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ANO 7 - NÚMERO 30 - ROQUE GONZALES, RS - JUNHO/JULHO 2016 ADÉLIA EINSFELDT I ALFREDO PÉREZ ALENCART I CÍCERO GALENO LOPES I DÉRCIO BRAÚNA I EMIR NUNES MOREIRA ENÉAS ATHANÁZIO I INÊS HOFFMANN I JULIO RIBAS I NELSON HOFFMANN I MARIA DE LOURDES ALBA MILTON IVAN HELLER I PAULO R. DERENGOSKI I PEDRO DU BOIS I RENATO SCHORR I RUY NEDEL I ZOOLER.ZOOLER TONY HOFFMANN

O Nheuçuano - Nº30 Junho/Julho 2016

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Page 1: O Nheuçuano - Nº30 Junho/Julho 2016

ANO 7 - NÚMERO 30 - ROQUE GONZALES, RS - JUNHO/JULHO 2016

ADÉLIA EINSFELDT I ALFREDO PÉREZ ALENCART I CÍCERO GALENO LOPES I DÉRCIO BRAÚNA I EMIR NUNES MOREIRA ENÉAS ATHANÁZIO I INÊS HOFFMANN I JULIO RIBAS I NELSON HOFFMANN I MARIA DE LOURDES ALBA

MILTON IVAN HELLER I PAULO R. DERENGOSKI I PEDRO DU BOIS I RENATO SCHORR I RUY NEDEL I ZOOLER.ZOOLER

TONY HOFFMANN

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I 02 I Ensaio/Especial

Editor, Redator e Diagramador: Marco Marques Assistente de Redação: Marcela Santos

Jornalista colaboradora: Andrea Fioravanti Reisdörfer

Rua Independência, 841- sala 01 - centro - 97.970-000 - Roque Gonzales - RS - [email protected]

Foto de Capa: Tony Hoffamnn

COLABORADORES:

OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES E NÃO REPRODUZEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO JORNAL

www.nhecuanos.com.br - http://nhecuanos.blogspot.com

Número 30 - junho/julho 2016

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[email protected]

ADÉLIA EINSFELDT, ALFREDO PÉREZ ALENCART, CÍCERO GALENO LOPES, DÉRCIO BRAÚNA, EMIR NUNES MOREIRA, ENÉAS ATHANÁZIO, INÊS HOFFMANN, JULIO RIBAS, NELSON HOFFMANN, MARIA DE LOURDES ALBA,

MILTON IVAN HELLER, PAULO R. DERENGOSKI, PEDRO DU BOIS, RENATO SCHORR, RUY NEDEL, ZOOLER.ZOOLER

Existem muitas teorias que explicam a origem do índio sul-americano. Uma das mais embasadas, sugere que as populações pré-históricas da América do Sul vêm da Ásia. O mapa acima mostra a grande possibilidade de travessia do estreito de Bering. Quando? À época da glaciação Donau que se iniciou há 2 milhões de anos e, portanto, dentro do paleo-lítico inferior ocidental 2.500.000 a 300.000 a.C. Tendo entrado na América do Norte por volta de 2.000.000 a.C., o homem da Pedra Lascada ter-se-ia disseminado pela América do Sul durante o Mesolítico Ocidental (14.000 a 7.000 a.C.), na Glaciação Würms (110.000/10.000 a.C.) a última acontecida no planeta Terra. O homem já estaria presente ao norte da América do Sul (área da atual Venezuela) lá por 14.000 a.C. Nos Andes, por volta do 9.000 a.C. No extremo sul (Patagônia), lá pelo 7.000 a.C.

As condições fisiográficas e biográficas do continente sul-americano condicionaram a formação de corredores de migração norte-sul na cordilheira andina e, para leste, através da Venezuela e Guianas atingindo a costa Atlântico. Por que estes corredores? Nestas regi-ões, as condições climáticas eram muito favoráveis à habitação do homem.

Seja qual tenha sido o rumo destas migrações humanas, elas acompanharam a cor-dilheira e são condicionadas à caça de animais de grande porte adaptados às zonas de grande altitude.

A antropologia brasileira tem-se interessado preferencialmente por alguns tipos par-ticulares de sítios arqueológicos, detendo-se inicialmente nas cavernas de Lagoa Santa, nos sambaquis e nos cerâmicos de Marajó e de Santarém. Mais recentemente, tem tratado tam-bém, das manifestações culturais arqueológicas caracterizada pela cerâmica tupi-guarani na região centro-sul do país.

Você e eu podemos abordar cada tipo de sítio em particular objetivando uma sino-pse das populações e culturas indígenas do Brasil pré-colombiano.

*Em adaptação de POPULAÇÕES E CULTURAS PRÉ-HISTÓRICAS DO BRASIL publicado pela Assessoria de Relações Públicas da Fundação Nacional do Índio - BSB, agosto de 1972, de Marília de Mello e Alvim

Homo pré-histórico na América do Sul

Magistral! O nheçuano é jornal ímpar. Muito obrigado por tudo. O jornal,

de fato, não paro de dizer, é extraordinário, todo ele. Cícero Galeno Lopes [email protected]

O índio tornou-se, hoje, o que é, exclusivamente por culpa dos peles-brancas.

Karl May (1842-1912), in Winnetou, 2º vol., p. 253

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Grande parte dos municípios missioneiros são da safra de 1965-66. Destes, olhando-se a data de sua fundação com vistas à colonização e povoamento, ver-se-á que Roque Gonzales é o mais jovem de todos. Enquanto os demais datam do início do século XX, ou antes, Roque Gonzales recém aparece no segundo quartel, em 1927. Roque Gonzales é, também, o povoado que mais rapidamente evoluiu. No mesmo ano de 1927, foi elevado à categoria de Vila e, logo depois, a 9º distrito de São Luiz Gonzaga. Com a emancipação de Cerro Largo, em 1954, passou a 2º distrito deste município. A partir de 1964, partiu para a própria emancipação.

MUNICIPALISMO

O Rio Grande do Sul teve nos Sete Povos das Missões seus primeiros núcleos organiza-dos de povoamento. A iniciativa pioneira dos padres jesuítas começou, em 1626, por São Ni-colau. Seguiu-se a fundação de Candelária e, em 1628, Assunção do Ijuí, no atual território de Roque Gonzales. Os povos missioneiros sofreram reveses, os índios demandaram à margem direita do rio Uruguai. Restaram alguns poucos, perdidos e caçados por bandeirantes e aventureiros. O Municipalismo, como entidade adminis-trativa, teve início, no Rio Grande do Sul, em 17 de Julho de 1767, com a criação da Vila de Rio Grande de São Pedro, por Provisão Real de Por-tugal. A Sede tinha por local o forte Jesus-Ma-ria-José, fundado por José da Silva Paes, e os li-mites eram vagos. A primeira divisão municipal do Estado aconteceu em 1809, quando foram criados quatro (04) municípios: Porto Alegre, Rio Gran-de, Santo Antônio da Patrulha e Rio Pardo. Esta região missioneira pertenceu a Rio Pardo. Em 1834, surgiu o Município de São Borja, passando a região missioneira à sua jurisdição. Em 1880, São Luiz Gonzaga emancipa-se e a região da futura Colônia Salto Pirapó passa a merecer atenção. Em 27 de Janeiro de 1927, é fundada a “Sede Roque Gonzales”. A EMANCIPAÇÃO No início da década de 1960, Roque Gon-zales não pensava emancipar-se. No entanto, a efervescência emancipacionista que se verifi-cava na região terminou contagiando a Comu-nidade. Até, de algum modo, terminou forçan-do a Comunidade a assumir-se como candidata à emancipação. Na época, o território do Município de Cerro Largo, além do próprio, era composto pe-los territórios dos atuais municípios de Porto Xavier, São Paulo das Missões, Roque Gonza-es, São Pedro do Butiá e Salvador das Missões. São Pedro do Butiá e Salvador das Missões são municípios recentes, mas os outros três vêm daquela ocasião. Porto Xavier e São Paulo das Missões de-cidiram emancipar-se. São Pedro do Butiá, tam-bém. O território de Roque Gonzales ficaria fraccionado entre os três.

Isto mexeu com os brios da Comunidade Roque-Gonzalense, que não concordou e deci-diu assumir-se. O fato prejudicou São Pedro do Butiá, que viu sua pretensão gorada. Porto Xa-vier e São Paulo das Missões lograram êxito, junto com Roque Gonzales. Em 1965-66.

A CAMPANHA A primeira reunião comunitária, visando a emancipação de Roque Gonzales, aconteceu no dia 08 de Agosto de 1964, na sede social do Clube 15 de Novembro. Da ata da reunião, des-taca-se: 1) O orador maior foi Manoel de Lima Proença, que explanou sobre vantagens e des-vantagens de ser município autônomo; e 2) Foi escolhida uma Comissão Prévia de Estudos, cu-ja diretoria ficou assim constituída: Waldemar Becker, presidente; Leocádio Ottmar Welter e José Evaldo Reichert, secre-tários; Pedro Canisius Horn e Beno Wilhelm, tesoureiros; Mons. Luís Thiago Kreutz, Antônio Fioravanti e Inocêncio Pereira de Brum, presi-dentes de honra. Esta a diretoria dos estudos. A Comissão total envolveu quase toda a Comunidade. Inclu-sive, foram escolhidas diversas subcomissões, com a finalidade de contatar e visitar as locali-dades e povoações vizinhas, para sondar a aquiescência ou não. Era um trabalho de união de forças, tudo voltado para o bem comum de Roque Gonzales. Por fim, a definitiva Comissão Emancipa-cionista, conforme “Credenciais” exaradas por Arno Mora, Diretor Geral da Assembleia Le-gislativa do Estado, em 28 de Agosto de 1964: José Evaldo Reichert, presidente; João Ri-cardo Adolfo Kist e Silvino Froehlich, 1º e 2º vice-presidentes; Aloysio Scherer e Antônio Jo-sé Pauli, 1º e 2º secretários; e Eugênio Henzel e Pedro Canisius Horn, 1º e 2º tesoureiros. Estes nomes aglutinaram forças, uniram a Comunidade e levaram a emancipação a bom termo. O MUNICÍPIO E SEU DIA A lei que cria o Município de Roque Gon-zales foi promulgada em 07 de Dezembro de 1965, leva o nº 5.134 e foi assinada por José Sperb Sanseverino, então Presidente da Assem-bleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. No dia 15 de Maio de 1966 foi oficialmente instalado o novo Município. Face ao regime mi-litar, não havia eleições e os cargos de chefes dos executivos municipais eram preenchidos por nomeação de interventores federais. Para Roque Gonzales, foi nomeado o Cap. Arão de Souza Antunes, do município de Estrela. A questão da comemoração do “Dia do Município” é uma questão de opção. Roque Gonzales, desde o começo, optou por comemo-rar o dia de sua instalação oficial como o dia do seu aniversário: 15 de Maio. Legislou sobre o assunto e oficializou a data. Assim, 15 de Maio é o Dia do Município. Em Roque Gonzales.

da união de um povo Roque Gonzales: a força

Nelson [email protected]

(Publicado em “Igaçaba” nº 36, Maio/2000, p. 12)

Roque Gonzales: a força da união de um povo

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I 03 I Ensaio

Uma data que só não cai no esqueci-mento porque é lembrada aqui e ali pelos jor-nais, com entrevistas de antropólogos ou re-presentantes de uma ONG supostamente de-fensora dos índios. Por vezes repetindo me-lancolicamente as mazelas do passado, rara-mente denunciando os crimes que continuam sendo praticados e acobertados pela velha impunidade de sempre. Não há o que come-morar mas há muito a lamentar. Por que raios então esse dia do índio? Esta história come-çou em 1940 no México. Antropólogos, pes-quisadores e curiosos reuniram-se na cidade-zinha de Patzcuaro, no I Congresso Indigenista Americano. Uma reunião que teve muito bla-bla-blá e pouquíssimos índios e que não deci-diu nada, a não ser consagrar o 19 de abril co-mo o dia anual do índio, sem que alguém se lembrasse de avisar os povos da floresta. No Brasil, a pedido do general Cândido Mariano da Silva Rondon e por decreto de 2 de junho de 1943, o presidente Getúlio Vargas decretou que o 19 de abril fosse dedicado aos índios, como nos demais países americanos. O falado descobrimento do Brasil já foi badalado de todas as maneiras. Poucos auto-res lembram que a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral representou parte da política expansionista de Portugal, segundo a lógica mercantilista de estabelecer e explorar colô-nias de além-mar. Para desgraça geral de to-das as tribos, os portugueses consideravam os indígenas como seres “sem alma” que deve-riam ser cristianizados e trabalhar de graça pa-ra honra e glória da metrópole e dos comer-ciantes lusos. E os índios que viviam sem su-bordinação alguma e não conheciam o con-ceito de riquezas baseadas no acumulação e rapina, viram-se constrangidos a trabalhos forçados, até para substituir as bestas de carga que na Terra de Sta. Cruz não existiam. A exploração da colônia começou com a exploração do índio, quase sempre com o amparo da Igreja católica. Há estimativas di-vergentes e pouco confiáveis, mas acredita-se que de três a cinco milhões de índios viviam no Brasil, divididos em tribos maiores ou me-nores, com idiomas aparentados, em sua maioria derivados da língua tupi-guarani. Com o massacre iniciado logo após o desem-barque dos marinheiros de Cabral e aventu-reiros que muito se admiraram da exuberân-cia das matas de um país tropical e da higidez e o asseio dos nativos que andavam nus e ba-nhavam-se nos rios várias vezes ao dia, per-deram-se mais de 1.200 dialetos e reduziu-se drasticamente a população.

A conquista dos povos pré-colombia-nos realizada pelas coroas de Portugal e da Espanha foi uma das mais sangrentas da his-tória da humanidade, referida pelo filósofo Michel de Montaigne: “… quantas cidades ar-rasadas, quantas nações exterminadas, quan-tos milhões de povos passados a fio de espa-da. Nunca a ambição humana chegou a pro-mover coisas tão horríveis e miseráveis”. An-tes da chegada de Colombo as Américas eram habitadas por enorme quantidade de povos, cerca de 500 a 700 milhões de pessoas ou 20% da população mundial em fins do século XV. Principalmente na América Central e ao noro-este da América do Sul, além do México e do Peru. Para alguns historiadores no restante do continente parece ter existido um grande va-zio, abrangendo a região platina, o Brasil, o Caribe e praticamente toda a América do Nor-te. Porém estudos mais recentes vieram pro-blematizar este quadro e as pesquisas feitas na Amazônia brasileira indicam concentra-ções maiores de povos do que admitia nossa vã sabedoria, cerca de cinco milhões de anos atrás, ou em tempos ainda mais remotos. Há controvérsias, mas predomina a hipótese de que índios do Brasil e da América espanhola chegaram a estas paragens através de grandes migrações, desde a Sibéria e o Nordeste da Ásia. Persistem muitas dúvidas e isso se de-ve em grande parte ao nosso sistema educa-cional arcaico. Os livros didáticos ainda omi-tem questões importantes, relativas ao papel dos povos pré-colombianos, a distribuição es-

pacial das populações, sua diversidade cultu-ral, o nível de desenvolvimento tecnológico, compreendendo desde a elaboração de ca-lendários astronômicos que exigem cálculos matemáticos avançados e o estudo do univer-so, até mentalidades animistas (a crença de que todos os seres naturais possuem alma). Assim como a presença de culturas que reme-tem ao período paleolítico, o mais antigo da pré-história, o que não é o caso das tribos en-contradas no Brasil que tinham suas leis (em-bora não escritas), praticavam a agricultura e tinham habilidades manuais representadas por suas armas, cestaria e cerâmica diversifi-cadas, redes, enfeites, colares, braçadeiras e utensílios de cozinha, armadilhas para pescar e por aí vai. Dito isso fica evidente que povos canibais e grupos coletores e caçadores convi-viam com civilizações que possuíam conheci-mentos científicos, desenvolvimento comer-cial, produção coletiva e técnicas de irrigação. O confronto com os europeus foi dramático para os indígenas que tiveram seus padrões culturais transformados, em virtude da acul-turação sofrida. A maioria dos povos simples-mente desapareceu, como os tupinambás da costa brasileira. Outros mantiveram-se preca-riamente à custa de incessantes deslocamen-tos para fugir do homem branco, das doenças que ele trazia e do trabalho forçado nas minas e serviços gerais. Além dos ataques corriquei-ros aos seus aldeamentos que resultavam em mortes e aprisionamentos, e na separação en-tre pais e filhos. Os aventureiros que aqui che-gavam em bandos vinham solteiros. Diz a len-

da que as índias de grande beleza e sensua-lidade ofereciam-se para gerar os primeiros mamelucos que tempos depois integrariam as tropas de bandeirantes para chacinar e apri-sionar índios de centenas de etnias em todo país. Mas é certo que as mulheres que repu-diavam o assédio dos lusitanos eram espanca-das e estupradas. Há exceções como os povos guaranis e kaigangs que ora conformavam-se com os mé-todos dos conquistadores e dos colonos euro-peus que viriam mais tarde, ora resistiam dis-putando palmo a palmo as terras que haviam sido concedidas aos europeus em léguas. Lu-tavam de peito aberto contra inimigos bem armados e bem nutridos, ou desenvolviam to-caias e práticas de guerrilha que semeavam o pânico entre os latifundiários, os colonos, os jagunços e os militares destacados para exter-miná-los. Estes e outros episódios e fatos que nos enchem de vergonha e repugnância são relatados neste livro, com algumas revelações surpreendentes. Entre elas a existência de um número maior de indígenas entre Mato Gros-so e o Rio Grande do Sul do que na Amazônia, que permaneceu isolada e com precárias co-municações durante séculos, o que permitiu a sobrevivência de povos que naqueles estados foram exterminados. O Paraná foi um dos mais castigados pela violência dos europeus, registrando-se nada menos de cinco ciclos de crimes hediondos contra os indígenas. Portu-gueses e espanhóis alternaram-se e aliaram-se nesta empresa sinistra. Particularmente no período em que Portugal foi subordinado à coroa espanhola, entre 1580 e 1640, quando se intensificou a caça aos índios, provocando o esvaziamento demográfico de extensas áre-as, não só no Paraná mas também em Santa Catarina. Para isso tivemos que consultar uma extensa bibliografia, recolhendo informações com espírito crítico alerta. Embora discorde-mos aqui e ali de suas interpretações e conclu-sões, é obrigatório reconhecer a contribuição de cada um, os esforços e pesquisas que reali-zaram para manter viva a tragédia dos índios brasileiros. Lembrar e relembrar é preciso, pois um povo que não tem memória não tem história.

Milton Ivan HellerJornalista e Escritor

Prefácio próprio do livro do autor: Os índios e seus algozes

[email protected]

Por que 19 de abril é o dia do índio?

Nessas noites xucras, o retinir de cordas é o repi-nicar de sentimentos! A gente se encolhe com o rigor da invernia, então verte na memória, a saudade do violão de Noel, que solene nos dizia, que nessa pampa, não há elo com a hipocrisia. Noel Guarany e seu violão - iniguais - em qualquer tempo! As lembranças fazem gosto, as payadas afloram, no seu teor filosófico, a universalidade do conteúdo, a visão futurista, ainda que lastreado no passado de sua gente e na sucessão da estirpe gaúcha, parecem produ-tos das fornalhas de São João Batista! Belo legado, profunda saudação à querência missioneira, reduto de Nheçu, onde Noel se refugiou por alguns anos, num misto de exílio, talvez, para reen-tranhar-se na história de sua gente! De lá, na "voz" do pala velho, fez do violão a sua espada e revolucionou a América Latina. No seu xucro profetizar, tal um estan-darte heroico, se antepôs ao colonialismo, feito uma muralha intransponível! O protagonista da vertente de musicalidade tipicamente localizada.

Noel, um misto de mito, lenda, herói, vanguar- deiro, um sinuelo, mas, antes de mais nada, um talento autóctone. Autodidata, retratou as gentes, a história, os desmandos, as desditas, a insensibilidade, a desu-manidade. O grande talento não fez fortuna, não construiu patrimônio econômico, mas deixou um legado insupe-rável no campo artístico e cultural. E, preciso que se diga, inalcançável no contexto musical. Os tinidos do seu violão jamais alguém haverá de alcançar. Noel, um estirpe da raça altiva que não se rendeu nem mesmo às grandes gravadoras, ainda que lhe impusessem o isola-mento. Retovado, fez o seu próprio isolar-se, para cons-truir um monumento homérico, onde reinará soberano para todo o sempre.

Renato Jacob SchorrEscritor membro da Academia Santo-angelense de

Letras, autor de Garupa Gateada, entre [email protected]

Guarany Noel

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I 04 I Ensaio/Evento

Nos primeiros tempos, as reduções jesu-íticas não atraíam os Guarani. Com o tempo perceberam que elas se constituíam na melhor proteção contra as sortidas escravagistas de espanhóis e portugueses: Arcángel, San Tomé, Los Reyes, Tapes e Yapeyú. Logo se tornou ne-cessário que elas tivessem governo, tribunais de justiça, milícias organizadas e até mesmo sistemas de contabilidade. A formação das reduções não se fez sem dificuldades: muitas divergências surgiram e alguns missionários foram sacrificados, como o padre Rodriguez, que teve a cabeça aberta por um golpe de ma-caná desferido pelo cacique Niezú. Trinta anos levam as Missões para se con-solidar como enorme território livre completa-mente independente das coroas de Europa, enorme nação indígena onde o homem branco nem sequer punha os pés. Até que os mame-lucos paulistas, estes desbravadores de sertão e alargadores de fronteiras naturais, sempre destruindo tudo em busca de riquezas e “força de trabalho”, caem como bestas-feras sobre as Missões jesuíticas. Milhares de índios postos a ferro e levados escravizados para os planaltos dourados de Piratininga. Como “índio escravi-zado é índio morto”, posto que (ao contrário dos negros de África), não se sujeita à escravi-dão, todo aquele esforço bélico resultava inú-til. Em 1725 Buenos Aires tinha uma popula-ção de cinco mil habitantes, enquanto algumas reduções jesuíto-guaranis ultrapassavam vinte mil almas. Na verdade os aglomerados de ín-dios guarani eram grandes cidades, enquanto as chamadas “grandes cidades” dos portugue-ses e espanhóis na América eram simples aglo-merados. Os nascimentos entre os índios eram intensamente estimulados pelos padres. Não havia solteiros nos redutos e todos eram com-pelidos a casar cedo. O tempo para o sexo era sagrado. Todos os dias em todas as Missões os sinos soavam bastante tempo antes da hora de sair das redes. As cidades guaranis construídas sob a ins-piração dos jesuítas eram todas semelhantes entre si. As casas de pedra se agrupavam em quarteirões espaçosos, as ruas retilíneas pos-suíam intensa arborização. Em todos os redu-tos havia pelo menos um hospital e um asilo para velhos, as escolas sempre eram cercadas por jardins floridos. No centro de cada cidade indígena destacava-se a monumental praça com bancos e árvores frutíferas. Em cada canto da praça uma cruz de madeira trabalhada. Do-minando tudo, a principal construção era a Igreja de pedra, no interior da qual estavam as imagens de santos feitas pelas próprias mãos dos escultores indígenas. Ali não existiam os becos e vielas sombrias que até hoje caracte-rizam aquilo que os europeus chamam de “ci-dades”.

Suaves e bem construídos canais de irri-gação levavam água às terras que os jesuítas haviam ensinado os guarani a cultivar e onde floresciam grandes plantações de milho, trigo, arroz, cana, algodão, fumo e cânhamo. O agrô-nomo chefe havia transmitido aos índios a arte de cultivar pomares com frondosas laranjeiras, pessegueiros e parreirais. Se não havia metal faziam arados de madeira dura ou de osso. Tra-balhava-se o algodão nos teares e o vinho era exportado para as cidades do Prata. A principal fonte de renda provinha das imensas planta-ções de erva-mate e do couro bovino. As estân-cias de criação se perdiam na distância dos horizontes. Não havia cercas, nem donos de boiada. Só Yapeyú chegou a ter mais de qui-nhentas mil cabeças de gado! A indústria guarani-jesuítica sofria com a falta quase total de metais. Não existiam minas nas Missões e a importação vinha das lonjuras de Coquimbo, no Chile. Graças a isto puderam ser fabricados canhões e sinos. Grandes pe-dreiras eram exploradas para servir de cal-çamento às ruas dos redutos e diversos esta-leiros fluviais foram construídos nas margens do rio Uruguai e no estuário do Prata. Enormes olarias entraram em funcionamento e trinta e oito teares funcionavam apenas em Yapeyú. Em todas as reduções começaram a surgir pin-tores, escultores, marceneiros, serralheiros e fundidores. Frei Charles Franck, um tirolês de cabelos grisalhos, ensinou a fazer relógios primitivos. A primeira oficina de impressão de

toda a América Latina foi instalada na Repú-blica dos Guaranis. Aí foram impressos catecis-mos, dicionários, livros de canto e numerosos trabalhos linguísticos. Tudo foi destruído pelos civilizados. Cada índio seguia determinada profissão de acordo com a inclinação. A maioria dedica-va-se à agricultura ou ao pastoreio. Os que ti-nham tendência artística cultivavam música, através da harpa (instrumento ainda hoje pre-ponderante no Paraguai), ou então de violões, violinos, guitarras, tambores e pandeiros espa-nhóis. Os mesmos instrumentos que os árabes haviam deixado como lembrança de suas in-cursões pela península ibérica. Suas igrejas monumentais de pedra talhada e madeira rica-mente esculpida também foram incendiadas. A que mais tempo durou foi a de Santa Rosa, no Paraguai, carbonizada apenas em 1883 quan-do seus ouropéis e pratarias foram roubados por soldados que se diziam cristãos, às ordens da coroa ibérica. Cada redução se especializava mais do que as outras em determinado ramo da criação artística. Em Loreto se faziam as me-lhores esculturas, em San Francisco Javier ela-boravam-se os tapetes mais requintados. De San Juan vinham os melhores instrumentos musicais. Em Apóstoles fundiam-se os melho-res sinos. Os mamelucos, de cabelo encarapinha-do, e nariz adunco, se dizem cristãos e no entanto têm o coração mais cruel que o dos bárbaros de Átila. Abençoados pelo Sacro

Colégio de Piratininga, eles calcam aos pés to-das as leis do Cristo. Saqueiam, queimam e matam tudo o que encontram pela frente. O bravo cacique Curitá é apagado por um arca-buz quando tenta defender um padre jesuíta espancado. Até o chefe Giraverá foi amarrado pelo pescoço e conduzido para o cativeiro. Pelo menos em duas ocasiões os Guarani vão inflin-gir derrotas humilhantes aos portugueses nas portas da Colônia de Sacramento. Chegam a fabricar pequenos canhões e organizam uma rápida flotilha fluvial de barcos leves e canoas que se torna absoluta em todos os grandes rios da região da bacia do Prata. Excelentes rema-dores e nadadores, sobem os rios com presteza e caem de surpresa sobre a retaguarda dos acampamentos inimigos. Não descuidam a de-fesa de suas cidadelas. Profundos fossos e altas muralhas são construídas em todas elas. Du-rante os tempos de paz, intensificam os treina-mentos militares. Os descendentes de Pizarro - gringos malombentos que assaltaram o continente pa-ra saqueá-lo até o último grão de poeira - não aceitariam facilmente a humilhação da derro-ta. O maquiavelismo da Corte dos Sifilíticos acabaria por descobrir uma utilidade política nas Missões. Pesados tributos passam a ser cobrados dos indígenas e a cavalaria guarani começa a ser utilizada contra outros irmãos ín-dios. Em 1702 obrigam os charrua do Rio Gran-de a arrastar o nariz no pó. Atacam e aniquilam a experiência revolucionária da Comuna de As-sunção. Finalmente são reconhecidos pelo rei de Espanha como a mais forte barreira à per-petração dos mamelucos. Os portugueses per-cebem o perigo e mandam guarnecer os cam-pos de Serra Acima, em Santa Catarina, para impedir que a penetração jesuítica chegue até o norte. Índios caigangue e xokleng são utili-zados pelos lusitanos para impedir que os gua-rani atravessem para a margem direita do rio Pelotas. Os campos da vacaria jesuíta têm seu limite máximo no Passo da Guarda. O Marquês de Pombal e os pedreiros-livres bem sabem o perigo que representa a comunidade guarani. Vão cortá-la pela raiz, sangrá-la até a última go-ta para que dela não reste nem sinal. De tudo isso a memória dos homens po-de dar fé, embora muitos, como os exilados de Comblença, nada aprendam com o fluir do tempo. O veredicto da história, porém, será implacável. Os índios guarani constituíam o povo mais miserável da América, aos quais se chegou a negar o direito de receber os sacra-mentos, sob o pretexto de que eram “desprovi-dos de razão”. No entanto, foi o povo ameri-cano que durante um largo período conseguiu escapar à sanha do colonizador.

Sangue GuaraniPaulo Ramos Derengoski

Jornalista e escritor End.: Cx.Postal, 526 - CEP 88500-000 - LAGES - SC

Autor de “A Saga dos Guarani” e “A Sangrenta Guerra do Contestado”, entre outros.

Cavalgadas Nheçuanas Guarani

Cavalarianos postados às margens do rio Ijuí. Há 4 séculos este território eradominado por tribos guarani, lideradas pelo cacique e xamã Nheçu.

Salto Pirapó, Roque Gonzales, Terra e Sangue das Missões. Menino observaa natureza privilegiada onde os guarani buscavam a subsistência e o lazer.

Foi realizada, dia 21 de maio, em trilhas pelo interior do município de Roque Gonza-les, a sexta edição da Cavalgada NheçuanaGuarani. A cavalgada, que faz parte do Ma-nifesto Nheçuano (evento oficial do muni-cípio, não realizado no ano de 2015 por faltade verba), busca percorrer os caminhos de Nheçu - o grande líder Guarani, defensor doseu povo, da sua cultura e sua terra - e seusguerreiros quando eram donos deste chão. A Cavalgada Nheçuana, organizada porcavalarianos do CTN Querência de Nheçu,tem por objetivo conscientizar acerca dosfatos históricos vinculados à nossa origem. Da mesma forma, alerta para a necessi-dade de preservação do que restou de nos- sas matas e rios, sacrificados para a cons-trução de uma Usina Hidrelétrica.

GERMANO SCHÜÜR

JANE BECKER/cavalgadasnhecuanasguarany/Facebook

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Ensaio/Resenha I 05 I

No volume “100 Anos do Contestado Memória, história e patrimônio”, reunindo os trabalhos de seminário organizado e promovido pelo Ministério Público Estadual, em agosto de 2012, encontrei dois ensaios a respeito do monge João Maria, santificado pelo povo, e que é venerado em grande parte do Estado e até mesmo nos Estados vizinhos. Trata-se de “João Maria de Agostini: o monge da monarquia brasileira e das re-públicas americanas”, de autoria de Alexandre Karsburg, pro-fessor da Universidade Federal de Pelotas, e “Encantado no meio do povo. A presença do profeta São João Maria em Santa Catarina”, de Tânia Welter, professora da Universidade Federal da Fronteira Sul. Ambos merecem um comentário. O primeiro ensaio, fundamentado em pesquisas inéditas, pretende esboçar, tanto quanto possível, uma biografia do re-ferido monge e rastrear seus passos nas longas jornadas por ele empreendidas ao longo da vida. Começa lembrando que muitos indivíduos se apresentaram sob o nome João Maria, embora a crença popular acredite ter havido apenas um. (Nu-ma pesquisa a esse respeito, Nilson Thomé concluiu que o ima-ginário popular unificou o monge numa só pessoa.) O autor deste ensaio recorda que três foram os monges que se desta-caram no panorama do Planalto, cuja memória ficou pereniza-da. O primeiro foi o monge italiano João Maria de Agostini, o segundo, sob inspiração do primeiro, foi João Maria de Jesus, e o terceiro foi o monge José Maria de Santo Agostinho, o único que teve atuação na Guerra do Contestado. Observo que o segundo monge, conforme alguns pesquisadores, seria o sírio Anastas Marcaf, e o terceiro, o “monge de guerra”, seria Mi-guel Lucena de Boaventura, embora pareça que hoje esses da-dos sejam considerados duvidosos e, por isso, foram substituí-dos ou abandonados.

João Maria de Agostini, segundo o ensaísta, era italiano do Piemonte, nascido por volta de 1800, e chegou ao Brasil em 1844, declarando-se “solitário eremita”. Percorreu ampla re-gião do país, desde Sorocaba até Santa Maria. Segundo docu-mentos, foi registrada a sua presença em Sorocaba, vindo da província do Pará e desembarcando no Rio de Janeiro do navio “Imperatriz”. Nessa oportunidade o escrivão o descreveu co-mo “Frei João Maria” e traçou um perfil de sua aparência física, ressaltando ser “aleijado dos três dedos da mão esquerda”. Prosseguindo em incansáveis buscas, descobriu o ensaísta que um eremita de nome Juan Maria de Agostini, nascido em Piemonte, em 1801, havia peregrinado “por desertos e monta-nhas do sul dos Estados Unidos”, tendo antes passado por vá-rios países, como Brasil, Argentina, Peru, e México. Acabou sendo assassinado em circunstâncias não conhecidas no Novo México, deixando uma série de pertences. Na Vila de Melilla,

naquele Estado americano, existem uma placa no local onde o monge faleceu e uma lápide no cemitério em sua memória. Suspeita-se de que tenha sido vítima de índios selvagens. João Maria viveu no Brasil durante cerca de dez anos (1843/1852), inclusive em Santa Catarina, onde sua memória permaneceu para sempre. Expulso do Rio Grande do Sul, exi-lou-se na Ilha do Arvoredo, no litoral de Florianópolis. “Ao bus-car solidão na ilha, - escreve o autor - deparou-se com nova aglomeração, atraindo a atenção de pessoas como o pároco de Desterro, Joaquim Gomes de Oliveira e Paiva”. José Boiteux, num de seus contos, relata a presença do monge naquela ilha. João Maria foi santificado pelo povo e sua memória é ve-nerada até hoje. Suas pregações, práticas e crenças são conhe-cidas e transmitidas pelas gerações. É impressionante a exten-são de suas andanças pelas três Américas e o grande mérito deste ensaio consiste em ter demonstrado, através de pesqui-sas inéditas e criativas, que se tratava da mesma pessoa. É um trabalho deveras revelador sobre o qual esboçamos apenas breves notas, sendo impossível resumir aqui os inumeráveis detalhes abordados pelo autor. Quanto ao segundo ensaio, acima referido, aborda as mar-cas da presença do monge no Planalto catarinense. É pena que ao abordar aspectos populares, como as crenças, rituais reli-giosos, instalação de cruzes, benzimentos etc. tenha optado por um linguajar encruado e, às vezes, pedante que torna a leitura cansativa. A forma não combina com o conteúdo. Creio também que há exagero quando afirma que parte do povo considera João Maria uma divindade. Não chega a tanto. No conjunto, porém, traz contribuições importantes. Mas, como afirmou Jacques Lacarrière, João Maria foi um homem embriagado de Deus.

Homem embriagado

de Deus Enéas AthanázioJurista e escritor, autor de “Mundo Índio”, entre outros [email protected]

Existe um viaduto denominado Obirici em Porto Alegre. Localiza-se no Passo d'Areia. Obirici é o nome duma índia lendária, que pre-feriu morrer a perder o amor esperado. No local foi erguida uma estátua à heroína indígena.

O lugar se chama Passo d'Areia, exata-mente porque Obirici chorou tanto pela impos-sibilidade da realização amorosa, que brotou no chão um córrego de lágrimas sobre areia. No tempo em que vivemos, no qual tudo deve ser possível vender, atulhou-se o córrego, a fim de que se pudessem construir prédios. É a conheci-da loucura imobiliária devastadora. Por isso, Passo d'Areia ficou sendo apenas um bairro, sem córrego, sem passo, sem areia.

Se a história de Obirici é simultanea-mente comovente e significativa, como atestam a estátua que lhe dedicaram e o nome que lhe tentam perpetuar num viaduto, em Porto Ale-gre, há mais que ler a respeito da fidelidade amorosa ameríndia.

A segunda reflexão sobre o assunto re-cai sobre Lindoia. Lindoia nos chegou no poema O Uraguai (1769), que salvou também o nome de Sepé Tiaraju do esquecimento. Lindoia foi ví-tima missioneira dos exércitos lusitano e espa-nhol, por força do Tratado de Madri, escrito (na-turalmente) pelos europeus, sem participação dos guarani.

Na época, século 18, discutia-se se os ameríndios tinham ou não alma (essa entidade dual ao corpo, segundo filosofias e crenças). O objetivo de lhes negar a dignidade que os euro-peus se davam e da qual se vangloriavam, a esse respeito, se justificava pelo objetivo de escra-vizá-los como animais.

Os guarani das denominadas Missões jesuíticas do rio Uruguai ou o próprio poema que nos trouxe o nome de Lindoia fizeram dela um lindo mito pela defesa dos ameríndios. Lin-doia se nega a casar-se com quem lhe determi-nam e escolhe o suicídio, já que tinham previa-mente lhe assassinado o noivo e exigiam que se casasse por interesse de poderes dominantes.

O episódio conhecido como A morte de Lindoia tem sido o mais lido e reproduzido em antologias, entre os vários do poema de Basílio da Gama.

Lindoia é nome de bairro e de institui-ções comerciais em Porto Alegre. No estado de São Paulo, há um município denominado Águas de Lindoia.

Além de Obirici e Lindoia, índias mito-lendárias do Rio Grande do Sul, que se fixaram como representantes de valores e sentimentos ameríndios, há um terceiro nome a considerar: Moema, outra índia brasileira.

Moema nos chegou através do poema Caramuru (1781), de José Durão. O Uruguai e Caramuru são poemas do nosso Arcadismo.

A marca mais surpreendente que as identifica, além de outras várias, é a morte por amor. Obirici pediu a Tupã que a levasse, porque não poderia realizar o amor que votava, uma vez que o homem escolhido já amava outra. Lin-doia optou pela morte, porque lhe haviam as-sassinado o noivo e queriam que se casasse com outro, à alheia escolha.

Moema apaixona-se pelo navegador português Diogo Correia, náufrago nas costas da Bahia. Salvou-se o homem com o arcabuz que o acompanhava. Em terra, depois que os tu-pinambás se aproximaram, ele disparou a arma. O estrondo e a fumaça amedrontaram os índios, porque tal instrumento era ali desconhecido. Em virtude disso, por mágico ou divino, passou a ser chamado de Caramuru e aceito na taba. Foram-lhe oferecidas duas esposas, Guaibim-pará, mais conhecida como Paraguaçu, e Moe-ma. Ele optou por Paraguaçu e partiu com ela de volta à Europa. Lá foi batizada com o nome de Catarina. Moema nadou atrás do navio até afo-gar-se e morrer. É, pois, a terceira ameríndia (nesta sequência reflexiva sobre esse tema) que se mostra inteiramente fiel ao sentimento de amor, a ponto de optar pelo suicídio (como Obi-rici e Lindoia), na impossibilidade da realização amorosa.

Denominam-se Moema um distrito e um bairro do município de São Paulo. No estado de Minas Gerais há um município com o mesmo nome.

A seguir, vão transcritos três poemas saídos em Palavra que sim (Porto Alegre: Movi-mento, 2013). O primeiro se refere a Obirici; o segundo, a Lindoia; o terceiro, a Moema.

Obirici

Chorou tanto, que seu corpo se desfez emlágrimas e formou um riacho sobre a areia.Da lenda Obirici.

Doce paixão levou meu peito a declarara irresistível linda luz que Tupãpusera neste malfadado coração.

Ele, assombrado do conflito que lhe impus,porque seu coração já de outra tinha a luz,propôs a escolha em flechas... e eu perdi a disputa.

Supliquei então ao meu Tupã luminosoque me levasse ao país misterioso,pago de maravilhas, em que não há dor.

Pedi ao calor do primeiro sol me guiare à pluma maciez materna do luar...Olhos nenhuns nunca mais me viram na taba.

Na terra do ontem ficou ibicuiretãSobre a areia córrego de lágrimas que os homens brancos sob pedras sepultaram.

Talvez também chorosos pelo que fizeram,os homens de barba ergueram, em matériaResistente, a imagem que de mim tiveram.

Lindoia

Tanto era bela no seu rosto a morte!J Basílio da Gama. O Uraguai.

Onde andará Lindoia, em que reduto,em que oca, em que recanto deste mato,assim pronta, assim vestida de noivado?

Correm todos a saber, temendo o pior...nem Tanajura viu seu vulto muito amado...sai Caitutu, irmão, pelo bosque a buscá-la.

O coração era Cacambo, e o mataram.Em prevista troca, Baldeta lhe impuseram,a consolidar o poder que não tiveram.

Víbora a enlaça... e Lindoia não volta.Escolheu a morte, onde a aguarda o noivo,Porque na vida sem ele era estar morta.

Moema

Entre as salsas escumas desce ao fundo,Mas na onda do mar, que irado freme,Tornando a aparecer desde o profundo,Ah Diogo cruel! disse com mágoa,E sem mais vista ser, sorveu-se n'água.” José de S R Durão. Caramuru.

Nessa onda feroz que ruge poderosaSoprada ao vento em rendas de alvas plumasQue na praia vês enrolada em densa espuma,Agita-se vivo o corpo de Moema,De Caramuru traída em fuga odiosa,Que em puro delírio de amor morrendo acena.

Vindo do mar, ao mar voltando, entre gentes Estranhas de obscuras falas, fera e corisco, Manejador do raio, no barco arisco Foge, por não vê-la pedir-lhe o amor negado, Que ainda nada agarrada ao leme E prefere o fim no mar ao desprezo adiado.

Que mundo este, há de pensar ela, onde estejaEm tantos peixes, caracóis e cavalinhos,Que ainda a despreza nos seus irmãos de sina,Contra quem ruge o raio de diogos poderosos,Que expulsam, matam e destroçam a quem sejaQue seus não sejam e que tenham vida honrosa.

Porto Alegre, 16/4/2015.

o mito da morte por amorObirici, Lindoia, Moema, ou

Cícero Galeno LopesProfessor, doutor em Letras, ensaísta, poeta

www.cicerogalenolopes.com

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Entrevista I 06 I

Silvério da Costa

SILVÉRIO RIBEIRO DA COSTA, nascido em Portugal, praticante deAtletismo, combatente na Guerra de Angola-África, intelectual,migrado para o Brasil, Cidadão de Chapecó-SC, Professor, Poeta,Escritor, Jornalista, Ativista Cultural, um Incansável Homem de Letras, um luso-brasileiro para o mundo.

Literariamente, o seu nome é mais conhecido como Silvério da Costa. Há ciência de que é Português de nascimento, veio ao Brasil e naturalizou-se Brasileiro. São informes assim, como dizer?, meio desconhecidos por nossos leitores, que o conhecem como Poeta. Mas sabe-se de sua origem lusitana. Conte-nos, então, pra começar, dessa origem e terra portuguesa, família, sociedade, formação etc. Fale de vivências, sonhos e ambições fami-liares e sociais… Como era aquele mundo em que viveu, quando criança? Lembre-se que nós, leitores, não estivemos lá e nem fomos seus colegas de infância. Como foi?

É verdade. Eu sou português, da cida-de de Porto, ou melhor, de uma aldeiazita cha-mada Valbon, que fica 5 km de Porto, onde vivi dos 8 até os meus 21 anos, quando saí para ser-vir o Exército Português, na cidade de Lisboa. Naturalizei-me brasileiro com a finalidade de concorrer, por insistência de alguns amigos, a uma vaga de vereador, no Legislativo Chapeco-ense, em 1972. Nem seria preciso, já que o cida-dão português tem a seu favor a “Lei da recipro-cidade” (o português aqui é considerado brasi-leiro, e o brasileiro, lá, é considerado portu-guês). Vim de uma família pobre. Não conheci meu pai, que morreu quando eu tinha apenas alguns meses de idade. Vivi, a partir dos 7 ou 8 anos de idade, com um padrasto que me cagava de pau todos os dias, com razão ou sem ela! Ele tirou-me, inclusive, da escola quando frequen-tava o 1° ano do primário, para aprender com ele a profissão de sapateiro, e ser, assim, escra-vizado. A minha ambição era ser mecânico de automóveis… Concluí o primário, alguns anos depois, e foi só. Quando cheguei a Chapecó, em 1965, é que fiz o ginásio, o contador e parte do curso de Pedagogia, na FUNDESTE, em Chape-có. Sou, portanto um autodidata, que ficou, pa-ralelamente às suas atividades normais, 32 anos em sala de aula, como professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.

Depois, em sua vida e ao que sabemos, veio a Guerra de Angola. Como foi parar nessa guer-ra? Adiante falaremos desse livro pungente Memorial do Medo (Vivências de um ex-combatente). Por enquanto, deixe-o de lado. Por agora, conte-nos como surgiu isso de ir à guerra, em família e companhia? Foi convo-cado, foi voluntário, como aconteceu?

Servia o Exército Português, quando, em 1961, eclodiu a guerra nas então colônias (chamadas, eufemisticamente, de Províncias Ultramarinas) portuguesas. Daí a ser convoca-do para a dita cuja, foi só um passo a mais. Nós éramos governados por um ditador chamado António de Oliveira Salazar, que se recusava a dialogar com os líderes nacionalistas angola-nos, que queriam a sua independência, prefe-rindo sacrificar duas ou três gerações de jovens numa guerra fratricida e inglória, que custou a vida de milhares de pessoas! Estávamos na me-tade do século XX. Não se justificava mais o co-lonialismo. As grandes potências já haviam da-do a independência às suas colônias. Era, por-tanto, uma questão de tempo.

E essa sua vinda ao Brasil e naturaliza-ção? Por quê? E este é um enorme Porquê? Por que mesmo? Veio só, isto é, solteiro, ou com família? Veio com mais gente ou por deci-são solitária? Formou família aqui? Realizou-se na profissão? A gente se pergunta e admira, mas não sabe as condições e móveis. Foi logo depois de sua participação na Guerra de Ango-la? Algum preparo para a troca de país? Algum medo, alguma fuga, alguma visão de futuro? Mais: na vinda para cá, a vinda foi direta para Chapecó, SC? Se foi, por quê? Se não, por onde passou antes? Veja o monte de perguntas mui-to humanas, nossas e de tantas pessoas que o admiram. Esteja à vontade.

Quando servia o Exército Português, numa pequena vila chamada de Tancos, onde só havia uma base aérea, um batalhão de para-quedistas e um batalhão de engenharia, o úni-co divertimento existente para os soldados era um cinema, além de uma prostituta que apare-cia ali nos fins de semana. Coitada! Era uma farra, tendo como cenário o motel todas as es-trelas do universo. A mim me aprazia, também, a correspondência com moças interessadas.

Numa roda de amigos, quando comen-tava sobre meu interesse e sonhava com a pos-sibilidade de conseguir uma brasileira, já que tinha algumas portuguesas e espanholas, al-guém do grupo me deu o endereço de uma bra-sileira que, por acaso era chapecoense… Escre-vi-lhe e ela me respondeu de imediato, dando início a uma correspondência de durou quase 4 anos, e que culminou no nosso casamento,que

dura há mais de 50 anos. Eu era radiotelegra-fista, especialidade essa que tirei quando servia no exército. Quando vim para o Brasil, em 1963, passei a morar no Rio de Janeiro, com uns tios. Isso aconteceu logo após ter passado à disponi-bilidade. Depois de quase dois anos, tirei umas férias para conhecer a minha correspondente, Helena Gisi. Chapecó era uma cidade pequena. Não havia o que fazer. Passava o tempo, en-quanto esperava retornar ao Rio, onde tinha a minha vida, tomando chimarrão e conversando com os parentes da Helena. Um certo dia, um irmão dela me convidou para conhecer um fri-gorífico, onde havia sido diretor. Ao chegar lá vi que estavam levantando uma grande antena. Aproximei-me… e soube que estavam substi-tuindo o rádio amador, sistema de comunica-ção muito em voga, na época, para se comuni-car com as filiais, em São Paulo e Rio, por um sistema mais eficiente, que era a telegrafia. Quando me anunciei como radiotelegrafista, vi no rosto do diretor, que cuidava da instalação, o espanto, acompanhado da seguinte frase: - Não é que caiu do céu! Foi o que bastou para ser contratado e não voltar mais para o Rio. Virei chapecoense e um ano depois nos casamos e tivemos um filho, que é músico clássico. Mais tarde eu me naturalizei e desempenhei diver-sas atividades e exerci alguns cargos de relevân-cia, como por exemplo: Relações Públicas, nes-sa mesma empresa que me contratou como te-legrafista, alguns anos antes; Diretor de Turis-mo de Chapecó, na gestão pública de 1982-1988; Gerente do Eston Hotel, um dos mais conceituados da Região; Presidente do Conselho Municipal de Cultura; Presidente da ACHE (Associação Chapecoense de Escritores),

em duas gestões; 2° Vice-presidente da UBE (U-nião Brasileira de Escritores), em duas gestões; 2º Vice-presidente da UBE (União Brasileira de Escritores, secção Santa Catarina); Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, du-rante 32 anos, sempre paralelo às minhas ativi-dades profissionais, exercidas durante o dia. Tudo isso, além de poeta, com 12 livros publica-dos.

Nesses anos todos, de tanta peregri-nação mundana e vivência trágica, onde e quando a Literatura entrou em sua vida? Lá na infância poderia ser, no meio da guerra seria possível? A vinda ao Brasil teria levado a tan-to?

O grande responsável pelos meus ra-biscos literários foi um comerciante português chamado José Gonçalves de Moura. Ele era vizi-nho e tinha o hábito, depois de fechar a sua bo-dega (armazém que vendia de tudo, desde fei-jão até tecidos) de convidar a garotada das re-dondezas para nos contar histórias e nos em-prestava livros, explicando para nós, depois, tu-do aquilo que não havíamos entendido. Foi as-sim que aprendi a gostar de livros e, por conse-quência, de ler. Com 10 anos, eu já havia lido o consagrado Os Miseráveis, de Víctor Hugo. Daí para a escrita, foi um pulinho, mas só em Cha-pecó é que me dediquei, profundamente, à no-bre Arte das Letras.

Um sujeito vivido, sofrido e, hoje, admirado como Poeta, Ativista Cultural e Me-morialista, deve ter influências anteriores, em si, no fazer Arte. Somos sequência humana, o

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Por Nelson Hoffmann I [email protected]

Nasci e cresci na pequena aldeia de Valbom, próximo à cidade do Porto, no Norte de Portugal. Ali passei parte da mi-

nha infância. A adolescência, vivi-a na cidade do Porto. Vim para o Brasil em 1963, depois de lutar na guerra da Angola, durante

26 meses. Sou brasileiro naturalizado. Moro em Chapecó há 50 anos. Sou casado e tenho um filho. Sou aposentado desde

1996 e já publiquei doze livros (oito de poesia e três infantis): Retalhos da Existência - 1989; Retratos - 1991; Sinfonias do

Corpo - 1993; Percalços da Vida e outras Chatices Gostosas - 1995; Fogueiracesa - 1999; Poemas líricos e outros poemas, em

parceria com Torres Pereira e Agostinho Duarte - 2000; Utensíliopoesia - 2000 (poesia infantil); Rapsódia de Espantos - 2005;

O Gato que sabia latir - 2006 (prosa infantil); Trilhos Cruzados - 2010; Memorial do Medo (Vivência de um ex-combatente) -

2013 e a participação em mais de sete dezenas de antologias poéticas.

Faço parte de diversas instituições e entidades culturais no Brasil e no exterior, entre elas a Internacional Writers As-

sociation, com sede em OHIO - E.U.A.

Tenho trabalhos traduzidos para o Espanhol, Francês, Inglês, Italiano, Esperanto. Grego, Russo e Chinês, publicados

em diversos países do mundo. Conquistei inúmeros prêmios no Brasil e no exterior. Fui Presidente da ACHE- Associação

Chapecoense de Escritores, em duas gestões; Presidente do Conselho Municipal de Cultura de Chapecó, segundo vice-

presidente da UBE - União Brasileira de Escritores, secção Santa Catarina, com sede em Florianópolis. E diretor de Turismo de

Chapecó (1982-1988).

Com Marina Colasanti, na

1a. Feira Nacional

do Livro deChapecó, SC,

em 1999

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Entrevista I 07 I

passado em nós comparece. Na terra brasilei-ra, os clássicos de Portugal ainda influenciam. E outros, do mundo. Traz alguma força ances-tral? Tem alguma preferência particular?

Eu li (a) tudo e mais alguma coisa. Inicialmente, os portugueses (Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Júlio Diniz, Almeida Garrett, Fernando Pessoa, Fernando Namora, Florbela Espanca, Bocage, Camões, Cesário Verde, José Saramago; Machado de Assis, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Jorge Amado, e tantos ou-tros). Os meus preferidos são: na poesia, Fer-nando Pessoa; na prosa, Dostoievski e Sara-mago.

Pelo que conhecemos, sua obra supe-ra bem uma dezena de títulos. O que temos em mãos são livros de poesia… com uma exce-ção. Os títulos poéticos já chamam a atenção pela estranheza, e quiçá, clareza dos títulos. Por exemplo: Fogueiracesa, Rapsódia de Es-pantos, Trilhos Cruzados… Os títulos nos de-nunciam ansiedades, perplexidades; a leitura dos poemas nos leva a um mundo de intensa sensualidade, angústia e preocupação social. Estamos no caminho? O que nos diz de sua al-ma poética?

Eu publiquei 12 livros, 9 de poesia, sendo um infantil, e 3 em prosa, sendo dois in-fantis. Tenho mais uma dúzia no forno. É só uma questão de patrocínio. Talvez 2016 saia mais algum. O que me apraz, mesmo, é a poe-sia. É nela que eu me vejo retratado, é por inter-médio dela que eu expresso todas as minhas inquietudes. Eu escrevo todos os dias, no míni-mo, um poema. Não acredito em inspiração.

Valho-me da percepção e da transpiração, já que poesia é, para mim, o reflexo daquilo que nos rodeia. E como o poeta não tem que dar satisfação para ninguém, muito menos explicar ou mudar o que quer que seja, no contexto pa-norâmico que está aí, o jeito é incomodar, per-turbar, externar as perplexidades que incomo-dam e me angustiam: e, como ninguém é de ferro, não posso deixar de lado o erótico-sen-sual e até mesmo, por que não, o pornográfico, em determinadas circunstâncias.

O seu último livro que nos chegou é Memorial do Medo (Vivências de um ex-combatente). O livro nos mergulhou em do-res, revoltas e sofrimento… Vivemos momen-tos de Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, embora em dimensões bem dife-rentes. Deixemos o medo de lado e conte-nos, sem medo, sobre a trajetória desse seu livro. Lembre-se: a distribuição de livros no Brasil é calamitosa, quanto leitor de nosso jornal teve acesso ao livro? Por favor!

Memorial do Medo (Vivências de um ex-combatente) é o meu último livro e o único romance, de minha autoria, já que a poesia é que faz o meu gênero. Nesse livro, eu narro a história da minha vida, que eu costumo chamar de "Minhas Guerras", porque a minha existên-cia sempre teve esse viés. O caro amigo lem-brou bem a similitude com Recordações da Ca-sa dos Mortos, de Dostoiesvski, Dostoiesvski é o meu guru. Tenho toda a obra dele. É natural, portanto, que, embora em circunstâncias e tempos diferentes, as dores, os sofrimentos e as revoltas sejam frutos dos mesmos despau-térios! Dos mesmos absurdos! Dos mesmos tresloucamentos! A distribuição do livro, por

questões óbvias, é restrita a amigos, escritores, críticos, bibliotecas, enfim, aos mesmos de sempre. Quem sabe alguma grande editora ainda se interesse por ele e venha a ter uma distribuição que contemple todos os leitores interessados. A crítica ensaística tem falado bem do livro! Os elogios têm sido muitos! E parecem ser sinceros! Estou na expectativa! Quem sabe o NHEÇUANO não promove essa ponte?!...

Por muito tempo, uma das melhores coisas literárias que aconteciam neste país, aconteciam justamente aqui, no Sul. Defi-nindo: em Chapecó, SC. Ali era redigido, pro-duzido e espalhado ao mundo, o querido "Fronte Cultural". Redator, produtor e distri-buidor, Silvério Ribeiro da Costa, um portu-guês naturalizado brasileiro. Já houve o "Jor-nal do Enéas", já houve... Aqui, no RS, idem, esforços parecidos. Todos sumiram. Como en-xerga tudo isso, o que pode nos dizer?

O "Fronte Cultural" teve curta (2 anos) duração. Foram, se não me engano, 22 núme-ros, um por mês. Era direcionado a todos os in-teressados e não visava lucro. O patrocínio vi-nha de alguns mecenas que tinham, em con-trapartida, o rodapé das páginas à disposição para difundir as suas empresas. Com o decor-rer do tempo, foi faltando o patrocínio (eles preferem gastar milhões para difundir o espor-te, a pagar uma merrequinha para divulgar a cultura) e só me restou amargar a saudade que sinto desse período tão profícuo da minha tra-jetória literária, como incentivador da cultura. O "Fronte Cultural" continua, mas em forma de coluna, semanal, no conceituado jornal local "Sul Brasil." Uma forma de manter acesa a cha-

Somos do Sul. Peleamos por aqui e existem companheiros lá adiante, no Nordes-te e Norte. O Centro nos ignora. Como vê isso? Sa-bemos, é complexo, muito mais do que se imagina, os valores hoje são monetários. Com sua vivência internacional, tem algo a nos dizer, aconselhar, orientar?

É comum se dizer que fora do eixo Rio - São Paulo, poucos subsistem, quando se fala de Literatura. Em parte, é verdade! Residem nessa área muitos companheiros de Letras que dão de mil a zero nos ditos medalhões, sem que tenham o reconhecimento que merecem! No interior do Brasil, leia-se fora do referido eixo. Está parte da nata que escreve neste país e sequer é citada pela grande imprensa, muito menos pelos críticos e ensaístas! O que fazer? É chover molhado, quando se fala em persis-tência, mas é, ainda, a orientação mais lógica e coerente com os meus propósitos, que posso dar a todos aqueles que gostam da coisa! Mas sem esperar muito do poder público e dos ho-mens públicos. O interesse deles é outro!… En-tenderam?

Como sempre, em final de entrevis-ta, a palavra fica à disposição. Total.

Para finalizar, resta-me agradecer a oportunidade que o conceituado NHEÇUANO, esse esteio de Cultura Brasileira, me deu, e se-guir em frente com a caravana. Os cães que fiquem latindo!, rosnando!, Babando!…

ma, fazendo-a chegar aos meus amigos es-critores, difundindo, ainda que de forma restri-ta, os seus trabalhos.

N

Uma visita mui ilustre Esta foto é do recente dia 21 de maio, um sábado frio com tardinha enfarruscada, quando o escritor José Antônio Urroz Lopes, também conhecido pelo pseudônimo Vasco de Sant'Anna, acompanhado da esposa Sandra, visitou Nelson Hoffmann e a filha Inês Hoffmann, em Roque Gonzales, RS. Lopes vinha de Curitiba, PR, em trânsito para Uruguaiana, RS, sua cidade natal. Junto, o onipresente Ruy Nedel, amigo de todos. Todos escritores, poetas, intelectuais. Lopes, dentre outros livros, tem destaque especial com Innocens Manibus; Inês é a Revelação da Poesia Lírica Brasileira de 2006 com seu livro Parto; Hoffmann, de muitos livros, é aplaudido por seu último romance A Mulher do Neves; e Ruy Nedel, polígrafo incansável, acaba de fechar um ciclo dourado com sua trilogia Memoriando a História do Sul. Pode-se ver, foi encontro de amizade, fraternidade, cultura. No registro feito por Sandra (esq-dir): José Antônio U. Lopes, Inês Hoffmann, Nelson Hoffman e Ruy Nedel.

“Memorial do Medo”, romance, 2013 No lançamento do livro infantil “O Gato Que Sabia Latir”, 2006 Com Moacyr Scliar, em Chapecó (1999)

FOTO SANDRA LOPES

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I 08 I História

Cultura Guarani

Ainda Sonhando

Julio Ribas Professor

Djaroypy Djiwy Nhanémoã Nhanderekó Tupi GuaraniResgatando a medicina tradicional Tupi-Guarani

Fonte: Cartilha folhas e raízes - Luan Elísio Apyká - Dhevan Pacheco

“Yvy Pÿtu Weá é o suspiro da terra. O índio quer ficar num lugar como este aqui. Quanto mais ter contato com a natureza,

quanto mais Yvyra Jakué, mais ele pede, mais ele é atendido. Se viver como o branco, ele vai podar o contato com a natureza. Quem não quer uma casa bonita? Eu não, quero é morar assim”.

Gwarapá Mirindju, ancião da aldeia Piaçaguera

Na última edição coloquei uma possível alter-nativa para a realização do Manifesto e Canto Nhe-çuano para o final de 2016. Não recebi, não vi, não vislumbrei nenhum movimento para que isto venha acontecer. Sabemos das dificuldades de cada um, da crise que envolve o mundo, enfim, está difícil para todos. Mas acredito que um pouquinho de cada um é mais uma tentativa para não deixar voltar ao es-quecimento uma história que, com muito custo e trabalho, conseguimos trazer luz. E digo com cer-teza, muitos ficaram surpresos e interessados com esta “história”. Portanto, agora não é a hora de sim-plesmente virarmos as costas. Vamos nos unir, tentar resolver, todos temos a ganhar com isto.

à

Precisamos de um empenho maior de nossa diretoria, tentar buscar recursos no comércio local. E mostrar o quanto é importante para o município a manutenção do Manifesto Nheçuano, que discute fatos determinantes do início da ocupação da atual região missioneira e do Estado do Rio Grande do Sul. Tomei a liberdade de criar o e-mail: [email protected]. Envie sua suges-tão ou colaboração, diga como pode nos ajudar. Com certeza será muito bem aproveitada. Quem sabe o rumo que buscamos para o nos-so evento venha através de sua ajuda!

Page 9: O Nheuçuano - Nº30 Junho/Julho 2016

Poesia I 09 I

Não sou eu

O instante que apagaa vertigem do tempo

não sou euquem abandona na madrugadaa lua desamparada

e sonolenta revelaimagens ocultas

não sou euquem encobre a facena penumbra

lágrimas vertidasno silêncio que angustia

não sou eu: sou eu, sim

quem busca encontrarrespostasquando a insônia do tempo acorda a lua.

Adélia EinsfeldtPorto [email protected]

O Mensageiro da Paz

Para Nelson Hoffmann Visão imponente, encharcado no branco, Cavaleiro andante das rotas do Sul, Sorriso aberto, tão puro e tão franco, E um olhar penetrante banhado no azul!

Cabelos ao vento e mil ideias também, Qual andejo errante, brilhante e capaz, A tua missão é tão somente o bem, Figura intrigante, mensageiro da paz!

Nas suas andanças é pólen precioso, Uma abelha profícua a gerar emoção, Visão definida de um profeta zeloso E compromisso fiel com a educação!

Missão tão linda, é um raio de luz, Sigas em frente com fé e destemor, Que seja leve e suave a tua cruz, Tua mensagem é um ato de amor.

Virtudes que pulsam e te enobrecem, São dotes raros, valiosos e só teus, Os que te escutam jamais te esquecem, Mensageiro da paz e arauto de Deus!

**** *Melbourne, 19 de dezembro de 2015 (Data do aniversário do homenageado)

Emir Nunes Moreira [email protected]

Simples dizer Aqui viemos com este poucoque somos

Aqui estamoscom este nada que é tudo

Aqui seguimosenquantonão é depois.

Dércio Braúna *Do livro Aridez lavrada pela carne distoAv. Simão de Góis, 1475 CEP 62823-000 - Jaguaruana - CE

Escrever Evito escrever verdades veleidades aleivosias

(abismado em águas descobertas receio o eco inebriado da letra estrangulada)

reviro mentirasno lado desproporcionadoem cantos: calo o verbo.

Levanto bandeiras em punhais enviesados.

Verdades na indiferençaanotada no canto da folhajogada ao chão dos outonos.

Pedro Du Bois *Do livro O livro infindável e outros poemas [email protected]

Sangue

Os córregos transbordam Em sangueQue pinga do suorDo trabalhador

Que sonha ser um vencedorBom pagadorHomem de bem

O sangue escorre Calçadas abaixoAos córregos escorremTransbordam

sangue em sangue Maria de Lourdes Alba *Do livro Voos da manhã [email protected]

Vestígios de Paredes

Doze sinos badalamDe hora em horaSão mecânicas cançõesEm sinfonia de orquestras.Cinco mil almasRespiram castiçais.

Canhões cospem fogo,Badalam chumbo,Perfuram alma e coraçãoSucumbem vidas preciosas!Porque não trouxeram carinhoAmor e fraternidade?

Contracapa da históriaBrilham tesouros,Vitrais guaranis.Reluz o ouro do tempo Nas tumbas sem cruzes, sem nomes...Marcas de quem tombou!

Ventos uivam triunfantesSobre carnais ilusórios!Os ventos uivantesAguçam o imaginário dos passantes!Seriam os ventos presságiosDe tempos de esperança!?

Nas velhas paredesNão badalam sinos, nem sonhos...Pousam os olhos dos poetasSão olhares de repúdio à covardia!

Em vã filosofia, as velhas pérolasSão hinos de paz e melodia.

Renato Jacob Schorrescritor membro da AcademiaSanto-angelense de [email protected]

Arte: www.1papacaio.com.br

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I 10 I Literatura

[email protected]@yahoo.com.br

Rua Pe. Anchieta, 439 97970.000 - Roque Gonzales - RS

Inês Hoffmann eNelson Hoffmann

===R E C E B E M O S===---------------------------------------------------------

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Nasci em Roque Gonzales. Tenho setenta e seis anos de idade, caminho para os setenta e sete. Chegarei? É outra história. Dizem que apareci num domingo. Calculei e parece verdade. Sei lá, não importa! Roque Gonzales tinha doze anos de idade. Criei-me no meio do mato, à beira da água, numa serraria. Frequentei escola com o professor Schuh, em Poço Preto. Fui seminarista, rodei por nada menos que quatro seminários, cursei Direito e Contabilidade em Porto Alegre, andarilhei por aí. Mas meu corpo e alma nunca me deixaram em paz, sempre me empurravam de volta: Roque Gonzales era minha terra, ali corria meu sangue. Voltei. Há cinquenta anos - cinquentenário - para começar o Município. Em 15 de maio de 1966. N. H.

Jorgelita Tonera Favaretto organizou o livro Luz na ofi-cina, que nos foi presenteado por Enéas Athanázio. O livro é uma realização inédita, curiosa, sui generis e de valor. Produto de uma oficina literária, tem detalhe muito espe-cial: os participantes eram todos de curso superior, advo-gados e promotores conceituados e vividos, querendo realizar-se como escritores, em completude pessoal. O curso abordou conto, crônica, ensaio e poesia. Quatro gê-neros literários que são criação, Arte, busca de plenitude. Escrever é realizar-se. E-mail: [email protected]

Sânzio de Azevedo, um dos maiores pesquisadores e histo-riadores da Literatura Brasileira, apresenta-nos um livro de valor inestimável, verdadeiro tesouro de arqueologia lite-rária, produto de uma pesquisa e busca de mais de 40 anos: Atas da Padaria Espiritual. Para quem possa estranhar o título ou desconhecer o que seja a tal “Padaria Espiritual”,

uma pequena explicação. Surgida no Ceará, em fins do século XIX, era uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, com objetivo bem determinado: Fornecer pão de espírito aos sócios em par-ticular e aos povos em geral. Daí seguia-se que o presidente era o “Padeiro-Mor”, os secretários eram “Forneiros”, o tesoureiro era o “Gaveta”… Os sócios eram os “Padeiros”. As reuniões eram as “Fornadas” e o local era o “Forno”. Tudo num humor contagiante e muito original. E dela participa-vam figuras destacadas de nossa história literária como Adolfo Caminha, Antônio Sales, Lívio Bar-reto… Ao contrário do que possa parecer, a leitura é gostosa, instrutiva, enriquecedora. Afinal, fazer Literatura neste país, não é mesmo tarefa que só persiste com gente de muito bom-humor? E-mail: [email protected]

* P. J. Ribeiro: Kiki, a coelhinha festeira, prosa ilustrada; * Maria Dona: A Dona do jardim, versos; * Elaine Pauvolid e Outros (via Ricardo Alfaya): Quadrigrafias, versos; * Manoel Onofre Jr.: Humor no conto potiguar eRevista da Academia Norte-rio-grandense de Le-tras, prosa; * Sérgio Venturini: Inhacurutum e os guaranis no Território Missões, prosa; * Ivan Saraiva: Esperança viva: Uma escolha inte-ligente, prosa; * Cláudia Brino e Vieira Vivo: Amor, revista líte-ro-temática; * Oreny Júnior: Fórceps, versos; * Guilherme Queiroz de Macedo (via Enéas Atha-názio): Enéas Athanázio, de leitor a escritor, prosa; * Humberto Del Maestro: Lícia na terra da imagi-nação e Haicais e tercetos, prosa e verso; * Neu Volpato: Ad semines, versos;* Emir Nunes Moreira (Austrália): A história dosmártires e das missões guaranis, de Pe. Avelino tenCaten SJ, prosa; e* Rolando Kegler: Junta de estudios históricos deMisiones, prosa.

Ricardo Guilherme Dicke é escritor que virou lenda. Em vida. Desconhecido do grande público, e assim continua, teve seu livro Deus de Caim reeditado pela editora Le-traSelvagem, que nos remeteu um exemplar por gentileza do editor Nicodemos Sena. Dicke vinha do Mato Grosso, passou pelo Rio de Janeiro, voltou para o Mato Grosso, recolheu-se em si. Sem os arruídos da imprensa hegemônica e monopolista dos gran-des centros, seguiu publicando por pequenas editoras de seu estado, … E hoje? Deus de Caim nos mostra o eterno conflito bíblico de Caim e Abel, nos cria um mundo novo, Pasmoso, nos remete aos ambientes de Macondo, de Gabriel García Marques, nos tor-tura com os conflitos de Yoknapatawpha, de William Faulkner. Silencioso em seu can-to, escondido em Mato Grosso, Dicke realizou obra para a eternidade. E-mail: [email protected]

Cláudia Brino e Vieira Vivo nos enviam um livro bem cu-rioso: Encaixe. Não, curioso por alguma idiossincrasia estapafúrdia, não, de jeito nenhum. O livro é de poemas, sempre de primeira linha como são os versos da dupla - individualizados, deixe-se claro - mas diferente pelo que acontece em cada texto. Cada autor escreveu o seu poe-ma. Depois, um se meteu no poema do outro e “encai-xou” algo. O “encaixe” aparece em itálico. E a leitura se torna prazerosa e, sobretudo, criativa, fazendo o leitor querendo “encaixar-se” também. E-mail: [email protected]

Margarete Solange Moraes nos é encaminhada pela ed. Sarau das Letras, em pacote de três livros dife-rentes: Santa Fé, Fazenda Solidão e Contos reunidos. Potiguar, funcionária pública e professora universitária, leciona Literatura e Teoria Literária. Com boa obra pu-blicada, chega-nos impressionando. Vê-se logo, é es-critora tarimbada, senhora do ofício, e que nos era desconhecida por estes nossos pagos gaúchos, missioneiros e fronteiriços. Desajeitamo-nos com o nosso desconhecimento. Os dois primeiros livros são romances e o terceiro o título revela. O conteúdo, em todos os livros, inclusive em cada conto, é profundamente humano, sem nunca desvincular o personagem do meio em que vive. Além disso, a ligação entre conteúdo e forma é de presença rara entre nós, escritores. A escrita de Margarete nos remete ao clássico Graciliano Ramos. Com leve nuança: é mais suave. E-mail: [email protected]

Lourenço Cazarré é gaúcho de Pelotas e reside em Brasília. Autor de grande biblio-

grafia, encaminha-nos Três cavaleiros. O livro integra uma coleção de clássicos juvenis

- temática em que o autor é mestre - e contém dois textos famosos - Rei Artur, de Tho-

mas Malory, e Ivanhoé, de Walter Scott - mais O guerreiro dos cabelos de fogo, de au-

toria do próprio. Os dois primeiros são adaptações, para o público juvenil, feitas pelo

autor. A história de O guerreiro… é original sua e aborda a nossa questão gaúcha e mis-

sioneira, na segunda fase das Missões Jesuíticas. Leitura juvenil e agradável, o autor

narra as aventuras do jovem Guilherme Kugelfest, nascido na Alemanha, por volta de

1700, e que vem parar aqui, tornando-se herói lendário nas Missões.

End.: SHCGN, 716-Bl. I C/ 47-Brasília-DF/70770.739

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I 11 I Literatura

DESTAQUE

1. Que as aparências não te confundam, pois tudo aquilo que se entende pode ser passível de comparação mais além do que teus olhos vislumbram: o homem e suas condutas não esquecidas, as que transcendem fronteiras, aquelas que persistem em fazer distinções, não so-mente entre os seres humanos, mas tam-bém quanto à dignidade que lhes resta ou apenas por sua condição social.

De longe vem, na literatura, essa me-tamorfose: recordem-se - entre outros - precedentes a Apuleio de Madaura e seu Asno de ouro, onde um feitiço transfor-ma Lúcio em asno, mas sem que ele ve-nha a perder suas faculdades intelec-tuais. Esta novela imaginativa, carregada de humor, também contém outras doses de séria reflexão sobre a condição huma-na e sua coexistência em sociedade. Após diversas aventuras, Isis lhe restitui a for-ma humana, como agora o faz David de Medeiros Leite em sua interessante nova entrega, intitulada 'Ruminar': primeiro quem fala é o gado; depois, o vaqueiro que cuida do rebanho.

2. Duas partes de um todo que está per-feitamente ordenado: bastaria ler o pri-meiro texto e o último, para darmos con-ta de que, desde a aparente ingenuidade, o que quer dizer o poeta nordestino transcende sua paisagem rural e até bu-cólica, apesar de ser terra de secas, pre-texto indispensável para logo triturar afli-ções, maturar pensamentos ou mastigar ilusões: o ruminar fazendo a digestão ser-ve como lançadeira para colocar sobre a mesa antigas recordações em lenta ma-ceração. O próprio poeta, desde logo, es-clarece: a descrição que faz a partir da ótica do boi ou da vaca é simplesmente uma escusa para tratar temas mais pro-fundos.

Por acaso não é autenticamente “re-volucionário” o poema Despertar?Se tro-cássemos de personagens e fizéssemos uma leitura como se mulheres desespe-radas falassem, por não poder alimentar seus filhos apesar de semear ou produzir alimentos em fartura, decerto teríamos outra percepção do, aparentemente, e-lementar poema, que diz assim:

Ingurgitadosnossos úberesdesadormecemalimentando o mundo.

A avidezcom que os sugampõe em riscoo desjejumde nossos filhotesque, pacientes, esperam.

3. Contudo, estas fábulas líricas (recor-dem-se de que Sócrates passou seus últi-mos dias pondo em verso as fábulas de Esopo) não têm, no íntimo, uma lição moralizadora. Diz o boi: “Solto o ber-ro/sem saber que destino terá/ sem aqui-latar seu eco/sem a ninguém querer la-çar”. Em princípio, não há essa intenção, mas quem lê e entende, sabe que a so-lução está em despertar, em descer os pensamentos das nuvens, em não permi-tir que se apague o resíduo solidário.

Que ninguém explique a fome ao fa-minto mas que lhe abra o caminho da dignidade!

Uma dignidade que muitas vezes se-gue sendo quase uma utopia por cona das separações que imperam nos estra-tos sociais. Como no poema Destinos, onde o boi aprecia e cisma:

Na pradaria,entre escaramuças e carreiras,brincam e coexistem- em (quase) confraria -os filhos do vaqueiro e nossas

crias.

Olho-os com exultação,e certamente inquieto:

O porvir para ambos,será leve?

E assim poderíamos seguir, comen-tando sobre A ferro e fogo, por exemplo…

4. Na segunda seção, os papéis se inver-tem. O personagem central é o vaqueiro ruminando suas tarefas cotidianas, valio-sos lugares entranhados em sua memó-ria e também certas superstições (apa-rições, quero dizer) de sua região. Entre-tanto o miolo está no dardo que acerta o centro do alvo, quando revela: “Para con-fidências/ elegi a vaca Estrela./ Com ela, meu desabafo diário/ em regozijos e dis-sabores.// E como sou compreendido!”.

Às vezes em meio à multidão estamos sozinhos. Às vezes preferimos falar a uma vaca, a uma tela ou a uma parede, por-que a dificuldade de comunicar-se é cres-cente neste mundo intercomunicado.

Às vezes, vendo algum exemplo de liberdade, almejamos ocupar o lugar do outro, como sucede ao vaqueiro:

Inveja

Por não obedecercomandospor não suportarcercas,por não permitir

laços,ao intrépido novilhochamam-no“barbatão”.

Barbatãono mundosonho sê-lo.

5. Mesmo sendo na Mesopotâmia, há cinco mil anos ou agora na cidade bra-sileira de Mossoró, umas fábulas líricas repletas de verdade despertam nosso in-teresse, porque, seguindo o conselho de Terêncio, ao homem, nada que é huma-no lhe deve ser estranho.

Que as aparências não te confundam.

E menos este livro de David de Medei-ros Leite, com singelos poemas de impac-tante força.

Alfredo Pérez AlencartJulho e em Tejares (2015)

Faculda de Derecho - USALCampus Miguel de Unamuno

37007 - SALAMANCA - ESPANHA

*tradução espanhol- português: Leonam Cunha

Fábulas e verdades de David Leite

David de Medeiros Leite nasceu em Mossoró-RN (1966). É professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mestrado e Doutorado em Direito pela USAL - Universidade de Salamanca - Espanha. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte IHG-RN e do Instituto Cultural do Oeste Potiguar ICOP; sócio-correspondente da Academia Apodiense de Letras - AAPOL, além de pertencer à Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Norte AMLERN e Academia Mossoroense de Letras AMOL. Divide com o também escritor Clauder Arcanjo, a coordenação da Editora da Sarau das Letras, que neste ano de 2015 completou 10 anos de atuação, atingindo a marca de 130 títulos publicados. David Leite publicou os seguintes livros: Companheiro Góis - Dez Anos de Saudades. Coleção Mossoroense, 2001; Os Carmelitas em Mossoró (em coautoria com Gildson Souza Bezerra e José Lima Dias Junior). Coleção Mossoroense, 2002; Ombudsman Mossoroense. Sebo Vermelho, 2003; Duarte Filho: Exemplo de Dignidade na Vida e na Política (em coautoria com Lupércio Luiz de Azevedo). Sarau das Letras, 2005; Incerto Caminhar (Premiado no II Concurso de Poesia em Língua Portuguesa, promovido pela Universidade de Salamanca - USAL e pela Escola Oficial de Idiomas de Salamanca - Espanha). Sarau das Letras, 2009; Cartas de Salamanca. Sarau das Letras, 2011; Presupuesto parti-cipativo en municipios brasileños: aspectos jurídicos y administrativos. Editorial Acadé-mica Española, 2012; Casa das Lâmpadas. Sarau das Letras, 2013; Mossoró e Tibau em Versos - Antologia Poética (em coautoria com Edilson Segundo). Sarau das Letras, 2014; Ruminar - Rumiar (edição bilíngue português -espanhol, em coedição com a Trilce Edicio-nes de Salamanca, Espanha), Sarau das Letras, 2015.

ARQUIVO PESSOAL

[email protected]@yahoo.com.br

Rua Pe. Anchieta, 439 97970.000 - Roque Gonzales - RS

Inês Hoffmann eNelson Hoffmann

Page 12: O Nheuçuano - Nº30 Junho/Julho 2016

ANUNCIE NO JORNAL O NHEÇUANO E PRESTIGIE A NOSSA CULTURA. E-mail: Site: Blog: [email protected] www.nhecuanos.com.br http://nhecuanos.blogspot.com

ROQUE GONZALES -

BREMMSUPERMERCADO

F: 3365-1150

r de e

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uper ercados

Ruy Nedel

End.: Rua Sete de Setembro, 495 - Centro Cerro Largo - RS - CEP 97.900-000

Autor da trilogia Memoriando a História do Sul - Avaliação Crítica (Os Jesuítas e as Missões / Revolução e Guerra dos

Farrapos / O Imigrante)

Lamento Guarani MissioneiroQue queres do índio,Afora a extinção?Não há uma formaDe darmos a mão?!

Te demos o abraçoDe boas-vindas;O maior pedaçoDas terras infindas!

Mostrei-te os caminhosPra todos os ladosIgnorei os vizinhosAqui radicados

Fiz tudo por ti,Assim que pediste.Por que a lança em risteContra o guarani?!

Não quis ser escravoTu assim aceitaste.Eu sempre fui bravoQuando me chamaste.

O padre me enviaste.Eu não o pedi.Depois o expulsasteE órfão me senti.

Quando eras tão fracoFui tua muralha.Agora que és forteMe deixas a sorteDe ver-te um canalha.

Tudo te dei:A terra, o ouro,A crença,Memória.Roubaste-me a História,Mulheres sem doençaÀs pencas, em grei;Vida natural,Não via algum mal.Pra ti as prostituí.Agora, absorto,Não entendo tua sanhaMe queres bem morto.Pra que essa façanha?

Português ou espanhol,Essa briga foi só tua.Para nós, verdade crua,Era de um lugar ao sol!

* Do livro do Autor: Missões.

“Índio Guarani”, tela de ELON BRASIL