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Ana Catarina Marques da Cunha Martins Portugal O pensamento de Joseph Beuys e seus aspectos rituais em ação Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio. Orientadora: Profª Cecília Martins de Mello Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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Ana Catarina Marques da Cunha Martins Portugal

O pensamento de Joseph Beuys e

seus aspectos rituais em ação

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, do Departamento de História da PUC-Rio.

Orientadora: Profª Cecília Martins de Mello

Rio de Janeiro Dezembro de 2006

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Ana Catarina Marques da Cunha Martins Portugal

O pensamento de Joseph Beuys e

seus aspectos rituais em ação

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura do Departamento de História do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª Cecília Martins de Mello Orientadora

Departamento de História PUC-Rio

Profº. João Masao Kamita Departamento de História

PUC-Rio

Profº Renan Tavares Departamento de Enfermagem Fundamental

UNI-Rio

Profº João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais

PUC-Rio

Rio de Janeiro, 07 de dezembro de 2006.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora e do orientador.

Ana Catarina Marques da Cunha Martins Portugal Graduou-sem em Artes Cênicas (1999) e Educação Artística (2000) pela Uni-Rio. Especializou-se em História da Arte (2003) pela FEUC. Participou de diversos congressos na área de artes. É atualmente professora da SME/Rio de Janeiro e da FME/Niterói. Cursou mestrado em História na PUC-Rio, onde defendeu esta dissertação.

Ficha Catalográfica

Ficha Catalográfica

CDD: 900

Portugal, Ana Catarina Marques da Cunha Martins O pensamento de Joseph Beuys e seus aspectos rituais em ação / Ana Catarina Marques da Cunha Martins Portugal ; orientadora: Cecília Martins de Mello. – Rio de Janeiro : PUC, Departamento de História, 2006. 111 f. : il. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História. Inclui referências bibliográficas. 1. História – Teses. 2. Joseph Beuys. 3. Ação. 4. Escultura social. 5. Rito. 6. Arte ampliada. 7. Xamanismo.I. Silva, José Roberto Gomes da. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, minha irmã e meu marido pelo apoio e carinho

incondicionais em todas as horas desta jornada.

Aos professores Renan Tavares, por ter me mostrado que o caminho

acadêmico era possível, e João Masao Kamita, pelas diretrizes indicadas na

qualificação de meu projeto, além do fato de terem me dado a honra de tê-los em

minha banca.

Ao professor Yobenj Aucardo Chicangana Bayona pela inestimável

amizade, ajuda e presença neste meu trajeto acadêmico.

À professora Sheila Cabo, por ter me guiado nos primeiros passos em

direção à obra de Joseph Beuys.

À professora Cláudia Ricci pelos empréstimos bibliográficos e pelas

conversas essenciais na época em que estava para prestar prova para esta

instituição.

Ao professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues pela paciência e

atenção.

Às amigas Janaí e Eliane pela busca de material bibliográfico que fizeram

para mim em SC e RS, e aos amigos Andrê, Deco e Daniel, pelas leituras e

proveitosas conversas sobre este trabalho.

Aos professores e funcionários do Departamento de História da PUC-Rio

pelos ensinamentos e pela ajuda, em especial à Edna, pelo carinho e atenção com

que sempre me atendeu.

À todos os meus amigos que de uma forma ou outra me estimularam ou me

ajudaram e aos meus alunos da UERJ, que mais me ensinaram do que eu à eles.

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RESUMO

PORTUGAL, Ana Catarina M. da C. Martins; MELLO, Cecília Martins de. O pensamento de Joseph Beuys e seus aspectos rituais em ação. Rio de Janeiro, 2006. 111p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A obra do artista Joseph Beuys parece marcada pela idéia de rito, mito e

xamanismo; ao menos é o que demonstra a maior parte da bibliografia sobre o

artista. Para compreendermos a obra de Beuys, partimos da análise de Cliford

Geertz e Victor Turner. O primeiro nos proporciona a aproximação da

performance artística com a idéia de rito como um momento de pausa que

possibilita uma certa reelaboração do indivíduo, funcionando como um “espelho

social”. Com o segundo, através de sua fase liminar, podemos entender como se

rompem os limites do cotidiano, ampliando-os, enfatizando transformações

subjetivas em si e no outro. Partindo dessas idéias procuramos observar o modo

como o artista colocava em ação os seus pensamentos, utilizando-se para isso de

princípios ou estruturas semelhantes aos que podemos notar nos ritos. No rito

normalmente é possível perceber a busca por uma reconstrução social da

realidade, objetivo este, apontado nas ações do artista, no sentido de romper com

os limites da arte e de alcançar uma reestruturação social.

PALAVRAS-CHAVES Joseph Beuys, ação, escultura social, rito, arte ampliada, xamanismo.

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ABSTRACT

PORTUGAL, Ana Catarina M. da C. Martins; MELLO, Cecília Martins de. The Joseph Beuys trought's and the rituals aspects in action. Rio de Janeiro, 2006. 111p. MSc Dissertacion – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The works of the artist Joseph Beuys seems marked for the idea of rite, myth

and shamanism at least is what it demonstrates most of the bibliography on the

artist. To understand the works of Beuys, we will break of analisy of Cliford

Geertz and Victor Turner. The first one in provides the approach to them of the

artistic performance with the rite idea as a pause moment that makes possible a

certain rework of the individual, functioning as a "social mirror". With the

second, through its phase liminary, we can understand as to breach the limits of

daily, extending it, emphasizing subjective transformations in itself and the other.

Leaving of these ideas we look for to observe the way as the artist placed in action

its thoughts, using himself for this of similar principles or structures to that we

can notice in the rites. In the rite normally it is possible to perceive the search for

a social reconstruction of the reality, objective this, pointed in the actions of the

artist, the direction to breach with the limits of the art and to reach a social

reorganization.

KEYWORDS

Joseph Beuys, action, social sculpture, rite, extended art, shamanism.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11

1. DIALOGAR COM A SOCIEDADE, DIALOGAR COM A VIDA 17

1.1 A preocupação educacional de Joseph Beuys 19

1.1.1 A pedagogia Waldorf e a influência de Rudolf Steiner 21

1.1.2 Universidade Livre Internacional e de Pesquisas

Interdisciplinares

23

1.2 O olhar político de Beuys 26

1.2.1 Política ambiental 30

1.2.2 A relação de Beuys com o Grupo Fluxus 33

1.3 Os materiais e a biografia na obra de Beuys 37

1.4 A espiritualidade cristã em sua obra 41

2. CONCEITO AMPLIADO DE ARTE E ESCULTURA SOCIAL 45

2.1 O pensamento como primeira forma de escultura 48

2.2 A crise da humanidade européia 52

3. A RITUALIDADE NAS AÇÕES DE JOSEPH BEUYS 59

3.1 Conceito de rito 60

3.1.1 Caminhos para “ler” o rito 62

3.1.2 Liminaridade em Victor Turner 65

3.2 O pensamento de Joseph Beuys e os seus aspectos rituais em ação 66

3.2.1 Os elementos ritualizados em ação 69

3.2.2 O espaço ritual de suas ações 76

3.2.3 A suspensão do tempo na ação-ritual 83

3.2.4 Beuys: um xamã da modernidade? 85

CONSIDERAÇÕES FINAIS 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 98

ANEXOS 104

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Anexo I: 104

Tipologia das ações 104

1. O Chefe (1964) 104

2. Como explicar quadros a uma lebre morta (1965) 104

3. Introdução homogênea para piano de cauda, o maior compositor

contemporâneo é a criança talidomida (1966)

105

4. Manresa (1966) 105

5. Celtic +~~~~ (1971) 106

6. Coyote: I like America and America likes me (1974) 106

Anexo II 108

Os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola 108

Anexo III 110

Programa da Universidade Livre Internacional e de Pesquisas

Interdisciplinares

110

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Beuys na Tate Gallery – 1972 23

Figura 2 – Conferência de Beuys - 1972 27

Figura 3 – “A democracia é divertida!” - 1973 28

Figura 4 – Ação 7000 Carvalhos - 1982-1987 31

Figura 5 – Circular de pedido de ajuda financeira para o projeto 7000

Carvalhos - 1982

32

Figura 6 - Ação Sinfonia Siberiana – 1963 36

Figura 7 - Pôster do Festum Fluxorum Fluxus - 1963 37

Figura 8 - Cadeira Gorda – 1964 39

Figura 9 - Pligh – 1985 40

Figura 10 - Não intitulado (O inventor da máquina a vapor) e (O

inventor da eletricidade) - 1971

42

Figura 11 - Ação Manresa – 1966 43

Figura 12 - Ação Celtic +~~~~ - 1971 44

Figura 13 - Ação Como explicar quadros a uma lebre morta - 1965 48

Figura 14 - Vestígios da ação Coiote: I like America and América like’s

me – 1974

66

Figura 15 - Vestígios da ação Sinfonia Siberiana – 1963 66

Figura 16 - Elementos da ação Manresa - 1966 71

Figura 17 - Ação O chefe – 1964 73

Figura 18 - Ação Como explicar quadros a uma lebre morta - 1965 74

Figura 19 - Ação O chefe – 1964 78

Figura 20 - Introdução homogênea para piano de cauda - 1966 79

Figura 21 – Esquema de cena da ação Manresa - 1966 80

Figura 22 - Ação O chefe – 1964 84

Figura 23 - Ação Coiote: I like America and America like’são me - 1974

85

Figura 24 - Ação Celtic +~~~ - 1971 90

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“Eu quero criar um palácio real. Não para glorificar os velhos reis, mas para dizer que

todos os seres humanos são reis. A dignidade de cada pessoa reside no fato de estar viva. Eu não

estou satisfeito com a interpretação simples e materialista da vida. Na nossa época

materialista, os elementos do mistério e da alma foram destruídos (...) e é por isso que eu

embarquei neste conceito antropológico, para tentar fazer com que as pessoas se conscientizem

de que elas são uma grande forma de vida e a expressão de suas almas.”

Joseph Beuys

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INTRODUÇÃO

“Minha maior obra de arte foi

ser professor de arte.”

Joseph Beuys∗

O presente trabalho busca uma aproximação das ações artísticas de Joseph

Beuys com elementos norteadores observados na prática de ritos, no que tange à

relação com o espaço, a administração do tempo, a manipulação de materiais e de

símbolos, bem como a freqüente figura do xamã, com o objetivo de, através de

algumas ações do artista, constatar nelas a presença de “princípios ou estruturas

rituais”.

Atribuir ao artista a designação de xamã, pastor, guia ou líder é comum a

praticamente toda a bibliografia sobre ele, bem como qualificar muitas de suas

ações como rituais disto ou daquilo (rito de morte, rito de purificação, rito de

passagem...). Segundo Alan Borer: “suas ações ganham o sentido de verdadeiros

rituais, que mostram Beuys em um estado de concentração e de intensidade cuja

força comunicativa, freqüentemente qualificada de fascinação, é atestada por

todos os presentes.”1 No entanto, a maioria dos autores não justifica

aprofundadamente o por quê de tais associações com as práticas rituais. Buscamos

então localizarmo-nos na discussão do tema para tentar constatar o motivo das

constantes comparações das ações do artista com a prática de ritos.

Os mitos nos permitem refletir sobre a nossa realidade. É um tema bastante

complexo, cuja abordagem e interpretação pode ser bastante variada. Em sua obra

“o artista não prega a funcionalidade do mito, e sim, a eficácia do seu estímulo.

A idéia torna-se símbolo. Assim é com os mitos, assim é com a arte de Beuys.”2 O

artista configurava em suas ações um universo de símbolos míticos, imagens

primitivas, bem como a freqüente associação xamã3/artista. Uma ligação que

convidava a uma interação com a natureza, com a intuição, com o fluido,

∗ SHARP, Willoughby. An Interview with Joseph Beuys. 1 BORER, Alan. Joseph Beuys, p. 31

2 BACH, Christina Eliza. O lugar Beuys, p. 31

3 Indivíduo a que se atribui a função e o poder de recorrer a forças ou entidades sobrenaturais para

realizar curas, adivinhações, encantamentos, etc., e cuja atuação pode ou não envolver um estado de transe. In: Dicionário Aurélio versão digital.

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desenvolvendo um interesse e uma linguagem estética que buscava uma união

entre a arte e a vida.

Joseph Beuys foi um artista que voltou sua arte em muitos momentos para

questões políticas, ecológicas e espirituais. Via a arte como um modo de

intervenção na sociedade, uma arte que fosse capaz de ser revolucionária,

realizando uma série de “ações” que tinham como objetivo uma transformação

social. A ação foi um dos caminhos que o artista encontrou para tornar concretas

as suas idéias, uma vez que, segundo ele, “se apenas as tivesse pintado, nunca

teriam passado de meros quadros.”4

Quando utilizamos o termo ação para designar trabalhos do artista, estamos

nos aproximando da idéia de performance artística, mas Beuys queria ir além da

performance, queria que esta fosse de fato uma ação prática, com frutos no campo

social. Uma ação que estivesse além do campo da arte, que alcançasse a vida

cotidiana.

A arte de Beuys possui uma natureza experimental, evocando interpretações

simbólicas, apenas enunciadas em sua obra. Aqui não caberia uma obra cuja

significação estivesse totalmente elaborada e fechada pelo artista. O público

tornava-se também criador da obra que era modestamente uma indicação da vida

cotidiana, cotidiano este, aberto a todos os imaginários.

O ato5 e a ação são dominantes na obra de Beuys. Iniciando seus trabalhos

por esta linha ao lado do grupo Fluxus, suas ações estão repletas de material

textual, sonoro e plástico cuidadosamente elaborados. Entretanto, a obra e a teoria

de Joseph Beuys não podem ser vistas separadamente. Sem um conhecimento das

teorias e pensamentos do artista, a leitura de muitas de suas obras tornar-se-ia

dificultosa. A obra do artista apresenta diversas questões, que por sua

multidimensionalidade, este trabalho não conseguiria abarcar. Temos ciência de

que apenas estamos privilegiando um olhar sob sua obra, dentre os diversos

possíveis.

4 STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys, p. 144 5 Ato num sentido de ativismo político, neste momento desligado de idéias estéticas, como

perceberemos existir em suas ações.

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O objetivo deste trabalho não é avaliar as ações de Beuys qualitativamente,

mas observar como o pensamento do artista transfigurava-se esteticamente nestas,

bem como apontar possíveis aspectos rituais que as conduzissem, a partir de

observações comparativas entre estruturas e princípios comuns à prática de ritos

com as ações do artista, obras estas que refletiam esteticamente o pensamento

alemão, a crise européia e uma herança romântica.

A repetição faz parte da própria essência do rito, não importando por qual

vertente metodológica o rito seja observado, seja a função de espelho social, de

mantenedor da tradição, de organizador social, de confirmação das estratificações

sociais ou se levam em conta a genética e o ambiente físico. Para alcançar o

objetivo principal do nosso trabalho, no entanto, partimos de uma apresentação de

pensamentos do artista acerca de uma série de temas que aparecem

“repetidamente” por toda a sua obra, para que pudéssemos posteriormente

perceber o modo como o artista os punha em prática, em ação.

Nossa pesquisa bibliográfica se concentra em obras que privilegiaram o

artista, utilizando livros, catálogos, artigos, entrevistas procurando basear nossa

leitura, assim como nossa escrita, nas “palavras de Beuys”. Além da bibliografia

de apoio, buscamos textos do próprio artista. Através de alguns livros que tiveram

como objetivo coletar entrevistas, palestras, conferências ou mesmo textos

escritos por Beuys, procuramos analisar deste modo o universo do seu

pensamento e obra. Como uma espécie de fonte primária tentamos desmistificar o

artista e algumas de suas ações partindo de suas próprias palavras, embora não

tenhamos deixado de lado teóricos que pudessem contribuir para a fundamentação

desta pesquisa.

Iniciamos nosso trabalho mergulhando no modo como Beuys encarava

determinados assuntos. No primeiro capítulo contextualizaremos o pensamento do

artista em relação a diversos temas que povoaram sua obra, como a educação, a

política, o meio ambiente, o cristianismo, os materiais que utilizou e a presença de

sua biografia no contexto de sua obra. Destacaremos a relação que seu

pensamento tem com Rudolf Steiner e o Grupo Fluxus. Perceberemos ainda que

as intenções de arte como totalidade da vida ou, que na idéia embutida em sua

célebre frase “cada homem é um artista”, já estavam de algum modo presentes nas

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problemáticas estéticas de Steiner. Com o grupo Fluxus buscaremos evidenciar o

início de suas ações de caráter político e social.

O segundo capítulo constará de alguns pensamentos do artista sobre arte,

como os conceitos de escultura social e de arte ampliada, o ato imaterial de dar

formas a atividades e idéias criativas. Veremos como Beuys declara que a arte é a

única possibilidade para mudar o mundo, mas que isso apenas seria alcançado

com uma reforma educacional e com a ampliação das idéias que as pessoas têm de

arte. Para nos apoiar em tal discussão optamos por um paralelo com Edmund

Husserl, percebendo uma possível relação entre ambos em questões originárias

semelhantes no que tange à “crise européia”. Ambos parecem reclamar uma

urgência de compreensão do espírito dificultada pelo racionalismo, de uma busca

da essência primeira do homem, reconstituindo uma totalidade corrompida. A

partir de tais idéias, proporciona-se uma identificação entre arte e vida,

dissolvendo as fronteiras outrora colocadas pelo processo de racionalização,

questões tais, presentes nas ações do artista.

No terceiro capítulo nos deteremos a princípio em uma apresentação do

conceito de rito, para posteriormente estabelecer uma relação entre a idéia de rito

e as ações do artista. Aqui apontaremos em suas ações (especificamente em: O

Chefe; Como explicar quadros a uma lebre morta; Introdução homogênea para

piano de cauda: o maior compositor contemporâneo é a criança talidomida;

Manresa; Celtic +~~~~ e Coyote: I like America and America likes me)6 a

presença prática de seu pensamento e de princípios rituais, as idéias de cura, de

pedagogia, de transformação, de política, de religião, de meio ambiente, de tempo,

de xamanismo e o modo como acontecia a construção da ambientação de suas

ações. Veremos também de que modo o artista operava com os elementos

materiais e plásticos que constituíam o ambiente da ação, utilizando-os como

material de reflexão, buscando em suas naturezas e na simbologia que lhes eram

atribuídas, uma possibilidade, um suporte pedagógico que servisse ao seu projeto

de transformação social.

Para aproximar suas ações de práticas rituais, nos apropriamos de alguns

estudos antropológicos, dentre estes, a idéia de liminaridade apresentada por

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Victor Turner7. Turner percebeu que os ritos dividiam-se basicamente em três

momentos ou fases: a pré-liminar (que seria o momento preparatório), a liminar (a

ação em si) e a pós-liminar (momento em que absorvemos a ação acontecida).

Procuramos entender a liminaridade presente nas ações de Beuys como um modo

de romper com os limites do cotidiano, ampliando-o, enfatizando transformações

subjetivas em si e no outro, possibilitando como nos ritos, uma experiência

limítrofe da existência humana.

Os ritos estabelecem na vida do homem uma espécie de momento de

pausa, onde este se desloca da vida cotidiana, podendo propiciar nesse instante um

espaço para reflexão sobre a estrutura em que vive, reelaborando-se, como afirma

Geertz, que via de um modo geral nas ações artísticas um campo privilegiado para

isso. Para Geertz, a performance artística é um lugar de interação, espaço onde

toda a simbologia cultural projeta-se sobre o grupo de observadores, reformulando

suas relações com o mundo, através da transformação de ações ordinárias,

cotidianas, em ações com uma dimensão sagrada. Estes símbolos seriam modelos

que vêm da realidade e projetam-se para essa mesma realidade, herdados de

tempos muito antigos. É assim que “os homens se comunicam, perpetuam e

desenvolvem seu conhecimento, suas atividades em relação à vida”8. Neste

sentido, a ação artística, através de sua manipulação de símbolos, amarrados por

uma rede de significações, torna-se um suporte para a transmissão de valores a um

grupo. A partir de tal autor, poderíamos entender nas ações de Beuys um

envolvimento do grupo em uma realidade simbólica, estabelecendo certas

tendências, hábitos, compromissos, que poderiam modelar suas ações em relação

ao mundo.

Apesar de Beuys, ao afirmar que todo homem é um artista (Jede Menschen

ist ein Künstler), estar aproximando a arte à vida, tentaremos perceber em suas

ações a tentativa de um afastamento momentâneo e pontual do cotidiano, de modo

a levar o homem a experimentar estar num outro lugar e num outro tempo, que

não os vividos no dia-a-dia, mas que, de certo modo, fazem parte dele também,

como é possível observar na prática dos ritos, de tal modo que este distanciamento

6 O detalhamento destas ações se encontra nos anexos desta dissertação.

7 TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. 8 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 103.

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proporcionasse um campo fértil para reflexões sobre a sociedade.

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1.

DIALOGAR COM A SOCIEDADE, DIALOGAR COM A VIDA

“Antes de mais nada, toda revolução

acontece no interior do ser humano.

Quando um homem é realmente livre e criativo,

capaz de produzir algo de novo e original,

ele pode revolucionar o tempo.”

Joseph Beuys∗

Joseph Beuys foi antes de tudo um artista de raízes bem alemãs e, como tal,

sofreu forte influência do pensamento romântico alemão que remonta ao século

XIX, tornando-se um “tardio representante da tradição idealista alemã”1,

canalizando “a evidência pública do artista para a transformação dos valores de

sua época”.2 É possível observar na base de suas obras e de seu pensamento uma

tradição cultural que nos remete a este período, tais como a idéia de totalidade e a

busca pela unidade do ser humano, antes fragmentado pela primazia da razão. A

idéia de Unidade era uma das molas mestras dos românticos alemães, que

passaram por um longo e sofrido processo de unificação.

A cultura moderna, segundo Argan3, está centrada na relação dialética entre

clássico e romântico. O clássico ligado à arte greco-romana, e o romântico ligado

à arte cristã e ao mundo nórdico. Ambos movimentos faziam parte de um mesmo

ciclo de pensamento, a diferença estava na postura (racional ou emocional) que

tomavam frente à história e à realidade natural e social. Segundo este autor, o

neoclassicismo seria apenas uma fase do processo de formação da concepção

romântica. Para ele, entre os motivos daquilo que podemos chamar de fim do ciclo

clássico e início do romântico, destacava-se a transformação das tecnologias e da

organização da produção econômica. Neste momento a arte não era mais uma

cópia da natureza, mas sim uma interpretação da história e o artista não estava

mais integrado como componente necessário ou modelo de comportamento.

∗ BEUYS, Joseph apud in GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: do futurismo ao presente, p. 139. 1 OSÓRIO, Luiz Camillo. A estética Romântica e Joseph Beuys, p. 9. 2 Ibid., p. 9. 3 ARGAN,Giulio Carlo. Arte Moderna.

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18

O romantismo começou na Alemanha como reação à parcialidade do culto à

razão apregoado pelo Iluminismo. No lugar da razão, as palavras de ordem foram:

sentimento, imaginação, experiência. Mesmo pensadores iluministas como

Rosseau, já haviam criticado o fato destes enfatizarem somente a razão. A

expressão “de volta à natureza!” de Rosseau, parecia agora tomar impulso; a

natureza passou a ser o objeto do romantismo, passando a ser vista como um todo,

como uma unidade.

Schelling4 dizia que a natureza inteira, tanto a alma humana quanto a

realidade física, eram a expressão de um único Deus ou do “espírito do mundo”.

Para ele, o homem trazia dentro de si o universo, e a visão romântica da natureza

era absolutamente marcada pela concepção de natureza como um organismo,

como uma unidade.

Os românticos acreditavam que só a arte seria capaz de nos aproximar do

indizível. “O que a filosofia nos ensinava abstratamente, a arte realizava numa

dimensão mundana; ela era a idéia encarnada no sensível (...) pela primeira vez a

arte era valorizada por suas próprias qualidades e méritos”5. Schiller6 dizia

que o processo de criação do artista é uma atividade lúdica, pois ele próprio

determina suas regras. Caberia à arte a função prática de unir novamente a esfera

moral e a sensível, reconstituindo uma idéia de totalidade que fora corrompida,

dando à dimensão estética a capacidade de medir o racional e o sensível,

restaurando a fragmentação ocasionada pelo crescente processo de racionalização.

“Em poucas palavras: não existe maneira de fazer racional o homem sensível

sem torná-lo antes, estético.”7 Esse estado estético era fator primordial para a

comunhão entre razão e sensibilidade, essencial na formação de um Estado

saudável.

Se na França houve uma primazia pela razão, na Alemanha romântica era a

emoção (o ato estético), uma emoção capaz de alcançar a unidade almejada, uma

unidade política e cultural, uma unidade do próprio ser humano fragmentado pelo

4 MERLEAU-PONTY, Maurice. A concepção romântica da natureza. 5 OSÓRIO, Luiz Camillo. A estética Romântica e Joseph Beuys, p. 6. 6 SCHILLER, Friedrich,. A educação estética do homem: numa série de cartas. 7 Ibid., p. 107.

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19 privilégio que havia sido dado à razão; o que não indicava no entanto, que o

romantismo negasse a razão, porque se o fizesse, a unidade e a totalidade

pretendida estariam perdidas.

Beuys herdou muito da visão romântica, principalmente no que tange à idéia

de natureza como uma totalidade orgânica viva e em conexão com o mundo

espiritual, bem como a idéia da arte como um precioso caminho para se alcançar

uma reestruturação social, “a questão social encontra lugar na historiografia

romântica”8, uma vez que formaria um homem capaz de se pôr diante da

realidade e questioná-la. Este homem não poderia assumir uma postura passiva

diante da realidade que se apresentava após a II Guerra e a arte teria que assumir

sua parte num projeto maior de civilização, retornando ao anseio de totalidade

romântico.

O artista caminhou por muitos terrenos para constituir o conjunto de sua

obra e neste capítulo trabalharemos, ainda que brevemente, aspectos ligados a

seus pensamentos sobre educação, política, meio ambiente, os materiais que

utilizava, conceito de arte, heranças de guerra, tendo em vista compreender, mais

adiante, o modo como os utilizou no seu fazer artístico e social.

1. 1 A PREOCUPAÇÃO EDUCACIONAL DE BEUYS

Beuys era um educador e acreditava que através da arte poderíamos

moldar, esculpir nosso pensamento e com isso “solucionar” uma série de

problemas sociais, partindo assim, de um ideário romântico que via a arte como

uma ferramenta no processo de formação do homem9, “atribuindo a ela um papel

de reconciliação do homem com o mundo”10, que já estava também presente nos

intuitos da Bauhaus.11 A Bauhaus previa uma sociedade sem diferenças de classe,

como também pretendido por Beuys, no entanto, contraditoriamente, privilegiava

os artistas como responsáveis por projetar essa nova sociedade.

8 FALBEL, Nachman. Os fundamentos históricos do romantismo. In: O romantismo, p. 36. 9 Pensamento este amplamente desenvolvido por Friedrich Von Schiller como veremos um pouco mais adiante.

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Embora também pretendesse educar o indivíduo com o interesse maior em

toda a comunidade, a Bauhaus se diferencia de Beuys no que toca à racionalidade

que privilegiava como método que permitiria localizar e solucionar os problemas

sociais.

Eu cheguei à conclusão de que não há nenhum modo de fazer qualquer coisa pelo ser humano que não seja pela arte. E devido a isto é necessário um conceito educacional (...). Meu conceito educacional refere-se ao fato de que todo ser humano é um ser criativo e um ser livre. (...) Hoje é preciso considerar a nossa realidade social e como esta realidade tem reprimido a maioria dos seres humanos, dos trabalhadores... todas essas coisas formam parte do meu conceito educacional, o qual se refere também a um sentido político.12

Transformações sociais não acontecem de um dia para o outro e, portanto,

Beuys tinha como meta uma reformulação do sistema educacional, desde o jardim

de infância até a universidade. Criticava um sistema de ensino centralizador, que

divulga um mesmo currículo e regras de administração para todas as escolas do

país, defendendo, pois, a possibilidade de escolas auto-gestoras, autônomas.

O que queremos é que haja liberdade de criação nos centros escolares. Além disso, acreditamos que as escolas têm que ser autônomas, o que vai dar na autogestão dos que trabalham ali. Então é quando falamos que há muitos tipos de escolas privadas e que deveriam existir tantas escolas livres, que dentro do possível superassem o caráter da escola privada e apresentassem uma oferta abundante de possibilidades de formação.13

Em relação à educação das crianças e adolescentes, acreditava que deveria

ser dirigida em função da individualidade de cada um, e que o quê e como deveria

ser ensinado, estaria associado às necessidades do grupo em questão. Não

adiantava uma educação que vê o aluno como parte de uma massa igual, mas sim

procurar particularizar cada um, com suas habilidades e dificuldades, de modo a

trabalhar satisfatoriamente tais qualidades. “Se a escola desenvolver a

10 OSÓRIO, Luiz Camillo. A estética Romântica e Joseph Beuys, p. 9. 11 ARGAN, Giulio Carlo. Walter Gropius e a Bauhaus. 12 BEUYS, Joseph apud DURINI, Lucrezia De Domizio. The felt hat a life told, p. 42. 13 BEUYS, Joseph apud BODENMANN-RITTER, Clara. Joseph Beuys: cada hombre, un artista, p. 16.

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21 consciência, as crianças reconhecerão os aspectos que devem ter uma ordem

social futura, ou seja, em uma escola livre assim, se pode aprender um sentimento

social, uma sensibilidade social ou um conhecimento social.”14

A importância dada às crianças por Beuys, remete-nos a uma afirmação

anterior feita por Schiller, que já dizia que “elas são o que nós fomos; elas são o

que nós devemos tornar a ser. Fomos natureza, como elas, e a nossa natureza

deve reconduzir-nos, no caminho da razão e da liberdade, à natureza.”15 Neste

ponto, a arte teria papel fundamental, pelo fato de através dela Beuys acreditar

num desenvolvimento da criatividade e do senso crítico do ser humano, essenciais

para realizar todas as mudanças que propunha em sua arte16; e este papel, o de

educador do povo, ele assumiu muito bem.

1.1.1 A pedagogia Waldorf e a influência de Rudolf Steiner

Princípios apontados por ele em tantas entrevistas e palestra que fez,

também estão presentes nas Escolas Waldorf, cuja metodologia está baseada na

antroposofia de Rudolf Steiner. Nesta pedagogia seria da responsabilidade da

escola incentivar a formação da criatividade para que fosse possível desenvolver

uma criança com um pensamento livre, com um senso crítico acurado, tornando-

se então, um adulto com maior maturidade social. Para tanto, dever-se-iam

respeitar as fases infantis, de modo a nutrir estas fases com as necessidades que

demandam independente de imposições políticas ou mesmo de forças econômicas.

Nas práticas utilizadas para o desenvolvimento da criatividade, incentivava-se a

busca por uma produtividade autêntica, que fugisse do naturalismo, ou seja, de

uma cópia fiel da natureza, uma vez que este reproduz um ideal já existente,

podendo tornar-se então uma reprodução e manutenção do que já existe. Embora a

Pedagogia Waldorf valorize muito a educação artística, pensa nela e nas

potencialidades que pode desenvolver como um modo de estender estas

potencialidades a todas as atividades realizadas pelo homem. Potencialidades

14 Ibid., p. 20. 15 SCHILLER, Friedrich,. A educação estética do homem: numa série de cartas, p. 22. 16 Estas idéias trazidas por Beuys, também já estavam presentes na pratica pedagógica de Rudolf

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22 essas, inerentes a todos os seres humanos e não somente aos “fazedores” de arte.

Segundo Marcelo Greuel:

A visão da Arte esboçada por Rudolf Steiner liberta o artista da função de mero crítico que nega ou desfigura o já existente, como também não o reduz a um decorador de ambientes burgueses. A Arte e o artista são o caminho pelo qual o homem se torna realmente humano, transformando a Natureza fora de si e em si para que esta se torne a expressão imediata e sensória da liberdade.17

A pedagogia desenvolvida por Steiner nas Escolas Waldorf desenvolvia a

idéia, entre outras, da arte como peça fundamental na formação do homem, e que

todos possuiriam potencial artístico, idéia essa marcadamente presente em Beuys,

que constantemente afirmava que todo homem é uma artista. Beuys acreditava

que a arte estava presente em toda parte, aproximava a arte da vida cotidiana,

exaltava o que havia de criativo nas mais simples atividades humanas. Em

entrevista a Franz Hak em 1979, Beuys afirmava que:

a criatividade não é monopólio das artes. (...) Quando eu digo que toda a gente é artista eu quero dizer que cada um pode concentrar a sua vida nessa perspectiva: pode cultivar a artisticidade tanto na pintura como na música, na técnica, na cura de doenças, na economia ou em qualquer outro domínio...18

O artista não chegou a pôr em prática suas idéias quanto à educação

fundamental, uma vez que não trabalhou diretamente com este setor da educação.

É comum observar em muitas de suas entrevistas uma certa indignação por parte

dos assistentes ou do entrevistador, que acreditavam que Beuys apresentava idéias

totalmente utópicas, que falava de planos que dificilmente seriam postos em

prática ou que o artista apenas lançava a idéia, mas não mostrava de fato, o

caminho que deveria ser percorrido para alcançá-las.19 Suas idéias parece que

apenas foram postas em prática a nível superior, com a criação da Universidade

Steiner, percebendos-se desde já a influência dele sobre o pensamento de Beuys. 17 GREUEL, Marcelo de Veiga. A obra de Rudolf Steiner. São Paulo: Antroposófica, 1994. p. 14. 18 BEUYS, Joseph Apud RODRIGUES, Jacinto. Joseph Beuys: um filósofo na arte e na cidade. 19 Partes destas entrevistas podem ser encontradas reunidas nos livros: Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni e BODENMANN-RITTER, Clara. Joseph Beuys: cada hombre, un artista.

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23 Livre Internacional e de Pesquisas Interdisciplinares, em 1973. A fundação da

Universidade Livre Internacional aconteceu depois que o artista foi demitido da

Academia de Düsseldorf, onde ministrava aulas de escultura. O artista nessa época

teria ido contra o fato de estudantes terem

sido reprovados por não serem considerados

aptos para seguirem a escola de artes. Como,

segundo Beuys, todos somos artistas, isto

seria um procedimento incompreensível.

Entre outras atitudes, Beuys teria invadido

os escritórios da administração da Academia

com um grupo de estudantes, o que

acarretou em sua posterior demissão.

1.1.2 Universidade Livre Internacional e de Pesquisas

Interdisciplinares (FIU)

Já em 1971 o artista pensava na formação de uma academia livre onde

novos métodos educacionais pudessem ser desenvolvidos, elaborando então a

idéia do que seria uma “Escola Livre de Alta Educação”. Seriam os primeiros

passos para a criação da Universidade Livre Internacional em 1973.

Johannes Stüttgen, seu amigo e ex-aluno, descreveu o modo como Beuys

atuou na FIU20 da seguinte maneira:

Beuys começou a organizar uma grande gama de eventos internacionais do Fluxus dentro da academia, não apenas limitando-se aos seus próprios concertos, ações e pinturas. Tudo que ele queria era fugir (...) para além das concepções artísticas e para longe das concepções acadêmicas tradicionais.21

Segundo as propostas apontadas no Manifesto de Fundação da Universidade

20 Abreviação utilizada normalmente para Universidade Livre Internacional. 21 STÜTTGEN, Johannes apud DURINI, Lucrezia De Domizio. The felt hat a life told, p. 43.

Fig. 1 – Tate Gallery - 1972

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24 Livre Internacional22, a criatividade não estaria limitada aos artistas e nem mesmo

às suas práticas, mas seria um potencial inerente a todo ser humano. Habilidades

exigidas em práticas como esculpir ou pintar poderiam também estar presentes em

outras esferas de atividades sociais, como as que se esperam de médicos, donas de

casa, professores, etc... No entanto, a proposta desse manifesto não descarta a

existência e importância de especialistas em determinadas áreas artísticas, mas

rejeita o princípio de um conhecimento que seja exclusivo a estes especialistas.

Dentro dessas idéias, abandona-se a questão do artista ou não-artista, uma vez que

todos podem e são artistas, já que é da natureza humana possuir potencial criativo.

Outra proposta que o Manifesto apresenta, é a interdisciplinaridade de

culturas, estimulando a participação de estrangeiros em seu corpo de funcionários

e alunos, para que pudesse existir uma “troca de criatividades”, uma vez que as

diferentes leis, religiões, línguas, ciências, etc, poderiam contribuir para o que

Beuys e Böll chamaram de “democracia da criatividade”, estabelecendo assim, o

seu caráter aberto e internacional, que também seria reforçado por constantes

exibições e eventos.

O caráter de funcionamento das atividades docentes estaria baseado na idéia

de que não haveria diferenciação institucional entre professores e alunos. O

objetivo da escola seria também o de manter um permanente fórum para discutir

questões ligadas a problemas ambientais, comportamentos sociais e questões

políticas, estabelecendo com isso uma consciência de solidariedade. Mas por

outro lado e encerrando o Manifesto:

Não é objetivo da escola desenvolver direções políticas e culturais, ou formar estilos, ou prover protótipos industriais e comerciais. Sua meta principal é o encorajamento, descoberta e adiantamento do potencial democrático, seja qual for a sua denominação. Em um mundo cada vez mais manipulado pela publicidade, propaganda política, indústria cultural e pela imprensa, não é o nomeado - mas o sem nome - que oferecerá um foro.23

22 BEUYS, Joseph e BÖLL, Heinrich. Manifesto on the foundation of a Free International School for Creativity and Interdisciplinary Research. In: Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni, p.149/152. 23 Ibid., p.152.

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Beuys pretendia com a Universidade Livre Internacional ampliar os limites

da Academia, que segundo ele, tolhiam o processo de desenvolvimento da

criatividade, uma vez que estava submetida aos interesses do Estado. A

aprendizagem satisfatória apenas aconteceria dentro dos princípios de liberdade,

coisa que segundo o artista, a Academia não poderia proporcionar

adequadamente. A FIU era uma instituição que em princípio estaria, então,

destinada a estudantes que quisessem uma formação ampliada de sua criatividade.

Na maneira como foi organizado o programa24 da FIU, buscava-se a

“integração de disciplinas não-artísticas com as artísticas, tais como teoria do

conhecimento, sociologia, economia, ecologia e ciência da evolução, assim como

a teoria da polidez e da textualidade”25. No projeto inicial, faziam parte também a

criação de “pesquisas interdisciplinares, uma plataforma para apresentações,

diversos institutos, um jardim de infância, um centro de criação para pessoas da

terceira idade, e mesmo uma cadeia de televisão via satélite”26. Mas Beuys

esperava que o Estado contribuísse com participação de fundos públicos para o

funcionamento desse amplo projeto, fato que não ocorreu como o esperado.

Para Beuys, esta foi sua maior obra prima e segundo Johannes Stüttgen,

ela era

o gérmen espiritual que originaria uma nova cultura humana. Ela é a imagem do organismo de comunicação, de aprendizagem e de informação, organismo livre, internacional e universal que religa virtualmente todos os seres pensantes, sentindo e desejando numa globalidade, de todos que padecem das condições da vida atual.27

Observando as idéias do artista sobre educação, não podemos nos furtar a

mencionar uma forte influência de Friedrich Von Schiller28. Este não nos deixou

um modelo educacional, mas sim diretrizes de uma ética social, de uma busca pela

totalidade da inclusão humana no mundo, que para ele teria se perdido quando a

24 Este programa encontra-se nos anexos desta dissertação. 25 RAPPMANN, Rainer. L’Université Internationale Libre (FIU). In: Joseph Beuys, p. 330. 26 Ibid., p. 330. 27 STÜTTGEN, JOHANNES Apud RAPPMANN, Rainer. L’Université Internationale Libre (FIU). In: Joseph Beuys, p. 332. 28 SCHILLER, Friedrich,. A educação estética do homem: numa série de cartas.

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26 poesia afastou-se da vida cotidiana. Via o homem como um ser em constante

transformação no seu compromisso com a prática política. Schiller acreditava que

somente formando uma nova humanidade seria possível alcançar um novo Estado.

“O Estado deve ser uma organização que se forma por si e para si, e é justamente

por isso que ele só poderá tornar-se real na medida em que as suas partes devam

submeter-se ao todo.” 29

Era preciso um novo homem mais íntegro e perfeito, e este seria alcançado

pelo viés da educação, de uma educação estética que tornaria possível levar para o

cotidiano os postulados morais necessários à transformação social. Dizia que

“todo homem individual, pode-se dizer, traz em si, quanto a disposição e

destinação, um homem ideal e puro, e a grande tarefa de sua existência é

concordar, em todas as suas modificações, com sua unidade inalterável.”30

O estado estético (lúdico) seria o meio para alcançar um caráter moral, para

formar um homem estético, homem que dá a si mesmo a forma de uma obra de

arte viva, porque somente nesta estaria presente a totalidade do saber. Deste

modo, o homem poderia alcançar a totalidade humana outrora desfeita pelas

constantes especializações do conhecimento.

1.2 O OLHAR POLÍTICO DE BEUYS

Transformar a política em arte era um dos princípios do artista. “Eu acho

que a arte é o único poder político, o único poder revolucionário, o único poder

evolucionário, o único poder capaz de libertar a humanidade de toda

repressão...”31. Beuys, que fundou em 1979 na Alemanha o movimento32 verde,

tinha como foco de seu interesse não apenas as questões ecológicas, mas a arte

como um modo de intervenção social. Várias foram as ações33 que demonstravam

29 Ibid., p. 33. 30 Ibid., p. 32. 31 Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni. p.34. 32 Chamamos aqui de movimento e não partido, uma vez que o próprio Beuys assim o preferia. 33 Em 1982 em Kassel, por exemplo, após longo debate sobre a relação homem/árvore, Beuys e diversos participantes, plantaram 7000 carvalhos pela cidade. Em 1971, o artista nadou em uma área bastante poluída de Zuinerd Zee e, em outra ocasião, fez uma greve de fome em nome da natureza “que morre por nós”.

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Fig. 2 – Conferência de Beuys - 1972

essa nova maneira de encarar a arte, ações estas que levavam a debates

participativos e a tomadas de decisões conjuntas que tinham como objetivo uma

transformação cultural e social.

Talvez poucos artistas tenham se

dedicado tanto à fala quanto Beuys.

Como um eterno professor, tem em sua

história incontáveis conferências,

declarações, discussões, seminários,

entrevistas, construindo o que Alan Borer

chamou de “instalação verbal”34, cuja

política ocupou um lugar de destaque

entre os temas mais pensados e falados por Beuys. Em uma conferência do artista,

“Encontro com Joseph Beuys”, pronunciada no Palazzo Taverna, Incontri

Internazionali d’Arte em 12 de abril de 197235, o tema foi amplamente discutido.

Beuys já inicia sua argumentação apontando o fato das pessoas não acreditarem

em conceitos como democracia, liberdade, socialismo, partidos, parlamentarismo,

economia... Teria então dito: “posso até mesmo imaginar os comentários:’ lá vem

de novo a história da democracia, do socialismo e da liberdade. A mesma velha

história!’”36 O artista no entanto, deixa claro que abordaria o tema sob a ótica da

sua experiência como artista e professor.

Segundo Beuys, para a realização de uma mudança social, essa deveria

necessariamente iniciar-se pela esfera cultural e, somente num ambiente de

liberdade, idéia amplamente defendida por ele, isso se tornaria possível.

Toda reivindicação de liberdade deve ter limites a fim de salvaguardar e garantir a liberdade de toda a coletividade. Eu reivindico liberdade para a escola, liberdade para a universidade, liberdade para os artistas, liberdade de opinião, liberdade de crítica, liberdade de imprensa, liberdade de antena, etc. Todos esses são espaços que não fazem parte do mundo econômico, mas sim do âmbito informativo e

34 BORER, Alan. Joseph Beuys. p. 14. 35 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. Transcrição de uma conferência do artista, “Encontro com Joseph Beuys”, pronunciada no Palazzo Taverna, Incontri Internazionali d’Arte, 12 de abril de 1972, 19h. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70. 36 Ibid., p. 300.

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cultural-formativo de um país.37

Beuys acreditava na idéia de co-gestação política, de uma estrutura de

governo em que as decisões não tomassem um caminho que partisse de cima:

“nós queremos desmontar toda forma de governo que haja de cima para

baixo.”38 Para ele, no momento em que se

delega representantes políticos, estaríamos

de certo modo, negligenciando nosso

direito de intervir no direcionamento da

política, da economia e da democracia. A

democracia não deveria ser construída

partidariamente, e sim, pela participação

consciente dos cidadãos. Estes deveriam ter

direito a intervir em decisões, por exemplo, no que concerne à distribuição da

renda nacional, uma vez que essa muitas vezes seria empregada no que o artista

chamou de “operações desprovidas de sentido”39, que não necessariamente

estariam associadas a interesses da coletividade. Uma vez que essa renda é

adquirida pelo trabalho dessa coletividade, acreditava o artista, que nada seria

mais justo, que esta pudesse participar ativamente das decisões no modo como

empregá-la. “(...) é absurdo que uma minoria seja chamada a decidir, sozinha,

sobre a gestão econômica de um país. (...) A renda nacional é soma de tudo que

foi produzido pela coletividade no âmbito do processo de produção.”40

Por conta destas idéias, o artista fundou em 1971 a “Organização para

democracia direta mediante referendo livre”. Com isto Beuys saía da academia,

ampliando a sua ação política, uma vez também que acreditava que a idéia de um

partido estudantil seria de certo modo muito restrita. Eventos eram organizados de

modo que se pudesse mostrar às pessoas que a política afeta diretamente a todas

as pessoas e a todas as esferas, não podendo ser um tema exclusivo de “políticos

profissionais”.

37 Ibid., p. 302. 38 BEUYS, Joseph apud BODENMANN-RITTER, Clara. Joseph Beuys: cada hombre, un artista, p. 25. 39 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA,

Fig. 3 – “A democracia é divertida!” - 1973

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Apenas a arte é capaz de desmantelar os repressivos efeitos do antigo organismo social que continua a vigorar (...) e deve ser desfeito para a construção do organismo social como um trabalho de arte. A mais moderna disciplina de arte – escultura/arquitetura social – apenas poderá fluir quando todas as pessoas se tornarem criadoras, (...) arquitetas do organismo social. (...) A ‘Organização para democracia direta mediante referendo livre’ é um grupo que busca estimular a organização de muitos grupos ou centros de informação semelhantes e se esforça para a cooperação mundial.41

Segundo o artista, estar-se-ia vivendo um período de “estados unitários”,

onde conceitos como liberdade e socialismo teriam se desvirtuado, sendo mal

aplicados. Uma modificação social se fazia urgente para ele, que acreditava que só

poderia ser possível pelo viés da criatividade, e não como falou Marx, através de

uma revolução oriunda do sistema produtivo; deveria sim, de acordo com o

artista, dar-se através de uma revolução que modificasse “esta lógica fazendo com

que o movimento revolucionário nasça do pensamento, da arte e da ciência”42.

Não querendo desmerecer as análises marxistas, mas segundo Beuys: “Marx foi

genial ao elaborar esta teoria analítica; esqueceu, porém, de traçar um modelo

de liberdade e sua análise foi sucessivamente focalizando-se cada vez mais nas

relações de produção que regulam a economia”43.

Se tal revolução se daria pela criatividade, a arte seria o terreno apropriado

para isso. “Somente a arte pode ser revolucionária, seguida, em segundo lugar,

pela ciência”44. Esta segunda posição ocupada pela ciência se deve ao fato do

artista afirmar que a revolução se daria apenas num campo de liberdade, campo

esse encontrado em seu sentido pleno, apenas na arte, uma vez que a ciência45,

embora dotada de uma liberdade de intervir, por exemplo, em condições

ambientais, bem como modificá-las, tem essa liberdade encerrada no momento em

que o pensamento lógico lhe é exigido. Diante de tal aspecto, Beuys volta-se ao

Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70, p. 303 40 Ibid., p. 303. 41 BEUYS, Joseph apud TISDALL, Caroline. Joseph Beuys, p. 268-269. 42 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70, 2006. p. 304. 43 Ibid., p. 312. 44 Ibid., p. 304. 45 A idéia de ciência por Beuys apontada refere-se às ciências naturais e exatas, dotadas, segundo ele, de conceito positivista e materialista.

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30 fato que, então, somente no campo da arte tal aspecto não é obrigatório, e neste

momento cita Schiller: “Apenas o homem que joga, livre dos vínculos da lógica,

sensível apenas às injunções do belo e da estética, apenas o homem que se

autodetermina é um homem livre”46

Beuys considerava que os problemas sociais não seriam apenas frutos do

sistema capitalista, dominado pelo que chamava de “ditadura dos partidos”47; no

momento em que se delega o poder pelo voto, a sociedade estaria negando ela

mesma ao seu direito de decisão real e, então, o que se entende por democracia

(poder do povo) estaria perdido. Os partidos estariam interessados somente em

chegar ao poder e as pessoas, de um certo modo, se sentiriam descansadas por não

precisarem tomar decisões. O artista apontou como solução a formação do que

chamou de “democracia direta” e que o modo de alcançar a prática dessa idéia

seria através da arte e da educação, apesar de mesmo essa estar imbuída de um

conceito passivo de democracia, fazendo-se necessário uma reformulação nas

bases desse modelo educacional:

A questão principal consiste em acordar o homem do refluxo individualista, subtraindo-o do “privado”. O presente é caracterizado em toda parte por uma forte tendência à despolitização, à privatização, ao conformismo. É tarefa nossa fazer, por todos os meios possíveis, com que as pessoas voltem a se interessar pelo “social”, a retomar o seu inato sentido de coletivismo. (...) Para comunicar-me com meus semelhantes escolhi o método da arte, a única maneira com a qual consigo ajudar os outros a se liberarem da própria alienação. Este é o tipo de organização que, pessoalmente, dei a mim mesmo para realizar a democracia direta. É uma organização que refuta os partidos, mas que desenvolve um trabalho extremamente prático e concreto.48

1.2.1 Política ambiental

A ecologia foi um dos grandes temas e uma das grandes preocupações de

Beuys, não a ecologia entendida apenas como ações de defesa da natureza, mas

46 SCHILLER apud BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70, . p. 305 47 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70, p. 318. 48 Ibid., p. 324.

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31 num sentido ampliado, a ecologia envolvendo todas as relações entre seres vivos e

o meio ambiente, incluindo os seres humanos, tanto que além das atividades

artísticas, Beuys também participou da fundação do Movimento Verde em 1979.

Nossa relação com a natureza se caracteriza por estar cada vez mais distorcida. As constantes destruições de nosso nicho ecológico são uma ameaça. Temos empreendido no melhor caminho para aniquilar com isto, pois estamos praticando um sistema econômico que se fundamenta na exploração indiscriminada deste sistema natural.49

Para o artista, homem e natureza estão

intimamente ligados. Um homem que

desmata, polui ou extermina espécies,

somente poderia representar o quão doente

a sociedade estava. Era preciso um homem

integrado com seu meio ambiente e, na obra

do artista, materiais de origem animal e

vegetal são muito freqüentes, trazendo

consigo as forças da natureza.

Muitos foram os trabalhos que tiveram idéias de fundo ecológico como tema

principal, mas, apenas em nível de ilustração, destacamos os “7000 Carvalhos”

proposto por ele na Documenta de Kassel de 1982.

Eu disse que eu não gostaria de ir novamente para dentro de prédios para participar de discussões sobre arte. Eu quero ir para o lado de fora e dar um início simbólico para o meu empreendimento de regeneração da vida humana dentro do corpo social e preparar um futuro positivo neste contexto.50

O trabalho do artista consistia na plantação de 7000 carvalhos na cidade, ao

lado de cada um seria colocada uma pedra de basalto, de modo que, com o passar

dos anos e o crescimento das árvores, os monolitos fossem parecendo menores.

49 BEUYS, J. Llamemiento a la alternativa. In KLÜSER, Bernd (org.). Joseph Beuys : ensayos y entrevistas, p. 91. 50 BEUYS, Joseph. Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni, p 110.

Fig. 4 – 7000 Carvalhos, 1982-1987

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32

Fig. 05 - Circular de pedido de ajuda financeira para o projeto dos 7000 carvalhos - 1982

Deste modo, a obra seria composta de uma parte viva em desenvolvimento e uma

parte cuja forma permaneceria fixa.

A escolha do carvalho não foi aleatória. “Eu penso que a árvore é um

exemplo de regeneração que possui em si um conceito de tempo. O carvalho em

especial porque ele tem um crescimento lento e é uma espécie de coração da

floresta.”51 É uma espécie de árvore ligada à mitologia celta, e diziam que os

druidas52 ficavam sob essas árvores enquanto exerciam uma função judiciária. Por

ser um organismo vivo, as idéias aí

proferidas se deslocariam e se

propagariam entre os homens. Ao

lado de uma pedra imóvel,

simbolizaria uma evolução. “A

noção básica que Beuys coloca no

centro desta relação entre

movimento da árvore e a

estabilidade da pedra é a

economia. A idéia de uma escultura

em evolução permanente torna-se

assim metáfora de uma

transformação da estrutura

econômica do mundo.”53

Mas além desse significado, o

carvalho representava também algo

dolorido à história alemã, uma vez que o símbolo do carvalho havia sido utilizado

pelos nazistas. Trazê-lo de volta era um modo de mostrar que este símbolo é

muito anterior a qualquer uso que os nazistas possam ter feito dele, assim como o

local onde as pedras de basalto foram colocadas, que a princípio era o mesmo

onde ficaram empilhados os corpos das vítimas dos ataques aéreos sofridos por

Kassel durante a II Guerra.54

51 Ibid., p. 111. 52 Nome dado aos antigos sacerdotes gauleses ou celtas. In: Dicionário Aurélio versão digital. 53 LANCMAN, Sandra. A ecologia como foco da arte – Beuys e Krajcberg, p. 83. 54 TISDALL, Caroline. Joseph Beuys: we go this way, p. 244.

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33

Esta obra teve início com o primeiro carvalho plantado por Beuys em 16 de

março de 1982 e “encerrou-se” com a plantação do último em 12 de junho de

1987, tempos após a morte do artista. A ação pela mão do homem havia

terminado, ficando agora a cargo da natureza. Esse foi um exemplo de obra-ação

coletiva, tendo envolvido diversas pessoas, recebendo financiamento de diversas

instituições e sendo coordenada pela FIU.

Fazer política podia também ser um modo de fazer arte e, com ações como

esta, Beuys procurava um diálogo direto com a sociedade, saindo do campo

exclusivo da arte, de modo a promover uma relação com a vida cotidiana,

demonstrando que não há porque acreditar que a arte seja um campo distante e

isolado de nós, aproximando a esfera da arte da esfera pública.

1.2.2 A relação de Beuys com o Grupo Fluxus

Beuys evidenciou plasticamente o seu logos de cunho político, que buscava

a interação arte/vida, uma arte que por seu caráter político e social, aproximava-se

de um coletivo, ampliando seu próprio conceito, unindo fazer e teoria, deixando

essa de ser uma auto expressão de si mesma, para dialogar com a sociedade,

dialogar com a vida. Uma arte com princípios sócio-estéticos, como a do Grupo

Fluxus, com quem Beuys atuou de 1962 a 1965 em algumas ações, tendo também

participado da sua fundação.

O Fluxus pautava-se na idéia de inexistência de uma autoria individual, de

uma obra de arte original e única, de um objeto de arte transformado em

mercadoria, transgredindo o sistema de arte, buscando um certo afrouxamento de

estruturas fixas da arte. “O fluxus você não encontra em museus”55, já dizia

Maciunas. Em suas atividades o grupo valorizava a prática, o processo, a

experiência, o fazer artístico e não exatamente a elaboração de um “objeto de

arte”.

Ao pensarmos no próprio nome do grupo, veremos que ele já nos leva a uma

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34 idéia de fluidez. Gestos e palavras tornaram-se materiais fundamentais do artista.

Pretendia-se uma mudança de consciência, da arte, da figura do artista e da atitude

deste perante a sociedade. “Se o homem pudesse ter a experiência do mundo, o

mundo concreto que o cerca, da mesma maneira que tem a experiência da arte,

não haveria necessidade de arte, de artistas e de elementos igualmente ‘não-

produtivos’”.56

Com o Fluxus, Beuys teve a oportunidade de pôr em ação suas idéias diante

de uma platéia. Era comum um paralelo entre as ações Fluxus e os happenings57,

embora Beuys discordasse em parte com isso, uma vez que segundo ele:

O happening difere do Fluxus no que tange a participação da audiência, que não é um elemento essencial da ação; ao contrário do Fluxus, em happenings americanos quase tudo é reforçado pela audiência que também age. O único que usou este conceito de americano no Fluxus foi Vostell. (...) Nas ações Fluxus os artistas entravam na audiência e executavam ações entre as filas; a audiência também tornava-se parte, mas tudo dentro de um caráter disciplinado. Não havia tanto ativismo por parte da audiência como nos happenings, que se mostravam com freqüência uma apresentação caótica.58

Nos concertos Fluxus, os artistas agiam diante do público, privilegiando um

caráter maior de representação, ao contrário dos happenings americanos, como os

feitos por Allan Kaprow, em que a audiência participava da ação quase como um

ator coadjuvante.

Segundo Stachelhaus59, a Beuys agradava a característica interdisciplinar

55 MACIUNAS, George apud BANES, S. Avant-garde: performance e o corpo efervescente, p. 89. 56 MACIUNAS, George. In: HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O porquê, p. 90. 57 “Os happenings eram atividades grupais e aos olhos de hoje, podemos dizer que eram skethes basicamente elaboradas. Na tentativa de ampliar o reino da arte além das situações de exposições, do museu e da galeria, muitos dos happenings foram executados em locais como sótãos, lojas, estacionamentos, pequenas galerias ou mesmo em pequenos teatros. Dificilmente acontecia num palco tradicional, mas sim num ambiente plasticamente preparado. Passa-se a valorizar questões da existência cotidiana, estimulando o espontâneo em detrimento do elaborado. Ao contrário do que se exige no teatro, não era feito por atores, mas por qualquer pessoa, inclusive por alguém que estivesse assistindo a apresentação e que fosse incorporado à cena. Parecia ser objetivo do gênero incomodar e por vezes maltratar o público; em algumas apresentações, por exemplo, não havia uma preocupação com a qualidade de visibilidade que o público teria, fazendo-se uso de meia-luz, breu total, ambientes apertados que obrigavam as pessoas a ficarem espremidas, cenas vistas através de fendas...” PORTUGAL, Ana Catarina M. da C. M. Performance-instalação: uma intersecção pela obra de Joseph Beuys, p 17. 58 BEUYS, Joseph Apud ADRIANE, Götz; KONNERTZ, Wintfried; THOMAS, Karin. Joseph Beuys life and works, p 82. 59 STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys, 1991.

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35 apresentada pelo grupo, o fato dos artistas poderem utilizar qualquer tipo de

material que lhes conviessem durante suas ações e destas serem, de certo modo,

de simples execução.

Havia tanta ideologia e interpretação diferente do que era o Fluxus como havia pessoas, e a chance de trabalhar com pessoas de diferentes opiniões foi um dos aspectos mais desafiantes. Tudo poderia ser incluído, do rasgar de um pedaço de papel até a formulação de idéias para a transformação da sociedade.60

De acordo com Lauf61, o artista John Cage com seus princípios de

experimentações musicais teria sido de extrema importância no cenário artístico

da década de 50 e de forte influência sobre o Fluxus, e conseqüentemente sobre o

trabalho de Beuys. Nas aulas que ministrava na Black College Mountain e New

School for Social Research, Cage conseguiu reunir alunos de diversas áreas, desde

artes visuais a letras e música, de modo a desenvolverem uma arte coletiva que

fosse capaz de despertar diferentes tipos de experiências e percepções estéticas.

“A arte, em vez de ser um objeto feito por uma pessoa, é um processo

desencadeado por um grupo de pessoas. A arte é socializada.”62 Cage explorava

em suas experimentações as possibilidades sonoras, originadas de ‘músicas’, sons

que vêm da vida, do silêncio, quebrando a fronteira que define o que é ou não

música, desenvolvendo uma estética do acaso. Para Cage “a arte não devia ser

diferente da vida, mas uma ação dentro da vida. Como tudo na vida, com seus

acidentes e acasos e diversidade e desordem e belezas não mais que fugazes.”63

A presença do elemento musical nos trabalhos de Beuys remonta ao seu

encontro com Nam June Paik em 1959 e depois com o Grupo Fluxus em 1963,

através da ação “Sinfonia Siberiana”. Parte do interesse do artista no grupo estava

também relacionada a presença acústica que marcava as apresentações deste.

Segundo o artista:

Os concertos Fluxus eram elaborados por pessoas que tinham mais interesse em

60 TISDALL, Caroline. Joseph Beuys. p.84. 61 LAUF, Cornelia. Joseph Beuys: the pedagogue as persona. 62 CAGE, John Apud DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos, p. 201. 63 CAGE, John apud GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: do futurismo ao presente, p. 116.

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som do que em pintura ou escultura (...) Sua atitude era revolucionária e rompia com a idéia tradicional de concerto. (...) Tudo era improvisado. O elemento acústico e a qualidade escultural do som sempre foram essenciais para a minha arte, (...) talvez meus estudos de piano e violoncelo tenham me influenciado nisso. E havia ali o uso do som como material de escultura. Uma expansão total da compreensão de escultura no sentido da utilização do material. Assim, materiais sólidos como metais, barro e pedras eram unidos por sons, barulhos e melodias. O uso desse tipo de linguagem fazia com que passasse a ser assunto para escultura, na medida que todas essas coisas tomam uma forma através do pensamento, então pensamento também poderia ser considerado como um meio plástico.64

Foi sob o nome do Fluxus, que Beuys realizou a sua primeira ação

importante: “Sinfonia Siberiana - 1º Movimento”, no Festum Fluxorum Fluxus, na

Academia de Dusseldorf, em 1963. Nessa ação via-se um piano, um quadro-negro

e uma lebre morta, elementos que

freqüentemente apareceram ao longo de suas

obras. Os dois primeiros elementos já faziam

parte do cenário coletivo e ele os aproveitou,

mas antes os reorganizando de modo a se

distinguir do Fluxus. Sinfonia Siberiana - 1º

Movimento desenvolveu-se na segunda noite

do evento e, segundo Beuys, teria sido “demasiado pesado, complicado e

antropológico para eles [Fluxus]. Contudo, a Sinfonia Siberiana – 1º movimento

conteve a essência de todas as minhas atividades futuras e realizou-se, a meu ver,

uma compreensão mais ampla do que o Fluxus poderia ser.”65 A ação de Beuys

terminava com o artista retirando o coração de uma lebre. “(…) por mais radicais

que fossem as formas e materiais de seus primeiros trabalhos, continuavam sendo

objetos tradicionalmente consumíveis, comodidades que se prestavam a serem

colocadas em galerias”66. Esta ação marcava a virada na carreira do artista em

direção à arte performática; neste momento, o artista parece ter compreendido que

tudo era passível de se tornar arte.

64 BEUYS, Joseph Apud DURINI, Lucrezia de Domizio. The felt hat a life told, p. 27. 65 BEUYS, Joseph Apud TISDALL, Caroline. Joseph Beuys, p. 78. 66 ROTHFUSS, Joan. O que é Fluxus? O que não é! O porquê. p. 58.

Fig. 6 – Sinfonia Siberiana - 1963

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Beuys foi muitas vezes acusado por outros elementos do grupo de não ser

um “verdadeiro Fluxus”. O fato é que o artista buscava formular uma teoria que

fosse alem das apresentações de happenings

que tinham a atitude de provocação como

intuito. Para o artista a provocação não deveria

ser uma ferramenta para chocar os

espectadores, a crítica ou o circuito de arte por

si só, mas sim deveria funcionar com uma

espécie de alavanca que estimulasse o

pensamento e a crítica social.

Apesar das características que Beuys

admirava no grupo e de dividir com eles à idéia

de que a arte não deveria se restringir apenas

aos artistas, mas sim a sociedade como um

todo, o artista em dado momento passou a

acreditar que o Fluxus de fato não levava esta idéia tão à fundo e na medida em

que seria necessária uma estrutura política e teórica mais sólida, mais clara e

eficiente, de modo que as idéias do grupo pudessem alcançar e serem aplicadas à

realidade.

Eles [Fluxus] seguravam um espelho para as pessoas, mas não indicavam como mudar esta imagem. Isto não quer dizer que eu esteja depreciando o que eles alcançaram na direção das conexões entre a arte e a vida e de como a arte poderia ser desenvolvida.67

1.3 OS MATERIAIS E A BIOGRAFIA NA OBRA DE BEUYS

O artista participou como piloto na II Guerra Mundial e teve no inverno de

1943 o seu avião bombardeado, caindo na região da Criméia durante uma

tempestade de neve, sendo Beuys o único sobrevivente. Gravemente ferido e à

beira da morte, Beuys foi recolhido por um grupo de nômades tártaros, que lhe

67 BEUYS, Joseph Apud TISDALL, Caroline. Joseph Beuys, p.84.

Fig. 7 – Pôster do Festum Fluxorum

Fluxus - 1963

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38 cobriram o corpo com gordura e envolveram-no em feltro, criando o que Beuys

chamou mais tarde de “ambiente mágico”, de “vivência xamânica”, cujos

materiais o teriam salvado, tornando-se bastante significativos em sua poética. Por

isso ambos reapareceram metaforizados com freqüência em muitas de suas ações

e tornaram-se os materiais fundamentais de suas esculturas.

Para alguns pesquisadores, parece existir por trás da biografia do artista,

uma certa “encenação”68, biografia essa essencial para a leitura de sua obra. O que

temos e sabemos sobre sua vida, basicamente nos chegou pelas mãos do próprio

artista. Beuys utilizou seu material biográfico como material de arte, trazido numa

primeira instância pelo uso freqüente dos materiais que lhe “salvaram a vida”.

“Ele se expõe a si mesmo, transformando acontecimentos biográficos em temas de

exposição.”69 Entender a obra do artista negando sua biografia, seus textos, seu

pensamento fica no contexto beuysiano bastante comprometido, uma vez que o

artista insistentemente fundia os limites da arte e da vida.

Embora pouco mencionasse sobre sua participação no exército alemão,

Beuys buscava em raízes do passado material para iluminar o presente, de modo a

conseguir pôr em movimento o seu projeto social. No texto “Tendências

Apologéticas”70, Habermas aponta para construção por parte de alguns

historiadores de uma identidade nacional alemã unívoca e consensual. Para fazer

tal colocação o autor tinha como suporte as comemorações dos 40 anos do fim da

II guerra. Fazia-se necessário uma auto-reflexão que fosse permanente e passível

de constantes questionamentos, semelhante ao princípio conceitual que conduzia

as ações de Beuys. O artista não procurava construir um modelo pronto, mas

deixar um espaço para que pudesse emergir no outro uma auto-reflexão autoral.

Através da escolha dos materiais freqüentemente observados na obra do

artista, podemos notar uma aproximação com a vida cotidiana, ainda que muitas

vezes, pelo viés do privilégio de materiais rejeitados pela sociedade de consumo,

sendo esses materiais oriundos de fragmentos da realidade que estão presentes

para narrar uma história, que deverá ser recriada pela participação do espectador.

68 Tal questão pode ser observada por exemplo, no texto de BORER, Alan. Joseph Beuys, p. 12. 69 HOHLFELD, Marion. Reflexões sobre a encenação auto-biografica de Joseph Beuys – sua função e sua crítica, p. 50.

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39 Estão repletos de uma carga simbólica.

Dentre os materiais mais comuns a sua obra, estão: feltro, cobre, mel, palha,

banha (gordura animal), cera, ouro, animais e tantos outros materiais da “ordem

do imaterial, de uma energia distendida ou condensada, conduzida ou acumulada

a partir de trabalho humano”71. Tudo podia se tornar material de arte.

Observando os suportes que Beuys utilizou em muitas de suas obras,

notaremos a freqüente presença de carteiras de cigarro desdobradas, folhas de

agenda ou caderno, postais, envelopes... Era um reaproveitamento de restos em

detrimento ao novo. A escolha de seus suportes era tão importante, quanto o

trabalho que ele faria. A significação da obra estava nesse conjunto. Com esses

materiais retirados do cotidiano, podemos perceber um texto que nos fala de um

mundo de restos, de detritos, de destruição. Através dessa poética do fragmento,

podemos também localizar Beuys dentro de uma tradição da colagem, onde um

pedaço da realidade pode se tornar um universo inteiro.

Entre os materiais considerados beuysianos

por excelência temos a gordura. Esta, assim como a

cera, é uma substância amorfa, versátil, passível de

ser moldada. Está metaforicamente ligada ao

princípio da escultura social do artista. Segundo

Carmen Bernárdez, “na teoria escultórica do

artista, este movimento entre estados é uma

mudança física do movimento espiritual que

conecta e desliga os estados do ser humano:

pensamento, sentimento e vontade.”72 É uma

substância que se transforma de acordo com as

condições do ambiente em que se encontra. Mas, além das qualidades que esse

material possa ter, há também a intrínseca relação com o acidente sofrido pelo

artista na Segunda Guerra Mundial.“Se eu não tivesse sido salvo pelos tártaros,

não estaria vivo... untaram meu corpo com gordura para ajudar a recuperar o

70 HABERMAS, Jürgen. Tendências apologéticas. 71 TESSLER, Elida. Formas e formulações possíveis entre arte e vida: Joseph Beuys e Kurt Schwitters, p. 63.

Fig. 8 – Cadeira Gorda - 1964

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40 calor, e o envolveram em feltro como isolante para conservar o calor.”

73

Para Beuys, os objetos tiveram sempre dimensões físicas e metafóricas que

se estendiam ao quotidiano. O aspecto preliminar de um objeto é colocado em seu

elemento material. Um objeto é sempre uma metáfora de algo que transcende a

matéria. A gênesis do significado com este paradigma da metáfora do material é

um sinal de autenticidade em seu trabalho. O significado é gerado através do

movimento ao longo de uma série de níveis metafóricos: do elemento material

(gordura), ao estado físico (líquido/sólido), ao conceitual (orgânico/cristalino). Em

muitos contextos, o material está sozinho, como a gordura, como o feltro, mas é

também uma exemplificação das qualidades físicas inerentes ao material: a

gordura sólida é firme, contudo flexível, contendo uma energia cinética nutritiva.

Assim, para ele, um significado metafórico imenso é colocado entre a gordura em

seus estados contínuos. Finalmente, a gordura é uma metáfora para o potencial,

para a mudança e a liberação da energia criativa. Segundo o artista:

Atraía-me a flexibilidade do material, particularmente em suas reações às mudanças de temperatura. Esta flexibilidade é psicológica: as pessoas, de forma instintiva, sentem que tem a ver com processos e sentimentos internos. Buscava uma discussão sobre o potencial da escultura e da cultura, o que significavam, como era sua linguagem, que queriam dizer isso da produção e criatividade humana. Assim, optei pela posição extrema na escultura, e por um material [gordura] que era muito básico na vida e em absoluto associado com a arte.74

Do mesmo modo, o feltro exemplifica

a materialidade, densidade, as propriedades

de isolamento e de proteção. Na instalação

“Pligh”, montada em Londres em 1985

(tratava-se de uma sala forrada com duas

camadas de feltro do chão ao teto, com um

piano ao centro, um quadro negro e um

termômetro), o espaço era bastante abafado,

72 BERNÁRDEZ, Carmen. Joseph Beuys, p. 49. 73 TISDALL, Caroline. Joseph Beuys. Nova Iorque: The Solomon R. Guggenhein Museum, 1979. p. 16-17. 74 Ibid., p. 72.

Fig. 9 – Pligh - 1985

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41 causando para muitos uma sensação de isolamento, de sufocamento. “Ele expôs

nosso isolamento, a ausência de comunicação.”75 Era um espaço plasticamente

preparado que se completava na presença e interação do público. As relações com

o calor estão aqui colocadas, o calor como um princípio plástico, “transcendendo

o espaço, se manifestando sobre a forma de expansão e de retração, do amorfo e

do cristalino, do caos e da colocação da ordem.”76

A cera e o mel, elementos oriundos das abelhas, para além das suas

qualidades materiais, estão carregados de metáforas da vida humana. O

funcionamento da colméia pode ser associado a uma espécie de “socialismo

natural”, que poderia servir de modelo para a formação da nossa sociedade.

Dentre os animais, que com freqüência aparecem em sua obra, a imagem do veado

e da lebre significam o gênero e o poder intuitivo dos animais. Estas metáforas

remanescem consistentes, embora nunca finitas.

A lebre tem algumas coisas em comum com o veado, mas tem uma especialização muito diferente com relação às forças do sangue. Não está ligada, como no caso dos veados, à parte superior do corpo, da cintura até a cabeça, mas remete mais para baixo. Então a lebre tem uma relação forte com a mulher, com o nascimento e também com a menstruação, e de um modo geral com o conjunto das transformações químicas do sangue. É disso que se tratava aqui de maneira alusiva, do que a lebre torna visível para nós todos quando ela faz a sua toca. Ela se enterra. Assim temos novamente o movimento de encarnação. É isso que faz a lebre: encarnar-se fortemente dentro da terra, coisa que o homem só pode realizar radicalmente por meio de seu pensamento: esfregar, bater, cavar na matéria (terra); por fim penetra (a lebre) nas leis da terra.77

1.4 A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ EM SUA OBRA

Beuys dizia-se anticlerical, indo contra a instituição da Igreja, como foi em

relação aos partidos políticos. Seu descontentamento consistia no fato de a Igreja

priorizar o poder e os interesses financeiros ao invés dos interesses sociais: “sou

75 OSÓRIO, Luiz Camillo. A estética Romântica e Joseph Beuys, p.11. 76 MÉREDIEU, Florence. Histoire matérielle & imatériellede lárt modern., p. 31. 77 O texto foi indicado pelos arquivos de Joseph Beuys como sendo a versão original da declamação do artista em sua ação Wie Man dem toten Hasen die Bilder erklärt, 1965, galeria Schmela, Düsseldorf. “Gespräch zwischen Joseph Beuys und Hagen Lieberknecht – geschrieben von Joseph Beuys” foi publicado em Joseph Beuys. Zeichnungen, Köln, 1972.

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42 um grande inimigo de todas as Igrejas.”

78 O artista acreditava que as instituições

tolhiam a liberdade do homem, indo contra o que Cristo pregava, uma vez que

para ele: “Cristo também fez da liberdade do homem um dos pontos fortes de sua

doutrina.”79 Para Beuys a essência (de bondade, de amor a si, ao outro e à

natureza, ...) de Cristo existe em todas as pessoas e deveria ser despertada no ser

humano. Parte de sua crítica à Igreja é pelo fato desta não ter conseguido despertar

no homem essa essência.

A figura de Cristo, direta ou

indiretamente, foi bastante recorrente em suas

obras iniciais, bem como nas ações. “O

elemento cristão está ligado com as forças da

natureza, com os movimentos planetários e

com as dimensões cósmicas.”80 Ao representar

esse tema, o artista não seguiu o acontecimento

histórico que está por trás da imagem de

Cristo, mas sim a força que emana e a

sensibilidade espiritual que despertou.

Cristo não é um profeta especialmente importante, um grande homem, como muitos dizem, um profeta incomparável de uma dimensão moral esplêndida que a gente quer e deve seguir; é sim uma força, uma força divino-humana que se produziu durante um determinado contexto histórico.81

Na temática cristã lhe atrai especialmente o sofrimento e a morte que se

transformam em ressurreição. O foco da atenção não devia ser dado ao sofrimento

em si, mas sim à transformação que o sofrimento é capaz de suscitar. Para ele o

que Cristo passou em seu suplício era a mensagem de esperança, de transformação

e esse deveria ser o foco das representações de Cristo. Até mesmo com a política

o artista relacionava a figura de Cristo, uma vez que para si, a idéia de amor ao

78 BEUYS apud MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo, p. 80. Este livro consiste numa entrevista do autor do livro ( um padre ) com o artista sobre temas ligados ao cristianismo, como o símbolo da cruz, bem como discutindo conceitos presentes no contexto de sua obra. 79 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70, p. 311. 80 BEUYS apud MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo, p. 28.

Fig 10 – Não intitulado (O inventor da máquina a vapor) e (O inventor da

eletricidade) - 1971

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Fig. 11 – Manresa - 1966

próximo pregado por Cristo é a base do pensamento socialista, “dever-se-ia dizer

que todas as idéias socialistas seriam inconcebíveis sem a idéia de Cristo.”82

Muitas foram as ações do artista que tiveram símbolos cristãos utilizados de

modo direto, como é o caso de Introdução homogênea para piano de cauda: o

maior compositor contemporâneo é a criança

talidomida (1966), Manresa (1966), Celtic

+~~~~ (1971). Em Celtic +~~~~, faz uma clara

alusão à lavagem dos pés cristã e ao batismo. Em

Manresa utiliza o símbolo da meia cruz latina e

princípios dos “Exercícios Espirituais” de Inácio

de Loyola83 e em Introdução homogênea para

piano de cauda, traz aplicado no feltro que

envolve o piano, uma cruz vermelha.

“A cruz é o símbolo do conflito do ser

humano com suas próprias idéias.”84 Para ele a

cruz é um símbolo do esforço do homem em busca do conhecimento e não apenas

um símbolo cristão. Mas vê também uma relação com as ciências, uma vez que

essa utiliza os sistemas de coordenadas quando se refere a relação espaço-tempo.

O cristianismo não se realizou nas Igrejas tanto quanto na evolução do pensamento científico ocidental. O preço pago por este resultado foi o isolamento intelectual do homem. Pois a afirmação da autodeterminação e do livre pensamento se fez acompanhar por um crescimento do egoísmo, um conceito que impede ou pelo menos torna difícil a instauração daquela ponte ideal que deveria unir os indivíduos entre si.85

81 Ibid., p. 42. 82 Ibid., p. 84. 83 Inácio de Loyola (1491 – 1555) foi fundador da Companhia de Jesus. Passou um ano de sua vida na cidade espanhola de Manresa, onde escreveu os Exercícios Espirituais, que segundo ele não deveriam apenas ser lidos, mas postos em prática. Tais exercícios tinham duração de quatro semanas e deveriam ser feitos num local diferente de onde estamos habitualmente, o que fez com que os jesuítas criassem as “Casas de Exercícios”, locais que facilitariam a prática dos Exercícios. As etapas dos Exercícios Espirituais encontram-se melhor detalhados nos anexos desta dissertação. 84 BEUYS apud MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo, p. 82. 85 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70, p. 313.

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Fig. 12 – Celtic +~~~~ - 1971

O homem é para o artista um ser

completamente terreno que, no entanto e

apesar disso, não deixa completamente

de lado as questões espirituais. Ele é

terreno porque obedece às leis naturais e

biológicas, de nascer, se desenvolver e

morrer; mas por outro lado também é

dotado de um espírito que transcende

sua fisicalidade. “A vida do ser humano

e seu espírito, especialmente, constituem

para mim valores permanentes, perduráveis que transcendem o caráter espaço-

temporal das relações terrenas.”86 Uma vez que para Beuys todo ser humano é

dotado de poder de criação, todo homem é de certo modo um Criador, capaz de

modificar a realidade a sua volta, de re-criar o mundo, sendo então responsável

por ele, pois suas ações se refletirão na vida.

86 BEUYS apud MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo, p. 82.

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2.

CONCEITO AMPLIADO DE ARTE E ESCULTURA SOCIAL

“Como a maioria das pessoas pensam em termos materialistas, não podem entender a minha

obra. Esta é a razão pela qual não considero necessário apresentar meros objetos, para fazer com que as

pessoas comecem a entender que o homem não é um mero ser racional”

Joseph Beuys∗

A produção de Joseph Beuys não se limitou ao campo artístico, atingindo

também o campo político e educacional, como já vimos. Ele não só ignorou

fronteiras, como procurou aboli-las. A partir disso, começamos a nos aproximar

do seu “conceito de arte ampliada”, que via a arte como parte integrante da vida e

como parte fundamental no processo de formação e organização social.

Beuys acreditava que a arte estava presente na vida, no mundo, em qualquer

lugar. Para ele, todos eram artistas, todos possuíam capacidades criadoras a serem

desenvolvidas.

Todo homem é um artista. Isso não significa, bem entendido, que todo homem é um pintor ou escultor. Não, eu falo aqui da dimensão estética do trabalho humano, e da qualidade moral que aí se encontra, aquela da dignidade do homem.1

Com isso, aproximava a arte da vida, exaltando o que há de criativo e

provocador nos mais simples gestos humanos. A arte se ampliou, abarcando o

trabalho humano em geral e com este pensamento criou o que chamou de conceito

ampliado de arte. Segundo ele:

Esta concepção de arte não é nenhuma teoria, é uma configuração do pensamento; evidentemente que não se trata de uma figuração que se pode pendurar na parede

∗ BEUYS, Joseph apud in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas. 1 BEUYS, Joseph. Polentrasnport 1981: entrevista debate conduzida por Ryszard Syanislawisk. In: Et tous ils changet le monde. Catálogo da 2ª Bienal de Arte Contemporânea de Lion. p.110.

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(...) é uma maneira de proceder, onde se percebe que o olho interno é muito mais importante que as imagens externas.2

Através do conceito ampliado de arte, afastou-se de preconceitos e utilizou

de toda uma variedade possível de materiais existentes no cotidiano para a

“confecção” de suas idéias. Adotou uma postura extremada de códigos estéticos,

utilizando materiais que se repetiam, fazendo parte de sua construção poética,

como a gordura e o feltro. Buscava neles mais do que a sensação estética que eles

poderiam despertar.

(...) ampliando este entendimento da arte, nós estamos no processo de totalização da arte. Nós percebemos que a totalização da arte já não está agora relacionada com as atividades dos artistas e em suas especialidades, isolados no denominado campo cultural livre.3

Em seu percurso, Beuys procurou explorar a idéia residual de arte como

uma espécie de metáfora da experiência humana. O homem parecia deslocado da

totalidade, não se reconhecendo mais como parte intrínseca da natureza e,

portanto, era preciso reconhecer o caminho de volta. Este homem estava

envolvido por uma experiência marcada pelas guerras, pelos destroços, por uma

estrutura social que estaria doente e reclamava uma cura, para a qual a arte

poderia ser um precioso remédio. Segundo Nancy Unger4, o mundo atravessava

uma crise de caráter espiritual, onde eram questionados conceitos, valores e a

própria existência humana na procura do seu “eu”. O ser humano necessitava

encontrar suas próprias respostas, tomando consciência de sua “real” interação

com a natureza.

Para o artista, não era exatamente na montagem da obra de arte ou nos

posteriores resíduos de suas ações que estava a sua importância, mas sim na

experiência que a obra podia proporcionar ao ser humano. Enquanto se davam

suas ações (na duração) é que a obra acontecia e, mais do que os resíduos

2 Beuys apud in MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; p. 74. 3 BEUYS, Joseph Apud. Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p.56. 4 UNGER, N.M. “Ecologia e Espiritualidade (o Re-encantamento do Mundo)” In: O Encantamento do Humano: Ecologia e Espiritualidade. pp. 53-61.

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materiais que pudessem promover, era a experiência e a reflexão que podiam

provocar que interessavam ao artista.

As vanguardas vieram para romper com a arte feita no século XIX, “o

modernista tem que destruir, para criar.”5· Uma sucessão de “ismos”, de

manifestos ocuparam o cenário artístico das primeiras décadas do século XX,

corrompendo conceitos, destronando materiais, subvertendo objetos de uso

cotidiano em objetos de arte, recriando o juízo estético. Mas a arte moderna,

segundo David Harvey6, se mantinha presa ao objeto, era formativista, por mais

que subvertesse as formas artísticas. Ainda era, de um modo geral, uma arte

pautada numa relação de observação distanciada entre o objeto e o espectador.

Harvey aponta o final dos anos 60 como o berço da pós-modernidade, onde se

pode notar uma variedade de mudanças de comportamento que refletiam sobre

uma série de setores, assim como na arte. A pós-modernidade não teve o mesmo

sentido de corte da modernidade, mas sim o sentido de continuação,

desenvolvendo-se com bastante tranqüilidade entre o efêmero, o fragmentário, o

caótico, o pluralismo e o descontínuo. A pós-modernidade é considerada por ele

como sendo lúdica e participativa, ambas características presentes na obra do

artista. “Produtores e consumidores participam da produção de significados e

sentidos. (...) A minimização da autoridade do produtor cultural cria a

oportunidade de participação popular...”7

Para Beuys, a produção de objetos era, muitas vezes, mais uma necessidade

mercadológica do que uma preocupação sua. Para ele, um objeto ou resíduo de

ação só tinha valor enquanto ainda carregava um sentido conceitual, enquanto

ainda era entendido como objeto-testemunho da ação. A arte se ampliara para

além do material, a arte se ampliara para a ação, fosse esta uma ação artística,

fosse uma ação cotidiana. Segundo Ronaldo Brito8, o discurso de Beuys seria pós-

modernista porque era performático, porque questionava a lógica da arte, porque

estava impregnada de uma presença humana e animal, fazendo uma forte crítica

ao destino experimental da arte contemporânea.

5 HARVEY, David. A condição pós-moderna; p. 26. 6 Ibid., p. 15-67. 7 Ibid., p.55. 8 BRITO, Ronaldo. Anotações de aula da disciplina História da Arte no mestrado da PUC/RJ, 2004.

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Em 1965, o artista realizou uma de suas mais famosas ações: como

explicar quadros a uma lebre morta9. Nesta ação, Beuys, entre outros aspectos,

trabalhou sobre a “incompreensão” a que teria chegado a arte. Não que o artista

buscasse uma compreensão por vias racionais,

mas sim, que a arte pudesse suscitar

pensamentos através de outros caminhos, como

a intuição ou a inspiração. Com esta ação, o

artista procurou trabalhar com a ausência de

complexidades racionais, que exigissem

conhecimentos de áreas específicas, tentando

trazer à tona a complexidade das áreas criativas. Isso também é uma técnica para levar à discussão da posição humana em uma época crítica, quando as idéias materialistas e racionais ainda estão em vigor, junto com a perda da imaginação, da inspiração e do entendimento de outras coisas.10

Explicar arte poderia ser simples, principalmente quando entendida como

algo além de categorias, como algo que está na vida, no mundo. O conceito de

arte ampliada desenvolvido por Beuys, compreendendo nisso a idéia de que tudo

poderia ser transformado em arte, levou a outro conceito por ele desenvolvido, o

da “escultura social”.

2.1 O PENSAMENTO COMO PRIMEIRA FORMA DE ESCULTURA

A arte deveria se expressar em todos os campos da vida humana e deveria,

sobretudo, agir no interior de cada um, conscientizando a todos do seu potencial

criativo e de mudança, da possibilidade de moldar a sociedade em que se

encontravam. Seu conceito de escultura ia além do objeto físico, compreendia a

política, a cultura, a educação, a organização social como um todo, porque a

9 Esta ação foi apresentada na galeria Schmela de Dusseldorf em 1965. 10 Joseph Beuys, Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (1965), publicado em inglês como Statement on how to explain pictures to a dead hare, em: Caroline Tisdall, Joseph Beuys.

Fig. 13 – Como explicar quadros a uma lebre morta - 1965

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Escultura Social compreendia o próprio pensamento humano.

Meus objetos têm sido estimulados para a transformação da idéia de escultura ou da arte em geral. Eles devem provocar reflexões sobre o que a escultura pode ser e sobre como o conceito de escultura pode ser expandido para materiais invisíveis usados por todos. Como podemos moldar nossos pensamentos ou, como podemos formar nossos pensamentos em palavras ou, como nós moldamos e damos forma às palavras nas quais nós vivemos: a escultura como um processo evolucionário; todos como artistas. Isto porque a natureza da minha escultura não é fixa e nem finita. O processo continua na maioria delas: com reações químicas, fermentações, mudanças de cor, decadência, ressecamento. Tudo em estado de mudança. 11

Para o artista é exatamente no processo de organização do pensamento, bem

como no processo de criação que está a base primeira da idéia de escultura. As

idéias deveriam ser consideradas potencialmente pelas pessoas como forma, uma

forma criada através do pensamento, que poderia ser direcionada para atitudes

políticas e sociais. “Para mim, a formação do pensamento já é escultura.12”

Assim, o artista tem no pensamento uma de suas matérias primas, até porque deste

modo ele poderia trabalhar diretamente com o homem, reforçando a idéia de

ampliação da arte proposta por ele.

Com o conceito de Escultura Social, Beuys pôs em xeque o conceito

convencional da arte como sendo algo somente criado por um artista, estendendo-

o a todos os homens. Segundo Gallwitz:

a escultura social é o resultado da atividade de um escultor incansável que aceita qualquer tipo de material e trabalha utilizando toda sorte de instrumentos e as mais variadas técnicas. Mas suas esculturas, assim como as suas actions, suas manifestações, suas teorias, seu engajamento político, enfim, tudo aquilo que a sua moral artística impunha como tarefa diária, também faz parte dessa escultura social.13

A criatividade era uma idéia para o artista ligada à liberdade e, por

conseqüência, ligada à consciência de si mesmo. Somente no pensamento o

homem era plenamente livre e era justamente no pensamento que começava

11 Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p. 19. 12 BEUYS, Joseph. Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p. 91.

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qualquer escultura. Pensar é esculpir!

A idéia de escultura social estava impregnada muito mais de uma atitude

política do que artística. A arte seria para ele o único caminho capaz de

proporcionar uma mudança real na vida do homem. Ao artista cabia a função de

oferecer instrumentos aos outros que levassem a um debate; por isso, sua obra

muitas vezes acabava centrando-se no sujeito, na ação, e não necessariamente no

objeto.

Com a escultura social seria possível moldar e burilar o mundo e por isso o

artista preocupava-se tanto com questões educacionais. Para ele, era preciso

desenvolver uma educação artística da humanidade, de modo que as

transformações sociais pudessem ocorrer a contento. Foi justamente em suas

atividades pedagógicas que Beuys melhor fez uso da escultura social. Ele

acreditava que as futuras gerações já entenderiam e viveriam dentro desse

conceito de arte.

A gordura era, dentre os seus materiais, o que melhor representava a sua

teoria escultórica, porque ela é flexível, fluida e sua forma é sensível ao calor. Ela

pode encontrar-se em estado sólido ou líquido, dependendo das circunstâncias que

lhe forem dadas, podendo ser moldada e mudada com freqüência, se dilatando e

contraindo, em constante transformação, uma boa metáfora de como deveria ser

com o organismo social. Segundo Carmern Bernárdez:

na teoria escultórica do artista, este trânsito entre estados é a tradução física do movimento espiritual que se desliga pelos estados do ser humano: pensamento, sentimento e vontade. Essa idéia de transformação de um elemento disforme e versátil está na origem da eleição da gordura como um material beuysiano por excelência14

O artista que tanto privilegiou o ato da fala, sempre participou de inúmeros

debates, conferências, entrevistas. A palavra era para ele um de seus meios

artísticos utilizados, por exemplo, durante as ações. A palavra tornou-se para ele

uma escultura imaterial. Através de discussões com variados grupos de pessoas de

13 GALLWITZ, Klaus. Homem com esculturas de feltro; p.12. 14 BERNÁRDEZ, Carmen. Joseph Beuys; p. 49.

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todas as tendências, sobre temas ligados à definição da arte e da ciência, não só a

definição de arte, mas também a própria prática artística em si, chega-se ao que

Beuys chamou de escultura social. Essa teoria revela a idéia de obra enquanto

processo, mutação, evolução, de como esculpimos e moldamos nosso modo de

pensamento e o mundo em que vivemos.

“Com a escultura social, Beuys foi além dos ready-mades de Duchamp. Seu

interesse não era museológico, mas sim com o contexto antropológico da arte.”15

Os ready-mades de Duchamp seriam objetos que iriam além dos domínios da arte,

uma vez que estão além da representação, é o próprio objeto como objeto,

deslocado de seu ambiente cotidiano para um institucionalizado16. Com isso,

Duchamp acabou por chamar a atenção para os pré-conceitos que existem quanto

ao que se esperava que fosse ou não arte. Beuys não desmereceu a criação dos

ready-mades, mas sim a falta de uma formulação teórica, por parte de Duchamp,

que completasse a prática dos mesmos.

Eu tenho uma grande admiração por Duchamp, mas não por seu silêncio, ou ao mesmo eu não o considero tão importante como outras pessoas o fazem. Em toda a nossa discussão está excluída a idéia de silêncio. Assim, temos que dizer que o silêncio de Marcel Duchamp é superestimado.(...) O fato é que Duchamp não estava interessado em consciência, em metodologia, em uma discussão histórica séria ou análises, o que me faz pensar que ele estava trabalhando no sentido oposto(..). Ele simplesmente reprimiu suas idéias. O silêncio de Duchamp deveria ser substituído pela idéia de uma ‘absoluta ausência de linguagem’.17

Em novembro de 1964, Beuys, juntamente com Wolf Vostell, Tomas

Schimit e Bazon Broch realizou em Dusserlorf a ação “O silêncio de Marcel

Duchamp é superestimado”. Embora Beuys nutrisse uma admiração por Duchamp

e não negasse que houve uma mudança a partir dele, não deixou de criticá-lo e

nem ao silêncio em que teria caído. Se a intenção da obra de Duchamp era a

provocação, sua intenção e seus objetos teriam se esvaziado, uma vez que agora

haviam se tornado peças de colecionadores e de museus. No entanto, para Thierry

De Duve, o dito “silêncio superestimado” de Duchamp não procederia, porque

15 STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys; p. 64 16 Espaços de arte. 17 Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p. 169

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para Duchamp a idéia de que todos poderiam ser artistas estaria ultrapassada,

porque de fato todos de algum modo participariam da criação de uma obra sendo

co-autor delaa. Para ele, o trabalho só estava completo quando interpretado pelo

olhar do outro, adicionando assim sua contribuição ao ato criador.18 O fato é que

em ambos os artistas, o espectador deixou de ser um apreciador da obra, tornando-

se também co-autor. Segundo Duchamp:

O ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador.19

Duchamp, de certo modo, chamou à atenção para o conceito de arte e sua

circulação, pensando a anti-arte. Beuys foi além disso, para ele não havia anti-

arte, com um anti referindo-se a um novo objeto de arte como nos ready-mades,

mas sim, uma nova maneira de propor a arte, ampliando seus significados para

além dos objetos artísticos, nutrindo-os também de ambições didáticas. Uma vez

que todos são artistas para Beuys e que para Duchamp, não necessariamente, mas

que sim, todos poderiam ser ‘co-autores’, chega-se a um ponto chave entre ambos,

como colocou Alan Borer: “quem está habilitado a criar? A resposta de

Duchamp: ‘aquele que inventa um signo: portanto eu sou o único ou o maior ou o

último artista’. A resposta de Beuys: ‘aqueles que conhecem a linguagem do

mundo, ou seja, você e eu...’·”.20

2.2 A CRISE DA HUMANIDADE EUROPÉIA

Entender as idéias do artista sobre arte implica em observar também o

momento em que foram concebidas. O homem europeu do período entre guerras e

18 DUVE, Thierry De. Kant depois de Duchamp. In: Revista de Mestrado de História da Arte. nº 5, EBA/UFRJ, 1998. p. 128 “Duchamp, ao contrário, nunca foi um utópico. Nada poderia estar mais afastado de seu modo de pensar do que a crença na criatividade universal. Seu tipo particular de arte, o readymade, não surgiu nem da crença, nem da esperança de que todos podem ou deveriam poder ser artistas. Em vez disso, reconheceu - e bem razoavelmente - o 'fato' de que todos já tinham se tornado artistas. Diante de um readymade, não existe mais qualquer diferença técnica entre fazer e apreciar arte.” 19 DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory A nova arte; p. 74. 20 BORER, Alan. Joseph Beuys; p. 17

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pós-Segunda Guerra encontrava-se num momento de fragmentação, com uma

contemporaneidade repleta de contradições. Este homem, de acordo com o

filósofo alemão Edmund Husserl, parecia ter esquecido a tradição espiritual vinda

desde a antigüidade grega. É como se o objetivismo científico moderno tivesse

afastado o mundo da subjetividade, da espiritualidade. Tanto Husserl quanto

Beuys parecem pedir por um certo resgate espiritual da humanidade, uma volta a

conhecimentos elementares e universais, não separados pelas constantes

especializações a que a ciência moderna chegou, uma vez que tantas ramificações

do conhecimento levaram a ciência a deixar de lado o espírito humano. Husserl

aponta que “por causa de seu objetivismo, a psicologia não consegue incluir em

seu tema de reflexão a alma, ou seja, o eu, que age e sofre, em seu sentido mais

próprio e mais essencial.”21Ao compartimentar o mundo e a vida em tantos

pedaços, perdeu-se em grande parte a idéia do todo, um ideal também perseguido

por Beuys por conta de suas raízes românticas.

Segundo Luiz Camillo Osório, “a modernidade surge com o processo de

racionalização das visões de mundo tradicionais, que se justificavam pelos mitos

e pela religião, e que passam a se reestruturar segundo normas deliberadas

racionalmente.”22 Em pensamento similar, Joseph Beuys afirmara que:

(...) o conceito atual de ciência tem uma validade extremamente parcial, que por certo não pode referir-se a todos os problemas do homem, porque está baseado preponderantemente nas leis da matéria. E aquilo que se refere à matéria não pode, necessariamente, referir-se à vida. (...) o pensamento científico ocidental despiu-se de todas as implicações de natureza mitológica até alcançar as formas mais concisas e sintéticas do “materialismo”.23

Segundo Urbano Zilles24, após 1930, Edmund Husserl começou a criticar o

objetivismo científico. Para ele, tal objetivismo acabara por criar, de certo modo,

uma natureza idealizada e o menosprezo à complexidade que envolve a vida e os

problemas humanos. Propôs uma espécie de “volta às coisas mesmas”, tentando

21 HUSSERL, Edmund. Edmundo Husserl: A crise da humanidade européia e a filosofia; p. 91. 22 OSÓRIO, Luiz Camillo. A estética Romântica e Joseph Beuys; p. 5. 23 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70; p. 306-307. 24 ZILLES, Urbano. Introdução In: Edmundo Husserl: A crise da humanidade européia e a filosofia.

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entender o fenômeno como ele se dá na consciência, como ele é percebido no

momento presente; despido de outras formulações prévias. Husserl acreditava ser

possível deparar-se com uma realidade originária e não só com sua representação.

As formulações deveriam partir do fenômeno e não da tradição filosófica. “Não é

das filosofias que deve partir o impulso de investigação, mas sim, das coisas e dos

problemas”.25 Em 1979, Beuys afirmara, condizendo com a proposição de

Husserl, que, para ele “as pessoas no presente não são capazes de olhar o

fenômeno. Elas vêem com suas idéias materialistas e as projetam sobre as coisas.

E desse modo distorcem a realidade.”26

Quando Husserl nos aponta uma crise das ciências européias, enfatiza a

crise das ciências fechadas numa série de sistemas de proposições enunciáveis,

que não abarcavam mais “questões decisivas para uma autêntica humanidade”.27

Numa proposta de “volta às coisas mesmas” está implícita uma volta à

totalidade, ao momento em que as ciências eram uma só, sob o manto da filosofia.

Husserl tenta mostrar de que modo a crise da ciência moderna levou também à

crise da humanidade européia e, em última instância, do racionalismo. Aponta

para a possibilidade da busca do homem pela razão ter se perdido durante o

processo de ramificação da ciência. Seria preciso recuperar “o mundo da vida”

(Lebenswelt) perdido na passagem das experiências pré-científicas28 para a

ciência, num “mundo que precede toda conceitualização metafísica e

científica.”29

O mundo da vida, segundo Husserl, apresenta-se como um mundo dotado de

experiências subjetivas que o objetivismo científico, com sua formalização,

acabava por não dar conta, uma vez que a visão de mundo pelo olhar científico era

uma visão mutilada, fragmentada, criando um distanciamento entre ambos os

mundos. Através dessa fragmentação do mundo da vida, a ciência acabara por

deixar de lado o sujeito humano. “À medida que se esquece, na temática científica

25 HUSSERL, Edmund. A filosofia como ciência de rigor; p. 72. 26 BEUYS, J. Joseph Beuys en conversación con entrevista Louwein Wijers in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas; p. 155. 27 ZILLES, Urbano. In: Edmundo Husserl: A crise da humanidade européia e a filosofia; p. 45. 28 Termo esse utilizado pelo filósofo ao longo do texto “A crise da humanidade européia e a filosofia”, como na página 74. 29 ZILLES, Urbano. In: Edmundo Husserl: A crise da humanidade européia e a filosofia; p. 50.

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do mundo circundante intuitivo, o fator meramente subjetivo, esquece também o

próprio sujeito atuante, e o cientista não se torna tema de reflexão.”30

Seria preciso agora fazer um retorno ao pré-científico, a uma experiência de

mundo que já existia anteriormente à ciência, que seria para Husserl muito maior

do que o mundo das ciências. Segundo o pensador, “os progressos gigantescos,

no conhecimento da natureza, agora devem ser estendidos ao conhecimento do

espírito.31 A crise se daria, justamente, pelo fato da ciência ter conseguido, aos

poucos, afastar o homem das suas questões primordiais, perdendo a idéia de

sujeito e conseqüentemente de liberdade, entendida esta, como uma forma de

viver em harmonia e obediência com a natureza. De acordo com Beuys:

Os problemas da vida , da alma, do espírito da humanidade, dos problemas da intuição, da imaginação, da inspiração, dos problemas do nascimento e da morte, dos problemas da sobrevivência em um âmbito mais amplo e de dar forma ao sentido do ser humano é algo que não pode ser resultado de uma compreensão materialista da ciência.32

Os problemas da existência humana deveriam voltar ao foco da filosofia,

trazendo de volta as questões sociais e culturais do homem. Era entendido pelo

artista que a humanidade foi no passado muito evoluída espiritualmente e que no

presente evolui materialmente, mas seria preciso pensar num futuro que pudesse

unificar estes dois aspectos.

O conceito positivista de ciência não é mais revolucionário, hoje, na medida em que está voltado exclusivamente para o desenvolvimento da tecnologia e da revolução industrial. Para o futuro, prevê-se uma consolidação do conceito positivista, atomista e materialista, na qual não haverá mais espaço para implicações de natureza sociológica e psicológica, com um conseqüente aumento da alienação do homem, privado de sua espiritualidade e debilitado em sua vontade e em sua capacidade de autodeterminação.33

30 HUSSERL, Edmund. Edmundo Husserl: A crise da humanidade européia e a filosofia; p. 91. 31 Ibid., p. 88. 32 BEUYS, J. Joseph Beuys en conversación con entrevista Louwein Wijers in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas; p. 146. 33 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70; p. 315.

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Beuys, bem como Husserl, percebeu que um possível retorno ao originário,

que é a busca pela compreensão do espírito, poderia dar conta deste momento de

crise, onde a modernidade tentava tratar dos assuntos espirituais com uma

objetividade que terminaria por levá-los a uma banalização do espírito. “Se esta

noção restrita de ciência se aplica à cultura e se converte em padrão para toda a

cultura, esse será o fim da cultura, porque é o princípio da morte.” 34

Através de imagens míticas, o artista tentou uma volta ao pré-científico, ao

originário. Separar as coisas metodicamente como pretendia a ciência, podia levar

a uma impossibilidade de autocompreensão do espírito. “Não tenho nada contra o

método materialista de análises, mas acredito que temos que ampliá-lo para não

ficarmos presos a uma uniteralidade muito reduzida de enxergar a vida.”35

Através de uma possível retomada de “evidências pré-lógicas, de um mundo de

valores, do sentido da existência pessoal e coletiva”36, Beuys clamava por um

homem que pudesse manter a expressão e a criatividade humana, renovando, deste

modo, o caminho trilhado pelo racionalismo, bem como o pretendido por Husserl:

A ratio de que agora se trata não é senão a compreensão realmente universal e realmente radical de si do espírito, na forma de uma ciência universal responsável, na qual se instaura um modo completamente novo de cientificidade, na qual têm seu lugar todas as questões do ser, as questões da norma, assim como, as questões do que se designa como existência.37

Para Beuys era preciso uma arte que pudesse proporcionar um novo homem

e a idéia de escultura social traz em si a necessidade de moldar este novo homem

e uma nova sociedade; mas não a partir de conceitos dados previamente. Assim

como Husserl não partia de uma idéia dada de natureza para desenvolver sua

filosofia científica, Beuys não partia de um conceito pré-estabelecido de arte, ele

procurava ampliar limites, através de constantes experimentações, atitude que

proporcionou ao artista a elaboração do conceito ampliado de arte e de escultura

social.

34 BEUYS, Joseph Apud in MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; p. 174. 35 BEUYS, J. Joseph Beuys en conversación con entrevista Louwein Wijers in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas; p. 146. 36 ZILLES, Urbano. In: Edmundo Husserl: A crise da humanidade européia e a filosofia; p. 45. 37 HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia / Edmund Husserl; introdução e tradução Urbano Zilles; p.95.

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Com um olhar voltado para o século XX, encontramos nas palavras do

historiador Eric Hobsbawm ecos do pensamento de ambos, quando afirma que

“o século XX caracterizou-se por um deslocamento do prestígio da visão

racional e científica para as considerações intuitivas, sobre os descaminhos do

mundo, explicitando o permanente esforço sempre renovado de entendê-lo.”38

Com os conceitos de escultura social e arte ampliada, Beuys pretendia

também ultrapassar as barreiras de isolamento em que acreditava que a cultura se

encontrava, isolada de outros campos da sociedade, como a política ou a

economia. Segundo o artista, “haveria uma determinação antropológica para que

todo mundo fosse um artista na sociedade”39, todo ser humano possuiria em si a

capacidade de mudar, de moldar, de esculpir o mundo através da sua criatividade

e esta só se desenvolveria num ambiente de liberdade. Ampliando o conceito de

arte, seria possível perceber que essa não estaria apenas relacionada às atividades

dos artistas e às suas “especificidades”, pondo a arte num campo cultural isolado,

dotada de uma dita liberdade, onde “você poderia fazer o que quer sem regras e

sem responsabilidades”40. A idéia de uma arte ampliada, que perpassasse as mais

simples atividades da vida, melhoraria também o próprio campo da “arte

institucional”, uma vez que estaria dotada de uma liberdade ainda maior.41

Para ele, o mundo se encontrava numa crise ocasionada pelo excessivo

cientificismo, racionalismo e materialismo, que renegou as forças emotivas,

instintivas e espirituais do homem. O excessivo materialismo fez com que o

homem perdesse de vista o espiritual e a razão sobrepôs-se à emoção, tornando,

aparentemente, o homem insensível à vida que está ao seu redor, afastando-o de

suas questões primordiais, perdendo a idéia de sujeito. Um homem capaz de

destruir o outro, bem como também, de se auto-destruir. Através de sua obra e sua

fala, Beuys buscava uma volta da espiritualidade em lugar do materialismo

dominante. Muitas capacidades humanas não estavam sendo desenvolvidas, mas

38 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX; p. 12. 39 BEUYS, Joseph. Speech upon receiving an honorary doctorate degree from the Nova Scotia College of Art and Design, Halifax. In: Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p. 55. 40 Ibid., p. 56. 41 Estas idéias foram apresentadas pelo artista em seu discurso ao receber o título de Doutor Honorário da Faculdade de Artes e Desenho da Nova Escócia em 1976. Tal discurso encontra-se na íntegra em:.BEUYS, Joseph. Speech upon receiving an honorary doctorate degree from the Nova Scotia College of Art and Design, Halifax. In: Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p.53-57.

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poderiam ser, era preciso apenas descobrir um modo de ativá-las. Beuys

acreditava que somente através de uma consciência de si mesmo, da importância

dada à espiritualidade, à emoção, o homem conseguiria um equilíbrio. Somente

quando o homem tivesse consciência de si, ele poderia transformar a vida e a sua

existência, e para ele, apenas através da arte isso seria possível. Era preciso

“destruir os limites da arte e ampliá-los em forma e conteúdo. Neste sentido, a

introdução de novos materiais e o descobrimento de novas formas simbólicas,

resultou decisiva.”42

42 MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; p 99-100.

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3.

A RITUALIDADE NAS AÇÕES DE JOSEPH BEUYS

“É tarefa da ciência e da arte, impor ao mundo uma nova imagem do homem e constatar

que o ser humano é um ser espiritual e que, se for suficientemente alimentado de um modo espiritual,

se sentirá satisfeito.” Joseph Beuys∗

Os mitos e os ritos estão intimamente ligados, uma vez que o rito é, na

maioria das vezes, a “encenação” de um mito. Rito e mito possuem uma natureza

modelar, um certo valor de ensino, de contato com nossos primórdios, de volta ao

início, atribuindo à nossa existência uma orientação vital. O símbolo, o mito e o

rito expressam, em planos diferenciados, o conteúdo essencial das atitudes

humanas, o enfrentamento com o desconhecido e o oculto.“O mito entra em cena

quando o rito, a cerimônia ou a regra moral ou social necessitam de justificativa,

de garantir antigüidade, de realidade e de santidade”.1

Segundo Geertz, a ação artística é um campo de interação e linguagem, onde

os símbolos culturais projetam-se sobre os participantes, possibilitando uma

espécie de modelagem sobre estes na forma como se relacionam com o mundo.

Ao longo da história, as práticas sociais e os símbolos vão sendo construídos, de

modo a serem comuns aos membros do grupo social em questão. É deste modo

que “os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem conhecimento, suas

atividades em relação à vida”2. Para Geertz, na prática de um rito, os

participantes se auto-elaboram, utilizando-se de elementos estéticos e subjetivos,

produzindo possibilidades de uma re-elaboração e propagação dos modos sociais,

“que emmprestam um caráter crônico ao fluxo de sua atividade e à qualidade de

sua experiência”.3

Pretendemos neste capítulo, estabelecer uma relação entre a idéia de rito e

∗ BEUYS, Joseph apud in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas. 1 MALINOWSKI, Bronislaw. O papel do mito na vida; p. 165. 2 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas; p. 103. 3 Ibid., p. 109.

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as ações do artista, enfatizando a noção de liminaridade de Victor Turner4.

Através do ambiente que preparava para realizar suas ações, os elementos

escolhidos, os objetos, os animais; buscamos em suas ações de um modo geral, e

em particular, nas ações por nós escolhidas e apresentadas nos anexos desta

dissertação, princípios rituais. Para tanto, primeiro analisaremos a idéia geral de

rito, para posteriormente particularizá-la na obra de Beuys.

3.1 CONCEITO DE RITO5

O rito é algo inerente a todos os seres humanos. Como nos disse Da Matta:

“falar em vida social, é falar em ritualização.”6 Pensar em ritual é pensar na idéia

de repetição num primeiro instante. Observando sob este aspecto, mesmo

atividades cotidianas de nossa vida possuem “aspectos rituais” (como o hábito de

comer sempre às mesmas horas, fazer coisas sempre seguindo um mesmo

modo...).

Os rituais são indispensáveis para a nossa vida, porque funcionam, de certo

modo, como uma espécie de integrador social ou como um espelho da sociedade,

que se reconhece e se fortalece através deles. “Ensina a agir de maneira

ordenada, para se pensar de maneira ordenada.”7 No entanto, um tema como

esse é por vezes deveras complexo, uma vez que existem incontáveis correntes

metodológicas e âmbitos da ciência que o procuram definir, umas levando em

conta contexto social, outras o contexto biológico, outras o contexto mágico-

religioso, entre outros. Tentaremos a seguir, ainda que de modo superficial,

localizarmo-nos dentro de algumas discussões que envolvem o assunto.

Partindo da etimologia da palavra rito, já nos deparamos com suas diversas

raízes possíveis. Do latim, vem de ritus (ordem estabelecida), do grego vem de

artγs (decreto), mas segundo Aldo N. Terrin:

4 TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. 5 Para a construção do conceito de rito, nos baseamos fundamentalmente na leitura de TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade.. Ressaltamos que não deixamos de lado outros autores de destacada importância no assunto. 6 DA MATTA, Roberto. In: GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem; p. 12. 7 TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p. 12.

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(...) a verdadeira raiz antiga e oriental parece ser de ar (modo de ser, disposição organizada e harmônica das partes do todo), da qual derivam a palavra sânscrita rta e a iraniana arta, e, em nossa língua, os termos “arte”, “rito”, “ritual”, família de conceitos intimamente ligada à idéia de harmonia restauradora e à idéia de “terapia” como substituto ritual (...)8

O rito parece, de acordo com a origem da palavra, nos indicar a idéia de

ordenador, organizador social e por outro lado, parece também nos indicar a idéia

de repetição, formalização, etc. No entanto, o rito também

parece querer dizer sempre algo ‘a mais’, algo que vai além da tradução, da decodificação, da comunicação mesma, algo que a própria contextualidade não consegue dominar inteiramente e, por isso, parece que o rito dá sempre e inexoravelmente a idéia de algo incompleto.9

De acordo com a intenção com que são realizados, os ritos podem ser

classificados em diversas categorias. Dentre esses, temos os “ritos negativos”,

que têm como função básica afastar “forças negativas e perigosas”, procurando

isolar-se do mal. Fogo, água, círculos mágicos, incensos, etc, serviriam como

meios de proteção e isolamento objetivados pelos ritos desta natureza.

Nos “ritos sacrificiais” fazem parte as oferendas de sacrifício de animais

para “acalmar” os deuses. Os “ritos de repetição do drama divino” são os ritos

que repetem a história dos deuses e do mundo, como meio de explicar

metaforicamente a origem da vida. Com o objetivo de manter ou de atribuir a

alguém a força sagrada, estão os “ritos de transmissão da força sagrada”. Dentro

destes, encontramos ações como a imposição de mão, a consagração, a unção, a

bênção e outras.

Por outro lado, ligados à idéia de ciclo, estão os conjuntos de práticas rituais

de maior amplitude: os ritos de passagem, os ritos cíclicos, os ritos de crise, os

ritos de cura e os ritos de inversão.

Os “ritos de passagem”, que parecem abarcar o maior número de

8 Ibid., p. 18.

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experiências, foram amplamente estudados por Van Gennep. São ritos associados

a momentos fundamentais na vida humana, ocasionando a partir deles, uma

modificação de status, como nascimento, o batismo, o casamento, os funerais etc.

Estes e outros ritos de passagem, têm por objetivo “fazer passar um indivíduo de

uma situação determinada a outra situação igualmente determinada.”10

Outra categoria de ritos é a dos “ritos cíclicos”, associados a ciclos

temporais e a fenômenos da natureza, como passagem de ano, mudança de

estação, de lua e outros. Esses ritos possuem uma “dinâmica de renovação do

tempo (...) induzem fundamentalmente a uma “contemplação” e a um retorno ao

tempo original, visto como verdadeiro tempo, não mutável e não precário”11. Os

“ritos de crise” estão particularmente ligados a momentos de emergência. De um

certo modo, já estão presentes em outras categorias de ritos, mas nesse caso lança-

se mão desses em situações mais graves, como quando o homem se vê diante de

catástrofes naturais. Dentro desses, também podemos localizar os “ritos de cura”,

que são ritos que têm por objetivo a cura da mente, corpo e alma. E para finalizar

essa pequena apresentação de algumas categorias de ritos, temos os “ritos de

inversão”, que têm um caráter de contestação social. Usa-se de paródias para

criticar estruturas sociais e religiosas vigentes.

3.1.1 Caminhos para “ler” o rito

Diversas são as óticas pelas quais podemos encarar os ritos. Por um lado,

podemos considerá-los como uma espécie de força integradora social, por outro,

um modo de “dizer” algo “indizível”. “Toda a ação ritual é uma forma de

linguagem (...) os rituais seriam a expressão de idéias complexas que não podem

encontrar um resultado comunicativo a não ser através do mito ou da ação

ritual”12.

Os ritos se reportam a algo originário através da repetição, mantendo, deste

modo, através dos tempos, uma espécie de manutenção da tradição. Possuem,

9 Ibid., p. 31/32. 10 GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem; p. 27. 11 TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p. 45.

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segundo uma visão funcionalista, como a de Durkheim, uma função social. Os

ritos proporcionariam ao homem confiança para agir e criam uma socialização,

funcionam como um elemento organizador do social. Segundo este sociólogo:

Assim que cumprimos nossos deveres rituais, retornamos à vida profana com mais coragem e ardor, não somente porque nos pusemos em contato com uma fonte de energia, mas também porque nossas forças se revigoraram ao viver, por alguns instantes, uma vida menos tensa, mais agradável e mais livre.13

Mas por outro lado, o rito também acaba por assumir a função de confirmar

e legitimar as diferenças sociais entre os sujeitos, confirmando certas

estratificações sociais. Através do rito, que re-elabora de maneira dramática as

situações sociais, a sociedade se reconhece e se fortalece, determinando “gestos

morais” que a dirigem.

Em outra vertente há os que encaram o rito, além do social ou cultural,

reconhecendo nele afinidades com “ritualidades animais”14, tendo como base o

biológico; seria uma espécie de “co-adaptação de elementos culturais e

genéticos”, como disse V. Turner15. Os ritos animais estariam relacionados à

hábitos que garantiriam sua sobrevivência, que no entanto, podem sofrer

alterações com o passar de seu processo evolutivo. Tal leitura dos ritos é de

caráter etológica, pois observa nos ritos humanos um princípio natural que apenas

ganha propriedade simbólica no campo cultural. Se por outro lado levarmos

também em conta o ambiente circundante, a realidade social e biológica,

chegaremos a uma visão holística de ler os ritos como a proposta por uma

perspectiva ecológica.16

O rito é um modo de expressão do homem e da sua realidade, tanto no

sentido cultural, quanto religioso, auxiliando no processo de organização das

12 Ibid., p. 55. 13 DURKHEIM, Émile. Formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália; p. 416. 14 “... é necessário reconhecer que há afinidades entre a ritualidade animal e a humana e que essas afinidades foram colocadas em evidência pelos etólogos...”. TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p 106. 15 TURNER apud TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p. 117. 16 A perspectiva poderia também ser explicada como sendo uma síntese das perspectivas funcionalista e etológica.

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experiências que o homem faz do mundo, o que nos leva a crer que o rito seja de

algum modo co-natural ao homem. O rito, como já dito anteriormente, auxilia no

aprendizado do pensar ordenado. Mas entender em profundidade o rito é por

deveras complexo, uma vez que possui uma característica interdisciplinar ampla,

com muitas estratificações e emaranhados teóricos, indo além, muitas vezes, de

interpretações ou significados particulares.

A essência do rito depende do seu debruçar-se sobre o mundo da vida e da sua capacidade de dar respostas às exigências fundamentais do viver humano. Não creio que haja uma essência padrão, que independe de critérios e de situações. Por isso, deve-se partir do pressuposto que o rito explica-se a si mesmo porque explica a vida, constituindo um feedback original com ela. É um primum que só pode ser percebido no contexto da vivência, das situações, dos comportamentos fundamentais e óbvios do viver; faz parte do mundo das obviedades, o que torna mais difícil a sua leitura, mas é anterior a qualquer leitura interpretativa.17

Nós nos percebemos no mundo de uma maneira global. Nossas experiências

não podem ser percebidas de maneira isolada, mas sempre em relação ao todo.

Através do rito tenta-se perceber o mundo e a nós no mundo. Como uma ação

simbólica que é, o rito auxilia o homem na organização das suas experiências no

mundo. É a partir da ação que nossas idéias e pensamentos se formam. “A

dizibilidade do mundo é levada à sua expressividade através do agir estilizado e

ordenado, como percepção imediata com o mundo mesmo. De fato, é o agir que

está harmonizando com o mundo, não o pensar”18.

O rito possui um caráter de repetibilidade (o que pode ser encarado também

como um aspecto pedagógico), o que não significa que dure para sempre, pede seu

próprio tempo, assim como pede seu próprio espaço. Quando se observa o rito,

seja esse de que natureza for, percebemos que acontece em um lugar pré-

determinado e pré-disposto, quase como se fosse um jogo. Nesse local,

empregam-se todos os artifícios possíveis para criar uma atmosfera que possibilite

uma saída do cotidiano e a entrada num outro contexto diferente do dia-a-dia.

Neste espaço há uma preocupação, não somente com o ambiente físico, mas

também com um espaço significativo, utilizando uma linguagem simbólica, bem

17 TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p. 161. 18 Ibid., p. 162.

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como um espaço interno, onde as experiências sintetizam-se. Para celebrar um rito

é necessário antes de tudo, “sair” da vida habitual. Por outro lado, como acredita-

se ser o rito co-natural ao homem, essa “saída” também faz de certo modo parte

do cotidiano.

3.1.2 Liminaridade em Victor Turner

Em suas pesquisas sobre a prática de ritos, Victor Turner focou sua

atenção sobre a idéia de liminaridade. Apoiando-se na noção de passagem

anteriormente desenvolvida por Van Gennep, Turner desenvolveu a sua visão de

rito não como algo que se destaca do cotidiano, mas sim como algo à parte, algo

que se põe entre duas situações. Se para Van Gennep19 os rituais eram divididos

em três fases que envolviam basicamente três tipos de ritos, que este denominou:

1. ritos de separação da ordem estabelecida, 2. ritos liminares e 3. ritos de

incorporação da nova ordem estabelecida; Turner para tratar do mesmo processo,

utilizou outras expressões: pré-liminar, liminar e pós-liminar.

A fase liminar (a ação em si) era considerada por Turner como o momento

fértil do rito, o momento em que a realidade tornava-se um “armazém de novas

possibilidades”. Era o momento de divisa entre as condições fixas e as

possibilidades de transformação, entre as estruturas que organizam o passado e as

que buscam reestruturar o futuro.

Nos ritos liminares, segundo Turner, existia a possibilidade do ritual

tornar-se coletivamente criativo, podendo deste modo alcançar uma transformação

da realidade. O rito possibilitaria a transformação do que ele denominou de anti-

estrutura, que seria um “sistema latente de alternativas potenciais a partir das

quais novidades surgirão quando as contingências do sistema normativo

requerem”20 . Na fase liminar haveria uma desestruturação do passado, gerando

um caos. Neste momento haveria um certo afrouxamento das estruturas

estabelecidas, desestabilizando-as e transformando-as em possibilidades. Tais

observações de estruturas do rito, foram feitas em sociedades tribais, onde o autor

19 GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem.

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pôde constatar essas estruturas (ou anti-estruturas) mais bem delimitadas. No

entanto, nas sociedades modernas, a fragmentação no modo de viver impingiram

uma maneira distinta de ritualização, mais limitada e voltada para a arte e os

jogos, que o autor chamou de liminóide. Turner associava este termo às

performances artísticas, uma vez que notou que assim como nos ritos, estas

também possuíam uma natureza auto-reflexiva. Deste modo, tanto os ritos, quanto

as performances artísticas se caracterizavam, segundo ele, por desorganizar as

estruturas sociais, antes tidas como convencionais, repensando-as e

transformando-as.

Falar em rito é trazer à tona uma série de discussões, que mesmo na

diversidade encontram pontos em comum. Com essa pequena apresentação,

acreditamos poder iniciar uma discussão sobre os aspectos rituais na obra de

Joseph Beuys, bem como observar o modo como colocava seus pensamentos em

ação.

3.2 O PENSAMENTO DE JOSEPH BEUYS E OS SEUS ASPECTOS

RITUAIS EM AÇÃO

A repetição de elementos e temas na obra do artista acabou por criar aí uma

estrutura simbólica interna e própria. Quando nos aproximamos de seus trabalhos,

cedo ou tarde nos apropriamos desta estrutura e passamos a ler sua obra através

dela. A maioria dos objetos e múltiplos do artista são objetos-testemunhos,

20 SUTTON-SMITH apud CARLSON, M. Performance: a critical introduction; p. 23.

Fig. 14 – Vestígios da ação Coiote: I like

America and America like’s me - 1974

Fig. 15 – Vestígios da ação Sinfonia

Siberiana - 1963

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“vestígios” de ações; a verdadeira obra se dava em ação e estas sobras, como

restos de rituais, marcam e cristalizam a idéia, a ação.

Como nos ritos, em suas ações o artista lançava mão de um amplo sistema

simbólico, utilizando-se de elementos de uma linguagem cotidiana, mas ao

mesmo tempo proporcionando o afastamento de sua ação de ações comuns,

instituindo uma espécie de “deslocamento da situação” que vivemos no dia-a-dia

para que obtivéssemos um olhar refletido sobre este, dando lugar a uma

transformação da realidade.

O homem sempre se cercou de estruturas simbólicas, traduzindo-as

ritualmente. Algumas vertentes da antropologia moderna estudam o rito como

uma espécie de forma dramática, dotada de diversos códigos de comunicação.

Essa característica de ação é algo que faz parte da estrutura dos rituais, uma ação

comunicativa destinada a expressar os mais íntimos e até obscuros sentimentos

humanos.

Estamos cercados de símbolos por toda parte. Tudo pode assumir

significação simbólica, desde objetos oriundos da natureza, objetos

confeccionados pela mão do homem até formas abstratas. Entrar em contato com

os símbolos existentes na obra do artista, é confrontarmo-nos não só com o

símbolo em si, mas também com a profundidade e a totalidade de quem os

produziu: Joseph Beuys. A presença e a escolha de seus elementos simbólicos

demonstra o universo cultural do artista, uma vez que, embora os símbolos

possuam um sentido universal primeiro, já que são de origem natural, espontânea

e coletiva, possuem também um sentido particular em cada um.

Uma palavra ou imagem torna-se simbólica na medida que seu significado

vai além do que surge de imediato. Os símbolos culturais são aqueles que de certo

modo, expressam “verdades eternas” dentro do contexto daquela cultura que o

emprega e por mais modificações que tenham sofrido ao longo do tempo,

continuam sendo aceitos e utilizados por esse homem.

Beuys através de suas ações utiliza-se em larga escala de símbolos culturais,

mesmo que muitos deles, em alguns casos, já tenham perdido uma parte de seu

significado original. Como já vimos anteriormente, o materialismo, o

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racionalismo e o cientificismo em que o homem caíra, era uma preocupação do

artista, pois teriam levado o homem a uma perda gradativa de seus valores

espirituais distanciando-se de suas tradições e encontrando-se agora em estado de

desorientação.

Os antropólogos descrevem, muitas vezes o que acontece a uma sociedade primitiva quando seus valores espirituais sofrem impactos da civilização moderna. Sua gente perde o sentido da vida, sua organização social se desintegra e os próprios indivíduos entram em decadência moral.21

Parte da crítica do artista às instituições religiosas, são pelo fato destas não

cumprirem seu real papel espiritual junto ao homem, pois seus líderes preocupam-

se mais com questões de poder e dinheiro, do que com as questões do espírito,

transformando a fé, a crença, o rito, o mito, a tradição, em um grande negócio.

Na ação Celtic+~~~ (1971), o artista fez uma crítica direta à Igreja

enquanto instituição religiosa, uma vez que esta, por ter como prioridade outros

interesses que não os espirituais, manipularia o homem, tolhendo-o do seu direito

e desejo de liberdade. Esta ação, através de símbolos e do ritual cristão da

“lavagem dos pés”, intencionava uma certa cura espiritual, que poderia ser

alcançada sem que se fizesse necessário a utilização de instituições. No entanto,

parte do público presente irritou-se bastante com a apropriação do artista da

“lavagem dos pés”, porque muitos leram este ato como uma afronta de Beuys à

figura de Cristo, uma vez que o artista estaria adotando o papel do próprio Jesus

Cristo e com isso assumindo o papel de salvador, daquele que poderia

proporcionar um futuro melhor e diferente. Mas ao contrário disso, dizia o artista

sobre esta ação:

Não sou um salvador, mas queria chamar a atenção sobre a possibilidade de que o ser humano seja seu próprio salvador. Isto significa que as questões acerca do sentido da vida que hoje movem as pessoas, são precisamente as questões acerca do ser humano. As pessoas hão de responder estas perguntas reconhecendo a alienação de suas próprias vidas. O ser humano está alienado pelo desenvolvimento do materialismo e da ciência. Estes impulsionaram, de maneira unilateral a partir do sistema de coordenadas, uma concepção mecânica e biológica do conhecimento nas

21 JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos; p. 94.

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ciências. Mas inclusive, hoje em dia, atrás da cruz, das coordenadas se esconde uma idéia de cruz diferente.22

O cientificismo parece ter afastado o homem de sua “humanização”,

conforme pudemos perceber no capítulo II. O homem afastou-se da natureza, já

não consegue mais ler os símbolos contidos nos fenômenos naturais. Os

elementos da natureza perderam a voz e nem mesmo o homem se dirige mais a

estes esperando uma resposta. O contato com a natureza, com a fé, com o mito,

com o rito, não deveria de nenhum modo excluir a reflexão que talvez a ciência

exija. A ciência no extremo em que se encontra tirou o homem de seu contato com

a natureza, e o caráter sagrado e a prática de ritos é parte dos fatores que auxiliam

o homem a manter este contato. Segundo Schiller,

foi a própria cultura que abriu na humanidade recente esta ferida. Tão logo a experiência acrescida e o pensamento mais preciso tornaram-se necessários a separação rigorosa das ciências, enquanto, por outro lado, surgia o mecanismo intrincado dos Estados, (…), rompeu-se a unidade interior da natureza humana e uma luta ruinosa separou as forças harmoniosas.23

3.2.1 Os elementos ritualizados em ação

Uma vez que a obra principal de Beuys era a obra em ação, era preciso a

presença do artista, de sua fala, para transformar o conjunto de sua obra no que

Alain Borer chamou de “conferência permanente”24. Sua obra precisa da fala, da

explicação, do contato direto. Sua fala, seus ensinamentos já eram obras em si, já

eram esculturas. Suas ações eram o que podemos chamar de “esculturas

efêmeras”, que vão contra a rigidez e a eternidade que uma escultura de bronze ou

mármore pode suscitar. Era uma escultura que se construía no contato com o

outro, na ação coletiva, ensinando à medida que se ia “construindo”.

Através de suas falas, o artista cumpre um papel pedagógico, utilizando a

arte como ensinamento. Percebemos em suas ações uma espécie de lugar

22 BEUYS apud MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; p 84. 23 SCHILLER, Friedrich,. A educação estética do homem: numa série de cartas; p. 47. 24 BORER, Alan. Joseph Beuys; p.14.

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pedagógico. O quadro-negro (suporte didático) aparece com freqüência em suas

obras, que o professor Joseph Beuys se apropriou não só em suas atividades

docentes acadêmicas, mas também e principalmente, como suporte de seus

pensamentos, como elemento marcante de suas ações, utilizado para figurar

idéias, para montar esquemas.

Esse “lugar pedagógico” criado em suas ações denota um processo de

transformação. Talvez esse caráter de pedagogia em Beuys leve à repetição de

elementos ao longo de sua obra (como o feltro, a gordura, a cruz, os animais, ...), e

também de algumas de suas ações (embora com possíveis mudanças), como

Celtic+~~~ (apresentada em 1970 e 1971), O chefe (apresentada 2 vezes em

1964) e Coyote (apresentada em 1974 e 1979). Ou também poderá essa repetição

ser remetida ao princípio do ritual.

Como professor, era preciso ensinar o homem a reencontrar o elementar da

vida, que para o artista havia se perdido: “os homens de hoje não têm mais

conhecimento essencial das coisas [...] e nem do sentido da vida, ou do sentido

das relações com o mundo.”25

Para Beuys, os objetos que faziam parte de suas ações tiveram dimensões

físicas e metafóricas que se estendiam ao quotidiano. Um objeto era sempre uma

metáfora de algo que ia além da matéria. O feltro exemplificaria a materialidade,

densidade, as propriedades de isolamento, de calor e de proteção, observadas em

O Chefe, Introdução homogênea, Manresa, Coyote ou Como explicar quadros a

uma lebre morta. “A idéia de calor está também conectada com a idéia de

fraternidade e colaboração mútua”.26 A imagem da lebre, que aparece em três

das ações aqui escolhidas, significaria o poder e a inteligência intuitiva dos

animais, o processo de escavar o subterrâneo, a terra, como uma fonte da

regeneração e de redenção. Segundo o artista:

(...) a lebre tem uma relação forte com a mulher, com o nascimento e também com a menstruação, e de um modo geral com o conjunto das transformações químicas do sangue. É disso que se tratava aqui de maneira alusiva, do que a lebre torna visível para nós todos quando ela faz a sua toca. Ela se enterra. Assim temos novamente o

25 BEUYS apud BORER, Alain. Joseph Beuys; p 14. 26 BEUYS, Joseph apud in STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys; p. 68.

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movimento de encarnação. É isso que faz a lebre: encarnar-se fortemente dentro da terra, coisa que o homem só pode realizar radicalmente por meio de seu pensamento.27

Na utilização e escolha dos elementos que fizeram parte de suas ações,

Beuys não tinha a intenção primeira de expô-los, mas de usá-los como materiais

de reflexão, buscando em suas naturezas e na simbologia que lhes eram atribuídas,

uma possibilidade, um suporte pedagógico que servisse ao seu projeto de

transformação social. A gordura, material por excelência em sua obra e também

presente em algumas das ações por nós escolhidas, seria o próprio símbolo de

transformação.

A gordura foi por exemplo uma grande descoberta pois era o material que podia aparecer como completamente caótico e indeterminado. Eu podia influenciá-lo através da temperatura, quente ou fria, de modo a transformá-lo utilizando meios não tradicionais da escultura. Podia assim transformar o caráter dessa gordura, de sua condição caótica e informe a uma condição de forma bem dura. Assim a gordura deslocava-se de uma condição muito caótica para terminar num contexto geométrico. Tinha dessa maneira três campos potenciais e esta era a idéia de escultura. O potencial numa condição de movimento e numa condição de forma. E estes três elementos, forma, movimento e caos, eram energia não determinada de onde tirei minha teoria completa de escultura, da psicologia da humanidade como poder de vontade, poder de pensamento e poder de sensibilidade; e aí encontrei o esquema adequado para compreender todos os problemas da sociedade. Aí hesitava implícito, organicamente, o problema do corpo social, da humanidade individual, da escultura e da arte.28

Em Manresa, a gordura aparece nas mais

variadas formas: em forma de bola, nos cantos das

paredes ou gotejando e escorrendo ao longo destas.

A gordura nesta ação tomou uma dimensão

espacial, envolvendo todo o ambiente, parecendo

que esta na verdade acontecia “dentro” da gordura.

Nos cantos das paredes encontrava-se em forma

moldada, fixa, já nas paredes em estado de fluidez,

escorrendo, gotejando, recompondo o espaço continuamente. Essa dualidade de

27 BEUYS, Joseph. Conversa entre Joseph Beuys e o Hagen Lieberknecht escrita por Joseph Beuys. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70; p. 120-121.

Fig. 16 – Elementos da ação

Manresa - 1966

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estados, a relação entre a forma e o indeterminado, eis um movimento necessário

para entender e alcançar o equilíbrio. O uso abundante deste material deve-se

também ao fato deste simbolizar a maleabilidade necessária ao homem para que

possa alcançar uma transformação social e ser um eficiente transmissor de

energia. “O ser humano é produto de potências caloríficas como, por exemplo, a

formação dos óvulos e do esperma, a fecundação, o nascimento e o crescimento, e

durante toda a sua vida continua sendo sensível às mudanças de calor e frio, às

incidências plásticas.”29

Outro elemento bastante utilizado pelo artista eram os animais que o

acompanhavam em algumas de suas ações. Estes representavam, entre outras

coisas, a natureza instintiva e primitiva do homem. Um animal em sua natureza

não é bom nem mau, apenas segue seus instintos, e o homem é a única espécie

animal que controla e reprime sua natureza instintiva, que acaba sendo moldada

pelas regras da ética e do convívio social. Em tempos primitivos acreditava-se que

o homem possuía um animal-demônio dentro de si que precisava ser controlado e,

através de ritos de sacrifício um animal seria morto, funcionando como uma

espécie de duplo, simbolizando a morte e expurgação da nossa animalidade

selvagem.

Os animais presentes nas ações expressam geralmente uma energia psíquica

e espiritual. “Os animais também são em si e para si seres angelicais. Isto fala de

um mundo acima do indivíduo, de uma dimensão espiritual contida na própria

pessoa”30. Beuys queria estabelecer, através deles, uma comparação entre o

comportamento dos animais e do homem. Quando utilizava um animal, pretendia

suscitar suas potencialidades espirituais e mágicas, do mesmo modo que em

muitas culturas antigas, onde o animal encarnava forças espirituais. Era

estabelecer uma espécie de relação entre seres integrantes de um mesmo ciclo

cósmico.

Muitas foram as ações de Beuys que utilizaram animais mortos

(especificamente nestas ações, a lebre morta), como em Como explicar quadros a

uma lebre morta, O chefe e Manresa, ou mesmo vivos, como foi na ação Coyote:

28 BEUYS apud LANCMAN, Sandra. A ecologia como foco da arte – Beuys e Krajcberg; p. 73. 29 MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; p. 142.

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I like America and America likes me, embora nem todas fossem necessariamente

para expurgar nossa animalidade, mas sim como forma também de simbolizar a

intuição e criatividade. Em suas ações o artista queria suscitar nas pessoas esse

potencial intuitivo e criativo: “(...) a minha técnica tem sido tentar buscar os

pontos de energia no campo de força humano, em vez de exigir conhecimentos

específicos ou reações específicas por parte do público. Tento trazer à tona as

complexidades das áreas criativas.”31

Em Manresa, o artista por vezes manipulava uma lebre morta, costurando

suas orelhas e aproximando-as de um gerador elétrico, de modo a “eletrocutá-la”,

ativando assim energias invisíveis. Esta energia pretendida por Beuys está

potencialmente em todos os homens, uma energia intuitiva, criativa, mas era

preciso insistentemente ativá-la simbolicamente para que estivesse em constante

movimento.

Os animais apareciam em suas ações também com o objetivo de achegar

homem e animal, outrora próximos. Na ação O chefe, ao colocar lebres nas

extremidades do rolo de feltro, onde estava o artista, as lebres funcionavam como

extensões de seu próprio corpo. Homem e animal, não apenas falando uma mesma

língua, mas dividindo um mesmo corpo. De dentro do rolo o artista por vezes

emitia sons: “um som primitivo, que podia conectar as duas lebres mortas.”32

Nessa íntima relação que o artista

estabeleceu com as lebres, tornando-se

simbolicamente um único ser, o artista

chamava a atenção para a

responsabilidade que nós humanos

devemos ter com as outras espécies,

demonstrando também uma co-

dependência que existe entre nós e os animais. “Eu falava pelas lebres, que não

podiam falar por si mesmas.”33

O artista denota uma intimidade com os animais, manipulando-os como

30 BEUYS, Joseph apud in BERNÁRDEZ, Carmen. Joseph Beuys; p. 57. 31 Joseph Beuys, Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (1965), publicado em inglês como Statement on how to explain pictures to a dead hare, em: Caroline Tisdall, Joseph Beuys. 32 ADRIANE, Götz; KONNERTZ, Wintfried; THOMAS, Karin. Joseph Beuys life and works; p 121.

Fig. 17 – O chefe - 1964

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Fig. 18 - Como explicar quadros

a uma lebre morta - 1965

símbolos que podem se tornar potenciais no interior de sua obra, bem como,

demonstrando um profundo respeito a estes.

Em numerosas tradições a amizade com os animais e a compreensão da linguagem deles constitui síndromes paradisíacas. No princípio, ou seja, nos tempos míticos, o homem vivia em paz com os animais e compreendia a sua língua. Foi só depois de uma catástrofe primordial, comparável à queda da tradição bíblica, que o homem se tornou o que é hoje, mortal, sexuado, obrigado a trabalhar para alimentar-se em conflito com os animais. Ao preparar-se para o êxtase, e durante o êxtase, o xamã suprime a condição humana atual e reencontra provisoriamente a situação inicial. A amizade com os animais, o conhecimento de sua língua, a transformação em animal são todos sinais de que o xamã recobrou a situação “paradisíaca’ percebida na aurora dos tempos.34

Em Como explicar quadros a uma lebre morta, a atitude com o animal foi

carinhosa e paciente, privilegiando-o em relação ao público presente, uma vez que

pôde ver a exposição do artista na Galeria Schmela em primeira mão. O público

apenas acompanhava através de uma vidraça, de

uma janela e do sistema de vídeo, mas apenas o

animal pôde ver de perto e mesmo tocar nas

obras. Utilizava mais uma vez a lebre como

símbolo do poder intuitivo do homem e também o

poder de ressurreição, pelo fato desta cavar fundo

na terra e ressurgir novamente, num movimento

similar ao que o homem é capaz de fazer através

do pensamento. “Ela se enterra. Assim temos

novamente o movimento de encarnação. É isso

que faz a lebre: encarnar-se fortemente dentro da

terra, coisa que o homem só pode realizar

radicalmente por meio de seu pensamento”.35 Explicar quadros a um animal

morto traz de volta a idéia de ampliação da arte, aproximando-a da intuição, de

um estado originário, porque compreendê-la está além da pura racionalização, está

na nossa capacidade intuitiva e imaginativa, está no potencial criativo que todo ser

humano possui.

33 JOSEPH, B. Apud in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas; p. 33. 34 ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase; p 118.

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Se até aqui Beuys lidou com o animal morto, em Coyote: I like America

and America likes me o artista conviveu dias com um animal vivo. Apenas

protegido por um manto de feltro e por um cajado semelhante ao de um pastor e

mais alguns poucos objetos, o artista travou uma relação com este, utilizando-se

destes elementos muitas vezes para incitar o animal. Por vezes o coiote dirigia-se

ao artista numa intenção de ataque outras de reconhecimento e por fim, pareceu

acostumar-se com a figura de feltro, convivendo os dois pacificamente. O artista

tentava “domesticar” o animal como uma metáfora da dominação do homem

branco sobre o índio. Nesta ação temos o artista assumindo uma forma pastoral

por um lado e de um xamã por outro. Não por acaso, o coiote é um animal de

extrema importância simbólica para os índios norte-americanos também

praticantes de técnicas xamânicas.36 Para estes povos, o coiote é um animal

dotado de poderes de transformação, podendo transitar entre o estado espiritual e

físico, como atribuído aos xamãs. “Eu acredito que consegui contactar com o

ponto traumático da energia dos EUA: de todo americano com o índio, o homem

vermelho.”37 Após a colonização branca, este animal passou por um processo de

quase dizimação, simbolizando para o artista o momento traumático da história

americana. Para o artista a junção de elementos materiais e de fatos históricos

possibilitaria uma movimentação em favor de um pensamento crítico a cerca do

assunto. “O coiote, animal venerado e até mesmo divinizado pelo homem de pele

vermelha, desprezado e perseguido pelo homem branco: fascinação, por um lado,

rejeição, por outro. É preciso inverter esse estado de coisas e repará-lo.”38 O

artista procurou promover um diálogo com o animal de modo a desbloquear

energias espirituais, executando uma espécie de ritual de cura, para restabelecer a

ordem outrora desmantelada.

Os elementos que Beuys utilizava em suas ações armazenavam um grande

potencial energético, tendo como papel principal demonstrar as teorias do artista.

35 BEUYS, Joseph. Conversa entre Joseph Beuys e o Hagen Lieberknecht escrita por Joseph Beuys. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70; p. 121. 36 Em um sub-capítulo intitulado “A busca dos poderes xamânicos na América do Norte” no livro ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p119-129 é possível encontrar relações entre o coiote e a prática xamânica, assunto que estará mais bem desenvolvido no tópico “Beuys: um xamã da modernidade?” deste mesmo capítulo. 37 Joseph Beuys in Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p 114. 38 TISDALL, Caroline. Joseph Beuys; p 25.

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O espectador era visto como um transmissor e receptor dessas energias

condensadas, sendo sensibilizado através delas. Tais elementos tinham então a

função básica de interligar as teorias do artista, a obra e o público, alcançando por

multiplicação o organismo social como um todo.

3.2.2 O espaço ritual de suas ações

Pensar em rito é pensar também na divisão entre espaço sagrado e espaço

profano. O rito precisa de um local específico para sua prática e essa divisão vem

justamente dos espaços ritualizados, que caracterizavam uma realidade diferente

da vivida no cotidiano. No entanto, aos poucos essa divisão entre espaço sagrado e

espaço profano foi diminuindo, na medida em que não percebemos mais a

diferença entre ambos.

A vida moderna parece induzir o homem a uma espécie de “falta de ar” por

conta da “falta de espaço” em que se encontra e essa redução acabaria por alterar a

nossa visão do mundo e da vida.39 O homem saiu de seu ambiente natural para

“enclausurar-se” em caixas de concreto e, para tanto, destruindo essa mesma

natureza de onde saiu.

Para Beuys o homem ainda continua intimamente ligado à natureza, mas

sofre talvez de “traumas” ligados a essa redução espacial e ao fato de não

conseguir mais se localizar nela. Por isso as questões ecológicas, no sentido mais

amplo que esta expressão pode alcançar, são enfatizadas em muitas de suas ações.

A sociedade está doente e Beuys reclama uma cura para ela. É preciso devolver ao

homem a intimidade com a natureza para que seja possível um retorno à

totalidade. A cura que o artista reclama refere-se à sobrevivência humana e, mais

do que isso, à sobrevivência de si próprio e do planeta. Era preciso, segundo ele,

“provocar a energia das pessoas e conduzi-las a uma discussão geral sobre os

problemas do presente”40. Beuys teria, segundo Borer, chegado “ao campo

ecológico em razão de que a terapia deve progredir no âmago de todo o

39 HALL, E. T. A dimensão oculta. 40 BEUYS apud BORER, Alan. Joseph Beuys; p. 26.

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organismo social”41. Suas idéias demandam um movimento alcançado

afortunadamente através de suas ações.

Como já vimos antes, há no rito uma dinâmica interna que proporciona o

ordenamento do mundo, porque o espelha e promove uma reflexão sobre ele.

Nosso pensamento e nossa existência dá-se pelo corpo e também pela relação com

o ambiente que nos cerca. O modo como ele se organiza no espaço e suas

relações, em âmbito maior, levam a uma organização do grupo social.

O rito é e foi um fato originário de criação de ordenamentos, de estabilização de papéis, de distribuição de funções fundamentalmente através da interpretação do espaço. Não se deve esquecer que toda hierarquia, toda autoridade, nasce da conquista de um espaço, da posse física do espaço, como acontece desde sempre no campo etológico.42

Com relação ao rito, bem como em relação às ações, podemos observar três

tipos distintos de espaços: o espaço físico, relacionado à biosfera; o espaço

significativo, que se refere ao espaço de linguagem simbólica e o espaço interno,

onde se juntam os anteriores e se dá a experiência “mística”.43

O ‘espaço físico’ é o que nos circunda, é o espaço que pode ser tocado,

manipulado, fotografado, andado. É todo o ambiente que nos cerca, seja esse

natural ou construído artificialmente. Cabe ao rito, dentro da ambientação física, a

partir do ambiente cotidiano, “superá-lo” para a realização de sua prática, assim

como nas ações de Beuys, cujos ambientes eram cuidadosamente escolhidos,

preparados e remodelados durante a ação, criados a partir de elementos do dia-a-

dia, prontos para serem então superados e transformados em ambientes de

reflexão.

O ‘espaço significativo’ é onde a ação se organiza, através dos movimentos,

das palavras, dos sons, dos símbolos, dos gestos, da ação em si, envolvendo a

todos. É onde o espaço físico torna-se expressivo e a ação/rito ganha vida, através

de um discurso simbólico.

41 BORER, Alan. Joseph Beuys; p. 26. 42 TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p 209. 43 Adaptação das divisões de espaço propostas por TERRIN, Aldo Natale. O rito: a antropologia e a fenomenologia da ritualidade; p. 213-220.

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À exceção de Celtic+~~~~, as demais ações escolhidas por nós se

desenvolveram em espaços fechados, o que requisitava a criação de um ambiente.

Beuys levava consigo os elementos que iam ser usados, materiais estes repletos de

possibilidades a serem exploradas pelo artista durante a ação.

Suas ações aconteceram privilegiadamente em salas de galerias de arte,

embora muitas tenham se realizado também ao ar livre. Em O chefe realizada em

uma sala de 5 x 8 metros, em cuja parede esquerda se apoiava um bastão envolto

por gordura, o artista pendurou

no teto um chumaço de cabelo

e unhas, duas das quinas de

parede estavam preenchidas de

gordura, à direita da sala havia

um amplificador de som e ao

centro da sala em diagonal

encontrava- se um rolo de

feltro de 2.25 metros no qual Beuys permanecia envolto. Nesta ação,

percebemos que pela quantidade de elementos e por suas disposições muito bem

organizadas no ambiente, foi necessário uma preparação prévia à ação. Do

interior do rolo de feltro o artista emitia sons de respiração, grunhidos, tosse,

batimentos cardíacos. Havia um certo atrofiamento do espaço interno, uma vez

que o artista permanecia preso no interior do feltro, causando um desconforto ao

público, que acabava por se preocupar com o seu possível estado físico sob

aquelas circunstâncias.

A relação de Beuys com os observadores de suas ações acabava por criar

um espaço fundado na crença do artista poder de fato transformá-los através

delas. Beuys procurava provocá-los, fazendo com que deixassem de lado uma

possível atitude passiva diante da situação que se apresentava, a fim de ativar a

atitude crítica necessária para mudar o mundo.

Em Coyote: I like America and America likes me o ambiente foi preparado

por indicação de Beuys, que deveria chegar ao local já com tudo pronto. Podia-se

observar tiras de feltro espalhadas pelo espaço, duas pilhas de vinte e cinco

exemplares do Wall Street Journal que eram entregues e renovados diariamente,

uma bengala, luvas, um cobertor, uma lanterna, palha, um triângulo que Beuys

Fig. 19 – O chefe - 1964

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trazia pendurado na gola da camisa e uma rede de arame que separava o público

do local onde a relação com o animal se desenrolou. No entanto, durante os dias

em que aconteceu a ação, este ambiente foi se modificando de acordo com as

necessidades que surgissem. Segundo Tisdall44, nesta ação o artista estaria

trazendo objetos de seu universo e ocupando metaforicamente o espaço do índio,

fazendo isso através de representações de poder silenciosas e introduzindo esses

elementos “brancos” ao animal, símbolo do índio norte-americano, numa

intrincada rede de significações.

Em Introdução homogênea para piano de cauda, o maior compositor

contemporâneo é a criança talidomida o artista reformulou a cena onde já havia

se desenvolvido uma apresentação, levando

consigo os elementos que utilizaria para sua

ação. O artista tratou de “emudecer” um piano

de calda envolvendo-o com feltro e aplicando

neste o símbolo do socorro: a cruz vermelha.

Trouxe de volta ao local da ação um quadro-

negro que estava encostado na parede e pôs

sobre o piano um brinquedo de pilhas (tratava-se de um patinho). A visão sócio-

funcionalista do rito, tende a perceber no rito uma “função de espelho”, refletindo

o drama social e auxiliando na elaboração de uma espécie de cura e, nesta ação,

Beuys trouxe à tona um drama da época. A utilização em larga escala da

talidomida45 causou defeitos congênitos nas crianças cujas mães utilizaram o

medicamento durante a gravidez, causando o encurtamento dos membros. Através

desta ação, numa primeira leitura notamos a crítica que o artista faz ao assunto,

assunto este, como outros do gênero, que a sociedade finge não ver. O artista o

traz à tona de um modo quase cruel, como indica no título da ação. Como poderia

uma criança talidomida tocar piano? Piano este presente na ação envolto e

“calado” pelo feltro, com uma cruz vermelha bordada nele, imagem esta que nos

44 TISDALL, Caroline. Joseph Beuys. 45 Segundo a Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome de Talidomida, “trata-se de um medicamento desenvolvido na Alemanha, em 1954, inicialmente como sedativo. Contudo, a partir de sua comercialização, em 1957, gerou milhares de casos de Focomelia, que é uma síndrome caracterizada pela aproximação ou encurtamento dos membros junto ao tronco do feto - tornando-os semelhantes aos de uma foca - devido a ultrapassar a barreira placentária e interferir na sua formação. Utilizado durante a gravidez também pode provocar graves defeitos visuais, auditivos, da coluna vertebral e, em casos mais raros, do tubo digestivo e problemas cardíacos.”

Fig. 20 - Introdução homogênea

para piano de cauda - 1966

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remete à idéia de socorro.

O som do piano é abafado dentro do pano de feltro. No senso comum, o piano é um instrumento usado para produzir som. Quando não está sendo usado, ele está em silêncio, embora sempre possua o potencial do som. Entretanto, neste caso nenhum tipo de som é possível e o piano está condenado ao silêncio. ‘Infiltração homogênea’ descreve a natureza e a estrutura do feltro, por este caminho, o piano se torna um mecanismo homogêneo de som, com a habilidade de filtrá-lo por meio do feltro. (...) as duas cruzes vermelhas significam emergência. O perigo que nos ameaça se nós ficamos calados e não levamos em frente o próximo passo da evolução.46

Mas além de denunciar este problema, o artista, mais uma vez, punha em

discussão a condição e a potencialidade criativa do homem, que, mesmo diante

dos maiores infortúnios, não a perde. Era preciso enfatizar o tema, espelhar para o

homem esta potencialidade e estimulá-lo a usá-la. Esta ação ‘espelha’ o

sentimento de esperança que pode surgir de períodos de sofrimento.

Em Manresa tínhamos uma enorme metade de cruz latina envolvida com

feltro, cuja outra metade se encontrava desenhada a giz na parede e, à frente desta,

estava uma caixa de madeira contento uma

diversidade de materiais a serem utilizados

pelo artista durante a ação. A sala estava

toda pintada de negro e repleta de gordura

por todos os lados, que ia sendo manipulada

pelo artista de modo a remodelar

incessantemente o ambiente.

Para o artista, todas as coisas no

mundo estão à espera de uma ativação

energética para perceberem-se. A sala toda

negra servia para ressaltar os elementos

usados pelo artista, assim como a gordura

que estava espalhada por todo o ambiente é a

própria idéia de ação, de transformação e de

movimento de energia. Em momentos diferentes de Manresa, Beuys, utilizando

Fig. 21 – Esquema de cena da ação Manresa - 1966

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um aparelho gerador de alta tensão, provoca faíscas que, no interior de uma sala

negra, tornam-se ainda mais evidentes, sublinhando potências energéticas

invisíveis. São energias necessárias para impulsionar e mover as ações do homem.

Todo o desenvolvimento a que o homem chegara, trouxera também a

perda da unidade, o distanciamento da espiritualidade. O artista questionava-se

sobre “as condições necessárias para a renovação do ser humano e a

transformação da totalidade social.”47 Nesta ação, a cruz partida funcionava

como um símbolo da unidade perdida, ligada à idéia de divisão interior do homem

e da sociedade e, o homem, portanto, deveria se mover na direção de completar

tudo aquilo que lhe falta, como o artista fez simbolicamente ao desenhar na parede

com giz a outra metade da cruz; e a barra de cobre, que em dado momento o

artista apoia à frente da meia cruz, representaria a possibilidade de sucesso nesse

intuito, uma vez que é um condutor em potencial de energia, energia esta que

pode movimentar ações.

O ambiente da ação e os elementos que a compõem criam juntos um espaço

de clarificação, onde as coisas aos poucos se ordenam, onde a idéia toma lugar,

criando um espaço de reflexão. O rito possibilita a criação de um espaço onde

qualquer tipo de crise possa ser restaurada através do “reviver” de uma memória

coletiva, que é transformada e atualizada.

Na “montagem” do ambiente de suas ações, os materiais que utilizava

possuíam uma natureza olfativa bastante marcante. Como bem percebeu Alan

Borer48, o ambiente e o artista ficavam impregnados de cheiros, em sua maioria

fortes e desagradáveis. Beuys privilegiava os odores naturais, ‘verdadeiros’ e

‘originários’, contrapondo-se aos cheiros elaborados e agradáveis articifialmente:

O cheiro é um veículo mais confiável do que a transmissão de conceitos (...). Primeiramente, somos tomados pelo nariz e então o corpo é lançado para dentro do seu covil e mantido prisioneiro. O cheiro é mais que um signo; ele dá forma a uma presença invasiva. Esse tipo de ensinamento tem raízes, sem dúvida, em ritos sacerdotais, somos exortados, por um lado, a tomar a iniciativa, a pegar aquilo que

46 BEUYS, Joseph Apud DURINI, Lucrezia de Domizio. The felt hat a life told; p. 34. 47 MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; p 220. 48 BORER, Alain. Joseph Beuys; p 18-20.

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quisermos e, por outro lado, Beuys nos prende, nos escravisa. O odor em Beuys aproxima-se da adoração.49

Através dos cheiros presentes em suas ações, era possível recriar uma

atmosfera, remetendo a sensações diversas e ajudando a instaurar uma espécie de

espaço sagrado, como freqüentemente pode-se observar na prática de alguns ritos,

que utilizam elementos do cotidiano para paradoxalmente suspendê-lo dele, de

modo a criar um afastamento e uma possível reflexão sobre este.

Na ação Coyote: I like America and America likes me o ambiente estava

impregnado com o cheiro da urina do animal, em Celtic +~~~~ o ambiente

possuía um forte cheiro de enxofre que vinha da bacia com água e em O chefe o

cheiro da gordura espalhada pelo ambiente era tão forte que por vezes

incomodava o público. Os odores emanados dos materiais auxiliavam na

ambientação da ação, instaurando atmosferas e remetendo a sentimentos. O artista

buscava nos odores a fantástica possibilidade que os cheiros possuem de nos

“levar” para outros lugares, despertar sensações, tornando-se um material

impalpável em sua obra.

Ao criar e recriar o ambiente de suas ações, Beuys acabava por estabelecer

uma espécie de “lugar sagrado”, um ambiente simbólico propício a experimentar

outras sensações e a promover algum tipo de reflexão, como vemos acontecer na

prática dos ritos. Podemos perceber uma freqüente repetição dos elementos e um

modo similar de preparar os ambientes onde suas ações iriam ocorrer. Estes, de

um modo geral, não tinham uma preparação prévia muito elaborada. . Em Como

explicar quadros a uma lebre morta o ambiente estava anteriormente preparado

para uma exposição de obras do artista, que se apropriou deste para realizar sua

ação, re-significando deste modo o ambiente.

Na maior parte das vezes, no ambiente estavam os elementos que o artista

utilizaria e este ia sendo construído durante o decorrer da própria ação. Ao

promover uma reestruturação do espaço físico, o artista acabava por alcançar um

espaço significativo, manipulando símbolos que se tornaram marcas de seu

trabalho. Quando há uma síntese bem sucedida entre o espaço físico e o espaço

49 Ibid., p. 20.

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simbólico, há a formação de um terceiro tipo de espaço, o “espaço interno”. Neste,

acontece uma experiência de “mergulho” na ação, de modo a não se dar mais

conta do ambiente, mas de estar de tal maneira envolvido no instante presente,

tornando-se mais vulnerável a receber tudo que este pode proporcionar,

alcançando os objetivos pedagógicos que o artista tinha, bem como os pretendidos

na fase liminar da maioria das práticas rituais.

3.2.3 A suspensão do tempo na ação-ritual

Uma ação ritual não é medida pelo tempo comercial ou pelo tempo social50,

pois possui um tempo característico e intrínseco. O homem tornou-se “escravo”

de um tempo artificial, medido por convenções matemáticas, e nos habituamos a

controlá-lo pelo relógio. Medi-lo através do biorritmo pessoal ou pelos eventos

naturais tornou-se quase impossível, numa sociedade onde “tempo é dinheiro” e

onde a velocidade acelera-se cada vez mais, num ritmo frenético imposto pelo

avanço tecnológico. No entanto, a experiência do tempo é subjetiva, por mais que

haja um tempo construído socialmente para atender à necessidade de

periodizações padronizadas. Cada pessoa lida com este de modo distinto,

alienando-se por vezes do tempo vivido no dia-a-dia, tornando-o mais “lento”,

criando pausas ou mesmo acelerando-o, distanciando-se do tempo imposto pelo

relógio; é um tempo que escapa aos ponteiros do relógio, cujos minutos podem

durar mais ou menos, tornando-se o que Crippa chamou de tempo da existência51.

Este tempo, segundo o autor, caracteriza-se pela intensidade com que os

momentos são vividos e não com a mensurabilidade dada pelo tempo comercial,

assumindo a experiência do tempo um caráter particular em cada indivíduo.

Além do tempo comercial e do tempo existencial, há ainda o tempo

sagrado. “Pode-se designar o tempo no qual se põe a celebração de um ritual e

que é, por este fato, um tempo sagrado, isto é, um tempo místico, às vezes

realizado pela repetição pura e simples da ação dotada de um arquétipo mítico

50 Tempos medidos pelo contar das horas. 51 CRIPPA, Adolpho. Mito e cultura; p. 145.

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(...).”52 Os mitos e os ritos possibilitam a instauração de um outro tempo,

podendo mesmo alcançar a sua suspensão em alguns casos, podendo retornar a um

tempo passado repetidas vezes, “um tempo primordial tornado presente”53. Esta

“quebra” do tempo cotidiano é fator primordial para que se alcance a fase liminar

apontada por Turner.

Nas ações de Beuys podia-se notar uma despreocupação com o tempo

comercial, mecânico ou mesmo uma descontinuidade deste; não havia pressa, a

“pressa” só existia quando o objetivo da ação o exigia, mas nunca o relógio. Rito

e ação demonstram um lado lúdico de lidar com o tempo, criando uma

desaceleração de ritmos, uma vez que possui um tempo próprio, um tempo que é

mais lento ou mesmo por vezes adiado ou ‘suspenso’, como indicam muitas obras

de M. Eliade54. Por ser uma ação, o rito “manipula” o tempo estabelecendo uma

“pausa simbólica”, não se submetendo às regras do relógio. O rito acaba por

estabelecer na vida do homem um momento de pausa, um momento propício para

a reflexão, pois se existe alguma coisa que não condiz com a estrutura e a

condição do rito, é a pressa; ele se desenvolve em seu próprio ritmo, reflexão esta

que Beuys objetivava com suas ações.

A ação O Chefe (1964) teve uma

duração de 8 horas, cujo ritmo, atestado pela

audiência, foi bastante lento. Do interior do

rolo de feltro, espaçadamente o artista emitia

sons. As pessoas que estavam em uma sala ao

lado, aguardavam curiosas. Elas iam e vinham

em silêncio, sempre aguardando “algo”

acontecer, mas Beuys não tinha pressa. Como

também não teve pressa para “explicar quadros a uma lebre morta”, em 1965, cuja

ação estendeu-se por 3 horas. Mas não era o tempo do relógio que lhe interessava,

e sim, o tempo da reflexão, o tempo distendido de modo a “retirar” as pessoas

(apesar de ausente do local) do ritmo diário, a ponto de se desligarem e entrarem

52 ELIADE, Mircea apud CRIPPA, Adolpho. Mito e cultura; p. 147. 53 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p. 63. 54

Estas idéias aparecem em obras do autor, tais como: ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001; ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1990; ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2004 e ELIADE, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios. Lisboa.Ed.70, 1989.

Fig. 22 – O chefe - 1964

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no tempo da ação ou na ausência de tempo da lebre morta. Propunha uma outra

temporalidade, que fosse capaz de despertar nas pessoas a imaginação, a

inspiração e a intuição, trazendo “à tona a complexidade das áreas criativas”.55

Em Coiote: I like América and America like’s me, o tempo do relógio

social marcou nesta ação uma duração de 3 dias. Durante este período, o artista

conviveu com o animal, símbolo dos índios norte-americanos, desligando-se do

que acontecia do lado de fora. Momentos de pausa eram intercalados pelo som de

um triângulo preso às vestes do artista, pelo som de uma turbina gravado em uma

fita ou pelo som do animal. O coiote é um animal que simbolizaria “a tensão

entre individualismo e sociedade”56 e nesta ação a relação entre ambos

estabeleceria uma ponte entre o homem da cidade moderna e a natureza animal, a

busca de uma suspensão do tempo social para uma entrega profunda a esta

relação.

Durante as ações, durassem estas uma hora como Manresa ou três dias

como em Coyote: I like America and America like’s me, não havia uma relação

com a nossa forma usual de contar

o tempo. No envolvimento e

concentração em que o artista

ficava, segundos podiam durar

horas, como horas podiam virar

dias, ou mesmo ter uma suspensão

de tempo, pois o tempo nestes

casos era comandado pelo tempo

poético, pelo tempo interno do artista e da situação que pretendia estabelecer, era

“medido” pela intensidade dada por ele àquele momento.

3.2.4 Beuys: um xamã da modernidade?

A idéia de cura, da arte como processo terapêutico do indivíduo e da

55 Joseph Beuys, Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (1965), publicado em inglês como Statement on how to explain pictures to a dead hare, em: Caroline Tisdall, Joseph Beuys. 56 ADRIANE, Götz; KONNERTZ, Wintfried; THOMAS, Karin. Joseph Beuys life and works.

Fig. 23 – Coiote: I like America and America

like’são me - 1974

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sociedade, também ligada à idéia de xamanismo, faz-se presente nas ações de

Joseph Beuys. A idéia de uma “ferida” na criação do artista pede a procura por

uma cura. Ritos de morte e regeneração estão igualmente vinculados a isso.

Segundo as palavras do artista:

(...) quando me pergunto o que é que se deve salvar neste mundo, não me refiro ao aspecto material, nem sequer somente ao corpo humano. Todos sabemos que vamos morrer. O que temos que salvar é a alma humana. (...) O organismo social está gravemente doente, e conhecemos as razões desta doença, é em grande parte feita pela evolução do homem. 57

A associação de Beuys à figura de um xamã é freqüente em quase toda a

bibliografia sobre ele. O “aparente” estado de transe em que o artista se

encontrava frequentemente durante suas ações, só nos fazem acreditar que faziam

parte de sua poética pessoal.

(...) pessoas chamam certos elementos como o modo como me comporto, minhas ações e muitas das figuras que aparecem em meus desenhos de xamanismo. Eu até aceito essa palavra, mas eu aceito apenas no sentido de que eu não utilizo xamanismo como referência à morte, mas ao inverso disso. Por xamanismo eu recorro ao caráter fatal dos tempos que vivemos. Ao mesmo tempo eu também mostro que o carater fatal do presente pode ser superado no futuro.58

O conceito de xamã no entanto, é bastante vasto e por isso, para

entendermos o porque dessa ligação do artista ao xamanismo, nos valeremos da

leitura da obra de Mircea Eliade: “O xamanismo e as técnicas arcaicas do

êxtase”59. Logo no começo de sua obra o autor define xamanismo: “uma primeira

definição desse fenômeno complexo e possivelmente a menos arriscada, será:

xamanismo – técnica do êxtase”60 A experiência extática seria, numa primeira

instância, a capacidade exercida pelos xamãs de terem acesso a zonas sagradas

cujos demais não têm, sendo capazes de abandonar o seu corpo e “caminhar” com

57BEUYS, Joseph. Discurso sobre mi país. In BERNÁRDEZ, Carmen. Joseph Beuys; p. 107-109. 58BEUYS, Joseph apud in Zeichnungen/Tekeningen/Drawings. Nationagalarie Berlin/ Staatliche Museen Preubischer Kulturbesitz/ Museunm Boymans – van Beuningen Rotterdam, textos de Heiner Bastian e Jeannot Simmen, Prestel, Berlin, 1979. 59 ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Obra escrita pelo autor em 1951. 60 Ibid., p. 16.

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sua alma. O autor atestou que cada grupo que se estude possuirá uma idéia de

xamanismo própria, mas que num processo comparativo é possível chegar a um

“tipo-ideal” de xamanismo.

Se por xamã se entender qualquer mago, feiticeiro, medicine-man ou extático encontrado ao longo da história das religiões e da etnologia religiosa, chegar-se-á a uma noção ao mesmo tempo extremamente complexa e imprecisa, cuja utilidade é difícil perceber, visto já dispormos dos termos ‘mago’ e ‘feiticeiro’ para exprimir noções tão díspares quanto aproximativas como as de ‘magia’ ou ‘mística primitiva’.(...) Magia e magos há praticamente em toda o mundo, ao passo que o xamanismo aponta para uma ‘especialidade’ mágica específica (...) Por isso, embora o xamã tenha, entre outras qualidades, a de mago, não é qualquer mago que pode ser qualificado de xamã. A mesma precisão se impõe aos propósitos de curas xamânicas: todo medicine-man cura, mas o xamã emprega um método que lhe é exclusivo. As técnicas xamânicas do êxtase, por sua vez, não esgotam todas as variedades da experiência extática registradas na história das religiões e na etnologia religiosa; não se pode, portanto, considerar qualquer extático como um xamã: este é o especialista em um transe, durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar ascensões celestes ou descensões infernais.61

Para o autor, o xamanismo seria um fenômeno religioso característico dos

povos siberianos e da Ásia Central. Para ele, a vida religiosa destes povos estaria

em torno do xamanismo, pois “em toda a região a experiência extática é

considerada religiosa por excelência, é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do

êxtase”.62

Não é xamã quem quer, mas quem é escolhido. Um xamã muitas vezes é

escolhido através de uma doença, ou melhor, pela capacidade de se curar de uma

enfermidade: “um doente que foi capaz de cura-se a si mesmo”63 ou através de

sonhos reveladores ou “êxtases patogênicos”64. Tanto doenças como sonhos

podem ser entendidas como experiências extáticas, uma vez que estão diretamente

ligados à idéia de “perda ou viagem da alma” e êxtase é entendido, muitas vezes,

pelo autor como um “sair de si mesmo”. “O êxtase é apenas a experiência

concreta da morte ritual ou, em outras palavras, da superação da condição

humana, profana”.65 Após esta escolha natural, o escolhido passa por um período

61 Ibid., p. 15-17. 62 Ibid., p.16. 63 Ibid., p. 27. 64 Ibid., p. 49. 65 Ibid., p. 115.

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de instrução com os velhos mestres e por um processo ritual de iniciação,

composto de sofrimento, morte e ressurreição, onde o futuro xamã receberá

instruções de espíritos e deuses e aprenderá o caminho para o mundo dos mortos e

a capacidade de repetir este caminho quando quiser. A morte ritual consiste,

portanto, no rito de iniciação ao xamanismo.

A biografia de Beuys, especificamente em seu acidente de avião na Sibéria

(região intimamente ligada ao conceito de xamanismo) proporciona um início de

aproximação do artista à figura do xamã, o escolhido que retornou da morte, que

conseguiu a cura. Durante o processo de iniciação xamânica o escolhido fica por

dias dado como morto (uma morte simbólica), tempo durante o qual, seu corpo

sofre um processo de restauração interna, em que há uma “fuga da alma”,

ocasionando durante a situação uma suspensão do tempo. O relógio continua para

os de fora, não para o iniciado. Através deste processo o xamã torna-se capacitado

a realizar curas, cuidar de feridas, tornando-se também um guia espiritual. A

experiência de quase morte sofrida durante a Segunda Guerra, cumprindo

simbolicamente as fases de iniciação xamânica (sofrimento, morte e ressurreição),

numa realidade de inumanidade vivida na época, o levou a refletir sobre o absurdo

da situação e a pensar um modo para que isto não pudesse mais voltar a acontecer.

O artista, que até antes da guerra estudava biologia, voltou-se então para a arte,

por entender que este seria o caminho mais eficaz de alcançar uma realidade

social melhor.

Eu tentei ser um cientista, mas tive o sentimento de que deveria escolher um método diferente. Eu tinha que produzir alguma coisa que provocasse as pessoas, que provocasse uma reação mais forte nelas, algo que as fizesse pensar sobre o que significa ser humano. Criaturas da natureza e criaturas sócias, livres agentes. Questões como estas eram importantes para mim quando eu tomei a decisão pela arte como um caminho metodológico para provocar as pessoas.66

Quando esteve sob os cuidados dos Tártaros, Beuys pôde extrair destes a

real compreensão de aproximação com a natureza e a importância dada à

espiritualidade, relações estas que davam uma nova dimensão à vida. Entre outros,

era preciso recobrar uma situação original, onde homem e animais (e a natureza

66 STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys; p. 96.

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como um todo) viviam harmoniosamente.

Ao se esquecerem as limitações e as falsas medidas humanas, era possível encontrar, desde que se soubesse imitar convenientemente os costumes dos animais (andar, respiração, voz etc), uma nova dimensão da vida: espontaneidade, liberdade, ‘simpatia’ com todos os ritmos cósmicos e, portanto, bem-aventurança e imortalidade.67

Tal tentativa de comunicação com animais é atestada em Como explicar

quadros a uma lebre morta, restabelecendo uma ruptura entre homem e animal

como o alcançado pelos xamãs. Através de uma linguagem incompreensível aos

homens, o artista embalava e conversava com a lebre, considerada segundo

Stachelhaus68, um animal sagrado da deusa germânica da primavera.

A idéia de realizar uma explanação para um animal transmite um sentido do segredo do mundo e da existência que é um apelo à imaginação. Então, como eu disse, mesmo um animal morto mantém mais poderes de intuição do que alguns seres humanos com a sua racionalidade teimosa.69

Tanto em Como explicar quadros a uma lebre morta como em O chefe ou

Coiote: I like América and America like’s me, o artista fazia uso do animal como

um impulso para discutir a possibilidade de diferentes formas e níveis de

comunicação, não se reduzindo à fala, porque isto acabaria por reduzir a

amplitude de uma série de assuntos como política, economia e educação. Os sons

carregariam para Beuys muitas significações, que não apenas as semânticas.

Na ação Celtic +~~~ existiam dois ritos familiares ao público: a lavagem de

pés e o batismo. No início da ação o artista carrega em seus ombros uma toalha

branca e solenemente começa a lavar os pés de 7 pessoas (número símbolo da

totalidade). Uma a uma, ele lavava, enxugava cuidadosamente e depois se virava

para a parede onde atirava a água “suja” repetindo ritualisticamente esta seqüência

para cada uma das pessoas. Enquanto praticava a ação podia-se ouvir ao fundo o

67 ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase; p 498. 68 STACHELHAUS, Heiner. Joseph Beuys. 69 Joseph Beuys, Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (1965), publicado em inglês como Statement on how to explain pictures to a dead hare, em: Caroline Tisdall, Joseph Beuys.

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som de sinos, criando uma atmosfera de calma e

recolhimento, de modo a criar uma ambientação

propícia para que a ação-ritual pudesse se dar a

contento. Durante os trinta minutos que

permaneceu imóvel, era possível observar o

artista em um estado de concentração profundo,

como se estivesse em transe. Para o fim da

ação, o artista prendeu em suas coxas e suas

costas tochas e ajoelhou-se sobre uma bacia de

zinco, abrindo os braços, deixando-se molhar

por um fio de água que saia de um regador. “Os

ritos de abertura e fechamento da ação

correspondem a uma reapropriação pelo homem de sua natureza invisível: alma,

corpo e espírito (indícios da água como fluxo da vida), que se encontram

unificados através dela”70 As lavagens, dele e dos espectadoress, indicam uma

relação com o trabalhar para os outros, como para si mesmo. Ele procura tornar

significante a evolução espiritual, que atravessa a noção de individualidade.

Segundo Sarkis, no zodíaco o pé teria relação com peixes e o joelho (do ato de

ajoelhar-se na bacia) com aquário, demonstrando uma associação com a passagem

da era de peixes para aquário trazendo uma ampliação da consciência.71 Assim,

esta ação pode ter no ato da lavagem um símbolo de terapia social, que segundo

grupos sociais que fazem uso das técnicas xamãs, somente estes poderiam operar.

Segundo o artista, quando se refere aos comentários sobre elementos

xamânicos em suas obras, ele diz:

Muitas destas realidades são estados do tipo que muitas pessoas chamaram de elementos xamânicos. Entretanto, eles não o são em um sentido atávico. Quando eu faço algo xamânico, eu estou usando elementos xamânicos admitidamente como elementos do passado, com a intenção de expressar alguma coisa sobre uma possibilidade futura.72

70 SARKIZ. In: Joseph Beuys. Catalogue du Centre Pompidou; p. 317. 71 Ibid., p. 317. 72 BEUYS, Joseph apud in Zeichnungen/Tekeningen/Drawings. Nationagalarie Berlin/ Staatliche Museen Preubischer Kulturbesitz/ Museunm Boymans – van Beuningen Rotterdam, textos de Heiner Bastian e Jeannot Simmen, Prestel, Berlin, 1979.

Fig. 24 – Celtic +~~~ - 1971

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O papel mais importante atribuído à figura de um xamã é o de agente da

cura. Com o intuito de promover através de seus trabalhos uma espécie de “terapia

social”, o artista preocupava-se em proporcionar às pessoas um momento de

discussão sobre os problemas que estavam acontecendo, cabendo a si o papel de

conduzir esse momento de reflexão e quiçá alcançar a cura pretendida. Em

Infiltração homogênea o objetivo principal da ação passava pela questão do

sofrimento. Tal sofrimento no entanto, não era encarado como um aspecto

negativo. Ampliando a questão para um “sofrimento coletivo”, este poderia ser

visto positivamente uma vez que poderia levar ao desenvolvimento espiritual do

homem, alargando potencialidades do ser humano. Apesar das limitações físicas

impostas pela doença, as crianças talidomidas, ali metaforizando o homem como

um todo, podiam desenvolver competências diversas. O sofrimento pode ser

interpretado como uma possibilidade de transformação, de caminho obrigatório

para se alcançar a cura e este processo estaria repleto de aprendizado.

Em Coiote: I like América and America like’s me, além de movimentar fatos

históricos, a questão da ferida e da cura através da arte também está colocada.

Além dos elementos típicos de suas obra, a presença no início e no fim da ação da

ambulância e da maca nos remetem imediatamente à idéia de doença, clamando

por uma cura de uma doença social ocasionada talvez por um ser humano que

havia se tornado tecnológico demais, distanciando-se de sua natureza.

É típico de Beuys procurar uma ferida, uma mancha dolorida, que é também uma representação muito concreta de um contexto mais amplo de nosso fracasso social. É igualmente típico que o artista use não apenas essa mancha dolorida para fazer a denúncia, mas aplique a ela todo tipo de dialética (...).73

Herdeiro de uma Alemanha arrasada pela guerra, a arte de Beuys ficou

marcada pela necessidade de tentar curar o mal estabelecido por esta. Como

realizar uma arte após acontecimentos tão bárbaros?

Não se criou nenhum organismo nem para a arte nem para a evolução que tenha sido posto em andamento pelas catástrofes da I e II Guerra Mundial. E sem dúvida,

73 TISDALL, Caroline. Joseph Beuys; p. 248.

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haverá uma terceira se não seguirmos um novo rumo até a ciência da liberdade, onde reina ‘cada homem é um artista’, onde cada um é ele mesmo, e onde se insiste no soberano que se encontra dentro de cada homem.74

Não é difícil constatar em suas ações a postura de xamã assumida pelo

artista no intuito de promover uma dita cura social através da arte. O artista nunca

negou o uso de elementos xamânicos nestas, embora não se considerasse um. Ele

utilizava tais elementos por entender que estes propiciariam um processo de cura

da sociedade, trazendo então elementos do passado para o tempo presente.

Esta é uma vivência em que eu também estou inserido, no sentido de desejo de poder, baseado na necessidade de trazer de volta algo interno ao nosso tempo cultural consciente que está sendo perdido, isto é um chamado para olhar para estas forças perdidas seriamente, forças que estão no xamanismo, e repô-las no contexto do nosso pensamento de um modo completamente novo. É por isso que estas coisas são realidades e não existem apenas num sentido estético, elas são também uma intenção real. (...) É por isso que eu utilizo os elementos primitivos, para provocar a consciência presente. Mas não para voltar ao passado. Este é um princípio transcendente que está envolvido com o que diz respeito às sociedades futuras. Você tem que provocar as pessoas para que elas se movam!75

Através do mito encenado nos ritos, é possível um descortinamento da vida

ocultada pelo cotidiano, mas que está lá e que faz parte dele. Os mitos remetem-

nos a tempos melhores, a um tempo primeiro, originário, natural. Reviver esses

momentos simbolicamente através dos ritos, possibilita-nos reavaliar o presente e

o cotidiano que sufoca essa realidade.

O romantismo, em sua ansia totalitária, priveligia um entendimento do

oculto, de aspectos que a razão classicista não dava mais conta. Uma totalidade

que não diferenciava para Schelling76, natureza orgânica de inorgânica, pois

ambas seriam potências de uma mesma natureza, portanto, nada de distinção entre

objeto e sujeito, natureza e espírito.

74 BEUYS, Joseph. Discurso sobre mi país. In BERNÁRDEZ, Carmen. Joseph Beuys; p. 109. 75 BEUYS, Joseph apud in Zeichnungen/Tekeningen/Drawings. Nationagalarie Berlin/ Staatliche Museen Preubischer Kulturbesitz/ Museunm Boymans – van Beuningen Rotterdam, textos de Heiner Bastian e Jeannot Simmen, Prestel, Berlin, 1979. 76 MERLEAU-PONTY, Maurice. A concepção romântica da natureza.

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A busca por entendimentos de símbolos antigos, um olhar cuidadoso sobre

a mitologia, fazia-se necessário, uma vez que estes podiam esconder em si o

segredo da vida, um sentido maior da existência. Lançando mão de aspectos

comuns aos que podemos observar em práticas rituais, Beuys estabelecia em suas

ações uma espécie de lugar sagrado e mais do que isso, de um lugar e tempo de

reflexão. O artista tentava estabelecer uma relação que fosse capaz de

proporcionar um mergulhar na ação, de modo que os espectadores saíssem de lá

modificados, semelhante à fase liminar apontada por Vitor Turner77, para que a

mensagem e discussão que tentava promover não fossem introjetadas apenas por

vias racionais, já que esta não dava mais conta de entender o humano, mas por

vias sensoriais e lúdicas, promovendo uma auto-reelaboração, como o

demonstrado por Geertz78, e a cura necessária para uma reconstrução social,

como o ansiava Joseph Beuys.

77 TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. 78 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Estou interessado na difusão de idéias

que têm em seu ponto de vista a transformação

política ou dos conhecimentos filosóficos,

que precisamente tem como objetivo

a transformação do ser humano.”

Joseph Beuys∗

O universo simbólico da obra de Beuys é tão vasto e os caminhos que se

podem percorrer para pensar as suas obras são tantos, que um trabalho como este

não poderia pretender esgotá-los. Nesta dissertação tentamos apenas mostrar

alguns dos principais pensamentos do artista e o modo como os punha em prática

através de suas ações artísticas, valendo-se de repetições e de um certo “efeito

espelho”, como também podemos observar nas práticas de ritos.

Pudemos constatar que elementos de grupos sociais determinados que

partilham um ritual dominam o universo simbólico presente neste; no entanto, é

muito provável que muitos dos símbolos utilizados pelo artista em suas ações não

tenham sido decodificados de maneira igual dentre os observadores, uma vez que

não se tratavam de símbolos fixos. Os elementos utilizados pelo artista possuíam

um valor simbólico no interior de sua obra e apenas acompanhando o transcorrer

do seu discurso particular seria possível partilhar do valor simbólico dado pelo

artista a estes e ao modo como os utilizou em suas ações. Tais símbolos eram para

ele “veículos de experiência, transmissores e comunicadores (...). Representam

efeitos ocultos e podem ser tornados inteligíveis e transparentes.”1

Suas ações - as que apresentamos ou outras que aqui não figuraram –

conseguiam, na grande maioria das vezes, alcançar uma grande recepção pública e

gerar muitos debates. Sua obra acabava por assumir uma função de agente social,

ampliando suas discussões para além do universo artístico. O artista apontava para

a possibilidade da arte sair de circuitos fechados alcançando a esfera pública,

sendo um meio possível para que as pessoas encontrassem um caminho para viver

∗ BEUYS, Joseph apud in KLÜSER, Bernd. Joseph Beuys : ensayos y entrevistas.

1 Caroline Tisdall, Joseph Beuys; p 13

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melhor, pondo em prática o seu conceito ampliado de arte. Todos os seus esforços

foram no sentido de estimular no outro a conscientização de seus potenciais

criativos.

Muito embora os significados das ações do artista não pudessem em

princípio ser partilhados igualmente entre todos, através do conjunto destas, o

significado ia se constituindo. Com a repetição de temas e elementos, pouco a

pouco suas idéias iam se disseminando, questionamentos iam sendo propostos.

Não era uma resposta de pronto que o artista esperava, mas sim, uma tomada de

consciência de si e dos problemas ao redor, para que, pouco a pouco, mudanças

pudessem ser propostas e concretizadas.

Quando um rito acontece, existem, como já vimos, procedimentos que são

realizados num contexto específico e sob condições específicas para que a prática

ritual tenha valor como tal no seio do grupo que o pratica. Afirmar que as ações

de Beuys eram rituais seria uma atitude irresponsável; entretanto, como tentamos

demonstrar no capítulo três, é possível notar-se a presença de princípios rituais.

Nas fases que Vitor Turner2 aponta na prática ritual podemos perceber

uma relação com as ações de Beuys, uma vez que existe uma preparação do

espaço para que a ação aconteça (pré-liminar); temos a fase liminar em si, em que

a ação acontece e, por fim, temos o momento em que a experiência da ação é

processada pelos participantes dela (pós-liminar). A possibilidade de

descontinuidade e mesmo de desestruturação da realidade cotidiana apresentada

na fase liminar da ação proporciona um espaço de criatividade e de re-elaboração

das questões apontadas pelo artista, que são apreendidas por cada um a seu tempo

e a seu modo. Através da prática de ritos há a possibilidade da recriação de uma

visão coletiva da realidade e nas ações do artista podemos notar uma tentativa

presente em quase todas elas de mexer em estruturas socialmente cristalizadas.

Podemos dizer que em suas ações Beuys realizava um tipo singular de rito.

Dado que a repetição é uma das características do rito como fator pedagógico e

integrador social, podemos também observar esse caráter nas ações, em suas

outras obras e até mesmo no comportamento do artista. A própria apresentação do

2 TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura.

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artista, sempre com chapéu de feltro; sua fala quase insistente em torno de temas

presentes no conjunto de suas obras; os elementos materiais que privilegiou

repetidamente, já denotam uma repetição contínua, criando uma marca,

desenvolvendo um tipo particular de ritual.

Os ritos possuem sua origem em construções coletivas e as ações de Beuys

são uma construção subjetiva e individual a princípio. De acordo com o

antropólogo Van Gennep3, os rituais possuem dentro de uma comunidade a

função de garantir a passagem segura de um estágio a outro. Já as ações de Beuys

- que teriam se aproximado de estruturas rituais - podem ser também entendidas

como uma tentativa de assegurar uma passagem de uma ordem estabelecida a

outra ainda indefinida, mas cujo processo compreende a idéia de uma

transformação do indivíduo, que o artista acreditava serem necessárias para

garantir a ampliação do conceito de arte.

A sociedade, segundo Geertz4, deixou de lado as questões espirituais, levada

pelo racionalismo e pela idéia de progresso. Trata-se de uma crise espiritual, não

distante, já apontada por Husserl e amplamente discutida por Beuys em sua obra.

Quando dizemos que o artista “encarnava” a figura de um xamã, não acreditamos

que pretendia de fato praticar um ritual no sentido categórico do termo, mas

utilizar elementos estruturais destes para evocar um sentimento de busca pelo

sagrado, pelo silêncio interno, pelo autoconhecimento, pela consciência do mundo

circundante, por uma reconstrução histórica, pela totalidade da vida e somente

assim homem e natureza poderiam se reconciliar. Para o artista, a arte era uma

atividade que levaria a esse objetivo, porque apenas esta seria capaz de tornar o

homem realmente humano e transformar a sua natureza e a natureza que estava à

sua volta.

Quando Beuys propôs na FIU uma escola que promovesse “troca de

criatividades” e uma “democracia de criatividades”, ele estava tentando, de certo

modo, unir os homens; homens estes de diferentes culturas, diferentes crenças,

línguas, mas que juntos encontrariam um modo de se comunicar e, através da arte,

de se apaziguarem e se unirem para a construção de uma sociedade melhor, “pois

3 GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem.

4 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.

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somente as novas idéias podem levar à realização de uma nova realidade.”5

5 BEUYS, Joseph. A revolução somos nós: um socialismo livre e democrático. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Org). Escritos De Artistas Anos 60, 70; p. 318.

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ANEXOS

ANEXO I

TIPOLOGIA DAS AÇÕES

Para a realização de nossa pesquisa, fizemos um recorte temporal entre 1964 e

1974, para que pudéssemos destacar os pontos em comum no modo como foram

realizadas suas ações, nos símbolos que utilizou o artista, no modo como se

apropriou do ambiente, dos materiais utilizados e da presença de possíveis

“aspectos rituais”. Apresentaremos a seguir as ações escolhidas para a realização

desta dissertação.

1. O Chefe (1964)

Realizada em Copenhague e posteriormente em Berlim, teve uma duração de 8

horas. A ação se desenvolveu na sala de uma galeria, onde o público ficava

separado do artista. Beuys ficou deitado no chão com seu corpo todo envolvido

em feltro, o que nos permite imaginar uma espécie de rito funerário, e em cujas

extremidades do rolo estavam 2 lebres mortas, como se fossem extensões do

corpo do artista. Entre os materiais presentes nessa ação estavam a gordura, um

bastão de couro, tufos de cabelo, aparas de unha, aparelhos acústicos... O artista

por meio de potentes amplificadores de som fazia ouvir a todos as batidas do seu

coração, sua respiração, tosse, até grunhidos, gemidos, murmúrios, “gritos” de

animais. “O som representava efetivamente o princípio dinâmico maior da ação”1

2. Como explicar quadros a uma lebre morta (1965)

Apresentada na galeria Schmela de Düsseldorf. Nessa ação, Beuys percorreu por

três horas a galeria onde estavam expostos trabalhos seus carregando nos braços

1 Joseph Beuys. Catalogue du Centre Pompidou. Paris: 1994. P. 175

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uma lebre morta para quem explicava as obras. Depois se sentava numa cadeira e

embalando o animal continuava a lhe explicar os significados das obras expostas

num murmúrio incompreensível. O público encontrava-se excluído desse trabalho,

podendo observar a performance apenas pelas janelas da galeria ou através de um

sistema de câmeras estrategicamente instalado, que transmitia as imagens da

galeria para o seu exterior. Neste caso, o que o espectador via não era

necessariamente o artista, mas o seu duplo, uma vez que via a imagem do artista

apenas pela tv.

3. Introdução homogênea para piano de cauda, o maior

compositor contemporâneo é a criança talidomida (1966)

Realizada na Academia de Belas-Artes de Dusseldorf. Aqui, Beuys interrompeu

uma apresentação de Paik ao piano e de Charlotte Moorman ao violoncelo para

envolver em feltro um piano de concerto. Nessa ação aparecia ainda uma cruz

vermelha, um pato de brinquedo, um quadro-negro onde Beuys anotava esquemas,

algarismos que correspondiam ao número de visitantes e frases sobre a condição

das crianças talidomidas, em especial uma questão: “a música de tempos passados

introduzidas, no quarto da criança talidomida ajuda-a???????” ( seguida de sete

pontos de interrogação ), e sobre essa frase, em letras maiúsculas escrevia as

palavras: sofrimento, calor, som, plasticidade. Beuys questiona nessa ação as

possibilidades criativas vindas do sofrimento de ter o gesto impedido. O piano

envolto em feltro representaria a doença, a cruz vermelha posta sobre ele a

imagem do socorro, e os movimentos do pato de brinquedo, a própria liberdade

gestual. Beuys parece questionar também a música e a arte tradicional. Os

cânones da música continuarão a ser válidos num mundo com seres deformados

pela talidomida? Ou mesmo por bombas atômicas ou por um mundo repleto de

restos dos crematórios?

4. Manresa (1966)

Esta ação aconteceu na Galeria Schmela em Düsseldorf. Seu nome está associado

à aldeia onde Santo Inácio de Loyola viveu e escreveu “Exercícios espirituais”, no

século XVI. Junto com Beuys, participaram também os artistas Henning

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Christiansen e Björn Nörgaard. O ambiente dessa ação consistia numa sala de

paredes negras; com uma meia cruz latina de feltro completada através de um

desenho a carvão na parede e uma barra de cobre, a que o artista chamou de

elemento 1 e em frente, uma caixa de madeira cheia de diversos materiais; um

gerador elétrico de alta tensão; orelhas e vísceras de lebre e gordura, a que ele

chamou de elemento 2. A ação consistia na relação entre estes elementos e o

questionamento sobre um terceiro elemento, invisível à ação. A gordura foi

utilizada em diferentes estados, lançada contra as paredes (com o intuito de

aquecer o ambiente) e formando diversos “objetos”. Segundo Monika Schmela, ao

fim da ação “toda a galeria estava cheia de gordura: as paredes, o chão. Já não

se podia nem entrar.”2

5. Celtic +~~~~ (1971)

Nesta ação realizada em Basiléia, ele iniciava lavando os pés de sete pessoas

numa alusão à tradição cristã da lavagem dos pés. Havia um som de sinos para

instaurar um clima de tranqüilidade. O artista utilizou o quadro-negro onde

desenhou alguns esquemas e então se colocou por 30 minutos sob um desenho

esquemático do Santo Graal completamente imobilizado, mantendo em sua mão

direita uma lança. Para o fim da ação, o artista prendeu tochas em suas coxas e em

suas costas e ajoelhou-se sobre uma bacia de zinco, abrindo os braços, deixando-

se molhar por um fio de água que saia de um regador, referindo-se agora ao ritual

cristão do batismo.

6. Coyote: I like America and America likes me (1974)

Em 21 de maio desse ano, Joseph Beuys chegava ao aeroporto John Kennedy de

Nova Iorque envolvido em feltro dos pés à cabeça. Imediatamente à sua chegada,

ele é posto em uma ambulância e levado para a René Block Gallery, onde chega

em más condições por causa do feltro. Lá, Little John, um coiote vivo o

aguardava. Podiam-se apenas ver tiras de feltro espalhadas pelo ambiente, duas

pilhas de vinte e cinco exemplares do Wall Street Journal, uma bengala, luvas, um

2 Monika Schemela apud in MENNEKES, Friedhelm. Joseph Beuys: Pensar Cristo; 1997. p. 142.

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cobertor, uma lanterna, palha, um triângulo que Beuys trazia pendurado na gola e

a tela de arame que separaria artista e animal do público. Durante a ação, Beuys

estabelecia uma série de interações diárias com o animal, oferecendo-lhe objetos e

esperando suas reações. Beuys envolvia-se inteiro no feltro, deixando à mostra

apenas a bengala que segurava em suas mãos, mantendo-se por bastante tempo

estático, como uma escultura (viva). Instigava o coiote a puxar e rasgar tiras de

feltro. “Tocava” uma música no triângulo para quebrar os freqüentes períodos de

silêncio. Quanto ao jornal, uma publicação especializada e voltada para um

público que lida com operações financeiras, era constantemente rasgado e urinado

pelo animal. No dia 25 de maio, Beuys envolveu-se novamente em feltro, foi

posto numa maca e levado de ambulância de volta ao aeroporto, não tendo visto

nada da América além da sala com o coiote.

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ANEXO II

OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA3

São 4 as etapas dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, que

podemos lembrar com quatro tradicionais palavras latinas, cada qual expressa a

finalidade.

Iª Semana (etapa): "Deformata reformare", eliminar da alma as deformações

causadas pelo pecado. É um modo de conhecer a nós mesmos e a grave desordem

criada pelo pecado em nossa vida, além do perigo de danação ao que fomos

expostos! Para não cair na desconfiança, Inácio nos faz contemplar a imagem do

Salvador Crucificado, morto para nos salvar da morte eterna.

IIª Semana (etapa): "Reformata conformare". Somos convidados a nos revestir

do Cristo e de sua armadura. O homem "reformado" deve "se conformar" ao

Cristo: pobre como ele; ardente de amor para o Pai e os irmãos. É o tempo da

"reforma" ou da opção do estado de vida: como eu, na prática, preciso seguir

Cristo?

IIIª Semana (etapa): "Conformata confirmare". Isto é, fortalecer os propósitos de

adesão a Cristo, por meio da contemplação daquele que foi obediente até à morte

na cruz. O grito do Filho: "Pai, se for possível, afasta de mim este cálice", precisa

continuamente nos relembrar a segunda parte desta súplica: "Mas não a minha, e

sim a tua vontade seja feita". Nesta etapa nos confirmamos nas decisões tomadas.

IVª Semana (etapa): "Confirmata transformare". "Eu não morro: entro na vida",

escreveu S. Teresa de Lisieux pouco antes de morrer. E, de fato, a Igreja canta:

"Vita mutatir, non tollitur", isto é, "a vida não é tirada com a morte, e sim

transformada". A morte de Jesus na cruz coincidiu com o começo do

Cristianismo. "Quem perde sua vida por causa de mim, a encontrará", diz Jesus no

Evangelho. E a vida do Ressuscitado é a esperança de quem faz os Exercícios

nesta etapa final.

No fim dos Exercícios, S. Inácio propõe uma maravilhosa contemplação para

3 http:// www.saoluis.org.br/inacio.htm

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alcançar o Amor puro de Deus (chamada "contemplatio ad amorem"). Com o

pensamento se volta à Criação e à Redenção, para descobrir como e quanto Deus

nos ama! E a lama fica com um único desejo que se expressa na oração: "Oh

Senhor, dá-me teu amor e tua graça: isto me basta!

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ANEXO III

PROGRAMA DA UNIVERSIDADE LIVRE INTERNACIONAL E DE

PESQUISAS INTERDISCIPLINARES4

1 Desenho

Pintura

Teoria da cor

Workshop

Técnicas gráficas

2 Desenho

Escultura

Artes Plásticas

Marcenaria

Trabalhos com metal

Eletrônica

Disciplinas intermediárias

3 Teoria do conhecimento

Critica do comportamento crítico

4 Comportamento social

Solidariedade

5 Pedagogia

4 BEUYS, Joseph e BÖLL, Heinrich. Manifesto on the foundation of a Free International School for Creativity and Interdisciplinary Research. In: Joseph Beuys in America: energy plan for the western man. Compilad by Carin Kuoni; p.153

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Metodologia

Didática

Crítica

6 Fenomenologia da história

Fenomenologia da arte

Manifestações da história da arte

Crítica de arte

7 Teoria da comunicação

Teoria da informação

8 Teoria dos sentidos

Representação pictórica

9 Estágio

Apresentação

DEPARTAMENTOS

Departamento ecológico

Departamento de ciência da evolução

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