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I o palacio Palmena-Catalogos da galeria do Calbariz-Um muzeu de pintura portugueza-A obra de Sequeira, de Vieira Portuense e de Vieira Lusitano - Os Sousas Calbarizes- Uma dynastia intellectual- Academicos, diplomatas e amadores de bellas-artes - Palados do Rato, do Calbariz e da Arrabida-As carta. do conde de Raczinsky- Uma maravilbosa coIlecção de esmalte. de Limoges- Um quadro de Ra- pbael e de julio Romano-O S. Miguel Arcbanjo, de Grão Vasco- O S. Paulo Eremita, de Guida Reni - Santa Rosa de Viterbo, de Balestra-As quatro grandes telas de Sequeira-Um quadro de Te- niers-Os dois retratos de sir Thomas La,vrence-O gabinete do sr. duque de PalmelIa-As purceIlanas e as faianças-A baixeIla do conde da Povoa - U m presente de Luiz Filippe - A sr.· duqueza de Palmella esculptora e ceramista. Por uma noute d'este inverno, em que re- unira no meu gabinete de trabalho quatro ami- gos, occupados mais gloriosamente do que eu em sustentar com honra a sua profissão de homens de lettras, a conversa recahiu, depois de percorrer veredas sinuosas, por onde a ima- ginação de cada um seguira aos acasos da aventura, sobre a ausencia quasi completa de informações em que nos deixaram historiadores e chronistas no que se póde chamar, pela equi- valencia entre o theàtro e a vida, a mise-en-scéne e o scenario da historia. E um de nós recorreu

O Palácio Palmela, Carlos Malheiro Dias

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Crónica em forma de carta, escrita por Carlos Malheiro Dias em 1905, onde descreve os bens do Duque de Palmela existentes no seu palácio ao Rato

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    o palacio Palmena-Catalogos da galeria do Calbariz-Um muzeu de pintura portugueza-A obra de Sequeira, de Vieira Portuense e de Vieira Lusitano - Os Sousas Calbarizes- Uma dynastia intellectual-Academicos, diplomatas e amadores de bellas-artes - Palados do Rato, do Calbariz e da Arrabida-As carta. do conde de Raczinsky- Uma maravilbosa coIleco de esmalte. de Limoges- Um quadro de Ra-pbael e de julio Romano-O S. Miguel Arcbanjo, de Gro Vasco-O S. Paulo Eremita, de Guida Reni - Santa Rosa de Viterbo, de Balestra-As quatro grandes telas de Sequeira-Um quadro de Te-niers-Os dois retratos de sir Thomas La,vrence-O gabinete do sr. duque de PalmelIa-As purceIlanas e as faianas-A baixeIla do conde da Povoa - U m presente de Luiz Filippe - A sr. duqueza de Palmella esculptora e ceramista.

    Por uma noute d'este inverno, em que re-unira no meu gabinete de trabalho quatro ami-gos, occupados mais gloriosamente do que eu em sustentar com honra a sua profisso de homens de lettras, a conversa recahiu, depois de percorrer veredas sinuosas, por onde a ima-ginao de cada um seguira aos acasos da aventura, sobre a ausencia quasi completa de informaes em que nos deixaram historiadores e chronistas no que se pde chamar, pela equi-valencia entre o thetro e a vida, a mise-en-scne e o scenario da historia. E um de ns recorreu

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    a um exemplo decisivo: foi o pao da Ribeira, durante prolongados annos, em ras de incom-paravel esplendor, morada dos reis de Portugal, que n'elle habitaram at 1755, em que o des-truiu o terremoto. Que sabemos ns d'esse pao real? Nada, ou quasi nada. O soberbo palado mandado levantar por D. Manoel, o pavilho, chamado Forte, que Filippe II fez construir, Cf annexo que D. Joo V addicionou ao edificio, a capella patriarchal, o theatro da opera, con-cluido por D. Jos I cinco mezes antes do ter-remoto, tudo desappareceu, sem que ficasse na historia um descriptivo amplo e municioso de tantas maravilhas. No ha um inventario dos bens sumptuarios da nobreza, soterrados por occasio do mesmo cataclismo. D'esse passado de esplendor e de fortuna pouca memoria r~sta. O historiador tem de proceder por conjecturas, quando pretenda evocar a vida dos seculos pre-teritos, em quadros picturaes de interior e de costumes. Esta lacuna far-se-ha sentir muito me-nos para as futuras geraes, povoadoras de futuros seculos, no que se refira nossa vida contemporanea. A photographia e a imprensa incessantemente esto a documental-a n'um ar-o chivo sem fim de clic1ts e depoimentos. Mas convinham os meus quatro amigos em que a litteratura portugueza, depois de haver contri-buido grandemente para a elaborao critica da historia dos costumes, parecia querer abando-

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    nar entre mos menos habilitadas a honra de servirem de guias curiosidade das longinquas geraes, na apreciao das sociedades do seu tempo.

    Foi n'essa noute de conversa, entre mil pla-nos edificados e logo arruinados, que ficou re-solvido o ensaio de uma serie de pequeninas monographias ou memorias, em despreoccupado estylo epistolar. com descripes das grandes casas de Portugal, que representassem um sub-sidio, ainda que modesto, sobre a moderna sum-ptuaria portugueza.

    no proseguimento d'esse ensaio, que me occuparei hoje de' uma casa, que a todas as da crte e do reino sobreleva em categoria e es-plendor, depois dos paos reaes, e que justa-mente logrou fama de abrigar os mais esplen-didos thesouros de arte: a casa Palmella.

    Um catalogo, hoje rarissimo, da galeria opu-lenta do Calhariz, impresso na Imprensa Na-cional, com o titulo de Catalogo dos quadros e mais objectos de Bellas-Artes, que se acham no palado do duque de Palme/la (t) quando da sua reedificao pelo duque D. Pedro; o catalogo

    (1) Este catalogo dividido em sete seces, a saber: Pinturas; Estatuas e outras esculpturas antigas; Estatuas e esculpturas modernas; Objectos diversos; Vasos etruscos achados em Italia, Sicilia e Grecia; Loua antiga denomi-nada de Leo X; Mezas de mosaico e marmore.

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    da ExposiO retrospectiva de artes ornamen-taes, de 1882, onde os srs. duques de PalmelJa expozeram parte das suas admiraveis colleces de esmaltes e de louas da China, do Japo, da India, de Svres e de Saxe; a enumerao suc-cinta publicada a p. 142, 153 e 166 do t. IV da 2.& serie da Revista Universal Lisbonense (185 1-1852); as referencias de Raczinsky. o ce-lebre ministro da Prussia, insigne amador. de beBas-artes, a quem devemos um volume de -cartas no genero das de lotd Beckford e um Diccionario historico e artistico de Portugal (I); e finalmente, as dua

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    ou menos assiduidade, o palacio do Rato, na sua maioria esculptores, parte o depoimento una-nime e verbal sobre a quantidade e qualidade das maravilhas que elle encerra, no existe um unico documento de vulgarisao. E entretanto essa riqueza artistica, que a casa Palmella tem resguardado da gula dos mercadores estrangei-ros, constitue, no s o justo orgulho de uma famlia, mas uma honra insigne para o paiz, que viu perdida, com o terremoto, as invases, a transferencia da crte para o Rio de Janeiro, a venda dos bens conventuaes e as luctas poli-ticas, a maxima parte do seu patrimonio de arte, amontoado em tres seculos de predominio e de grandeza.

    O melhor da producO artistica de Portugal nos principios do seculo XIX est enthesourado no palacio do Rato. O maior pintor do seculo, o grande Sequeira, s l pde ser dignamente admirado nas quatro telas prodigiosas-A visi-tao dos Reis Magos, A Descida da Cruz, A Resttrreio do Senhor e O :Juizo Universal, as duas primeiras conclui das, as duas ultimas por acabar, infelizmente, e cujos projectos, em carvo, ninguem ha que no conhea da famosa sala P, do muzeu nacional das Janellas Verdes (I).

    (1) Comprados pelo governo ao sr. marquez de Sousa Holstein por mil libras.

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    Vieira Portuense tem l duas paizagens ma-gnificas - das melhores que conhecemos d' elle, -alm dos esboos magistraes para a illustrao dos dez cantos dos Lusiadas; uma D. Filppa de Vilhena armando os filhos; um Vasco da Gama na ilka dos Amores, soberbo de movi-mento e de composio; uma copia esplendi-dissima de Albano, O toucador de Venus, e a copia do S. Yeronymo, de Corregio, reproduzido em horas de inspirao vehemente e ~'uma flui-dez, n'uma transparencia lumjnosa de tintas, com que s os apaixonados cultos podem ani-mar o pincel, ainda que emerito, de um copista.

    De Vieira Lusitano possue a casa Palmella um Ckristo na cruz, de grandes dimenses, creio que primitivamente destinado capella da lega-o de Portugal em Londres, e um Santo An-tonio prgando aos peixes.

    No um estudo minucioso sobre essas obras e as muitas mais, de summa grandeza, que adiante se ver - algumas d' ellas sublimes, -que eu intento fazer, preenchendo a lacuna, cuja responsabilidade pertence aos competentes. Mas parece-me que estas cartas se animaro singularmente com o descriptivo d'esse palacio, obstinadamente fechado aos curiosos, verdadeira fortaleza, que o parvenu ainda no conseguiu tomar de assalto, e que apenas uma sociedade familiar e resumida frequenta. .

    Por muito tempo, a casa do Rato foi centro

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    mund~nissimo de reunio. As festas que a actual sr.a duqueza ali deu ficaram registradas

    ~ntre as mais sumptuosas do seculo. Do seu ultimo baile dizia ainda ha poucos dias um chronista-dos raros que podiam escrever, se-n~o com o estylo brilhante de um Goncourt, Com conhecimento perfeito do assumpto. as me-morias da vida elegante de Lisboa nos ultimos t:rinta annos, - que fra o mais grandioso con-Certo da opulencia e do requinte, digno de real-'ar um florilgio das festas portuguezas.

    c Para a: ceia, que foi servida n'esse baile, as ostras vieram dos viveiros de Ostende, os faises das florestas da Escocia, a fructa dos pomares que os duques possuem na ltalia e na ilha de Malta; e para que a dansa fosse mais animada e irresistivel, tinha chegado expressa-mente da Hungria um sexteto de tziganos, que, durante a noute, tocou as mais lindas e eston-teadoras valsas de Strauss (I).

    Mas a decadencia da sociabilidade, provo-cada principalmente pela confuso das classes, fructo das revolues democraticas, attingiu por sua vez o palacio Palmella, que cerrou as suas portas mediocridade trumphante.

    Famlia de artistas e politicos, d' essa nobre

    (1) De um artigo do sr. Alberto Braga no Brasil-Portugal.

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    casta do patriciado romano, de onde sahiam os governadores e os consules, os senadores pode-rosos e os amigos acolhedores dos poetas e dos philosophos, os Sousas do Calharizmantiveram sempre as tradies da mais alta cultura intelle-ctual. O duque D. Pedro era um espirito cul-tissimo e penetrante, um diplomata do mais alto talento e um homem de crte, elegante.e senhoril, c que at como poeta em lingua es-trangeira conquistou merecido applauso (I) . De seu pae, D. Alexandre de Sousa Holstein, 10. capito da guarda real dos archeiros-guarda tudesca ou allem, como ainda ao tempo era conhecida, - ministro plenipotenciario em Copenhague e Berlim, embaixador em Roma, apreciador apaixonado das bellas-artes, herdara D. Pedro os eximios talentos de diplomata e essas tendencias elegantes do espirito, que eram o apanagio e tradio da familia, perpetuada at hoje. Os Sousas Calharizes constituem uma das raras estirpes intellectuaes da nossa no-breza. Em 1726, v-se um D. Francisco de Sousa, 6. capito da guarda tudesca, fidalgo dos mais eruditos do seu tempo, socio da Aca-demia Real de Historia Portugueza aos vinte e seis annos, encarregado de escrever as Memo-

    (1) Visconde de Castilho, Lisboa alzliga, velo III. p. 154

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    rias historicas dos reis D. Pedro I e D. Fer-nando. Bluteau denuncia posteridade um ou-tro D. Francisco de Sousa, como c: cavalheiro em toda a materia aulica consultado como ora-culo; cuja presena inspirava respeito e cuja ausencia ainda hoje martyrisa a nossa saudade. :t Este foi o pae de D. Manoei Caetano de Sousa, celebre derigo theatino, iniciador da Academia Real de Historia, socio da Arcadia de Roma, com o nome de Telamo Luzitano, e da Acade-mia Portugueza e Latina, f,:mdada' em 1696 pelo conde da Ericeira. Ainda gentileza do porte e scintillancia do espirito devera o 7. capito da guarda real, D. Manoei de Sousa, a amisade do imperador da Allemanha e a mo da prin-ceza de Holstein, D. Marianna Leopoldina, filha primogenita de .Frederico Guilherme, duque de Holstein, neto por varonia de Christiano III, rei da Dinamarca, e da duqueza Maria Antonia Jo-sepha, filha do conde de Sanfr, da casa de 1s-narde, no Piemonte.

    A auctora do Diogenes, do Fiat Lux, da Santa Thereza de :Jesus, tem assim, na tradio de sua famlia illustrissima, as fervorosas incli-naes pelas artes e o cultivo nobre da intelli-gencia, como uma verdadeira arvore genealo-gica do talento, de onde bracejou e floriu o seu genio inspirado de esculp,tora.

    As colleces de arte do palacio do Rato so o mais luminoso documento d' esse secular

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    cultivo das artes, a resultante do gosto esme-rado de geraes successivas, como as colle-ces dos U rbinos, dos Malatesta e dos Mdicis, reunidas pela munificencia das familias princi-pescas de Italia, protectoras das bellas-artes e principaes instigadores da Renascena.

    No a casa do Rato, onde hoje residem os srs. duques de Palmella, como o palado do Calhariz, edificado nos fins do seculo XVII por D. Francisco de Sousa, 4. capito da guarda real allem dos archeiros, e como o magnifico e sumptuoso solar do Calhariz, na serra da Arrabida, um velho lar da familia; antes s o habitaram os Palmellas depois do casamento do marquez do Fayal, D. Domingos de Sousa Holstein, filho do 1.0 duque D. Pedro, com D. Maria Luiza de Sampaio de Noronha, filha dos 1.08 condes da Povoa, bares de Teixeira, Henrique Teixeira de Sampaio e D. Luiza Ma-ria Jos Rita Balthazar de Noronha.

    O palacio do Rato foi edificado nos ultimos vinte annos do seculo XVIII por Manoe1 Caetano de Sousa, coronel de artilheria (I), architecto da Casa do Infantado, da congregao camararia da Santa Egreja Patriarchal, da meza da con-sciencia e ordens e escrivo da Junta da Sere-

    (1) Ou, segundo os almanachs, sargento-mr de in-funteria, com cxerci~io de engenheiro?

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    Olsslma Casa do Infantado, em cujo cargo succedeu a Matheus Vicente, sendo na direco das obras publicas o successor de Reynaldo Ma-noeI. Este ManoeI Caetano de Sousa, que foi o reconstructor da egreja da Encarnao e da ca-peIla real da Bemposta e ainda superintendeu nas obras da real basilica da EstreIla, obtivera, por merc da rainha D. Maria 1, um terreno pertencente Casa dos Jesuitas da Cotovia, ou Casa do Noviciado, depois Collegio dos Nobres, e um auxilio pecuniario do erario regio. para construir um predio, que substituisse o que her- dara de seus paes, esquina das ruas dos Jas-mins e Patriarchal Queimada, demolido para a projectada edificao do Erario Novo. que nunca passou dos alicerces, e onde o visconde de VilIa Nova da Cerveira enterrou perto de tres milhes de cruzados.

    A nova casa foram ainda concedidos, por alvar de 25 de agosto de 1794. os sobejos do chafariz do Rato. Estas repetidas mercs, reuni-das a to numerosos cargos, deixam presumir que Manoel Cattano de Sousa fosse homem importante no seu tempo. Ignoro se occupava, emquanto viveu. todo o seu enorme predio. Em 1817, seu filho e herdeiro, o architecto Fran-cisco Antonio de Sousa, vivia na sohreloja. O edi-fido era ento habitado por diversos inquilinos.

    Manoel Caetano faIleceu subitamente, em 1802, com sessenta e quatro annos, quando,

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    c perante o principe regente D. Joo, o ministro presidente do Real Erario, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, lhe fazia certas accusaes (i). Seu filho, Francisco Antonio de Sousa, implicado na conspirao de Gomes F~eire, foi preso, no dia 26 de maio. de 18 17, e condemnado a degredo perpetuo para Angola e confiscao dos bens.

    No seu palacio do Rato, avaliado em trinta contos de ris, installou-se a Intendencia Geral da Policia (~). A Gazeta de 1818 publicava, suc-cessivamente, os annuncios de que na casa do

    .. Juizo do Fisco por Inconfidencia, na rua Nova do Carmo, 7-G, s~ procederia arrematao da casa nobre da rua da Fabrica da Sda, perten-cente aos herdeiros do architecto Manoel Cae-tano de Sousa e de que se tinham posto editaes chamando os crdores com direito ao preo das casas do ru e mais herdeiros de seu pae. Um irmo de Francisco Antonio de Sousa e sua mulher, requereram aos governadores do reino para que se declarasse que a existencia da se-cretaria da Intendencia Geral da Policia na casa que haviam herdado de seu pae e sogro, e de cuja propriedade era comparte o ru confiscado,

    (1) Pinto de Carvalho (Tinop), Lisboa de ol/tros tem-pos, vol. !l, p. 295.

    (2) A mudana das repanies para ali e as obras da installao constam de documentos do ministerio do. reino, agora na Torre do Tombo, masso n. o 318, fi. 247..

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    no obstasse a qualquer lanador, que a hou-vesse de arrematar para sua habitao. O pedido obteve deferimento em portaria de 17 de feve-reiro de 1818 e o palacio foi arrematado no dia 18 de maro de 1822 pelo baro de Teixeira, depois 1.0 conde da Povoa, cuja filha casou com o 2. duque de Palmella, passando assim a pro-priedade aos Sousas Calharizes.

    Mais tarde, Francisco Antonio de Sousa, que fra perdoado, com os rus sobreviventes, reclamou do governo constitucional a restituio da sua casa, sem o conseguir.

    O conde da Povoa procedera n'ella a obras dispendiosissimas, afim de transformal-a em vivenda digna do seu fausto. A actual escada-ria do palacio e a harmoniosa sala de jantar, do andar nobre, datam d' este primeiro periodo de reformas, as quaes por varias vezes se repe-tiram e duravam ainda em 1841, como o indica o facto de haver nascido a actual sr.& duqueza no palacio do Loreto, situado entre as ruas do Thesouro Velho e do Outeiro, onde hoje se acha installada a Liga Naval e onde morou o general Lannes,' quando ministro da republica franceza junto ao prncipe regente D. Joo (1).

    (I) Este palacio, a que se refere o sr. visconde de Castilho no 2.0 volume da Lisboa antiga, hoje proprie-dade da sr. a. viscondessa de Valmr e foi edificado por Jos Ferreira Pinto Basto.

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    Concluidas que foram as obras, o duque D. Pedro veio habitar, com seu filho, sua nora e sua neta, o palacio do Rato, onde falleceu a 12 de outubro de 1850. Esta morte como que' vinculou familia iIlustre a casa do director das obras publicas de D. Maria 1. Os seus espaosos jardins, sombreados de arvores quasi seculares, e a sua privilegiada localisao, a poucos minu-tos do centro da cidade, no resguardo de im-portunos ruidos, explicam a preferencia, que sobre o palacio do Calhariz, to opulentamente restaurado pelo duque D. Pedro, lhe deram os Palmellas.

    A no ser a esplendida capella e alguns te-ctos, como os das salas vermelha e amarella, que conservam pinturas do mais puro estylo Luiz XVI, no genero das que ainda hoje se vem no convento da Estrella e 110 palacio de Queluz, pde dizer-se que li casa d Rato no tem -pri-mores architectonicos de subido apreo, tendo sido improficuos os esforos e a fortuna do conde da Povoa para a transformarem radical-mente. Mas, se ao palacio falta.m as architectu-ras grandiosas e bellas, dignas dos thesouros que encerra, e da gerarchia da familia que n'elle habita ha mais de meio seculo, a verdade que em nenhuma outra casa de Lisboa o visitante sente a impresso d'essa solemnidade discreta, tranquilla e grave, com que sempre se reveste o luxo authentico. Quer de dia, na penumbra

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    dos seus stores e na profunda calma ambiente, quer de noute, illuminado pela luz dce das lampadas Carcel, o palacio do Rato, com os seus silenciosos criados de calo de velIudo vermelho e meias de sda cr de carne, a sua escadaria decorada com esculpturas de Soares dos Reis e de Teixeira Lopes, com pinturas de Giorgione, de Vieira Lusitano, de Claudio Coe-lho, de Ticiano, de Christovo de Utrecht, as suas enormes talhas de porcellana da China, de fundo azul ferr~te coberto de ornatos de ouro, com ces de F dourados nas tampas, os seus reposteiros brazonados nos patamares, os seus corredores de mosaico de marmore, apparece como modelo de austera elegancia, de luxuoso conforto, de um apparato rigoroso, sem manei-rismos e - cousa hoje rarssima! - sem sceno-graphia. Nada, n'este nobre conjuncto harmo-nioso, que faa lembrar os palacios theatraes dos banqueiros megalomanicos, dos collecciona-dores por ostentao, dos bric--braquistas ma-niacos, dos israelitas pomposos.

    Sente-se por toda a parte o luxo herdado e mantido em todo o seu esplendor sereno; e, quando o lacaio de libr nos corre o reposteiro de um pequenino gabinete vermelho, fica-se, por um instante, ao lado das maravilhas, que elle encerra, sem a plena consciencia de que nos deixaram ssinho ante um thesouro. Pelas duas portas, que communicam a minuscula ante-

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    camara com as salas, o olhar, attrahido pela luz, incide involuntariamente sobre duas gran-des telas de prodigiosa belleza: a reproduco do S. Yeronymo de Corregio por Vieira Por-tuense (I) e a Sacra familia de Raphael e de Julio Romano. No se sabe ainda ao certo o que ellas sejam e j se lhes sente vagamente 0- sortilegio. O gabinete todo forrado de da-masco vermelho. So de damasco as cortinas, de damasco os dous divans, que a ornamentam. Nas paredes, placas de crystal antigo, para ve-las, em estylo Luiz XVI. Ao fundo, na penum-bra, . uma vitrine de grandes laminas de crystal, com molduras metallicas, assente n'um buffete de talha Renascena. E ha como que um fulgor de joias, de mil cambiantes, a iIIuminar a s.om-bra discreta da vitrine: est ali toda a sur-prehendente colleco de esmaltes de Limoges, que o catalogo do Calhariz denomina loua an-tiga de Leo x e que o 1.0 du"que de Palmella comprou, com o palacio do Lumiar, casa de Angeja, . para onde a trouxera de Roma, nos fins do seculo XVIII, o irmo do marquez pre-

    (1) Francisco Vieira Portuense, o mulo de Domin-gos Antonio de Sequeira e depois d'este o maior pintor portuguez do seu seculo, estudou cm Roma, para onde partiu em 1789, subvencionado pela Companhia Geral de Agricultura do Alto Douro.

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    sidente do real erario, ento embaixador junto da Santa S.

    Esta colleco contm os mais preciosos es-pecimens de esmaltes antigos existentes em Portugal, depois do famoso triptico da Biblio-theca de Evora, representando scenas da Paixo de Christo, e para o qual el-rei me chamava, ha dous annos, a atteno, quando ti~e a honra de o acompanhar n'uma das suas visitas capi-tal do Alemtejo. O muzeu das Janellas Verdes possue poucos exemplares de esmaltes, sem grande merito, inferiores aos da mitra de Leiria.

    A todas as colleces, tanto officiaes como particulares, sobreleva em raridade e riqueza a da casa Palmella, superior que o baro Fer-nando Rothschild legou, em 1898, ao British Museum, .e considerada como uma das mais ce-lebres da Europa, no tanto pelo numero das peas que a compunham, como pela sua belleza excepcional.

    Consta este inapreciavel thesouro de vinte e cinco peas magnificas, s quaes a actual sr.a duqueza juntou mais cinco, de sua acquisi-o, seno to bellas como as primeiras, porque os maiores primores a seu lado empallidece::m, com certeza notaveis e raras todas ellas, sobre-sahindo um pequeno triptico, identico -talvez o mesmo?-ao exposto por Fernando Palha, em 1882, na Exposio de Arte Ornamental.

    A maior parte dos maravilhosos esmaltes da

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    colleco dos srs. duques de Palmella remonta ao' seculo XVI, ao periodo aureo do esmalte, quando as dynastias dos Courteys e dos Rey-mond, tendo levado ao apogeu a sua arte e inspirados pela Renascena italiana, comearam reproduzindo as composies dos grandes mes-tres das escolas de Florena e de Bolonha.

    De Jehan Courteys so os seis pratos em cobre, com o diametro de Om,24. representando o Presepio, a Adorao dos Reis Magos, a Fuga para o Egypto, a Circumciso, a Visitao de Santa Isabel e a Morte da Virgem, com as le-gendas: Nativitas. Yesv-C/lristi. - Trivns. Re-gttm. Oblatio. - Fvga in igyptvns. - Ckristi. Yesv. Circvmcisio.-DivtE MaritE et Elisabet/UE. - Obitvs. DivtE Virginis, cujas orlas represen-tam um friso archictectonko, no ll1ais sum-ptuoso estylo da Renascena, ornado de carran-cas e fechado por um escudo enramalhetado de louros. O reverso d'estes seis pratos - verda-deiros monumentos da arte do esmalte no se-culo XVI, pela opulencia do adorno, pela riqueza do colorido. pela minucia da composio - so decorados com fachos accsos e bustos romanos; todos eJles marcados pelas iniciaes J. C. (Jehan Courtois ou Courteys). constituindo uma serie de extraordinario valor, que s na Cathedral de Chartres e nos muzeus do Louvre e de Cluny pde encontrar rival. Pierre Reymond est re-presentado na coJleco por duas peas exce-

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    pcionaes: urna taa ou fructeiro, tendo no fundo pintada urna alIegoria da Sapiencia, represen-tada por um ancio - figura evidentemente inspi-rada em Miguel Angelo - sustendo na mo di-reita um corao, com um galgo estendido aos ps e por legenda o verso do Ecc\esiastes: Cor Sapientis in dextra eius cor stulti i1t sinistra illius; e urna travessa, em claro-escuro e ouro, representando o consorcio de Peleu e Thetis e a discordia entre Venus, PalIas e Juno pela adjudicao do p mo, sendo o reverso reco-berto de ornatos fazendo moldura a um busto de homem com gorra de pluma. O fructeiro, que mede de diametro Om,23, tem na base do p um escudo com a data de 1558 e na face opposta as iniciaes f. R. A mesma data e a mesma assignatura se vem na orla da travessa, que mede om ,49 no seu maior diametro. O anno de 1558 v-se ainda datando urna bandeja com os fragmentos de um tinteiro, cujas pinturas re-presentam batalhas da historia sagrada e tim- ' brada por um escudo com leo rompante, co-roado por um capacete de perfil, com paquife, tendo no reverso a legenda: Laudin mailleztr - au fauboztr de Magtti1le Limoges, j L. (Jean Laudin).

    Esta repetio da mesma data em algumas das peas mais importantes da colleco suggere desde logo a hypothese de haver sido ella re-unida, tal como se encontra ainda hoje, por um

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    amador opulento do seculo XVI, O que at certo ponto explicaria a denominao do antigo cata-logo do Calhariz, no porque ella tivesse feito parte dos thesouros artisticos de Leo x, o pro-tector de Raphael, de Julio Romano e de Leo-nardo de Vinci, j morto a esse tempo, mas porque, similhana de Pericles, elle legou o seu nome ao seu seculo. Facto que a colle-co toda do seculo XVI, no differindo sen-sivelmente do estylo das restantes peas o fru-cteiro assignado Pierre Nouailher e a bandeja assignada Jean Laudin, que vejo no catalogo da Exposio de 1882 classificados como do se-culo XVII, quando certo existirem j no seculo 'anterior Nouailhers e Laudins esmaltistas em Limoges.

    Ainda sob este ponto de homogeneidade chronologica, a colleco Palmella notabilis-sima, sendo para lastimar que aos archivos da casa de Angeja se no possa ir buscar a confir-mao da hypothese presumivel de uma colle-co de esmaltes conservada intacta -ou, pelo menos, um nucleo importante d' ella - desde os meados do seculo XVI at ao seculo XX.

    Como os fructeiros de Pierre Nouailher e de Pierre Reymond, a colleco Palmella possue mais seis taas de p, em esmalte de Limoges, dignas de servirem em mezas reaes as mirificas fructas das Hysperides e serem apenas tocadas por mos ungidas.

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    A Italia, muito mais do que a .Frana, era a cliente d'essesluxos profanos, fabricados pe-los artistas \imoginos. A opulencia das familias principescas, protectoras das artes, o gosto re-quintado que a Renascena desenvolvera e pro-pagara, a intimidade dos grandes pintores e esculptores, cujo genio ascendera gradualmente, desde Botticelli e Donatello at Raphael e Mi-guel Angelo, fizeram da Italia o grande mer-cado productor e consumidor das artes no se-culo XVI. Era sobretudo pintura italiana que os esmaltadores de Limoges iam buscar os seus themas predilectos. Na colleco Palmella esse facto mais uma vez se verifica. A poca ma-ravilhosamente caracterisada pela alliana, em. quasi todas as composies, do assumpto sacro e do assumpto mythologico. E assim que n'um fructeiro, em esmalte Claro-escuro e ouro, se v o julgamento de Pris; n'outro David ex-plicando os psalmos; ou ainda, sob a divisa Non e presa nzig#or, um Cupido prende pelos cabelJos uma Venus semi-na, que navega n'uma concha de nacar com a vela enfunada. As restantes tres taas representam a destrui-o de Sodoma e a sahida de Rabeca da casa paterna; a batalha dos israelitas e amalecitas, Ado e Eva colhendo o p mo prohibido, a ex-pulSO do Paraizo; medalhes com os bustos de Venus e de Pris. Como dizer, sem o estylo de um Thophile Gautier e sem os mais longos

  • CARTAS DE LISBOA

    vagares, q{J~ so antithese d'estes descriptivos apressados, toda a belleza, nunca depois attin-gida, d'esses esmaltes, onde as cres perpetuas brilham com o mesmo esplendor primitivo, com os seus ouros, as suas purpuras, as suas carna-es roseas de deusas, as suas folhagens viri-dentes, os seus azues radiantes I

    Um tinteiro com medalhes representando as sete virtudes; dous saleiros hexagonos com assumptos mythologicos; um par de castiaes octangulares, tendo cada um, na base, quatro medalhes com bustos de mulheres; uma urna ou repuxo, de ornamentao riquissima, figu-rando incidentes da passagem do Mar Verme-lho: Moyss fazendo brotar agua do rochedo, cros de musas, combates de cavalleiros, meda-lhes, grupos de nymphas lavando-se, anjos sustendo grinaldas, figuras nas, onde se ostenta toda a pompa sensual da Renascena; um pe-queno cofre de toucador, com o Hercules e a Dejanira; uma travessa de om,53 de diametro, represen~ando em fundo preto o rapto da Eu-ropa, com as orlas revestidas de ornamentos no estylo de Raphael e representando bustos e ani-maes fabulosos; um jarro de frma grega, onde se v o encontro de David, rodeado dos seus guerreiros, com Abigail, mulher de Nabal, na descida do monte Carmelo, completam o nu-cleo da famosa colle'co de esmaltes limoginos, cedida pelos Angejas aos Palmellas.

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    Ao alto da vitrine em que est guardado o esplendido thesouro, e cujo supporte do en-talhador Leandro Braga, um maravilhoso prato de faiana de Urbino, com o diametro de Om,46 e a marca n.o I de Orazio Fontana, rebrilha

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    maravilha? Muito pouco; apenas o necessario para fazer a felicidade e a fortuna de um ama-dor de beBas-artes! Quinze pequenas tlas de Vieira Portuense: duas paizagens das visinhan-as de, Roma, os dez esboos para as illustra-es de uma edio dos Lusadas, um VasCl1 da Gama na ilha dos Amores, uma D. Filippa de Vtlhena arma1zdo osfillzos-estudo do quadro pertencente aos condes de Anadia -, uma cpia reduzida do Toucador de Ventts, de Albano; uma tela de Vieira Lusitano: Santo Antonio prgando aos peixes; seis obras de Domingos Antonio de Sequeira: um retrato de Pina Ma-nique - estudo, presumo eu, para um painel allegorico fundao da Casa Pia -, um es-boo de uma allegoria partida de D. Joo VI para o Brasil-onde o pintor genial da Des-cida da Cruz e da Adorao dos Magos se re-vela j o prodigioso compositor de multides com o talento de um Rembrandt na distribui-o da luz-, mais dous esboos de dous qua-dros nunca executados: uma Suzana no estylo de Rubens, um Lotk e as filhas, de poderosa intensidade dramatica, e, finalmente, um Santl1 A1ztonio com o menino ao collo, em cobre, da primeira maneira de Sequeira, executado em Roma. Todas' estas pinturas acham-se agru-padas em tres unicas molduras, repartidas por cruzetas douradas, que fazem caixilho a cada uma, reunindo assim, fraternalmente, a obra dos

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    tres maiores pintores portuguezes do principio do sec ui o XIX.

    Na parede do fundo, sobre a vitrine dos esmaltes, v-se ainda um alto relevo de bronze dourado sobre lapis-Iazuli, moldurado em prata e pedra venturina, representando a Sacra Fami-lia, no mesmo sumptuoso estylo da capella de S. Joo Baptista, no templo de S. Roque.

    Entretanto, o gabinete no tem mais de tres metros de largo por quatro de comprido. No passa de uma pequenina ante-camara, quasi modesta dentro de um palacio. Um millionario passaria por ella sem erguer os olhos para as paredes, sem suspeitar que deixava atraz de si um thesouro, que todos os muzeus da Eu-ropa cobiariam. Esta feio de esplendor se-reno, de conscienciosa grandeza, que no pro-cura chamar as attenes, antes parece esqui-var-se s phrases exclamativas dos badauds, contina e permanece em todas as salas. Este vasto muzeu de maravilhas ficou sendo uma casa onde se habita, sem tomar o aspecto de uma grandiosidade, que se exhibe.

    A surpreza cresce, quando se passa d'esse pequeno recinto, onde tantas preciosidades fo-ram discretamente, n'uma quasi meia sombra, reunidas, para. a sala contigua, onde ha apenas quatro telas, que no deslustrariam o Satan Carr do Louvre, onde se encontra o mais glorioso conjuncto de pinturas.

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    , direita, o S. Paulo eremita, de Guido Reni, o auctor dos tres Hercules, do David vencedor de Golias, da Magdalena, da Antiope, da D.fanira, o discipulo de Dominiquino e dos Carrachio, a gloria da escola de Bolonha. que se envaidecia c de conhecer duzentas maneiras diversas de fazer olhar o cu a lindos olhos que os cardeaes acolhiam ~ entrada da cidade eterna com o ceremonial reservado aos embai-xadores e a quem o Papa auctorisara a per-manecer coberto na sua presena!

    D. Alexandre de Sousa Holstein, que era um amador exigente e entendido, conhecedor de pintura como o sabiam ser os grandes di-plomatas e os grandes senhores do seculo XVIll, e que levava a sua paixo pelas artes ao ex-tremo de ordenar escavaes na Italia por sua conta, adquirindo o S. Paulo eremita de Guido Reni sabia apreciar todo o valor da sua acqui-sio. O S. Paulo evidentemente do periodo mais brilhante do pintor da Aurora, do celebre tecto do palacio Rospigliosi e da Madona del/a Piet da Pinacotheca de Bolonha, quando j o artista, liberto da influencia de Caravagio, ado-ptara esse colorido azulino, prate~do e claro, que ia fazer a sua fortuna. Em frente ao S. Paulo eremita ergue-se outro quadro admi-ravel: a Sagrada Familia, desenho de Raphael e pintura de Julio Romano. Salvo pequenas va-riantes nas attitudes, o quadro a reproducO

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    da joia da galeria de Dresden, authenticada por Vicari e Madrazo e sobre cujo valor original criticos severos como Raczinsky no estabele-cem a menor duvida.

    Um quadro onde trabalhou Raphael um titulo de verdadeira nobreza para uma galeria de pintura, e esta Sagrada Famlia affigura-se-me modelo d'essa sciencia emerita e nunca ultrapassada at hoje, attingida pelo pintor nos derradeiros annos da sua curta vida. Toda a composio est equilibrada n'um ,rythmo har-monioso, quasi musical. So inexcediveis a bel-leza do desenho, a nobreza das imagens e a pureza dos contornos. N'esta obra prima, o es-piritualismo christo parece ter ide alisado a perfeio plastica da antiguidade c1assica. No so apenas beUos corpos que enchem a mara-vilhosa tela, mas almas celestiaes. Nenhum pin-tor soube, como Raphael, dar me de Jesus esta belleza, ao mesmo tempo idealista e mate-rial, esta pureza de olhar, este sorriso encanta-dor, que vem mais da alma que dos labioso Tirou-lhe a tristeza, a amargura e a fealdade da Edade Media; revestiu-a de todas as delicio-sas perfeies da ladainha. Fez d'ella a Rosa Mystica, a Estrella da Manh, a Torre Eburnea, deixando-a me e mulher. Adivinha-se que o discipulo trabalhou sob o olhar vigilante do mestre.

    Raczinsky notara, em 1844, que o estado

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    de conservao da esplendida tela deixava muito a desejar. Uma posterior restaurao meticulosa reintegrou-a, porm, em todo o seu esplendor primitivo.

    Que outros quadros podero acompanhar dignamente estes monumentos da Renascena italiana? Os retratos do duque D. Pedro e da duqueza D. Eugenia, por sir Thomas Lawrence, o successor de Reynolds e de Grainsborough, o genio precoce, que arruinou, ao apparecer, to-das as velhas glorias e todas as reputaes estabelecidas, para quem se inventava, aos vinte e um annos, o titulo de socio honorario da Academia Real! So conhecidas as reprodu-ces d' estes dous retratos, insertas na Vida do Duque de Palmella, da sr.& D. Maria Amali~ Vaz de Carvalho. So duas pinturas theatraes e magnificas, na maneira decorativa, romantica e expeditiva do pintor predilecto dos reis e das rainhas de 1815. A figura do duque, embru-lhado no manto de arminhos, com o Toso de Ouro ao pescoo, de uma grande belleza. Lembra o retrato celebre de lord Byron, com quem madame de Stael lhe encontrava pare-cenas.

    Duas grandes taas de alabastro com azas de grypho, seis bustos em marmore e algumas peas de porcellana da China e do Japo, com-pletam o adorno d' esta sala sumptuosa, cujo tecto no mais puro estylo Luiz XVI.

  • CARTAS DE LISBOA ss

    Como OS sales e salas do pala cio do Rato esto dispostos em redor da escadaria, essa dis-posio permitte passar de aposento a aposento e, entrando pela esquerda no gabinete vermelho dos esmaltes, sahir de novo ao vestibulo pelo salo de jantar. assim que da sala de Ra-phael, de Guido Reni e e Lawrence se passa immediatamente ao salo amarello, onde o .S. Miguel esmagando o drago espera ainda a sentena auctorisada de um critico de arte. Esta notabilissima pintura em madeira, adqui-rida ao mosteiro de Odivellas, vulgarmente

    attribuida a Vasco Fernandes, o mysterioso Gro Vasco da S de Vizeu.

    Raczinsky viu este quadro, em 1844, em. casa do restaurador italiano Tiniranzi. que res-taurou com escrupulo e competencia algumas das melhores telas da Ajuda. Ao contrario dos seis paineis representando a Vida de Nossa Se-nhora, que pertenceram casa dos marquezes de Valena, attribuidos, quer a Christovo de Utrecht, quer a Gro Vasco, o catalogo da ga-leria do Calhariz no estabelece duvidas sobre a procedencia do Are/tanjo S. Miguel e attri-bue-o sem hesitao a Vasco Fernandes.

    O ministro da Prussia auctorisa-Ihe essa pro-cedencia ilIustre. affirmando que de todos os quadros que viu em Portugal o que mais se approxima, pelo estylo, pela execuo e pelo colorido, da obra do famoso pintor da S de

  • CARTAS DE LISBOA

    Vizeu, encontrando-Ihe nalogias flagrantes nas pequeninas figuras de religiosas ajoelhadas nos pratos das balanas e nos monstros aos ps de S. Miguel. No para aqui abrir um debate sobre este assumpto, por certo o mais attra-hente de entre todos os que se relacionam com a arte portugueza, e que tanta tinta tem j feito correr em dissertaes e memorias as mais variadas. Penso eu que s pelo estudo me-thodico e comparativo de todos os quadros de escola flamenga, existentes no paiz, se poderia chegar a concluses, onde a logica substituisse o arbitrio. de presumir que um dia, cedo ou tarde, esse estudo consciencioso se faa, afim de estabelecer em bases seguras a identidade do grande pintor portuguez do seculo XVI (?). Mas indiscutivel que na instaurao d'esse processo artistico, o S. Miguel esmagando o drago, do palado Palmella, constituir uma das mais culminantes provas para a investiga-o e sentena dos peritos, juntamente com o espantoso Calvario da S de Vizeu.

    n'esta sumptuosa sala, cujo Plafond, mal reconstituido por Carlos Reis, representa uma scena de golfinhos escabujando na agua, que est tambem a magnifica copia do S. '.leronyw, exe.., cutada em 1792, em Parma, para onde Francisco Vieira, depois de obter em Roma o 1.0 pre-mio da Academia em pannejamentos, fra de proposito estudar Corregio. Essa sua paixo

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    pelo pintor a quem a ltalia denominou O Dia, valeu-lhe ser eleito director da Academia de Parma. Este simples facto serve de garantia fidelidade de reproduco da radiosa tela, onde se vem reunidos S. Jeronymo - que viveu no IV seculo! - a Magdalena - que conheceu Christo um anno antes da sua morte l-a Virgem e o menino Jesus. A figura do terrvel anachoreta, rustico e bravio, faz resaltar a belleza da Ma-gdalena e a fragilidade rosea de Jesus. Um anjo risonho mostra divina creana a pagina ainda branca do livro santo, onde ser escripta a his-toria de Maria de Magdala. A deliciosa pecca-dora inclina-se para Jesus, que lhe pousa a mo-si ta no cabello louro, com um gesto de reco-nhecimento, de caricia e de abandono.

    Dous soberbos retratos da escola hollandeza, adquiridos pelo sr. duque de Palmella casa de Lafes, completam o adorno mural da sala.

    Seriam necessarias dez longas cartas para descrever as louas preciosas da China e Japo, as porcellanas excellentes de Sevtes e de Saxe, expostas nas credencias e nos trems, profusa. mente espalhadas tanto n' esta sala como por todo o palacio, constituindo uma colleco sem rival entre ns, onde se vem exemplares raros de faianas de Genova, de Savona, de Napo-les, de Rouen, de Nevers, de Moustiers, de Delft, de Marieberg, de Talavera, de Alcora e do Rato e admira veis porcellanas orientaes - algumas

  • io..

    58 CARTAS DE LISBOA

    peas da archirara familia verde, da China-de Vincennes, de Clignancourt, de Saxe-Meissen, de Berlim, de Vienna, de W edgwood,de Crown Derby, de Capo di Monte. Apenas, se possi-vel destacar uma joia d'esse thesouro, notare-mos passagem o maravilhoso vaso azul e branco de Sevres, ornado de altos relevos, d-diva do rei de Frana Luiz Filippe, ao duque de Palmella, D. Pedro. E j na sala contigua uma nova surpreza nos espera: os dous quadros de Sequeira, Adorao dos Reis Magos e Des-cida da Cruz, comprados em 1845 ao genro de Sequeira, ministro em Roma, pelo duque de Pal-mella, que deu por elles quarenta mil francos. Estas duas telas, que medem I m ,33 por I m,08, e. foram pintadas, a primeira no vero .de 1827 e a segunda no de 1828, em Castello Gondolfo, quando Sequeira contava j sessenta annos, con-stituem a maior obra que Portugal produziu em pintura, digna de ser divulgada rio estrangeiro para gloria e honra da arte portugueza. Uma monographia, acompanhada de reproduces photographicas, e cuja publicao se promova em Paris, incluindo-a n'uma colleco de vulga-risao artistica - a da casa Renouard, por exemplo -impe-se sem demora.

    Sequeira s pde ser apreciado altura do seu genio no palacio do Rato. Esses dous qua-dros collocam-o, de repente, entre os maiores pintores dos seculos XVIII e XIX. A impresso

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    com que se volta do palacio Palmella de que Portugal tem criminosamente conservado occulto e ignorado um artista com direito admirao universal e fica-se attonito de que at hoje, um espirito generoso e apaixonado pelas artes no tenha ligado o seu nome a essa obra de justia, de reivindicao e de patriotismo,

    Ha poucos dias ainda, um escriptor dos mais illustres e dos mais cultos que enriquecem a mo-derna litteratura portugueza e a quem demora-das peregrinaes pelos muzeus da Europa do uma singular competencia em critica de arte, appellava para mim, animando-me a cumprir esse honroso dever, que os outros no teem querido ou sabido desempenhar, Mas Teixeira Gomes - esse o escriptor - ignorava, ao es-

    . crever-me, o pintor genial que eu encontrei n'uma pequena sala do palacio Palmella e deante de cuja grandeza fallecem todas as audacias da minha incompetencia, Como eu, todos tinham accusado Sequeira de haver sujeitado o seu es-pirito arrojado e livre a frmulas de escola, ao maneirismo academico e decadente da pintura italiana do principio do seculo passado, enamo-rada de apologias e apotheoses, lastimando que, similhana do seu contemporaneo Bocage, tivesse feito tributo da sua inspirao original e do seu gcnio revolucionario ao convenciona-lismo do seu tempo. Penitencio-me hoje d'essa injustia. A viso d'esses quadros sublimes

  • 60 CARTAS DE LISBOA

    d-me o arrojo de qualificar de inferior toda a sua obra restante de pintura, sem que j me escandalise a opinio auctorisada de Teixeira Gomes, ao dizer-me: t O seu conhecimento dos quadros de Sequeira, to abundantes como me-diocres - em relao, bem entendido, perso-nalidade que os produziu -facilitar a explicao dos seus desenhos, dos seus retratos a lapis, nos quaes foi prodigioso e um dos primeiros. seno o primeiro artista da sua poca. Esses romanticos retratos dos deputados ao congresso de 20! O elegante Filgueiras. o romano Borges Carneiro, o minaz conego Castello Branco, o Peixoto optimista e o descontente Xavier de Araujo, o admirave\ Duro, o general Travassos! E entre outros, perfeitissimos, o marechal, ge-neral, caricatural Beresford e o delicioso busto de D. Maria. mimoso mas falho de meninice, como na realidade o modelo seria! Que riqueza de elementos para uma illustrada monographia do artista, que reproduzindo tambem a obra prima do branco e negro, A Ad01'ao dos Ma-gos, tornaria universal a reputao de um por-tuguez de genio I

    De genio. sem duvida, mas no s como desenhista prodigioso, mas tambem como pin-tor sublime n'estes dous quadros, de descriptivo impossivel, para os quaes a sabida denomina-o de Gustavo Dor portugltez parece repenti-namente mesquinha e quasi injuriosa 1 A com-

  • CARTAS DE LISBOA

    paral-o com alguem, indispensavel remontar ao Rembrandt da Mullzer adultera e ao Rubens da Kermesse e do Rapto das Sabinas. De um, tem os phantasticos effeitos luminosos, a viso flagrante dos tempos biblicos do Velho e Novo Testamento, o intensissimo poder da dramatisa-o, o talento miraculoso de valorisar as som-bras, enchendo-as de inteno e de mysterio; do outro possue a paixo, o movimento e a violencia, o segredo de amontoar formigueiros humanos, de encher de figuras todas as super-ficies, com a abundancia de um rio de luz que trasborda e tudo alaga. No seria difficil, n'um estudo circumstanciado, a approximao do pin-tor portuguez com os mestres das escolas fla-menga e hollandeza, de quem elle conheceu apenas uma insignificante parte da obra, tendo tratado, como "na Fuga de Loth e na Suzana sahindo do banho, alguns dos seus themas pre-dilectos, por uma fascinao irresistivel de dis-cipulo (').

    (1) Quando este artigo foi publicado em folhetins, no Commercio do POrto, ignorava que, no seu diccionario artistico, Raczinsky dedicara aos dous quadros da colleco Palmella um artigo enthusiastico, comparando, como eu, Sequeira a Rembrandt. No era essa a sua opinio expressa nas Lettres sur les arts en Portugal, onde, referindo-se ao de-senho a tinta de nankin, O Calvario, pertencente a el-rei

  • CARTAS DE LISBOA

    Mas preciso vr estes dous quadros para encontrar esse Sequeira dos prodigios, para se ter a revelao d'esse artista extraordinario e para se sentir toda a intensidade da perda que representou para Portugal e para a Arte a sua morte. Essa sua mesma inclinao para as apolo-gias, tanto no sabor da sua poca, necessario talvez explicaI-a, no j como uma abdicao moda, mas filial-a n'essa attraco do seu genio phantasmagorico e theatral, pela obra apologe-tica do Rembrandt da Concordia do Paiz e do Rubens da Apotheose de Guilherme o Taciturno e do Triumpho de :Julio Cesar.

    Quando mesmo a colleco de pinturas da casa Palmella contasse de valioso apenas estes dous quadros, elles bastariam para a collocar no primeiro logar entre todas as colleces por-tuguezas.

    fra de toda a duvida que os dous qua-dros de Sequeira, Adorao dos Magos e Des-cida da Cruz, terminados aos sessenta annos,

    D. Fernando, o ministro da Prussia punha em duvida que fosse Sequeira o auctor d'essa maravilha, que tanto lhe fa-zia lembrar as composies do grande mestre hollandez. Receava exprimir uma opinio audaciosa. Longe de me desgostar o vl-a emittida, antes de mim, por outro julga-dor, cuja competencia, valo risada por um temperamento reflectido e frio, ninguem pde pr em duvida, antes me alegra e lisongcia.

  • CARTAS DE LISBOA

    e OS outros dous, principiados j perto dos se-tenta, Resurreio e :Juizo Universal, represen-tam a culminancia do seu genio. Mas, infeliz-mente, a critica portugueza no est habilitada para julgar com consciencia a restante obra do extraordinario pintor. Afra os quatro carves das Janellas Verdes, comprados ao marquez de Sousa Holstein, a colleco de desenhos adqui-rida a seu sobrinho Jos da Costa Sequeira, e o vigoroso desenho a nankim, na posse da fami-lia real, tudo o que d' elle resta no paiz mani-festamente inferior ao seu talento, incluindo as telas do Muzeu Nacional: a Instituio da Casa Pia, o esboo do quadro com memorativo Pro-mulgao da Carta Constitucional, a Converso de S. Bruno, os Santo Anto e S. Patelo ere-mitas, o Santo Onofre no deserto e o S. Brteno' prostrado em orao, pintados na Cartuxa de Laveiras; o S. Bruno em 1Iteditao, do muzeu da Academia do Porto; o Martins de Freitas entregando as chaves do castello de Coimbra a D. Aifonso, tela de 3m por 2 m de alto, perten-cente casa de Anadia; os dous quadros do santuario do Bom Jesus do Monte; o retrato equestre de D. Joo VI do pao da Ajuda e o pouco mais que de Sequeira conhecemos e pos-suimos.

    Em Paris, onde esteve exilado desde 1824 a 1826, pintou Sequeira duas grandes telas, de que alguns emigrados vieram contar maravilhas,

  • -CARTAS DE LISBOA

    e que ambas se acham no Brasil. So a Morte de Cames e a Fuga para o Egppto (').

    No Brasil devem tambem existir ainda os retratos, que a tradio affirma serem notabilis-simos, dos viscondes de Pedra Branca, as telas que Sequeira pintou para uma das salas da Ajuda, a que serviam de a,ssumpto passagens da vida de D. Affonso Henriques, levadas pelo principe regente D. Joo, em 1807, e o grande quadro allegorico partida do mesmo principe, que ha vinte annos estava ainda no palacio de S. Christovo, no Rio de Janeiro. Para o du-que de Braciano pintou Sequeira um Baptismo do Senhor e uma Crucificao. Lembro que este ultimo seja talvez o quadro a que serviu de estudo preparatorio o desenho do Calva-rw. Se assim fr, deve pertencer ultima ma-neira do poderoso artista e ser provavelmente uma obra prima de inestimavel valor. A gran-duqueza Helena da Russia possuia tambem d'elle um quadro de allegoria sacra, A F, que de suppr se conserve na posse da casa imperial. Sequeira pintou ainda um tecto para o palacio do marquez Hercolani, em Roma. Os seus quadros de concurso, Milagre da.

    (I) Na edio das obras de Cames pelo visconde de Juromenha, vol. I, p. 424, encontra-se a descripo do primeiro d'estes quadros.

  • CARTAS DE LISBOA

    multiplicao dos pes e dos peixes e EJcgola-o de S. :Joo Baptista, o primeiro dos quaes obteve o segundo premio da Academia Pontifi-da de S. Lucas e o segundo valeu a Sequeira a nomeao de academico de merito, esto tambem em Roma (I). Ignoro o destino dos dez quadros de batalhas, pelos quaes o conde de Valle de Reis recusou a Sequeira mil moedas,-se que, com effeito, elle os chegou a pintar, o que duvido - e que eram destinados a decorar as paredes do gabinete do conde.

    Os perodos de maior actividade artistica passou-os Sequeira no estrangeiro. Em Portu-gal, no seu regresso de Roma, s o aguardavam decepes e amarguras, pouco favoraveis ideao e factura de grandes trabalhos. O seu desalento tomou taes propores, que se refu-giou, como um eremita, no Bussaco, decidido a abandonar a sua arte, e chegou a tomar o habito de novio na Cartuxa, d'onde o arrancou a proteco de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois conde de Linhares, e ao tempo presidente

    (1) O marquez de Sousa Holstein, no fragmento do seu estudo sobre Sequeira, publicado na revista Aftes e Le-tras, 3.a serie, n.os 5 e seguintes, e que a mais notave1 monographia, apesar de incompleta, escripta sobre o grande pintor portuguez, declara ter visto estes quadros em Roma, na galeria onde esto reunidos todos os trabalhos premia-dos da Academia de S. Lucas.

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  • 66 CARTAS DE LISBOA

    do Real Erario, recommendando-o a D. Joo VI. que o nomeou primeiro pintor da crte, com o vencimento de cinco mil cruzados. Vmol-o em 1806 mestre de desenho e pintura da princeza D. Carlota Joaquina, do infante D. Pedro e da infanta D. Maria Thereza, cargo inherente ao seu logar de primeiro pintor da camara e crte de Portugal, como a si proprio se intitula na proposta que apresentou ao principe regente D. Joo. para que fosse escolhido Archangelo Fuschini para o auxiliar nas decoraes da Ajuda. Um anno depois, a invaso franceza vem perturbar a sua vida de artista (I). A con-tar d'essa data. Portugal um tumultuoso campo de batalha e de luctas civis e politicas. Com raras e nobres excepes, o homem politico, em Portugal, iconoclasta por educao e por indole. A poca era de dominao para os po-liticos. Que podia fazer entre similhallte gente um artista de genio? Sequeira, como o seu con-temporaneo David, entrou na politica. O pintor da crte, o mestre dos principes, transforma-se n'um revoluciona rio ! Reconstituido o absolutis-mo, Sequeira exilou-se, foi para Paris, d'onde passou a Roma. Isto explica, melhor do que todas as divagaes, a relativa pobreza da obra

    (1) Sequeira pintou para Junot um quadro allegorico. cujo destino ignoro.

  • CARTAS DE LI!'BOA

    que deixou na patria. Ella no lhe merecia mais. Sessenta e oito annos depois da sua morte, ainda no lhe fez justia completa 1 Se-queira morreu em 7 de maro de 1837 (I). OS decretos que o nomearam director honora-rio da Academia de Bellas-Artes de Lisboa e o agraciaram com a commenda de Christo te em a data de 9 de fevereiro do mesmo anno. pro-vavel que nem d'elles tivesse tido conhecimento! Essas mesmas mercs, quasi posthumas, de-veu-as mais ao valimento de seu genro, minis-tro em Roma, do que ao reconhecimento offi-cial e publico do seu geni.o.

    Os quatro grandes quadros da casa Palmella, comprou-os o duque D. Pedro, .com os restan-tes esboos e pequenas t~las, ao genro de Se-queira. Exclusivamente generosidade do du-. que, que herdara de seu pae o amor das bellas-artes e conhecera Sequeira em 1791, quando era ainda creana, devemos o possuir hoje em Portugal a obra mais importante do maior pin-tor portuguez e um dos mais extraordinarios que produziu a Europa. depois do fecundo e incomparavel periodo da Renascena.

    Ao Estado pouco se lhe deve como prote-ctor e dirigente do genio de Sequeira e como

    (1) Nascera em Belem, a 10 de maro de 1768, e era filho de um barqueiro, Antonio do Espirito Santo.

  • 68 CARTAS DE LISBOA

    acquisidor da sua obra. O grande artista, prote-gido de Pina Manique, foi enviado a Roma, em 1788, pela familia dos Marialvas, com uma pen-so de trezentos mil ris. Depois da sua morte, o Estado no empregou a menor diligencia para adquirir o seu precioso espolio. A acquisio dos carves no o absolve. Foi-lhe quasi ,imposta. E para que se fundasse em 1884 o Muzeu Na-cional, tornou-se necessario que um principe allemo, el-rei D. Fernando, tomasse essa ini-ciativa, que encontrou, felizmente, em Sampaio e no conselheiro Hintze Ribeiro, a esse tempo ministro das obras publicas, duas nobres vonta-des postas ao servio da. execuo do seu pro-jecto.

    Mas que importa? Ficam bem essas sur-prehendentes bras primas no palacio do Rato. D. Alexandre de Sousa Holstein fra em Roma um amigo desvelado de Sequeira, durante a sua mocidade. Protegera-o abertamente, com a influencia do seu nome e da sua alta situao diplomatica ('). Foi talvez pela mo de Sequeira,

    (1) Quando Sequeira, pensionado pelos Marialvas, chegou a Roma, hospedou-se em casa do embaixador, D. Alexandre de Sousa Holstein, no palacio Cimarra. Foi ainda D. Alexandre de Sousa, pae do 1.0 duque de Pal-mella, quem fundou a aula de desenho para os pensio-nistas portuguezes, confiando-a direco de Joo Ghe-rardo de Rossi.

  • CARTAS DE LISBOA 69

    que o joven D. Pedro visitou pela primeira vez os muzeus de Roma. Quarenta annos mais tarde, j duqu~, ao seu gosto esclarecido e porventura tambem s saudades affectuosas da mocidade no pareceram demais os quarenta mil francos que o genro do pintor lhe pedia pelas quatro telas: preo consideravel para o tempo, tratan-do-se de um pintor contemporaneo, quasi des-conhecido nos mercados artisticos da Europa.

    Por certo, eu estimaria mais que essas qua-tro obras primas pertencessem nao. Mas desde que o Estado as no adquiriu, justo reconhecer que em' parte alguma ficavam me-lhor do que ali, onde se encontram. No palacio do Rat, Sequeira est em casa de uma familia amiga: duplamente amiga, porque s ao seu culto perduravel de admirao devemos hoje o poder fazer justia 'completa ao seu genio.

    D' essa pequena sala reservada a Sequeira passa-se, por um pequeno corredor mobilado com antigos contadores de charo, sala de jantar do palacio, no mesmo estylo Luiz XVI.

    O seu mais esplendido adorno constituido pela famosa baixella de prata, mandada fazer a Londres pelo conde da Povoa e assignada pelos ourives Stor and Mortnner, considerados entre os melhores de Inglaterra. Tem um defeito essa baixella sumptuosissima, e esse capital: o de no ter sido. fabricada cem annos antes! A poca o seu vicio de origem. Resente-se e toda ella

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    soffre do estylo pesado de Luiz Filippe. Nem sequer ha n'ella vestigios do neo-classissismo do Imperio. Reflecte bem o espirito do tempo. Foi feliz o duque de Wellington por existir entre ns um artista como Sequeira, que lhe desenhasse a baixella com que o presenteou Portugal I No encontrou o conde da Povoa, por infelicidade, um Sequeira na Inglaterra para lhe desenhar a sua. Apenas a pea central consegue ser es-belta, pela escolha da palmeira, como motivo de decorao. O resto magestoso, sem duvida, mas falta-lhe a elegancia e a graa, que no eram apanagio da arte n'essa era de politica. Fizeram-a riquissima, mas no conseguiram tor-nai-a beIla. Os discipulos de Apelles trium-phavam em 1830. A democracia terminara com as dynastias e as pequenas realezas dos ar-tifices, quebrando a maravilhosa evoluo dos seculos XVII e XVIII. A doutrina egualitaria, que nem por isso tirou a fome aos pobres e se satisfez em transferir o exercicio do poder do fidalgo para o burguez, levara a banalidade a toda a parte. No foi o conde da Povoa o cul-pado d'esse estado de cousas. No lhe teria custado mais cara a baixeIla, se tivesse sahido das officinas Germain. Mas j no havia na Eu-ropa artistas como Germain. A Liberdade dizi-mara-os!

    Entretanto, a reputao dos ourives inglezes affirma-se merecida pela minucia quasi invero-

  • CARTAS DE LISBOA

    simil do trabalho de cinzel, que , em toda a baixella, um prodigio de consciencia e de pa-ciencia. A composio das grandes peas, onde devem ter collaborado esculptores, slida-mente equilibrada. Justo ter em linha de conta que a tradio determinava para as peas de apparato: sopeiras, terrinas, travessas co-bertas, etc., propores quasi architectonicas. Esta obedece integralmente tradio. digna da meza de Cresus. Duvido que agradasse ao requintado Petronio. Servem-lhe de principaes motivos decorativos exemplares da fauna mari-tima, em cuja execuo, ao talento insigne de modeladores emeritos, ha a juntar a mais es-crupulosa sciencia anatomica e o mais delicado lavor a que pde attingir a pericia de cinzela-dores, como j no existem!

    parte os defeitos originarios, a baixella do conde da Povoa , como factura, notabilissima, e no conheo outra, como riqueza intrinseca, que se lhe avantaje ou compare entre ns, de-pois da da casa real. Um jornalista, descrevendo o baile dado pelos srs. duques de Palme lIa, por occasio do casamento de el-rei D. Carlos, attri-buiu-a, n'um arroubo de admirao, a Benve-nuto Cellini! O absurdo de semilhante dislate s comprehensivel e .desculpavel pela ignorancia a mais modesta. O mesmo jornalista descreve-a como de ouro, e fico eu em duvida se elle teria feito juizo pelos talheres, que so de prata dou-

  • CARTAS DE LISBOA

    rada, formosissimos, com assumptos venatorios em baixos relevos nas duas faces. .. O certo . porm, que a lenda de uma baixella de ouro. cinzelada por Benvenuto Cellini, se espalhou, e que a encontrei algumas vezes em meios onde a credulidade e a ignorancia se costumam a re-fugiar, mascaradas com apparencias graves e eruditas.

    Sahindo da sala de jantar, encontra-se nova-mente o vestibulo da escadaria. N'um unico aposento do andar nobre nos falta entrar: o ga-binete do sr. duque de Palmella, onde esto OS dous quadros, por concluir, de Domingos de Sequeira: a Resurreio e :Juizo Final. A morte. sobrevinda aos setenta annos, impediu o pintor genial de terminar as duas telas. Estamos assim de posse do processo de Sequeira. como se entrassemos no seu atelier, durante a sua ausen-cia, e contemplassemos os quadros no cavallete. Ha mesmo um momento em que cuidamos que elle vae entrar, envelhecido pela edade e pelos desgostos, pela desventura e pela injustia, e retomar a paleta para continuar a obra inter-rompida. .. Os trechos incompletos das duas telas parecem reproduzir o sonho, a viso toda espiritual do artista. Apenas falta que o seu pincel os anime. So como paisagens vistas luz indecisa da aurora, antes do nascer do sol. Mas tudo l est, quasi diaphano, quasi imma-teria!. a alma da obra, antes de encarnada.

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    possivel que Sequeira propositadamente de-morasse a ~oncluso, a preciso das pinturas, para ter por mais tempo presente essa am,orte-cida, aerea, impalpavel realidade, como que feita de luar e de nevoas e que era o reflexo puro do seu pensamento ou a exhalao directa do seu genio. As azas da morte j adejavam sobre a sua fronte de inspirado quando a mo pintava lentamente e firmemente esses quadros espantosos. No so dous themas terrivelmente apropriados a, uma derradeira tarefa: o :Juiz() Final e a Resurreio r

    Descrever esses dous quadros quasi im-possivel e totalmente impraticavel aqui, dado o caracter ligeiro d'estes apontamentos. Seria ne-cessario analysar as figuras uma a uma, e so centenares d' ellas, tendo as dos primeiros pla-nos de om,25 a Om,33 apenas! Falta-lhes talvez o vigor da rembrandtesca Descida da Cruz, mas as luzes que as banham e i\luminam, como flui-dos ethereos, a assombrosa disposio das pers-pectivas, o movimento das multides teem qual-quer cousa de mysterioso, que no parece ser j d'este mundo, como se a presciencia divina-toria da eternidade tivesse dirigido as mos ge-niaes do artista agonisante.

    No gabinete do sr. duque de Palmella en-contra-se a maior parte da obra de esculptura da senhora duqueza, desde o seu primeiro trabalho at admira vel Santa Thereza de :Jesus, pre-

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    miada, como o Diogenes, -estatua fundida em bronze, que est no primeiro pata~ar da esca-daria, - pelo jury do Salon de Paris. Quanto a mim, a Santa !hereza o mais bello trabalho da sr.8 duqueza de Palmella, como esculptora. Pena que, similhana da Negra, no se en-contre no mercado de bronzes artisticos a re-produco d'esse busto, to superiormente con-cebido e to virilmente executado. O busto do marquez de S da Bandeira e o da Varina so ainda dous trabalhos magnificos. A minha in-competencia no pde, infelizmente, tributar, sem suspeita de gentileza, o elogio merecido esculptora, que conserva longe das vistas indis-cretas de toda a gente a sua obra, e que, re-unindo-a no gabirtete de seu marido, parece ter querido significar o seu horror de fidalga s feli-citaes dos profanos.

    esquerda da secretria do sr. duque de Palmella v-se um busto de Alexandre Hercu-lano, obra de Calmeis, que porventura a mais authentica e veridica reproduco physionomica do grande historiador. O sr. duque de Palmella, quando se convenceu da morte proxima e in-evitavel do seu amigo dilecto, encarregou Calmels da misso de modelar a mascara do glorioso escriptor, em seguida sua morte. Foi essa mascara de cra que serviu ao artista para a reconstituio integral da figura, na sua passa-gem ao marmore.

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    Seria agora occasio, ao evocar essa nobre amisade, de traar o perfil do intrepido official voluntario da armada britannica, condecorado com a Baltic-Medal durante a guerra da Crima e que assistiu, a bordo da fragata Arrogaltt e das naus Prince Regent e Neptu1til, aos bombar-deamentos de Viborg, de Friederickshann, de Bomarsund e Sweaborg, se a inteno d'este artigo se podesse ampliar n'uma monographia sobre a familia Palmella e se no resumisse a um rapido inventario de obras de arte.

    Entre as preciosidades. que ornam o gabi-nete, seria inadmssivel no destacar os dous exemplares de faiana do Ratinlzo, modelados pela senhora duqueza e pintados pela ultima condessa de Ficalho. So objectos artisticos do mais extraordinario valor pela sua belIeza e ra-ridade. A existencia, ainda que ephemera. de um forno de ceramica, installado nos jardins do palacio do Rato, para a maior parte uma sur-preza.

    Sei que em breve o sr. Jos Queiroz, um dos mais cultos colleccionadores de Lisboa, es-pirito requintado de artista e pintor de mereci-mento, publicar um extenso trabalho, primeiro no seu genero, sobre a faiana portugueza, onde ter o logar de honra, que lhe cabe, a historia d' essa fidalga officina de ceramica, unica no mundo, onde trabalharam uma duqueza e uma condessa. No lhe quero tirar o interesse das

    ..

  • CARTAS DE LISBOA

    revelaes, por certo sensacionaes que esse ca-pitulo da obra ter para os leitores. Deixarei. por isso, de descrever as duas peas, que co-nheo, com a marca do Ratinho, lastimando, de passagem, que o Muzeu Nacional-cuja orien-tao dirigente merecedora das mais severas e asperas censuras, que um dia e com vagar no deixaremos de fazer-lhe - no possua nem se tenha esforado por adquirir um especimeo d' essa faiana portugueza, d~ qual, dentro de um seculo, no restaro talvez vestigios.

    No primeiro andar - antiga sobre-loja, onde vivia em 1817 Francisco Antonio de Sousa, filho do architecto do palacio, - tem a' sr. a du-queza de PalmeIla os aposentos onde habitual-mente passa o dia e que communicam directa-

    mente com o jardim. Na chamada bibliotheca esto a Santa Rosa de Viterbo, de Ballestra, dous pequenos quadros de Meulen, represen-tando batalhas de cavallaria, quatro pinturas em cobre de Breughel (avelludado)- o mais cele-bre da dynastia dos Breughel, e cujas paiza-gens, que parecem desvanecer-se em longinquos horisontes de um azul ideal, povoadas por toda a fauna do Paraizo, so to encarecidas pelo es-piritualista Ruskin, - um quadro admiravel de David Teniers, o to espirituoso realista fla-mengo, de cujos quadros, hoje pagos a peso de ouro, dizia Luiz XIV desdenhosamente: Tirez de devant 11loi ces l1zagots; e, finalmente uma

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    Velha avarenta pesando moedas de ouro, que o antigo catalogo do Calhariz attribue com apparencias de veracidade a Rembrandt, mas que Raczinsky e outros depois d'elle querem que seja de Dietrich, seu discipulo. uma questo difficil de esclarecer. Na Mulher adte/lera e no Cltristo falando aos Phariseus, Dietrich elevou a sua arte quasi altura da do seu mestre. O quadro do palacio do Rato, a ser de Dietrich, tem que incluir-se entre os seus melhores traba-lhos. A propria tonalidade betuminosa da cr d-lhe todo o aspecto de um Rembrandt.

    No seu gabinete de trabalho, tem a sr.a du-queza de Palmella o retrato de sua filha, a actual sr. a marqueza do Fayal, por Carolus Du-ran, um dos mais felizes que o famoso pintor francez deixou em Lisboa, na sua curta e labo-riosa permanencia entre, ns, melhor, em minha opinio, do que o retrato da rainha D. Maria Pia, actualmente em uma das salas da Ajuda. Carolus Duran pintou tambem o retrato da sr.a duqueza de Palmella, em que foi infelicissimo, a comear pelo preparo das tintas, que se corromperam, e a acabar na execuo, que defeituosa.

    O excesso de quadros, que compunham a colleco do Calhariz, e que no poderam obter logar nas salas do palacio do Rato, foi collo-cado na escadaria, onde se torna mais difficil, pela profuso das telas e sua proximidade, analysal-as detidamente. Mas andaria mal avi-

  • CARTAS DE LISBOA

    sado quem suppozesse que para adorno da es-cada tinham sido exilados os quadros mediocres da opulenta galeria. ali que esto O encontro de Santa Isabel com Nossa Senhora, de Gior-gione (Giorgio Barbarelli). o admiravel pintor da escola de Veneza, mulo de Ticiano e morto aos trinta e tres annos, a cujo quadro, Concerto campestre, o muzeu do Louvre reservou um lo-gar de honra no Saton Carr; o Christo na co-tum1ta, de Bernardo Luini, que muitas vezes teve a gloria de ser confundido com Leonardo de Vinci; os seis paineis representando a vida de Nossa Senhora, attribuidos a Christovo de Utrecht; o Christo na Cruz, de Vieira Lusita-no; o Retrato de el-rei D. Sebastio, de Claudio Coelho; o Retrato do duque de Ferrara (Affonso d'Este), que figura no catalogo do Calhariz. como um original de Ticiano; Unta nympka da1zdo de comer a seis Cupidos, de Gagn~reau; Um satyro, da escola de Lucas Giordani; Uma sybilla, de Boldrini. . Levariamos muitas horas a descer os degraus da escada, se nos detivesse-mos no descriptivo de cada quadro, de cada estatua, de cada talha formosssima do Japo. que adornam, com uma sumptuosidade unica em casas portuguezas a magestosa entrada do palacio do Rato, e que s por s constituem um segundo muzeu, enriquecido pelas esculpturas antigas encontradas nas excavaes romanas dirigidas pelo embaixador D. Alexandre de

  • CARTAS DE LISBOA 79

    Sousa, por cpias excellentes de Canova -As tres Graas, Hebe, Psyck, Danarinas gre-gas, - de Bartolini; da Venus, de Mdicis; do Apollo, de Belvedre; pelas obras originaes dos melhores esculptores portuguezes contempora-neos, onde avultam A infancia da arte, de Soares dos Reis e Um busto de creana, de Tei-xeira Lopes.

    Ao terminar esta carta extensa, que amea-ava tornar-se infindavel, quantas maravilhas agora nos recordam que ficaram por descrever, desde a capella do palacio, mais bella, pela sua harmonia e admiravel conservao, do que a de Queluz,-ambas da mesma data: ultima dcada do seculo XVIII, e talvez dos mesmos entalha-dores,-at ao Ckristo de Van Dyck e s pai-zagens de Poussin e de Salvator Rosa, e invade-nos a tristeza ao pensar que um dia, mesmo remoto, todas essas obras primas, reunidas ha j umseculo na posse da mesma famlia, se dis-persaro, como as colleces de el-rei D. Fer-nando, dos marquezes de Borba, de Angeja, de Penalva, do Lourial, de Marialva, de Tancos e da Foz, como as do duque de Lafes, do vis-conde de Daupias, de Za Bermudes, do baro de Alcochete; como se ho de dispersar as col-leces dos Rothschild; como se dispersaram as colleces dos Mdicis, dos Urbinos, dos Sforzat dos Malatesta, dos Braamcamp, dos Vandreuil, dos Brissac, dos Rochefoucauld I

  • 80 CARTAS DE LISBOA

    A casa PalmelIa , entre ns, a unica que ainda resiste, e resistir por muito tempo, devido aos acasos de um morgadio natural e aos alicer-ces solidissimos de uma fortuna principesca. Em volta d'elIa vo porm crescendo as rui nas das colleces de arte, constituidas pelo gosto ou pela fortuna de uma familia ou de um homem, dis-persas pelos seus herdeiros ou desbaratadas por consideraes de utilidade. Rontem, eram as col-leces Daupias, Teixeira de Arago e marquez da Foz, que desappareciam. manh caber a vez do sr. conselheiro Joo Arroyo, cujo lei-lo se annunca para breve.

    As confrarias vendem ao estrangeiro os ulti-mas tapetes da Persia, que nos restam, como os morgados de provincia venderam os ultimas Arrzes que possuiamos. Tudo quanto pre-cioso e bello nos deixa e nem sequer nos fica a esperana de nos podermos consolar com as palavras orgulhosamente resignadas com que o marquez de Pombal, respondendo ao embaixa-dor de Frana, que lhe transmittia, depois do terremoto, as offertas de auxilios pecuniarios de Luiz xv, se felicitava pela perda de tantas ma-ravilhas, confiado em que a nao voltaria sua antiga simplicidade, as terras passariam a ser melhor cultivadas pelos fidalgos, Deus seria adorado com mais f em egrejas despidas de toda a pompa!

    Estranhas palavras estas, na bocca de um

  • ~.

    CARTAS DE LISBOA 81

    homem que construia o palacio de Oeiras, que -colleccionava apaixonadamente louas da India e fazia erigir ao seu rei, em frente s ruinas do pao da Ribeira, a pomposa estatua equestre de Machado de Castro 1

    cartasdelisboa00diasgoog 25cartasdelisboa00diasgoog 26cartasdelisboa00diasgoog 27cartasdelisboa00diasgoog 28cartasdelisboa00diasgoog 29cartasdelisboa00diasgoog 30cartasdelisboa00diasgoog 31cartasdelisboa00diasgoog 32cartasdelisboa00diasgoog 33cartasdelisboa00diasgoog 34cartasdelisboa00diasgoog 35cartasdelisboa00diasgoog 36cartasdelisboa00diasgoog 37cartasdelisboa00diasgoog 38cartasdelisboa00diasgoog 39cartasdelisboa00diasgoog 40cartasdelisboa00diasgoog 41cartasdelisboa00diasgoog 42cartasdelisboa00diasgoog 43cartasdelisboa00diasgoog 44cartasdelisboa00diasgoog 45cartasdelisboa00diasgoog 46cartasdelisboa00diasgoog 47cartasdelisboa00diasgoog 48cartasdelisboa00diasgoog 49cartasdelisboa00diasgoog 50cartasdelisboa00diasgoog 51cartasdelisboa00diasgoog 52cartasdelisboa00diasgoog 53cartasdelisboa00diasgoog 54cartasdelisboa00diasgoog 55cartasdelisboa00diasgoog 56cartasdelisboa00diasgoog 57cartasdelisboa00diasgoog 58cartasdelisboa00diasgoog 59cartasdelisboa00diasgoog 60cartasdelisboa00diasgoog 61cartasdelisboa00diasgoog 62cartasdelisboa00diasgoog 63cartasdelisboa00diasgoog 64cartasdelisboa00diasgoog 65cartasdelisboa00diasgoog 66cartasdelisboa00diasgoog 67cartasdelisboa00diasgoog 68cartasdelisboa00diasgoog 69cartasdelisboa00diasgoog 70cartasdelisboa00diasgoog 71cartasdelisboa00diasgoog 72cartasdelisboa00diasgoog 73cartasdelisboa00diasgoog 74cartasdelisboa00diasgoog 75cartasdelisboa00diasgoog 76cartasdelisboa00diasgoog 77cartasdelisboa00diasgoog 78cartasdelisboa00diasgoog 79