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O Partido Comunista Português e a Guerra Fria: “sectarismo”, “desvio de direita”, “Rumo à vitória” (1949-1965) João Manuel Martins Madeira Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em História Institucional e Política Contemporânea, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor Fernando Rosas MAIO, 2011

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  • O Partido Comunista Portugus e a Guerra Fria:sectarismo, desvio de direita, Rumo vitria

    (1949-1965)

    Joo Manuel Martins Madeira

    Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios

    obteno do grau de Doutor

    em Histria Institucional e Poltica Contempornea,

    realizada sob a orientao cientfica

    do Professor Doutor Fernando Rosas

    MAIO, 2011

  • DECLARAES

    Declaro que esta dissertao o resultado da minha investigao pessoal e

    independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto devidamente

    mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.

    O candidato,

    ____________________

    Lisboa, 16 de Maio de 2011

    Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser apresentada a

    provas pblicas.

    O orientador,

    ____________________

    2

  • Lisboa, 16 de Maio de 2011

    3

  • 4

  • Aos homens e mulheres livres,

    cuja entrega desinteressada e corajosa,

    foi rasgo de guia

    e nunca significou embotamento crtico

    5

  • AGRADECIMENTOS

    No caudal das solidariedades, generosidades e reconhecimentos, o que aqui

    trago foi escorado nas palavas e nos gestos, nos ditos e no ditos de incentivo de muitos.

    Todos eles e elas sabem do que falo, no os conseguirei mencionar a todos nem

    esquecerei nenhum deles.

    Quero comear por sublinhar a importncia do papel desempenhado pelo meu

    orientador, Professor Doutor Fernando Rosas, pelas esclarecidas e pertinentes sugestes

    e correces que num esprito cientfico aberto sempre estimulou o curso da presente

    investigao, desde o projecto a esta forma final.

    E no poderia deixar de mencionar a trao vincado os meus colegas do Instituto

    de Histria Contempornea, em particular os que mais prximos de mim, pelo incentivo

    e pelo encorajamento, nos projectos e interesses cientficos comuns, nos debates e

    trocas de opinio formais e informais; pelos materiais, informaes e sugestes

    generosamente prestados; pelas solidariedades forjadas. Permitam-me, sem ignorar ou

    esquecer nenhum, que mencione o Lus Farinha, a Susana Martins, a Dulce Freire, a

    Judith Manya, o Lus Trindade, a Ana Catarina Pinto, a Ana Sofia Ferreira, a Irene

    Pimentel, a Incia Rezola.

    No esqueo as cumplicidades cientficas com colegas do CEIS20 da

    Universidade de Coimbra, designadamente o Antnio Pedro Pita, o Lus Costa Dias ou

    a Teresa Cascudo, bem como o Jos Neves, do ISCTE e, agora, da FCSH ou a Ins

    Fonseca do CEEP, tambm da FCSH.

    Mas quero agradecer tambm aos meus colegas, companheiros e amigos, de

    distintas vivncias e formaes acadmicas, que ao longo de todo este longo tempo

    exerceram, com a sua curiosidade e o seu interesse, insubstituvel e reconfortante

    incentivo.

    Registo um particular agradecimento ao pessoal dos Arquivos por onde passei,

    da Torre do Tombo Polcia Judiciria, da Academia das Cincias ao Arquivo Distrital

    de Lisboa, do PC de Espanha ao Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira. A

    6

  • tenso com que nalguns deles por vezes nos cruzmos foi sempre incapaz de se

    sobrepor ao zelo, boa-vontade e ao profissionalismo que, em situaes institucionais

    tantas vezes adversas, se traduziu na disponibilizao, arquivisticamente tempor

    nalguns casos at, de documentao de importncia primordial.

    Um palavra de agradecimento especial aos actores histricos que aceitaram que

    os entrevistasse, muitos entretanto falecidos, que com maior ou menor desassombro

    evocaram tempos duros e sofridas situaes quer narrando abertamente quer fazendo

    com que os seus silncios ajudassem tambm a iluminar a Histria.

    Destaco entre eles as figuras de Francisco Martins Rodrigues e de Manuel Joo

    da Palma Carlos, ambos falecidos, pela empatia (como evitar diz-lo!) e pela

    fecundidade dos seus depoimentos lcidos, crticos, corajosos, emotivos.

    Por mais voltas que a vida d, deixo um gesto grande de afecto a quem me

    acompanhou, e sobretudo me acompanha, em troos deste caminho, sempre de modo

    discreto, solidrio, compreensivo e afvel.

    Uma palavra final de reconhecimento aos meus pais, com saudade do meu pai

    que j partiu e que, onde quer que esteja, se souber deste meu passo, no esconder a

    sua enorme satisfao, porque ambos foram absolutamente decisivos na aparelhagem da

    embarcao que fui e sou nesta viagem.

    7

  • O PARTIDO COMUNISTA PORTUGUS E A GUERRA FRIA:

    SECTARISMO, DESVIO DE DIREITA, RUMO VITRIA

    (1949-1965)

    THE PORTUGUESE COMMUNIST PARTY AND THE COLD WAR:

    SECTARISM, RIGHTWARD SHIFT ,TOWARDS VICTORY

    (1949-1965)

    JOO MANUEL MARTINS MADEIRA

    PALAVRAS-CHAVE

    Centralismo Democrtico, Clandestinidade, Comunismo, Democracia, Desvio de

    Direita, Guerra Fria, Estalinismo, Oposio, Salazarismo, Sectarismo, Transio

    KEYWORDS:

    Clandestineness, Cold War, Communism, Democracy, Democratic Centralism,

    Opposition, Rightward Shift, Salazarism, Sectarism, Stalinism, Transition

    RESUMO

    Entre a priso de lvaro Cunhal em 1949 e o triunfo formal das suas teses no VI Congresso do PCP, em 1965, o Partido Comunista Portugus viveu anos difceis e flutuaes de linha poltica, pontuadas por fortes debates e crises internas.

    O acuo partidrio dos primeiros anos cinquenta deu lugar, sombra do XX Congresso do PCUS e de velhas e enquistadas concepes polticas, a um designado desvio de direita em que os fundamentos doutrinrios independncia operria como esteio fundamental da poltica de alianas e via do levantamento nacional para o derrube do regime tal como a concebera lvaro Cunhal foi paulatinamente substitudo.

    Aps a sua audaciosa fuga da priso no incio de 1960, Cunhal proceder rectificao desse desvio e repor a linha do levantamento nacional consubstanciada em termos doutrinrios no Rumo Vitria, documento fundamental que est na base do programa aprovado no Congresso de 1965.

    8

  • Se o alinhamento internacional do PCP de subordinao ao centro do sistema sovitico num clima internacional de Guerra Fria, com os seus mpetos, abrandamentos e recomposies, exerceu impacto profundo nas orientaes partidrias, sempre um veio nacional, bebido numa tradio cultural republicana radical e desenvolvimentista se lhe associou em tenso maior ou menor, mas permanente.

    Porm, o Partido Comunista nunca perderia de vista, independentemente de flutuaes, conjunturas e heranas culturais que as suas polticas com vista ao derrube do regime se subordinavam disputa acesa pela hegemonia das oposies e por no ficar de fora de uma qualquer soluo que se pudesse desenhar derrubado o regime.

    O PCP foi nestes anos, por um lado, o resultado deste feixe tenso de foras que, por outro lado, frequentemente conflituaria ainda com a pulso dos sectores partidrios e sociais mais radicalizados.

    Neste encadeamento de processos complexos e contraditrios, o PCP, vencido o enquistamento sectrio e o seu lastro, sempre apostou mais no enquadramento das vozes e dos movimentos discordantes do que na sua anulao por excluso e violncia partidria, que tambm exerceu.

    Mas, com efeito, o Partido Comunista nunca abandonaria significativamente a tradio estalinista que lhe foi matricial a partir da reorganizao de 1940-41 e que lhe permitiu, escorado num conjunto de procedimentos de raiz centralizadora, hierarquizada e compartimentada, casados com uma rigorosa cultura de clandestinidade, resistir melhor ou pior, mas resistir, s sucessivas e constantes investidas policiais.

    ABSTRACT

    Between 1949, when lvaro Cunhal was imprisoned, and 1965, in the 6th Congress of the Portuguese Communist Party, when the formal prevalence of his thesis materialised, the party lived hard years and drifts of political lines, characterised by intense debate as well as internal crises.

    The fierce supporter of the early 1950s, lvaro Cunhal after the strong influence of the 20th Congress of the Soviet Union Communist Party as well as of old, very firm political concepts became a rightward shift, who slowly had substituted the doctrinal foundations he, himself had conceived: of an independent working class both as the main basis of a policy of alliances and the way to the national rebellion to overthrow the regime.

    After his audacious escape from prison at the beginning of the year 1960, lvaro Cunhal would proceed to rectify that deviation: he would recover the national rebellion line, as it is synthesized into principles and theories in Rumo Vitria (Towards Victory), a fundamental document which is the basis of the program approved in the Congress in 1965.

    If it is a fact that the international alliance of the Portuguese Communist Party and the Soviet system one of subordination in an international climate of Cold War, with impetus, decreases and recoveries had a deep impact upon the partys orientation,

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  • there simultaneously existed a national principle under major or minor tension, but always present , both radical and based upon the conviction of development, which had been absorbed in a republican cultural tradition.

    However, the Portuguese Communist Party, irrespective of its drifts, conjunctions and cultural heritage, would never lose sight of the idea that its policies to overthrow the regime were subordinated to the dispute for the hegemony of positions, in order not to be excluded from any solution after toppling the regime.

    During all those years, the Portuguese Communist Party was the result of all these tense forces, on the one hand, which, on the other hand, would frequently collide with the pulse of the more radical party political and social sectors.

    In this chain of very complex and contradictory processes, and after conquering its intolerant, hard factions, as well as their bases, the Portuguese Communist Party has always agreed to gather opposing tendencies rather than exclude them or use political harassment.

    But, actually, the Portuguese Communist Party has never significantly abandoned its Stalinist tradition which was its framework since the party was restructured in 1940-41 and which allowed it supported by a group of procedures of a centralised, hierarchised and compartmentalised character and bound to a thorough and strict culture of clandestine existence to resist, the most appropriately they could, but resist, the continuous and constant police assaults.

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  • NDICE

    Agradecimentos .. 5

    Resumo 7

    Introduo 13

    1. O comunismo como objecto de estudo 13

    2. Os mtodos, as fontes e a bibliografia .. 28

    3. O tema: unidades, plano e mbito 40

    PARTE I

    PCP Um novo partido

    Captulo 1

    De quantos partidos se fez o Partido . 45

    1. Parto difcil para uma seco da Internacional Comunista .. 45

    2. preciso que o PCP complete a sua bolchevizao 56

    3. A revoluo exigia de ns uma mstica total 64

    4. Os camaradas no cumpriram as orientaes dadas por ns . 73

    Captulo 2

    A reorganizao ... 88

    1. Dois Partidos Comunistas em Portugal 88

    2. A afirmao do novo PCP 99

    3. O combate final ao governo fascista de Salazar 114

    Captulo 3

    A Poltica de transio e o caminho para o derrubamento do fascismo . 124

    1. O Tarrafal e a Poltica Nova ... 124

    2. O Tarrafal e a Poltica de Transio ... 130

    3. O IV Congresso e o caminho para o derrubamento do fascismo ... 138

    11

  • PARTE II

    O PCP e a Guerra Fria

    Captulo 4Tempos quentes de guerra fria .. 151

    1. Uma depresso temporria de lutas .. 151

    2. Uma grande vitria poltica do nosso Partido ... 171

    3. O Movimento Nacional Democrtico e o Movimento pela Defesa da Paz ... 184

    4. Unamo-nos em defesa da Paz . 199

    5. A unidade conduz vitria . 217

    Captulo 5

    O desvio de direita .. 241

    1. A VI Reunio Plenria Ampliada do CC 241

    2. Mudam-se os tempos 258

    3. Como um velho realejo, repetindo, repetindo sem vibrao profunda 279

    4. O V Congresso . 298

    5. As massas esto a indicar-nos o caminho .... 318

    6. Um tempo de jornadas nacionais para a demisso de Salazar . 346

    Captulo 6

    Rumo ao Rumo Vitria ... 3821. A correco do desvio de direita .. 382

    2. Uma extensa reviso da actividade partidria .. 408

    3. A questo colonial 434

    4. As grandes jornadas de 1962 457

    Captulo 7

    Rumo vitria .. 497

    1. A ciso de Martins Rodrigues ........... 497

    2. Um erro de orientao no 1 de Maio de 1964 ... 518

    3. O Partido, a Frente e o General . 527

    4. As eleies de 1965 ... 546

    5. Rumo Vitria e ao VI Congresso 556

    12

  • 6. O VI Congresso . 572

    PARTE III

    O PCP: Dirigentes, Quadros e Militantes

    Captulo 8

    Os comunistas I A Direco e os quadros .. 581

    1. uma formidvel inovao de engenharia social 581

    2. O Comit Central ... 587

    3. Os funcionrios e a clandestinidade .. 622

    Captulo 9

    O aparelho . 665

    1. As Casas do Partido 665

    2. A imprensa . 683

    3. O exterior e o aparelho de fronteiras .. 710

    4. As finanas . 723

    Captulo 10

    Os comunistas II Os militantes . 737

    1. Os militantes 737

    2. A organizao e os quadros 748

    3. A priso: espectro e realidade 767

    4. Para uma cultura militante . 780

    5. Aproximao dinmica e geografia da implantao partidria 791

    a) A situao em 1948 ................. 792

    b) Recuos orgnicos no incio dos anos 50 . 798

    c) Sinais de recuperao por meados da dcada . 801

    d) Dos anos difceis de 1958-59 correco do desvio anarco-liberal 803

    e) Represso, denncias e regresso organizativa .. 809

    Concluses .. 812

    Fontes e Bibliografia .. 827

    13

  • Introduo

    1. O comunismo como objecto de estudo

    O comunismo tem sido foco de querelas maiores, fortemente polarizadas,

    frequentemente irredutveis, que vm atravessando as sociedades contemporneas desde

    os alvores do sculo passado, afectando o discurso de inteno historiogrfica por

    inflamada paixo.

    Na Histria do comunismo, acumulam-se viscos que as mars do tempo trazem

    recorrentemente praia, em que se digladiam desde construes militantes,

    autocentradas e autolegitimadoras, arrogando-se portadoras de um sentido exclusivo de

    verdade, a construes preconceituosamente anticomunistas, igualmente cegas,

    moldando o objecto a convices apriorsticas; cedendo, em ambos os casos, a

    interpretaes redutoras, porventura teis de um ponto de vista instrumental, mas

    vincadamente simplificadoras e empobrecedoras do ponto de vista cientfico.

    Porm, muito por isso ou a propsito disso, nem sempre os meios acadmicos

    tm chamado o objecto a si, invocando ou insinuando recorrentemente a proximidade

    temporal e o sopro que um tema to marcado pelas paixes ateadas pelo tempo e pela

    vida exerceriam sobre o dever de objectividade em Histria, fazendo estremecer

    geraes de historiadores, mesmo que esses historiadores reajam assim, justamente em

    consequncia e como reflexo pudico dessas mesmas paixes.

    A entrada do comunismo no continente da Histria , por isso, recente e levanta

    desafios to estimulantes quanto temerrios, pois nem sempre a produo

    historiogrfica neste domnio tem conseguido deixar de reflectir o modo exacerbado

    como a paixo do tempo e as tenses desencadeadas se projectam na sua escrita.

    Entre a prudente reserva quanto ao tema, invocado por uns o calor escaldante

    que dele continuaria a emanar, e as derivas de outros em que (i)legitimao poltica e

    Histria se enovelam, h um caminho que no enjeita a ideia do historiador e do seu

    ofcio como filhos do seu tempo e indelevelmente tocados pelas paixes que o cruzam,

    mas suficientemente lcidos para que a sua construo cientfica se opere com o

    distanciamento, o rigor e a humildade do que de precrio e relativo todo o

    conhecimento, e o conhecimento histrico em particular, tem, num quadro

    permanentemente dinamizado pelo debate entre interpretaes plurais.

    14

  • A incorporao do comunismo como objecto cientfico no domnio da Histria

    no escapa, nem poderia escapar polmica e ao arrolamento de escolas onde se

    reflectem pontos de vista e correntes interpretativas.

    O debate historiogrfico em democracia dificilmente o sem implicar acuidade,

    tenso, disputa pela hegemonia interpretativa, porventura truculenta; mas exige a

    seriedade e a serenidade que o contexto acadmico, como o contexto cultural mais

    geral, lhe devem saudavelmente proporcionar.

    H mais de 30 anos, Jean-Paul Sartre questionava-se sobre a possibilidade de

    escrever sobre a Histria do Partido Comunista 1. Entendia que para escrev-la a partir

    de fora, por mais vasto que fosse o acervo documental de base, faltava ao historiador a

    experincia insubstituvel s proporcionada pela vivncia dos ambientes e dos

    acontecimentos; embora escrev-la a partir de dentro arrastasse o constrangimento

    resultante da fidelidade e da submisso ao partido e s flutuaes conjunturais das suas

    polticas; assim como escrev-la num quadro de dissidncia, acrescentava, trazia

    agarrado a si o fel do despeito e do ressentimento. Acompanhar este pessimismo s

    poderia significar que o esforo dessa escrita ficava como que suspenso e

    permanentemente adiado.

    Hobsbawm, em contrapartida, interrogando-se sobre a possibilidade da escrita

    da revoluo russa, responde obviamente, sim, mas acrescentando que: isso deixa

    em aberto a questo mais ampla: podemos algum dia escrever a histria definitiva de

    alguma coisa no apenas a histria conforme vista hoje, ou em 1945, - inclusiv,

    claro, da Revoluo Russa? Neste caso em um sentido bvio a resposta no, a

    despeito do facto de que h uma realidade histrica objectiva, que os historiadores

    investigam, para estabelecer entre outras coisas, a diferena entre facto e fico 2.

    justamente nesta assuno da relatividade do conhecimento histrico que a

    Histria do Comunismo e dos Partidos Comunistas se tornou parte integrante da

    Histria do sculo XX, inteligvel num horizonte contextualizante, no qual, todavia, no

    se dissolve, constituindo terreno de anlise dotado de especificidades prprias, gerador

    de impactos extraordinrios no devir do sculo XX, sculo breve e intenso, ocupando-

    o e marcando-o de modo indelvel.

    Ainda recorrendo a Eric Hobsbawm, a Revoluo de Outubro representou o

    1 Cf. Jean-Paul Sartre, Prefcio a Antonin Liehm, Trois Generations, Paris, Gallimard, 19702 Eric Hobsbawm, Podemos escrever a histria da revoluo russa? [1996], in Da Histria, So Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 256

    15

  • mais formidvel movimento revolucionrio da histria moderna () [cuja] expresso

    global no tem paralelo desde as conquistas do Islo no seu primeiro sculo 3.

    Na realidade, como j tivemos oportunidade de referir, a Revoluo de Outubro

    de 1917 ao constituir um projecto revolucionrio triunfante, foi acto fundador, que

    rapidamente ambicionou adquirir carcter universal, por via de um fortssimo poder

    mobilizador, dotado de base social prpria, alicerado em fundamentos doutrinrios e

    orgnicos sistematizados e codificados no perodo entre guerras e incorporando, desde

    logo, um veio estratgico nuclear baseado justamente na defesa incondicional da Rssia

    sovitica e assim se projectando ao longo de todo o sculo.

    O seu impacto e as suas repercusses derramando-se sobre toda a nossa

    contemporaneidade foram, por isso mesmo, imensos e duradouros, do ponto de vista da

    utopia e das esperanas colectivas que desfraldou, como das desiluses, dos dramas e

    dos impasses que o seu desenvolvimento e a sua aplicao concreta geraram 4.

    Todo um forte patrimnio gentico permitiu em larga medida configurar a

    identidade de cada partido comunista, cuja histria est, deste modo, e naturalmente,

    ligada de forma muito estreita ao Partido Comunista da Unio Sovitica, URSS e ao

    movimento comunista internacional.

    Todavia, reduzir exclusivamente a aco de cada partido comunista aplicao

    cega e seguidista de um conjunto de orientaes e procedimentos meramente decalcados

    dos interesses, da vontade e da estratgia sovitica, significaria anular o efeito das

    especificidades nacionais no processo de construo da identidade de cada um desses

    partidos, desprezando ou subestimando o papel das relaes tecidas por cada segmento

    comunista com a sociedade em que se insere e em relao qual necessariamente

    interage.

    Por outro lado, a experincia histrica do comunismo tanto olhada globalmente

    como no universo de referncia de cada partido comunista s apressada e

    superficialmente pode ser encarada como um movimento nico, isento de contradies,

    divergncias e dissidncias, mesmo que o veio triunfante se afirmasse, por vezes com

    enorme violncia e de modo demolidor sobre diferenas de concepo ou entendimento

    ou em relao a quaisquer tenses centrfugas.

    precisamente considerando esta realidade que so incontornveis os

    contributos de incidncia historizante de destacados protagonistas, vencedores ou

    3 Eric Hobsbawm. A Era dos Extremos, Lisboa, Editorial Presena, 1996, p. 64 4 Cf. Joo Madeira, O PCP e a validade universal da experincia sovitica, in Histria, Nova srie, 2, Maio de 1998, p. 17

    16

  • vencidos, no quadro do movimento comunista na alvorada do sculo XX, a comear

    pelo prprio Lenine, mas tambm Bukharine, Trotski, Lukcs, Gramsci ou Rosa

    Luxemburgo. Os seus contributos, necessariamente plurais, mesmo que parcelares,

    frequentemente densos, pelo que de estimulante frequentemente carreiam no merece

    corresponder to s a uma corrente difcil de catalogar 5, na expresso de Bruno

    Groppo e Bernard Pudal, como que esmagada entre legitimao, demonizao e

    cientificidade.

    As suas obras, como alis a de outros excludos ou auto-excludos do sistema,

    designadamente no segundo ps-guerra, mesmo que num percurso de progressivo

    afastamento do marxismo, como Fernando Claudn ou Franois Fetj, constituem obras

    clssicas6 de interpretao global e, simultaneamente, fontes para o estudo da histria do

    comunismo ao nvel da histria poltica e das ideias polticas, bem como da evoluo do

    pensamento de raiz marxista.

    Por outro lado, a renovao do pensamento marxista ocorrida nos finais dos anos

    60 e na dcada seguinte contribuiu com um expressivo conjunto de estudos e obras de

    carcter analtico sobre o comunismo, que a voragem do tempo e o processo de

    desagregao do bloco designado de socialista vieram desvalorizar e ofuscar num

    contexto ideolgico dominante de inculcao do pensamento nico e de fantsticas

    teorias sobre o fim da Histria.

    No obstante, foram-se desenhando correntes historiogrficas dinmicas em

    torno do comunismo, como em Frana e a partir da Universidade, com a tese de Annie

    Kriegel, de 1964, sobre as origens do comunismo em Frana 7 e em particular desde o

    seu ensaio de inteno etnogrfica sobre os comunistas franceses 8, que permitiria

    configurar a corrente que em 1982 lana a revista Communisme.

    A revista, de vincado enquadramento acadmico reunia sob a direco de

    Kriegel um grupo alargado de jovens investigadores que nutriam em comum a

    disposio de construir uma histria cientfica do comunismo, recusando uma

    historiografia de partido e os objectivos subjacentes.

    Na sua fase inicial, destacava-se o interesse por aproximaes de incidncia

    sociolgica, designadamente na anlise das organizaes partidrias de mbito

    5 Bruni Groppo e Bernard Pudal, Une realit multiple et controverse,in Le sicle des communismes (Dir. de Michel Dreyfus, Bruno Groppo, Cludio Ingerflom, Roland Lew, Claude Pennetier, Bernard Pudal e Serge Wolikow), Paris, ditions de LAtelier, 2000, p. 206 Cf. Franois Fejt, As Democracias Populares, 2 vols, Mem Martins, Publicaes Europa-Amrica, 1975 (1969); Fernando Claudn, A Crise do Movimento Comunista, 2 vols, S. Paulo, Global Editora, 1986 (1970)7 Annie Kriegel, Aux origines du communisme franais (1914-1920), 2 vols., Paris, La Haye, Mouton, 19648 Annie Kriegel, Les Communistes franais: essai d'ethnographie politique, Paris , Seuil, 1968.

    17

  • territorial, das estruturas de direco intermdia, da expresso eleitoral ou da histria

    poltica de perodos obscurecidos pelas vises mais hagiogrficas e legitimadoras

    produzidas pelos partidos comunistas.

    Ao longo de toda essa dcada, os investigadores que se reuniam volta de

    Communisme evoluiriam por percursos e reas de interesse diferenciadas, abraando

    campos de anlise relacionados com a composio estrutural do discurso comunista, as

    representaes prevalecentes na construo das memrias partidrias ou sobre as

    diferentes genealogias que desembocavam no Partido, fossem de natureza

    prosopogrfica ou da arqueologia das ideias, das tendncias e dos veios doutrinrios.

    De algum modo, esta abertura nos estudos sobre o comunismo verifica-se

    tambm nos EUA, como resposta ao relativo abrandamento que a Guerra Fria

    experimentava num quadro de abertura, e tambm de desagregao, da prpria Unio

    Sovitica, trazendo aos estudos nestas matrias temticas sociais e polticas que

    estimulariam interpretaes diferenciadas e em contradio com interpretaes at a

    dominantes na Academia americana, poltica e ideologicamente enquadradas num

    contexto acirrado de Guerra Fria.

    Estes estudos, designadamente a propsito da apreciao histrica dos legados

    de Lenine e de Estaline, da anlise das questes relacionadas com a colectivizao da

    terra, da eficcia do Partido e do Estado na aplicao das suas polticas ou mesmo na

    anlise da expresso e da funo da violncia do regime tornavam-se um reverso da

    corrente dominante e, como tal, tidos, do ponto de vista donde emergiam por

    diferenciao, como revisionistas

    Mas, curiosamente, a imploso da Unio Sovitica em vez de proporcionar o

    adensamento e o aprofundamento analtico e interpretativo fez antes reemergir novas

    formas de instrumentalizao, agora predominantemente de sentido contrrio.

    A abertura dos arquivos soviticos disponibilizando massas documentais

    imensas, suscitaram um intenso alvoroo, partilhado por historiadores e politlogos,

    mas tambm por jornalistas, com casos em que, cedendo num terreno resvaladio,

    prevaleceu a avidez por grandes e retumbantes revelaes sadas da poeira dos arquivos,

    principalmente dos arquivos soviticos, toldando resultados, que nesse fulgor foram

    diluindo ou obscurecendo o carcter cientfico, alimentando a especulao ou guiando-

    se por interpretaes meramente conspirativas e fulanizadas dos acontecimentos numa

    espcie de diabolizao do comunismo assente na manipulao de fundos preconceitos

    de natureza poltica e ideolgica.

    18

  • No fundo, reactualizava, em bases novas, pois sobre a imploso do bloco dito

    socialista, de uma corrente antiga, estruturada principalmente no contexto da guerra fria,

    onde o paradigma explicativo desenhado a partir dos Estados Unidos da Amrica

    assemelhava fascismo e comunismo como faces iguais do totalitarismo. Eram claros os

    seus objectivos polticos e ideolgicos, beneficiando da j referida cobertura acadmica,

    como era o caso dos Estudos Russos na Hoover Institution.

    Esta reorientao aguerrida reflectiu-se no campo acadmico. Logo em 1993,

    ainda em vida de Annie Kriegel, um importante conjunto de colaboradores da

    Communisme afastar-se-ia em divergncia clara com a direco de Stphane Courtois, e

    dos seus mais prximos colaboradores, que promovero a publicao do Livro Negro do

    Comunismo 9, onde se sustentam conceitos apriorizados, assentes numa

    sobrevalorizao absoluta da violncia na caracterizao do comunismo e sua

    decorrente criminalizao, bem como na identificao amalgamada e

    descontextualizada social, poltica e ideologicamente entre comunismo e fascismo.

    Segundo Courtois, no estudo introdutrio obra, O nosso propsito no fazer

    aqui uma qualquer espcie de macabra aritmtica comparativa, nem uma

    contabilidade em partidas dobradas do horror, ou uma hierarquia da crueldade. Os

    factos so teimosos, no entanto, e mostram que os regimes comunistas cometeram

    crimes que afectaram cerca de cem milhes de pessoas, contra os cerca de 25 milhes

    de pessoas do nazismo. Esta simples verificao deve pelo menos incitar-nos a uma

    reflexo comparativa sobre a similitude entre o regime que foi considerado a partir de

    1945 como o mais criminoso do sculo e um sistema comunista que conservou, at

    1991, toda a sua legitimidade internacional, que ainda hoje est no poder em vrios

    pases e que continua a ter adeptos em todo o mundo10.

    Naquele contexto histrico retomavam-se afinal, revigoradas, as teses que

    haviam controvertido a historiografia alem a partir da tentativa de relativizao do

    peso, ordem de grandeza e do prprio significado dos crimes do nazismo empreendida

    por Ernst Nolte, procurando explic-los como reaco mecnica ao terror bolchevique11.

    A diferena, qualitativa, reconheamo-lo, que essa retoma se procurava

    basear na enorme massa documental que se abria a partir principalmente dos arquivos

    soviticos, que levou, como j referimos, a que se falasse de revoluo documental. E

    9 Stphane Courtois (Direco de), Livro Negro do Comunismo. Crimes, terror e represso, Lisboa, Quetzal, 199810 Stphane Courtois, Os crimes do comunismo, ob. cit., p. 3111 Cf. Devant lHistoire. Les documents de la controverse sur la singularit de lxtermination des Juifs par le regime nazi, Paris, ditions du Cerf, 1988 e Ernst Nolte, La guerre civil europenne. 1917-1945, Paris, ditions des Syrtes, 2000

    19

  • em boa medida era-o, atendendo s caractersticas do prprio centro comunista

    internacional que alimentava uma espcie do culto do documento do relatrio, do

    informe, do telegrama, da carta, do processo individual.

    Porm, o enorme efeito exercido sobre este tipo de historiografia diminuiu a

    prpria crtica da fonte, como se a verdade repousasse exclusivamentenos documentos

    que finalmente se abriam ao historiador, permitindo passar, segundo esse ponto de vista,

    de uma espcie de pr-histria do comunismo verdadeira e irrefutvel histria.

    Deste modo, para muitos dos autores do Livro Negro...., to poderoso fluxo

    documental vinha sobretudo confirmar um conjunto de juzos e asseres previamente

    estabelecidos, nem que para isso fosse necessrio ajustar factos e acontecimentos, numa

    espcie de positivismo recauchutado em que, como j foi sublinhado, a partir de uma

    tomada de posio ideolgica que permite contar de antemo com a resposta dada, se

    torne desnecessrio que o investigador coloque verdadeiras questes 12.

    certo que no Livro Negro..., o ensaio de Stphane Courtois suscitaria desde

    logo contestao quanto ordem de grandeza dos crimes do comunismo por alguns

    dos prprios co-autores da obra, designadamente Nicolas Werth, para quem, alm disso,

    a comparao entre nazismo e comunismo era desadequada, vincando as diferenas

    qualitativas entre ambos os regimes.

    Werth, ainda que concordando com uma profunda similitude, uma espcie de

    ncleo duro dos totalitarismos comum ao nazismo e ao comunismo, distancia-se no

    entanto de Courtois, fundamentalmente quanto ao carcter desta comparao, o que tem

    implicaes, evidentemente, ao nvel quer do plano de incidncia analtica em que se

    coloca quer quanto s prprias ferramentas metodolgicas utilizadas. Para Nicolas

    Werth h uma tenso extrema no comunismo, e constante entre os vencidos do regime

    e os seus camaradas ortodoxos. Nunca se viram arrependidos do nazismo, antigos

    militantes nazis que criticassem ou tentassem reformar o sistema a partir de dentro. O

    nazismo, pelo contrrio, a adequao total da doutrina e da realidade. O comunismo

    o divrcio entre a doutrina e a realidade 13

    Quanto a este aspecto, os argumentos de Werth no deixam de ser interessantes,

    porque descolando, demarcando-se, mesmo que parcialmente, da rigidez interpretativa

    dominante no Livro Negro, reconhecendo implicitamente a importncia de uma

    12 Elvira Concheiro Brquez, Los comunistas del siglo XX como movimiento revolucionrio, fuerza de estado y corriente intelectual, in Blazquez Graf, Norma, et.al., Jornadas Anuales de Investigacin 2004, Mexico CEIICH-UNAM, 2005, p. 175

    13 Nicolas Werth, Communisme: Lheure du bilan, in LHistoire, 217, Janeiro de 1988, p. 8

    20

  • anlise contextualizada do comunismo, vem estabelecer, por outro lado, alguns laos

    com o grupo de historiadores que, em assumida oposio e divergncia, vir a publicar

    a obra colectiva Le Sicle des Communismes 14, coordenado por uma vasta equipa de

    historiadores franceses, entre os quais Claude Pennetier, Bernard Pudal ou Serge

    Wolikow.

    A respectiva introduo, colectiva, comea justamente pela recusa de uma viso

    unilateral da histria do comunismo, pois Se h pressuposto que esta obra gostaria de

    revogar sem margem para dvidas apesar de, como qualquer preconceito, ela conter

    a sua quota-parte de realidade o da unicidade daquilo a que se convencionou

    chamar o comunismo no sculo XX. Do passado de uma iluso aos crimes do

    comunismo, o principal erro consiste na utilizao acrtica do artigo singular e na

    vontade de reduzir, por consequncia, o comunismo a uma propriedade fundamental

    (o crime de Estado, a utopia, uma religio secular, etc) 15.

    O que esta corrente nos tem trazido so olhares diferenciados sobre o

    Comunismo no contexto de mltiplas e distintas conjunturas, apontando para registos

    mais complexos, convocando nveis de interaco e procurando especificidades e

    identidades que permitam um quadro policromo, ainda que desenhado a partir de uma

    mesma matriz, de um mesmo tronco que se foi ramificando e adquirindo feies

    distintas. Da o comunismo olhado no plural.

    H como que uma abordagem social do fenmeno, em sentido lato, traduzindo-

    se na preocupao de fazer interagir os diferentes nveis de integrao histrica,

    designadamente o poltico, o social e o cultural.

    evidente que radica aqui uma outra recusa, que a da supremacia do poltico

    na anlise e na explicao histricas do comunismo, trao prevalecente na historiografia

    de esquerda at aos anos setenta do sculo passado, incluindo a que se colocava

    criticamente face s experincias histricas analisadas e se demarcava tanto dos pontos

    de vista apologticos como dos pontos de vista preconceituosamente anticomunistas.

    Mas era, sem dvida, o importante contributo trazido por esta abordagem, pois

    vinha invocar a necessidade de distanciamento e objectividade, afastando-se do

    maniquesmo analtico e interpretativo, ainda que tendesse, como tambm j

    assinalmos, a desvalorizar fora do quadro de anlise justamente o contributo de

    militantes polticos, como Gramsci ou Trotsky, na leitura crtica, eminentemente

    14 Michel Dreyfus, Bruno Groppo, Cludio Ingerflom, Roland Lew, Claude Pennetier, Bernard Pudal e Serge Wolikow, Le Sicle des Communismes, Paris, ditions de LAtelier, 200015 Ob. Cit. [Edio Portuguesa]., Lisboa, Editorial Notcias, 2004, p. 9

    21

  • poltica, do prprio processo tal como estava a ser vivido e como era, desse ponto de

    vista, olhado por esses e outros autores, eles prprios simultaneamente actores e

    analistas polticos e histricos.

    Mas, no fundo, e de novo, o que parece acantonar-se na raiz desta necessidade

    de distanciamento e de objectividade, que o enquadramento acadmico sancionaria, o

    apelo a uma espcie de vacina contra os efeitos nefastos das paixes do tempo sobre a

    investigao histrica, como que querendo colocar-se acima dessas paixes e no as

    assumindo no quadro do que de relativo e de plural todo o conhecimento histrico

    transporta.

    Mesmo sem sustentar o primado do poltico, insistimos em sublinhar a

    importncia desta instncia numa equilibrada apreciao do comunismo, que foi sempre

    fundamental na configurao das diferentes experincias histricas, exercendo um efeito

    poderoso sobre as prprias dimenses sociais, culturais e econmicas ainda que em

    funo delas tenha, evidentemente, logrado adaptaes e especificidades que no podem

    ser subestimadas.

    Porm, a crtica identificao simplificada e descontextualizada entre fascismo

    e comunismo no quadro dos totalitarismos prevalece como contribuio maior desta

    corrente ao debate travado na historiografia e no campo das cincias sociais em torno

    destas matrias, implicando todo um esforado conjunto de desenvolvimentos ao nvel

    da investigao, que permitiu que o conhecimento avanasse em domnios como a

    sociologia poltica e eleitoral, os estudos em torno da memria ou das representaes

    polticas no quadro dos comunismos.

    Por esta via, olha-se a aco dos comunistas na justa proporo em que nem

    reflectem exclusivamente as determinaes do centro do sistema internacional nem

    constituem por si s resposta nacional s realidades sobre as quais actuam. Trata-se, por

    um lado, de perceber as dinmicas e tenses internas, socialmente tecidas e, por outro,

    os laos estabelecidos com o centro do sistema de que no deixam nunca de ser parte

    integrante, por mais perifrica que seja a sua posio nesse contexto.

    A tenso que estas duas dimenses estebelecem entre si, constitui um veio

    fecundo de anlise, que permite calibrar o modo como o comunismo se inscreveu nos

    diferentes espaos nacionais no curso do sculo que passou.

    Essa inscrio no dispensa, por outro lado, a distino entre o comunismo

    como utopia social e como prtica concreta de poder de estado. Entroncando na grande

    tradio revolucionria contempornea que protagonizou o combate contra as

    22

  • desigualdades sociais e quis como que completar os desgnios incumpridos da

    Revoluo francesa, o comunismo tornou-se ramo vioso da rvore frondosa dos

    socialismos, enraizada no combate ao capitalismo. Mas, ao desembocar, aps a

    Revoluo de Outubro e em particular aps a Segunda Guerra Mundial, em rudes e

    perversos sistemas de poder, se afastou, por vezes de modo dramtico e repulsivo, da

    generosidade da utopia comunista, sonhada e perseguida por geraes de trabalhadores,

    de militantes e de revolucionrios.

    Nesta moldura, a historiografia nacional sobre os Partidos Comunistas

    reconhece o cruzamento destas duas dimenses, procurando reflectir quer os ritmos e

    pulses que decorrem das especificidades dos processos histricos de cada pas quer os

    laos de subordinao que os ligam ao centro do sistema, aspecto que decorrendo

    directamente do princpio da defesa da Unio Sovitica como ptria do socialismo

    imps uma lgica centrpta de funcionamento, com todas as implicaes e tenses da

    resultantes.

    A sobrevalorizao de qualquer destas dimenses restringe a amplitude de

    anlise e diminui o alcance interpretativo, porque torna-se to insuficiente estudar um

    partido comunista em si sem atender tanto sua dinmica e s suas tenses internas,

    como aos laos sociais que estabelece e, evidentemente, s relaes internacionais de

    que matricialmente enformado.

    Em Portugal, os estudos sobre o comunismo mantm, no entanto, um ritmo de

    desenvolvimento lento e modesto, reflectindo o atraso do mundo acadmico em relao

    matria.

    Na verdade, impossvel estabelecer com outros pases, designadamente

    europeus, como a Frana ou a Itlia, qualquer esboo comparativo quanto ao

    desenvolvimento da investigao sobre o comunismo antes do mais por uma questo de

    escala que resulta do enorme atraso, de dcadas, imposto pela ditadura, que cerceou e

    impediu que se desenvolvessem estudos no s sobre o comunismo, como sobre a

    prpria Histria Contempornea em geral, como se sabe.

    Nem na sua fase final, com o marcelismo, o regime permitiu que se

    desenvolvessem estudos sobre o PCP, como no houve sequer estudos significativos

    numa perspectiva anticomunista.

    Mas creio ser justo comear por referir o projecto de Manuel Villaverde Cabral,

    a partir do exlio francs, na esteira das preocupaes suscitadas por essa original

    experincia que foi a publicao dos Cadernos de Circunstncia entre 1967 e 1970. A

    23

  • necessidade de conhecer a realidade portuguesa, de modo objectivo, concreto estendeu-

    se ao projecto, a que se juntou Fernando Medeiros, de ir procura das origens da classe

    operria e das suas primeiras formaes orgnicas, que se haviam como que sumido sob

    a hegemonia cultural duradoura do PCP, que imps como verso dominante a sua viso

    e a sua reprersentao da histria do movimento operrio, tratando de diminuir e

    desvalorizar os mltiplos veios que inclusivamente estiveram historicamente na sua

    prpria origem.

    O operariado nas vsperas da Repblica 16, Portugal na Alvorada do sculo

    XX17, de Manuel Villaverde Cabral, como A sociedade e a ecomia portuguesas nas

    origens do salazarismo 18, de Fernando Medeiros, publicados mais tarde, resultado

    desse esforo, constituem porventura a mais fecunda base em que assentam os nossos

    estudos operrios, ainda que expresso de uma preocupao e de inteno vincadamente

    militantes.

    Foi apenas atravs de brechas estreitas, em corajosas edies de autor

    enquadradas por novssimas editoras, como a Afrontamento ou a Assrio & Alvim que

    se foram publicando antologias e ensaios de iniciativa voluntarista de jovens activistas

    da esquerda radical. Era uma gerao de jovens marxistas ou de influncia marxista,

    porm em ruptura ou margem do PCP, como Csar Oliveira ou Jos Pacheco

    Pereira, que entram pela histria do movimento operrio, que a procuram escrever,

    procurando resgatar dos velhos jornais, de outra documentao conservada no

    estrangeiro, o no dito pela verso legitimada, oficiosa veiculada pelo prprio

    partido19.

    Questes do Movimento Operrio e a Revoluo Russa de 1917 20, de Pacheco

    Pereira, editada em 1971 constitui, por isso, como que um marco novo nesta

    historiografia ainda to balbuciante e incipiente.

    A tradio de uma histria militante, produzida pelo prprio PCP era igualmente

    inexistente, mesmo para o perodo fundacional, que no deixara qualquer tipo de

    continuadores depois de Bento Gonalves21.A histria militante, instrumental,

    continuar a ter, mesmo depois do 25 de Abril e at hoje, uma expresso muito dbil e

    fragmentada, dada a determinao do prprio PCP em no escrever a sua prpria 16 Manuel Villaverde Cabral, O operariado nas vsperas da repblica (1909-1910), Lisboa, Presena/GIS, 197717 Manuel Villaverde Cabral, Portugal na alvorada do Swculo XX, Lisboa, A Regra do Jogo, 197918 Fernando Medeiros, A sociedade e a economia portuguesas nas origens do salazarismo, Lisboa, A Regra do Jogo, 197819 Joo Madeira, Os novos remexedores da Histria, in Batalha pelo Contedo, Vila Franca de Xira, Museu do Neo-Realismo, 2007, p. 33020 Jos Pacheco Pereira, Questes do Movimento Operrio e a Revoluo Russa de 1917, Porto, ed. Autor, 197121 Bento Gonalves, Palavras Necessrias, Porto, Inova, 1974

    24

  • histria oficial.

    Ser precisamente em ruptura com o PCP que Francisco Martins Rodrigues

    publica desde a clandestinidade textos de inteno ou cariz histrico22, onde procura

    legitimar a ruptura poltica que protagonizava; aspecto que aprofunda j na priso, em

    finais dos anos 60, atravs de um ensaio breve sobre a Histria do movimento operrio 23, abrindo, no fundo, caminho aos escritos que vimos referindo desses anos e dos

    primeiros de 70, a que os seus autores procuravam, todavia, conferir suporte documental

    e maior densidade analtica.

    Esta tendncia prossegue pelos anos de 1974-76, com a publicao de um

    conjunto de textos volta da histria do PCP, incidindo em particular sobre os

    primeiros anos de vida do partido quer sobre ao anos 30, como o de Csar Oliveira24,

    Joo Quintela 25 ou L. H. Afonso Manta, pseudnimo de Nuno Rebocho 26.

    Ainda no final dos anos 70, Ramiro da Costa, pseudnimo de Jos Alexandre

    Magro, empreende uma primeira tentativa de sntese sobre a histria do PCP 27,

    enquadrada, certo, numa obra mais geral que pretendia abarcar todo o movimento

    operrio, mas que no conseguir escapar viso militante genealogicamente filiada na

    tradio interpretativa aberta por Francisco Martins Rodrigues.

    Mas ser efectivamente a revista Estudos sobre o Comunismo, a constituir, como

    refere Pacheco Pereira, a primeira revista dedicada ao estudo cientfico e histrico do

    comunismo portugus 28. Na revista, com sete nmeros publicados entre 1983 e 1986,

    renem-se historiadores vindos da esquerda radical, como Pacheco Pereira, Ramiro da

    Costa, Antnio Moreira ou Fernando Rosas e outros como Manuel Sertrio, um

    trotskista no alinhado de longo percurso poltico durante a ditadura, que o levara da

    antiga Juventude Socialista do segundo ps-guerra FPLN de Argel.

    No editorial do seu nmero inicial, esto efectivamente plasmados os

    respectivos objectivos: A publicao de revistas de estudos sobre o comunismo, em

    particular a recente revista francesa Communisme , constituiu para ns um incentivo

    para lanarmos, com as adaptaes e, principalmente, as limitaes correspondentes 22 Cf. Por exemplo, A unidade em 1944/49. Uma experincia acutal, in Revoluo Popular, 5, Julho de 1965, Edio Completa 1964-65 (fac-simile), Lisboa, Voz do povo, s.d., pp 122-13323 Francisco Martins Rodrigues, Elementos para a Histria do Movimento Operrio Portugus, s.l., s.e., s.d.24 Csar Oliveira, O Primeiro Congresso do Partido Comunista Portugus, Lisboa, Seara Nova, 197525 Joo G. P. Quintela, Para a Histria do Movimento Comunista em Portugal: 1. A construo do Partido (1 Perodo 1919-1929), Porto, Afrontamento, 197626 L. H. Afonso Manta, O 18 de Janeiro de 1934 e A Frente Popular Antifascista em Portugal, Lisboa, Assrio & Alvim, 1975 e 1976, respectivamente27 Ramiro da Costa, Elementos para a Histria do Movimento Operrio em Portugal 1820-1975, 2 volume 1930-1975, Lisboa, Assrio & Alvim, 197928 Jos Pacheco Pereira, Enxofre, in http://alvarocunhalbio.blogspot.com/2006/01/jos-pacheco-pereira-enxofre.html

    25

    http://alvarocunhalbio.blogspot.com/2006/01/jos-pacheco-pereira-enxofre.html

  • s nossas possibilidades, um boletim destinado a estudar a experincia do comunismo

    portugus numa perspectiva ampla, interdisciplinar e comparativa. A anlise histrica

    e sociolgica, o estudo das mentalidades e do comportamento eleitoral, a cincia

    poltica e anlise semntica e lexical do discurso comunista, todas as aproximaes

    so bem-vindas 29.

    Deste ponto de vista e escala do pas, Estudos sobre o Comunismo, vinha

    impor-se como marco fundacional. O seu prprio corpo redactorial se em larga medida

    mantinha essa origem militante radical, abria-se metodologicamente, bebia em boa

    medida na influncia da historiografia francesa sobre o comunismo, sem deixar de

    reflectir necessariamente uma pluralidade de sensibilidades que o tempo se encarregaria

    de diferenciar e clarificar.

    Ficava, todavia, de fora do corpo da revista, Joo Arsnio Nunes, cujo percurso

    universitrio lhe permitiria, sem enjeitar um quadro de proximidade militante com o

    Partido Comunista, contribuir nesta rea com um importante conjunto de ensaios pelos

    anos oitenta e noventa, marcados pela seriedade, pelo rigor e pela consistncia analtica 30.

    Na primeira das obras de conjunto sobre a Oposio ao Estado Novo em

    Portugal 31, Dawn L. Raby dedica uma parte significativa ao PCP, que vinha alis

    desenvolvendo em ensaios anteriores desde meados dos anos 80 32. A obra de Raby,

    com um distanciamento mitigado em relao linha interpretativa introduzida por

    Francisco Martins Rodrigues, traz efectivamente de novo o recurso aos processos

    judiciais, permitindo-lhe carrear, ainda que limitadamente, um conjunto de

    documentao apensa, efectivamente nova, que havia sido apreendida e tornada matria

    de prova.

    Com enquadramento acadmico, Carlos Cunha, nos Estados Unidos, produz

    uma sntese da histria do PCP 33, ainda que muito breve, superficial e assente apenas

    em fontes secundrias. Apesar da abertura do arquivo da PIDE e dos arquivos 29 Editorial, in Estudos sobre o Comunismo, 0, Julho de 1983, p. 130 Cf. por exemplo Joo Arsnio Nunes, Sobre alguns aspectos da evoluo poltica do Partido Comunista Portugus aps a reorganizao de 1929 (1931-33), in Anlise Social, 67-68, 1981, pp 715-731; La Formation de la Stratgie Antifasciste du Parti Communiste Portugais, 1926-1935, in Mikhail Narinsky e Jrgen Rojahn (Edited by) Centre na Periphery. The History of the Comintern in the Light of New Documents, Amsterdam, International Institute of Social History, 1996, pp 218-2C6 ou O Camarada Ren e a Juventude Comunista no princpio dos anos 30, in Antnio Dias Farinha, Jos Nunes Carreira e Vtor Serro (Coordenao de), Uma Vida em Histria. Estudos em Homenagem a Antnio Borges Coelho, Lisboa, Centro de Histria da Universidade de Lisboa/Editorial Caminho, 200131 David. L. Raby, A Resistncia Anti-fascista em Portugal 1941-1974, Salamandra, Lisboa, 199032 Cf, designadamente, David L. Raby, O problema da Unidade Anti-Fascista: o PCP e a candidatura do General Humberto Delgado em 1958, in Anlise Social, 72-74, 1982, pp 869-883 ou A crise ideolgica da Oposio: o PCP de 1949 a 1957, in O Estado Novo das Origens ao fim da Autarcia, II, Lisboa, Fragmentos, 1987, pp 47-5833 Carlos Cunha, The Portuguese Communist Partys. Stategy for Power 1921-1986, New York/London, Garland Publishing, Inc., 1992

    26

  • soviticos, em trabalhos mais recentes, Cunha mesmo quando orientado para as ligaes

    do PCP ao movimento comunista internacional, tem, tanto quanto nos foi possvel

    apurar, reflectido pouco a reactualizao dos seus trabalhos luz desses importantes

    arquivos 34.

    Em trabalhos e intervenes parcelares, designadamente em obras colectivas,

    assinalam-se alguns captulos e entradas que constituem interessantes ensaios de sntese,

    embora condicionados pela especificidade dos contextos editoriais em que se

    integravam. o caso do volume VII da Histria de Portugal 35, do Dicionrio de

    Histria do Estado Novo 36 ou dos volumes 7, 8 e 9 do Dicionrio de Histria de

    Portugal 37.

    Todavia, os anos 90 parecem ter de algum modo alterando a situao anterior,

    com a publicao de um conjunto de obras de referncia no estudo sobre o comunismo

    em Portugal, designadamente em torno da Histria do PCP. So fundamentalmente,

    trabalhos de enquadramento acadmico e de incidncia sectorial, quer reportando-se

    clandestinidade 38, s relaes entre os intelectuais e o Partido Comunista 39, ao PCP e

    questo colonial 40, ao PCP no quadro do exlio poltico em Frana e Espanha no

    perodo entre-guerras 41, a aspectos da histria do PCP na perspectiva da represso

    exercida pela PIDE/DGS 42 ou, mais recentemente questo do nacionalismo no Partido

    Comunista 43.

    Tambm no domnio da Cincia Poltica e da Antropologia se realizaram

    incurses nestas matrias, como a colectnea de ensaios de Carlos Gaspar e Vasco Rato 44 ou as teses de Paula Godinho 45 e Ins Fonseca 46.

    34 Carlos Cunha, Nacionalist or Internationalist? The Portuguese Communist Partys and the Communist International, in Tim Rees and Andrew Thorpe (edited by), International Communism and the Communist International 1919-43, Manchester/New Yorrk, Manchester University Press, 1998, pp 168-186 e"Cat and Mouse: Conducting Research in a Russian Archive," in Portuguese Studies Review, V (2), Inverno - Primavera 1996-1997, pp 37-5135 Fernando Rosas, Histria de Portugal (Direco de Jos Mattoso), Stimo Volume, s.l., Crculo de Leitores, 199436 Fernando Rosas e J.M. Brando de Brito (Direco de), Dicionrio de Histria do Estado Novo, 2 volumes, s.l., Crculo de Leitores 199637 Antnio Barreto e Maria Filomena Mnica (Coordenadores), Dicionrio de Histria de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999 e 200038 Cf. Jos Pacheco Pereira, A sombra. Estudo sobre a clandestinidade comunista, Lisboa, Gradiva, 199339 Cf. Joo Madeira, Os Engenheiros de Almas. Os Intelectuais e o Partido Comunista, Lisboa, Estampa, 199640 Cf. Judith Manya, Le Parti Communiste Portugais et la question coloniale (1921-1974), Thse de doctorat en Science politique, Bordus, CEAN, 2004 41 Cf Ana Cristina Clmaco Pereira, Lxil portugais en France et en Espagne. 1927-1940, Thse pour le doctorat de lUniversit de Paris VII (Denis Diderot), mention Sciences Occidentales, Paris, GHSS, 198842 Cf. Irene Flunser Pimentel, A histria da PIDE, Lisboa, Crculo de Leitores/Temas e Debates, 200743 Cf. Jos Neves, Comunismo e nacionalismo em Portugal. Poltica, Cultura e Histria no sculo XX, Lisboa, Tinta da China, 200844 Cf. Carlos Gaspar e Vasco Rato, Rumo Memria. Crniucas da crise comunista, Lisboa, Quetzal, 199245 Cf. Paula Godinho, Memrias da Resistncia Rural no Sul, Oeiras, Celta, 200146 Cf. Ins Fonseca, Trabalho, Identidade e Memrias em Aljustrel. Levvamos a foice logo pra mina, s.l., 100 Luz, 2007

    27

  • A essas obras juntam-se ensaios e comunicaes a colquios 47 , a obras

    colectivas48 ou a publicao em revistas, inclusivamente de divulgao como a Histria.

    Mas, sem obras de sntese, sem uma histria do PCP, nos ltimos quinze anos, a

    publicao dos trs primeiros volumes da biografia poltica de lvaro Cunhal, de Jos

    Pacheco Pereira 49 constituiu o que de mais se aproximou dessa perspectiva.

    Oscilando entre o enunciado carcter biogrfico e uma histria do PCP, a

    procura de equilbrio tendo-se revelado instvel at ao momento, vem no entanto

    beneficiando este ltimo aspecto, ao reequacionar e reescrever sobre uma intrincada

    trama de protagonistas, equilbrios internos, tenses e contradies fortes, precisando

    factos, desmontando verses dadas como adquiridas, ensaiando a delimitao onde

    questes polticas e questinculas pessoais se misturam, onde presses externas e

    dinmicas internas conflituam.

    Esse pendor menos biogrfico vem-se adensando medida que o seu percurso

    como dirigente clandestino do PCP se acentua, at pela prpria carncia de elementos

    documentais, para mais dessa estrita natureza.

    H, no entanto, apesar do alinhamento assumido de Pacheco Pereira em relao

    corrente do Livro Negro sobre o Comunismo, bem expressa alis no prefcio edio

    portuguesa 50, um distanciamento face a uma construo marcadamente apriorstica, sem

    que da resulte inocuidade ou esterilizao de pontos de vista, ressaltando

    inclusivamente uma certa empatia com o esforo humano da gerao de militantes,

    quadros e dirigentes e em particular do prprio biografado.

    A grande questo que actualmente se coloca aos estudos sobre o comunismo

    assenta fundamentalmente na possibilidade e na capacidade de diversificar planos de

    abordagem, contextualizando e articulando as dimenses que o configuram e podem

    explicar. Tem sido justamente na seriedade, no rigor da utensilagem metodolgica, e no

    esforo de distanciamento que se tem colocado o eixo da questo, sem intimidar nem

    constranger a liberdade do historiador tomar para si o conjunto de preceitos, o modelo

    ou a escola histrica que, do seu ponto de vista, melhor correspondem e se adequam ao

    lugar que socialmente tomou como seu.

    47 Cf. Colquio Mundo Rural, Transformaes e resistncias no sculo XX, CEEP e IHC, Lisboa, 2000; Colquio Estaline em Portugal, CH da FLL, Lisboa, 2003; Congresso Internacional O Artista como Intelectual. No Centenrio de Fernando Lopes Graa, CEIS20, Coimbra, 2006 ou Colquio Oposies ao Estado Novo. Histria e Memrias, CEIS20, Coimbra, 200848 Cf. Fernado Rosas e Pedro Aires de Oliveira, (Coordenao de ), A transio falhada. O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1974), Lisboa, Editoria Notcias, 2004; 49 Jos Pacheco Pereira, lvaro Cunhal. Uma biografia poltica, 1. 1913-1941. Daniel, o jovem revolucionrio; 2. 1941-1949. Duarte, o dirigente clandestino; 3. 1949-1960. O Prisioneiro; Lisboa, Temas e Debates, 1999, 2001 e 2005, respectivamente50 Cf. Jos Pacheco Pereira, Chamar ao negro negro, ao branco branco, in Stphane Courtois e tal., O Livro Negro, pp 9-13

    28

  • Esta heterogeneidade, mesmo antagonismo de pontos de vista, tem no campo da

    histria, enquanto espao de conhecimento numa sociedade aberta, um terreno de tenso

    e de debate dialecticamente fecundos.

    Relatividade do conhecimento, pluralidade interpretativa e tenso no debate

    cientfico constituem por isso caractersticas a cruzar saudavelmente o campo da

    Histria, da Histria do Comunismo, tambm.

    2. Os Mtodos, as fontes e a bibliografia

    A literatura de partido recorreu invariavelmente langue de bois, um discurso

    codificado, cuidadosamente construdo, pontuado por uma substantivao e por uma

    adjectivao prprias, eivado de intenes no domnio da propaganda e da agitao, que

    evidencia o que entende, mas que esconde o essencial do processo que levou at esse

    resultado, produto para ter um efeito intencionalmente mobilizador e multiplicador.

    Durante muitos anos, as histrias sobre os partidos comunistas foram

    construdas a partir fundamentalmente da imprensa partidria e dos documentos

    publicados, bem como das memrias dos militantes.

    Em Portugal, contudo, para o perodo da ditadura, o acesso a sries completas de

    imprensa clandestina tornou-se difcil, apesar de se tratar de documentao publicada. A

    coleco microfilmada da VI srie do Avante! (1941-1974), rgo central do PCP,

    existente nos Reservados da Biblioteca Nacional, apesar de incompleta foi durante

    muito tempo o nico acervo disponvel de acesso pblico.

    S muito recentemente, em Maro de 2008, foram colocados on line pelo PCP

    os 464 nmeros da coleco completa da VI srie 51, que abrange todo o perodo

    ps-reorganizao, ainda que sries anteriores do rgo central do PCP j estivessem

    disponibilizadas nos sites do Instituto de Cincias Sociais e da Fundao Mrio Soares.

    Quanto a O Militante, o boletim de Organizao, cuja III srie se publicou

    tambm entre 1941 e 1974, a situao tornou-se ainda mais complicada, tendo sido

    necessrio proceder reproduo de praticamente toda a coleco, constituda por 182

    nmeros publicados, a partir dos apensos de diversos processos judiciais do Tribunal

    Plenrio de Lisboa e dos exemplares depositados na Fundao Mrio Soares.

    Foi possvel localizar no Arquivo da PIDE, um dossier oriundo presumivelmente

    do Gabinete Tcnico, com uma coleco completa da publicao destinada s 51 Cf www.pcp.pt

    29

    http://www.pcp.pt/

  • funcionrias das casas clandestinas do PCP, cuja publicao se iniciou em Janeiro de

    1946 sob o ttulo 3 Pginas e que se passou a designar A Voz das Camaradas das Casas

    do Partido a partir de Junho de 1956.

    Reportamo-nos em particular a estes ttulos, pela sua importncia, ainda que

    outros meream ser igualmente considerados, no obstante acrescidas dificuldades de

    localizao e de anlise de conjunto, como so, designadamente, O Campons, dirigido

    aos assalariados rurais do sul (122 nmeros publicados entre 1946 e 1968), O

    Corticeiro, para os operrios do sector da cortia (44 nmeros editados entre 1955 e

    1967), O Txtil, para o respectivo sector industrial (70 nmeros entre 1956 e 1974), a

    Terra, dirigido aos camponeses do Norte e do Centro do Pas, (34 nmeros entre 1949 e

    1974) 52, ou o boletim Portugal/URSS, com cinco nmeros conhecidos publicados em

    1958.

    J no que se refere aos panfletos e comunicados, a situao de extensiva

    disperso, pois no existem coleces completas, mas ncleos principalmente apensos a

    processos judiciais, constituindo por via disso conjuntos parcelares, correspondentes a

    perodos delimitados ou a conjunturas especficas.

    Por outro lado, as memrias dos militantes, extravasando mais ou menos a

    circularidade do discurso poltico, ajuzam da posio e do ponto de vista dos seus

    autores. Tratam-se de representaes sobre experincias de vida, invariavelmente

    construdas sobre um passado vivido e a partir do momento e das circunstncias a partir

    das quais decidem operar esses trabalhos em volta da memria.

    No caso dos dirigentes histricos do PCP, por exemplo, cujas memrias tm

    vindo a ser editadas pelas Edies Avante!, glosam na generalidade a verso oficial dos

    acontecimentos vividos e investem sobretudo em aspectos que sendo ser interessantes e

    de pormenor so pouco substantivos do ponto de vista do detalhe poltico ou incidem

    ento, preferencialmente, na tortura e na vida prisional, tornando-se por vezes

    necessrio perscrutar nas entrelinhas ou em passagens rpidas e quase inadvertidas.

    Francisco Miguel, por exemplo, autor de dois livros de memrias, que se

    publicaram em 1977 e em 1986, mas cuja narrativa sendo basicamente a mesma, vai

    sendo afeioada, sem que, ainda assim, sejam abordados aspectos de substncia. Tendo,

    por exemplo, pertencido ao Comando Central da ARA, Aco Revolucionria Armada,

    organizao armada impulsionada e dirigida pelo PCP, afirma no primeiro destes livros

    52 CF J.M. [Joo Madeira], Imprensa Comunista in Fernando Rosas e J.M. Brando de Brito (Direco de), Dicionrio de Histria do Estado Novo, I, s.l., Crculo de Leitores, 1996, pp 451-454

    30

  • que Da ARA nada sei, mas posso dizer que estava de acordo com a sua orientao e

    com as suas aces 53, enquanto que no segundo dos livros 54, publicado nove anos

    mais tarde, desaparecem mesmo todas as referncias a esta actividade.

    Mas, mais decepcionantes ainda, so as magras memrias publicadas por

    Joaquim Gomes 55, um dos principais dirigentes a partir dos anos 50, que se limita

    praticamente narrativa de episdios desgarrados, que ilustrando aspectos da vida

    clandestina e da vida prisional, adiantam pouco em relao aos perodos em que teve

    um papel particularmente destacado, fosse no Porto nas eleies de 1958, em 1961-62

    no processo de instalao da FPLN ou de novo no interior como responsvel da

    Comisso Executiva nos ltimos anos de ditadura, at ao 25 de Abril.

    Num registo diferente, mas sem se afastar substancialmente deste padro so as

    memrias de ex-dirigentes que se mantiveram sempre prximos do partido, como

    Alexandre Castanheira 56, membro da Comisso Executiva nos ltimos anos 50 e na

    primeira metade da dcada seguinte, cujo registo enovela realidade e aparente fico,

    numa espcie de cortina translcida onde se percebe e insinua uma vida cheia, onde

    cabem as dimenses do afecto e os dramas pessoais cosendo-se com a actividade

    militante, embora cedendo pouco ao aprofundamento da experincia poltica concreta

    vivida.

    Sobre o estado do partido e as divergncias com Francisco Martins Rodrigues

    entre 1961 e 1963, por exemplo, Castanheira resume-as a meia dzia de linhas

    cuidadosamente depuradas de densidade poltica e ideolgica, como se de um fugaz

    incidente se tivesse tratado:

    () o CC decide criar uma Comisso Executiva do Comit Central,

    encarregada de dirigir a luta diria no interior do pas. Formam-na Blanqui Teixeira,

    Martins Rodrigues e Alexandre Castanheira. em casa deste, em Lea da Palmeira

    que a Comisso se rene regularmente, e a que Francisco Martins comea a

    levantar problemas, com ideias sobre a Revoluo chinesa, sobre a necessidade da luta

    armada, etc. Entende-se por isso como til um encontro entre F. Martins e Cunhal 57

    Alguns outros, tendo sido expulsos do PCP dele se reaproximaram depois do 25

    de Abril, como Gilberto de Oliveira, ainda que eivado de um dorido ressentimento 58,

    53 Francisco Miguel, Uma vida na Revoluo, Porto, A Opinio, 1977, p. 16254 Cf. Francisco Miguel, Das prises liberdade (Texto organizado por Fernando Correia), Lisboa, Edies Avante!, 198655 Cf. Joaquim Gomes, Estrias e emoes de uma vida de luta, Lisboa, Edies Avante!, 200156 Cf. Alexandre Castanheira, Outrar-se ou a longa inveno de mim, Porto, Campo das Letras, 200357 Idem, p. 16258 Cf. Gilberto de Oliveira, Memria viva do Tarrafal, Lisboa, Edies Avante!, 1987

    31

  • embora as memrias que deixou no avancem significativamente para alm da sua

    prolongada passagem pelo campo de concentrao do Tarrafal, deixando praticamente

    omisso todo o processo que conduziu sua expulso em 1952.

    Dirigentes de primeira linha recusaram contudo escrever memrias. Srgio

    Vilarigues, por exemplo, que desempenhou desde praticamente o seu regresso do

    Tarrafal, ainda em 1940, um papel destacado no processo de reorganizao, manteve-

    se ininterruptamente no Comit Central e nos seus rgos executivos; foi um apoiante e

    um colaborador muito prximo de Cunhal, cujas posies teria secundado mesmo sob a

    direco de Jlio Fogaa. Todavia, praticamente nem uma palavra sobre a sua

    actividade, parte escassas entrevistas ou artigos memorialsticos completamente

    enquadrados partidariamente.

    J no que se reporta a lvaro Cunhal, conhecida a sua determinao em no

    escrever memrias, enveredaria por uma expressiva actividade literria, sob o

    pseudnimo de Manuel Tiago, onde, no entanto, se reflectiriam aspectos da sua

    experincia pessoal enquanto dirigente partidrio, o que est bem patente em At

    amanh, camaradas, escrito na priso, entre a Penitenciria de Lisboa e o Forte de

    Peniche, focando a riqussima experincia vivida na conjuntura de guerra 59, bem como

    em A Casa de Eullia60, incidindo sobre o perodo em que passou por Espanha quando

    em 1936 deflagrou a guerra civil, ou noutros pequenos volumes de contos em que

    evoca aspectos relacionados com aspectos da vida partidria 61, o aparelho de fronteiras 62 ou a vida prisional 63.

    Tal como alis refere numa pequena nota introdutria a uma destas obras:

    O essencial dos acontecimentos narrados, o fio de cada histria ()

    correspondem a experincias de homens e mulheres que as viveram na vida real. De

    muitos homens e mulheres. Uns hoje j mortos. Outros ainda vivos.

    Apenas, porque escrever contos literatura, porque escrever histrias no

    fazer Histria, porque fico imaginao, fantasia e sonho, em cada um destes contos

    e em cada uma das personagens esto, presentes e fundidos num todo, casos, situaes,

    caractersticas e experincias diversas.

    Nenhuma das histrias foi assim tal e qual. Mas tudo o que se conta em cada

    conto aconteceu. Tudo nestes contos fico e tudo neles realidade.59 Cf. Manuel Tiago, At Amanh Camaradas,, Lisboa, Edies Avante!, 197560 Cf. Manuel Tiago, A Casa de Eullia, Lisboa, Edies Avante!, 199761 Cf. Manuel Tiago, Lutas e Vidas, Lisboa, Edies Avante!, 2001.62; Cf. Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites ou Fronteiras, Lisboa, Edies Avante!, 1975 e 199863 Cf. Manuel Tiago, A Estrela de Seis Pontas ou Sala 3 e outros Contos, Lisboa, Edies Avante!, 1994 e 2001, respectivamente

    32

  • Assim, se o leitor se sentir tentado a acreditar que as coisas se passaram como

    so narradas, pode estar certo de que no se engana em relao verdade histrica 64

    certo que o dirigente histrico do PCP produziu ainda importantes obras e

    textos de anlise experincia do partido, embora muito marcados por

    circunstancialismos conjunturais, como foi o caso da introduo reedio dos

    materiais do IV Congresso do PCP, de 1946 65 ou, ainda antes, da obra O Partido com

    paredes de vidro 66, uma espcie de testamento poltico numa altura em que os anos

    comeavam a pesar sobre si.

    No obstante, tomou em momentos concretos iniciativas que, incidindo sobre a

    experincia histrica do PCP, a queriam projectada no futuro como legitimao

    histrica da correco doutrinria, empreendida afinal praticamente desde a refundao

    partidria de incio dos anos 40. Logo em 1971, em artigo publicado na Revista

    Internacional, que se subintitulava Revista dos partidos comunistas e operrios,

    abordava experincias de meio sculo de actividade do PCP 67. Uns bons anos mais

    tarde, convidado pela Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova

    de Lisboa para proferir uma conferncia no Seminrio Para a Histria da Oposio ao

    Estado Novo do Curso de mestrado em Histria do Sculo XX, aceitou dissertar sobre o

    papel do PCP entre a reorganizao e o 25 de Abril 68.

    Interessante deste ponto de vista a edio de duas intervenes proferidas pelo

    dirigente comunista numa reunio de quadros 69, que representam, ainda que de forma

    dispersa, quase episdica, a verso legitimada de um conjunto de aspectos da histria e

    da vida do Partido Comunista, aqui e ali cirurgicamente revistas.

    Alis, a coleco em que se integra este pequeno opsculo Cadernos de

    Histria do PCP, como ainda nas edies Avante!, a coleco Testemunhos, reflectem

    justamente esta inteno do partido Comunista no escrever a sua prpria histria,

    pontuando-se apenas esse territrio com um conjunto de interpretaes, assumidamente

    parcelares, mas oficialmente assumidas.

    No entanto, ainda que igualmente publicadas nas Edies Avante!, as memrias

    64 Manuel Tiago, Fronteiras, p. 965 Cf. lvaro Cunhal, O IV Congresso do PCP visto 50 anos depois, in O Caminho para o Derrubamento do Fascismo. IV Congresso do Partido Comunista portugus, I Volume, Lisboa, Edies Avante!, 199766 Cf lvaro Cunhal, O Partido com paredes de vidro, Lisboa, Edies Avante!, 1985 (5 edio)67 Cf. lvaro Cunhal, Algumas Experincias de 50 anos de luta do PCP, Lisboa, Edies Avante! 1975 [Artigo publicado na Revista Internacional (Problemas da Paz e do Socialismo), 6, Junho de 1971]68 Cf lvaro Cunhal, O Partido Comunista: da Reorganizao dos anos 40 ao 25 de Abril, Separata do Avante!, 956, 16 de Abril de 199269 Cf. lvaro Cunhal, Duas intervenes, Lisboa, edies Avante!, 1996

    33

  • de Jaime Serra 70 continuando a narrar episdios dispersos, pginas da luta

    clandestina, mais incisivo que a generalidade das memrias de dirigentes e quadros

    que se mantiveram activos durante dcadas. Para isso poder ter contribudo um relativo

    abrandamento do secretismo partidrio, que mesmo em democracia continuasse

    considerada uma das regras de ouro do PCP.

    Objectivamente, parece haver aqui uma coincidncia no tempo com a retirada de

    lvaro Cunhal da actividade partidria de primeira linha e com o seu desaparecimento

    fsico, depois; como que libertando alguns dos seus camaradas da ascendncia e do

    ofuscamento que duradouramente exerceu sobre eles.

    Com alguma surpresa, as edies Avante! reeditariam recentemente um

    manuscrito de Jos Magro, mantido em original durante muitos anos, onde os relatos da

    clandestinidade fogem, ainda que relativamente, superficialidade generalizada 71. Isto

    est, porm, longe de significar que o secretismo tenha sido vencido. A contribuio dos

    militantes na primeira pessoa continua a ser essencialmente decepcionante, ainda que

    importante e incontornvel num quadro compsito de fontes a utilizar.

    Mesmo entre a generalidade dos ex-militantes, onde no abundam sequer muitas

    obras memorialsticas, a atitude no foi substancialmente diferente no que toca ao

    esclarecimento de aspectos, mesmo que estritamente vivenciais, da actividade

    partidria.

    Cndida Ventura, a primeira mulher a ascender ao Comit Central depois da

    reorganizao, onde se manteve por largos anos, com um percurso partidrio

    complexo, publica j depois de abandonar o PCP em 1976 um dos primeiros

    testemunhos pessoais mas em que, do mesmo modo, os aspectos de essncia poltica so

    aligeirados ou revestidos de uma retrica que ensombra as prprias circunstncias

    factuais e polticas que viveu no seio do seu partido de tantos anos72.

    Contudo, nalguns casos, houve quem vencesse esta espcie de atavismo e de

    modo mais ou menos pontual esclarecesse detalhes interessantes da vida partidria, que

    nos permite olhar de modo menos obscurecido o interior do PCP.

    Mrio Dionsio na sua breve autobiografia fornece elementos interessantes sobre

    a sua militncia de intelectual comunista, bem como das circunstncias em que acaba

    por se demitir do Partido 73; do mesmo modo que Rui Perdigo, que discorrendo sobre a 70 Cf. Jaime Serra, Eles tm o direito de saber o que custou a Liberdade, Lisboa, Edies Avante!, 2004 (2 Edio, revista e aumentada)71 Jos Magro, Cartas da Clandestinidade, Lisboa, Edies Avante!, 200772 Cf. Cndida Ventura, O Socialismo que eu vivi. Testemunho de uma ex-dirigente do PCP, Lisboa, O jornal, 198473 Cf. Mrio Dionsio, Autobiografia, Lisboa, O Jornal, 1987

    34

  • sua passagem por importantes aparelhos de apoio ao Comit Central e, j no exlio,

    sobre a sua participao na Rdio Portugal Livre, faculta-nos aspectos interessantes

    sobre a elite partidria com quem conviveu de perto74.

    De carcter substancialmente diferente so as memrias infelizmente

    incompletas de Francisco Martins Rodrigues 75, que faleceu antes de as poder concluir,

    tendo sido apenas publicados alguns textos e registos de entrevistas.

    A obra, porventura mais completa deste ponto de vista de J.A. Silva Marques,

    publicada em 1976 76, onde as memrias da sua actividade militante se cruzam com uma

    anlise arguta do que era, do seu ponto de vista, sociologicamente o PCP e da sua forma

    de funcionamento. Na realidade trata-se de uma abordagem muito pouco frequente, at

    pela altura em que publicada, embora reflectindo a diversificada trajectria poltica

    que experimentou.

    No entanto, os registos publicados, de feio memorialstica ou autobiogrfica

    foram directa ou indirectamente complementados com entrevistas a dirigentes e quadros

    do PCP, que desenvolveram actividade clandestina no crculo directo que desempenhou

    funes executivas e de controlo poltico durante o arco cronolgico aqui considerado.

    Foram em regra aplicadas entrevistas directas, semi-abertas, baseadas em guies

    construdos em funo do percurso partidrio e do tempo prprio desse percurso.

    Muitos desses dirigentes e quadros faleceram entretanto e no momento em que

    foram entrevistados fizeram prevalecer uma cultura de sigilo e de secretismo que tornou

    essas entrevistas pouco expressivas no que se reporta substncia de muitas das

    questes colocadas.

    Mas, se as entrevistas so peas largamente deficitrias de informao, no esto

    completamente esvaziadas desse ponto de vista, tornando-se teis fundamentalmente

    pelo pormenor que por vezes carreiam entre longas respostas, como ainda pela

    linguagem no verbal que o ritmo do discurso permite, por vezes, possvel reter.

    Mas, para alm destas razes e quanto mais no fosse, a entrevista permite

    colocar o historiador face a face com o agente histrico, com o protagonista vivo que

    labora em trabalhos da memria cuidadosamente filtrados pelo tempo, pela reconstruo

    legitimada do passado e pela tenso latente que deriva da posio em que colocado no

    contexto da entrevista. A percepo que da resulta, mesmo subjectivamente enformada,

    74 Cf. Rui Perdigo, O PCP visto por dentro e por fora, Lisboa, Fragmentos, 198875 Cf. Francisco Martins Rodrigues, Os anos do silncio, Lisboa, e Histria de uma vida, Dinossauro e Abrente Editora, 2008 e 2009, respectivamente76 Cf. J.A. Silva Marques, Relatos da clandestinidade. O PCP visto por dentro, Lisboa, Edies Jornal Expresso, 1976

    35

  • no deixa de ser importante no processo de investigao histrica

    A entrevista, com todos os constrangimentos e limitaes inerentes, exigindo,

    como alis todas as fontes histricas, um indispensvel trabalho crtico, constitui uma

    pea insubstituvel, e em boa medida incontornvel, no quadro do esforo de

    reconstituio histrica, beneficiando da proximidade temporal das matrias e pocas

    em estudo e da possibilidade de tomar protagonistas e actores sociais como fonte

    histrica viva.

    As circunstncias ilegais da actividade desenvolvida pelo PCP, e por isso

    fortemente condicionada, com os seus dirigentes, os seus quadros e os seus militantes

    permanentemente perseguidos, acossados pela aco dos aparelhos repressivos do

    regime, obrigavam ainda a que se contrasse a produo e conservao de

    documentao.

    Ainda assim, puderam escapar sanha policial esplios de quadros polticos

    oposicionistas, alguns deles, porventura os mais extensos, conservados em longos

    perodos de exlio, integrando notas manuscritas tomadas em reunies ou como

    sistematizao de ideias, minutas de documentos a imprimir, bem como a

    correspondncia, documentos que se tm vindo a revelar absolutamente fundamentais

    para uma leitura mais densa e aprofundada de processos referentes actividade das

    Oposies e, ainda que na quase totalidade dos casos, no se tratem de militantes

    comunistas, permitem ver de outros ngulos e praticamente em cima dos

    acontecimentos, a prpria actividade do PCP.

    Neste sentido e deste ponto de vista tem sido particularmente importante e

    meritria a aco desenvolvida pela Fundao Mrio Soares e pelo Centro de

    Documentao 25 de Abril.

    Mesmo no que se refere a intelectuais que tiveram militncia legal no Partido

    Comunista, nos seus esplios, predominantemente literrios, a correspondncia permite,

    a partir das relaes de sociabilidade, perceber de modo mais detalhado aspectos

    significativos da sua actividade poltica. A aco do Centro de Documentao do Museu

    do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira, como o Arquivo da Cultura Portuguesa

    Contempornea, na Biblioteca Nacional tem sido a este nvel notvel.

    Em clandestinidade, o PCP disporia de um arquivo central no interior do pas,

    preservado e mantido em lugar cuidadosamente escolhido, tendo sido decidido

    fotografar toda essa documentao, trabalho que se teria iniciado em 1958, ficando um

    exemplar o interior e colocando outro fora do pas, encontrando-se pelos vistos ambas

    36

  • as cpias neste momento no arquivo central do PCP, uma das quais em boas condies 77

    Por outro lado, apesar dos acidentes que levaram priso de um importante

    conjunto de dirigentes nos primeiros anos 60, com a transferncia do Secretariado para

    o exterior, o arquivo desse rgo ficaria a salvo at ao 25 de Abril, a que se dever

    juntar o arquivo da Rdio Portugal Livre, um importante repositrio da vida partidria e

    das movimentaes sociais no pas.

    Os materiais conservados no exterior, correspondentes a esse perodo, mas

    provavelmente muito mais amplos, configuravam um arquivo fundamental, para

    escrever a histria do PCP. Alguns documentos e outros materiais que vm sendo

    publicados de modo esparso e outros cedidos, mais recentemente ainda, para exposies

    atestam da importncia desse arquivo central.

    Todavia, o Arquivo do Partido Comunista Portugus continua completamente

    encerrado e inacessvel, exceptuando-se cedncias pontuais de documentos segundo

    critrios determinados evidentemente pelo prprio partido.

    Na altura em que inicimos a investigao nem sequer era possvel consultar a

    coleces completas de imprensa clandestina quanto mais documentao interna como

    relatrios, originais de informes e circulares ou autobiografias.

    Objectivamente, ao proceder deste modo, o Partido Comunista parece querer

    condicionar fortemente a escrita da sua Histria, ao mesmo tempo que no evidencia

    qualquer inteno ou interesse em escrev-la.

    Neste quadro paradoxal, ainda assim, o PCP vem apodando de modo recorrente

    como falsos e tendenciosos os estudos que o tomam como objecto histrico, sem que

    contraponha argumentos documentalmente sustentados nem permita o acesso aos seus

    arquivos no sentido de corrigir interpretaes insuficientes e precrias.

    Extraordinariamente, as prprias circunstncias repressivas, a feroz, sistemtica

    e permanente perseguio de que o PCP foi alvo viriam a permitir desde h alguns anos

    o acesso a alguma dessa documentao interna, apreendida pela polcia, abertos ou

    semi-abertos que foram os arquivos polticos do Estado Novo.

    Durante a clandestinidade, mesmo podendo haver uma espcie de arquivo

    central, no se tratava, evidentemente, de um arquivo operativo, mas mais de um

    depsito com objectivos de preservar documentao, havendo sim arquivos pessoais, na

    posse de cada um dos principais dirigentes.

    77 Cf. Margarida Tengarrinha, Quadros da Memria, Lisboa, edies Avante!, 2004, p. 71

    37

  • Isso significa que se por aco repressiva um determinado dirigente era preso e a

    sua instalao clandestina assaltada sem que houvesse possibilidade de destruir o

    arquivo, como estava internamente determinado, a polcia apreendia um conjunto de

    documentao que podia ter efeitos demolidores gravssimos.

    Por vrias vezes, o prprio PCP o reconheceu com todas as letras 78. Isso

    particularmente patente com a priso de Octvio Pato em 1962, na altura membro do

    Secretariado do Comit Central no interior do pas.

    Pato preso quando se dirigia a casa, a alguma distncia, com a instalao e a

    sua movimentao j referenciadas pela polcia, o que permitiu PIDE prend-lo e ao

    mesmo tempo apreender todo o seu vasto arquivo.

    Como sob tortura se recusasse a prestar declaraes, essa documentao iria

    servir de matria de prova no respectivo processo enviado ao Tribunal Plenrio de

    Lisboa 79, sob a forma de apensos, o que significa que o acesso ao referido processo

    permite o acesso a um repositrio documental de enorme importncia do ponto de vista

    da histria do PCP. O mesmo se poderia dizer, ainda que com graus de importncia

    distintos, dos processos de lvaro Cunhal, em 1949 80ou de Joaquim Pires Jorge, em

    1961 81.

    Ainda assim, mesmo a avalio deste tipo de documentao, particularmente a

    que se relaciona com dados organizativos referentes a nmeros de militantes e

    simpatizantes ou de comits e clulas, tem, necessariamente, que ser considerada em

    funo do modo indirecto em que podem ser aferidos, prevenindo-nos contra eventuais

    tendncias de sobrevalorizao, mesmo que produzidas e destinadas a consumo interno.

    Estes processos, cuja cpia fica em arquivo na PIDE sem os respectivos apensos

    naturalmente constitudo por inmeras peas de autos de perguntas que, no caso

    daqueles que prestam declaraes, geram tambm abundante matria de facto, mas de

    tipo e qualidade completamente distintas, pois enquanto na documentao apreendida se

    trata de documentao original, nos autos estamos em presena de informao

    construda, muitas vezes forjada ou recolhida invariavelmente sob violncia.

    O carcter de fiabilidade por isso qualitativamente diferente. A mngua de

    informao leva tantas vezes a tomar essas declaraes como dados substantivos sem

    que o sejam de todo, quer pela forma como foram conseguidos quer porque se podem

    78 Cf. Resoluo do Comit Central sobre a defesa conspirativa do Partido, Dezembro de 1962, cicl.79 Cf. Arquivo Distrital de Lisboa, Tribunal Criminal de Lisboa, 2Juzo Criminal Processo 92/6280 Cf. Idem, 3 J.C., Processo 14499/4981 Cf. Idem, 4 J.C., Processo 134/62 [44695]

    38

  • tratar de construes feitas pela prpria polcia, forando o preso a assinar os autos sob

    violncia fsica ou psicolgica.

    Mas isto pode no significar a recusa absoluta a esses elementos que, como

    quaisquer outros, necessitam ser cruzados, contextualizados e referidos com o rigor e

    fiabilidade que possam merecer.

    Na realidade, o arquivo da PIDE-DGS tem revelado parca documentao

    original emanada pelo prprio PCP, pois a componente de inteligncia da polcia

    poltica do regime esteve sempre subdesenvolvida, em detrimento de uma componente

    preventiva e punitiva, tomada de modo individual, ainda que, no perodo considerado,

    tomando o PCP como principal objecto da sua prpria actividade policial.

    Os estudos policiais sobre o Partido Comunista so, por isso, pouco numerosos e

    de fraca qualidade e mesmo a documentao proveniente do Gabinete Tcnico da PIDE

    no con