9
O PARADIGMAMECANICISTA DA MEDICINA OCIDENTAL MODERNA: UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA Marcos de Souza Queiroz * QUEIROZ, M. de S. O paradigma mecanicista da medicina, ocidental moderna: uma perspectiva antro- pológica. Rev.Saúde públ., S.Paulo, 20:309-17, 1986. RESUMO: Objetivou-se analisai, sob um ponto de vista antropológico, o paradigma "mecanicista" dominante na medicina ocidental moderna. Faz-se comentário crítico sobre o positivismo que sustenta este paradigma. Foi mostrado também como ele desenvolveu-se historicamente a ponto de dominar a percepção médica sobre saúde, doença e terapêutica, e como essa percepção deixou modernamente de compreender um amplo espectro da realidade a que se propõe compreender. Foram analisados alguns sistemas médicos "populares" e "primitivos", mostrando como eles incorporam o social no campo da medicina. Enfatiza-se a necessidade da medicina ocidental moderna recuperar o social e o cultural (como dimensões que moldam inevitavelmente a doença, os tratamentos e a cura) para sair da crise em que se encontra. Nesse sentido, recorrer à história e aos sistemas médicos "populares" e "primitivos" tem o pro- pósito de contribuir para isso. UNITERMOS: Antropologia da medicina. Medicina tradicional. História da medicina. * Do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas - Caixa Postal 1170 - 13100 - Campinas, SP - Brasil. A medicina científica ocidental sofreu um pro- cesso de expansão extraordinária a partir da segunda guerra mundial, consolidando um modelo baseado numa sofisticação tecnológica sem precedentes. Esta sofisticação lhe permitiu uma sintonia ainda maior com o sistema produtivo na medida em que aumen- tou significativamente o seu poder de intervenção no corpo humano a fim de moldá-lo às necessidades da produção (Possas 26 , 1981). Além disso, esta so- fisticação tecnológica não se fez sem um investi- mento maciço de capital, o que colocou o campo médico como uma área onde se processa uma acumulação de capital das mais intensas (Donnan- gelo 6 , 1975). No campo ideológico, esse período caracterizou- se por um grande otimismo no poder da ciência e da tecnologia na resolução dos problemas sociais e humanos. Acreditava-se, por exemplo, que a erradi- cação e o controle da grande maioria das doenças dependia somente do fator tempo. Uma a uma elas seriam subjugadas ao poder da inteligência humana treinada pelo método científico. Mais recentemente, no entanto, esse otimismo começou a ceder lugar a uma percepção onde se configuram os limites da expansão e das possibilidades da ciência e da tecno- logia na resolução de alguns dos mais importantes problemas humanos. Isso é particularmente verda- deiro no caso da medicina, onde se verifica uma crise profunda não só da sua prática como do seu saber. Esse artigo tem por objetivo refletir tanto sobre a natureza dessa crise como sobre as saídas possíveis para ela. Para isso, pretende-se recorrer à história e à antropologia. Antes de prosseguir nessa direção, no entanto, é necessário recorrer tanto ao conceito de paradigma, conforme a formulação de Kuhn 16 (1975), para compreendermos o significado de crise no campo científico, como as posições epistemológicas que fundamentam a crítica que pretendemos empreen- der. De acordo com Kuhn 16 a "ciência normal" não teria por finalidade produzir conhecimento novo mas apenas concentrar suas investigações no óbvio determinado pelo paradigma (um mapa que governa a percepção dos cientistas) dominante no campo científico. Assim, o desenvolvimento real da ciência (não apenas a expansão interna do paradigma) ocor- re apenas em circunstâncias raras e especiais, quando o paradigma entra num estágio de crise profunda e quando um novo paradigma (que conta da reali- dade que não poderia ser compreendida pelo para- digma anterior) é proposto. Embora não seja possível sumarizar a posição de vários epistemólogos de importância, entre eles Lakatos e Musgrave 17 (1970) e Kuhn 16 (1975), pode-se dizer sem exagero que tem havido uma con- tribuição substantiva dessa área para uma radical mudança na percepção que a ciência tem de si mesma. A ciência, desde o período renascentista, tem sido concebida em termos do relacionamento isola- do entre o pesquisador e a natureza, mediados pelo conhecimento ou pelo saber do pesquisador. Atual- mente, a perspectiva desses epistemólogos muito

o paradigma mecanicista da medicina ocidental moderna

  • Upload
    lamnhu

  • View
    218

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

O PARADIGMA MECANICISTA DA MEDICINA OCIDENTAL MODERNA:UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

Marcos de Souza Queiroz *

QUEIROZ, M. de S. O paradigma mecanicista da medicina, ocidental moderna: uma perspectiva antro-pológica. Rev.Saúde públ., S.Paulo, 20:309-17, 1986.

RESUMO: Objetivou-se analisai, sob um ponto de vista antropológico, o paradigma "mecanicista"dominante na medicina ocidental moderna. Faz-se comentário crítico sobre o positivismo que sustentaeste paradigma. Foi mostrado também como ele desenvolveu-se historicamente a ponto de dominar apercepção médica sobre saúde, doença e terapêutica, e como essa percepção deixou modernamente decompreender um amplo espectro da realidade a que se propõe compreender. Foram analisados algunssistemas médicos "populares" e "primitivos", mostrando como eles incorporam o social no campo damedicina. Enfatiza-se a necessidade da medicina ocidental moderna recuperar o social e o cultural (comodimensões que moldam inevitavelmente a doença, os tratamentos e a cura) para sair da crise em que seencontra. Nesse sentido, recorrer à história e aos sistemas médicos "populares" e "primitivos" tem o pro-pósito de contribuir para isso.

UNITERMOS: Antropologia da medicina. Medicina tradicional. História da medicina.

* Do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas - Caixa Postal 1170 - 13100- Campinas, SP - Brasil.

A medicina científica ocidental sofreu um pro-cesso de expansão extraordinária a partir da segundaguerra mundial, consolidando um modelo baseadonuma sofisticação tecnológica sem precedentes. Estasofisticação lhe permitiu uma sintonia ainda maiorcom o sistema produtivo na medida em que aumen-tou significativamente o seu poder de intervençãono corpo humano a fim de moldá-lo às necessidadesda produção (Possas26, 1981). Além disso, esta so-fisticação tecnológica não se fez sem um investi-mento maciço de capital, o que colocou o campomédico como uma área onde se processa umaacumulação de capital das mais intensas (Donnan-gelo6, 1975).

No campo ideológico, esse período caracterizou-se por um grande otimismo no poder da ciência eda tecnologia na resolução dos problemas sociais ehumanos. Acreditava-se, por exemplo, que a erradi-cação e o controle da grande maioria das doençasdependia somente do fator tempo. Uma a uma elasseriam subjugadas ao poder da inteligência humanatreinada pelo método científico. Mais recentemente,no entanto, esse otimismo começou a ceder lugara uma percepção onde se configuram os limites daexpansão e das possibilidades da ciência e da tecno-logia na resolução de alguns dos mais importantesproblemas humanos. Isso é particularmente verda-deiro no caso da medicina, onde se verifica umacrise profunda não só da sua prática como do seusaber.

Esse artigo tem por objetivo refletir tanto sobre anatureza dessa crise como sobre as saídas possíveis

para ela. Para isso, pretende-se recorrer à história eà antropologia.

Antes de prosseguir nessa direção, no entanto, énecessário recorrer tanto ao conceito de paradigma,conforme a formulação de Kuhn16 (1975), paracompreendermos o significado de crise no campocientífico, como as posições epistemológicas quefundamentam a crítica que pretendemos empreen-der.

De acordo com Kuhn16 a "ciência normal" nãoteria por finalidade produzir conhecimento novomas apenas concentrar suas investigações no óbviodeterminado pelo paradigma (um mapa que governaa percepção dos cientistas) dominante no campocientífico. Assim, o desenvolvimento real da ciência(não apenas a expansão interna do paradigma) ocor-re apenas em circunstâncias raras e especiais, quandoo paradigma entra num estágio de crise profunda equando um novo paradigma (que dê conta da reali-dade que não poderia ser compreendida pelo para-digma anterior) é proposto.

Embora não seja possível sumarizar a posição devários epistemólogos de importância, entre elesLakatos e Musgrave17 (1970) e Kuhn16 (1975),pode-se dizer sem exagero que tem havido uma con-tribuição substantiva dessa área para uma radicalmudança na percepção que a ciência tem de simesma.

A ciência, desde o período renascentista, temsido concebida em termos do relacionamento isola-do entre o pesquisador e a natureza, mediados peloconhecimento ou pelo saber do pesquisador. Atual-mente, a perspectiva desses epistemólogos dá muito

mais atenção a fatores tais como a comunidadecientífica a qual pertence o pesquisador, o conheci-mento partilhado por essa comunidade e as corren-tes sociais econômicas e culturais mais amplasdentro da qual essa comunidade existe. Assim, a per-cepção de um mundo natural independente domundo humano que o percebe, um pressuposto fun-damental do positivismo passa a ser ingênua namedida em que não avalia a importância da estru-tura perceptiva influenciada pela sociedade e pelacultura na dimensão e no sentido assumidos pelomundo natural.

Tanto a sociologia como a antropologia social ecultural tem sido pródigas em demonstrações teóri-cas e empíricas de que conhecimento varia con-forme o contexto social e só tem sentido dentrodele. Os aparelhos de apreensão da realidade sãosocialmente modelados, exigindo um processo deaprendizagem. Aprende-se a sentir, a ver, a ouvir,a classificar e a discernir sobre o mundo que noscircunda. Isso nos leva à conclusão de que o co-nhecimento é inevitavelmente parcial, uma vezque a realidade é infinita e os aparelhos de apreen-são da realidade do ser humano são limitados pelabiologia (objetivamente) e pela cultura (subjetiva-mente). Portanto, a sociologia e a antropologiasocial e cultural contribuiram decisivamente paramostrar que fatores imanentes (lógicos ou meto-dológicos) ao conhecimento não podem explicarisoladamente o seu desenvolvimento, que paratal exige a introdução de fatores sociais e cultu-rais. Essa posição constitui um grande golpe aopositivismo que pretende ver no conhecimentoum desenvolvimento contínuo, com base numdesvendamento objetivo da natureza, e passívelde ser acumulado no tempo com o mesmo sen-tido. Tal positivismo, como ironizou Sartre31

(1967), nada mais é do que a ilusão de se chegarà unidade acrescentando noves a 0,99.

A crise da medicina ocidental moderna refere-seà crise de seu paradigma dominante, o qual seidentifica inteiramente com o positivismo ao nãoreconhecer o papel da sociedade, da cultura, dacomunidade científica e da própria história nadeterminação não só do objeto do conhecimentocomo da maneira de abordá-lo. Alguns autores têmdenominado esse paradigma como "mecanicista"(uma denominação que adotaremos ao longo desseartigo) por pressupor que, da mesma forma quequalquer objeto natural, a saúde e a doença podemser explicadas exclusivamente pela interação mecâ-nica das diferentes partes do organismo humano.

A ilusão histórica do positivismo não permitereconhecer que o vínculo de um campo de sabercom o seu meio social e cultural é inevitável. Nocaso da medicina, a sua crise provém não dessefato mas do seu excessivo comprometimento com

as forças sociais primárias mais imediatas do meiosocial em que atua. Portanto, o objetivo de consta-tar a inevitabilidade da influência social e culturalnum determinado campo de saber é justamente ode encontrar meios que preservem uma certa auto-nomia a esse campo de saber de modo a permití-loencontrar soluções criativas que não poderiam serencontradas normalmente por outras instituiçõessociais.

A antropologia, principalmente através deTurner32 (1967), tem mostrado a universalidade dofator desestruturante (anti-estrutural) das manifes-tações artísticas e científicas. Certamente esse autorse refere à imagem de uma ciência criativa queocorre excepcionalmente quando o saber é real-mente inovado e não à uma ciência normal como adescrita por Kuhn16 (1975). Isso porque, quando aciência ou a arte servem no sentido de manter o"status quo" social, elas tendem a se cristalizar numcomportamento institucional ritualizado subjuga-dos aos interesses sociais a que servem, referendandoo "já sabido" e sem condições de propor soluções econhecimentos novos. Já o desenvolvimento de umaindependência relativa das forças sociais mais ime-diatas permite à ciência uma postura crítica que éimprescindível à produção (e não meramente re-produção de conhecimento).

Numa frase bastante significativa, Popper25

(1970 : 58) caracterizou a produção de uma ciênciareal como implicando necessariamente "uma quebrada estrutura de nossas teorias, de nossas expectati-vas, de nossa experiência passada, de nossa lingua-gem". Ele quer dizer com isso que a produção deuma ciência real implica superar os condicionantesda história, da cultura e de nós mesmos. Realmente,a história registra que o esforço para superar oslimites impostos pelos condicionantes sociaisacompanha todas as grandes realizações da arte e daciência.

Portanto, é possível dizer, sem contradição, quenum certo momento, a medicina científica tor-nou-se hegemônica exatamente por se mostrarcompatível com o "ethos" capitalista e, num outromomento, tornou-se inviável exatamente por semostrar excessivamente comprometida com esse"ethos", perdendo assim a sua independência eautonomia, ainda que relativas, face ao sistemasocial em que atua. Na medida em que a sua funcio-nalidade ao sistema significa tomar-se insensível àscausas reais de doenças (que muitas vezes residemna forma como a vida é organizada pela sociedade)e às soluções que implicariam em melhoria do nívelde saúde de uma população, a medicina tem pro-duzido serviços extremamente caros e ineficazes,dois sintomas principais de sua crise.

A questão não é, propriamente, descartar amedicina como algo totalmente indesejável, cujo

único propósito seria promover, no bojo dos interes-ses da indústria farmacêutica e hospitalar e daprofissão médica, a ideologia da sociedade industriale burocrática. Essa postura tem sido encontrada nochamado movimento "anarquista-cultural" norte-americano, tendo em Illich14 (1975) o seu princi-pal proponente. A questão é se a medicina poderealmente tornar-se inteiramente uma ciênciaverdadeira na concepção de Popper25 (1970),conquistando para isso uma independência maiordos interesses mais imediatos do modo de produçãoa que serve. Essa pretenção implica, necessaria-mente, considerar que o objeto da medicina, o serhumano, é diferente do objeto das ciências naturais,e exige a consideração de aspectos subjetivos,simbólicos e sociais para a plena apreensão darealidade a que se propõe estudar.

Essa breve introdução no campo da filosofia daciência serve como ponto de partida do problemaque será então estudado sob uma perspectivahistórica e antropológica.

Um Pouco Sobre a História da Medicina CientíficaOcidental

Entre os gregos antigos, os mitos de Hygéia(deusa da saúde) e Asclépius (deus da medicina)simbolizam dois aspectos importantes da medicina.Para os adeptos de Hygéia, saúde dependia primor-dialmente de como os homens governavam as suasvidas. Nesse caso, ao médico cabia descobrir comoum indivíduo pode melhor se adaptar ao seu meiosocial e físico através de restrições comportamen-tais e dietéticas, uma vez que a cura viria sempreda natureza, e a doença, de um relacionamentoinadequado com ela. Nesse sentido, doença im-plica desajuste, geralmente mediado por relaciona-mento social desequilibrado. Daí o caráter de culpae vergonha que acompanhava as doenças durante omundo antigo e medieval.

Já os seguidores de Asclépius acreditavam que oprincipal papel do médico é tratar a doença e corri-gir as imperfeições trazidas pela vida através de tera-pias mais "heróicas", sem se preocupar muito emencontrar um modo de vida particular ao paciente.A ênfase recaia, portanto, no aspecto sintomáticoe curativo da medicina. Platão (citado por Livingsto-ne20 (1940), por exemplo, mostra ter sido umadepto de Asclépius, uma vez que ele criticava ocuidado e o controle excessivo com o corpo queo método de Hygéia muitas vezes acarretava, pri-vando, assim, o indivíduo de "praticar o seu ofíciose é pobre, e de se por a serviço do Estado se érico".

Em teoria, a medicina Hypocrática foi umasíntese elaborada a partir dessas duas tendências,uma vez que ela se preocupa tanto com a doença

individual e com os meios para curá-la como tam-bém com a manutenção da saúde dentro de umsistema ecológico em que fatores tais como o ar,a água e o alimento, o clima são vistos como rele-vantes para a manutenção do equilíbrio biológico.

Durante a Idade Média, a medicina mantevecomo pressuposto o paradigma aristotélico da uni-dade orgânica dos seres vivos, sendo a doença aexpressão de alterações globais do organismo eminteração com o seu meio físico e social. Assim,acreditava-se que, do mesmo modo como os hu-mores e líquidos do organismo influenciam asvirtudes do homem, suas virtudes influenciam oshumores.

No século XVII, Descartes estabeleceu os mé-todos para se pensar o corpo humano como má-quina. Assim como Galileu tinha mostrado que ométodo científico era capaz de providenciar umainterpretação mecânica do mundo físico, Descartesnão via razão porque os mesmos princípios nãopodiam ser estendidos ao mundo das criaturas vivas.Assim, ele criou a dicotomia entre mente (umaconcepção divina, fora do alcance da ciência) ecorpo (um organismo imperfeito que obedece aleis mecânicas). Nesse esquema, a doença aparececomo um distúrbio de um dos componentes damáquina humana passível de ser reparado pela in-tervenção de uma medicina que detivesse o conhe-cimento das leis que operam essa máquina. O corpohumano perdia assim seu caráter divino, intocável.Pouco tempo depois, ocorreu uma demonstraçãoainda mais dramática da validade da postura meca-nicista na descoberta de Harvey da circulação dosangue.

A partir da Revolução Industrial, verificou-seuma ruptura fundamental entre saúde e medicina,com uma hegemonia flagrante desta última. Essaruptura veio acompanhada da ruptura entre corpoe mente, eu e outro, pessoa e contexto, relaçõeseconômicas e comunitárias dentro de um mundo emintenso processo de burocratização e desencanto.Esse processo permitiu cada vez menos situar adoença entre a biografia individual e o mundosocial, fator esse que, no nosso entender, explica aimpossibilidade da medicina científica, então emer-gente, compreender um número muito grande dedoenças de atualidade.

Essa ruptura, ocorrida dentro do capitalismo mo-derno, aliou ao processo de divisão de trabalho e deburocratização, interesses econômicos irracionais.Conti5 (1972), nesse particular, conclui o seu traba-lho afirmando que todos sabem ser possível curarmuitas doenças crônicas pela diminuição de fatorestais como poluição, alienação no processo de traba-lho ou condições de "stress" na vida urbana, maseste saber se torna inútil quando a orientação mé-dica é conduzida pelo sistema produtivo a aumentar

e não a diminuir a "competência produtiva" tantoindividual como coletiva.

No século XIX, Pasteur e Koch pensaram ter pro-vado de modo inquestionável que doenças podemser produzidas pela introdução de um único agenteespecífico (um germe virulento) num organismo atéentão sadio. Como salienta Landman18 (1983: 140)a respeito,

"Do campo da infecção, a teoria da origemespecífica das doenças difundiu-se a outrasáreas da medicina pela demonstração emanimais de experiência da produção de doen-ças através de lesões específicas, anatômicas,fisiológicas ou bioquímicas. Agentes microbio-lógicos, distúrbios metabólicos, deficiênciaou aumento de hormônios, enzimas e vitami-nas, e o estresse eram considerados agentesespecíficos na etiologia das doenças. O con-ceito da desarmonia entre o paciente e o meioem que ele vive ficou obscuro e nebulosoquando comparado com a terminologia "pre-cisa" e as explicações "seguras" da modernaciência médica".

A partir de Pasteur e Koch, portanto, a medicinapensou ter se tornado uma ciência natural que teriao poder de controlar todas as doenças pela desco-berta de antídotos específicos às suas causas espe-cíficas, tendo o indivíduo e não a população comoobjeto de interesse.

A questão da saúde que, também no século XIX,teve desenvolvimento muito promissor na medicinasocial, concebida por filósofos sociais (tendo emEngels o seu expoente máximo) e cientistas médicos(tendo em Virchow o seu expoente máximo), foirelegada a um segundo plano, apesar da clareza comque esses autores demonstraram que as doenças pro-vêm das condições sociais de trabalho e de vida emgeral.

A reforma da profissão médica nos EUA, após orelatório Flexner11 (1910) consolida a hegemoniado paradigma mecanicista, ao mesmo tempo queconsolida a formação de uma profissão médica comum grau sem paralelos de poder, riqueza e prestígio.A descoberta dos antibióticos a partir de 1930 e asua comercialização depois de 1945 refletiram oauge desse paradigma, levando muitos a crerem quea resolução da maioria dos problemas de saúde deve-ria ocorrer no campo da quimioterapia.

Mais recentemente, no entanto, dois fatores fun-damentais contribuíram decisivamente para abalaros alicerces do paradigma mecanicista. O primeiro eprincipal deles diz respeito à deficiência desse para-digma em conceptualizar os problemas modernos da

saúde humana. O segundo, diz respeito aos custoscrescentes que esse tipo de medicina acarreta, tor-nando-o incompatível com o ideal de democratiza-ção da oferta de serviços médicos, principalmenteem países em desenvolvimento.

Uma importante obra a comprovar o primeirodesses fatores é a de McKeown21 (1979) que mostramuito bem que a grande melhoria nos níveis de saú-de que a população ocidental sofreu nesses últimosséculos se deve em primeiro lugar à maior disponibi-lidade de alimentos; em segundo lugar, à salubridadedo meio ambiente (principalmente a disponibilidadede água potável e de sistema de esgoto; em terceirolugar, ao controle da natalidade. A medicina, nessesentido, teve um papel muito menor do que se lheatribui. Mesmo o controle das doenças infecciosas,diz o autor, resultou principalmente da modificaçãoda condição na qual elas ocorreram, e apenas secun-dariamente pela ação quimioterápica.

Reforça esse argumento a comprovação em váriospaíses de que a partir de um certo ponto, o aumentodo nível da atividade médica numa sociedade nãocorresponde a um aumento do nível de saúde da po-pulação como se deveria esperar (Ehrenreich9,1978). O que se verifica de fato é que enquanto aalocação de recursos para a área médica na maioriados países desenvolvidos tem se multiplicado a par-tir dos anos 50, os ganhos em saúde têm sido irrisó-rios, principalmente nas duas últimas décadas. Issosem falar nas inúmeras doenças provocadas direta-mente pela ação da intervenção médica, ou seja,as doenças iatrogênicas. Num excelente artigosobre o assunto, Powles27 (1980) afirma que umdos mais notáveis paradoxos na cultura médica re-pousa no contraste entre o entusiasmo associadocom crescentes investimentos sociais na área médicae a realidada de retornos decrescentes na área dasaúde.

Um outro ponto a abalar o paradigma mecanicis-ta diz respeito à grande proporção de doenças de-generativas tais como câncer, doenças do coração,hipertensão arterial, doenças psiquiátricas entre ou-tras, que não se mostram tratáveis pela intervençãotecnológica baseada no modelo unicausal de doen-ças. Muitos autores têm considerado não só essasdoenças mas também as infecciosas como de múl-tipla causalidade, na qual corpo, mente e meio-am-biente (incluindo mas não limitado por microorga-nismos exógenos) interagem para produzir a doençaou para curá-la. Como Dubos8 (1965) argumentou aesse respeito, o ser humano traz com ele a maiorparte dos germes causadores de grande parte dasdoenças a maior parte do tempo. Essas doenças,no entanto, só se manifestam quando a resistênciaa elas diminui ou quando a suscetibilidade a elasaumenta, o que remete necessariamente às condi-ções sociais que as propiciam.

No que diz respeito aos custos crescentes de umamedicina baseada no hospital e na alta tecnologia, asua presença hegemônica em países como o Brasil,cuja grande maioria populacional é sub-alimentada epossui escasso controle ambiental, é evidentementemuito mais irracional do que o mesmo fenômenonum país rico. O aumento das taxas de mortalidadeinfantil em aproximadamente 70% entre 1960 e1975 no Estado de São Paulo, ao mesmo tempo emque se promovia o chamado "milagre econômico"e se consolidava um sistema nacional voltado parauma medicina individualizada, sintomática, curativae de natureza essencialmente hospitalar, multipli-cando com isso os gastos "per capita" com os cui-dados médicos, é um ótimo exemplo da ineficáciadesse sistema e da necessidade de se promover umaalternativa para ele (Bacha1, 1979, sobre mortali-dade infantil em São Paulo). No entanto, é impor-tante salientar que a crise da medicina não se limitaaos problemas do subdesenvolvimento, uma vez queela está intensamente presente também entre ospaíses desenvolvidos capitalistas e socialistas (ver,por exemplo, Navarro23,24, 1975 e 1977, que,numa perspectiva marxista, critica tanto a medicinacapitalista como a medicina socialista existentena União Soviética).

Sob o ponto de vista do relacionamento médico-paciente, o desenvolvimento da medicina ocidentalmoderna tem sido vista como um processo pelo qualo paciente perde a sua integridade e consciência so-cial e cultural de si mesmo e se torna um objeto demanipulação. De acordo com Jewson15 (1976), aperda dessa identidade ocorreu através de três es-tágios históricos.

O primeiro estágio, denominado "medicina aolado da cama", foi dominante no Ocidente até o fimdo século XVIII. Sua característica principal consis-tia em que o paciente se situava no centro do pro-cesso médico e era tratado em sua totalidade. Assim,os dados à disposição do médico eram subjetivos, eos sentimentos e sensações do paciente eram consi-derados muito importantes na avaliação de suacondição. A "medicina ao lado da cama" tambémadotava a suposição de que a doença resultava deum distúrbio no relacionamento do ser humano comseu meio físico e social. Portanto, o equilíbrio tantocom o meio ambiente como com o meio social eraconsiderado fundamental na causação de doenças ena manutenção da saúde. No entanto, como apon-tou Jewson15, esse tipo de medicina se caracterizatambém pelo grande número de teorias conflitantesque lutavam entre si por uma hegemonia.

A "medicina hospitalar", o segundo estágio, veiocomo resultado da revolução industrial e do proces-so de urbanização a partir do século XVIII. Essetipo de medicina classificava estados patológicos,

dentro de um sistema de doenças que pretendia serobjetivo, no qual o paciente se tornava meramenteum caso. Em tal situação, a doença deixou de serconsiderada um distúrbio envolvendo uma totali-dade biológica inserida num contexto sócio-cultural.Ela passou a ser diagnosticada tendo em vista ex-clusivamente a correlação objetiva de sintomas,sendo considerado irrelevante o registro dos senti-mentos e das sensações subjetivas do paciente a res-peito da sua doença. Para esse fim, desenvolveu-seuma variedade de instrumentos para o exame in-terno e externo do paciente. No entanto, a possíveleficácia da medicina desse tempo, como tem notadovários autores (Doyal7, 1979; Berliner2, 1982), eraquase sempre produzida por efeito placebo. Semusufruir de uma medicina objetivamente superior, opaciente deixa de ser dominante no relacionamentomédico-paciente, passando a exercer um papel se-cundário no qual os principais protagonistas passa-ram a ser os médicos (agora formando uma classeprofissional cada vez mais poderosa) e as doençasisoladas dos pacientes num processo de reificação.

Finalmente, a medicina de laboratório, o terceiroestágio, teve início em fins do século passado, emsintonia com uma intensificação sem precedentes doprocesso de industrialização e urbanização. Nocampo médico, a visão de mundo mecanicista, en-fatizando uma intervenção terapêutica ativa noprocesso fisiológico humano, atingiu o seu apogeu.Nesse estágio, as doenças deixaram de ser interpre-tadas através da estrutura patológica, e passarama sê-lo através da estrutura celular. Com o uso dométodo experimental, a medicina tornou-se umaciência natural que transformou o paciente nãoapenas num caso clínico mas num objeto a ser ma-nipulado.

Portanto, enquanto as novas doenças, males ecausas de mortes passaram a ser cada vez mais re-lacionadas com as condições de trabalho e de vidanum determinado contexto sócio-econômico ecultural, a medicina concentrava a sua atençãocada vez mais intensamente em conceitos etioló-gicos unicausais, baseados na teoria dos germes.Assim, como salienta Berliner2 (1982), a medi-cina científica tornou-se uma racionalização paranão se lidar com as causas verdadeiras das doençasnum modo que pudesse ser disfuncional para ocrescimento produtivo capitalista. Em grandemedida essa conclusão pode também ser extra-polada para a medicina de países socialistas. Nessesentido, a medicina ocidental moderna valida, re-força, legitima e reflete as normas produtivas, oque nem sempre coincide com as necessidades desaúde de uma população. Isso quer dizer que so-mente uma revolução econômica onde se socia-lizam os meios de produção não é suficiente paraque ocorra uma revolução nas idéias e na cultura.

Os Sistemas Médicos "Populares" e "Primitivos":um enfoque antropológico

Vimos que, historicamente, o desenvolvimentoda medicina implicou em perda de uma visão unifica-dora do paciente, e deste com o seu meio ambientefísico e social. Essa perda começou a ocorrer coma revolução industrial, mas só atingiu a sua pleni-tude no século XX. Trata-se, portanto, de um fe-nômeno recente e sem similar dentro da históriado ocidente. Trata-se também de um fenômenosem similar quando confrontado com outros sis-temas médicos não ocidentais como a Acupuntura,a medicina Ayurvédica ou ainda os sistemas médicospopulares da África, Ásia ou América Latina. Em to-dos esses casos, por mais diferentes que sejam,tanto as concepções de doença e de saúde como ostratamentos e as formas de cura, é possível verifi-car um denominador comum: o pressuposto de quea saúde e a doença dependem do relacionamentotanto das diferentes partes do organismo entre sicomo deste com o seu contexto sócio-cultural.

O argumento sustentado por este artigo é que amedicina ocidental moderna necessita recuperar essadimensão para sair da crise que a levou a seu para-digma dominante. É importante salientar, contudo,que focalizar medicinas populares ocidentais ou nãoocidentais não significa contrapô-las favoravelmenteà medicina ocidental moderna. Isso porque se tratade situações de diferente escala e de diferente confi-guração cultural do problema. O que se pretende éconstatar que nesses sistemas médicos alternativos,sejam eles simples conhecimento popular não siste-matizado ou sistemas médicos complexos, o fatorsocial existe como componente fundamental, aocontrário do que ocorre com o paradigma domi-nante da medicina ocidental moderna.

Dentro da própria medicina ocidental moderna,a incorporação do social no campo médico, emboraconfigurando uma mudança radical de paradigma,não constitui propriamente uma possibilidade teó-rica nova. Como vimos, a dimensão social existecomo componente fundamental para a medicinadesde a medicina Hipocrática, tendo sido enfocadacom rigor científico no século XIX. Em termos con-cretos, portanto, a recuperação do social pela medi-cina não seria tão somente uma questão epistemoló-gica, mas inevitavelmente política.

Isso posto, estamos agora em condições de anali-sar os estudos antropológicos sobre medicinas"populares" e "primitivas".

A noção de equilíbrio pode ser tomada comouma noção fundamental para a medicina de nume-rosas sociedades de tecnologia simples. Na AméricaLatina, esta noção está presente no equilíbrio dohomem com o seu meio natural (dentro da lógica do"quente e frio"), no equilíbrio do homem com o

seu meio social (através da crença de que crises norelacionamento social provocam doenças) e no equi-líbrio do homem com ele mesmo e com agentessobrenaturais (através da crença de que crises emo-cionais ou influências sobrenaturais provocamdoenças).

A lógica do "quente e frio" tem sido encontradaem praticamente toda a América Latina e consistenum sistema que classifica como quente ou friocertos elementos, principalmente alimentos e ervasmedicinais, e atribui uma performance terapêuticadiferencial desses elementos no corpo humano.Assim, doenças quentes devem ser tratadas comervas medicinais e alimentos frios, e as doenças friasdevem ser tratadas com ervas medicinais e alimentosquentes (Queiroz, 29,30, 1982, 1984).

A crença de que crises no relacionamento socialprovocam desequilíbrios emocionais que levam adoenças está presente nas tão difundidas crenças em"mau-olhado", feitiço ou inveja. Basicamente, essascrenças pressupõem que os sentimentos de um indi-víduo influenciam, para bem ou para mal, outros in-divíduos. Evidentemente, como tão bem sugeriraGluckman12 (1973), esses sentimentos são social-mente dirigidos e refletem necessariamente a estru-tura social em que ocorrem (Queiroz28, 1980).

Finalmente, a crença de que a desarmonia doindivíduo com ele mesmo e com agentes sobrena-turais traz doenças está presente nas não menosdifundidas crenças em "susto", vontade insatisfeitaou ainda em espíritos interferindo maleficamentenos negócios humanos. Como no caso anterior, essascrenças só fazem sentido quando em operação numdeterminado contexto social.

Na África, a noção de que doenças refletem umdesequilíbrio social chegou a um grau de grande so-fisticação, como nos mostram tanto Evans-Prit-chard10 (1937) como Turner32 (1967). A obra deEvans-Pritchard10 sobre os Azande é clássica. Elemostra que para esse povo (e para muitos outrosda África como nos têm mostrado etnografias recen-tes), toda a doença, assim como toda a má-sorteindividual provém de um feitiço feito por uma outrapessoa. O objetivo desse autor é mostrar que, longede ser uma crença ilógica própria de uma mentalidadeprimitiva, esta crença reflete uma estrutura de po-der dentro da sociedade. A acusação de feitiçarianão é gratuita e obedece a uma lógica onde con-flitos socialmente estruturados se expressam e sereconciliam através de uma complexa interaçãosocial.

Turner32 (1967) leva adiante as idéias estabele-cidas por Evans-Pritchard10 ao mostrar que omédico Ndembu encara o seu papel muito menosconcentrado no paciente individual do que voltadopara remediar os males do grupo corporado. Emsuas palavras, "a doença de um paciente é princi-

palmente um sinal de que 'alguma coisa está podre'no grupo corporado" (Turner32, 1967 : 392).Turner observa nessa obra que o paciente nãomelhorará enquanto as tensões e agressões nasinter-relações grupais não tiverem sido expostasà luz e ao tratamento ritual. Nesse sentido, o papeldo médico Ndembu é se deixar sensibilizar pelascorrentes sociais de sentimentos conflituosos epelas disputas interpessoais e sociais nas quais elasse expressam, e canalizá-las num sentido positivo.Assim, "as energias cruas do conflito são domes-ticadas a serviço da ordem social" (Turner32 1967:392).

Muitos estudos têm mostrado a eficácia tera-pêutica de curandeiros populares manipulandoos símbolos partilhados por seus clientes. Magna-ni22 (1979), em particular, sugere que rituais comoos da Umbanda, porque fazem sentido dentro domeio social em que se manifestam, e porque ofe-recem uma interpretação coerente às ambigüidadese paradoxos da experiência humana, têm uma ine-gável eficácia terapêutica.

No entanto, devemos nos resguardar de roman-tizar a verdade contida nas medicinas "primitivas" e"populares" deixando de ver que elas não são capa-zes de erradicar o baixíssimo nível de saúde das po-pulações a que servem. Para isso, todo um quadrode má-nutrição, pobreza e precário controle am-biental deveria ser eliminado.

O aspecto psicossomático e social da cura dedoenças foi abordado por Lèvi-Strauss19 (1970) nocapítulo "O feiticeiro e sua magia". Ao utilizar oconceito de "eficácia simbólica", esse autor mostraque a manipulação ritual de certos símbolos social-mente significativos tem o poder de curar ou produ-zir enfermos. No caso de doenças provocadas porrituais, Lèvi-Strauss lembra a pesquisa de Cannon3

(1942). Esta pesquisa demonstrou que feitiços econjuras publicamente lançados contra um indiví-duo podem causar doenças e mesmo a morte desseindivíduo em sociedades que acreditam nesse poder.Isso porque, assim marcado, ele seria excluído deseu meio social e "a integridade física não resiste àdissolução da personalidade social" (Lévi-Strauss19,1970: 184).

No caso da cura, o ritual concentra uma conside-rável atenção social no paciente, promovendo umreajuste nos seus papéis de modo a produzir umamelhor adaptação e, conseqüentemente, uma me-lhora no seu estado de saúde. Ao mesmo tempoque o ritual promove a cura, numa relação simbió-tica, a cura se torna uma forte instância na qual acultura se legitima e se sustenta.

Nesse capítulo, Lèvi-Strauss19 conta a estóriaanteriormente coletada por Boas de um índio doNoroeste Americano chamado Quesalid que haviase tornado um grande curandeiro. Na descrição de

sua carreira, fica claro o aspecto social da cura, quedepende basicamente da crença do curandeiro emsuas técnicas, da crença do paciente no curandeiro e,finalmente, da crença do meio social do paciente nosistema de cura empregado pelo curandeiro. Essestrês aspectos devem necessariamente ocorrer conjun-tamente para que a cura possa ocorrer. Como sa-lienta Lèvi-Strauss19, Quesalid não era um grandecurandeiro porque curava seus pacientes, mas curavaseus pacientes porque era um grande curandeiro.

Wright33 (1979), estudando a medicina na Ingla-terra no século XVII, conclui que a medicina cientí-fica ocidental se tornou hegemônica no fim desseséculo não porque seu conhecimento era mais válidodo que a medicina astrológica que a precedeu, e me-nos ainda porque a sua eficácia terapêutica eramaior. Na verdade, a única explicação para o sucessohistórico dessa forma de medicina se encontra emsua compatibilidade cultural com o novo modo deprodução capitalista.

Wright33 é bastante convincente ao mostrar queo desenvolvimento da medicina não pode ser vistoem termos de uma resposta técnica a uma necessi-dade pré-existente, uma vez que o sentido de neces-sidade é dependente das forças materiais e culturaisdo tempo. Assim, a medicina, diante da revoluçãomercantil do século XVII, da valorização do lucroe do domínio da natureza se torna intervencionista(em oposição às noções então prevalentes de harmo-nia e equilíbrio), enfatiza uma relação individual esolitária entre médico e paciente (em congruênciacom a ideologia individualista do tempo) e acentua aetiologia individualista da doença (compatibilidadecom o puritanismo então vigente).

Portanto, se a medicina científica ocidental seimpôs não por causa de sua maior eficácia, ela setorna eficaz depois de ter sido imposta pelas forçaspolíticas, sociais e ideológicas do seu tempo. Não es-tamos, portanto, longe da fórmula de Lèvi-Strauss19

a respeito do índio Quesalid.

A Farmacologia tem contribuído para desestabi-lizar o mito positivista através de suas investigaçõescom placebos. Placebos são substâncias inativas que,no entanto, agem farmacologicamente movidas pelasexpectativas do paciente. Numerosas pesquisas têmcomprovado que o efeito placebo pode afetar qual-quer órgão ou sistema do corpo humano, provendoalívio a uma grande variedade de condições e atémesmo causando efeitos colaterais e dependência.O efeito placebo depende de elementos culturaise sociais, e é componente essencial em todas asformas de cura.

O recurso à terapia placebo é amplamente usadopelos médicos ocidentais, como nos mostra Coma-roff4 (1976). O artigo de Comaroff é particular-mente interessante na medida em que a terapia pla-cebo é observada sob a perspectiva do médico, cuja

dependência dela é vista como um fator indispen-sável para a preservação do seu saber num plano glo-bal e sistemático diante da sua incerteza num planocotidiano individual.

Portanto, a terapia placebo é efetiva tanto paraos clientes (porque expectativas positivas são com-ponentes essenciais para a cura) como para os médi-cos (porque tal terapia permite que eles desempe-nhem a sua função com maior confiança).

Helman13 (1984) realiza importante análise so-bre as principais pesquisas realizadas sobre o efeitoplacebo, e uma de suas mais interessantes conclusõesé atribuir a ele o fato de que o índice de eficácia demuitas drogas e tratamentos, depois de atingiremde 70 a 90%, começam a cair paulatinamente atéchegar de 30 a 40%, que nada mais é do que a médiaavaliada para a ação placebode qualquer droga outerapia. Helman interpreta isso pelo entusiasmo e aexpectativa de médicos ou pesquisadores que insti-gam efeito placebo em agentes experimentais. Maistarde, pesquisas realizadas por investigadores maiscéticos revelam grande diminuição da eficácia. Daía necessidade da medicina estar sempre inovando.

CONCLUSÃO

A medicina ocidental moderna desenvolveu-semudando uma cosmologia voltada para a pessoa hu-mana para uma cosmologia voltada para o objeto.Tem havido ganhos e perdas nesse processo. Por umlado, houve aperfeiçoamento de técnicas terapêuti-cas e o desenvolvimento de um corpo consistentede conhecimentos com a concomitante reduçãoda controvérsia sobre a natureza da doença e de seutratamento; por outro lado, a medicina perdeu suavisão unificadora do paciente em particular e da vidaem geral como agentes que resultam, na saúde e nadoença, de fatores ambientais, sociais e econômicos,além dos fatores biológicos. A medicina ocidentalmoderna necessita recuperar, na sua prática, essadimensão, porque ela é teoricamente mais rica, equi-librada e próxima das causas reais que envolvem asaúde e a doença em seres humanos. Para isso elanecessita reordenar o enorme conjunto de conheci-mentos e tecnologias até hoje acumulados, comosolução para a sua crise e em alternativa ao seu pa-radigma mecanicista dominante.

A recuperação dessa dimensão significa permitirà medicina um desempenho com maior autonomiadas forças e interesse políticos, econômicos e ideo-lógicos da sociedade; significa também postular anecessidade de encontrar instâncias mediadoras quelhe possibilitem manter uma certa distância das in-fluências sociais mais imediatas. Essas influênciasocorrem no plano econômico na medida em que,por exemplo, indústrias farmacêuticas, de equipa-mentos hospitalares ou ainda as mantenedoras dehospitais privados influenciam a prática médica edirecionam linhas de investigação e de produçãode conhecimentos. Elas se manifestam no planopolítico na medida em que, por exemplo, interes-ses de manutenção do poder da profissão médica,isolados ou em conjunção com interesses de classe,prevalecem organizando tanto a prática como osaber médicos no sentido de manutenção do "statusquo". Elas ocorrem, finalmente, no plano ideológicona medida em que o mito da excelência tecnológica,ou seja, a crença de que problemas humanos podemquase sempre ser resolvidos por uma solução técnicase reproduz na prática e no saber médicos em com-patibilidade com o "ethos" da sociedade industrialcapitalista.

Nessa perspectiva, articular as dimensões biológi-cas com as sociológicas na construção social dosaber e da prática médicas implica adotar soluçõescompatíveis com as causas dos problemas de saúdehumanos. Essa postura está, evidentemente, relacio-nada com a construção de uma medicina mais in-fluenciada pelo pensamento e metodologia científi-cas e menos influenciada pelas forças primárias queorganizam a sociedade capitalista.

Evidentemente, essa reorientação deve começara ocorrer no campo teórico e científico, ou seja, nocampo das idéias para, pouco a pouco, ao minar aresistência dos interesses sócio-econômicos compro-metidos com o capital, encontrar condições institu-cionais para transformar as idéias em práticas. Essapostura é perfeitamente coerente com a interpreta-ção marxista de Gransci, para quem a revolução noocidente deve iniciar-se no campo da cultura. Nessesentido, é possível criticar a concepção marxista or-todoxa de que não se pode mudar a medicina (umaárea da super-estrutura social) sem mudar as baseseconômicas da sociedade (uma área da infra-estru-tura social).

QUEIROZ, M. de S. [The "mechanistic" paradigm of modem western medicine: an anthropologicalperspective] . Rev.Saúde públ., S.Paulo, 20: 309-17, 1986.

ABSTRACT: The dominant "mechanistic" paradigm of modern western medicine was analysedfrom an anthropological point of view. Some critical comments on the positivistic posture which underliesthis paradigm were made, as well as a historical overview of how it has developed (dominating medicalperception of health, disease and therapeutics) up to its present crisis. An analysis of some "primitive"and "popular" medical systems showing how they incorporated social elements into strategies of treat-ment and cure was also made. It was emphasised that modern western medicine needs to recover its socialand cultural dimensions in order to overcome its present crisis. In this sense, looking to history as well asto "primitive" and "popular" medical systems has the aim of contributing to this search.

UNITERMS: Anthropology, medical. Medicine, traditional. History of medicine.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BACHA, C.S. The emergence of finance capitalism inBrazil. Manchester, 1979. C Ph.D. Thesis-Universityof Manchester ] .

2. BERLINER, H. Medical modes of production. In:Wright, P. £ Treacher, A., eds. The problem ofmedical knowledge. Edinburg, Edinburg UniversityPress, 1982. p. 162-73.

3. CANNON, W.B. "Voodoo" death. Amer.Anthropol.,44:169-81,1942.

4. COMAROFF, J. A bitter pill to swallow: placebo the-rapy and general practice. Sociol.Rev., 76 : 247-59,1976.

5. CONTI, L. Estrutura social y medicina. In: Medicinay sociedad. Barcelona, Libros de Confrontacion,1972. p. 287-310.

6. DONNANGELO, M.C.F. Medicina e sociedade. SãoPaulo, Pioneira, 1975.

7. DOYAL, L. The political economy of health. London,Pluto Press, 1979.

8. DUBOS, R.J. Man adapting. New Haven, Yale Univer-sity Press, 1965.

9. EHRENREICH, J. Introduction: the cultural crisis ofmodern medicine. In: Ehrenreich, J., ed. The culturalcrises of modern medicine. New York, MomphleyReview Press, 1978. p. 1-38.

10. EVANS-PRITCHARD, E.E. Witchcraft, oracles andmagic among the Azande. Oxford, Claredon Press,1937.

11. FLEXNER, A. Medical education in the United Statesand Canada. New York, Carnegie Foundation forAdvancement of Teaching, 1910. (Bulletin n. 4).

12. GLUCKMAN, M. Custom and conflict in Africa.Oxford, Basil Black well, 1973.

13. HELMAN, C. Culture, health and illness. Bristol,Wright PSG, 1984.

14. ILLICH, I. A expropriação da saúde. Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1975.

15. JEWSON, N.D. The disappearance of the sick-manfrom medical cosmology. Sociology, 10 : 225-44,1976.

16. KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas.São Paulo, Perspectiva, 1975.

17. LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. Criticism andgrowth of knowledge. Cambridge, Cambridge Uni-versity Press, 1970.

18. LANDMAN, J. Medicina não é saúde. Rio de Janeiro,Nova Fronteira, 1983.

19. LÈVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio deJaneiro, Tempo Brasileiro, 1970.

20. LIVINGSTONE, Sir.R.W., ed. Plato: selected passages.Oxford, Oxford University Press, 1940.

21. McKEOWN, T. The role of medicine. Oxford, BasilBlack well, 1979.

22. MAGNANI, J.G.C. Doença e cura na religião umban-dista. Campinas, Departamento de Ciências Sociaisda UNICAMP, 1979. [Mimeografado]

23. NAVARRO, V. Medicine under capitalism. New York,Prodist, 1976.

24. NAVARRO, V. Social security and medicine in theUSSR. New York, Lexington Books, 1977.

25. POPPER, Sir K. Normal science and its dangers. In:Lakatos, I. & Musgrave, A., eds. Criticism and thegrowth of knowledge. Cambridge, Cambridge Uni-versity Press, 1970. p. 141-64.

26. POSSAS, C. Saúde e trabalho. Rio de Janeiro, Graal,1981.

27. POWLES, J. On the limitation of modern medicine.In: Mechanic, D., ed. Readings in medical sociology.New York, The Free Press, 1980. p. 18-45.

28. QUEIROZ, M.S. Feitiço, mau olhado e susto: seustratamentos e prevenções na aldeia de Icapara.Relig. e Soc., (5): 131-60, 1980.

29. QUEIROZ, M.S. Hot and cold: a fundamental systemof classification to the traditional medicine in Iguape.Manchester, University of Manchester Press, 1982.(Occasional Paper, 8).

30. QUEIROZ, M.S. Hot and cold classification in tradi-tional Iguape medicine. Ethnology, 23 (1) : 63-72,1984.

31. SARTRE, J.P. Questão de método. São Paulo, DifusãoEuropéia do Livro, 1967.

32. TURNER, V.W. The ritual process. London, Routledge& Kegan Paul, 1967.

33. WRIGHT, P.W.G. Study in the legitimation of know-ledge: the "sucess" of medicine and the "failure" ofastrology. Sociol. Rev. Monogr., 27 : 85-99, 1979.

Recebido para publicação em 26/02/1986.Aprovado para publicação em 09/06/1986.