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O Ouro branco no nordeste brasileiro: Análise de dois estudos de casos. Resgate das fontes documentais do patrimônio industrial do ciclo do algodão em Campina Grande. 1900-1950. AFONSO, ALCILIA (1); CARVALHO, JULLY (2) 1. UFCG. CTRN. UAEC. Professora Doutora do Curso de Arquitetura e Urbanismo. Coordenadora do Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar. Rua Antonio de Sousa Lopes. 100. Apto 1302 A. Catolé. Campina Grande. Paraíba E-mail: [email protected] 2. UFCG. CTRN. Aluna da graduação do Curso de Arquitetura e Urbanismo. Pesquisadora voluntária do Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar. Av. Almirante Barroso. 1975.Apto 107.Cruzeiro.Campina Grande. Paraíba E-mail: [email protected] RESUMO Este artigo tem como objeto de estudo, o resgate de fontes documentais do patrimônio industrial do ciclo do algodão em Campina Grande, região agreste do estado da Paraíba, nordeste brasileiro. Tomará como estudos de casos, dois exemplares do patrimônio industrial campinense: a antiga Fábrica Bodocongó e a Fábrica Marques de Almeida.Tal pesquisa faz parte do Grupo de investigação "Arquitetura e lugar", cadastrado na UFCG e no CNPQ, que vem realizando estudos sobre a relação entre produção arquitetônica e lugar, formadora do patrimônio cultural regional. O objetivo desse artigo é resgatar a história da arquitetura e da cidade no período do auge do algodão, em Campina Grande- época de uma modernidade que trouxe grandes impactos - sejam econômicos, sejam urbanísticos, da produção de um acervo patrimonial arquitetônico e cultural. Palavras-chave: História da arquitetura em Campina Grande, patrimônio industrial. Fontes documentais.

O Ouro branco no nordeste brasileiro: Análise de dois ... · as próprias obras, os esboços e desenhos preparatórios, bem como, os ... progresso e modernidade (figura 2), e deu

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O Ouro branco no nordeste brasileiro: Análise de dois estudos de casos.

Resgate das fontes documentais do patrimônio industrial do ciclo do algodão em Campina Grande. 1900-1950.

AFONSO, ALCILIA (1); CARVALHO, JULLY (2)

1. UFCG. CTRN. UAEC. Professora Doutora do Curso de Arquitetura e Urbanismo. Coordenadora do Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar.

Rua Antonio de Sousa Lopes. 100. Apto 1302 A. Catolé. Campina Grande. Paraíba E-mail: [email protected]

2. UFCG. CTRN. Aluna da graduação do Curso de Arquitetura e Urbanismo.

Pesquisadora voluntária do Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar. Av. Almirante Barroso. 1975.Apto 107.Cruzeiro.Campina Grande. Paraíba

E-mail: [email protected]

RESUMO

Este artigo tem como objeto de estudo, o resgate de fontes documentais do patrimônio industrial do ciclo do algodão em Campina Grande, região agreste do estado da Paraíba, nordeste brasileiro. Tomará como estudos de casos, dois exemplares do patrimônio industrial campinense: a antiga Fábrica Bodocongó e a Fábrica Marques de Almeida.Tal pesquisa faz parte do Grupo de investigação "Arquitetura e lugar", cadastrado na UFCG e no CNPQ, que vem realizando estudos sobre a relação entre produção arquitetônica e lugar, formadora do patrimônio cultural regional. O objetivo desse artigo é resgatar a história da arquitetura e da cidade no período do auge do algodão, em Campina Grande- época de uma modernidade que trouxe grandes impactos - sejam econômicos, sejam urbanísticos, da produção de um acervo patrimonial arquitetônico e cultural.

Palavras-chave: História da arquitetura em Campina Grande, patrimônio industrial. Fontes documentais.

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

01. Introdução.

A cidade na década de 30 do século XX destacava-se no Brasil e no mundo, devido ao seu

desenvolvimento acelerado, a partir da comercialização do algodão. Campina Grande

recebeu muitos investimentos com a instalação de grandes empresas, que foram

norteadoras para a expansão do tecido urbano, sendo protagonistas do surgimento de

novos bairros.

Anos mais tarde, no final dos anos 50, a cidade perdeu sua força no cenário algodoeiro, e

São Paulo, tomou-lhe a posição nacional. Tal fato está sendo pesquisado, sendo coletadas,

no momento, informações a respeito desse período histórico, através de resgates

imagéticos e documentais que colaborem na construção dessa história.

Tais fontes primárias e secundárias coletadas gerarão um acervo documental rico, que

poderá ser trabalhado em parceria com o Museu do Algodão existente na cidade,

aprofundando e relacionando aspectos, vinculados aos estudos do patrimônio industrial do

ciclo do algodão em Campina Grande. 2. Contextualizando o lugar: Campina Grande.

02. Aporte teórico. Documentação, Arquitetura e Patrimônio Industrial. Algumas

reflexões.

Segundo Goitia (1992), os principais elementos das cidades que se industrializaram foram a

fábrica, a estrada de ferro e o cortiço. As fábricas tornaram-se donas e senhoras do solo

urbano e suburbano e passaram a ser o núcleo do novo organismo urbano.

Munford (1998) no livro “A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas”

dedicou um capítulo a descrever o cenário dessas cidades, tratando sobre os processos

urbanos e as relações sociais que nelas ocorriam.

Por ocasião da Conferência 2003 do TICCIH – The International Committee for the

Conservation of the Industrial Heritage (Comissão Internacional para a Conservação do

Patrimônio Industrial), foi extraído um documento, intitulado Carta de Nizhny Tagil (2003)

que colocou que, todo o acervo do patrimônio industrial deve ser estudado, a sua história

deve ser ensinada, a sua finalidade e o seu significado devem ser explorados e clarificados

a fim de serem dados a conhecer ao grande público.

O debate sobre a preservação do patrimônio industrial também foi discutida por CHOAY

(2006), que apontou para duas questões que se vislumbram dessa herança industrial, sendo

estas de natureza e escalas diferentes. A primeira questão está voltada para os edifícios

isolados desse acervo, e a segunda, para as grandes áreas territoriais, com escala regional.

CHOAY (2006) colocou que os edifícios isolados, em geral, de construção sólida, sóbria e

de manutenção fácil, são facilmente adaptáveis às normas de utilização atuais e se prestam

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a múltiplos usos públicos e privados, e citou casos norte americanos e europeus, nos quais

já são incontáveis os imóveis como usinas, ateliers, entrepostos, transformados em escolas,

museus, teatros.

O conceito de reutilização- reintegração de um edifício desativado a uso normal- é apontado

por Choay, como um caminho para a integração do patrimônio industrial à vida

contemporânea.

UMBERTO ECO (1977, p.39) escreveu sobre as fontes de primeira e segunda mão,

afirmando que “a única fonte de primeira mão é o documento autêntico”. Mas o que

podemos considerar como documento autêntico na pesquisa arquitetônica?

Não seriam apenas de primeira mão, “autênticos”, os esboços, croquis, e o desenho/ projeto

desenvolvido pelo arquiteto e sua possível equipe de trabalho, com seus memoriais

descritivos e justificativos? E de segunda mão, o edifício/ construção em si? Considerando

que este produto, conforme sabemos passam por uma série de percalços durante a obra,

que muitas vezes o desvirtua de um projeto original, não podendo, portanto, ser considerado

autêntico?

Dessa maneira, teríamos então, como documentos de primeira mão, as fontes primárias, os

desenhos, os escritos do autor, os esboços, croquis, estudos preliminares, projeto,

memoriais descritivos, justificativa, correspondências, entrevistas com autor da obra,

depoimentos. E como documento de segunda mão, o “edifício”, a bibliografia existente sobre

o autor, o projeto, e a obra?

Por sua vez, o professor KATINSKY (2005, p.46) considera que:

“Em história da arte e, principalmente, em arquitetura, são fontes primárias

as próprias obras, os esboços e desenhos preparatórios, bem como, os

memoriais, mas também as apreciações dos contemporâneos, os

depoimentos dos empreendedores, as observações dos usuários e até a

escrituração comercial... e por fontes secundárias, temos considerado

todos os textos de referência sobre o período estudado, como ensaios

históricos e críticos”.

O que se pode deduzir dessas colocações de Eco e Katinsky, é que na pesquisa

arquitetônica, pode-se considerar que o edifício é um documento, independente de ser uma

fonte de primeira mão ou de segunda mão, e que, portanto, a metodologia de enfoque

arquitetônico e visual, através da coleta de imagens (desenhos e fotografias) tem uma

importância fundamental neste estudo.

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Fundamental também é definir o que se entende por patrimônio industrial, e para tal, toma-

se aqui o conceito trabalhado pela Carta de Nizhny Tagil (2003):

“... compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor

histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios

englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de

processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de

produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas

as suas estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se

desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como

habitações, locais de culto ou de educação.”

O resgate da memória coletiva e individual desse momento histórico que teve o apogeu das

primeiras indústrias em nossas distintas culturas se projeta como uma possibilidade de

trazer para o plano do historiador o registro da própria reação vivida dos acontecimentos e

fatos históricos.

O acervo composto pelas antigas fábricas, galpões de armazenamento, entrepostos,

escritórios, estações ferroviárias encontram-se abandonados nas periferias e mesmo nos

centros urbanos de nossas cidades, quase sempre ameaçados de serem demolidos em

vista de seus maus estados de conservação e algo necessita ser urgentemente realizado.

O resgate documental, imagético, realização de inventários, ações de educação patrimonial,

proteção legal, entre outras ações importantes são algumas etapas do processo que urge

ser iniciado em nossas cidades e em seus planejamentos urbano e territorial.

Campina Grande recebeu muitos investimentos com a instalação de grandes empresas, que

foram norteadoras para a expansão do tecido urbano, sendo protagonistas do surgimento de

novos bairros. Várias fábricas foram construídas, como a sede da antiga Indústria Marques

de Almeida, a antiga fábrica de tecidos Bodocongó de Aires & Cia, entre outras, que

infelizmente, foram demolidas ou descaracterizadas.

03. A cidade de Campina Grande durante o ciclo do algodão: 1900-1950.

Como estudo de caso para apresentar nesse artigo, apresentar-se-á um trabalho de resgate

documental de um edifício isolado, a sede da antiga Indústria Marques de Almeida, situada

no centro histórico da cidade de Campina Grande, Paraíba.

Figura 1. Mapa de localização de Campina Grande. PB. Nordeste brasileiro.

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Fonte: Montagem de mapas editado por Jully Carvalho.

Campina Grande está localizada no nordeste brasileiro, na região do Agreste Paraibano, no

planalto da Borborema a 550m acima do nível do mar, no ponto de latitude 7º13’11’ sul e de

longitude 35º52’31’’ a oeste; geograficamente estar bem privilegiada, situada no centro da

Paraíba (figura 1).

Possui uma população de 400 mil habitantes, e por ser uma cidade polo exerce grande

influência sobre os aproximadamente 60 municípios que estão em seu entorno. O clima

característico é o tropical semiárido, e apresenta temperaturas mais amenas devido a sua

altitude. O Instituto Nacional de Meteorologia registra a média de temperatura mais alta em

torno de 29,9°C e a mais baixa de 17,8°C.

O município é bastante acessível às principais cidades do nordeste, e economicamente

destaca-se nas áreas de serviço, comércio e tecnologia; Possui um contexto histórico rico

em manifestações culturais; um dos momentos que marcou os campinenses foi o ciclo do

algodão, o ouro branco, o que levou o município a ser considerada a segunda maior

produtora de algodão do mundo.

Como breve histórico, coloca-se aqui, algumas informações básicas a cerca da evolução

histórica da cidade, baseada no texto de Basílio (2009), que descreve que a cidade teve

origem em uma aldeia indígena dos índios Ariús, tribo "domesticada" por Teodósio de

Oliveira Ledo, capitão-mor das fronteiras das Piranhas, Cariri e Piancó, que levava este

grupo consigo quando, vindo do Sertão, iria à capital atender ao chamado do governador-

geral.

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Ao ir por um caminho diferente, deparou-se com uma "campina verde". Demorou-se no

local e por ter gostado do lugar ali resolveu aldear os seus índios. Tal fato ocorreu em

aproximadamente, em 1697. Em 1769, transforma-se em Freguesia, e em Vila, em 1790,

passando à cidade, em 1864 - Por Lei Provincial. Sendo a sexta da Paraíba que já contava

com Parahyba (antigo nome da capital, João Pessoa), Mamanguape, Areia, Souza e

Pombal.

Figura 2: A Cidade busca sua modernidade.

Fonte: Acervo QUEIROZ,Marcus V.

O apogeu econômico de Campina Grande se deu quando o trem chegou à cidade, no dia 2

de outubro de 1907, impulsionando o comércio local, e a população vive momentos de

progresso e modernidade (figura 2), e deu um salto de mais de 600%, chegando à marca de

130 mil habitantes no transcurso de pouco mais de três décadas- a cidade virou um polo

atrativo de pessoas que foram trabalhar em volta da indústria algodoeira.

Segundo AFONSO (2015), a cidade possuía quatro praças algodoeiras, que recebiam essa

produção, e foram nesses lugares que se implantaram as primeiras edificações voltadas

para o beneficiamento do produto: Praça do Algodão, atual Praça João Rique; Praça do

Açude Velho, no entorno da Estação Ferroviária antiga; a Praça das Boninas; e a Praça do

açude Bodocongó.

A Praça do Algodão, por exemplo, era um espaço público onde se recebiam e

comercializavam-se fardos de algodão vindos das regiões produtoras. Ali ficavam na rua,

fardos altos do produto, que posteriormente, passou a ser armazenado, na Rua dos

Armazéns (atual Rua Marques de Herval), que abrigava grandes galpões para armazenar os

grandes fardos de algodão para serem exportados (Araújo, 2012).

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Figura 3: Cartão Postal.Década 1950

Fonte: Acervo QUEIROZ,Marcus V.

A ferrovia, atrelada à infra estrutura que compunha o ciclo do algodão, trouxe a implantação

de várias fábricas, escritórios, galpões de armazenamento, que configuraram uma nova

forma urbana para a cidade de Campina Grande (figura 3).

Era através de Campina Grande que toda a produção regional algodoeira era encaminhada

para os portos marítimos de Recife, em Pernambuco, e de Cabedelo, próximo à capital

paraibana de João Pessoa.

Nas décadas de 20 e 30, a cidade atraiu empresas de outros lugares, como do estado de

Pernambuco, e vários empresários investiram na cidade, tais como os irmãos Marques de

Almeida, o empresário José Tavares de Moura, entre outros. Tais empreendimentos passam

a ocupar novas praças, como a das Boninas, onde foi implantada a importante indústria

Marques de Almeida.

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Figura 4: Mapa de Campina Grande, 1943.

Fonte: Acervo QUEIROZ,Marcus V.

A cidade que estava passando por seu momento áureo econômico, devido ao ciclo do

algodão, não mediu esforços para se modernizar, tanto com iniciativas públicas, quanto

privadas, havendo sido realizadas várias reformulações no traçado do espaço urbano, na

gestão do prefeito Verginaud Wanderley, que ocupou de 1935 a 1937, o cargo de prefeito de

Campina Grande, ao qual retornou em 1940, exercendo-o até 1945. O espaço urbano

cresce e novos bairros começam a surgir (figura 4).

Verginaud edificou prédios em estilo déco (figura 5) para simbolizar sua gestão

modernizadora, formando um dos mais importantes acervos proto moderno brasileiro.

Figura 5: Trecho da Rua Maciel Pinheiro. Centro Histórico de Campina Grande.

Fonte: Projeto Campina Déco. Prefeitura Municipal de Campina Grande.

Contudo, a partir dos anos 50, com a entrada do estado de São Paulo na produção

algodoeira nacional, tal ciclo nordestino teve o seu processo de decadência iniciado e

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atrelado a uma série de fatores, enumerados por ARAÚJO (2006, p.35) que apontou para os

seguintes motivos desse declínio:

“ O baixo preço do algodão paraibano frente à produção do estado de São

Paulo - que passou a investir no algodão, após a queda do ciclo do café; a

falta de incentivos aos produtores, nos quais os juros cobrados pelas

safras eram altos, impossibilitando o plantio ao produtor; a falta de bases

técnicas e o preço; a dupla tributação jê que o produto era escoado para

Pernambuco; a concorrência desleal das grandes indústrias de

beneficiamento e exportação, frente aos pequenos produtores agrícolas,

assim como, as pequenas indústrias, além da falta de um porto equipado

que atendesse as exigências do comércio algodoeiro’.

A desativação das grandes empresas algodoeiras ocorrida na década de 80 do século XX,

como a SANBRA e a Anderson Clayton, finalizou de vez, uma fase áurea da economia

industrial nesse setor, em Campina Grande, deixando obsoleto, um acervo rico na área de

patrimônio industrial que requer uma atenção das instituições públicas e privadas, da

sociedade em geral, para tentar resgatar e reutilizar tais edificações, que a cada dia,

passam por processos de descaracterização de demolição.

4. Dois estudos de casos: A antiga Fábrica de tecidos Bodocongó de Aires & Cia e a

Antiga Fábrica Marques de Almeida.

Como estudo de casos, que resgatam a produção patrimonial industrial do ciclo do algodão,

serão expostas a seguir, informações referentes à duas antigas fábricas: uma que era

situada às margens do Açude Bodocongó- que foi demolida; e a outra, situada no Centro

histórico da cidade, que se encontra subutilizada e em constante processo de

descaracterização.

4.1. A antiga Fábrica de tecidos Bodocongó de Aires & Cia.

A Antiga fábrica de tecidos Bodocongó de Aires & Cia (1928-1933), ao longo dos anos,

mudou de proprietário, transformando-se em S.A Indústria Têxtil de Campina Grande (1933-

1990), posteriormente, em Limoeiro Malharia (1990/2009). Atualmente, no lugar da antiga

fábrica, está sendo projetado e implantado o Centro de inovação e tecnologia Telmo Araújo/

CITTA, pertencente a um grupo gestor formado pelo Parque tecnológico de Campina

Grande, UFCG, UFPB, FIEP, FINEP, Governo Federal, Governo da Paraíba e com apoio do

SEBRAE.

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4.1.1. Um pouco sobre a história da antiga fábrica.

Durante o auge do ciclo do algodão em Campina Grande, nas primeiras décadas do século

XX, o Município era carente de água, e por isso, em 1916, o então Prefeito Cristiano

Lauritzen mandou construir o Açude de Bodocongó, numa área afastada do centro urbano,

dando início à ocupação do entorno do açude, que começou a ser povoado.

Figura 6: Fotografia da fábrica de Bodocongó e seu entorno.

Fonte: www.retalhoshisoricos.com.br

Nesse entorno foi construída em 1928, a Fábrica Bodocongó de Aires & Cia (figura 6),

idealizada pelo coronel Ildefonso Affonso Ayres e Sr. José Palhano, trabalhava com o

beneficiamento e tecelagem de algodão. Foi implantada em um terreno que pertencia à

fazenda Bodocongó, às margens do açude que recebeu o mesmo nome da fazenda.

Nos primeiros três anos da década de 1930, foi vendida ao senhor Aprígio Velloso e

administrada pelos filhos, Domício Velloso da Silveira, Ademar Velloso da Silveira e

Agostinho Velloso da Silveira, impulsionando a industrialização, não só no bairro, como em

toda a cidade, empregando trabalhadores e gerando riquezas para o município.

A família Velloso durante várias décadas esteve à frente do empreendimento, que criou na

área do entorno da fábrica um novo bairro na cidade de Campina Grande, pois foram

construídas casas para os trabalhadores da indústria, capela, escola: o bairro de

Bodocongó. A fábrica dominava a paisagem, e no seu entorno, as casas dos trabalhadores,

juntamente com os demais equipamentos arquitetônicos que foram sendo construídos ao

longo doas anos, foi criando um povoado, transformado em bairro, sendo implantado ali,

mais residências, aberturas de ruas, e serviços de infra estrutura – tudo decorrente da

Fábrica. Os edifícios adotaram o estilo eclético, e através das imagens das fotografias

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antigas, pode-se observar a composição de um conjunto arquitetônico e urbanístico singelo,

proporcional e harmonioso. Observa-se ainda, através das fotografias antigas, que o edifício

que abrigava a Fábrica possuía um volume arrematado por platibandas, e janelas em arco

pleno, destacando-se um corpo volumétrico, que talvez abrigasse, o espaço administrativo e

receptivo da indústria (figura 7).

Figura 7: A fábrica de Bodocongó. Detalhe volume principal.

Fonte: www.retalhoshisoricos.com.br

Em 1995, o penúltimo proprietário da família Velloso faleceu, e nos anos de 2000, a

Indústria Têxtil foi vendida para um grupo pernambucano, a tecelagem Limoeiro Malhas, que

anos depois também fechou as suas portas.Ao visitar atualmente o local, toma-se um

choque. O conjunto fabril foi totalmente demolido. O terreno, totalmente “limpo”, abrigará a

nova sede do Centro de Inovação e Tecnologia Telmo Araújo – CITTA (figura 8): um centro

de pesquisas tecnológicas que não considerou a história do lugar.

Figura 8: 3D do bloco A da nova sede da CITTA.

Fonte: http://citta.org.br/midias.php

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O antigo bairro industrial transformou-se, atualmente, numa zona universitária e tecnológica,

região na qual se encontram instaladas a Universidade Federal de Campina Grande, a

Universidade Estadual da Paraíba, a Escola Técnica Redentorista de Eletroeletrônica, a

Fundação PaqTcPB, a FAPESQ, o Centro Tecnológico do Couro e Calçado, um Hospital

Fundação, e empresas de base tecnológica.

E o mais preocupante desse cenário, é que a história e a memória do lugar não estão sendo

consideradas nas novas intervenções. As pessoas parecem desconhecer totalmente a

importância que teve para a cidade e para a região, aqueles antigos galpões, com suas vilas

e capela.

5. A Indústria Marques de Almeida: Um estudo de caso. Documentação e Arquitetura.

O segundo estudo de caso sobre a documentação arquitetônica do patrimônio industrial

campinense, relacionado ao ciclo do algodão, trata-se da sede da antiga Indústria Marques

de Almeida (figura 9) que era especializada em fiação e tecelagem e que contratou grande

parte da população pobre da cidade para ali trabalhar, gerando emprego e renda para a

cidade durante décadas.

Figura 9. Vista aérea da Indústria Marques de Almeida: Boninas, Rua Getulio Vargas (ao fundo)

Fonte: http://cgretalhos.blogspot.com.br/2013/02/comercio-e-industrias-marques

Através de pesquisa documental realizada ao Museu do Algodão, ao arquivo municipal da

Secretaria de Cultura, bem como, a realização de entrevistas com pesquisadores locais, e

visitas de campo ao edifício, foi possível levantar-se um diagnóstico sobre o resgate que

vários atores vêm realizando, tendo como meta, preservar a edificação de relevante

significado para a história e a memória regional do nordeste brasileiro.

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Figura 10. Vista frontal e lateral da edificação com tomadas visuais desde a Rua Getúlio Vargas.

Fonte: Fotografias de Afonso, A. Julho 2015.

MÉSSALA (2014) realizou um trabalho de final de curso no qual se dedicou a propor um

novo uso para a antiga Indústria, e tal estudo, gerou um levantamento arquitetônico

fundamental para a compreensão do espaço, fornecendo plantas de locação, plantas

baixas, cortes e fachadas que formam um rico material de projeto para futuras e concretas

intervenções.

Figura 11. Vista da fachada posterior e detalhes desde a Rua Félix Araújo.

Fonte: Fotografias de Afonso, A. Julho 2015.

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Segundo pesquisas realizadas, foi o próprio industrial Dionísio Marques de Almeida, quem

arquitetou e construiu o edifício de linhas ecléticas, circundado por platibandas, e com

distintas formas de aberturas. Observa-se que a edificação encontra-se inserida em um

ponto estratégico do centro da cidade, possuindo uma boa infra estrutura urbana, que

favorece o processo de requalificação da mesma.

A edificação possui sua fachada principal voltada para a Rua Getúlio Vargas (figura 10), e

fachada posterior para a Rua Félix Araújo (figura 11), ambas localizadas no centro histórico

da cidade (figura 12), e foi fundada em 1922 pelo industrial Dionísio Marques de Almeida

(1891–1974), sendo a primeira indústria a ser instalada na cidade durante a extração do

algodão, com suas atividades iniciadas em 5 de outubro de 1925, encerrando suas

atividades em 1983, conforme colocou MESSALA (2014, p.57).

Figura 12. Mapa de localização do Centro histórico de Campina Grande. PB.

Fonte: Arquivo do Grupo de Pesquisa Arquitetura e Lugar. CAU. UAEC. CTRN.UFCG

Atualmente, a fábrica foi compartimentada em vários cômodos que abrigam usos distintos,

tais como, comércio de móveis projetados, loja de decoração e estacionamento. Tais usos

foram descaracterizando alguns espaços e algumas fachadas, principalmente a fachada sul,

conforme colocou Méssala em sua análise espacial, acrescentando que: “A parte interna da

edificação encontra-se em avançado estado de deterioração colocando em risco pessoas

que trabalham em seu interior e as que transitam nas suas proximidades”. (MÉSSALA,

2014, p. 58).

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6. Conclusão.

Mas, o que tem sido feito de fato, para preservar este importante acervo? Considerando-se

que estudos documentais existem e são suficientes para uma intervenção de reutilização

espacial?

Observa-se após a pesquisa sobre as antigas fábricas Bodocongó e Marques de Almeida,

por exemplo, que apesar de ser considerado um patrimônio recente, o acervo arquitetônico

industrial do ciclo algodoeiro do nordeste brasileiro, não vem recebendo das instituições

públicas e privadas, o seu devido valor.

A carta de Nizhny Tagil (2003) coloca que “na história da indústria, da engenharia, da

construção, o patrimônio industrial apresenta um valor científico e tecnológico, para além de

poder também apresentar um valor estético, pela qualidade da sua arquitetura, do seu

design ou da sua concepção”.

Mas, a falta de (re) conhecimento por parte do poder público em todos os seus níveis

(municipal, estadual e federal) que legisla e fiscaliza as intervenções nesse patrimônio, é

fatal. O volume de acervo perdido, a falta de memória, tem trazido sérias perdas para a

construção da história de nossa arquitetura, cidade, civilização.

Em 2003, a discussão que houve na Rússia já apontava e colocava que os valores que o

acervo patrimonial industrial possui, “são intrínsecos aos próprios sítios industriais, às suas

estruturas, aos seus elementos constitutivos, à sua maquinaria, à sua paisagem industrial, à

sua documentação e também aos registros intangíveis contidos na memória dos homens e

das suas tradições”.

Algo precisa ser realizado urgentemente, em termos de inventário, de educação patrimonial,

de trabalho de sensibilização, para evitar mais perdas irreversíveis como essa em questão.

Através de visitas realizadas à Secretaria de Cultura do município, teve-se conhecimento do

projeto apresentado no ano de 2014, durante o aniversário dos 150 anos da cidade, titulado

“Projeto Boninas. Campina de Outrora. Campina Grande 150 anos” (figura 13).

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Figura 13. Projeto Boninas. Campina de Outrora. Campina Grande 150 anos.

Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Campina Grande. 2014.

O projeto apresentado visa atrair pessoas para shows na área que se encontra

marginalizada, a fim de que a população possa conhecer melhor o potencial do lugar, e se

aproprie do espaço, buscando apoio de grupos empresariais que firmem parcerias com o

poder público, a fim de resgatar não apenas o edifício sede da antiga Indústria, mas

também, parte do bairro, conhecido por Boninas, que abrigou o antigo cemitério da cidade.

Pode-se observar, que as pesquisa acadêmicas realizadas nas escolas de arquitetura

existentes na cidade, como a FACISA e a UFCG/ Universidade Federal de Campina

Grande, vêm contribuindo bem para o resgate documental, de textos, depoimentos,

imagens, material de projeto, que através de trabalhos apresentam propostas que podem ter

uma boa repercussão no meio político e empresarial, conseguindo assim, recursos

financeiros para as intervenções de resgate.

Contudo, observa-se, que o Museu do Algodão, que abriga parte do acervo do ciclo

algodoeiro, ainda é muito incipiente, e não possui uma boa infra estrutura física para

armazenar a documentação, que fica dispersa, em vários órgãos, dificultando os trabalhos

de apreensão desse rico patrimônio industrial campinense, que vem, se perdendo com o

tempo, tendo muitos prédios demolidos ou descaracterizados.

A criação de um espaço mais adequado, bem projetado, para abrigar o Museu do Algodão,

seria o ideal a ser proposto, como passo inicial para o trabalho de resgate documental.

Como passo seguinte, a reutilização do documento arquitetônico em si, o próprio edifício,

com o fim de preservar a memória arquitetônica dos detalhes, técnicas, estilo, elementos

que fizeram parte de um período fundamental na formação urbana e regional do nordeste

brasileiro.

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

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