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O Partido Comunista Portugus e a Guerra Fria:sectarismo, desvio de direita, Rumo vitria
(1949-1965)
Joo Manuel Martins Madeira
Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios
obteno do grau de Doutor
em Histria Institucional e Poltica Contempornea,
realizada sob a orientao cientfica
do Professor Doutor Fernando Rosas
MAIO, 2011
DECLARAES
Declaro que esta dissertao o resultado da minha investigao pessoal e
independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto devidamente
mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.
O candidato,
____________________
Lisboa, 16 de Maio de 2011
Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser apresentada a
provas pblicas.
O orientador,
____________________
2
Lisboa, 16 de Maio de 2011
3
4
Aos homens e mulheres livres,
cuja entrega desinteressada e corajosa,
foi rasgo de guia
e nunca significou embotamento crtico
5
AGRADECIMENTOS
No caudal das solidariedades, generosidades e reconhecimentos, o que aqui
trago foi escorado nas palavas e nos gestos, nos ditos e no ditos de incentivo de muitos.
Todos eles e elas sabem do que falo, no os conseguirei mencionar a todos nem
esquecerei nenhum deles.
Quero comear por sublinhar a importncia do papel desempenhado pelo meu
orientador, Professor Doutor Fernando Rosas, pelas esclarecidas e pertinentes sugestes
e correces que num esprito cientfico aberto sempre estimulou o curso da presente
investigao, desde o projecto a esta forma final.
E no poderia deixar de mencionar a trao vincado os meus colegas do Instituto
de Histria Contempornea, em particular os que mais prximos de mim, pelo incentivo
e pelo encorajamento, nos projectos e interesses cientficos comuns, nos debates e
trocas de opinio formais e informais; pelos materiais, informaes e sugestes
generosamente prestados; pelas solidariedades forjadas. Permitam-me, sem ignorar ou
esquecer nenhum, que mencione o Lus Farinha, a Susana Martins, a Dulce Freire, a
Judith Manya, o Lus Trindade, a Ana Catarina Pinto, a Ana Sofia Ferreira, a Irene
Pimentel, a Incia Rezola.
No esqueo as cumplicidades cientficas com colegas do CEIS20 da
Universidade de Coimbra, designadamente o Antnio Pedro Pita, o Lus Costa Dias ou
a Teresa Cascudo, bem como o Jos Neves, do ISCTE e, agora, da FCSH ou a Ins
Fonseca do CEEP, tambm da FCSH.
Mas quero agradecer tambm aos meus colegas, companheiros e amigos, de
distintas vivncias e formaes acadmicas, que ao longo de todo este longo tempo
exerceram, com a sua curiosidade e o seu interesse, insubstituvel e reconfortante
incentivo.
Registo um particular agradecimento ao pessoal dos Arquivos por onde passei,
da Torre do Tombo Polcia Judiciria, da Academia das Cincias ao Arquivo Distrital
de Lisboa, do PC de Espanha ao Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira. A
6
tenso com que nalguns deles por vezes nos cruzmos foi sempre incapaz de se
sobrepor ao zelo, boa-vontade e ao profissionalismo que, em situaes institucionais
tantas vezes adversas, se traduziu na disponibilizao, arquivisticamente tempor
nalguns casos at, de documentao de importncia primordial.
Um palavra de agradecimento especial aos actores histricos que aceitaram que
os entrevistasse, muitos entretanto falecidos, que com maior ou menor desassombro
evocaram tempos duros e sofridas situaes quer narrando abertamente quer fazendo
com que os seus silncios ajudassem tambm a iluminar a Histria.
Destaco entre eles as figuras de Francisco Martins Rodrigues e de Manuel Joo
da Palma Carlos, ambos falecidos, pela empatia (como evitar diz-lo!) e pela
fecundidade dos seus depoimentos lcidos, crticos, corajosos, emotivos.
Por mais voltas que a vida d, deixo um gesto grande de afecto a quem me
acompanhou, e sobretudo me acompanha, em troos deste caminho, sempre de modo
discreto, solidrio, compreensivo e afvel.
Uma palavra final de reconhecimento aos meus pais, com saudade do meu pai
que j partiu e que, onde quer que esteja, se souber deste meu passo, no esconder a
sua enorme satisfao, porque ambos foram absolutamente decisivos na aparelhagem da
embarcao que fui e sou nesta viagem.
7
O PARTIDO COMUNISTA PORTUGUS E A GUERRA FRIA:
SECTARISMO, DESVIO DE DIREITA, RUMO VITRIA
(1949-1965)
THE PORTUGUESE COMMUNIST PARTY AND THE COLD WAR:
SECTARISM, RIGHTWARD SHIFT ,TOWARDS VICTORY
(1949-1965)
JOO MANUEL MARTINS MADEIRA
PALAVRAS-CHAVE
Centralismo Democrtico, Clandestinidade, Comunismo, Democracia, Desvio de
Direita, Guerra Fria, Estalinismo, Oposio, Salazarismo, Sectarismo, Transio
KEYWORDS:
Clandestineness, Cold War, Communism, Democracy, Democratic Centralism,
Opposition, Rightward Shift, Salazarism, Sectarism, Stalinism, Transition
RESUMO
Entre a priso de lvaro Cunhal em 1949 e o triunfo formal das suas teses no VI Congresso do PCP, em 1965, o Partido Comunista Portugus viveu anos difceis e flutuaes de linha poltica, pontuadas por fortes debates e crises internas.
O acuo partidrio dos primeiros anos cinquenta deu lugar, sombra do XX Congresso do PCUS e de velhas e enquistadas concepes polticas, a um designado desvio de direita em que os fundamentos doutrinrios independncia operria como esteio fundamental da poltica de alianas e via do levantamento nacional para o derrube do regime tal como a concebera lvaro Cunhal foi paulatinamente substitudo.
Aps a sua audaciosa fuga da priso no incio de 1960, Cunhal proceder rectificao desse desvio e repor a linha do levantamento nacional consubstanciada em termos doutrinrios no Rumo Vitria, documento fundamental que est na base do programa aprovado no Congresso de 1965.
8
Se o alinhamento internacional do PCP de subordinao ao centro do sistema sovitico num clima internacional de Guerra Fria, com os seus mpetos, abrandamentos e recomposies, exerceu impacto profundo nas orientaes partidrias, sempre um veio nacional, bebido numa tradio cultural republicana radical e desenvolvimentista se lhe associou em tenso maior ou menor, mas permanente.
Porm, o Partido Comunista nunca perderia de vista, independentemente de flutuaes, conjunturas e heranas culturais que as suas polticas com vista ao derrube do regime se subordinavam disputa acesa pela hegemonia das oposies e por no ficar de fora de uma qualquer soluo que se pudesse desenhar derrubado o regime.
O PCP foi nestes anos, por um lado, o resultado deste feixe tenso de foras que, por outro lado, frequentemente conflituaria ainda com a pulso dos sectores partidrios e sociais mais radicalizados.
Neste encadeamento de processos complexos e contraditrios, o PCP, vencido o enquistamento sectrio e o seu lastro, sempre apostou mais no enquadramento das vozes e dos movimentos discordantes do que na sua anulao por excluso e violncia partidria, que tambm exerceu.
Mas, com efeito, o Partido Comunista nunca abandonaria significativamente a tradio estalinista que lhe foi matricial a partir da reorganizao de 1940-41 e que lhe permitiu, escorado num conjunto de procedimentos de raiz centralizadora, hierarquizada e compartimentada, casados com uma rigorosa cultura de clandestinidade, resistir melhor ou pior, mas resistir, s sucessivas e constantes investidas policiais.
ABSTRACT
Between 1949, when lvaro Cunhal was imprisoned, and 1965, in the 6th Congress of the Portuguese Communist Party, when the formal prevalence of his thesis materialised, the party lived hard years and drifts of political lines, characterised by intense debate as well as internal crises.
The fierce supporter of the early 1950s, lvaro Cunhal after the strong influence of the 20th Congress of the Soviet Union Communist Party as well as of old, very firm political concepts became a rightward shift, who slowly had substituted the doctrinal foundations he, himself had conceived: of an independent working class both as the main basis of a policy of alliances and the way to the national rebellion to overthrow the regime.
After his audacious escape from prison at the beginning of the year 1960, lvaro Cunhal would proceed to rectify that deviation: he would recover the national rebellion line, as it is synthesized into principles and theories in Rumo Vitria (Towards Victory), a fundamental document which is the basis of the program approved in the Congress in 1965.
If it is a fact that the international alliance of the Portuguese Communist Party and the Soviet system one of subordination in an international climate of Cold War, with impetus, decreases and recoveries had a deep impact upon the partys orientation,
9
there simultaneously existed a national principle under major or minor tension, but always present , both radical and based upon the conviction of development, which had been absorbed in a republican cultural tradition.
However, the Portuguese Communist Party, irrespective of its drifts, conjunctions and cultural heritage, would never lose sight of the idea that its policies to overthrow the regime were subordinated to the dispute for the hegemony of positions, in order not to be excluded from any solution after toppling the regime.
During all those years, the Portuguese Communist Party was the result of all these tense forces, on the one hand, which, on the other hand, would frequently collide with the pulse of the more radical party political and social sectors.
In this chain of very complex and contradictory processes, and after conquering its intolerant, hard factions, as well as their bases, the Portuguese Communist Party has always agreed to gather opposing tendencies rather than exclude them or use political harassment.
But, actually, the Portuguese Communist Party has never significantly abandoned its Stalinist tradition which was its framework since the party was restructured in 1940-41 and which allowed it supported by a group of procedures of a centralised, hierarchised and compartmentalised character and bound to a thorough and strict culture of clandestine existence to resist, the most appropriately they could, but resist, the continuous and constant police assaults.
10
NDICE
Agradecimentos .. 5
Resumo 7
Introduo 13
1. O comunismo como objecto de estudo 13
2. Os mtodos, as fontes e a bibliografia .. 28
3. O tema: unidades, plano e mbito 40
PARTE I
PCP Um novo partido
Captulo 1
De quantos partidos se fez o Partido . 45
1. Parto difcil para uma seco da Internacional Comunista .. 45
2. preciso que o PCP complete a sua bolchevizao 56
3. A revoluo exigia de ns uma mstica total 64
4. Os camaradas no cumpriram as orientaes dadas por ns . 73
Captulo 2
A reorganizao ... 88
1. Dois Partidos Comunistas em Portugal 88
2. A afirmao do novo PCP 99
3. O combate final ao governo fascista de Salazar 114
Captulo 3
A Poltica de transio e o caminho para o derrubamento do fascismo . 124
1. O Tarrafal e a Poltica Nova ... 124
2. O Tarrafal e a Poltica de Transio ... 130
3. O IV Congresso e o caminho para o derrubamento do fascismo ... 138
11
PARTE II
O PCP e a Guerra Fria
Captulo 4Tempos quentes de guerra fria .. 151
1. Uma depresso temporria de lutas .. 151
2. Uma grande vitria poltica do nosso Partido ... 171
3. O Movimento Nacional Democrtico e o Movimento pela Defesa da Paz ... 184
4. Unamo-nos em defesa da Paz . 199
5. A unidade conduz vitria . 217
Captulo 5
O desvio de direita .. 241
1. A VI Reunio Plenria Ampliada do CC 241
2. Mudam-se os tempos 258
3. Como um velho realejo, repetindo, repetindo sem vibrao profunda 279
4. O V Congresso . 298
5. As massas esto a indicar-nos o caminho .... 318
6. Um tempo de jornadas nacionais para a demisso de Salazar . 346
Captulo 6
Rumo ao Rumo Vitria ... 3821. A correco do desvio de direita .. 382
2. Uma extensa reviso da actividade partidria .. 408
3. A questo colonial 434
4. As grandes jornadas de 1962 457
Captulo 7
Rumo vitria .. 497
1. A ciso de Martins Rodrigues ........... 497
2. Um erro de orientao no 1 de Maio de 1964 ... 518
3. O Partido, a Frente e o General . 527
4. As eleies de 1965 ... 546
5. Rumo Vitria e ao VI Congresso 556
12
6. O VI Congresso . 572
PARTE III
O PCP: Dirigentes, Quadros e Militantes
Captulo 8
Os comunistas I A Direco e os quadros .. 581
1. uma formidvel inovao de engenharia social 581
2. O Comit Central ... 587
3. Os funcionrios e a clandestinidade .. 622
Captulo 9
O aparelho . 665
1. As Casas do Partido 665
2. A imprensa . 683
3. O exterior e o aparelho de fronteiras .. 710
4. As finanas . 723
Captulo 10
Os comunistas II Os militantes . 737
1. Os militantes 737
2. A organizao e os quadros 748
3. A priso: espectro e realidade 767
4. Para uma cultura militante . 780
5. Aproximao dinmica e geografia da implantao partidria 791
a) A situao em 1948 ................. 792
b) Recuos orgnicos no incio dos anos 50 . 798
c) Sinais de recuperao por meados da dcada . 801
d) Dos anos difceis de 1958-59 correco do desvio anarco-liberal 803
e) Represso, denncias e regresso organizativa .. 809
Concluses .. 812
Fontes e Bibliografia .. 827
13
Introduo
1. O comunismo como objecto de estudo
O comunismo tem sido foco de querelas maiores, fortemente polarizadas,
frequentemente irredutveis, que vm atravessando as sociedades contemporneas desde
os alvores do sculo passado, afectando o discurso de inteno historiogrfica por
inflamada paixo.
Na Histria do comunismo, acumulam-se viscos que as mars do tempo trazem
recorrentemente praia, em que se digladiam desde construes militantes,
autocentradas e autolegitimadoras, arrogando-se portadoras de um sentido exclusivo de
verdade, a construes preconceituosamente anticomunistas, igualmente cegas,
moldando o objecto a convices apriorsticas; cedendo, em ambos os casos, a
interpretaes redutoras, porventura teis de um ponto de vista instrumental, mas
vincadamente simplificadoras e empobrecedoras do ponto de vista cientfico.
Porm, muito por isso ou a propsito disso, nem sempre os meios acadmicos
tm chamado o objecto a si, invocando ou insinuando recorrentemente a proximidade
temporal e o sopro que um tema to marcado pelas paixes ateadas pelo tempo e pela
vida exerceriam sobre o dever de objectividade em Histria, fazendo estremecer
geraes de historiadores, mesmo que esses historiadores reajam assim, justamente em
consequncia e como reflexo pudico dessas mesmas paixes.
A entrada do comunismo no continente da Histria , por isso, recente e levanta
desafios to estimulantes quanto temerrios, pois nem sempre a produo
historiogrfica neste domnio tem conseguido deixar de reflectir o modo exacerbado
como a paixo do tempo e as tenses desencadeadas se projectam na sua escrita.
Entre a prudente reserva quanto ao tema, invocado por uns o calor escaldante
que dele continuaria a emanar, e as derivas de outros em que (i)legitimao poltica e
Histria se enovelam, h um caminho que no enjeita a ideia do historiador e do seu
ofcio como filhos do seu tempo e indelevelmente tocados pelas paixes que o cruzam,
mas suficientemente lcidos para que a sua construo cientfica se opere com o
distanciamento, o rigor e a humildade do que de precrio e relativo todo o
conhecimento, e o conhecimento histrico em particular, tem, num quadro
permanentemente dinamizado pelo debate entre interpretaes plurais.
14
A incorporao do comunismo como objecto cientfico no domnio da Histria
no escapa, nem poderia escapar polmica e ao arrolamento de escolas onde se
reflectem pontos de vista e correntes interpretativas.
O debate historiogrfico em democracia dificilmente o sem implicar acuidade,
tenso, disputa pela hegemonia interpretativa, porventura truculenta; mas exige a
seriedade e a serenidade que o contexto acadmico, como o contexto cultural mais
geral, lhe devem saudavelmente proporcionar.
H mais de 30 anos, Jean-Paul Sartre questionava-se sobre a possibilidade de
escrever sobre a Histria do Partido Comunista 1. Entendia que para escrev-la a partir
de fora, por mais vasto que fosse o acervo documental de base, faltava ao historiador a
experincia insubstituvel s proporcionada pela vivncia dos ambientes e dos
acontecimentos; embora escrev-la a partir de dentro arrastasse o constrangimento
resultante da fidelidade e da submisso ao partido e s flutuaes conjunturais das suas
polticas; assim como escrev-la num quadro de dissidncia, acrescentava, trazia
agarrado a si o fel do despeito e do ressentimento. Acompanhar este pessimismo s
poderia significar que o esforo dessa escrita ficava como que suspenso e
permanentemente adiado.
Hobsbawm, em contrapartida, interrogando-se sobre a possibilidade da escrita
da revoluo russa, responde obviamente, sim, mas acrescentando que: isso deixa
em aberto a questo mais ampla: podemos algum dia escrever a histria definitiva de
alguma coisa no apenas a histria conforme vista hoje, ou em 1945, - inclusiv,
claro, da Revoluo Russa? Neste caso em um sentido bvio a resposta no, a
despeito do facto de que h uma realidade histrica objectiva, que os historiadores
investigam, para estabelecer entre outras coisas, a diferena entre facto e fico 2.
justamente nesta assuno da relatividade do conhecimento histrico que a
Histria do Comunismo e dos Partidos Comunistas se tornou parte integrante da
Histria do sculo XX, inteligvel num horizonte contextualizante, no qual, todavia, no
se dissolve, constituindo terreno de anlise dotado de especificidades prprias, gerador
de impactos extraordinrios no devir do sculo XX, sculo breve e intenso, ocupando-
o e marcando-o de modo indelvel.
Ainda recorrendo a Eric Hobsbawm, a Revoluo de Outubro representou o
1 Cf. Jean-Paul Sartre, Prefcio a Antonin Liehm, Trois Generations, Paris, Gallimard, 19702 Eric Hobsbawm, Podemos escrever a histria da revoluo russa? [1996], in Da Histria, So Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 256
15
mais formidvel movimento revolucionrio da histria moderna () [cuja] expresso
global no tem paralelo desde as conquistas do Islo no seu primeiro sculo 3.
Na realidade, como j tivemos oportunidade de referir, a Revoluo de Outubro
de 1917 ao constituir um projecto revolucionrio triunfante, foi acto fundador, que
rapidamente ambicionou adquirir carcter universal, por via de um fortssimo poder
mobilizador, dotado de base social prpria, alicerado em fundamentos doutrinrios e
orgnicos sistematizados e codificados no perodo entre guerras e incorporando, desde
logo, um veio estratgico nuclear baseado justamente na defesa incondicional da Rssia
sovitica e assim se projectando ao longo de todo o sculo.
O seu impacto e as suas repercusses derramando-se sobre toda a nossa
contemporaneidade foram, por isso mesmo, imensos e duradouros, do ponto de vista da
utopia e das esperanas colectivas que desfraldou, como das desiluses, dos dramas e
dos impasses que o seu desenvolvimento e a sua aplicao concreta geraram 4.
Todo um forte patrimnio gentico permitiu em larga medida configurar a
identidade de cada partido comunista, cuja histria est, deste modo, e naturalmente,
ligada de forma muito estreita ao Partido Comunista da Unio Sovitica, URSS e ao
movimento comunista internacional.
Todavia, reduzir exclusivamente a aco de cada partido comunista aplicao
cega e seguidista de um conjunto de orientaes e procedimentos meramente decalcados
dos interesses, da vontade e da estratgia sovitica, significaria anular o efeito das
especificidades nacionais no processo de construo da identidade de cada um desses
partidos, desprezando ou subestimando o papel das relaes tecidas por cada segmento
comunista com a sociedade em que se insere e em relao qual necessariamente
interage.
Por outro lado, a experincia histrica do comunismo tanto olhada globalmente
como no universo de referncia de cada partido comunista s apressada e
superficialmente pode ser encarada como um movimento nico, isento de contradies,
divergncias e dissidncias, mesmo que o veio triunfante se afirmasse, por vezes com
enorme violncia e de modo demolidor sobre diferenas de concepo ou entendimento
ou em relao a quaisquer tenses centrfugas.
precisamente considerando esta realidade que so incontornveis os
contributos de incidncia historizante de destacados protagonistas, vencedores ou
3 Eric Hobsbawm. A Era dos Extremos, Lisboa, Editorial Presena, 1996, p. 64 4 Cf. Joo Madeira, O PCP e a validade universal da experincia sovitica, in Histria, Nova srie, 2, Maio de 1998, p. 17
16
vencidos, no quadro do movimento comunista na alvorada do sculo XX, a comear
pelo prprio Lenine, mas tambm Bukharine, Trotski, Lukcs, Gramsci ou Rosa
Luxemburgo. Os seus contributos, necessariamente plurais, mesmo que parcelares,
frequentemente densos, pelo que de estimulante frequentemente carreiam no merece
corresponder to s a uma corrente difcil de catalogar 5, na expresso de Bruno
Groppo e Bernard Pudal, como que esmagada entre legitimao, demonizao e
cientificidade.
As suas obras, como alis a de outros excludos ou auto-excludos do sistema,
designadamente no segundo ps-guerra, mesmo que num percurso de progressivo
afastamento do marxismo, como Fernando Claudn ou Franois Fetj, constituem obras
clssicas6 de interpretao global e, simultaneamente, fontes para o estudo da histria do
comunismo ao nvel da histria poltica e das ideias polticas, bem como da evoluo do
pensamento de raiz marxista.
Por outro lado, a renovao do pensamento marxista ocorrida nos finais dos anos
60 e na dcada seguinte contribuiu com um expressivo conjunto de estudos e obras de
carcter analtico sobre o comunismo, que a voragem do tempo e o processo de
desagregao do bloco designado de socialista vieram desvalorizar e ofuscar num
contexto ideolgico dominante de inculcao do pensamento nico e de fantsticas
teorias sobre o fim da Histria.
No obstante, foram-se desenhando correntes historiogrficas dinmicas em
torno do comunismo, como em Frana e a partir da Universidade, com a tese de Annie
Kriegel, de 1964, sobre as origens do comunismo em Frana 7 e em particular desde o
seu ensaio de inteno etnogrfica sobre os comunistas franceses 8, que permitiria
configurar a corrente que em 1982 lana a revista Communisme.
A revista, de vincado enquadramento acadmico reunia sob a direco de
Kriegel um grupo alargado de jovens investigadores que nutriam em comum a
disposio de construir uma histria cientfica do comunismo, recusando uma
historiografia de partido e os objectivos subjacentes.
Na sua fase inicial, destacava-se o interesse por aproximaes de incidncia
sociolgica, designadamente na anlise das organizaes partidrias de mbito
5 Bruni Groppo e Bernard Pudal, Une realit multiple et controverse,in Le sicle des communismes (Dir. de Michel Dreyfus, Bruno Groppo, Cludio Ingerflom, Roland Lew, Claude Pennetier, Bernard Pudal e Serge Wolikow), Paris, ditions de LAtelier, 2000, p. 206 Cf. Franois Fejt, As Democracias Populares, 2 vols, Mem Martins, Publicaes Europa-Amrica, 1975 (1969); Fernando Claudn, A Crise do Movimento Comunista, 2 vols, S. Paulo, Global Editora, 1986 (1970)7 Annie Kriegel, Aux origines du communisme franais (1914-1920), 2 vols., Paris, La Haye, Mouton, 19648 Annie Kriegel, Les Communistes franais: essai d'ethnographie politique, Paris , Seuil, 1968.
17
territorial, das estruturas de direco intermdia, da expresso eleitoral ou da histria
poltica de perodos obscurecidos pelas vises mais hagiogrficas e legitimadoras
produzidas pelos partidos comunistas.
Ao longo de toda essa dcada, os investigadores que se reuniam volta de
Communisme evoluiriam por percursos e reas de interesse diferenciadas, abraando
campos de anlise relacionados com a composio estrutural do discurso comunista, as
representaes prevalecentes na construo das memrias partidrias ou sobre as
diferentes genealogias que desembocavam no Partido, fossem de natureza
prosopogrfica ou da arqueologia das ideias, das tendncias e dos veios doutrinrios.
De algum modo, esta abertura nos estudos sobre o comunismo verifica-se
tambm nos EUA, como resposta ao relativo abrandamento que a Guerra Fria
experimentava num quadro de abertura, e tambm de desagregao, da prpria Unio
Sovitica, trazendo aos estudos nestas matrias temticas sociais e polticas que
estimulariam interpretaes diferenciadas e em contradio com interpretaes at a
dominantes na Academia americana, poltica e ideologicamente enquadradas num
contexto acirrado de Guerra Fria.
Estes estudos, designadamente a propsito da apreciao histrica dos legados
de Lenine e de Estaline, da anlise das questes relacionadas com a colectivizao da
terra, da eficcia do Partido e do Estado na aplicao das suas polticas ou mesmo na
anlise da expresso e da funo da violncia do regime tornavam-se um reverso da
corrente dominante e, como tal, tidos, do ponto de vista donde emergiam por
diferenciao, como revisionistas
Mas, curiosamente, a imploso da Unio Sovitica em vez de proporcionar o
adensamento e o aprofundamento analtico e interpretativo fez antes reemergir novas
formas de instrumentalizao, agora predominantemente de sentido contrrio.
A abertura dos arquivos soviticos disponibilizando massas documentais
imensas, suscitaram um intenso alvoroo, partilhado por historiadores e politlogos,
mas tambm por jornalistas, com casos em que, cedendo num terreno resvaladio,
prevaleceu a avidez por grandes e retumbantes revelaes sadas da poeira dos arquivos,
principalmente dos arquivos soviticos, toldando resultados, que nesse fulgor foram
diluindo ou obscurecendo o carcter cientfico, alimentando a especulao ou guiando-
se por interpretaes meramente conspirativas e fulanizadas dos acontecimentos numa
espcie de diabolizao do comunismo assente na manipulao de fundos preconceitos
de natureza poltica e ideolgica.
18
No fundo, reactualizava, em bases novas, pois sobre a imploso do bloco dito
socialista, de uma corrente antiga, estruturada principalmente no contexto da guerra fria,
onde o paradigma explicativo desenhado a partir dos Estados Unidos da Amrica
assemelhava fascismo e comunismo como faces iguais do totalitarismo. Eram claros os
seus objectivos polticos e ideolgicos, beneficiando da j referida cobertura acadmica,
como era o caso dos Estudos Russos na Hoover Institution.
Esta reorientao aguerrida reflectiu-se no campo acadmico. Logo em 1993,
ainda em vida de Annie Kriegel, um importante conjunto de colaboradores da
Communisme afastar-se-ia em divergncia clara com a direco de Stphane Courtois, e
dos seus mais prximos colaboradores, que promovero a publicao do Livro Negro do
Comunismo 9, onde se sustentam conceitos apriorizados, assentes numa
sobrevalorizao absoluta da violncia na caracterizao do comunismo e sua
decorrente criminalizao, bem como na identificao amalgamada e
descontextualizada social, poltica e ideologicamente entre comunismo e fascismo.
Segundo Courtois, no estudo introdutrio obra, O nosso propsito no fazer
aqui uma qualquer espcie de macabra aritmtica comparativa, nem uma
contabilidade em partidas dobradas do horror, ou uma hierarquia da crueldade. Os
factos so teimosos, no entanto, e mostram que os regimes comunistas cometeram
crimes que afectaram cerca de cem milhes de pessoas, contra os cerca de 25 milhes
de pessoas do nazismo. Esta simples verificao deve pelo menos incitar-nos a uma
reflexo comparativa sobre a similitude entre o regime que foi considerado a partir de
1945 como o mais criminoso do sculo e um sistema comunista que conservou, at
1991, toda a sua legitimidade internacional, que ainda hoje est no poder em vrios
pases e que continua a ter adeptos em todo o mundo10.
Naquele contexto histrico retomavam-se afinal, revigoradas, as teses que
haviam controvertido a historiografia alem a partir da tentativa de relativizao do
peso, ordem de grandeza e do prprio significado dos crimes do nazismo empreendida
por Ernst Nolte, procurando explic-los como reaco mecnica ao terror bolchevique11.
A diferena, qualitativa, reconheamo-lo, que essa retoma se procurava
basear na enorme massa documental que se abria a partir principalmente dos arquivos
soviticos, que levou, como j referimos, a que se falasse de revoluo documental. E
9 Stphane Courtois (Direco de), Livro Negro do Comunismo. Crimes, terror e represso, Lisboa, Quetzal, 199810 Stphane Courtois, Os crimes do comunismo, ob. cit., p. 3111 Cf. Devant lHistoire. Les documents de la controverse sur la singularit de lxtermination des Juifs par le regime nazi, Paris, ditions du Cerf, 1988 e Ernst Nolte, La guerre civil europenne. 1917-1945, Paris, ditions des Syrtes, 2000
19
em boa medida era-o, atendendo s caractersticas do prprio centro comunista
internacional que alimentava uma espcie do culto do documento do relatrio, do
informe, do telegrama, da carta, do processo individual.
Porm, o enorme efeito exercido sobre este tipo de historiografia diminuiu a
prpria crtica da fonte, como se a verdade repousasse exclusivamentenos documentos
que finalmente se abriam ao historiador, permitindo passar, segundo esse ponto de vista,
de uma espcie de pr-histria do comunismo verdadeira e irrefutvel histria.
Deste modo, para muitos dos autores do Livro Negro...., to poderoso fluxo
documental vinha sobretudo confirmar um conjunto de juzos e asseres previamente
estabelecidos, nem que para isso fosse necessrio ajustar factos e acontecimentos, numa
espcie de positivismo recauchutado em que, como j foi sublinhado, a partir de uma
tomada de posio ideolgica que permite contar de antemo com a resposta dada, se
torne desnecessrio que o investigador coloque verdadeiras questes 12.
certo que no Livro Negro..., o ensaio de Stphane Courtois suscitaria desde
logo contestao quanto ordem de grandeza dos crimes do comunismo por alguns
dos prprios co-autores da obra, designadamente Nicolas Werth, para quem, alm disso,
a comparao entre nazismo e comunismo era desadequada, vincando as diferenas
qualitativas entre ambos os regimes.
Werth, ainda que concordando com uma profunda similitude, uma espcie de
ncleo duro dos totalitarismos comum ao nazismo e ao comunismo, distancia-se no
entanto de Courtois, fundamentalmente quanto ao carcter desta comparao, o que tem
implicaes, evidentemente, ao nvel quer do plano de incidncia analtica em que se
coloca quer quanto s prprias ferramentas metodolgicas utilizadas. Para Nicolas
Werth h uma tenso extrema no comunismo, e constante entre os vencidos do regime
e os seus camaradas ortodoxos. Nunca se viram arrependidos do nazismo, antigos
militantes nazis que criticassem ou tentassem reformar o sistema a partir de dentro. O
nazismo, pelo contrrio, a adequao total da doutrina e da realidade. O comunismo
o divrcio entre a doutrina e a realidade 13
Quanto a este aspecto, os argumentos de Werth no deixam de ser interessantes,
porque descolando, demarcando-se, mesmo que parcialmente, da rigidez interpretativa
dominante no Livro Negro, reconhecendo implicitamente a importncia de uma
12 Elvira Concheiro Brquez, Los comunistas del siglo XX como movimiento revolucionrio, fuerza de estado y corriente intelectual, in Blazquez Graf, Norma, et.al., Jornadas Anuales de Investigacin 2004, Mexico CEIICH-UNAM, 2005, p. 175
13 Nicolas Werth, Communisme: Lheure du bilan, in LHistoire, 217, Janeiro de 1988, p. 8
20
anlise contextualizada do comunismo, vem estabelecer, por outro lado, alguns laos
com o grupo de historiadores que, em assumida oposio e divergncia, vir a publicar
a obra colectiva Le Sicle des Communismes 14, coordenado por uma vasta equipa de
historiadores franceses, entre os quais Claude Pennetier, Bernard Pudal ou Serge
Wolikow.
A respectiva introduo, colectiva, comea justamente pela recusa de uma viso
unilateral da histria do comunismo, pois Se h pressuposto que esta obra gostaria de
revogar sem margem para dvidas apesar de, como qualquer preconceito, ela conter
a sua quota-parte de realidade o da unicidade daquilo a que se convencionou
chamar o comunismo no sculo XX. Do passado de uma iluso aos crimes do
comunismo, o principal erro consiste na utilizao acrtica do artigo singular e na
vontade de reduzir, por consequncia, o comunismo a uma propriedade fundamental
(o crime de Estado, a utopia, uma religio secular, etc) 15.
O que esta corrente nos tem trazido so olhares diferenciados sobre o
Comunismo no contexto de mltiplas e distintas conjunturas, apontando para registos
mais complexos, convocando nveis de interaco e procurando especificidades e
identidades que permitam um quadro policromo, ainda que desenhado a partir de uma
mesma matriz, de um mesmo tronco que se foi ramificando e adquirindo feies
distintas. Da o comunismo olhado no plural.
H como que uma abordagem social do fenmeno, em sentido lato, traduzindo-
se na preocupao de fazer interagir os diferentes nveis de integrao histrica,
designadamente o poltico, o social e o cultural.
evidente que radica aqui uma outra recusa, que a da supremacia do poltico
na anlise e na explicao histricas do comunismo, trao prevalecente na historiografia
de esquerda at aos anos setenta do sculo passado, incluindo a que se colocava
criticamente face s experincias histricas analisadas e se demarcava tanto dos pontos
de vista apologticos como dos pontos de vista preconceituosamente anticomunistas.
Mas era, sem dvida, o importante contributo trazido por esta abordagem, pois
vinha invocar a necessidade de distanciamento e objectividade, afastando-se do
maniquesmo analtico e interpretativo, ainda que tendesse, como tambm j
assinalmos, a desvalorizar fora do quadro de anlise justamente o contributo de
militantes polticos, como Gramsci ou Trotsky, na leitura crtica, eminentemente
14 Michel Dreyfus, Bruno Groppo, Cludio Ingerflom, Roland Lew, Claude Pennetier, Bernard Pudal e Serge Wolikow, Le Sicle des Communismes, Paris, ditions de LAtelier, 200015 Ob. Cit. [Edio Portuguesa]., Lisboa, Editorial Notcias, 2004, p. 9
21
poltica, do prprio processo tal como estava a ser vivido e como era, desse ponto de
vista, olhado por esses e outros autores, eles prprios simultaneamente actores e
analistas polticos e histricos.
Mas, no fundo, e de novo, o que parece acantonar-se na raiz desta necessidade
de distanciamento e de objectividade, que o enquadramento acadmico sancionaria, o
apelo a uma espcie de vacina contra os efeitos nefastos das paixes do tempo sobre a
investigao histrica, como que querendo colocar-se acima dessas paixes e no as
assumindo no quadro do que de relativo e de plural todo o conhecimento histrico
transporta.
Mesmo sem sustentar o primado do poltico, insistimos em sublinhar a
importncia desta instncia numa equilibrada apreciao do comunismo, que foi sempre
fundamental na configurao das diferentes experincias histricas, exercendo um efeito
poderoso sobre as prprias dimenses sociais, culturais e econmicas ainda que em
funo delas tenha, evidentemente, logrado adaptaes e especificidades que no podem
ser subestimadas.
Porm, a crtica identificao simplificada e descontextualizada entre fascismo
e comunismo no quadro dos totalitarismos prevalece como contribuio maior desta
corrente ao debate travado na historiografia e no campo das cincias sociais em torno
destas matrias, implicando todo um esforado conjunto de desenvolvimentos ao nvel
da investigao, que permitiu que o conhecimento avanasse em domnios como a
sociologia poltica e eleitoral, os estudos em torno da memria ou das representaes
polticas no quadro dos comunismos.
Por esta via, olha-se a aco dos comunistas na justa proporo em que nem
reflectem exclusivamente as determinaes do centro do sistema internacional nem
constituem por si s resposta nacional s realidades sobre as quais actuam. Trata-se, por
um lado, de perceber as dinmicas e tenses internas, socialmente tecidas e, por outro,
os laos estabelecidos com o centro do sistema de que no deixam nunca de ser parte
integrante, por mais perifrica que seja a sua posio nesse contexto.
A tenso que estas duas dimenses estebelecem entre si, constitui um veio
fecundo de anlise, que permite calibrar o modo como o comunismo se inscreveu nos
diferentes espaos nacionais no curso do sculo que passou.
Essa inscrio no dispensa, por outro lado, a distino entre o comunismo
como utopia social e como prtica concreta de poder de estado. Entroncando na grande
tradio revolucionria contempornea que protagonizou o combate contra as
22
desigualdades sociais e quis como que completar os desgnios incumpridos da
Revoluo francesa, o comunismo tornou-se ramo vioso da rvore frondosa dos
socialismos, enraizada no combate ao capitalismo. Mas, ao desembocar, aps a
Revoluo de Outubro e em particular aps a Segunda Guerra Mundial, em rudes e
perversos sistemas de poder, se afastou, por vezes de modo dramtico e repulsivo, da
generosidade da utopia comunista, sonhada e perseguida por geraes de trabalhadores,
de militantes e de revolucionrios.
Nesta moldura, a historiografia nacional sobre os Partidos Comunistas
reconhece o cruzamento destas duas dimenses, procurando reflectir quer os ritmos e
pulses que decorrem das especificidades dos processos histricos de cada pas quer os
laos de subordinao que os ligam ao centro do sistema, aspecto que decorrendo
directamente do princpio da defesa da Unio Sovitica como ptria do socialismo
imps uma lgica centrpta de funcionamento, com todas as implicaes e tenses da
resultantes.
A sobrevalorizao de qualquer destas dimenses restringe a amplitude de
anlise e diminui o alcance interpretativo, porque torna-se to insuficiente estudar um
partido comunista em si sem atender tanto sua dinmica e s suas tenses internas,
como aos laos sociais que estabelece e, evidentemente, s relaes internacionais de
que matricialmente enformado.
Em Portugal, os estudos sobre o comunismo mantm, no entanto, um ritmo de
desenvolvimento lento e modesto, reflectindo o atraso do mundo acadmico em relao
matria.
Na verdade, impossvel estabelecer com outros pases, designadamente
europeus, como a Frana ou a Itlia, qualquer esboo comparativo quanto ao
desenvolvimento da investigao sobre o comunismo antes do mais por uma questo de
escala que resulta do enorme atraso, de dcadas, imposto pela ditadura, que cerceou e
impediu que se desenvolvessem estudos no s sobre o comunismo, como sobre a
prpria Histria Contempornea em geral, como se sabe.
Nem na sua fase final, com o marcelismo, o regime permitiu que se
desenvolvessem estudos sobre o PCP, como no houve sequer estudos significativos
numa perspectiva anticomunista.
Mas creio ser justo comear por referir o projecto de Manuel Villaverde Cabral,
a partir do exlio francs, na esteira das preocupaes suscitadas por essa original
experincia que foi a publicao dos Cadernos de Circunstncia entre 1967 e 1970. A
23
necessidade de conhecer a realidade portuguesa, de modo objectivo, concreto estendeu-
se ao projecto, a que se juntou Fernando Medeiros, de ir procura das origens da classe
operria e das suas primeiras formaes orgnicas, que se haviam como que sumido sob
a hegemonia cultural duradoura do PCP, que imps como verso dominante a sua viso
e a sua reprersentao da histria do movimento operrio, tratando de diminuir e
desvalorizar os mltiplos veios que inclusivamente estiveram historicamente na sua
prpria origem.
O operariado nas vsperas da Repblica 16, Portugal na Alvorada do sculo
XX17, de Manuel Villaverde Cabral, como A sociedade e a ecomia portuguesas nas
origens do salazarismo 18, de Fernando Medeiros, publicados mais tarde, resultado
desse esforo, constituem porventura a mais fecunda base em que assentam os nossos
estudos operrios, ainda que expresso de uma preocupao e de inteno vincadamente
militantes.
Foi apenas atravs de brechas estreitas, em corajosas edies de autor
enquadradas por novssimas editoras, como a Afrontamento ou a Assrio & Alvim que
se foram publicando antologias e ensaios de iniciativa voluntarista de jovens activistas
da esquerda radical. Era uma gerao de jovens marxistas ou de influncia marxista,
porm em ruptura ou margem do PCP, como Csar Oliveira ou Jos Pacheco
Pereira, que entram pela histria do movimento operrio, que a procuram escrever,
procurando resgatar dos velhos jornais, de outra documentao conservada no
estrangeiro, o no dito pela verso legitimada, oficiosa veiculada pelo prprio
partido19.
Questes do Movimento Operrio e a Revoluo Russa de 1917 20, de Pacheco
Pereira, editada em 1971 constitui, por isso, como que um marco novo nesta
historiografia ainda to balbuciante e incipiente.
A tradio de uma histria militante, produzida pelo prprio PCP era igualmente
inexistente, mesmo para o perodo fundacional, que no deixara qualquer tipo de
continuadores depois de Bento Gonalves21.A histria militante, instrumental,
continuar a ter, mesmo depois do 25 de Abril e at hoje, uma expresso muito dbil e
fragmentada, dada a determinao do prprio PCP em no escrever a sua prpria 16 Manuel Villaverde Cabral, O operariado nas vsperas da repblica (1909-1910), Lisboa, Presena/GIS, 197717 Manuel Villaverde Cabral, Portugal na alvorada do Swculo XX, Lisboa, A Regra do Jogo, 197918 Fernando Medeiros, A sociedade e a economia portuguesas nas origens do salazarismo, Lisboa, A Regra do Jogo, 197819 Joo Madeira, Os novos remexedores da Histria, in Batalha pelo Contedo, Vila Franca de Xira, Museu do Neo-Realismo, 2007, p. 33020 Jos Pacheco Pereira, Questes do Movimento Operrio e a Revoluo Russa de 1917, Porto, ed. Autor, 197121 Bento Gonalves, Palavras Necessrias, Porto, Inova, 1974
24
histria oficial.
Ser precisamente em ruptura com o PCP que Francisco Martins Rodrigues
publica desde a clandestinidade textos de inteno ou cariz histrico22, onde procura
legitimar a ruptura poltica que protagonizava; aspecto que aprofunda j na priso, em
finais dos anos 60, atravs de um ensaio breve sobre a Histria do movimento operrio 23, abrindo, no fundo, caminho aos escritos que vimos referindo desses anos e dos
primeiros de 70, a que os seus autores procuravam, todavia, conferir suporte documental
e maior densidade analtica.
Esta tendncia prossegue pelos anos de 1974-76, com a publicao de um
conjunto de textos volta da histria do PCP, incidindo em particular sobre os
primeiros anos de vida do partido quer sobre ao anos 30, como o de Csar Oliveira24,
Joo Quintela 25 ou L. H. Afonso Manta, pseudnimo de Nuno Rebocho 26.
Ainda no final dos anos 70, Ramiro da Costa, pseudnimo de Jos Alexandre
Magro, empreende uma primeira tentativa de sntese sobre a histria do PCP 27,
enquadrada, certo, numa obra mais geral que pretendia abarcar todo o movimento
operrio, mas que no conseguir escapar viso militante genealogicamente filiada na
tradio interpretativa aberta por Francisco Martins Rodrigues.
Mas ser efectivamente a revista Estudos sobre o Comunismo, a constituir, como
refere Pacheco Pereira, a primeira revista dedicada ao estudo cientfico e histrico do
comunismo portugus 28. Na revista, com sete nmeros publicados entre 1983 e 1986,
renem-se historiadores vindos da esquerda radical, como Pacheco Pereira, Ramiro da
Costa, Antnio Moreira ou Fernando Rosas e outros como Manuel Sertrio, um
trotskista no alinhado de longo percurso poltico durante a ditadura, que o levara da
antiga Juventude Socialista do segundo ps-guerra FPLN de Argel.
No editorial do seu nmero inicial, esto efectivamente plasmados os
respectivos objectivos: A publicao de revistas de estudos sobre o comunismo, em
particular a recente revista francesa Communisme , constituiu para ns um incentivo
para lanarmos, com as adaptaes e, principalmente, as limitaes correspondentes 22 Cf. Por exemplo, A unidade em 1944/49. Uma experincia acutal, in Revoluo Popular, 5, Julho de 1965, Edio Completa 1964-65 (fac-simile), Lisboa, Voz do povo, s.d., pp 122-13323 Francisco Martins Rodrigues, Elementos para a Histria do Movimento Operrio Portugus, s.l., s.e., s.d.24 Csar Oliveira, O Primeiro Congresso do Partido Comunista Portugus, Lisboa, Seara Nova, 197525 Joo G. P. Quintela, Para a Histria do Movimento Comunista em Portugal: 1. A construo do Partido (1 Perodo 1919-1929), Porto, Afrontamento, 197626 L. H. Afonso Manta, O 18 de Janeiro de 1934 e A Frente Popular Antifascista em Portugal, Lisboa, Assrio & Alvim, 1975 e 1976, respectivamente27 Ramiro da Costa, Elementos para a Histria do Movimento Operrio em Portugal 1820-1975, 2 volume 1930-1975, Lisboa, Assrio & Alvim, 197928 Jos Pacheco Pereira, Enxofre, in http://alvarocunhalbio.blogspot.com/2006/01/jos-pacheco-pereira-enxofre.html
25
http://alvarocunhalbio.blogspot.com/2006/01/jos-pacheco-pereira-enxofre.html
s nossas possibilidades, um boletim destinado a estudar a experincia do comunismo
portugus numa perspectiva ampla, interdisciplinar e comparativa. A anlise histrica
e sociolgica, o estudo das mentalidades e do comportamento eleitoral, a cincia
poltica e anlise semntica e lexical do discurso comunista, todas as aproximaes
so bem-vindas 29.
Deste ponto de vista e escala do pas, Estudos sobre o Comunismo, vinha
impor-se como marco fundacional. O seu prprio corpo redactorial se em larga medida
mantinha essa origem militante radical, abria-se metodologicamente, bebia em boa
medida na influncia da historiografia francesa sobre o comunismo, sem deixar de
reflectir necessariamente uma pluralidade de sensibilidades que o tempo se encarregaria
de diferenciar e clarificar.
Ficava, todavia, de fora do corpo da revista, Joo Arsnio Nunes, cujo percurso
universitrio lhe permitiria, sem enjeitar um quadro de proximidade militante com o
Partido Comunista, contribuir nesta rea com um importante conjunto de ensaios pelos
anos oitenta e noventa, marcados pela seriedade, pelo rigor e pela consistncia analtica 30.
Na primeira das obras de conjunto sobre a Oposio ao Estado Novo em
Portugal 31, Dawn L. Raby dedica uma parte significativa ao PCP, que vinha alis
desenvolvendo em ensaios anteriores desde meados dos anos 80 32. A obra de Raby,
com um distanciamento mitigado em relao linha interpretativa introduzida por
Francisco Martins Rodrigues, traz efectivamente de novo o recurso aos processos
judiciais, permitindo-lhe carrear, ainda que limitadamente, um conjunto de
documentao apensa, efectivamente nova, que havia sido apreendida e tornada matria
de prova.
Com enquadramento acadmico, Carlos Cunha, nos Estados Unidos, produz
uma sntese da histria do PCP 33, ainda que muito breve, superficial e assente apenas
em fontes secundrias. Apesar da abertura do arquivo da PIDE e dos arquivos 29 Editorial, in Estudos sobre o Comunismo, 0, Julho de 1983, p. 130 Cf. por exemplo Joo Arsnio Nunes, Sobre alguns aspectos da evoluo poltica do Partido Comunista Portugus aps a reorganizao de 1929 (1931-33), in Anlise Social, 67-68, 1981, pp 715-731; La Formation de la Stratgie Antifasciste du Parti Communiste Portugais, 1926-1935, in Mikhail Narinsky e Jrgen Rojahn (Edited by) Centre na Periphery. The History of the Comintern in the Light of New Documents, Amsterdam, International Institute of Social History, 1996, pp 218-2C6 ou O Camarada Ren e a Juventude Comunista no princpio dos anos 30, in Antnio Dias Farinha, Jos Nunes Carreira e Vtor Serro (Coordenao de), Uma Vida em Histria. Estudos em Homenagem a Antnio Borges Coelho, Lisboa, Centro de Histria da Universidade de Lisboa/Editorial Caminho, 200131 David. L. Raby, A Resistncia Anti-fascista em Portugal 1941-1974, Salamandra, Lisboa, 199032 Cf, designadamente, David L. Raby, O problema da Unidade Anti-Fascista: o PCP e a candidatura do General Humberto Delgado em 1958, in Anlise Social, 72-74, 1982, pp 869-883 ou A crise ideolgica da Oposio: o PCP de 1949 a 1957, in O Estado Novo das Origens ao fim da Autarcia, II, Lisboa, Fragmentos, 1987, pp 47-5833 Carlos Cunha, The Portuguese Communist Partys. Stategy for Power 1921-1986, New York/London, Garland Publishing, Inc., 1992
26
soviticos, em trabalhos mais recentes, Cunha mesmo quando orientado para as ligaes
do PCP ao movimento comunista internacional, tem, tanto quanto nos foi possvel
apurar, reflectido pouco a reactualizao dos seus trabalhos luz desses importantes
arquivos 34.
Em trabalhos e intervenes parcelares, designadamente em obras colectivas,
assinalam-se alguns captulos e entradas que constituem interessantes ensaios de sntese,
embora condicionados pela especificidade dos contextos editoriais em que se
integravam. o caso do volume VII da Histria de Portugal 35, do Dicionrio de
Histria do Estado Novo 36 ou dos volumes 7, 8 e 9 do Dicionrio de Histria de
Portugal 37.
Todavia, os anos 90 parecem ter de algum modo alterando a situao anterior,
com a publicao de um conjunto de obras de referncia no estudo sobre o comunismo
em Portugal, designadamente em torno da Histria do PCP. So fundamentalmente,
trabalhos de enquadramento acadmico e de incidncia sectorial, quer reportando-se
clandestinidade 38, s relaes entre os intelectuais e o Partido Comunista 39, ao PCP e
questo colonial 40, ao PCP no quadro do exlio poltico em Frana e Espanha no
perodo entre-guerras 41, a aspectos da histria do PCP na perspectiva da represso
exercida pela PIDE/DGS 42 ou, mais recentemente questo do nacionalismo no Partido
Comunista 43.
Tambm no domnio da Cincia Poltica e da Antropologia se realizaram
incurses nestas matrias, como a colectnea de ensaios de Carlos Gaspar e Vasco Rato 44 ou as teses de Paula Godinho 45 e Ins Fonseca 46.
34 Carlos Cunha, Nacionalist or Internationalist? The Portuguese Communist Partys and the Communist International, in Tim Rees and Andrew Thorpe (edited by), International Communism and the Communist International 1919-43, Manchester/New Yorrk, Manchester University Press, 1998, pp 168-186 e"Cat and Mouse: Conducting Research in a Russian Archive," in Portuguese Studies Review, V (2), Inverno - Primavera 1996-1997, pp 37-5135 Fernando Rosas, Histria de Portugal (Direco de Jos Mattoso), Stimo Volume, s.l., Crculo de Leitores, 199436 Fernando Rosas e J.M. Brando de Brito (Direco de), Dicionrio de Histria do Estado Novo, 2 volumes, s.l., Crculo de Leitores 199637 Antnio Barreto e Maria Filomena Mnica (Coordenadores), Dicionrio de Histria de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999 e 200038 Cf. Jos Pacheco Pereira, A sombra. Estudo sobre a clandestinidade comunista, Lisboa, Gradiva, 199339 Cf. Joo Madeira, Os Engenheiros de Almas. Os Intelectuais e o Partido Comunista, Lisboa, Estampa, 199640 Cf. Judith Manya, Le Parti Communiste Portugais et la question coloniale (1921-1974), Thse de doctorat en Science politique, Bordus, CEAN, 2004 41 Cf Ana Cristina Clmaco Pereira, Lxil portugais en France et en Espagne. 1927-1940, Thse pour le doctorat de lUniversit de Paris VII (Denis Diderot), mention Sciences Occidentales, Paris, GHSS, 198842 Cf. Irene Flunser Pimentel, A histria da PIDE, Lisboa, Crculo de Leitores/Temas e Debates, 200743 Cf. Jos Neves, Comunismo e nacionalismo em Portugal. Poltica, Cultura e Histria no sculo XX, Lisboa, Tinta da China, 200844 Cf. Carlos Gaspar e Vasco Rato, Rumo Memria. Crniucas da crise comunista, Lisboa, Quetzal, 199245 Cf. Paula Godinho, Memrias da Resistncia Rural no Sul, Oeiras, Celta, 200146 Cf. Ins Fonseca, Trabalho, Identidade e Memrias em Aljustrel. Levvamos a foice logo pra mina, s.l., 100 Luz, 2007
27
A essas obras juntam-se ensaios e comunicaes a colquios 47 , a obras
colectivas48 ou a publicao em revistas, inclusivamente de divulgao como a Histria.
Mas, sem obras de sntese, sem uma histria do PCP, nos ltimos quinze anos, a
publicao dos trs primeiros volumes da biografia poltica de lvaro Cunhal, de Jos
Pacheco Pereira 49 constituiu o que de mais se aproximou dessa perspectiva.
Oscilando entre o enunciado carcter biogrfico e uma histria do PCP, a
procura de equilbrio tendo-se revelado instvel at ao momento, vem no entanto
beneficiando este ltimo aspecto, ao reequacionar e reescrever sobre uma intrincada
trama de protagonistas, equilbrios internos, tenses e contradies fortes, precisando
factos, desmontando verses dadas como adquiridas, ensaiando a delimitao onde
questes polticas e questinculas pessoais se misturam, onde presses externas e
dinmicas internas conflituam.
Esse pendor menos biogrfico vem-se adensando medida que o seu percurso
como dirigente clandestino do PCP se acentua, at pela prpria carncia de elementos
documentais, para mais dessa estrita natureza.
H, no entanto, apesar do alinhamento assumido de Pacheco Pereira em relao
corrente do Livro Negro sobre o Comunismo, bem expressa alis no prefcio edio
portuguesa 50, um distanciamento face a uma construo marcadamente apriorstica, sem
que da resulte inocuidade ou esterilizao de pontos de vista, ressaltando
inclusivamente uma certa empatia com o esforo humano da gerao de militantes,
quadros e dirigentes e em particular do prprio biografado.
A grande questo que actualmente se coloca aos estudos sobre o comunismo
assenta fundamentalmente na possibilidade e na capacidade de diversificar planos de
abordagem, contextualizando e articulando as dimenses que o configuram e podem
explicar. Tem sido justamente na seriedade, no rigor da utensilagem metodolgica, e no
esforo de distanciamento que se tem colocado o eixo da questo, sem intimidar nem
constranger a liberdade do historiador tomar para si o conjunto de preceitos, o modelo
ou a escola histrica que, do seu ponto de vista, melhor correspondem e se adequam ao
lugar que socialmente tomou como seu.
47 Cf. Colquio Mundo Rural, Transformaes e resistncias no sculo XX, CEEP e IHC, Lisboa, 2000; Colquio Estaline em Portugal, CH da FLL, Lisboa, 2003; Congresso Internacional O Artista como Intelectual. No Centenrio de Fernando Lopes Graa, CEIS20, Coimbra, 2006 ou Colquio Oposies ao Estado Novo. Histria e Memrias, CEIS20, Coimbra, 200848 Cf. Fernado Rosas e Pedro Aires de Oliveira, (Coordenao de ), A transio falhada. O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974), Lisboa, Editoria Notcias, 2004; 49 Jos Pacheco Pereira, lvaro Cunhal. Uma biografia poltica, 1. 1913-1941. Daniel, o jovem revolucionrio; 2. 1941-1949. Duarte, o dirigente clandestino; 3. 1949-1960. O Prisioneiro; Lisboa, Temas e Debates, 1999, 2001 e 2005, respectivamente50 Cf. Jos Pacheco Pereira, Chamar ao negro negro, ao branco branco, in Stphane Courtois e tal., O Livro Negro, pp 9-13
28
Esta heterogeneidade, mesmo antagonismo de pontos de vista, tem no campo da
histria, enquanto espao de conhecimento numa sociedade aberta, um terreno de tenso
e de debate dialecticamente fecundos.
Relatividade do conhecimento, pluralidade interpretativa e tenso no debate
cientfico constituem por isso caractersticas a cruzar saudavelmente o campo da
Histria, da Histria do Comunismo, tambm.
2. Os Mtodos, as fontes e a bibliografia
A literatura de partido recorreu invariavelmente langue de bois, um discurso
codificado, cuidadosamente construdo, pontuado por uma substantivao e por uma
adjectivao prprias, eivado de intenes no domnio da propaganda e da agitao, que
evidencia o que entende, mas que esconde o essencial do processo que levou at esse
resultado, produto para ter um efeito intencionalmente mobilizador e multiplicador.
Durante muitos anos, as histrias sobre os partidos comunistas foram
construdas a partir fundamentalmente da imprensa partidria e dos documentos
publicados, bem como das memrias dos militantes.
Em Portugal, contudo, para o perodo da ditadura, o acesso a sries completas de
imprensa clandestina tornou-se difcil, apesar de se tratar de documentao publicada. A
coleco microfilmada da VI srie do Avante! (1941-1974), rgo central do PCP,
existente nos Reservados da Biblioteca Nacional, apesar de incompleta foi durante
muito tempo o nico acervo disponvel de acesso pblico.
S muito recentemente, em Maro de 2008, foram colocados on line pelo PCP
os 464 nmeros da coleco completa da VI srie 51, que abrange todo o perodo
ps-reorganizao, ainda que sries anteriores do rgo central do PCP j estivessem
disponibilizadas nos sites do Instituto de Cincias Sociais e da Fundao Mrio Soares.
Quanto a O Militante, o boletim de Organizao, cuja III srie se publicou
tambm entre 1941 e 1974, a situao tornou-se ainda mais complicada, tendo sido
necessrio proceder reproduo de praticamente toda a coleco, constituda por 182
nmeros publicados, a partir dos apensos de diversos processos judiciais do Tribunal
Plenrio de Lisboa e dos exemplares depositados na Fundao Mrio Soares.
Foi possvel localizar no Arquivo da PIDE, um dossier oriundo presumivelmente
do Gabinete Tcnico, com uma coleco completa da publicao destinada s 51 Cf www.pcp.pt
29
http://www.pcp.pt/
funcionrias das casas clandestinas do PCP, cuja publicao se iniciou em Janeiro de
1946 sob o ttulo 3 Pginas e que se passou a designar A Voz das Camaradas das Casas
do Partido a partir de Junho de 1956.
Reportamo-nos em particular a estes ttulos, pela sua importncia, ainda que
outros meream ser igualmente considerados, no obstante acrescidas dificuldades de
localizao e de anlise de conjunto, como so, designadamente, O Campons, dirigido
aos assalariados rurais do sul (122 nmeros publicados entre 1946 e 1968), O
Corticeiro, para os operrios do sector da cortia (44 nmeros editados entre 1955 e
1967), O Txtil, para o respectivo sector industrial (70 nmeros entre 1956 e 1974), a
Terra, dirigido aos camponeses do Norte e do Centro do Pas, (34 nmeros entre 1949 e
1974) 52, ou o boletim Portugal/URSS, com cinco nmeros conhecidos publicados em
1958.
J no que se refere aos panfletos e comunicados, a situao de extensiva
disperso, pois no existem coleces completas, mas ncleos principalmente apensos a
processos judiciais, constituindo por via disso conjuntos parcelares, correspondentes a
perodos delimitados ou a conjunturas especficas.
Por outro lado, as memrias dos militantes, extravasando mais ou menos a
circularidade do discurso poltico, ajuzam da posio e do ponto de vista dos seus
autores. Tratam-se de representaes sobre experincias de vida, invariavelmente
construdas sobre um passado vivido e a partir do momento e das circunstncias a partir
das quais decidem operar esses trabalhos em volta da memria.
No caso dos dirigentes histricos do PCP, por exemplo, cujas memrias tm
vindo a ser editadas pelas Edies Avante!, glosam na generalidade a verso oficial dos
acontecimentos vividos e investem sobretudo em aspectos que sendo ser interessantes e
de pormenor so pouco substantivos do ponto de vista do detalhe poltico ou incidem
ento, preferencialmente, na tortura e na vida prisional, tornando-se por vezes
necessrio perscrutar nas entrelinhas ou em passagens rpidas e quase inadvertidas.
Francisco Miguel, por exemplo, autor de dois livros de memrias, que se
publicaram em 1977 e em 1986, mas cuja narrativa sendo basicamente a mesma, vai
sendo afeioada, sem que, ainda assim, sejam abordados aspectos de substncia. Tendo,
por exemplo, pertencido ao Comando Central da ARA, Aco Revolucionria Armada,
organizao armada impulsionada e dirigida pelo PCP, afirma no primeiro destes livros
52 CF J.M. [Joo Madeira], Imprensa Comunista in Fernando Rosas e J.M. Brando de Brito (Direco de), Dicionrio de Histria do Estado Novo, I, s.l., Crculo de Leitores, 1996, pp 451-454
30
que Da ARA nada sei, mas posso dizer que estava de acordo com a sua orientao e
com as suas aces 53, enquanto que no segundo dos livros 54, publicado nove anos
mais tarde, desaparecem mesmo todas as referncias a esta actividade.
Mas, mais decepcionantes ainda, so as magras memrias publicadas por
Joaquim Gomes 55, um dos principais dirigentes a partir dos anos 50, que se limita
praticamente narrativa de episdios desgarrados, que ilustrando aspectos da vida
clandestina e da vida prisional, adiantam pouco em relao aos perodos em que teve
um papel particularmente destacado, fosse no Porto nas eleies de 1958, em 1961-62
no processo de instalao da FPLN ou de novo no interior como responsvel da
Comisso Executiva nos ltimos anos de ditadura, at ao 25 de Abril.
Num registo diferente, mas sem se afastar substancialmente deste padro so as
memrias de ex-dirigentes que se mantiveram sempre prximos do partido, como
Alexandre Castanheira 56, membro da Comisso Executiva nos ltimos anos 50 e na
primeira metade da dcada seguinte, cujo registo enovela realidade e aparente fico,
numa espcie de cortina translcida onde se percebe e insinua uma vida cheia, onde
cabem as dimenses do afecto e os dramas pessoais cosendo-se com a actividade
militante, embora cedendo pouco ao aprofundamento da experincia poltica concreta
vivida.
Sobre o estado do partido e as divergncias com Francisco Martins Rodrigues
entre 1961 e 1963, por exemplo, Castanheira resume-as a meia dzia de linhas
cuidadosamente depuradas de densidade poltica e ideolgica, como se de um fugaz
incidente se tivesse tratado:
() o CC decide criar uma Comisso Executiva do Comit Central,
encarregada de dirigir a luta diria no interior do pas. Formam-na Blanqui Teixeira,
Martins Rodrigues e Alexandre Castanheira. em casa deste, em Lea da Palmeira
que a Comisso se rene regularmente, e a que Francisco Martins comea a
levantar problemas, com ideias sobre a Revoluo chinesa, sobre a necessidade da luta
armada, etc. Entende-se por isso como til um encontro entre F. Martins e Cunhal 57
Alguns outros, tendo sido expulsos do PCP dele se reaproximaram depois do 25
de Abril, como Gilberto de Oliveira, ainda que eivado de um dorido ressentimento 58,
53 Francisco Miguel, Uma vida na Revoluo, Porto, A Opinio, 1977, p. 16254 Cf. Francisco Miguel, Das prises liberdade (Texto organizado por Fernando Correia), Lisboa, Edies Avante!, 198655 Cf. Joaquim Gomes, Estrias e emoes de uma vida de luta, Lisboa, Edies Avante!, 200156 Cf. Alexandre Castanheira, Outrar-se ou a longa inveno de mim, Porto, Campo das Letras, 200357 Idem, p. 16258 Cf. Gilberto de Oliveira, Memria viva do Tarrafal, Lisboa, Edies Avante!, 1987
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embora as memrias que deixou no avancem significativamente para alm da sua
prolongada passagem pelo campo de concentrao do Tarrafal, deixando praticamente
omisso todo o processo que conduziu sua expulso em 1952.
Dirigentes de primeira linha recusaram contudo escrever memrias. Srgio
Vilarigues, por exemplo, que desempenhou desde praticamente o seu regresso do
Tarrafal, ainda em 1940, um papel destacado no processo de reorganizao, manteve-
se ininterruptamente no Comit Central e nos seus rgos executivos; foi um apoiante e
um colaborador muito prximo de Cunhal, cujas posies teria secundado mesmo sob a
direco de Jlio Fogaa. Todavia, praticamente nem uma palavra sobre a sua
actividade, parte escassas entrevistas ou artigos memorialsticos completamente
enquadrados partidariamente.
J no que se reporta a lvaro Cunhal, conhecida a sua determinao em no
escrever memrias, enveredaria por uma expressiva actividade literria, sob o
pseudnimo de Manuel Tiago, onde, no entanto, se reflectiriam aspectos da sua
experincia pessoal enquanto dirigente partidrio, o que est bem patente em At
amanh, camaradas, escrito na priso, entre a Penitenciria de Lisboa e o Forte de
Peniche, focando a riqussima experincia vivida na conjuntura de guerra 59, bem como
em A Casa de Eullia60, incidindo sobre o perodo em que passou por Espanha quando
em 1936 deflagrou a guerra civil, ou noutros pequenos volumes de contos em que
evoca aspectos relacionados com aspectos da vida partidria 61, o aparelho de fronteiras 62 ou a vida prisional 63.
Tal como alis refere numa pequena nota introdutria a uma destas obras:
O essencial dos acontecimentos narrados, o fio de cada histria ()
correspondem a experincias de homens e mulheres que as viveram na vida real. De
muitos homens e mulheres. Uns hoje j mortos. Outros ainda vivos.
Apenas, porque escrever contos literatura, porque escrever histrias no
fazer Histria, porque fico imaginao, fantasia e sonho, em cada um destes contos
e em cada uma das personagens esto, presentes e fundidos num todo, casos, situaes,
caractersticas e experincias diversas.
Nenhuma das histrias foi assim tal e qual. Mas tudo o que se conta em cada
conto aconteceu. Tudo nestes contos fico e tudo neles realidade.59 Cf. Manuel Tiago, At Amanh Camaradas,, Lisboa, Edies Avante!, 197560 Cf. Manuel Tiago, A Casa de Eullia, Lisboa, Edies Avante!, 199761 Cf. Manuel Tiago, Lutas e Vidas, Lisboa, Edies Avante!, 2001.62; Cf. Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites ou Fronteiras, Lisboa, Edies Avante!, 1975 e 199863 Cf. Manuel Tiago, A Estrela de Seis Pontas ou Sala 3 e outros Contos, Lisboa, Edies Avante!, 1994 e 2001, respectivamente
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Assim, se o leitor se sentir tentado a acreditar que as coisas se passaram como
so narradas, pode estar certo de que no se engana em relao verdade histrica 64
certo que o dirigente histrico do PCP produziu ainda importantes obras e
textos de anlise experincia do partido, embora muito marcados por
circunstancialismos conjunturais, como foi o caso da introduo reedio dos
materiais do IV Congresso do PCP, de 1946 65 ou, ainda antes, da obra O Partido com
paredes de vidro 66, uma espcie de testamento poltico numa altura em que os anos
comeavam a pesar sobre si.
No obstante, tomou em momentos concretos iniciativas que, incidindo sobre a
experincia histrica do PCP, a queriam projectada no futuro como legitimao
histrica da correco doutrinria, empreendida afinal praticamente desde a refundao
partidria de incio dos anos 40. Logo em 1971, em artigo publicado na Revista
Internacional, que se subintitulava Revista dos partidos comunistas e operrios,
abordava experincias de meio sculo de actividade do PCP 67. Uns bons anos mais
tarde, convidado pela Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa para proferir uma conferncia no Seminrio Para a Histria da Oposio ao
Estado Novo do Curso de mestrado em Histria do Sculo XX, aceitou dissertar sobre o
papel do PCP entre a reorganizao e o 25 de Abril 68.
Interessante deste ponto de vista a edio de duas intervenes proferidas pelo
dirigente comunista numa reunio de quadros 69, que representam, ainda que de forma
dispersa, quase episdica, a verso legitimada de um conjunto de aspectos da histria e
da vida do Partido Comunista, aqui e ali cirurgicamente revistas.
Alis, a coleco em que se integra este pequeno opsculo Cadernos de
Histria do PCP, como ainda nas edies Avante!, a coleco Testemunhos, reflectem
justamente esta inteno do partido Comunista no escrever a sua prpria histria,
pontuando-se apenas esse territrio com um conjunto de interpretaes, assumidamente
parcelares, mas oficialmente assumidas.
No entanto, ainda que igualmente publicadas nas Edies Avante!, as memrias
64 Manuel Tiago, Fronteiras, p. 965 Cf. lvaro Cunhal, O IV Congresso do PCP visto 50 anos depois, in O Caminho para o Derrubamento do Fascismo. IV Congresso do Partido Comunista portugus, I Volume, Lisboa, Edies Avante!, 199766 Cf lvaro Cunhal, O Partido com paredes de vidro, Lisboa, Edies Avante!, 1985 (5 edio)67 Cf. lvaro Cunhal, Algumas Experincias de 50 anos de luta do PCP, Lisboa, Edies Avante! 1975 [Artigo publicado na Revista Internacional (Problemas da Paz e do Socialismo), 6, Junho de 1971]68 Cf lvaro Cunhal, O Partido Comunista: da Reorganizao dos anos 40 ao 25 de Abril, Separata do Avante!, 956, 16 de Abril de 199269 Cf. lvaro Cunhal, Duas intervenes, Lisboa, edies Avante!, 1996
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de Jaime Serra 70 continuando a narrar episdios dispersos, pginas da luta
clandestina, mais incisivo que a generalidade das memrias de dirigentes e quadros
que se mantiveram activos durante dcadas. Para isso poder ter contribudo um relativo
abrandamento do secretismo partidrio, que mesmo em democracia continuasse
considerada uma das regras de ouro do PCP.
Objectivamente, parece haver aqui uma coincidncia no tempo com a retirada de
lvaro Cunhal da actividade partidria de primeira linha e com o seu desaparecimento
fsico, depois; como que libertando alguns dos seus camaradas da ascendncia e do
ofuscamento que duradouramente exerceu sobre eles.
Com alguma surpresa, as edies Avante! reeditariam recentemente um
manuscrito de Jos Magro, mantido em original durante muitos anos, onde os relatos da
clandestinidade fogem, ainda que relativamente, superficialidade generalizada 71. Isto
est, porm, longe de significar que o secretismo tenha sido vencido. A contribuio dos
militantes na primeira pessoa continua a ser essencialmente decepcionante, ainda que
importante e incontornvel num quadro compsito de fontes a utilizar.
Mesmo entre a generalidade dos ex-militantes, onde no abundam sequer muitas
obras memorialsticas, a atitude no foi substancialmente diferente no que toca ao
esclarecimento de aspectos, mesmo que estritamente vivenciais, da actividade
partidria.
Cndida Ventura, a primeira mulher a ascender ao Comit Central depois da
reorganizao, onde se manteve por largos anos, com um percurso partidrio
complexo, publica j depois de abandonar o PCP em 1976 um dos primeiros
testemunhos pessoais mas em que, do mesmo modo, os aspectos de essncia poltica so
aligeirados ou revestidos de uma retrica que ensombra as prprias circunstncias
factuais e polticas que viveu no seio do seu partido de tantos anos72.
Contudo, nalguns casos, houve quem vencesse esta espcie de atavismo e de
modo mais ou menos pontual esclarecesse detalhes interessantes da vida partidria, que
nos permite olhar de modo menos obscurecido o interior do PCP.
Mrio Dionsio na sua breve autobiografia fornece elementos interessantes sobre
a sua militncia de intelectual comunista, bem como das circunstncias em que acaba
por se demitir do Partido 73; do mesmo modo que Rui Perdigo, que discorrendo sobre a 70 Cf. Jaime Serra, Eles tm o direito de saber o que custou a Liberdade, Lisboa, Edies Avante!, 2004 (2 Edio, revista e aumentada)71 Jos Magro, Cartas da Clandestinidade, Lisboa, Edies Avante!, 200772 Cf. Cndida Ventura, O Socialismo que eu vivi. Testemunho de uma ex-dirigente do PCP, Lisboa, O jornal, 198473 Cf. Mrio Dionsio, Autobiografia, Lisboa, O Jornal, 1987
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sua passagem por importantes aparelhos de apoio ao Comit Central e, j no exlio,
sobre a sua participao na Rdio Portugal Livre, faculta-nos aspectos interessantes
sobre a elite partidria com quem conviveu de perto74.
De carcter substancialmente diferente so as memrias infelizmente
incompletas de Francisco Martins Rodrigues 75, que faleceu antes de as poder concluir,
tendo sido apenas publicados alguns textos e registos de entrevistas.
A obra, porventura mais completa deste ponto de vista de J.A. Silva Marques,
publicada em 1976 76, onde as memrias da sua actividade militante se cruzam com uma
anlise arguta do que era, do seu ponto de vista, sociologicamente o PCP e da sua forma
de funcionamento. Na realidade trata-se de uma abordagem muito pouco frequente, at
pela altura em que publicada, embora reflectindo a diversificada trajectria poltica
que experimentou.
No entanto, os registos publicados, de feio memorialstica ou autobiogrfica
foram directa ou indirectamente complementados com entrevistas a dirigentes e quadros
do PCP, que desenvolveram actividade clandestina no crculo directo que desempenhou
funes executivas e de controlo poltico durante o arco cronolgico aqui considerado.
Foram em regra aplicadas entrevistas directas, semi-abertas, baseadas em guies
construdos em funo do percurso partidrio e do tempo prprio desse percurso.
Muitos desses dirigentes e quadros faleceram entretanto e no momento em que
foram entrevistados fizeram prevalecer uma cultura de sigilo e de secretismo que tornou
essas entrevistas pouco expressivas no que se reporta substncia de muitas das
questes colocadas.
Mas, se as entrevistas so peas largamente deficitrias de informao, no esto
completamente esvaziadas desse ponto de vista, tornando-se teis fundamentalmente
pelo pormenor que por vezes carreiam entre longas respostas, como ainda pela
linguagem no verbal que o ritmo do discurso permite, por vezes, possvel reter.
Mas, para alm destas razes e quanto mais no fosse, a entrevista permite
colocar o historiador face a face com o agente histrico, com o protagonista vivo que
labora em trabalhos da memria cuidadosamente filtrados pelo tempo, pela reconstruo
legitimada do passado e pela tenso latente que deriva da posio em que colocado no
contexto da entrevista. A percepo que da resulta, mesmo subjectivamente enformada,
74 Cf. Rui Perdigo, O PCP visto por dentro e por fora, Lisboa, Fragmentos, 198875 Cf. Francisco Martins Rodrigues, Os anos do silncio, Lisboa, e Histria de uma vida, Dinossauro e Abrente Editora, 2008 e 2009, respectivamente76 Cf. J.A. Silva Marques, Relatos da clandestinidade. O PCP visto por dentro, Lisboa, Edies Jornal Expresso, 1976
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no deixa de ser importante no processo de investigao histrica
A entrevista, com todos os constrangimentos e limitaes inerentes, exigindo,
como alis todas as fontes histricas, um indispensvel trabalho crtico, constitui uma
pea insubstituvel, e em boa medida incontornvel, no quadro do esforo de
reconstituio histrica, beneficiando da proximidade temporal das matrias e pocas
em estudo e da possibilidade de tomar protagonistas e actores sociais como fonte
histrica viva.
As circunstncias ilegais da actividade desenvolvida pelo PCP, e por isso
fortemente condicionada, com os seus dirigentes, os seus quadros e os seus militantes
permanentemente perseguidos, acossados pela aco dos aparelhos repressivos do
regime, obrigavam ainda a que se contrasse a produo e conservao de
documentao.
Ainda assim, puderam escapar sanha policial esplios de quadros polticos
oposicionistas, alguns deles, porventura os mais extensos, conservados em longos
perodos de exlio, integrando notas manuscritas tomadas em reunies ou como
sistematizao de ideias, minutas de documentos a imprimir, bem como a
correspondncia, documentos que se tm vindo a revelar absolutamente fundamentais
para uma leitura mais densa e aprofundada de processos referentes actividade das
Oposies e, ainda que na quase totalidade dos casos, no se tratem de militantes
comunistas, permitem ver de outros ngulos e praticamente em cima dos
acontecimentos, a prpria actividade do PCP.
Neste sentido e deste ponto de vista tem sido particularmente importante e
meritria a aco desenvolvida pela Fundao Mrio Soares e pelo Centro de
Documentao 25 de Abril.
Mesmo no que se refere a intelectuais que tiveram militncia legal no Partido
Comunista, nos seus esplios, predominantemente literrios, a correspondncia permite,
a partir das relaes de sociabilidade, perceber de modo mais detalhado aspectos
significativos da sua actividade poltica. A aco do Centro de Documentao do Museu
do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira, como o Arquivo da Cultura Portuguesa
Contempornea, na Biblioteca Nacional tem sido a este nvel notvel.
Em clandestinidade, o PCP disporia de um arquivo central no interior do pas,
preservado e mantido em lugar cuidadosamente escolhido, tendo sido decidido
fotografar toda essa documentao, trabalho que se teria iniciado em 1958, ficando um
exemplar o interior e colocando outro fora do pas, encontrando-se pelos vistos ambas
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as cpias neste momento no arquivo central do PCP, uma das quais em boas condies 77
Por outro lado, apesar dos acidentes que levaram priso de um importante
conjunto de dirigentes nos primeiros anos 60, com a transferncia do Secretariado para
o exterior, o arquivo desse rgo ficaria a salvo at ao 25 de Abril, a que se dever
juntar o arquivo da Rdio Portugal Livre, um importante repositrio da vida partidria e
das movimentaes sociais no pas.
Os materiais conservados no exterior, correspondentes a esse perodo, mas
provavelmente muito mais amplos, configuravam um arquivo fundamental, para
escrever a histria do PCP. Alguns documentos e outros materiais que vm sendo
publicados de modo esparso e outros cedidos, mais recentemente ainda, para exposies
atestam da importncia desse arquivo central.
Todavia, o Arquivo do Partido Comunista Portugus continua completamente
encerrado e inacessvel, exceptuando-se cedncias pontuais de documentos segundo
critrios determinados evidentemente pelo prprio partido.
Na altura em que inicimos a investigao nem sequer era possvel consultar a
coleces completas de imprensa clandestina quanto mais documentao interna como
relatrios, originais de informes e circulares ou autobiografias.
Objectivamente, ao proceder deste modo, o Partido Comunista parece querer
condicionar fortemente a escrita da sua Histria, ao mesmo tempo que no evidencia
qualquer inteno ou interesse em escrev-la.
Neste quadro paradoxal, ainda assim, o PCP vem apodando de modo recorrente
como falsos e tendenciosos os estudos que o tomam como objecto histrico, sem que
contraponha argumentos documentalmente sustentados nem permita o acesso aos seus
arquivos no sentido de corrigir interpretaes insuficientes e precrias.
Extraordinariamente, as prprias circunstncias repressivas, a feroz, sistemtica
e permanente perseguio de que o PCP foi alvo viriam a permitir desde h alguns anos
o acesso a alguma dessa documentao interna, apreendida pela polcia, abertos ou
semi-abertos que foram os arquivos polticos do Estado Novo.
Durante a clandestinidade, mesmo podendo haver uma espcie de arquivo
central, no se tratava, evidentemente, de um arquivo operativo, mas mais de um
depsito com objectivos de preservar documentao, havendo sim arquivos pessoais, na
posse de cada um dos principais dirigentes.
77 Cf. Margarida Tengarrinha, Quadros da Memria, Lisboa, edies Avante!, 2004, p. 71
37
Isso significa que se por aco repressiva um determinado dirigente era preso e a
sua instalao clandestina assaltada sem que houvesse possibilidade de destruir o
arquivo, como estava internamente determinado, a polcia apreendia um conjunto de
documentao que podia ter efeitos demolidores gravssimos.
Por vrias vezes, o prprio PCP o reconheceu com todas as letras 78. Isso
particularmente patente com a priso de Octvio Pato em 1962, na altura membro do
Secretariado do Comit Central no interior do pas.
Pato preso quando se dirigia a casa, a alguma distncia, com a instalao e a
sua movimentao j referenciadas pela polcia, o que permitiu PIDE prend-lo e ao
mesmo tempo apreender todo o seu vasto arquivo.
Como sob tortura se recusasse a prestar declaraes, essa documentao iria
servir de matria de prova no respectivo processo enviado ao Tribunal Plenrio de
Lisboa 79, sob a forma de apensos, o que significa que o acesso ao referido processo
permite o acesso a um repositrio documental de enorme importncia do ponto de vista
da histria do PCP. O mesmo se poderia dizer, ainda que com graus de importncia
distintos, dos processos de lvaro Cunhal, em 1949 80ou de Joaquim Pires Jorge, em
1961 81.
Ainda assim, mesmo a avalio deste tipo de documentao, particularmente a
que se relaciona com dados organizativos referentes a nmeros de militantes e
simpatizantes ou de comits e clulas, tem, necessariamente, que ser considerada em
funo do modo indirecto em que podem ser aferidos, prevenindo-nos contra eventuais
tendncias de sobrevalorizao, mesmo que produzidas e destinadas a consumo interno.
Estes processos, cuja cpia fica em arquivo na PIDE sem os respectivos apensos
naturalmente constitudo por inmeras peas de autos de perguntas que, no caso
daqueles que prestam declaraes, geram tambm abundante matria de facto, mas de
tipo e qualidade completamente distintas, pois enquanto na documentao apreendida se
trata de documentao original, nos autos estamos em presena de informao
construda, muitas vezes forjada ou recolhida invariavelmente sob violncia.
O carcter de fiabilidade por isso qualitativamente diferente. A mngua de
informao leva tantas vezes a tomar essas declaraes como dados substantivos sem
que o sejam de todo, quer pela forma como foram conseguidos quer porque se podem
78 Cf. Resoluo do Comit Central sobre a defesa conspirativa do Partido, Dezembro de 1962, cicl.79 Cf. Arquivo Distrital de Lisboa, Tribunal Criminal de Lisboa, 2Juzo Criminal Processo 92/6280 Cf. Idem, 3 J.C., Processo 14499/4981 Cf. Idem, 4 J.C., Processo 134/62 [44695]
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tratar de construes feitas pela prpria polcia, forando o preso a assinar os autos sob
violncia fsica ou psicolgica.
Mas isto pode no significar a recusa absoluta a esses elementos que, como
quaisquer outros, necessitam ser cruzados, contextualizados e referidos com o rigor e
fiabilidade que possam merecer.
Na realidade, o arquivo da PIDE-DGS tem revelado parca documentao
original emanada pelo prprio PCP, pois a componente de inteligncia da polcia
poltica do regime esteve sempre subdesenvolvida, em detrimento de uma componente
preventiva e punitiva, tomada de modo individual, ainda que, no perodo considerado,
tomando o PCP como principal objecto da sua prpria actividade policial.
Os estudos policiais sobre o Partido Comunista so, por isso, pouco numerosos e
de fraca qualidade e mesmo a documentao proveniente do Gabinete Tcnico da PIDE
no con