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o outro lado da chuva

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uns escritos de caio resende, esse livreto publicado pelo selo candeeirocafe em agosto de 2012

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o outro lado da chuva

caio resende

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Eu era um segredo de lua tatuado no zinco

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(nervura)

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Pedra, vidraça (a partir de um retrato de Arthur Omar)

Em pleno abandono –

só os olhos encharcados de luz –

veste teu riso

arde o ritual

em que a lagarta se liberta:

) não te encolhes mais para aquém do antigo espelho (

passa o teu batom

e é um pouco feito sangue

que se expulsa das artérias

Existe algo por surgir

no rebentar de cada gesto

Uma paisagem de folhas banidas

extrapolando a galharia

E até a própria lua que urina a tua face

tem consigo a pretensão de uma pedra

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(e agora aqui)

devo beirar essa esfinge e seu silêncio,

beirar como toda essa areia que aos poucos se distingue e dissolve,

beirar como quem beira,

ao indissociável e ao amargo de cada manhã.

devo beirar a minha margem,

nadar o vapor da pólvora — esse útero de chamas

de cavar os nossos poros.

devo cravar meus pés com mais força ainda

nesse chão de lagos sem fundo,

nessa sarjeta e luz de poste que abriga

o último cravo da constelação de tua ausência.

devo percorrer cambaleante o cume sonoro da minha angustia

e cavar com minhas unhas o asfalto dessa noite.

devo cagar a minha estirpe com longos braços de descuido,

ancorar toda vertigem num caule de graúnas cegas miseráveis.

devo viver só mais um pouco, matar só mais um pouco,

calar nas filas a minha agudeza, rir-me por dentro,

com estardalhaço, de tudo que é frágil, vil e dócil.

devo beirar a voragem dessa casa, violentar o meu abrigo

reconhecer a tua espécie no ranger de cada víscera.

devo morrer a minha morte sem outro gênio de mil braços

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capaz de agarrar a hora certa, ou queimar o meu esquife no labor

do teu sorriso — queimar o meu esquife no labor do teu sorriso.

devo andar com minhas manhas mais um tempo;

erotizar a tua fala desprovida de desejo

como quem arranca dessa vida o que dela não é sopro.

devo voltar naquela tarde — dia da infância —

e comer a mesma lama uma vez ainda

ou socorrer cada afogado preso ao espelho estático de um rio

ou ejacular as minhas dúvidas para o escuro de teus olhos

ou mesmo, agora, acordar a tua cama de lençóis irrevogáveis

ou circundar o raio de teu seio junto à prece de um louco

ou esmurrar o meu reflexo na parede mais escura

ou num desajuste subcutâneo batizar as tuas unhas com meu sangue

devo lamber até o choro ( libertar antes o choro)

em cada nuvem constipada

devo sentir a madrugada na gagueira de meus ossos

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Evoé

Nada está perdido! O azul do sol

nasce para dizermos "o azul do céu"

– tudo se debruça aos olhos!

Numa orgia de vida

a morte é uma invenção barata,

e só morre quem vive de olhar para ela.

A aranha fia a sua teia

para a mosca debater-se inútil,

no entanto não existe a morte

duma mosca a debater-se.

Toma teu vinho, fecha teus olhos:

estar vivo é embebedar-se de tudo!

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Pássaro turvo

Uma face de clown te mira do escuro – sem

sorrir-te, porém

E caminha com teus passos

E uma paisagem de lodo se desprende da

brasa dum poste

(cavalos de sombra amputados no tronco,

metamorfoses em mulas-de-fogo e medo infantil)

Povoado de escassos acenos,

o cérebro urgindo nos anfiteatros do tempo

as ilhas de fogo dos amores perdidos,

com o teu caminho num lance de dados,

o céu palafitado de nuvens em ira,

todos os teus desejos são bonecos vodu

espetados de estranhas carícias;

intermezzo de solidão compulsiva

e caralhos turgescentes reduzidos a pó

Sobre o pavimento enlouquecido,

segues com teus passos de coragem

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e acendes o teu Cigarro

num gesto impreciso

Segues com teus passos de coragem

num gesto impreciso

É madrugada!

Tua fome de sentido fora enterrada junto a um

cadáver de filho

As adolescentes não rogam mais pela dureza em teu nome,

os pederastas fugiram dos banheiros públicos,

a coriza de tuas narinas noturnas

vence o roxo limite de teu sonho

E andas com teus passos trêmulos,

num descompasso de ternura

E tuas mãos tateantes mastigam

folhas de absinto

Homem bêbado,

tua chaga é a luz de algum meu verso,

teus anseios eu conheço bem ou quase-nada,

de ter cavado na madrugada, tanta vez, um corpo frio e

sem nome

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Quantos conhaques apertados contra o peito,

quantos baques esfolaram-te os joelhos,

engendrando dores recebidas com sorriso

Há vestígio de cabeças esmagadas

habitando sob a dispéptica paisagem dos bueiros,

engravatados que se molestam com canetas

enquanto noivas desafiam a gravidade,

há doentes mastigados em espera,

genitálias jorrando o pus dos moralistas,

papagaios enterrados nos quintais da obediência

enquanto a vida persiste em coroar a natureza

Mas tu, pássaro turvo, homem bêbado,

com teu rim transplantado por engano,

com tuas tíbias e costelas fraturadas;

tu, com teus passos de vexame,

pouco sabes disso tudo que há no mundo,

belo que tu és –

com teu fígado poente e

cigarras ruidosas nas pálpebras do sono,

por onde agitas a caveira,

desvirginando a praça pública

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com teu mijo soberano:

nenhuma inocência

te pôs menor ou maior que o instante!

Assim como o circuito das pastagens luminosas

ocultado por estúpidos acenos esculpidos nas usinas,

e como epígrafes do ócio suicida

que se atira das manchas de luz

dando vida a tudo que existe,

imbuída nas horas secretas –

e pelos carrosséis delirantes de neblina

a tua imagem alucina a mandrágora do tédio

Quantos conhaques apertados contra o peito

Quantas vociferações entregues ao nada

Nessa miríade de olhos ausentes,

sob o sumo sombrio de tuas feridas,

o sal corrosivo que emana dos ventos

encontra tua hora mais pura.

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(evocação)

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Maria

Paraíso! – grita a romaria,

e Maria que nunca se viu

pesa no corpo um céu ideal.

Sem azul e sem nuvens.

Não sei o que a tarde me guarda,

a tarde que é feito um lençol,

que nunca esteve comigo.

Romaria! – grita Maria,

e o céu se despede das nuvens

se despede da cor azul

e dos urubus que cantam carniça.

Sem saber eu tomo conhaque

: a beleza é um rio perdido,

e Maria não lembra o meu nome.

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Ausência

Numa valsa para Rilke

) uma semente se partindo (

compreendo uma imensa clareira

no lugar da exatidão

As moças de vestido seguem pela rua

O marulhar das conversas

fixa verdade nos postes da angustia

Memória!

:

insistentemente

quando vinha a insônia

e lesmas no sal das minhas lágrimas

os meus lábios fendiam-se por teu nome

Arriscando outra vez pelo sereno

a paz, meu bem, era uma estrela sem lume

– um corpo baldio no cordão da madrugada

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tocando de estrela (ou Ela vai entrando para fora da porta) por caio resende, ian c.lima, pablo luz

Ando no chão tatuado de vinho, na esfinge da rua do estampido.

Escala que se martela de assobio, estampado à boca rubra

na intensidade de um milhão de hipérboles

(são todas células trêmulas repelindo gostos

calafrios da recém-primavera na língua).

Besouros disputam nossos ouvidos.

Vozes de cetim deslizante,

aveludadas, rebatem na fronte –

porque o tempo não é esse,

as teclas não são essas.

Repito: estamos beirando e seremos

mutilando os nossos braços,

expelindo versos,

mastigando lares;

o que ficou, o que deveria ter ficado

é substância, idéia e substância de alguma quase canção –

Pulo de vozes falando de como é fácil

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ser besouro em uma dança estranha

e abalar as estruturas da veia mais corrente!

mas a música sempre volta,

sempre volta.

(uma varanda observa com nuvem e um multicolorido

de guitarra e mulher:

dance!)

Há entre os dedos a felicidade das asas que vão além

e não há choro. Choro

choro

pra ninguém.

(tocando de estrela)

E ela vai saindo pela porta,

Ela vai voando e não volta:

ela vai entrando para fora da porta

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O poema é a mão estendida

Porque persiste à tua carne

essa invencível ausência –

soma de braços sedentos

despindo conhaque pela clave

do peito

Porque de veias convulsionadas

não foste a medida

APENAS

não foste ordinário

às coisas da vida. Porque persiste,

em cada teu gesto, algum olhar

mais perdido

dum agreste

recalque telúrico, com que fitas

as moças de praça nos olhos da ama

Porque

foste ausência, suor e conhaque!

foste escombro e sopro de vida

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Uma canção a mais

em tuas falanges,

cada delírio num grão pela terra,

e tu a ama como nunca

(tua faca!)

como um fado por sobre o papel!

e até essa alegria,

antífona das coisas miúdas:

levaste-me, poeta, vida e terra,

ao parco ouro das minhas mãos

Porque preso nas presas de um afago,

rasgando pelo brilho doutras coxas,

estarei um dia diante dessa tua morte,

desse teu ponderar o verso,

sabido de tua dor que é tão minha

Pois por isso vivemos,

para provar também desse limbo

Para que então, um dia, sonhemos

graves orquídeas de luz. Como ondas que violassem mudas

a dureza antiga das rochas

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E deste fio, desta linha de azeite corrida pelo rosto,

ganharemos as calçadas

Porque em cada um de nós

e de cada gesto poupado pela fenda azul dos olhos

Porque dessa casca na pangeia de nossas eras,

deste abismo, deste cinza estólido n’algazarra

do cérebro O POEMA É

A MÃO ESTENDIDA

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(ritual)

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Laura

Este silêncio vertigem que se esgueira pela noite

matraqueado de passos

corredor adentro onde corvos neblinam

e ausentes

antigos gestos no espelho

se confrontam

Este silêncio que se arrasta de halos

que verte inalterado o seu busto de sombra

(este exíguo grão da puberdade

que anima a hóstia de um sonho)

Tal presença orbitada de soslaio

este silêncio que é a última parte

que se rodeia de aldeias e de poços

despindo a brônzea fuligem de tudo

que se escorre mitigado

se expande na loucura

que se despe dos trópicos

em longas torrentes de absinto

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Ó, este meu silêncio

, que não sabe maldizer o que tivemos

que se vive

que se perde como triste ilha

de tesouro

que é cigarro, pão & guerra

onde Putas vão vender o seu delírio

onde Padres sequelam juízos

e acasos vão morrer no mesmo cais

onde Narciso é a pata do que vejo

onde Pollock jorra sangue sobre a tela

, e meninas

se dedilham com poemas

esperando da noite uma vontade qualquer

Este silêncio meu

infante desapego

que se me ergue feito mantra pelas ruas

e não reconhece a distância

entre os pontos

(qual certeza qual fuga ou a têmpora banhada de suor!)

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que se arrasta pelas ruas pouco mais

para retomar toda vertigem no breve tempo

em que me perco dos cabelos

quando a tarde já é nua

, amena

e a dor tão mais pequena se aquece de desejo

Ah, este silêncio

que se abre em mil feixes

que desaloja

incessante

essa astúcia de grilo pela noite

esse baque de porta pela noite

esses mil fantasmas de homem pela noite

e que se escorre sem destino pelo ventre

carcomido de uma estrela

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Devir

Sempre se olha o ocorrido

com pesares de justiça,

mas entre a vespa e a orquídea

uma luz se estremece

Todo silêncio carrega

em si um traquejo de fala

E toda voz que canta

é uma parcela de silêncio

Eu ando nessa praça

e ela me perde

Eu ando nessa praça

e mesmo me perco

Não há verdade alguma em tudo isso:

dizer poesia é encantar o silêncio

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Giramundo

Achar esse verso perdido

com ventura de quem,

estando no telhado,

ergue a telha da casa do sonho

Achar esse verso perdido

vez que lá fora tudo é desterro!

(e rios correm para dentro

das ruínas do sonho –

amarfanhado de raquíticas veias )

Achar esse verso perdido

(ou erguer a velha divindade –

triste, tão mais triste –

de um gesto que deixamos)

: descer outro porão,

porque este é o caminho do poema

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a pata do lince no estro das chamas

Conspícua tarde de maio

em que todos os nossos medos

são relíquias de outonos desenganos

Achar esse verso perdido

a bruma perdida no elmo das horas

até que ferva o seio sob o chambre

alçando na sombra da morte um parto de rosas

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do desejo

Sê apenas. Como folhas

que vão para o nada,

sem apelos de sul ou de norte;

que se só deixam a causa do caule

pelo coito breve das plumas.

Sê apenas – na superfície –,

se deixando ao abrigo do acaso,

essas setas que dobram do dia

até destilarem os traços.

Sê apenas. E caminhar

nos vales do ermo,

com mil flores brotando dos cascos!

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Poema para uma porta fechando

Havia um silêncio na velha casa

de onde jamais teria saído

o corpo imberbe do anjo descalço

tecendo corais de absinto

Havia na velha casa de um dia —

no que a manhã era um lago sem fundo —

a carne aberta da flor diluída

que se desaba no grande Cronópio;

Havia na pulsação do hemisfério

(então muito longe das linhas do sono)

da lua cabocla, a luz sonolenta

de traças em pleno abandono

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Publicado em Agosto de 2012 (1ª edição, ebook)

Capa, fotografia: luís mathias (stagnaryo)

candeeirocafe.wordpress.com