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» MARINA SEVERINO S e esta fosse a última viagem de vocês, o que gostariam de levar?”, questiona o mo- torista no pequeno ônibus que sai da Ro- doviária do Plano Piloto. A inusitada per- gunta parte de uma experiência cênica que fugiu das salas de teatro. O veículo e a própria rodoviária com- põem o cenário e integram a dramaturgia de Entrepar- tidas, novo espetáculo do grupo candango Teatro do Concreto. O formato, que segue uma tendência das grandes metrópoles, começa a aparecer no trabalho de diversos grupos brasilienses que buscam quebrar re- gras sociais e limites do espaço urbano. Do ambiente agitado, enquanto pessoas chegam e partem dos terminais, o ônibus segue para a praça da 705 Sul, onde atores e comunidade se confundem. Ali, as his- tórias de Pilar, uma estrangeira que viaja de surpresa para encontrar a mãe, e do moleque de rua Preá, se misturam numa dança de ações marcadas e interrupções. “A comu- nidade aparece na praça quando chega a hora do espetá- culo. Os atores tentam encaixá-los no contexto, bem co- mo as pessoas que passam e provocam, gritam, mexem com o personagem. Acaba se tornando parte do espetá- culo”, acredita o diretor Francis Wilker. A ideia de misturar teatro e realidade surgiu em 2007, durante pesquisas do grupo após o bem-sucedido espe- táculo Diário do maldito. Entre as influências, a provoca- ção direta de integrantes do Teatro da Vertigem, grupo paulista que consagrou a utilização de espaços não-con- vencionais no Brasil, e questionamentos a respeito das interações humanas nos grandes centros urbanos. Pílulas do pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman per- meiam o espetáculo, evidenciando a fluidez dos relacio- namentos na sociedade pós-moderna e o afrouxamento e a quebra constantes de laços afetivos. Dessa forma, o tema amor e abandono foi o ponto de partida para pesquisas do grupo, formatadas em uma sé- rie de intervenções urbanas batizadas de Ruas abertas. “A gente foi para a rodoviária e para as faixas de pedestre fa- zer pequenas cenas e interagir com o público. Ficou mui- to forte a sensação de trânsito, tanto do ritmo das ruas co- mo do estado transitório das pessoas. A sensação de ur- gência e falta de tempo também influenciou no texto de Entrepartidas”, detalha o diretor. Durante o espetáculo, é difícil distinguir a atuação do movimento natural da cidade. No caminho do ôni- bus, atores com placas interagem com o público na rua — uma plateia que, diferentemente dos que em- barcaram na viagem, desconhece a atuação e, muitas vezes, se torna parte dela. “Ficamos, em média, 20 mi- nutos atuando até o ônibus passar. Quem está dentro do veículo pode notar ou não. Mas o espetáculo tam- bém acontece para quem não acompanhou os perso- nagens. Torna-se uma situação inusitada, vivida ape- nas pelo pedestre”, explica o performer Mário Luz. Lirismo De fato, o teatro de rua mudou. Originado em apresentações da cultura popular em todo o mundo e enriquecido com a itinerância circense, ele se mostrou forte no Brasil na década de 1960, quando manifestações políticas contra o regime militar utili- zaram o lirismo para camuflar as mensagens políti- cas. No período, os espetáculos utilizavam a rua apenas como cenário e palco, para se aproximar do público. Com o grupo mineiro Galpão, as monta- gens deixaram o tom exclusivamente político, obje- tivando o entretenimento gratuito. C M Y K C M Y K Editor: José Carlos Vieira [email protected] [email protected] 3214 1178 • 3214 1179 Diversão Arte & & CORREIO BRAZILIENSE Brasília, domingo, 25 de abril de 2010 www.correiobraziliense.com.br Veja galeria de fotos e ouça trechos das entrevistas R U A S O palco nas Inusitado e provocativo A partir da construção colaborativa, o grupo Teatro da Vertigem marcou a década de 1990 com espetáculos encenados em ambientes inusitados, como a Igreja Santa Ifigênia, o Hospital Humberto Primo e o antigo Presídio do Hipódromo. A série, que une as montagens O paraíso perdido, O livro de Jó e Apocalipse 1.11, ficou conhecida como Trilogia Bíblica. Hoje, as intervenções servem para os mais variados ob- jetivos, desde o despertar contemplativo em meio à corre- ria da cidade aos alertas sobre degradação do espaço pú- blico e meio ambiente. Para o projeto Perpétua Ilusão, que reúne uma dançarina, uma artista plástica e um fotógrafo, o lirismo é a linguagem usada para chamar a atenção sobre a beleza ou a decadência de pontos de Brasília. “Interferi- mos em um lugar em que pessoas passam com pressa e oferecemos um momento poético. Enquanto isso, as pes- soas observam que aquele local cotidiano pode se tornar um lugar de arte”, explica a dançarina Sabrina Cunha. O projeto baseia-se na instalação pensada por Elisandra Cardoso. Sete balões suspensos em prédios e árvores são fe- chados por velas, evidenciando o conflito entre os materiais, o próprio ar e a efemeridade das ações cotidianas. Enquanto as velas queimam, Sabrina Cunha executa um número de dança e interage com o fotógrafo Ricardo Padue. A ação le- vanta questionamentos no público, que chega a acreditar que a performance é feita para a filmagem. Alguns, mais ou- sados, interferem na apresentação. Interferência Enquanto o Perpétua Ilusão se concentra na itinerância de um mesmo espetáculo, a Andaime Cia. de Teatro utiliza a intervenção para experimentar linguagens. Em homena- gem aos 100 anos do Manifesto Futurista, que originou o teatro sintético, eles adaptaram os alicerces do movimento para os dias atuais. “Aparecemos atuando, sem pedir auto- rização, com um tema pré-estabelecido. A estrutura textual e a dramática inexistem, e dão lugar à improvisação”, exemplifica o diretor Márcio Menezes. As apresentações se baseiam em 12 atos, batizados de Serpentes que fumam (em homenagem ao texto do mani- festo). Alguns são discretos, como o início de uma discus- são por um cigarro que acaba em briga em frente ao Shop- ping Pátio Brasil. “Imaginei que fosse uma briga de verdade e queria ver o final, mas eles saíram correndo”, conta Patrí- cia Franco, 18 anos, que passeava no local e viu a cena. Se a jovem tivesse assistido à intervenção no Complexo Cultural Funarte, talvez desconfiasse da atuação. Em volta de uma piscina móvel, nove atores encarnaram banhistas em 21 de abril. “Os teóricos deduzem que, dependendo da discrição, pode até instituir um novo hábito entre a popu- lação ”, conclui Márcio Menezes. Entrepartidas » Espetáculo do Teatro do Concreto, em cartaz até 30 de maio, na Rodoviária do Plano Piloto. Sexta, às 20h; sábado e domingo, às 19h. Ingressos agendados às quartas e às quintas na sede do grupo pelo telefone 3323-4079. Até 16 de maio, entrada gratuita; após, R$ 15 (meia) e R$ 30. Não recomendado para menores de 16 anos. Serpentes que fumam » Intervenções urbanas da Andaime Cia. de Teatro. Hoje, às 9h, no Buraco do Tatu. Programação completa no site http://serpentesquefumam. blogspot.com Acesso livre e classificação indicativa livre. Perpétua Ilusão » Intervencões urbanas de Elisandra Cardoso, Sabrina Cunha e Ricardo Padue. Atuações previstas no site http://www. perpetuailusao.com.br. Acesso livre e classificação indicativa livre. O teatro do concreto surgiu a partir das pesquisas realizadas com o espetáculo Diário do maldito Grupos deixam as salas de teatro e partem para a atuação em meio ao público. A iniciativa abre espaço para intervenção social, experimentação e improviso Simulação de uma briga em frente ao Pátio Brasil: intervenção cênica da Andaime Cia. de teatro (acima). Sabrina Cunha, em performance do grupo Perpétua Ilusão: lirismo para chamar a atenção sobre Brasília Paulo de Araújo/CB/D.A Press Ricardo Padue/Divulgação Luis Xavier de França/Esp. CB/D.A Press

O palco nas ruas

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Reportagem sobre intervenções urbanas realizadas por grupos de teatro de Brasília. Publicada em 25 de abri; de 2010 na capa do caderno Diversão & Arte, do jornal Correio Braziliense

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Page 1: O palco nas ruas

» MARINA SEVERINO

“S e esta fosse a última viagem de vocês, oque gostariam de levar?”, questiona o mo-torista no pequeno ônibus que sai da Ro-doviária do Plano Piloto. A inusitada per-

gunta parte de uma experiência cênica que fugiu dassalas de teatro. O veículo e a própria rodoviária com-põem o cenário e integram a dramaturgia de Entrepar-tidas, novo espetáculo do grupo candango Teatro doConcreto. O formato, que segue uma tendência dasgrandes metrópoles, começa a aparecer no trabalho dediversos grupos brasilienses que buscam quebrar re-gras sociais e limites do espaço urbano.

Do ambiente agitado, enquanto pessoas chegam epartem dos terminais, o ônibus segue para a praça da 705Sul, onde atores e comunidade se confundem. Ali, as his-tórias de Pilar, uma estrangeira que viaja de surpresa paraencontrar a mãe, e do moleque de rua Preá, se misturamnuma dança de ações marcadas e interrupções. “A comu-nidade aparece na praça quando chega a hora do espetá-culo. Os atores tentam encaixá-los no contexto, bem co-mo as pessoas que passam e provocam, gritam, mexemcom o personagem. Acaba se tornando parte do espetá-culo”, acredita o diretor Francis Wilker.

A ideia de misturar teatro e realidade surgiu em 2007,durante pesquisas do grupo após o bem-sucedido espe-táculo Diário do maldito. Entre as influências, a provoca-ção direta de integrantes do Teatro da Vertigem, grupopaulista que consagrou a utilização de espaços não-con-vencionais no Brasil, e questionamentos a respeito dasinterações humanas nos grandes centros urbanos. Pílulasdo pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman per-meiam o espetáculo, evidenciando a fluidez dos relacio-namentos na sociedade pós-moderna e o afrouxamentoe a quebra constantes de laços afetivos.

Dessa forma, o tema amor e abandono foi o ponto departida para pesquisas do grupo, formatadas em uma sé-rie de intervenções urbanas batizadas de Ruas abertas. “Agente foi para a rodoviária e para as faixas de pedestre fa-zer pequenas cenas e interagir com o público. Ficou mui-to forte a sensação de trânsito, tanto do ritmo das ruas co-mo do estado transitório das pessoas. A sensação de ur-gência e falta de tempo também influenciou no texto deEntrepartidas”, detalha o diretor.

Durante o espetáculo, é difícil distinguir a atuaçãodo movimento natural da cidade. No caminho do ôni-bus, atores com placas interagem com o público narua — uma plateia que, diferentemente dos que em-barcaram na viagem, desconhece a atuação e, muitasvezes, se torna parte dela. “Ficamos, em média, 20 mi-nutos atuando até o ônibus passar. Quem está dentrodo veículo pode notar ou não. Mas o espetáculo tam-bém acontece para quem não acompanhou os perso-nagens. Torna-se uma situação inusitada, vivida ape-nas pelo pedestre”, explica o performer Mário Luz.

LirismoDe fato, o teatro de rua mudou. Originado em

apresentações da cultura popular em todo o mundoe enriquecido com a itinerância circense, ele semostrou forte no Brasil na década de 1960, quandomanifestações políticas contra o regime militar utili-zaram o lirismo para camuflar as mensagens políti-cas. No período, os espetáculos utilizavam a ruaapenas como cenário e palco, para se aproximar dopúblico. Com o grupo mineiro Galpão, as monta-gens deixaram o tom exclusivamente político, obje-tivando o entretenimento gratuito.

C M Y K C M YK

EEddiittoorr:: José Carlos Vieira [email protected]

[email protected] 3214 1178 • 3214 1179Diversão Arte&&CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 25 de abril de 2010

www.correiobraziliense.com.br

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R UASOpalconas

Inusitado eprovocativo

A partir da construçãocolaborativa, o grupo

Teatro da Vertigemmarcou a década de

1990 com espetáculosencenados em

ambientes inusitados,como a Igreja SantaIfigênia, o Hospital

Humberto Primo e oantigo Presídio do

Hipódromo. A série,que une as montagensO paraíso perdido, O

livro de Jó eApocalipse 1.11, ficou

conhecida comoTrilogia Bíblica.

Hoje, as intervenções servem para os mais variados ob-jetivos, desde o despertar contemplativo em meio à corre-ria da cidade aos alertas sobre degradação do espaço pú-blico e meio ambiente. Para o projeto Perpétua Ilusão, quereúne uma dançarina, uma artista plástica e um fotógrafo,o lirismo é a linguagem usada para chamar a atenção sobrea beleza ou a decadência de pontos de Brasília. “Interferi-mos em um lugar em que pessoas passam com pressa eoferecemos um momento poético. Enquanto isso, as pes-soas observam que aquele local cotidiano pode se tornarum lugar de arte”, explica a dançarina Sabrina Cunha.

O projeto baseia-se na instalação pensada por ElisandraCardoso. Sete balões suspensos em prédios e árvores são fe-chados por velas, evidenciando o conflito entre os materiais,o próprio ar e a efemeridade das ações cotidianas. Enquantoas velas queimam, Sabrina Cunha executa um número dedança e interage com o fotógrafo Ricardo Padue. A ação le-vanta questionamentos no público, que chega a acreditarque a performance é feita para a filmagem. Alguns, mais ou-sados, interferem na apresentação.

InterferênciaEnquanto o Perpétua Ilusão se concentra na itinerância

de um mesmo espetáculo, a Andaime Cia. de Teatro utilizaa intervenção para experimentar linguagens. Em homena-gem aos 100 anos do Manifesto Futurista, que originou oteatro sintético, eles adaptaram os alicerces do movimentopara os dias atuais. “Aparecemos atuando, sem pedir auto-rização, com um tema pré-estabelecido. A estrutura textuale a dramática inexistem, e dão lugar à improvisação”,exemplifica o diretor Márcio Menezes.

As apresentações se baseiam em 12 atos, batizados deSerpentes que fumam (em homenagem ao texto do mani-festo). Alguns são discretos, como o início de uma discus-são por um cigarro que acaba em briga em frente ao Shop-ping Pátio Brasil. “Imaginei que fosse uma briga de verdadee queria ver o final, mas eles saíram correndo”, conta Patrí-cia Franco, 18 anos, que passeava no local e viu a cena.

Se a jovem tivesse assistido à intervenção no ComplexoCultural Funarte, talvez desconfiasse da atuação. Em voltade uma piscina móvel, nove atores encarnaram banhistasem 21 de abril. “Os teóricos deduzem que, dependendo dadiscrição, pode até instituir um novo hábito entre a popu-lação ”, conclui Márcio Menezes.

Entrepartidas» Espetáculo do Teatro doConcreto, em cartaz até 30de maio, na Rodoviária doPlano Piloto. Sexta, às 20h;sábado e domingo, às 19h.Ingressos agendados àsquartas e às quintas na sede do grupo pelo telefone 3323-4079. Até 16 de maio,entrada gratuita; após, R$ 15 (meia) e R$ 30. Nãorecomendado para menoresde 16 anos.

Serpentes que fumam» Intervenções urbanas da

Andaime Cia. de Teatro. Hoje, às 9h, no Buraco do Tatu. Programaçãocompleta no sitehttp://serpentesquefumam.blogspot.com Acesso livre eclassificação indicativa livre.

Perpétua Ilusão» Intervencões urbanas de Elisandra Cardoso,Sabrina Cunha e RicardoPadue. Atuações previstasno site http://www.perpetuailusao.com.br.Acesso livre e classificaçãoindicativa livre.

O teatro do concretosurgiu a partir das

pesquisas realizadascom o espetáculoDiário do maldito

Grupos deixam as salas de teatro e partempara a atuação em meio ao público. A iniciativa abre espaço para intervençãosocial, experimentação e improviso

Simulação de uma briga em frente ao Pátio Brasil:intervenção cênica da Andaime Cia. de teatro (acima).Sabrina Cunha, em performance do grupo Perpétua Ilusão:lirismo para chamar a atenção sobre Brasília

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