O Peru de Natal

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  • 8/3/2019 O Peru de Natal

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    O Peru de Natal

    Mrio de Andrade

    O nosso primeiro Natal de famlia, depois da morte de meu pai acontecida cincomeses antes, foi de conseqncias decisivas para a felicidade familiar. Ns sempreframos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gentehonesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econmicas.Mas, devido principalmente natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido dequalquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medocre, semprenos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais,um vinho bom, uma estao de guas, aquisio de geladeira, coisas assim. Meupai fora de um bom errado, quase dramtico, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

    Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades doNatal, eu j estava que no podia mais pra afastar aquela memria obstruente domorto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigao de uma lembranadolorosa em cada almoo, em cada gesto mnimo da famlia. Uma vez que eusugerira mame a idia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foramlgrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor j estava sendo cultivadapelas aparncias, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, maispor instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecero bom do morto.

    Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idia de fazer

    uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora alis, e desde muito cedo, a minhaesplndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os temposde ginsio, em que arranjava regularmente uma reprovao todos os anos; desde obeijo s escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, umadetestvel de tia; e principalmente desde as lies que dei ou recebi, no sei, deuma criada de parentes: eu consegui no reformatrio do lar e na vastaparentagem, a fama conciliatria de "louco". " doido, coitado!" falavam. Meus paisfalavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscandoexemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencemde alguma superioridade. No tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que mesalvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para serealizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado.Resultou disso uma existncia sem complexos, de que no posso me queixar umnada.

    Era costume sempre, na famlia, a ceia de Natal. Ceia reles, j se imagina: ceia tipomeu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados deamndoas e nozes (quanto discutimos os trs manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraava e ia pracama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

    Bom, no Natal, quero comer peru.

    Houve um desses espantos que ningum no imagina. Logo minha tia solteirona esanta, que morava conosco, advertiu que no podamos convidar ningum por

    causa do luto.

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    Mas quem falou de convidar ningum! essa mania... Quando que a gente jcomeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa prato de festa, vem toda essaparentada do diabo...

    Meu filho, no fale assim...

    Pois falo, pronto!

    E descarreguei minha gelada indiferena pela nossa parentagem infinita, diz-quevinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pradesenvolver minha teoria de doido, coitado, no perdi a ocasio. Me deu de sopetouma ternura imensa por mame e titia, minhas duas mes, trs com minha irm,as trs mes que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinhaaniversrio de algum e s ento faziam peru naquela casa. Peru era prato defesta: uma imundcie de parentes j preparados pela tradio, invadiam a casa porcausa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas trs mes, trs dias antes jno sabiam da vida seno trabalhar, trabalhar no preparo de doces e friosfinssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos

    pros que no tinham podido vir. As minhas trs mes mal podiam de exaustas. Doperu, s no enterro dos ossos, no dia seguinte, que mame com titia aindaprovavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmoera mame quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ningumsabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

    No, no se convidava ningum, era um peru pra ns, cinco pessoas. E havia deser com duas farofas, a gorda com os midos, e a seca, douradinha, com bastantemanteiga. Queria o papo recheado s com a farofa gorda, em que havamos deajuntar ameixa preta, nozes e um clice de xerez, como aprendera na casa daRose, muito minha companheira. Est claro que omiti onde aprendera a receita,mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se no

    seria tentao do Dianho aproveitar receita to gostosa. E cerveja bem gelada, eugarantia quase gritando. certo que com meus "gostos", j bastante afinados forado lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francs. Mas a ternura pormame venceu o doido, mame adorava cerveja.

    Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicssimos, num desejodanado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucurasim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho que estava desejando muitoaquilo e havia jeito fcil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejosenormes. Sorriam se entreolhando, tmidos como pombas desgarradas, at queminha irm resolveu o consentimento geral:

    louco mesmo!...

    Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem malrezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraado:assim que melembrara de que finalmente ia fazer mame comer peru, no fizera outra coisaaqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada.E meus manos tambm, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todosdominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na famlia. De modoque, ainda disfarando as coisas, deixei muito sossegado que mame cortasse todoo peito do peru. Um momento alis, ela parou, feito fatias um dos lados do peito daave, no resistindo quelas leis de economia que sempre a tinham entorpecidonuma quase pobreza sem razo.

    No senhora, corte inteiro! S eu como tudo isso!

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    Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que atera capaz de comer pouco, s-pra que os outros quatro comessem demais. E odiapaso dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a ss, redescobria em cadaum o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixo de me, paixo defilhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa deburgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um

    Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

    Eu que sirvo!

    " louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mame servira naquelacasa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principieiuma distribuio herica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomeiconta logo de um pedao admirvel da "casca", cheio de gordura e pus no prato. Edepois vastas fatias brancas. A voz severizada de mame cortou o espaoangustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

    Se lembre de seus manos, Juca!

    Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Me,da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eus lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

    Mame, este o da senhora! No! no passe no!

    Foi quando ela no pode mais com tanta comoo e principiou chorando. Minha tiatambm, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrodas lgrimas. E minha irm, que jamais viu lgrima sem abrir a torneirinhatambm, se esparramou no choro. Ento principiei dizendo muitos desaforos prano chorar tambm, tinha dezenove anos... Diabo de famlia besta que via peru e

    chorava! coisas assim. Todos se esforavam por sorrir, mas agora que a alegriase tornara impossvel. que o pranto evocara por associao a imagem indesejvelde meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragarnosso Natal, fiquei danado.

    Bom, principiou-se a comer em silncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carnemansa, de um tecido muito tnue boiava fagueira entre os sabores das farofas e dopresunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela interveno maisviolenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papaisentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. Eo peru, estava to gostoso, mame por fim sabendo que peru era manjar mesmodigno do Jesusinho nascido.

    Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar operu era fortalec-lo na luta, e, est claro, eu tomara decididamente o partido doperu. Mas os defuntos tm meios visguentos, muito hipcritas de vencer: nem bemgabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmenteobstruidora.

    S falta seu pai...

    Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que meinteressava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei queinspirao genial, de repente me tornou hipcrita e poltico. Naquele instante quehoje me parece decisivo da nossa famlia, tomei aparentemente o partido de meu

    pai. Fingi, triste:

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    mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tantotrabalhar pra ns, papai l no cu h de estar contente... (hesitei, mas resolvi nomencionar mais o peru) contente de ver ns todos reunidos em famlia.

    E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foidiminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do cu. Agora todos

    comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre sesacrificara tanto por ns, fora um santo que "vocs, meus filhos, nunca poderopagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplaoagradvel, uma inestorvvel estrelinha do cu. No prejudicava mais ningum,puro objeto de contemplao suave. O nico morto ali era o peru, dominador,completamente vitorioso.

    Minha me, minha tia, ns, todos alagados de felicidade. Ia escrever felicidadegustativa, mas no era s isso no. Era uma felicidade maiscula, um amor detodos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amorfamiliar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da famlia, oincio de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais

    complacente e cuidadoso de si. Nasceu de ento uma felicidade familiar pra nsque, no sou exclusivista, alguns a tero assim grande, porm mais intensa que anossa me impossvel conceber.

    Mame comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal.Mas logo pensei: ah, que faa! mesmo que ela morra, mas pelo menos que umavez na vida coma peru de verdade!

    A tamanha falta de egosmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieramumas uvas leves e uns doces, que l na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou lembrana de meupai, que o peru j convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de

    contemplao.Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafasde cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque bom uma insnia feliz. O diabo que a Rose, catlica antes de ser Rose, prometerame esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa deamigo, beijei mame e pisquei pra ela, modo de contar onde que ia e faz-lasofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...