e precisão, hoje irremediavelmente perdidas. O debate fundamental, como sempre, ocorre em terreno epistemológico-ontológico, onde se repete insistentemente a interrogação sobre a natureza desse ser sui generis que fantasia, alucina, delira e ao mesmo tempo sabe navegar em pós, gotas e vapores até os portos da vertigem.

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O Neurônio Tagarela -

franklin goldgrub

Capítulo V

Psicanálise e psicosomática

Se os capítulos anteriores descreveram a incursão organicista em território

psicológico, será preciso agora considerar um campo onde se apresenta a situação

simetricamente inversa. Efetivamente, o estado atual do problema mente-corpo pode ser

ilustrado pela metáfora do túnel escavado simultaneamente a partir de direções opostas.

De um lado, a psiquiatria biológica procura estender sua jurisdição à histeria e à fobia,

rebatizadas de síndrome do pânico, enquanto simultaneamente coloniza a neurose

obsessiva (TOC) e reafirma com ênfase crescente sua soberania sobre as psicoses; de

outro, o desenvolvimento em ritmo acelerado da psicosomática ilustra a crescente

participação da psicologia na esfera da patologia, até então reservada exclusivamente à

medicina.

Ambos os processos atestam profundas modificações impostas à cartografia

cartesiana, que no século XVII havia instituído a distinção entre res extensa e res

cogitans. Lenta mas inexoravelmente, a separação estanque entre matéria e espírito cedeu

ao trânsito fronteiriço, marcado por intercâmbios e invasões, situações de cooperação (na

prática) e de conflito (na teoria). O século XX testemunhou o retorno do caos ao universo

tão bem organizado pelo racionalismo. Poucas posições filosóficas foram tão vituperadas

quanto o dualismo cartesiano, mas até agora nenhuma outra maneira de enquadrar o

enigma da relação mente/corpo sequer se aproximou da sua clareza e precisão, hoje

irremediavelmente perdidas. O debate fundamental, como sempre, ocorre em terreno

epistemológico-ontológico, onde se repete insistentemente a interrogação sobre a

natureza desse ser sui generis que fantasia, alucina, delira e ao mesmo tempo sabe

navegar em pós, gotas e vapores até os portos da vertigem.

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Com relação aos progressos da psiquiatria biológica, os historiadores estão de acordo em

atribuí-la à revolução farmacológica, cujo marco inicial é constituído pelo trabalho de

Laborit, Delay e Denniker.[1] Laborit, cirurgião que buscava o calmante capaz de diminuir

os efeitos do choque pós-operatório mantendo simultaneamente o paciente em vigília,

não apenas presenteou a psiquiatria com um remédio eficaz mas em acréscimo abriu

caminho para um novo campo, o da bioquímica psiquiátrica. Na esteira dessa primeira

encomenda, os laboratórios sintetizaram e testaram outras famílias moleculares. O êxito

dos primeiros psicotrópicos desenvolvidos precipuamente para alterar os estados de

humor, por inibição ou estimulação, apoiaram a suposição de que os estados orgânicos

influenciam as emoções e o pensamento. Não muito tempo depois, a pesquisa

neurológica identificou, no sistema nervoso central, substâncias naturais com estrutura e

função semelhantes às das fórmulas laboratoriais, o que foi interpretado como uma

confirmação crucial do enfoque organicista. A bioquímica passou a ver seu próprio reflexo

no espelho da natureza, e daí a concluir que a emoção e o pensamento constituem

epifenômenos do funcionamento cerebral tanto quanto a circulação, a respiração e a

digestão são funções dos respectivos órgãos, não foi mais do que um passo.

Quanto à psicosomática, termo cunhado por Heinroth no início do século XIX e que

teve em Groddeck seu primeiro arauto [2] ,começou a ser sistematizada na mesma época

em que se iniciava a revolução farmacológica. O conceito "síndrome de adaptação geral",

proposto por Hans Selye em seu livro The general adaptation syndrome and the disease of

adaptation, de 1946, confere cidadania científica às intuições que Groddeck havia

avançado em seu Livro d'Isso (1923).[3] Em decorrência, surge a noção de stress, a partir

da qual condições patológicas antes tidas como exclusivamente orgânicas passaram a ser

lidas com o auxílio da lente psicológica. Há muito se conhecia o papel desencadeante do

componente emocional em crises cardíacas, respiratórias e gástricas, o que deu lugar à

justificada suspeita acerca de sua presença em outras condições. Essas constatações iniciais

prepararam o terreno para que a psicosomática reivindicasse seu espaço na discussão

etiológica e na prática clínica, onde a eficácia do fator psicológico foi comprovada através

de experimentos feitos com placebos.

Em suma, a constatação da influência dos estados afetivos e da sugestão sobre o

organismo, tanto quanto o reconhecimento das alterações promovidas pelos psicotrópicos

no intelecto e nas emoções, conduziu a uma nova abordagem da relação mente-corpo.

Que os avanços da bioquímica e da psicosomática justifiquem uma reavaliação das

relações entre o orgânico e o psíquico não resta a menor dúvida, mas o problema é que o

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fazem a partir de premissas totalmente opostas. Para desconforto dos cartesianos e dos

reducionistas, as evidências disponíveis mostravam simultaneamente que o psicológico é

suscetível ao bioquímico tanto quanto o visceral responde a estados afetivos. A solução

pareceria favorecer a abordagem eclética que propõe a co-determinação dos referidos

fatores.

Do ponto de vista prático, efetivamente, nada impede a cooperação entre o

psiquiatra e o psicólogo, o médico e o psicosomatista, muito pelo contrário. A

epistemologia e a teoria, porém, não podem aceitar que questões tão cruciais como a da

relação mente-corpo sejam decididas empiricamente. Desse ponto de vista, a oposição

entre organicismo e psicogênese permanece, e a psiquiatria e a psicosomática de

orientação psicanalítica se confrontam com a mesma pergunta, vista de uma perspectiva

simetricamente inversa. No caso do organicismo, o desafio é explicar como

neurotransmissores e receptores determinariam estados de humor ou pensamento,

enquanto as teorias da psicogênese deveriam elucidar as razões pelas quais estados de

humor e pensamento incidem sobre neurotransmissores, receptores e orgãos viscerais.Em

acréscimo, e à maneira de uma contraprova, as neurociências ainda teriam a incumbência

de entender, a partir da perspectiva organicista, a eficácia do psicológico, tanto quanto a

psicanálise, reciprocamente, não poderia furtar-se a um esforço de compreensão acerca

dos efeitos produzidos pelos psicotrópicos.

Essas questões tem sido abordadas neste livro a partir do enfoque psicanalítico[4],

mediante um conjunto de hipóteses dedicado à ação das drogas (psiquiátricas e de

adição), hipóteses que serão estendidas aos fenômenos psicosomáticos. Preliminarmente,

é necessário prevenir um possível mal-entendido, aludido no parágrafo anterior.

No que se refere à prática clínica, psiquiatras, neurólogos, psicanalistas e

psicosomaticistas têm tarefas urgentes a cumprir e se valem dos conhecimentos

atualmente disponíveis para enfrentá-las, trabalho freqüentemente realizado em regime de

cooperação. Esse estado de coisas, que beneficia os pacientes e reflete o declínio do

sectarismo, tem tido porém um efeito colateral indesejável, o de direcionar a investigação

teórica no rumo do ecletismo. O ecletismo visa legitimar-se mediante uma teorização

fundada na equiparação do orgânico, do psicológico e do social. Seus representantes

consideram que todo esforço teórico não preocupado em assegurar apriori a igual

participação desses fatores peca por unilateralidade.

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A militância diplomática da abordagem eclética faz crer que o prosseguimento da

discussão teórica prejudica a cooperação na clínica, argumento pelo qual a pesquisa é

transformada em refém do acordo profissional. Contudo, pode-se reconhecer plenamente

os benefícios decorrentes do apoio recíproco no terreno da prática, sem que por isso o

conflito teórico deva (ou possa) ser ocultado. Em suma, são questões a serem tratadas de

maneira independente, embora, a longo prazo, o avanço na compreensão da relação entre

psique e soma certamente possa incidir sobre o relacionamento entre as áreas

profissionais mencionadas. Sejam quais forem os progressos teóricos alcançados,

certamente favorecerão a compreensão acerca dos alcances e limites das práticas atuais.

Do ponto de vista teórico e epistemológico, o progresso do conhecimento não pode

prescindir do confronto entre hipóteses antagônicas. Tal confronto, porém, longe de

prejudicar o entendimento vigente, tem como contribuir, mediante o gradual

esclarecimento dos impasses, para a ampliação do diálogo.

Portanto, não há qualquer razão, quer científica ou prática, que desautorize o debate entre

as hipóteses organicistas, psicanalíticas e sociológicas. A ciência sempre avançou a partir

da comparação crítica entre teorias e paradigmas antagônicos. Desse ponto de vista, não

deixa de ser estranho que a discussão em pauta seja constantemente colocada sob

suspeita, propondo-se em seu lugar um consenso que por outro lado está longe de

corresponder à realidade. A provável razão desse estado de coisas é a repercussão que os

avanços na compreensão da relação entre psique e soma podem ocasionar num campo

profissional em que os interesses adquiridos estão fortemente arraigados. As corporações

psiquiátricas e psicanalíticas, tanto quanto os laboratórios e as instituições de formação

profissional, são extremamente suscetíveis a qualquer novidade que possa afetar o status

quo. A política oficial dessas instituições tende a encorajar a abordagem eclética segundo

a qual a organogênese, a psicogênese e a sociogênese seriam tão válidas como

incompletas, e reciprocamente imprescindíveis; desse ponto de vista, a interrogação sobre

como tais fatores se articulam é secundária e deveria subordinar-se à preocupação maior

de garantir a manutenção do espaço profissional tal como definido pelas respectivas

corporações.

A realidade, porém, não se deixa manietar tão facilmente. À margem das posições oficiais,

e como não poderia deixar de ser, o estado de beligerância entre posições

epistemológicas antagônicas permanece. Aqui e ali, em livros e artigos, palestras e

congressos, nas páginas científicas dos jornais e nos relatórios de pesquisa, as posições

mais radicais, livres das rédeas institucionais, se manifestam. Os franco-atiradores não

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raramente contam com o beneplácito velado ou discreto das "forças regulares" e veiculam

o que de fato se pensa nos quartéis generais do organicismo, do psicanalismo e do

culturalismo, para além dos acordos celebrados oficialmente.

A essa questão soma-se outro problema, de natureza semelhante, desta vez referente às

relações entre psicosomática e psicanálise. Também nesse terreno vigora um acordo no

terreno da prática, onde impera o mútuo reconhecimento, enquanto em termos teóricos e

epistemológicos abre-se um abismo.

Na medida em que forem aplicadas ao campo dos fenômenos psicosomáticos as

hipóteses formuladas nos capítulos anteriores com referência à ação dos remédios

psiquiátricos e dos psicotrópicos ditos de abuso, as razões dessa divergência virão à tona

progressivamente, tornando patente que malgrado a inspiração psicanalítica

constantemente invocada, as obras de Pierre Marty, Joyce McDougall e Christophe

Desjours desenvolvem conceitos inconciliáveis com a ciência dos sonhos.[5]

--------------

O ponto de partida para pensar o fenômeno psicosomático do ângulo psicanalítico é o

mesmo que forneceu a base das hipóteses elaboradas em relação à ação dos

psicotrópicos. Trata-se da suposição de que a todo estado discursivo corresponde uma

determinada configuração orgânica. A tradução do psicólogico no orgânico dá-se através

de ambas as divisões do sistema nervoso, tanto a autônoma (que traduz a afetividade

associada ao estado discursivo para o código binário simpático/parasimpático), como a

voluntária (que expressa o estado discursivo vigente em motricidade, por ação ou

inibição). No caso dos fenômenos psicosomáticos, seria preciso considerar ainda o efeito

discursivo sobre os sistemas imunológico e endocrinológico; tal questão, porém, por exigir

conhecimentos mais específicos, será apenas aflorada.[6]

A hipótese apresentada neste livro mantém-se no âmbito do dualismo (pois o psíquico e o

orgânico permanecem diferenciados). Contudo, ela supõe uma articulação necessária entre

ambos, na forma da configuração do orgânico pelo psíquico, além de admitir a situação

recíproca, isto é, a possibilidade de evocar estados discursivos latentes por intoxicação

química, mas nesse caso intencionalmente, ou seja, através de um ato dotado de sentido

[7]. A ação dos psicotrópicos ilustra um caso particular (por inversão do vetor psique ®

soma) da relação entre discurso e organismo. Em sua manifestação comum, ou seja, fora

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dos estados de intoxicação, a relação entre discurso e organismo ocorre em silêncio,

ininterruptamente, e prescinde de qualquer deliberação. Em contraste, as modificações de

comportamento induzidas por via química são ruidosamente evidentes, na medida em que

se destinam a evocar e freqüentemente evocam uma discursividade latente inibida.

Em suma, a hipótese de uma influência ininterrupta dos estados discursivos (ou seja, as

crenças e a respectiva afetividade) sobre o sistema nervoso (autônomo e voluntário), bem

como sobre os hormônios e as defesas do organismo, define a concepção que orientará a

presente abordagem dos fenômenos psicosomáticos. Antes de prosseguir nessa direção,

porém, será útil fazer uma digressão sobre as razões pelas quais a referência discursiva foi

impugnada pelos teóricos atuais da psicosomática, tanto os fundadores da Escola

Psicosomática de Paris (Marty, de M'Uzan, Fain), como Christophe Desjours e Joyce

McDougall.

---------------

Os fenômenos psicosomáticos atraíram a atenção dos médicos e psicólogos em virtude de

evidências tão fortes como as que dizem respeito à intoxicação química. Efetivamente, o

efeito dos abalos emocionais sobre funções tão vitais como a cardíaca, a respiratória e a

digestiva não poderia passar desapercebido. Progressivamente, as hipóteses desenvolvidas

para compreender tais casos foram aplicadas ao desencadeamento das crises asmática e

diabética.[8] O efeito placebo, a relação entre o rapport e a cura, bem como a eficácia da

sugestão hipnótica, cuja utilização em odontologia é freqüente, são outras tantas

manifestações da influência - desta vez benéfica - do psicológico sobre o orgânico. Como

se sabe, a psicanálise inclui tais fenômenos na rubrica da transferência.

Todos esses exemplos fazem pensar que o primeiro termo do vocábulo composto

"psicosomática" foi, desde o início, consagrado à afetividade. Efetivamente, a

psicosomática priorizou, desde sempre e em detrimento da significação, o papel das

emoções. Numa perspectiva muito próxima à kleiniana, a origem das perturbações

emocionais foi adscrita às vivências precoces da primeira infância e às pulsões, definidas

como fontes somáticas do psiquismo. Assim, como que parodiando a célebre frase bíblica

pronunciada nas orações fúnebres, a psicosomática dirige à afetividade o exórdio: "do

corpo viestes, ao corpo voltarás". Ainda que divirjam em relação a outras questões,

práticas e conceituais, as diversas abordagens da psicosomática se solidarizam no terreno

da epistemologia, visto que seu espaço de teorização coincide com a jurisdição do

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biológico e do ambiental.[9] Desnecessário acrescentar que a linguagem é então relegada

ao posto de coadjuvante. Desjours descreve esse gesto mediante a expressão "inversão

epistemológica fundamental"[10] e a descreve assim, referindo-se aos sintomas

psicosomáticos: "Onde numerosos autores afirmavam que havia um sentido, os

psicosomatistas responderam haver, antes, precisamente uma falta de sentido."[11]

Os psicosomatistas formulam suas proposições etiológicas no âmbito das primeiras

vivências, protagonizadas pelo bebê e pelos representantes da função materna,

enfatizando igualmente os processos de desenvolvimento, pensados mediante as noções

de maturação orgânica e interação com o meio.[12] Quando a palavra entra em cena, os

alicerces já foram lançados e tudo o que a linguagem poderá fazer é elaborar ou não,

melhor ou pior, a angústia procedente das primeiras relações. No âmbito dessa enfoque,

autores como M. Fain, L. Kreisler e J. McDougall procuram especificar as modalidades dos

primeiros vínculos, descrever as seqüelas das suas falhas mais graves, bem como, e

principalmente, estabelecer sua relação com os sintomas psicosomáticos. Elabora-se uma

teoria da constituição do sujeito voltada para a compreensão dos distúrbios

psicosomáticos. As teorias da psicosomática mantêm entre si algumas divergências,

conforme se inclinem mais em direção às posições kleinianas ou procurem incorporar

alguns elementos da teoria lacaniana. Os escritos de Freud permanecem enquanto

referência e alguns de seus conceitos, como neurose atual e complacência somática, são

freqüentemente recuperados e reinterpretados.

Assim acontece com a noção de trauma, à qual todas as correntes da psicosomática

recorrem, e que é aplicada à descrição das vivências precoces. Aqui, os aspectos factuais

das relações primárias prevalecem sobre o conceito de identificação, praticamente

desconsiderado. Na mesma linha de raciocínio, cuja inspiração kleiniana é inegável, as

deficiências da maternagem são responsabilizadas pelos futuros quadros psicosomáticos,

já que instalam simultaneamente a angústia e a precariedade dos meios psíquicos para

lidar com ela. O efeito dessas experiências sobre a afetividade difere totalmente da

suposta pela teoria do trauma elaborada e depois abandonada por Freud. Para todas as

correntes da psicosomática, os respectivos sintomas decorrem da impossibilidade de

denominar, reconhecer e expressar as emoções e os estados afetivos.[13] As emoções e os

estados afetivos são considerados fundamentais; incumbida mas nem sempre capaz de

resgatá-los, a linguagem reflete as limitações do psiquismo que ela agencia, claramente

secundário em relação à tríade emoção/angústia/soma. Qualquer semelhança não é mera

coincidência: Pierre Marty insere seu enfoque num marco evolucionista, provavelmente

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inspirado pelo conhecido conceito de hierarquia funcional elaborado por Hughlings

Jackson para descrever a atividade neurológica e suas disfunções.[14] Christophe Desjours

também postula uma ordem biológica primária, expressa pela necessidade, que depende

da posterior subversão erótica para transformar-se em psiquismo, caracterizado pelo

desejo. As falhas ou fracassos do agenciamento psíquico ocasionariam a degradação do

emocional nas patologias viscerais e cerebrais.

Assim, os déficits da função simbólica impediriam o deslocamento do conflito para o

terreno mental, restando apenas a via da descarga no próprio organismo. Se o conflito for

representado, o resultado será uma "neurose bem mentalizada" (obsessão, fobia, histeria),

caso contrário ele se manifestará pela somatização. As respectivas condições etiológicas

antecederiam o complexo de Édipo, sendo construídas num período anterior à aquisição

de linguagem, ficando assim excluída a participação da fantasia. Nesse sentido, os teóricos

da psicosomática divergem do kleinismo, visto que, supondo uma oposição entre o

emocional e o simbólico, situam a fantasia no âmbito da linguagem e não no das pulsões.

A incapacidade de simbolizar atribuída ao somatizante evoca de imediato as lacunas de

memória à qual a teoria do trauma freudiana conferia um papel importante na produção

do sintoma. Entretanto, o comprometimento da memória foi explicado por Freud como

efeito do recalque, enquanto as teorias da psicosomática postulam, em relação à

somatização, um mecanismo diferente, que se aproxima bastante do conceito

freudiano verwerfung. Traduzido em francês por forclusion[15] a instâncias de Lacan, passa

a designar a operação específica responsável pela psicose. A característica fundamental da

forclusão refere a impossibilidade de simbolizar, o que aparentemente apóia a asserção de

que os conflitos não são necessariamente expressos através de representações. O interesse

pela forclusão constitui o periélio da psicosomática em relação à psicanálise lacaniana.

Entretanto, de acordo com o mesmo Lacan, todas as produções psicóticas permanecem no

terreno da linguagem, na medida em que a ausência do discurso próprio só se explica

pelo atrelamento ao discurso do Outro, ou seja, à impossibilidade de aceder à posição de

sujeito. Os sintomas psicóticos mais comuns, como a alucinação e o delírio, teriam por

cenário a esfera mental, manifestando-se como percepções, idéias e crenças. Os teóricos

da psicosomática vêm-se assim compelidos a definir o mecanismo responsável pela

somatização de outra maneira. Uma das dificuldades teóricas da psicosomática refere-se

precisamente à distinção conceitual entre psicose e somatização, questão que surge na

esteira da afirmação de que o somatizante, como o psicótico, "tampouco" simboliza.

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(Conforme mencionado acima, a asserção de que a psicose está situada fora da jurisdição

da linguagem repousa numa leitura bastante questionável das conceituações freudianas e

lacanianas a respeito. Correspondentemente, excluir a somatização - como qualquer outro

comportamento ou categoria nosográfica - da função simbólica, não pode senão

mobilizar, na perspectiva psicanalítica, uma contestação. A questão será discutida adiante).

Na tentativa de resolver essa aporia, a psicosomática voltou-se para o conceito de neurose

atual[16], que se não foi oficialmente abolido em psicanálise como aconteceu com a teoria

do trauma, constitui uma referência nosográfica datada. De fato, inicialmente Freud

considerava que a estase da energia libidinal, decorrente dos obstáculos que a moral

social vigente opunha à vida sexual, provocava disfunções somáticas, mesmo na ausência

de qualquer conflito interno. O desenvolvimento da noção de desejo levou ao abandono

dessa concepção, que foi substituída pela responsabilização total do sujeito (sujeito do

inconsciente), ao mesmo tempo em que a realidade era definida como psíquica. Em seu

último comentário sobre as neuroses atuais (ou seja, sobre o fator social), Freud assinalou

que as mesmas se limitavam a favorecer a eclosão de uma neurose de defesa. O ambiente,

nesse caso, funcionaria como detonador de um conflito previamente instalado.

A neurose atual foi exumada pela psicosomática porque representa o momento da teoria

freudiana em que o conflito psicológico aparece subordinado aos fatores ambientais

(sociais) e orgânicos. Durante a vigência dessa categoria nosográfica, Freud afirmava que a

respectiva sintomatologia nada tinha de "mental"- diferenciando-se assim nitidamente da

histeria de conversão, da histeria de angústia (fobia) e da neurose obsessiva.

Correspondentemente, sua origem era atribuída ao choque entre fatores externos (moral

rígida, família /sociedade repressiva) e uma sexualidade ainda concebida como função

orgânica, operando pela descarga de energia. O psiquismo (ideal de ego, mecanismos de

defesa, fantasias, deslocamentos) estaria totalmente ausente do cenário.

Noção atrelada à sociedade e à história, a neurose atual parece bem pouco atual: o

hedonismo governou despoticamente as últimas décadas do século XX e ter uma vida

sexual intensa e variada tornou-se um valor tão alardeado como as virtudes da abstinência

durante a era vitoriana. Entretanto, isso não chegou a obstaculizar a utilização dessa

categoria nosográfica por parte da psicosomática. Para tanto, foi suficiente substituir a

repressão sexual enquanto fator etiológico por outra situação concebida como "externa",

no caso uma maternagem "suficientemente má". A origem da angústia, que expressa o

sentimento de desamparo decorrente da dependência, deixa de ser atribuída à falta de

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descarga sexual e é debitada às deficiências da relação primária. "Ora, certas mães

vivenciam o bebê como um corpo estranho a elas mesmas. Outras, ao contrário, não

querem de modo algum abandonar a unidade fusional mãe-bebê. Nestes dois casos, a

criança corre o risco de achar bem difícil a aquisição deste sentimento de sua identidade

separada, que lhe dá ao mesmo tempo a posse de seu corpo, de suas emoções e de sua

capacidade de pensar".[17]

As teorias da psicosomática, além de recuperar e reinterpretar o quadro

nosográfico neurose atual alterando-lhe a etiologia, conferem-lhe uma abrangência muito

maior. Os escritos freudianos anteriores à Interpretação dos Sonhos diagnosticavam a

neurose de angústia e a neurastenia[18] através de distúrbios somáticos

(respiratórios,circulatórios,digestivos),além de perturbações psicológicas (irritabilidade, falta

de concentração, ansiedade difusa). Para a psicosomática, a dificuldade em reconhecer as

próprias emoções seria capaz de provocar não apenas distúrbios funcionais mas a maior

parte das doenças conhecidas. Trata-se de um enfoque que amplia consideravelmente

tudo o que a medicina alopática havia sido capaz de reconhecer até então com referência

à importância do fator psicológico, cuja ação foi inicialmente restrita ao desencadeamento

de crises cardíacas, respiratórias e diabéticas, bem como à etiologia da úlcera nervosa.[19]

Outros órgãos e as respectivas funções, o metabolismo em geral, os sistemas imunológico

e endocrinológico, cujo comprometimento se expressa por desequilíbrios menos

conspícuos, são progressivamente integrados ao campo de atuação da psicosomática.

A importância da nova abordagem não dá margem a dúvidas. A contribuição da

psicosomática para o tratamento e a profilaxia já é, no estágio atual de seu

desenvolvimento, bastante significativa, tanto em psicologia como em medicina.

Suplementarmente, os fenômenos que ela põe em evidência sustentam plenamente a

necessidade de repensar a relação mente/corpo. Contudo, as correntes da psicosomática

filiam-se a uma posição epistemológica incompatível com o papel que a psicanálise não

pode deixar de conferir à linguagem. Como, por outro lado, a psicosomática recorre

freqüentemente à psicanálise para estabelecer seus principais conceitos, a respectiva

teorização é feita num terreno propício à contradição.

Esse contraste entre os progressos da prática e uma teorização pouco convincente repete

a situação descrita anteriormente no que se refere à medicação psiquiátrica. A revolução

farmacológica atenuou o sofrimento decorrente do surto psicótico, mas a reformulação

teórica da relação mente/corpo feita a partir da perspectiva organicista deixou-se guiar por

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um pragmatismo precário. Em decorrência, os argumentos que pretendem promover a

bioquímica à posição de fator etiológico em relação ao psiquismo padecem de empirismo

e escamoteiam discussões teóricas imprescindíveis. A psicosomática, por sua vez, indicada

precipuamente para casos de morbidez grave[20], apressa-se em legitimar uma

modalidade de intervenção mais direta em nome da urgência e da crucialidade de suas

incumbências. Nesse sentido, sua argumentação assemelha-se à da psiquiatria. Além disso,

parece autorizar-se a fazê-lo em função dos respectivos resultados, muito mais facilmente

aferíveis do que os de uma psicanálise tradicional.[21]

Que a metodologia utilizada nessas situações difira consideravelmente do protocolo

psicanalítico, nada mais compreensível. O mesmo se passa com a conduta psiquiátrica

perante o surto psicótico. Em ambas, psiquiatria e psicosomática, a urgência em erradicar

os sintomas ou deter seu desenvolvimento é largamente prioritária em relação a qualquer

outra preocupação. O problema é que a partir da eventual eficácia desses procedimentos

se construa uma teorização ad hoc, mediante a postulação de um quadro nosográfico e

etiológico carente de fundamentação mais sólida e sobretudo de uma base epistemológica

rigorosamente estabelecida. Tal como a psiquiatria não formulou qualquer hipótese mais

precisa sobre o modo de ação dos psicotrópicos, a psicosomática tampouco interrogou

mais detidamente os mecanismos responsáveis pela somatização nem o papel da

psicoterapia em sua remissão ou controle.

Efetivamente, o meio pelo qual as emoções não representadas encontram a via somática é

descrito através da mesma analogia empregada por Freud em relação às neuroses atuais.

Trata-se da noção de "descarga", espécie de metáfora hidráulica, em que o escoamento

das emoções ocorre pela via que apresenta a menor resistência. A falha do aparelho que

"bombearia" a excitação emocional na direção do psiquismo faz com que a pressão

resultante provoque um "vazamento" no soma, causando primeiramente disfunções e, caso

a situação persista, alterações patológicas estruturais. Com referência à pobreza das

representações, fator fundamental já que dele depende o deplorado bloqueio da via

psíquica, as explicações da psicosomática não são claras mas conduzem, de alguma

maneira, à angústia da separação, o que aproxima a etiologia da somatização da etiologia

da psicose. De fato, para as correntes psicosomáticas, a respectiva diferenciação

permanece eminentemente problemática. A hipótese principal é a de que um pré-

consciente construído precariamente favoreceria uma espécie de forclusão, que afetaria

unicamente as emoções, refratárias à captura discursiva. Desse ponto de vista, a

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psicosomática compartilharia com a psicanálise culturalista a idéia de que a fragilidade do

eu seria a condição fundamental da sintomatologia.

A descrição mais constante utilizada pelos psicosomatistas sugere um mecanismo

exatamente inverso ao das neuroses clássicas (histeria, obsessão, fobia), nas quais os afetos

são vinculados a representações substitutas para os quais foram deslocados via

mecanismos de defesa. No caso dos sintomas psicosomáticos, ao contrário, as emoções é

que estariam ausentes do campo da consciência, pois teriam sido derivadas para o

organismo, em virtude da impossibilidade de significá-las através da fantasia. As

representações permanecem na consciência, mas esvaziadas de coloração afetiva. Os

sintomas psicosomáticos dever-se-iam não a uma falsa ligação, mas à própria ausência de

ligação, isto é, à falta de sentido.[22] Tal situação é debitada à pobreza do imaginário, em

cuja origem se perfilaria uma angústia capaz de emudecer a afetividade ao cortar seus

laços com as representações encarregadas de conduzi-la na direção do psiquismo. Em

certos históricos de caso assinados por psicosomatistas, tem-se quase a impressão de

deparar com uma versão ligeiramente modificada da teoria catártica de Breuer, com quem

a psicosomática compartilha a atribuição de um importante papel etiológico ao trauma. A

principal diferença reside na própria sintomatologia. As pseudo-somatizações[23] de Anna

O. não afetam seu corpo a não ser funcionalmente, diferentemente da úlcera, da retocolite

hemorrágica, da asma, da cardiopatia, cuja realidade orgânica é inegável.

Como foi antecipado, é com referência ao papel da linguagem que se declara a grande

incompatibilidade entre psicosomática e psicanálise. A fantasia, fundamental para a

definição de subjetividade no enfoque psicanalítico, situa-se no campo da linguagem. O

delírio e a alucinação diferem da fantasia por representarem crenças inquestionáveis, mas

não deixam de ser fenômenos discursivos. É no autismo e nas manifestações da

esquizofrenia dita negativa que se encontrará o silêncio do imaginário. Mas, nesse caso, a

teoria psicanalítica dirá que a ausência do discurso próprio se deve à mordaça imposta

pelo discurso do Outro. Em outros termos, o surto (a vivência) psicótico constitui ou deriva

de uma modalidade possível de discurso. A angústia das figuras parentais, sendo ela

mesma uma expressão do sentido conflitivo conferido à experiência da maternidade e/ou

paternidade, incide sobre o bebê pela via da identificação. Em suma, a angústia (como

qualquer outro estado afetivo), expressa um sentido e pertence portanto ao campo da

linguagem.

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Na escuta psicanalítica não há porque atribuir a eventual precariedade das expressões

afetivas à alegada pobreza ou ausência dessas manifestações. O conceito de resistência

parece suficiente para compreender a dificuldade de expor-se. Esse bloqueio pertenceria

de fato e de direito ao âmbito do discurso, logo do sentido. Os benefícios secundários

extraídos da condição de vítima, a auto-punição associada ao sentimento de culpa, bem

como a relutância em assumir o próprio desejo (infantilização), são motivações bastante

conhecidas das faltas, atrasos, truncagens, silêncios, desistências, interrupções e outras

formas de recusa. Nesse quadro insere-se a "reação terapêutica negativa" que Freud, por

boas razões, relacionava à pulsão de morte, definida pela tendência à fusão, gêmea da

dificuldade em aceder à posição de sujeito. É comum que o sintoma somático seja

utilizado como pedido de ajuda e proteção, como expiação, como pretexto para

desresponsabilizar-se e também para manter uma auto-imagem de fragilidade. Não se

trata aqui de atribuir a origem da patologia a tais motivações, mas de perscrutar algumas

razões que podem levar o doente - quer somatizante, quer não - a manter sua

enfermidade ao abrigo do sentido que, independentemente de ter contribuído para sua

eclosão, certamente lhe foi outorgado a posteriori.

Com referência à questão metodológica, a estigmatização de certos discursos ("pobreza",

"desafetação") colide frontalmente com o preceito da associação livre. Tudo se passa como

se o endeusamento da emoção e da transferência houvessem privado o psicanalista

contemporâneo da possibilidade de ouvir o discurso. Ele está à caça de emoções e

emprega as próprias para melhor farejar as do paciente. Uma fala reservada e discreta,

relatos concernentes a terceiros, ausência de interpelações diretas ao analista, eis os

sacrilégios cometidos pelo paciente não "envolvido", espécie de pecador sem culpa ou

doente pouco colaborador, portanto candidato à mais severa das reprimendas de que é

capaz o titular do confessionário psicanalítico. A absolvição só é dada quando a associação

livre segue os moldes do libreto operístico, em que a palavra está aprisionada à emoção,

na perspectiva dramática própria ao bel canto. Dir-se-ia que a psicosomática leva até as

últimas conseqüências a ênfase concedida pelo kleinismo à emoção, cuja manifestação

inicial foi a hipertrofia da transferência, seguida da redefinição da contra-transferência,

promovida de obstáculo a instrumento de intervenção.

Nessa perspectiva de entronização do emocional, o sintoma psicomático parece talhado na

medida exata para advertirnos das drásticas conseqüências que esperam aqueles que se

afastam da afetividade. Correspondentemente, a nosografia proposta desliza facilmente

para o juízo de valor. Depressão essencial, pensamento operatório, normopatia, alexitimia,

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são conceitos menos descritivos do que valorativos. A teoria outorga-se o direito de

estipular os critérios pelos quais alguém é julgado destituído de um projeto de vida ou de

interesses pessoais, escravizado à banalidade quotidiana, adaptado às convenções,

refratário aos devaneios, desprovido de fantasias, incapaz de perceber os próprios

sentimentos, etc. Em contraposição, perfila-se o modelo do que se considera adequado.

Se a capacidade orgástica era o parâmetro a partir do qual Reich media a saúde mental, a

psicosomática afere a saúde física pela expressão das emoções. Tudo se passa como se a

origem médica da psicanálise se manifestasse periodicamente pela nostalgia de seus

pratos típicos: a nosografia e o diagnóstico... Essa tendência recrudesce na mesma medida

em que ocorre o distanciamento em relação à linguagem.

O estabelecimento de um elo entre a personalidade definida como "somatizante" e a

patologia visceral, que leva até as últimas conseqüências o enfoque diagnosticante,

permanece controversa. O caminho escolhido pela Escola de Chicago, e principalmente por

Flanders Dunbar, inaugurou já na década de 40 as tentativas de tipologização: foram

descritas e postuladas as personalidades "cardiopática", "diabética", etc., tendo como

modelo a "personalidade epiléptica" suposta pela psiquiatria.[24] É provável que o

exercício de funções paramédicas tenha conduzido subrepticiamente o psicosomatista a

referenciar-se pela divisão normal/patológico, que passa a orientar suas intervenções. Aqui

a psicosomática se aproxima decididamente da medicina. A diferença reside em que o

fator etiológico é situado numa tipologia psicológica cujo rigor deixa muito a desejar, e

não somente em virtude do moralismo subjacente aos critérios empregados. Sob os

déficits emocionais descritos, perfila-se a concepção de uma personalidade ideal, que

lembra as preconizações da psicanálise culturalista concernentes à genitalidade,

oblatividade, capacidade de amar e trabalhar. O estabelecimento de um ideal sempre tem

seu preço e o psicosomatista, além de compelido a gozar de boa saúde, pode considerar-

se igualmente obrigado, qual um sacerdote, a representar exemplarmente as virtudes do

"emocionalmente correto". (Não é improvável que a regra segundo a qual todo

psicanalista deve passar pelo divã em obediência ao mandamento "não recalcarás" seja

doravante acrescida da injunção "não somatizarás").

Em todo caso, trata-se de um movimento que trafega na contramão da tendência

antivalorativa e antidiagnóstica da psicanálise, desenvolvida por Freud à medida em que se

afastava do modelo médico e consubstanciada na sua crítica ao furor sanandis.

Efetivamente, no artigo Recomendações aos médicos que praticam a análise, Freud

aconselhava os analistas a não estipular metas para os pacientes, que deveriam decidir por

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si mesmos o que fazer com os resultados da sua análise. Pode-se objetar que se a

erradicação da sintomatologia orgânica depende efetivamente de certas atitudes (como a

exteriorização das emoções), então o psicosomatista estaria mais do que autorizado a

estabelecer critérios de saúde mental.

Contrariamente a esse enfoque, porém, e independentemente do grau de precisão que

possa ser atribuído à relação suposta entre tal ou qual tipo de personalidade e a

tendência a somatizar (genérica ou especificamente), a questão diz respeito a se o

psicanalista (de orientação psicosomática ou qualquer outra) deve estipular critérios de

cura e, supondo uma resposta afirmativa, se ele dispõe dos meios para fazê-lo. A

resistência, que a psicosomática parece ter desconsiderado em mais de um sentido

enquanto fator fundamental do processo psicanalítico, faz parte dessa discussão. A própria

necessidade de sensibilizar o somatizante para a índole psicogênica de seus sintomas já

seria suficientemente indicativa da sua presença.

Retornamos aqui a um ponto cuja discussão precisa ser aprofundada. O método

psicanalítico clássico, segundo Freud, pode (e deve) ser modificado em função das

circunstâncias. As circunstâncias, no caso, não são outra coisa senão as diferentes formas e

graus de resistência. No caso de somatizantes refratários às exigências consubstanciadas

no método psicanalítico, nada mais compreensível do que tentar novas metodologias e

abordagens clínicas.

Como se sabe, os pacientes com pronunciada sintomatologia psicosomática são

geralmente encaminhados por médicos. Que apresentem uma resistência considerável ao

processo psicanalítico não tem nada de surpreendente. Inúmeras pessoas manifestam a

mesma atitude sem serem somatizantes, quer cheguem ao consultório ou abominem a

idéia. Muitas delas podem queixar-se de conflitos, dificuldades de relacionamento e/ou

profissionais, sintomas, em grau acentuado ou não. Na medida em que uma boa parcela

"não acredita" na psicologia, a possibilidade de recorrer à psicanálise (ou qualquer outra

abordagem) é mínima. Mesmo que haja suspeita de somatização, a aceitação da

psicoterapia dependerá de uma injunção médica que goze de credibilidade. Suponhamos

que os conflitos, dificuldades e sintomas acima mencionados, considerados pelo

psicanalista psicosomatista como decorrentes da "desafetação", pobreza da vida

imaginativa, etc., ocorram em pessoas com um ritmo intenso de atividades profissionais e

sociais. Caberia diagnosticá-las como "normopatas", prisioneiras de "pensamento

operatório", portadoras de uma "depressão essencial" ou "neurose de conduta", manifesta

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pelo recurso ao álcool, nicotina, calmantes, hipnóticos, adição a outras drogas, televisão,

filmes pornográficos, esportes radicais, etc.?

De outro ângulo, esse tema já foi bastante debatido, habitualmente através da pergunta:

se nenhum ser humano é imune ao conflito, não deveria então a psicanálise (ou

psicoterapia) ser indicada para todos? Tal atitude repousa na constatação de que a

tendência ao que se chama, justificadamente ou não, de "fuga", é extremamente comum

(senão universal). Por outro lado, esquece-se que o conceito de realidade, subjacente a tal

definição, permanece problemático. A mesma discussão já foi travada em relação à

loucura. Não seria o caso de retomá-la, mas cabe mencionar alguns de seus aspectos.

Numa discussão desse naipe, termos como "realidade", "fuga", e "alienação" são

geralmente utilizados para separar o correto do inadequado, o saudável do patológico.

Como pano de fundo, perfila-se um juízo de valor, subrepticiamente amparado na

nosografia.

O diagnóstico em psicanálise é um ato bem mais controverso do que se pensa,

principalmente porque faz supor que o psicanalista tem como detectar, por intermédio de

sintomas e outros indícios, em uma ou mais entrevistas, o perfil do conflito e suas

condições básicas, bem como conjeturar sobre a respectiva etiologia e enquadrar o

candidato num escaninho nosográfico mais ou menos definido. Trata-se de uma

expectativa inconciliável com o método psicanalítico, já que a associação livre e a atenção

flutuante pressupõem um não saber prévio em ambos os protagonistas, que funda a

própria possibilidade da démarche psicanalítica. Ou seja, em psicanálise, a descrição (termo

preferível a diagnóstico) dos conflitos que afetam uma pessoa, seria feita a posteriori, na

forma de um estudo de caso, e não antecipadamente.[25]

Diante do argumento de que a atitude diagnosticante é imprescindível para evitar o erro

de aceitar pacientes "fronteiriços" (borderline), cabe perguntar sobre a confiabilidade dos

critérios de que dispõe o psicanalista para decidir se uma pessoa é analisável ou não. De

um ponto de vista agnóstico, o diagnóstico aparece como uma pretensão irrealizável.

Nunca se poderia saber previamente se o candidato é ou não "analisável", se "precisa" ou

não do "tratamento"; basta que ele o deseje e que o psicanalista se sinta capaz de

empreendê-lo. Reciprocamente, por mais que o psicanalista postule a absoluta

necessidade de sua intervenção, é preciso respeitar a decisão oposta, mesmo que se veja

nela o dedo da resistência.

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O "furor diagnosticante" gera o risco de patologizar praticamente tudo. Em relação à

psicosomática, o alcance desse gesto parece ainda maior, visto que ela lê a ausência da

queixa como o pior dos sintomas, digno de um prognóstico bastante desfavorável.[26]

Joyce McDougall relata, em Teatros do Corpo, o caso de um paciente alcoólatra, cuja

psicanálise, bem sucedida, foi seguida de uma fase criativa em que ele se projetou como

artista internacionalmente reconhecido. Anos depois, porém, volta ao psicanalista para

informá-lo de um câncer, que se revelaria fatal e "cujos sintomas anteriores não tinham se

manifestado nos teatros de seu 'eu'. (...) as palavras tinham ficado sufocadas, o que fez

com que não tivesse sido possível ouvir qualquer advertência (...)".[27]

McDougall dá por certo que o conflito oncogênico estava mudo porém presente e deveria

ter sido captado. Outorgar-se o poder de realizar essa leitura - diagnosticando (ou, mais

ainda, prognosticando) uma afecção orgânica pela palavra (ou, mais ainda, pelo silêncio),

retrata uma pretensão de saber e prever que excede em muito aquilo que caberia esperar

de uma psicanálise. Que doenças como o câncer sejam, via stress, relacionadas com o

comprometimento do sistema imunológico, não deveria ser confundido com a

possibilidade de detectar sua iminência no decorrer de uma psicanálise; que o stress possa

contribuir para a eclosão do câncer tampouco significa que seja sua causa obrigatória,

única ou principal. Ainda não há como medir a incidência do stress sobre o sistema

imunológico. E, finalmente, uma das expectativas plausíveis em relação ao trabalho

psicanalítico, efetuado dentro dos moldes clássicos, é que incida sobre os conflitos

causadores do stress, prevenindo a patologia e obstaculizando o desenvolvimento de

afecções funcionais ou estruturais já desencadeadas. Desde que haja tempo hábil. E

certamente não possuímos instrumentos nem critérios para aferir a última condição

mencionada.

McDougall certamente não o ignora. "Ocorre freqüentemente também que certos

fenômenos psicosomáticos, assim como certas tendências recorrentes a adoecer

fisicamente, desaparecem como efeito secundário inesperado do tratamento psicanalítico,

às vezes sem ter sido feita a investigação específica da significação subjacente de tais

doenças na economia psíquica".[28] Do ponto de vista psicanalítico, nada haveria de

inesperado nisso. A sintomatologia dita neurótica tampouco é investigada especificamente.

A investigação específica, aliás, contraria frontalmente o método psicanalítico, expresso

pela regra fundamental (associação livre e atenção flutuante). A surpresa da autora com o

fato de que o trabalho psicanalítico, sem visar diretamente o sintoma, possa incidir sobre

ele, é que é surpreendente. Em psicanálise, devido à resistência, a menor distância entre

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dois pontos não é a linha reta. O psicanalista percorre o labirinto às cegas, sem saber de

que maneira a errância do discurso vai privando o minotauro das suas vítimas sacrificiais.

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As questões de ordem ética e metodológica, por importantes que sejam, abrangem parte

da discussão suscitada pela psicosomática. Não menos importantes são os problemas

teóricos.

Na concepção dos psicosomatistas, o corpo, além de depositário das emoções não

elaboradas, constitui também o pólo gerador de um afluxo de excitações destinado em

princípio ao psiquismo. Na base desse raciocínio encontra-se a definição de pulsão como

energia psíquica de origem somática, muito mais próxima da primeira teoria das pulsões

(sexualidade vs ego) do que da segunda (Eros vs Thanatos).[29]

Não por acaso Christophe Desjours mantém o emprego do termo "instinto" que indica, na

sua perspectiva, a anterioridade do orgânico em relação ao psíquico. Segundo esse ponto

de vista, nem sempre ocorreria a subversão do primeiro pelo segundo ou, em outros

termos, não é inevitável que o instinto se transforme em pulsão. Na mesma perspectiva

evolucionista, o psiquismo é descrito como um nível superior de integração, cuja falência

abandonaria as emoções à órbita corporal, resultando na desorganização progressiva do

somático, causa das afecções orgânicas. Esse processo não só é diferenciado mas também

considerado incompatível com o da conversão histérica. Da mesma forma que o recalque,

operação responsável pela neurose, seria inconciliável com a forclusão, mecanismo

específico da psicose, a ocorrência da somatização é descartada nas neuroses "bem

mentalizadas".

Para além da discussão acerca da precisão atribuível à nosografia[30], a incompatibilidade

entre neuroses bem mentalizadas e somatização não parece ter o aval dos fatos. Assim,

Desjours reconhece "...ser inegável que há neuróticos e psicóticos autênticos que

somatizam", o que coloca em cheque "...uma das pedras angulares do edifício teórico, a

saber, a já clássica incompatibilidade entre psicose e neurose, de um lado, e somatização,

de outro", dificuldade que não diminui quando se acrescenta "...ao diagnóstico de neurose

ou de psicose, como faz Marty, o adjetivo 'bem mentalizada' ".[31] Segundo o testemunho

de McDougall,

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"...nem todos os meus normopatas somatizavam"[32] e "...convém sublinhar que nem

todos os pacientes que exibem todos os sinais de alexitimia e de pensamento operatório

adoecem somaticamente e que muitos outros que sofrem de um determinado número de

afecções psicosomáticas graves não apresentam a carapaça operatória alexitímica que

caracteriza os pacientes psicossomáticos que têm sido mais estudados nas pesquisas e nos

serviços de psicosomática. Ao contrário, na minha prática, tive oportunidade de analisar

um determinado número de pacientes que sofriam de doenças autenticamente

psicosomáticas e que viviam intensamente envolvidos com suas experiências afetivas e

com sua realidade psíquica."[33]

A solução encontrada por McDougall é postular, ptolomaicamente, uma "histeria arcaica",

que manteria a anterioridade do somático sobre o psíquico, salvando assim o

"geocentrismo" organicista da psicosomática. Mas assim como acontece com a obsessão e

a somatização, verifica-se que sintomas histéricos e sintomas psicosomáticos também

podem coexistir na mesma pessoa, enquanto manifestações diferentes do mesmo conflito.

O sintoma histérico traduz a concepção anatômica do leigo, como dizia Freud; trata-se de

uma pseudo-somatização. Inversamente, o sintoma psicosomático possui realidade

orgânica. Diagnosticar os somatizantes "capazes de expressar afetividade " como

portadores de histeria arcaica[34] constitui uma tentativa algo canhestra de salvar a

diferenciação entre somatizantes e mentalizantes ao preço de uma inovação conceitual

mais semelhante a um malabarismo verbal.

Marty também atenuará posteriormente a incompatibilidade entre somatização e neuroses

bem mentalizadas. Pessoas enquadradas na última categoria poderiam eventualmente

sofrer de uma depressão essencial, momento inicial da desorganização que, nesse caso,

regrediria até um ponto de fixação edipiano, mas sem prosseguir na direção de uma

doença mortal. As afecções de caráter evolutivo se manifestariam naqueles radicalmente

separados de suas próprias emoções, situação que mimetizaria a vivência do bebê, incapaz

de lidar com a própria afetividade de outra maneira senão através da descarga no

soma.[35] Para Marty e os demais teóricos contemporâneos da psicosomática, as pré-

condições da somatização, portanto, jazem no período pré-edipiano ou do "Édipo

precoce".

Assim, a gravidade da patologia torna-se o critério para diferenciar as neuroses não

mentalizadas (neuroses "de caráter" e "de conduta", bem como a "depressão essencial"),

das neuroses e psicoses "bem mentalizadas". Até que ponto tais suposições decorrem de

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interpretações feitas sobre experiência clínica ou se apóiam em pura petição de princípio,

é algo difícil de discernir. Seja como for, Marty propõe igualmente, a meio caminho entre

as neuroses mal e bem mentalizadas, a categoria da "mentalização incerta", em que,

[1] A história da primeira droga psiquiátrica planejada é objeto de uma notável descrição

feita por Alberto Pérez Medina, psiquiatra colombiano da Universidade de Quindío, em "El

uso de la prometazina en Psiquiatría: una práctica obsoleta".

(Http: www.geocities.com/Athens/Parthenon/8584/Fenergan.hmtl).

[2] George Groddeck, que cunhou o termo 'isso' (id) com que Freud batizou a instância

vulcânica da segunda tópica, defendia a idéia de que as doenças obedecem a

determinações inconcientes.

[3] Ou "Livro do Id", se preferirmos traduzir o título latinizando o pronome indeterminado.

[4] Ou de determinado enfoque psicanalítico, em que o inconsciente é definido como

linguagem.

[5] Embora tal afirmação pareça justa em sua formulação genérica, ela pode ser

particularizada, caso em que a incompatibilidade em questão descreveria apenas as

relações entre a psicosomática e a psicanálise estrutural. (Como já assinalado

anteriormente, a expressão "psicanálise estrutural" substitui vantajosamente "psicanálise lacaniana", na

medida em que Lacan não é o único teórico autor a situar a linguagem em posição

epistemológica e também porque o movimento lacaniano já está passando pelas divisões

habituais a que toda obra de peso é submetida pelas inevitáveis reavaliações e

interpretações, processo que afeta a articulação entre psicanálise e lingüística).

[6] Independentemente de eventuais divergências, principalmente em relação à questão

da terapêutica, caberia recomendar, com relação a esse ponto, a leitura de Psicobiologia

da Cura Mente-Corpo, de Ernest Lawrence Rossi.

[7] (Por parte do psiquiatra ou do "drogadito"). O mesmo raciocínio é aplicado ao efeito

de outras alterações fisiológicas (como as provocadas por patologia cerebral e

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intervenções cirúrgicas) sobre o discurso (psiquismo). Ou seja, em nossa hipótese, os

estados discursivos obedecem a uma clivagem (manifestação/latência) e não são criados

pelas alterações anatomo-fisio-patológicas, embora estas possam agir por inibição ou

liberação, alterando a relação manifestação/latência vigente. Com referência a essa

questão, cabe perguntar ainda se a patologia cerebral pode ser inserida no campo da

psicosomática. Christophe Dejours responde afirmativamente no livro Repressão e

Subversão em Psicosomática.

[8] Cf. Psychosomatic Diagnosis (1948), de H. Flanders Dunbar.

[9] Rosine Debray descreve a concepção de Pierre Marty acerca dos pontos de fixação, aos

quais se regride por ocasião de um trauma, como dependentes de fatores constitucionais

"...genéticos, em sentido amplo, se incluirmos as fixações in-utero...", os quais, por sua vez,

se "...combinarão com os fatores ambientais, ligados essencialmente às peculiaridades das

relações primitivas com a mãe, relações em que, no segundo volume de sua obra (1980)

[La complexité des relations objectales, p.29], o autor insiste, tanto quanto nas

eventualidades da história a ser vivida pelo sujeito". (Rosine Debray, O equilíbrio

psicosomático, p. 13).

[10] Proposta pela Escola de Paris e adotada também pelas demais correntes.

[11] Repressão e Subversão em Psicosomática, Christophe Dejours, p. 33.

[12] A esse respeito, ver Psicossomática, de Rubens M. Volich, pp. 107-134.

[13] Ao passo que na teoria do trauma freudiana, a sintomatologia se expressava

fundamentalmente através de perturbações emocionais, caracterizadas pela exacerbação

dos sentimentos. As hipóteses desenvolvidas pela psicosomática se encontram mais próximas da teoria catártica de Breuer.

[14] Consideramos o enfoque jacksoniano pertinente apenas em seu próprio terreno.

Conforme argumentação desenvolvida no final desde capítulo, a explicação jacksoniana

dos fenômenos de inibição e liberação, decorrentes de disfunções e lesões cerebrais,

permanece plenamente vigente.

[15] Forclusão, em português. Termo de origem jurídica que indica a anulação de uma

ação judicial em virtude do não cumprimento de uma etapa considerada imprescindível

pelos códigos legais.

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[16] A hesitação entre adotar o modelo da psicose ou o da neurose atual para focalizar

o sintoma psicosomático transparece na seguinte frase de Joyce McDougall: "Talvez

até possamos falar, por analogia com as 'neuroses atuais' de Freud, em psicose 'atual'

". (Teatros do Corpo, p. 20).

[17] Joyce McDougall (Conferências Brasileiras, Ed. Xenon, Rio de Janeiro, (1987), pg. 26).

Cabe notar que essa mesma descrição poderia ser empregada em relação à etiologia da

psicose.

[18] Já que a hipocondria, também incluida por Freud na categoria das neuroses atuais,

era (e é) definida pela crença em sintomas somáticos inexistentes.

[19] Já a homeopatia sempre norteou sua intervenção levando em conta o psicológico,

mesmo que não tenha desenvolvido essa questão teoricamente. Entre os próprios médicos

alopatas encontrar-se-ão todos os graus possíveis de reconhecimento da participação do

fator psicológico na patologia (inclusive o grau zero).

[20] "O psicosomatista - isso é indiscutível - trava uma batalha contra Tanatos", escreve

Dejours (Repressão e subversão..., p. 49).

[21] Sobre esse ponto haveria muito o que discutir, principalmente em relação a como o

psicosomatista trata a informação recebida do paciente sobre a remissão, o controle ou a

permanência da patologia.

[22] Dejours discute essa questão, oferecendo um outro ponto de vista, segundo o qual a

relação transferencial e contra-transferencial reintroduziria necessariamente o sentido no

sintoma psicosomático, pois ele estaria sendo dirigido, enquanto queixa, ao analista.

(Ver As doenças somáticas: sentido ou sem-sentido, C. Dejours, Pulsional, Revista de

Psicanálise, Ano XII, Nº 118, fevereiro de 1999).

[23] O termo mais adequado seria "conversão".

[24] Volich comenta a esse respeito: "Poderíamos entretanto questionar quanto tais

características, sem dúvida encontradas nos pacientes examinados, são efetivamente

específicas da doença coronariana ou do câncer, ou se não se manifestariam também em

outros quadros. A experiência clínica mostra que um mesmo traço, ou conjunto de fatores

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de personalidade, pode ser encontrado em quadros clínicos diferentes, não sendo

específico a um único tipo ou grupo de doenças". (Op.cit., p. 90).

[25] Cf. Recomendações aos médicos que exercem a análise (S. Freud).

[26] O lacanismo, por sua vez, lê a queixa (o pedido de análise) como o pior dos

sintomas... O in medium sed virtus freudiano traduz uma firme recusa a aprioris do gênero.

[27] Teatros do Corpo, pp. 2-3.

[28] Idem, p. 3.

[29] Em virtude de sua complexidade, esta questão tampouco poderia ser desenvolvida

aqui. Mesmo assim, cabe lembrar que a primeira teoria das pulsões ainda sofre a

influência do darwinismo (ego definido como representante do organismo para fins

adaptativos, sexualidade teleologicamente subordinada à preservação da espécie). A

segunda, formulada na seqüência da teorização da sublimação e da psicose, e ainda que

postulando um apoio biológico (sumamente especulativo, aliás), afasta-se dos

determinantes ambientais e orgânicos, descrevendo o conflito humano através das

tendências opostas de aceitar ou não a relação com o objeto (Eros x Thânatos).

[30] Só para indicar dois impasses nosográficos, entre tantos, que retratam a dificuldade

de definir categorias estanques, lembremos que Freud considerava a mania-depressão

("distúrbio bipolar") como uma "neurose narcísica", noção que combina as categorias de

neurose e psicose, e Melanie Klein afere a presença de "núcleos psicóticos" em

"neuróticos".

[31] Repressão e subversão em psicosomática, p. 32.

[32] Teatros do corpo, p. 30.

[33] Idem, pp.38/39.

[34] Não ajuda muito na caracterização dessa categoria nosográfica construída ad hoc a

afirmação de que nela o conflito se vale "...do corpo inteiro..." para manifestar-se, "...sendo

que esse tipo de de organização visa a constituir uma aparência de identidade subjetiva e

a proteger contra a morte psíquica".

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[35] Trata-se de uma concepção que confere ao bebê uma afetividade própria definindo-o

como sujeito, incompatível com a descrição segundo a qual o infans está indiferenciado

ou na posição de objeto (se passou pelo estádio do espelho).

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