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O PAPEL DA CRÍTICA CULTURAL E CINEMATOGRÁFICA
Reinaldo Maximiano Pereira
Tatiana Alves de Carvalho Costa
Professores do Curso de Jornalismo do UnilesteMG
RESUMO:
O presente artigo tem por objetivo fazer uma discussão conceitual a respeito da crítica cultural
e cinematográfica. Faz-se uma distinção entre os conceitos de crítica e de resenha e aborda-se
a confusão entre esses gêneros que ocorre no jornalismo brasileiro. São temas deste artigo,
questões como a fruição das obras de arte e a orientação de consumo. Trata-se, ainda, da
polêmica em torno do exercício da crítica cinematográfica e dos postulados da tese da
Indústria Cultural.
Palavras-chave: crítica, jornalismo cultural, cinema.
ABSTRACT:
This article tries to make a conceptual discussion about cultural and movie critics. It does a
distinction between the concepts of critics and review and broaches the confusion between
these kind of texts used in brazilian newspapers. This article is also about art enjoyment and
consumer goods. It deals with the controversy in the movie reviews activity and the cultural
industry thesis.
Keywords: review, cultural journalism, movie
1 – A CRÍTICA CULTURAL
“Crítica: espécie de comentário no campo das artes e da cultura. A
crítica representa o público face a uma manifestação cultural. [...]
Deve avaliar os diferentes aspectos (técnica, cultura, talento) de um
produto (filme, livro, exposição, etc.)” (MARTIN-LAGARDETTE,
1998, p. 63).
1
A crítica cultural teve seus primórdios no teatro grego e nos textos de Aristóteles e evoluiu ao
longo da História alcançando progressivamente as várias formas de expressão artística. Hoje,
qualquer elaboração estética – peças, livros, pinturas, filmes, jogos de computador, programas
de TV e até sítios na Internet dedicados às “artes digitais” – podem ser objetos de reflexões
críticas que, ao contrário do que acontecia até o advento dos meios de comunicação de massa
e do que Adorno e Horkheimer chamam de indústria cultural, não ficam mais restritas a um
pequeno grupo de apreciadores da arte, mas chegam a um público gigantesco, heterogêneo e
com interesses muito distintos. Atualmente, a crítica cultural ocupa espaços em jornais,
revistas (ecléticas e especializadas) e em páginas da Internet dedicadas às artes. Tornou-se
uma parte importante do chamado jornalismo cultural.
A crítica cumpre diversas funções, sendo a orientação do consumo dos leitores a que costuma
ganhar mais importância na era da produção em massa de bens artísticos. Conforme explica a
crítica Clara Arreguy,
“A primeira resposta, no que se refere ao exercício da crítica, vem
sempre pronta desde os tempos da escola de comunicação: a crítica
serve como mediação entre o produto artístico e o leitor de jornal, que
quer saber o que é aquele espetáculo (ou livro, disco etc.) em questão,
do que ele fala, como fala, se consegue fazer o que anuncia e propõe.
Para isto, vamos analisar todos os elementos envolvidos em sua
produção, texto, atuação dos artistas em cena, instrumentos usados
para melhorar esta compreensão, como cenários, figurinos, iluminação
etc.” (comunicação pessoal).
Devemos entender que criticar não significa apenas apontar defeitos.
“A palavra crítica guarda a dupla significação de negatividade e
positividade. Dela, no entanto, tem-se ressaltado, ao longo dos anos, o
sentido negativo, com o qual a empregamos comumente. Criticar
passou a ser um ato de depreciação, que se limita a julgar
negativamente, apontando erros ou lacunas. Essa atitude embora
persistente não corresponde nem à etimologia, nem à origem histórica
2
da palavra, tampouco ao desempenho da crítica.” (SAMUEL, 1985, p.
91).
O termo crítica tem sua origem no verbo grego krinein, que significa “separar para
distinguir”. Rogel Samuel afirma, referindo-se à crítica literária, que “cabe, portanto, à crítica
desempenhar suas funções de caracterização da obra, através da distinção dos elementos que a
compõem e a identificam na sua diferença” (SAMUEL,1985, p. 91). As mesmas observações
valem para a crítica em qualquer área, embora, é claro, cada forma artística tenha suas
especificidades que precisam ser compreendidas e retratadas por aqueles que se propõem a
exercer a crítica cultural.
Não basta que um crítico goste de pintura, cinema, música ou ciberarte. Para escrever sobre
esses temas e se converter em um mediador entre o artista e o público, o crítico precisa ter
conhecimento da área em que atua. Como escreveu Jean-Luc Martin-Lagardette,
“A sensibilidade do crítico é muito importante, mas não é suficiente. É
bom que o crítico conheça bem o meio em que está inserido para
contribuir com informações suplementares, inéditas. A subjetividade
da materialização da crítica não deverá ultrapassar a justa
consideração dos valores do produto”.(MARTIN-LAGARDETTE,
1998, p. 63).
Mas a maior dificuldade encontrada por aqueles que se propõem a exercer a crítica cultural
nem sempre é a necessidade de adquirir conhecimento na sua área de atuação. Às vezes, o que
torna o trabalho com a crítica mais complicado são as controvérsias em torno dessa atividade.
São artistas e produtores culturais que exigem mais espaço para os comentários sobre suas
obras nos veículos de comunicação; elementos do público que também exigem maior
profundidade dos textos, enquanto a maioria parece preferir os comentários breves e as
famigeradas estrelinhas que indicam instantaneamente que um filme ou espetáculo é bom,
ruim ou mediano; teóricos que questionam a validade da crítica e assim por diante. Além
disso, os críticos têm sempre que conviver com as diferenças entre as opiniões que expressam
em seus textos e as opiniões de quem lê o jornal ou a revista. A partir de agora abordaremos
essas dificuldades, começando pelo grau de profundidade dos textos que são tratados
3
comumente sob o rótulo de “críticas”. Partiremos da diferença entre resenha e crítica.
2 – A QUESTÃO DA RESENHA E DA CRÍTICA
Convencionou-se dividir a crítica cultural em duas categorias de textos que apresentam
diferentes graus de profundidade no tratamento das obras: a resenha e a crítica propriamente
dita.
A resenha, como explica COUTINHO, citado por MELO (1985, p. 128), seria uma “atividade
propriamente jornalística que se caracteriza por ser um comentário breve, quase sempre
permanecendo à margem da obra ou não saindo do ‘a propósito’”. Já a crítica, também
segundo Coutinho, “exige diferentes métodos e critérios que tornam o seu resultado
incompatível com o exercício periódico e regular em jornal, e mais incompatível com o
espírito do jornalismo, que é a informação ocasional e leve”.
Em seu livro A Opinião no Jornalismo Brasileiro (1985, 128), José Marques de Melo fala
também de uma outra diferença apontada por Afrânio Coutinho entre resenha e crítica: “a
crítica (gênero literário) destina-se a ‘scholars’, a resenha (gênero jornalístico) dirige-se ao
‘consumo popular’”.
Essa última distinção refere-se a uma visão da crítica que tende a definir essa atividade como
“literatura dentro do jornalismo” e que circunscreve seu exercício aos veículos de
comunicação especializados, dirigidos a um público de “gosto mais sofisticado”.
O próprio José Marques de Melo fornece uma conceituação objetiva de resenha e afirma que a
distinção entre ela e a crítica não costuma ser muito respeitada nos meios de comunicação
brasileiros:
“O gênero jornalístico que se convencionou chamar de resenha
corresponde a uma apreciação das obras-de-arte ou dos produtos
culturais, com a finalidade de orientar a ação dos fruidores ou
consumidores. Na verdade, o termo resenha ainda não se generalizou
no Brasil, persistindo o emprego das palavras crítica para significar as
unidades jornalísticas que cumprem aquela função e crítico para
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designar quem as elabora” (MELO, 1985, p.125-126).
Uma explicação para essa confusão pode ser encontrada na própria história do jornalismo
brasileiro. Enquanto a atividade jornalística no País era desenvolvida de forma quase
“amadora”, os espaços para a prática da crítica cultural estavam reservados à publicação de
textos escritos por intelectuais que faziam avaliações no campo da literatura, da música, das
artes plásticas, do teatro, enfim das artes tradicionais que eram consumidas por um público de
gosto “elevado”.
Com a produção do jornalismo em escala industrial e com a ampliação do público leitor que, a
partir da década de 1930, passa a englobar também a classe média, as críticas sofisticadas e
herméticas dos intelectuais foram perdendo espaço para textos mais simples e acessíveis
produzidos por jornalistas profissionais. A profissionalização do jornalismo brasileiro levou
ao desligamento dos intelectuais dessa atividade. Isso ocorreu em parte porque eles se
recusaram a fazer concessões ao gosto mais simples e à generalização provocada pelo advento
da “indústria cultural” no jornalismo brasileiro e em parte porque os editores dos veículos
informativos achavam indispensável ampliar a influência da crítica cultural direcionando-a
para o grande público. Com isso, a resenha brasileira deixou de ser escrita por especialistas e
“é hoje, exercida, no Brasil, por jornalistas que desempenham (ou
já o fizeram no passado) atividades vinculadas ao campo privilegiado
de análise, o que os torna competentes para esse trabalho. Isso não
exclui a existência de ‘críticos’ que, designados para cobrir
determinadas áreas da produção cultural, acabaram se enfronhando
nos bastidores do setor e despontaram como analistas capazes de
merecer a credibilidade do público.” (MELO, 1985, p. 126-127).
A substituição da crítica pela resenha é um dos muitos sintomas do desenvolvimento da
indústria cultural no País. Nas resenhas não se analisam mais apenas as obras do que Adorno
e Horkheimer classificariam como “arte superior” (criações voltadas para o gosto estético
refinado das elites), mas sim os produtos da indústria cultural, os bens artísticos produzidos
em série e destinados ao consumo em grande escala.
“Desaparece (ou torna-se residual) a crítica estética, dedicada a
apreender o sentido profundo das obras-de-arte e situá-las num
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contexto histórico, surgindo, em seu lugar, a resenha, uma atividade
mais simplificada, culturalmente despojada, adquirindo um nítido
contorno conjuntural” (MELO, 1985, p. 127-128).
Mas a confusão entre crítica e resenha não é a única dificuldade imposta àqueles que
trabalham na área. Algumas outras controvérsias serão apontadas no próximo item.
3 – POLÊMICAS EM TORNO DO EXERCÍCIO DA CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA
Ao estudar a estrutura da resenha, Afrânio Coutinho apontou algumas características desse
tipo de texto que José Marques de Melo encara como sendo uma avaliação muito rigorosa.
Para Coutinho, as resenhas brasileiras seriam compostas por um nariz de cera sobre o assunto
da obra, notas sobre o autor e suas obras anteriores, algumas digressões e, finalmente, um
juízo de valor pessoal.
E Afrânio Coutinho não é o único a apontar falhas e a questionar a validade da resenha
brasileira. O cineasta Carlos (Cacá) Diégues, em texto publicado no jornal O Globo, em 09 de
maio de 1999, intitulado Um pensamento para a prática do cinema, afirmou, referindo-se a
crítica cinematográfica, que:
“Com algumas exceções, a crítica em nosso país anda superficial,
impressionista e muitas vezes inculta. Não sei se por preguiça, falta de
inspiração ou espaço no jornal, ela em geral se resume a contar a
historinha do filme e depois, como quem recita uma receita de bolo,
emitir julgamentos simplistas sobre cada um dos elementos constantes
da ficha técnica. [...] Raramente (insisto, há sempre exceções) nos
deparamos com uma reflexão original, uma referência cinematográfica
esclarecedora, uma informação autoral, uma análise de estrutura, uma
pista que sirva de ponte ao público e ilumine o sentido do filme. Os
textos parecem escritos apenas para que o casal apressado possa
escolher, entre a sobremesa e o cafezinho, o que vai ver para matar o
tédio no sábado à noite” (DIÉGUES, 1999).
Podemos admitir que as idéias de Cacá Diégues tenham algum fundo de verdade, mas sua
6
argumentação posterior acaba por arranhar sua legitimidade como crítico da crítica
cinematográfica. Apesar de afirmar que não está cobrando compromisso ou complacência dos
críticos, o que Diégues exige dos textos é algo que nada tem a ver com o exercício do
jornalismo ou mesmo da crítica cinematográfica: uma postura diferenciada do resenhista não
porque o filme que ele analisa é bom ou ruim, mas porque é ou não uma produção brasileira.
Diégues escreve que:
“Não adianta o jornalista dizer que deve ser imparcial e que deve
tratar o cinema brasileiro da mesma maneira que se trata qualquer
filme estrangeiro, porque isso não corresponde à fatalidade do real. O
que um jornalista brasileiro escreve sobre um filme americano, por
exemplo, não faz a menor diferença para os responsáveis por esse
filme. Em primeiro lugar, porque estes não o lerão nunca. E depois
porque, mesmo que tal crítica prejudique a carreira comercial do filme
no Brasil, seu sucesso em nosso mercado é uma preocupação de
vigésima importância para a indústria de Hollywood. Mas o que o
crítico escreve sobre um filme brasileiro não só importa para a carreira
comercial do mesmo, como também mexe com a cabeça de seus
realizadores, podendo influenciar o que vamos fazer a seguir. (DIÉGUES, 1999).
O que Cacá Diégues preferiu ignorar em sua visão parcial da crítica cinematográfica é que o
crítico, como profissional que ocupa espaço num veículo de comunicação, tem um
compromisso com o público que procura em seus textos a orientação sobre os produtos
culturais disponíveis no mercado e não com o cineasta tal ou a produção cinematográfica de
tal país. Para o crítico não deve interessar se o filme é brasileiro, americano, japonês, italiano
ou iraniano, mas sim se é uma boa ou má obra, se acrescenta algo à história do cinema ou não.
Distorções deste tipo dificultam ainda mais o exercício da crítica cinematográfica. Mas foi
exatamente a vontade de abrir um espaço para a discussão sobre essa atividade que levou o
jornal O Globo a publicar na mesma edição um texto do crítico Hugo Sukman, que comentou
as idéias de Cacá Diégues. Em seu artigo, intitulado Um apelo pela irrelevância da função da
crítica, Sukman defendeu o que ele chama de “irresponsabilidade do crítico”, a obrigação de
comentar as obras sem se preocupar com quem as produziu, quantos empregos gerou e coisas
do gênero:
7
“A única obrigação de um crítico é ser irresponsável o suficiente para
não pensar que um filme gera divisas e dezenas de empregos
(pensamento obrigatório de empresários e homens do governo), é a
razão de ser da vida de quem o faz (pensamento obrigatório de quem o
faz), que custa R$ para ser visto (pensamento obrigatório de quem o
vê e de quem cobra o ingresso)” (SUKMAN, 1999).
Hugo Sukman também apontou o importante papel que a crítica desempenhou na história
recente do cinema brasileiro, invalidando as reclamações de certos cineastas e produtores, e
ressaltou as qualidades dos textos dos nossos resenhistas:
“... O cinema brasileiro – o bom, o mau ou o mais ou menos – almeja-
se intocável, um esforço patriótico de se fazer existir depois do ódio
destilado por figuras intelectualmente medianas como Collor e Ipojuca
Pontes, imbuídos de um vago pensamento de que o cinema brasileiro
simplesmente não prestava. [...] Foram os jornalistas cinematográficos
em grande parte que mantiveram o cinema brasileiro vivo no
imaginário nacional quando ele esteve ausente das telas (sem grandes
queixas de outros setores da sociedade, é bom lembrar). Quando, por
obra do amor e da persistência da classe cinematográfica
exclusivamente, o cinema voltou às telas foi a imprensa que deu mais
espaço a ele do que, friamente, merecia sua existência social ou
econômica. [...] O que pouca gente notou neste período é que uma
nova geração de críticos foi se adaptando lentamente aos filmes que
tinha à disposição e ao espaço que havia para criticá-los. Os
nostálgicos da crítica do passado – e nostálgico é aquele que
lembra apenas do melhor, esquecendo-se da mediocridade geral que
acomete qualquer atividade em qualquer tempo – que me perdoem,
mas a crítica de hoje é em sua maioria culta e informada, sabe que seu
papel profissional encontra-se em algum lugar entre o entretenimento,
a orientação do consumo e a reflexão e tem a exata dimensão de sua
importância” (SUKMAN, 1999).
8
Afirmar que os críticos de cinema são atualmente incultos e desconhecem o contexto histórico
em que as obras que analisam são produzidas não corresponde à realidade. Não queremos
afirmar que os críticos não cometem erros ou não fazem determinados julgamentos simplistas
dos filmes que têm em mãos. Mas afirmar que isso ocorre apenas por fatores como “preguiça”
é não ter noção do que significa fazer crítica numa época em que dezenas de produtos
culturais chegam ao público ao mesmo tempo e em que o público demanda avaliações
concisas para escolher os divertimentos que vão ocupar seus poucos momentos de ócio. Em
suma, é não ter noção do que significa ser crítico de cultura na era da indústria cultural. É
sobre isso que falaremos a seguir.
4 – A CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA E OS POSTULADOS DA INDÚSTRIA CULTURAL
Contrapondo-se a teorias excessivamente ligadas a modelos e fórmulas, que pretendiam
resumir processos tão complexos quanto à troca de informações entre os indivíduos, a Teoria
da Indústria Cultural apresentada por Adorno e Horkheimer buscou compreender a cultura
inserida nas relações cotidianas de poder e autoridade. Por isso, muitas das proposições
apresentadas pelos autores, mesmo com suas limitações, continuam tendo validade nos dias
de hoje.
Adorno e Horkheimer estavam certos quando afirmaram que o modo de produção industrial
da cultura conduziria esse campo do conhecimento à padronização e homogeneização.
Embora seja impossível concordar que isso tenha ocorrido ou vá ocorrer em todos os setores
num mesmo grau ou com todos os bens culturais, a existência de uma certa uniformidade (de
temas, de enfoques, de opções estéticas, de escolhas de modelos e mensagens) pode ser
facilmente percebida.
No cinema isso é palpável em vários gêneros e sub-gêneros de filmes. Por exemplo: bastou
um roteirista fazer sucesso com a história de um filme-catástrofe que outros logo deram um
jeito de seguir os mesmos passos, apenas trocando tornados por vulcões, alienígenas mal-
intencionados por asteróides em rota de colisão com a Terra, enchentes por um lagarto gigante
assassino e assim por diante.
A indústria cultural, presente na concepção dos filmes, também apareceu na análise das obras
9
produzidas nesse contexto. Alguns críticos de cinema não tardaram a perceber que: 1) a
repetição de enfoques e temas tem como causa a busca do lucro e 2) essa repetição não pode
durar para sempre. Um exemplo dessa percepção pôde ser visto na revista Set edição 134, de
agosto de 1998. Em sua matéria sobre o lançamento do filme Armageddon, o crítico José
Emílio Rondeau escreveu:
“No mais novo filme-catástrofe de Bruce Willis, a Terra pode ser
destruída por um asteróide. Mas não é só o planeta que está em jogo: é
o futuro do cinema de ação, um gênero que rendeu milhões para
Hollywood mas que começa a mostrar sérios sinais de cansaço [...]
Culpa do filme ou sinal dos tempos? Um pouco de cada coisa, a julgar
pela quase unanimidade da crítica – que simplesmente trucidou
Armageddon – e pela mudança que vem se operando no gosto do
público. Ou, no caso da indústria de cinema, no perfil do consumidor.
Nas bilheterias não está em jogo apenas a vida comercial de
Armageddon. Delas depende também a sobrevivência de um tipo de
filme muito comum nos anos 80 e na primeira metade dos 90, mas que
pode estar com seu dias contados: o chamado ‘grande filme de verão’.
Concebida para os estúdios por um comitê de produtores e roteiristas,
essa ‘criatura’ segue uma fórmula fixa: perseguições de carro,
explosões carregadas de decibéis, tiros a granel, efeitos especiais cada
vez mais impressionantes, violência pela violência e sem
conseqüências realistas. Esmagada pelo peso de tanta embalagem, a
trama fica em segundo plano – às vezes até em terceiro” (RONDEAU,
1998, p. 28 e 30).
Reflexões como as reproduzidas acima não foram frutos do trabalho de um crítico preguiçoso
e “vendido” a Hollywood, que não percebe historicamente o ambiente em que está exercendo
suas funções. Pelo contrário, em seu texto José Emílio Rondeau demonstra compreender os
mandamentos da indústria do cinema e questiona, apoiando-se nas reações dos outros críticos
e (mais importante!) nas reações do próprio público, a validade desses mandamentos. E o
trecho acima nem foi publicado no espaço que a revista dedicou à crítica de Armageddon.
Nessa crítica, Rondeau volta à carga:
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“Os que já assistiram a Os Bad Boys e A Rocha sabem muito bem o
que esperar da dobradinha formada pelo produtor Jerry Bruckheimer e
pelo diretor Michael Bay: o forte deles é o visual de efeito. Trama e
drama, para essa dupla, são quase acidentes, alcançados não por meio
da representação ou do roteiro, mas sim com imagens e sons de
impacto violento [...] Mas agora a dupla exagerou: em Armageddon,
no qual Bruce Willis lidera um time de perfuradores de petróleo cuja
missão é detonar um asteróide do tamanho do Texas antes que ele
colida com a Terra e extermine toda a vida no planeta, Bay e
Bruckheimer partiram para uma história pseudo-humana de narrativa
ginasiana em que os atores ruins (Willis e Liv Tyler) se esforçam para
fingir que sabem representar bem, enquanto os atores bons (como
Steve Buscemi, Billy Bob Thornton e, vá lá, Ben Affleck) parecem
obrigados a fingir que não sabem representar. A bem da verdade, o
filme tem bons momentos de humor [...] Mas, quando se leva a sério,
o filme se estrepa. Além do mais, a postura colonialista de produtores
como Brukheimer já cansou: talvez nem mesmo os americanos,
patriotas que são, agüentem mais outro filme com montagens de
continências, lágrimas, olhares solenes, crianças sorridentes,
esquadrilhas de aviões em colorida formação e a bandeira nacional em
superclose, ao som de um tema heróico. Para quem não é americano,
então, o enjôo é certo.” (SET, 1998, p. 33).
A presença das idéias postulados da indústria cultural nas críticas de cinema, no entanto, nem
sempre é sinal de que o crítico realmente sabe do que está falando. Enquanto críticos como
José Emílio Rondeau usam o contexto da produção em massa de bens culturais para ajudar o
público a compreender suas opiniões sobre filmes produzidos segundo os mandamentos da
indústria cultural, outros se contentam apenas em afirmar que é tudo igual. Talvez se aplique a
esses profissionais o adjetivo “preguiçoso” que Cacá Diégues destinou aos críticos em geral.
A adoção da postura frankfurtiana do “é tudo igual” por alguns críticos demonstra que, em
vez de procurarem se aprofundar na análise das obras que lhes chegam às mãos, eles preferem
uma reflexão superficial, cheia de clichês e pouco comprometedora. E freqüentemente esses
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críticos apresentam como desculpa para sua opção pela superficialidade a escassez de tempo
nos meios de comunicação de massa em que trabalham, o que nem sempre é verdade.
A tendência de encarar todas as obras produzidas no contexto industrial como frutos de uma
mentalidade maquiavélica, que pretende a submissão total das massas no estilo do 1984, de
George Orwell, chega a gerar várias vezes uma certa “caça às bruxas” em que os críticos
gastam mais tempo investigando o que uma obra “copiou”, “plagiou” de outra do que
apontando o que o objeto da crítica apresenta de diferente, de inovador. É bem verdade que às
vezes não há nada de novo, mas se é para dizer isso, o crítico tem a obrigação de recorrer a
uma argumentação mais elaborada do que a que freqüentemente se encontra nos meios de
comunicação.
5 – APONTAMENTOS E RECOMENDAÇÕES
Ao tratarmos da crítica cinematográfica e do papel que esse tipo de texto desempenha no
chamado jornalismo cultural percebemos determinadas características e clichês que podem
indicar uma “produção em série” de críticas. Algumas dessas características são: o recurso às
cifras de bilheteria (nacionais e/ou estrangeiras) para indicar que um filme está sendo bem ou
mal sucedido; a descrição de seqüências e cenas das obras em questão e a comparação entre o
filme analisado e outras produções (do mesmo cineasta, estilo, gênero, país), que às vezes
aparece como simples curiosidade e às vezes é utilizada como forma de aproximar a obra do
público.
Nem sempre nos deparamos com aquilo que Afrânio Coutinho definiu com sendo a receita
básica para a construção de uma crítica brasileira (ele prefere o termo resenha, conforme foi
mostrado): um “nariz de cera”, algumas digressões e finalmente um juízo de valor. Mas
pudemos perceber que, se adotarmos a definição de Coutinho e de outros teóricos que
diferenciam resenha e crítica, em função da estrutura e da profundidade do texto,
encontraremos nos veículos ecléticos poucas críticas, o que mostra que esse tipo de texto
encontra seu espaço mais propício nos veículos especializados em arte.
Ao exercer suas atividades, o crítico se depara com diversos obstáculos, como o número de
obras à quais precisa dedicar sua atenção, as dificuldades de acesso aos produtos culturais
antes que eles cheguem aos consumidores, as restrições de tempo e espaço e aquelas impostas
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pelas linhas editoriais dos diferentes veículos, dentre outras. Ainda assim, é possível apontar
algumas características desejáveis na crítica cinematográfica: a contextualização das obras
para que o público, brasileiro em específico, não fique com a impressão de que leu um texto
pasteurizado; a busca de uma reflexão que consiga iluminar as mais importantes questões de
cada obra; seriedade ao tratar os filmes para não deixar a sensação de que a crítica foi escrita
às pressas apenas para tapar buracos nas páginas das revistas e jornais; uma busca de criar
empatia entre o público e a obra mais pela reflexão estética do que pela mera descrição de
cenas e diálogos, até mesmo por que essas descrições costumam estragar algumas surpresas
das produções; uma maior preocupação com as referências históricas e com a
contextualização dessas referências para que o público leigo não fique perdido entre uma série
gratuita de nomes desconhecidos de filmes e artistas; e finalmente a coragem de assumir o
papel de ampliar os conhecimentos cinematográficos do público, ajudando-o a formar suas
próprias opiniões e a deixar de ser uma mera multidão de consumidores passivos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. ADORNO, Theodor. A Indústria Cultural. In: COHN, Gabriel (Org.). Comunicação
e Indústria Cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. p. 287-295.
2. COUTINHO, Afrânio. Da Crítica e da Nova Crítica. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
3. DIÉGUES, Carlos. Um pensamento para a prática do cinema. O Globo, Rio de
Janeiro, 09 maio 1999. Segundo Caderno, p. 6.
4. MARTIN-LAGARDETTE, Jean-Luc. Manual da Escrita Jornalística: Escrevo,
informo, convenço. Lisboa: Pergaminho, 1998.
5. MELO, José Marques de. A Opinião no Jornalismo Brasileiro. Petrópolis: Vozes,
1985.
6. SET. São Paulo: Abril, ago. 1998. n.º 134, mensal.
7. SET. São Paulo: Peixes, jan. 2000. n.º 151, mensal.
8. SOARES, Angélica Maria Santos. A Crítica. In: SAMUEL, Rogel. Manual de Teoria
Literária. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 90-128.
9. SUKMAN, Hugo. Um apelo pela irrelevância da função da crítica. O Globo, Rio de
Janeiro, 09 maio 1999. Segundo Caderno, p. 6.
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