O Pecado, A Nova Califórnia

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Lima Barreto -

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O Pecado

A Nova Califrnia, Lima Barreto - O pecado

Fonte:

BARRETO, Lima. A Nova Califrnia - Contos. So Paulo: Brasiliense, 1979.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo

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A Nova Califrnia

Lima Barreto

O Pecado

Quando naquele dia So Pedro despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higinicos da manh, ele se foi competente repartio celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na prxima leva.

Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia e debruado sobre ele, todo entregue ao servio, um guarda-livros punha em dia a escriturao das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extenso da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro carter caligrfico.

Assim pginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razo de ser e entre si guardavam to feliz disposio que encantava o ver uma pgina escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiao em gtico, tinha uma ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

Ao entrar So Pedro, o escriturrio do Eterno, voltou-se, saudou-o e, reclamao da lista dalmas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofcio) que viesse tarde busc-la.

A pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionrio celeste (um velho jesuta encanecido no trfico de acar da Amrica do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a So Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

Dessa vez ao contrrio de todo o sempre, So Pedro, antes de sair, leu de antemo a lista; e essa sua leitura foi til, pois que se a no fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades quem sabe? o Cu ficasse de todo estragado. Leu So Pedro a relao: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, vista das explicaes apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim:

P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de esprito. Ignaro. Bom como So Francisco de Assis. Virtuoso como So Bernardo e meigo como o prprio Cristo. um justo.

Deveras, pensou o Santo Porteiro, uma alma excepcional; como to extraordinrias qualidades bem merecia assentar-se direita do Eterno e l ficar, per saecula saeculorum, gozando a glria perene de quem foi tantas vezes Santo...

E porque no ia ? deu-lhe vontade de perguntar ao serfico burocrata.

No sei, retrucou-lhe este. Voc sabe, acrescentou, sou mandado...

Veja bem nos assentamentos. No v Ter voc se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, at encontrar a pgina prpria, onde com certo esforo achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... Carregador. Quarenta e oito anos. Casado. Honesto. Caridoso. Leal. Pobre de esprito. Ignaro. Bom como So Francisco de Assis. Virtuoso como So Bernardo e meigo como o prprio Cristo. um justo.

Levando o dedo pela pauta horizontal e nas Observaes, deparou qualquer coisa que o fez dizer de sbito:

Esquecia-me... Houve engano. ! Foi bom voc falar. Essa alma a de um negro. Vai para o purgatrio.

Revista Souza Cruz, Rio, agosto 1924.