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O PODER GERAL DE EFETIVAÇÃO DAS ORDENS JUDICIAIS E AS MEDIDAS
COERCITIVAS ATÍPICAS
Lidia de Melo de Souza1
Resumo: Sob um olhar atento à crise de inefetividade das decisões judiciais, o
presente estudo analisa até que ponto seria possível a adoção de medidas coercitivas
atípicas pelo juiz, fazendo valer o seu poder geral de efetivação, sem que tal conduta
ultrapasse a barreira da imparcialidade ou signifique autoritarismo. Analisar-se-á,
portanto, os tipos de solução que alguns ordenamentos oferecem a problematicidade da
inefetividade bem como a escolha brasileira.
Palavras-chave: Medidas coercitivas atípicas. Tutela jurisdicional. Inefetividade.
Execução.
Sumário: Introdução 1. A inefetividade da tutela jurisdicional e o processo
executivo 2. Medidas coercitivas 2.1. O contempt of court 2.2. O Art.139, IV do Código de
Processo Civil e as medidas coercitivas atípicas 3. Limites e pressupostos das medidas
coercitivas atípicas 4. Análise do caso concreto. Conclusões. Referências bibliográficas
1 Mestranda em Ciências Jurídico-Civilísticas, com menção em Direito Processual Civil, pela Universidade de
Coimbra (FDUC), Coimbra/Portugal. Advogada. [email protected]
INTRODUÇÃO
O constituinte originário da Constituição da República Brasileira de 1988 revelou,
àquela altura, em diversos dispositivos constitucionais2, a preocupação com a efetividade da
jurisdição. A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto
de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos
legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e
o ser da realidade social3.
Com a evolução das relações em sociedade, entregou-se ao Estado4 a incumbência
de resolver os litígios e efetivar os direitos diante de situações de ameaça ou violações,
através da tutela jurisdicional5. Com o abandono do modelo da autotutela e justiça privada,
o direito à tutela efetiva tornou-se assim, um dos mais importantes direitos, tendo em vista
ser a única forma legitima de efetiva-los6.
Aspecto relacionado diretamente à efetividade da tutela jurisdicional está em saber
quais os meios o sistema processual nos oferece como instrumento hábil para conferir tal
efetividade7. O Código de Processo Civil brasileiro de 19738 carecia então de uma reforma
ideológica para se adequar aos princípios e garantias estabelecidos na Constituição da
2 A título exemplificativo podemos citar alguns incisos do Artigo 5º da Constituição da República:
XXXV: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
LIV: Ninguém será privado da liberdade de seus bens sem o devido processo legal;
LV: Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; 3 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 220. 4 Da mesma forma BARBOSA MOREIRA preceitua que: “Desde que o Estado proibiu a justiça de mão própria
e chamou a si, com exclusividade, a tarefa de assegurar o império da ordem jurídica, assumiu para com todos
e cada um de nós o grave compromisso de tornar realidade a disciplina das relações intersubjetivas prevista
nas normas por ele mesmo editadas”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela Sancionatória e Tutela
Preventiva. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 21 5 Nas palavras de CÂNDIDO DINAMARCO: “Tutela jurisdicional é o amparo que o Estado ministra a quem
tem razão em uma demanda. Tutela significa ajuda, proteção. E é jurisdicional a proteção outorgada mediante
o exercício da atividade do juiz, a fim de que o sujeito, por ela beneficiado, obtenha, no plano da realidade,
uma situação mais favorável do que aquela em que antes se encontrava”. DINAMARCO, Cândido Rangel.
Fundamentos do Processo Civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2000. pp. 807ss. 6 No mesmo sentido MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2004, p. 184-185. 7 DONALDO ARMELIN àquela época ressaltava que: “A temática de uma tutela jurisdicional diferenciada
posta em evidência notadamente e também em virtude da atualidade do questionamento a respeito da
efetividade do processo, prende-se talvez mais remotamente à própria questão da indispensável adaptabilidade
da prestação jurisdicional e dos instrumentos que a propiciam à finalidade dessa mesma tutela”. ARMELIN,
Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. Revista de Processo. vol. 65. São Paulo: Ed. RT, jan-mar. 1992.) 8 Lei 5869/73
República de 1988. Sendo assim, o legislador do Código de Processo Civil brasileiro,9 diante
da necessidade de uma reforma processual, consolidou um modelo constitucional de
processo10, com novas diretrizes ao processo democrático, conformando-o aos valores e
princípios constitucionais.
As novas normas fundamentais11 do processo civil, instituídas pelo Código de 2015,
preocupam-se, primordialmente, com a efetividade da tutela jurisdicional. Um dos entraves
enfrentados pelos magistrados não só no Brasil, mas em diversos ordenamentos12 é de como
conferir efetividade às suas decisões13. A ordem judicial se traduz na concretização do
interesse estatal e, por isso, deve ser imposta àqueles que insistem em desrespeitá-la como
forma de supremacia do interesse público sobre o privado. A disponibilização de meios para
obtenção do resultado prático compreende-se não apenas em um conceito de efetividade do
processo, mas na própria garantia constitucional de acesso à Justiça.
Em consonância com essa nova sistemática, o legislador autorizou que o juiz
determinasse todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias
necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham
por objeto prestação pecuniária14. Esse poder-dever do juiz ficou conhecido no Brasil como
poder geral de efetivação das decisões judiciais.
Dessa forma, além dos meios expressamente previstos pelo legislador no Código
de Processo Civil (medidas típicas), foi dado o espaço para que o Juiz pudesse buscar novas
alternativas ao cumprimento de suas decisões (medidas atípicas). A inclusão, aparentemente
9 Lei 13.105/15 10 Luís Roberto Barroso consagrou a expressão “o Direito existe para realizar-se. O Direito Constitucional não
foge a este desígnio” BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas:
limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 87. Sendo assim,
se o próprio direito constitucional busca esse fim, não poderia o Direito Processual Civil se desvirtuar de tal
máxima. Lênio Streck, de maneira muito acertada, pontuou que as normas infraconstitucionais, para serem
válidas e vincularem os juízes, devem passar pelo “processo de contaminação constitucional” para que seu
conteúdo seja coerente com o conteúdo material da Constituição. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica
e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000, p. 226-229. 11 Restou estabelecido no art. 4º que as partes têm o direito de obter em prazo razoável a resolução do mérito e
sua satisfação. Em outros termos, prevê o dispositivo que os direitos devem ser reconhecidos e também
efetivados. 12 Em momento oportuno faremos uma análise comparativa com outros sistemas da common law. 13 Quando a ordem estatal não é cumprida por seu destinatário a credibilidade do Poder Judiciário perante a
sociedade é diretamente afetada, traduzindo-se na falsa impressão de que o bem da vida perseguido por meio
do processo está sendo garantido, quando, na verdade, o descumprimento redunda em inefetividade. 14 Art.139 do Código de Processo Civil brasileiro.
inofensiva desse poder geral, acabou suscitando inúmeras possibilidades de atuação do
juiz15, como forma de conferir efetividade à ordem judicial.
Procura-se então com o presente trabalho, fazer uma análise do art.139 do Código
de Processo Civil, especialmente do inciso IV que consagra a atipicidade das medidas
coercitivas16 e a sua importância direta com a problemática do descumprimento das ordens
judiciais.
Analisaremos os limites e pressupostos a serem observados pelo magistrado no
momento da escolha da medida coercitiva atípica, tendo em vista que o legislador não
estabeleceu critérios específicos que auxiliem o magistrado na hora de adotar essas medidas
e, caso sejam adotadas sem parâmetros, podem acarretar graves consequências jurídicas e
constitucionais não só ao destinatário da ordem, mas a uma infinidade de pessoas estranhas
à relação processual.
Além dos limites e pressupostos, discutiremos a possibilidade de se estabelecer
critérios objetivos para a adoção dessas medidas, bem como um possível procedimento a ser
adotado. Eventuais critérios se tornam importantes não só no sentido de assegurar a
constitucionalidade e efetividade da medida, mas também como forma de dar segurança e
encorajar os magistrados na hora de adota-las. Isso porque, as medidas atípicas e os
princípios constitucionais, como veremos adiante, precisam andar lado a lado, mas sem
significar uma sobreposição ou até mesmo uma barreira, gerando um receio ou até mesmo
um abandono pelo magistrado na adoção de tais medidas.
Como forma de embasar e encorajar a adoção dessas novas medidas atípicas pelos
magistrados, traremos a lume, a eficácia dos provimentos executivos no sistema do common
law, à luz do contempt of court17. Tendo em vista a incompatibilidade do instituto com as
sociedades de tradição jurídica romana, o que se pretende não é a importação do modelo,
mas sim realizar uma análise das medidas coercitivas atípicas no sistema processual
15 Ao longo do ensaio apresentaremos alguns casos jurisprudenciais a fim de exemplificar algumas medidas
atípicas que estão sendo adotadas pelos magistrados no Brasil. 16 Não será objeto do presente estudo analisar especificamente as medidas coercitivas tipificadas no Código o
que por si só geraria um trabalho a parte, mas sim fazer uma análise das medidas atípicas. 17 Esse instituto é um dos mais peculiares e mais arraigados na tradição anglo –americana, conectando-se com
a própria constituição do Poder Judiciário enquanto parcela do poder estatal. Aprofundaremos o instituto no
capítulo próprio.
brasileiro e aplicá-las sem receio, com coragem e seriedade, na tentativa de fazer com que
a sociedade enxergue que o desrespeito à ordem judicial pode acarretar o cumprimento
forçado por razões de interesse público, sempre através de medidas razoáveis e
proporcionais.
Por fim, como forma de concretização dessa nova norma de conceito tão aberto,
faremos uma análise jurisprudencial sobre o tema em questão e analisaremos como o
Tribunal vem se posicionando diante de tais medidas atípicas.
Numa realidade de desrespeito as decisões estatais, o legislador nos ofereceu uma
possível saída, não que vá resolver todos os males, mas, por certo, poderá aclarar a direção
de muitos processos rumo a esperada efetivação do direito.
6
1. A INEFETIVIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL E O PROCESSO
EXECUTIVO
É cediço que no momento atual em que vivemos, temos a prevalência da autonomia
da vontade e, sendo assim, as pessoas são livres para se relacionar, para negociar e para
assumirem os mais diversos tipos de obrigações18. De forma genérica, podemos afirmar que
a obrigação surge como uma relação jurídica por força da qual um sujeito, denominado
devedor, assume uma obrigação traduzida no dever de prestar e, se vincula a outro sujeito,
denominado credor que possui o direito à prestação que lhe é devida19.
Com a transformação do Estado como meio provedor de direitos e a proibição do
uso da força20 para fazer valer os direitos, a sociedade foi sendo obrigada a buscar a solução
de seus conflitos através da atuação deste21. Sendo assim, quando o devedor não honra
voluntariamente a prestação assumida, nasce para o credor o direito de exigir judicialmente
o seu cumprimento e executar o patrimônio do devedor22.
O Estado-Juiz possui então, a tarefa de efetivamente entregar ao jurisdicionado o
bem da vida perseguido por meio do processo23, mas infelizmente, nem tudo é tão simples
como parece. Os Magistrados enfrentam, há muito, um cenário de grande dificuldade em dar
efetividade às suas decisões que visam justamente dirimir os litígios e satisfazer o interesse
18 Ser livre para assumir obrigações e celebrar negócios jurídicos não significa ser livre para descumpri-los.
Com exceção dos casos de vício de vontade, uma vez celebrado livremente e ancorado na autodeterminação o
pacta sunt servanda deve ser observado pelas partes em respeito ao princípio da boa-fé, da moral e da segurança
jurídica. 19 SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
111 p. 20 Na antiguidade do período romano, época que vigorava a pena de Talião, a execução era pessoal. O credor
podia se apoderar do devedor e mantê-lo preso em sua casa durante certo tempo. Na Grécia, por exemplo, o
devedor podia ser feito de escravo. A passagem da execução pessoal à execução patrimonial constitui um
avanço e uma conquista da civilização. Para maior aprofundamento sobre a evolução dos métodos executivos
ler SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
210 p. 21 A força vinculativa das obrigações em geral seria apenas teórica caso o credor não pudesse exigir
judicialmente o cumprimento e execução do seu direito. E não é diferente nos mais diversos ordenamentos.
Podemos citar a título exemplificativo o §241 do BGB alemão – “em virtude da relação obrigacional o credor
pode exigir do devedor a prestação” – tradução nossa. 22 Nas palavras de ANTUNES VARELA “sem ação creditória, desprovida do seu elemento real, o direito de
crédito mal passaria, com efeito, de uma pura expectativa do credor ao cumprimento. É a ação creditória que
converte a expectativa do credor num verdadeiro direito, fortalecendo decisivamente o seu poder de exigir a
prestação”. VARELA, João De Matos Antunes. Das obrigações em geral: 10 ed. Coimbra: Almedina, 2015. 23 Como preceitua o Professor Daniel Neves: “o resultado eficaz da execução, entregando ao exequente
exatamente aquilo que receberia se não precisasse do processo, além de fonte de prestígio ao Poder Judiciário,
será também fonte de plena satisfação do próprio exequente” NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual
de Processo Civil. 6 ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014, p. 1080.
7
do credor24. Isso porque, é exatamente no momento da execução que os destinatários do
comando criam obstáculos e na maioria das vezes descumprem as ordens judiciais. Os
devedores não respeitam e não temem a mão do Estado-juiz e a sua força imperativa, tendo
a seu favor a morosidade do Judiciária e a ineficácia dos meios sancionatórios25.
A questão do desrespeito às ordens judiciais envolve muitos outros aspectos que
não são objetos do presente ensaio. Contudo, o ponto que nos interessa é o fato de ser
inquestionável que um deles é a necessidade de maior rigor legal para punir esses
descumprimentos. É inconcebível que os destinatários das ordens deixem de cumprir as
decisões judiciais e os processos acabem por arquivados. Como adverte o Professor José
Roberto dos Santos Bedaque, “qualquer tutela, seja mandamental ou executiva, será tão
ineficaz quanto a condenatória se os meios predispostos a atuá-la forem insuficientes ou
inadequados”26.
Isto posto, se faz necessário o estudo de quais meios põe o ordenamento jurídico à
disposição do credor para lhe assegurar o cumprimento a que tem direito e que meios há, no
ordenamento jurídico, de constranger, pressionar ou coagir o devedor inerte de forma a
induzi-lo a cumprir as obrigações. É certo que o legislador não deixou o juiz de “mãos
atadas”, dando-lhe a oportunidade de adotar medidas diversas, das quais analisaremos a
seguir.
24 O legislador do Código de Processo Civil de 2015, Lei 13105, não deixou de perceber este cenário, e registrou
na exposição de motivos do novo CPC, o seguinte: “Um sistema processual civil que não proporcione à
sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos
jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito.” (...)
“Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De
fato, as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização,
no mundo empírico, por meio do processo. Não há fórmulas mágicas.” Disponível em:
https://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf 25 Como ressalta o Prof. Donaldo Armelin, “somente diante da carência de higidez patrimonial do devedor, a
considerar que, em última instância, a execução esbarra em seu patrimônio, o Estado-Juiz estaria inapto a
proporcionar a tutela executiva efetiva. Ou seja, não há remédio para a falta de patrimônio suficiente para
adimplir a dívida ou reparar o dano, pois a responsabilidade não pode passar da pessoa do devedor. No entanto,
é possível incrementar as medidas executivas para torna-las mais eficazes e impedir a chicana do devedor
durante a execução, ou seja, ao coibir os abusos praticados no processo executivo, pode-se conferir maior
efetividade à tutela executiva”. ARMELIN, Donaldo. Tutela jurisdicional diferenciada. Revista de Processo.
vol. 65. São Paulo: Ed. RT, jan-mar. 1992. 26 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2 ed. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 569.
8
2. AS MEDIDAS COERCITIVAS
Antes de analisarmos as medidas coercitivas que o ordenamento coloca à disposição
do Judiciário como forma de dar efetividade as suas decisões, precisamos observar que o
credor, principal interessado no cumprimento de uma obrigação, antes de acionar o Estado-
juiz, pode adotar medidas como forma de precaução e para prevenir o não cumprimento por
parte do devedor27. Estamos falando de meios de constrangimento indireto como a cláusula
penal, o sinal, a cláusula de resolução expressa, o direito de retenção entre outros meios28.
A sua utilização ou a simples ameaça de a eles recorrer, assegura uma certa pressão ao
obrigado que, por vezes, pode preferir pelo cumprimento às desvantajosas consequências a
que a utilização desses meios conduz29.
O credor deve utilizar os meios de coerção privada como primeira medida, como
forma de evitar o recurso aos tribunais e os inconvenientes que lhe são próprios e, apenas
diante da resistência do devedor e da ineficácia dos meios, devem recorrer ao Judiciário. É
evidente que essas medidas são muito mais simples e céleres do que recorrer a lentidão,
complexidade e rigidez do Judiciário, mas, muitas vezes, o credor não tem outra alternativa
a não ser recorrer as mãos do Juiz.
O problema surge quando o credor recorre ao Judiciário e o devedor descumpre a
ordem emanada pelo Tribunal. Cada ordenamento jurídico, nesses casos, apresenta soluções
diversas na tentativa de dar efetividade à ordem judicial30. O legislador português, por
27 Não se trata de fazer justiça com as próprias mãos, o que não cabe em uma sociedade civilizada com um
Estado dotado de soberania. O ordenamento jurídico dá espaço para que o credor adote meios de
constrangimento indireto, a fim de salvaguardar os seus direitos e evitar o descumprimento, sem que precise
recorrer ao poder estatal. Nas palavras de João Calvão “A coerção privada visa compelir o devedor ao
cumprimento, isto é, fazer pressão sobre a sua vontade a fim de evitar o inadimplemento. A expressão coerção
privada – tal como constrangimento privado – reflete bem a sua natureza jurídica: trata-se de uma coerção
(compulsão ou constrangimento do devedor, para o determinar a cumprir) e não de uma medida executiva
(realização do crédito independentemente ou mesmo contra a vontade do devedor), mas de coerção privada e
não publica”. SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra:
Almedina, 2002. 28 Respectivamente Artigos 408, 417, 474 do Código Civil brasileiro. Não será objeto do presente trabalho a
análise dessas medidas de coerção privada, tendo em vista ser o foco central as medidas coercitivas atípicas. 29 A coerção privada é uma forma de “justiça privada auxiliar” ou “justiça privada subsidiária”. Leia-se mais
em SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2002. 30 A título exemplificativo, podemos citar o ordenamento francês que criou no século XIX um meio de
constrangimento indireto que ficou conhecido como astreinte. Acompanhando a obrigação principal do
devedor, o juiz estabelece uma “pena” pecuniária por cada período de tempo de descumprimento. Nas palavras
de João Calvão da Silva: “É um meio de constrangimento indireto que incide sobre os bens do devedor, a fim
de o levar a obedecer à decisão judicial e a realizar a obrigação a que está adstrito e no cumprimento do qual
foi condenado” SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra:
9
exemplo, previu a sanção pecuniária compulsória (art.829º- A do Código Civil português)31,
que nada mais é do que uma condenação pecuniária decretada pelo juiz para constranger e
determinar o devedor recalcitrante a cumprir a sua obrigação. É, pois, “um meio de
constrangimento judicial que exerce pressão sobre a vontade do devedor para que acate a
decisão do juiz e cumpra a sua obrigação, sob a ameaça da sanção pecuniária, distinta e
independente de indenização, suscetível de acarreta-lhe elevador prejuízos”32.
No ordenamento brasileiro, podemos sintetizar duas formas de atuação do juiz na
tentativa de conferir efetividade à sua decisão: através da sub-rogação (direta) que independe
da concordância do devedor, o exequente obtém a satisfação do seu direito através do próprio
Estado que substitui a vontade do exequente; e através da coerção (indireta)33, que é a
atuação do juiz de forma indireta a convencer o executado a cumprir sua obrigação,
exercendo uma pressão, que pode ser psicológica e/ou econômica sobre o executado para
que ele modifique o seu desejo de frustrar a pretensão do exequente.
Almedina, 2002. A astreinte francesa, com toda a sua evolução legislativa e jurisprudencial, serve de modelo
de medida coercitiva judicial para diversos ordenamentos jurídicos contemporâneos, inclusive o brasileiro,
que, no entanto, não dedicou a mesma quantidade de dispositivos legais para tratamento do instituto como o
francês. 31 Art.829º-A: 1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem
especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar
o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada
infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso. 2 - A sanção pecuniária compulsória
prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a
que houver lugar. 3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e
ao Estado. 4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente,
são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar
em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que
houver lugar. 32 A sanção pecuniária compulsória é medida coercitiva patrimonial, porque incide apenas sobre o patrimônio
do devedor, sobre os seus bens e não sobre a sua pessoa. O legislador português, consagrou apenas a coerção
patrimonial não adotando a coerção pessoal, se preocupando com a tutela da liberdade e da dignidade da pessoa
humana e evitando um retrocesso de valores. Sobre a sanção pecuniária compulsória, cfr. Joao Calvão: “A
utilização da sanção pecuniária compulsória visa obter a realização de uma prestação, judicialmente
reconhecida, a que o credor tem direito, constituindo, apenas, uma forma de proteção do credor contra o
devedor relapso”. SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra:
Almedina, 2002. 33 A medida coercitiva típica mais conhecida no ordenamento brasileiro é prevista no art. 523, § 1º - que
estabelece uma multa de 10% caso o executado não pague o débito em 15 dias. A multa tem natureza puramente
coercitiva, uma vez que se destina a forçar o cumprimento da obrigação de maneira espontânea e diretamente
pelo devedor, sem estar vinculada a qualquer questão reparatória ou indenizatória pelo atraso ou pelo
descumprimento da ordem. Neste sentido, Luiz Guilherme Marinoni: “A multa não tem o objetivo de penalizar
o réu que não cumpre a ordem; seu escopo é o de garantir a efetividade das ordens do juiz. A imposição da
multa para o cumprimento da ordem é suficiente para realizar este escopo, pois a coerção está na ameaça do
pagamento e não na cobrança do valor da multa (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica: arts. 461
CPC e 84 CDC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 110.).
10
Essas medidas coercitivas devem possuir força suficiente para alcançar o objetivo
de pressionar o recalcitrante a cumprir o comando judicial. Nas palavras do professor
Roberto Rosas, “a autoridade dos julgados está diretamente ligada ao seu cumprimento.
Onde não há força coercitiva para fazer valer o julgado não há firmeza”34. Vale ressaltar
que, o fato dessas medidas serem dotadas de grande eficácia na prática na atualidade, isso
não quer dizer que estas necessariamente preponderam na preferência do juiz para conferir
ao exequente a satisfação e nem que as medidas sub-rogatórias prevalecem sob estas35.
Podemos citar também, além dos meios de coerção privado e das medidas
coercitivas a serem adotadas pelo juiz, mecanismos extrajudiciais de persuasão do devedor
que servem para divulgar a conduta e a situação patrimonial do mesmo – muitas das vezes
possuem maior potencial de obrigar o executado ao cumprimento do que a própria decisão
judicial. São elas: O Art.517 que prevê a possibilidade de protesto da decisão transitada em
julgado depois de transcorrido o prazo para pagamento voluntário36 e a possibilidade de
inserir o nome do devedor nos cadastros de inadimplentes prevista no art. 782, §3º37. O
magistrado pode determinar a inclusão do nome do executado em cadastro de inadimplentes
até que a obrigação seja cumprida, se for garantida a execução ou se for extinta por qualquer
outro motivo, o que se aplica também às execuções de título judicial.
34 ROSAS, Roberto. Direito processual constitucional: princípios constitucionais do Processo Civil. 3ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 177. 35 Neste sentido, cfr Marcelo Guerra acrescentando que: “Não há nenhuma justificativa racional para se
pretender sustentar uma suposta prioridade genérica e abstratamente estabelecida das medidas sub-rogatórias,
em relação às medidas coercitivas. Infelizmente, ainda se encontra bastante arraigada, em seguimento
expressivo da doutrina, essa concepção que reflete um imotivado juízo negativo de valor em relação às medidas
coercitivas, herança, ao que parece, de concepções vigentes no século XIX e em boa parte do século XX, na
cultura jurídica europeia, que exacerbavam o dogma da intangibilidade da vontade humana, a ponto de ser
defendida, no âmbito do direito material, uma generalização da tutela meramente ressarcitória, em detrimento
da específica, e o banimento das medidas coercitivas, no âmbito do direito processual”. GUERRA, Marcelo
Lima. Execução indireta. São Paulo: RT, 1998. 36 Art. 517: “A decisão judicial transitada em julgado poderá ser levada a protesto, nos termos da lei, depois de
transcorrido o prazo para pagamento voluntário previsto no art. 523”. Assim, sem prejuízo da incidência da
multa de 10% sobre o valor devido e do pagamento de honorários advocatícios (art.523, §1º), o exequente
poderá indicar para protesto a sentença, desde que transitada em julgado. Pesquisas apontam que mais de 65%
dos créditos apresentados a protesto são recuperados dentro do prazo legal de três dias uteis, fato este que não
passou despercebido pelo Legislador do Código de 2015. Essa informação foi extraída da entrevista concedida
por Cláudio Marçal Freire, Secretário Geral do Instituto de Estudos de Protesto de Títulos, ao jornal Tribuna
do Direito, edição de fevereiro de 2015. 37 Art. 782: “Não dispondo a lei de modo diverso, o juiz determinará os atos executivos, e o oficial de justiça
os cumprirá. § 3º A requerimento da parte, o juiz pode determinar a inclusão do nome do executado em
cadastros de inadimplentes; § 4º A inscrição será cancelada imediatamente se for efetuado o pagamento, se for
garantida a execução ou se a execução for extinta por qualquer outro motivo; § 5º O disposto nos §§ 3º e 4º
aplica-se à execução definitiva de título judicial”.
11
Como analisamos brevemente, ficou mais do que evidente que a tutela jurisdicional
depende de técnicas processuais potencialmente aptas para efetivar as ordens judiciais38.
Nesse cenário, não podemos deixar de destacar a técnica adotada nos ordenamentos jurídicos
pertencentes à família da common law, que confere um respeito exacerbado às decisões
judiciais.
2.1. O “contempt of court”
O “contempt of court” é uma técnica de execução indireta que funciona como
principal meio de efetivação das decisões judiciais no direito anglo-americano. Na tradição
da common law, o contempt of court é o mais importante mecanismo para o funcionamento
do sistema jurídico. A expressão significa ato de desprezo pelo tribunal, desobediência à
autoridade judicial, à Justiça e à sua dignidade. O instituto busca zelar pela dignidade da
justiça, assegurar a sua efetiva administração e a autoridade do poder judiciário, protegendo
juízes e tribunais e afirmando a supremacia da lei39.
As Cortes, em razão da autoridade que lhes é historicamente conferida e do dever
de administração da justiça que lhes é atribuído – são credoras de obediência e deferência;
se tal não se alcança de maneira espontânea, os juízes têm o poder inerente (inherent power)
de impor a observância de seus provimentos, valendo-se, para tanto, de meios executivos
coercitivos ou de medidas punitivas, conforme pretenda concretizar suas ordens ou
reivindicar sua autoridade institucional40. Entende-se que este poder abrange todos aqueles
essenciais para que o órgão jurisdicional conserve sua existência institucional, sua dignidade
e, além disso, promova o adequado desenvolvimento de suas funções. A própria Suprema
Corte definiu os inherent powers como aqueles que não podem ser dispensados “porque são
necessários para o exercício de todos os demais”.41
38 Nas palavras de Marcia Zollinger, “não se pode olvidar que a efetividade do direito material depende, ao
menos quando não atendido voluntariamente, da existência de procedimentos jurisdicionais hábeis a realizar o
desejo de proteção da norma de direito material”. Daí o conceito recorrente de que o direito processual existe
para assegurar a atuação da norma substancial e, por outro lado, que a efetividade do direito material depende
do processo. ZOLLINGER, Marcia Brandão. Proteção Processual aos Direitos Fundamentais. Salvador:
JusPODIVM, 2006, p. 115-116 39 Neste sentido, cfr DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3a ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. p. 323. 40 Neste sentido cfr ZARONI, Bruno Marzullo. Contempt of court, execução indireta e participação de
terceiros no sistema anglo‑americano. Revista dos tribunais, v. 39, n. 235, p. 121-147, set. 2014. Disponível
em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/77459>. Acesso em: 12 maio. 2017. 41 Cfr nota anterior.
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O bem que se pretende proteger é a justiça em si, sendo assim, não se fala em
contempt como sendo uma ofensa à lei ou a princípio de Direito, o ato de contempt não
precisa ser necessariamente ilegal, basta que interfira de algum modo na boa administração
da justiça ou resulte em desobediência a uma determinação judicial42. Em sentido estrito,
significa que consiste em medida repressiva imposta em razão da ofensa à dignidade da
justiça, tendo como principal efeito a confiança que a população desses países deposita no
sistema judiciário.
Nas palavras de João Calvão da Silva “o contempt of court constitui o instrumento
mais eficaz para assegurar a realização concreta dos direitos do credor. Instituto processual
geral que tem por fundamento o desprezo pelo tribunal e pela justiça, a ele pode recorrer o
credor para que o juiz, que proferiu a sentença voluntariamente não cumprida declare o
devedor autor de contempt of court e o condene a prisão – a qual, todavia, só pode ser
infligida a quem tinha a concreta possibilidade de cumprir a obrigação – e/ou ao pagamento
de uma sanção pecuniária ou multa. Não constitui um fim em si mesmo, mas antes um meio
de coerção indireto ao respeito e à obediência devidos à ordem do juiz”.43
Podemos dizer que há duas espécies de contempt, sendo unanime na doutrina a
tarefa árdua em distingui-las, importando assim observar à qualidade da conduta praticada
merecedora da sanção44. Sendo assim, em linhas gerais, podemos dizer que se a conduta é
42 A desobediência é um elemento comum às várias categorias de Contept of Court: civil e criminal, direct e
indirect, constructive e consequential. O contempt direto, também denominado contempt in the face of court,
é aquele que se pratica diante da Corte. É perpetrado mediante o insulto cometido diante do magistrado, a
resistência ou obstrução à autoridade da Corte ou ainda o comportamento que possa interromper ou dificultar
o andamento do feito. Por seu turno, o contempt indireto, também denominado constructive contempt, é aquele
ato que, muito embora seja praticado fora da presença do órgão jurisdicional, tem a capacidade de impedir ou
obstruir a adequada prestação da tutela jurisdicional. Nesse terreno, exemplos dos mais relevantes
correspondem à deliberada desobediência a uma decisão judicial, à resistência voluntária oferecida contra a
efetivação da ordem ou ainda à continuidade de uma atividade proibida. A importância prática dessa distinção
é fundamentalmente sentida no campo procedimental, uma vez que no direct contempt o juiz está autorizado a
instaurar um processo sumário que pode consistir no imediato encarceramento. Isso não sucede no caso de
indirect contempt, eis que, nessa hipótese, as garantias processuais são mais amplas. Nesse sentido, cfr
MACCARTY, Dawn F.; KOWALSKI, Leonhard J. Contempt of court bench bo,ok. Michigan: Michigan
Judicial Institutes Publication Team, 2000, p. 18 43 SILVA, João Calvão Da. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2002. 44 O criminal contempt é, essencialmente, uma ofensa de natureza pública, pois visa proteger o interesse público
na administração da justiça, compreendendo as publicações e atos que interfiram no curso procedimental, como
a coação às testemunhas. Já o civil contempt ocorre quando há a desobediência a uma ordem, seja um
provimento judicial, seja uma ordem de praticar ou de se abster de praticar determinados atos, seja qualquer
outra, por exemplo a de não atender a uma ordem para interrogatório. O civil contempt é geralmente uma
ofensa de natureza particular, desde que o benefício da ordem reverta para a parte em favor de quem a ordem
foi dada. Por outro lado, o civil contempt é, antes de tudo, um remédio, cujo objetivo básico é coagir o réu a
cumprir a sentença ou a ordem do juiz. Entretanto, como alertam os Nigel Lowe e Brenda Sufrin, "while on
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merecedora de punição geralmente estaremos diante do criminal contempt, mas se for uma
situação a qual os efeitos coercitivos seriam suficientes para resultar na efetividade da
decisão judicial, estaríamos diante do civil contempt45. Tendo em vista o que nos interessa, ou
seja, as medidas coercitivas pelo descumprimento das ordens judicias, nos limitaremos a
examinar o civil contempt.
Essa espécie de contempt se delineia pela desobediência às ordens judiciais (court
orders), cuja principal consequência é dar ensejo à aplicação de meios executivos de coerção
indireta. Tal hipótese é também chamada indirect contempt porque ocorre fora do domínio
direto do juiz. A desobediência da ordem judicial dá ensejo à instauração de um processo
que visa justamente induzir ao cumprimento da ordem judicial (civil contempt proceeding).
No bojo desse processo que se destina a executar (enforcement) as ordens judiciais,
a parte renitente (civil contemnor) pode ser submetida à multa coercitiva (fine), à prisão
(committal) ou ainda ter seus bens sequestrados provisoriamente (writ of sequestration),
sendo que todas essas sanções, por serem nitidamente coercitivas, são condicionadas ao
cumprimento da determinação judicial, pois visam estimular o cumprimento da ordem
judicial. Não há objetivo punitivo algum. É por essa razão que o renitente será solto da prisão
e a multa deixará de incidir tão logo seja condescendente com a ordem do juízo46.
Essas medidas, embora sejam as mais usuais, não são as únicas possíveis. Em certas
circunstâncias, o renitente pode sofrer restrição de direitos processuais, como, por exemplo,
ter negado o direito de recorrer ou mesmo o de ajuizar ação enquanto permanecer em
contempt. Essas sanções coercitivas são indeterminadas, devem deixar de incidir apenas
quando o devedor resolver cumprir a obrigação. Sua aplicação é condicionada ao não
cumprimento da ordem judicial, podendo perdurar pelo tempo necessário ao convencimento
e integral subordinação do ordenado.
the face of it, these distinctions between the two types of contempt are clear in practice it can be difficult to
determine whether a particular act amounts to a criminal or civil contempt". LOWE, Nigel; SUFRIN, Brenda.
The law of contempt. London: Butterworths, 1996. p. 465 45 A esse respeito, ver VARANO, Vicenzo. Contempt of court. In: Salvatore Mazzamuto (Org.). Processo e
tecniche di attuazione dei diritti. Napoli: Jovene Editore, 1989. p. 42 46 Neste sentido cfr ZARONI, Bruno Marzullo. Contempt of court, execução indireta e participação de
terceiros no sistema anglo‑americano. Revista dos tribunais, v. 39, n. 235, p. 121-147, set. 2014. Disponível
em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/77459>. Acesso em: 12 maio. 2017.
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É possível perceber que o civil contempt representa uma potente medida de
execução indireta, propiciando reforçar a observância de determinações da Corte, seja
relativa ao cumprimento das decisões, seja atinente à observância de deveres
processuais.Com efeito, tanto no plano doutrinário, quanto no terreno jurisprudencial,
evidencia-se a identificação do contempt com mecanismo de execução indireta. A intenção
é a de influir no ânimo do réu, psicologicamente, para que este obedeça a decisão judicial, o
contempt atua conjugado a meios executivos de coerção.
No Brasil, a liberdade que o juiz possui para determinar medidas a serem aplicadas
para dar efetividade as suas decisões são muito mais restritas que no direito anglo-saxão47.
A ideia de coerção psicológica vem sendo aceita e legislada aos poucos. Humberto Theodoro
Junior observa que é na execução forçada que se acentuam as divergências entre os sistemas
processuais de origem romano germânica e os sistemas que pertencem à família do common
law. Assevera que “no common law, a preocupação com a autoridade da Justiça e efetivação
de seus decisórios sempre ocupou um plano muito superior ao que se registra em nossa
legislação latina. Destarte, é questão de honra para um jurista inglês a supremacia do
interesse público embutido em toda decisão judicial, razão pela qual deve ser pronta e
fielmente executada. A utilização das medidas drásticas oriundas do instituto do contempt of
court é apoiada pela população daqueles países, como mecanismo de garantia da ordem
pública”. Infelizmente, a cultura brasileira ainda não está suficientemente amadurecida para
absorver a ideia de que um cidadão possa ser preso por descumprir uma ordem judicial, à
exceção do devedor de alimentos48.
Pensando em formas de tornar mais efetiva a prestação jurisdicional, o legislador
do Código de processo civil brasileiro de 2015 inseriu no código uma cláusula geral de
47 Ada Pellegrini no XX Congresso Nacional de Derecho Procesal, em San Martins de los Andes (Argentina,
1999), fez as seguintes sugestões: Além da multa compensatória, destinada ao Estado, pela injustificada
resistência às ordens judiciais, proponho que em cada ordenamento latino-americano se analise a conveniência
da adoção das seguintes medidas: a) a prisão civil, a ser aplicada pelo juiz civil, à parte recalcitrante, até o
cumprimento da decisão judiciária; b) a multa coercitiva (astreinte), nos ordenamentos que ainda não a
contemplem. Seria, ainda, oportuno que, juntamente com essas medidas, se disciplinasse o procedimento a ser
seguido para a aplicação das sanções, podendo para tanto servir de inspiração o modelo do contempt indireto
anglo-saxão [...]. Não se pretende, com isso, importar simplesmente soluções de outros sistemas, mas convidar
a uma reflexão que conduza ao restabelecimento da autoridade do Poder Judiciário, por força da efetividade de
suas decisões (GRINOVER, Ada Pellegrini. Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o
contempt of court. In: Revista de Processo, São Paulo, n. 102, p. 225) 48 THEODORO JUNIOR, Humberto. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Revista de
Processo. vol. 105. São Paulo: Ed. RT, jan-mar. 2002, p. 30.
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efetivação das ordens judiciais, trazendo a possibilidade de adoção pelo juiz de medidas
coercitivas atípicas. Analisaremos a seguir o respectivo artigo bem como o seu impacto na
justiça brasileira.
2.2. O Art.139, IV do Código de Processo Civil e as medidas coercitivas atípicas
O Código de processo civil de 197349 em seu artigo 461, §5º trazia o poder geral de
cautela dispondo que o juiz, de ofício ou a requerimento, poderá determinar as medidas
necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção
de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, para a
obtenção da tutela específica ou obtenção do resultado prático equivalente50. O legislador de
2015 aprimorou tal poder que deixou de se chamar “poder geral de cautela” passando a ser
conhecido como “poder geral de efetivação”. Esse aprimoramento trouxe uma maior
amplitude de aplicação desse poder, uma vez que, no Novo Código, tais medidas podem ser
aplicadas às prestações pecuniárias51, o que era vedado pela legislação antecedente52.
Em outras palavras, o art. 139, IV, do CPC/201553 traduz um poder54 geral de
efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de
49 Lei 5869/73 50 Art. 461: “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá
a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o
resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 5º: Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção
do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias,
tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas,
desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”. 51 O enunciado número 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis estabelece que “a aplicação das
medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou
execução de título executivo extrajudicial. Continua, entretanto, o enunciado: “Essas medidas, contudo, serão
aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas (...)”. 52 A inserção do poder geral de efetivação foi comemorada pelos doutrinadores e principalmente pelos
magistrados, uma vez que as astreintes como meio coercitivo, nas obrigações de fazer e não fazer, bem como
as de entrega de coisa, já eram consideradas ineficazes. Diante da possibilidade de limitação do valor da multa
diária em grau de recurso, muitos devedores concluíam que o inadimplemento, muitas vezes, compensava e
acabavam por descumprir as decisões. 53 Art. 139: “O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV - determinar
todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o
cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”; 54 Sobre esse “poder” atribuído aos magistrados, vale destacar interessante reflexão do autor Cassio Scarpinella
que entende que: “Não há “poderes” no CPC de 2015 para ninguém, nem mesmo para os membros da
magistratura. O que há, inclusive no art. 139 agora em foco, é um rol de deveres a serem atingidos ao longo do
processo pelos magistrados. Para o atingimento de tais deveres, pode ser que seja necessário – e na exata
medida de sua necessidade – o uso de algum correlato poder, para firmar o magistrado como autoridade e, mais
amplamente, para lembrar a todos os caráteres da jurisdição, notadamente a sua imperatividade e a sua
substitutividade. O “poder”, contudo, jamais poderá caminhar isoladamente, sem que seja mero meio para o
atingimento de um fim, justamente os deveres aqui em exame. Máxime em um Código, como o de 2015, que
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qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de
execução baseado em títulos extrajudiciais. Sendo assim, além dos meios previstos
expressamente no Código, foi dado liberdade para que o juiz possa buscar novas alternativas
como forma de dar cumprimento as duas decisões e impô-las a quem insiste em desrespeita-
las. A ordem judicial é a concretização do interesse estatal, interessando assim a toda
sociedade que as mesmas sejam cumpridas, fazendo prevalecer a supremacia do interesse
público sobre o privado.
A questão que se coloca é que tendo em vista que o artigo possui redação vaga –
fala em “todas as medidas” e o legislador não ter estabelecido um procedimento a ser adotado
na escolha dessas medidas - é necessário estabelecer limites e pressupostos para que esse
poder não signifique uma espécie de “carta branca” ao juiz. Decisões vagas são
problemáticas porque não fornecerem critérios para orientar quando e quais medidas devem
ser aplicadas. É necessário, assim, que se discuta a possibilidade de estabelecer critérios
objetivos para a adoção dessas medidas, no sentido de assegurar a sua constitucionalidade e
efetividade.
determina o exercício da jurisdição na perspectiva de um modelo cooperativo de processo entre todos os
sujeitos processuais (art. 6º). Os deveres-poderes que, segundo os dez incisos do art. 139, são verdadeiramente
instrumentais para a direção do processo, merecem exame especificado. Trata-se de regra que convida à
reflexão sobre o CPC de 2015 ter passado a admitir, de maneira expressa, verdadeira regra de flexibilização
das técnicas executivas, permitindo ao magistrado, consoante as peculiaridades de cada caso concreto,
modificar o modelo preestabelecido pelo Código, determinando a adoção, sempre de forma fundamentada, dos
mecanismos que mostrem mais adequados para a satisfação do direito, levando em conta as peculiaridades do
caso concreto. Um verdadeiro “dever-poder geral executivo” ou de efetivação. Aceita essa proposta – que, em
última análise, propõe a adoção de um modelo atípico de atos executivos, ao lado da tipificação feita pelos arts.
513 a 538, que disciplinam o cumprimento de sentença, e ao longo de todo o Livro II da Parte Especial, voltado
ao processo de execução –, será correto ao magistrado flexibilizar as regras previstas naqueles dispositivos
codificados consoante se verifiquem insuficientes para a efetivação da tutela jurisdicional. Chama a atenção
neste inciso IV do art. 139, ademais, a expressa referência às “ações que tenham por objeto prestação
pecuniária”, que convida o intérprete a abandonar (de vez, e com mais de dez anos de atraso) o modelo
“condenação/execução”, que, até o advento da Lei n. 11.232/2005, caracterizou o modelo executivo do CPC
de 1973 para aquelas prestações e suas consequentes “obrigações de pagar quantia”. Até porque, com relação
às demais modalidades obrigacionais, de fazer, de não fazer e de entrega de coisa, esta atipicidade já é
conhecida pelo direito processual civil brasileiro desde o início da década de 1990. Primeiro com o art. 84 da
Lei n. 8.078/1990 (Código do Consumidor) e depois, de forma generalizada, pela introdução do art. 461 no
CPC de 1973 pela Lei n. 8.952/1994”. BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil:
inteiramente estruturado à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2015.
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3. LIMITES E PRESSUPOSTOS DAS MEDIDAS COERCITIVAS
ATÍPICAS
A busca pela efetividade processual e pela solução dos conflitos não pode ser
alcançada de qualquer forma, se faz necessário observar a técnica processual, normas e
critérios estabelecidos pelo sistema55. A preocupação primordial com os limites justifica-se,
ademais, pelo fato de que o art. 139, IV, CPC, não constitui a única nem a principal
ferramenta de efetivação dos direitos. Ao contrário, todas as modalidades obrigacionais
contam com procedimento legal executório mais ou menos preciso, servindo o dispositivo
em análise como mais um mecanismo de efetivação.
As medidas executivas atípicas, não poderão ser aplicadas indiscriminadamente,
entendemos ser necessário que a situação se enquadre dentre de alguns critérios de
excepcionalidade56, para que não haja abusos, em prejuízo aos direitos de personalidade do
executado. Assim, as medidas excepcionais terão lugar desde que tenha havido o
esgotamento dos meios tradicionais de satisfação do débito, havendo indícios que o devedor
usa a blindagem patrimonial para negar o direito de crédito ao exequente. Ora, não se pode
admitir que um devedor contumaz, sujeito passivo de diversas execuções, utilize de
subterfúgios tecnológicos e ilícitos para esconder seu patrimônio e frustrar os seus
credores57.
55 Calmon de Passos já advertia acerca dos perigos do abandono do conjunto das regras processuais em busca
da efetividade processual: “Devido processo constitucional jurisdicional, cumpre esclarecer, para evitar
sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem de culto da forma pela forma, do rito
pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm o poder de
decidir. [...] Dispensar ou restringir qualquer dessas garantias não é simplificar, desformalizar, agilizar o
procedimento privilegiando a efetividade da tutela, sim favorecer o arbítrio em benefício do desafogo de juízes
e tribunais. Favorece-se, do poder, não os cidadãos, dilata-se o espaço dos governantes e restringe-se o dos
governados. E isso se me afigura a mais escancarada antidemocrácia que se pode imaginar (CALMON DE
PASSOS, José Joaquim, Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 69.) 56 Nas palavras de José Miguel Garcia a regra do nosso sistema continua a ser o da tipicidade dos meios
executivos, só que agora “temperado” pelo sistema atípico (José Miguel Garcia Medina. Novo código de
processo civil comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 241.) 57 É essencial distinguirmos o devedor que não consegue quitar a dívida, mas esforça-se para fazê-lo, do
devedor que se vale de todos os meios, especialmente os ilícitos, para não satisfazer a pretensão do exequente.
É a diferenciação que Marcelo Abelha faz entre o executado “decente” e o executado “cafajeste”: executado
decente é aquele que por dificuldade financeira não consegue honrar com seus compromissos, se constrange
por ser devedor inadimplente, que não dorme direito porque sabe que deve a alguém, que se arrepende do que
fez, que se oferece para pagar a dívida de mil jeitos e maneiras de acordo com suas possibilidades; e o
executado cafajeste, que se comporta como verdadeiro criminoso ao esconder o seu patrimônio,
propositadamente, com o fim de frustrar as tentativas de satisfação do débito. Ostenta uma vida real, fora do
processo, de viagens para o exterior, de festas, colunas sociais e jantares em bons restaurantes, guiando carros
de luxo e demonstrando nas redes sociais que o seu cotidiano é oposto à sua realidade processual. No processo
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Cada modalidade de execução seguirá a ordem de medidas previstas para a espécie,
as quais deverão ser observadas à luz do princípio da tipicidade e adequação dos meios
executivos58. Sendo assim, após observados todo o procedimento comum executivo, caso
restem infrutíferos, o juiz tem o poder-dever de aplicar medidas excepcionais para satisfazer
o credor. É o caso, por exemplo, que o processo está em certo estágio sem que tenham sido
encontrados bens penhoráveis e, concomitantemente, haja indícios de que referido contexto
não retrate a realidade patrimonial do executado59. Nesse caso, passa a ser possível a
flexibilização do princípio da tipicidade dos meios executivos.
A doutrina cita hipóteses a serem adotadas como medidas coercitivas atípicas
como60: indisponibilidade de bens móveis e imóveis, proibição de efetuar compras com uso
do cartão de crédito, suspensão da habilitação para dirigir veículos, apreensão do passaporte
entre outras61. Importante destacar que somente se poderá partir para os meios mais
gravosos, como a apreensão de passaporte e suspensão da CNH, quando meios menos
é um pobre coitado, e na vida real apresenta uma condição oposta. Segundo o autor, a aplicação das medidas
atípicas, no caso do executado decente, deveria ser mais restrita e cautelosa do que para o caso do executado
cafajeste. Para o autor, “a possibilidade de aplicar-se a sanção processual punitiva para o executado que,
cafajeste ou não, passa a beneficiar-se do tempo do processo em razão da suspensão do processo de execução
(921, III), culmina com a extinção pela prescrição intercorrente”. Assim, a aplicação das medias atípicas do
art. 139, IV somente se justificaria se, necessária, pela atitude cafajeste do exequente, e adequada, por atingir
os fins a que se destinam, ou seja, compelir, de forma eficaz, o exequente a colaborar ou não obstaculizar os
atos executivos. RODRIGUES, Marcelo Abelha. MIGALHAS. O que fazer quando o executado é um
“cafajeste”? Disponível em: <http://www.migalhas.com.br>. Acesso em: 14 mar. 2017. 58 Podemos citar, por exemplo, na fase de cumprimento definitivo da sentença que reconheça a exigibilidade
da obrigação de pagar quantia certa, será o devedor intimado para efetuar o pagamento do débito no prazo de
15 dias (sob pena de multa de 10% (dez por cento) sobre o valor do débito além de honorários sucumbenciais
no mesmo percentual. Decorrido tal prazo sem a satisfação da obrigação, terá lugar a penhora dos seus bens
como forma de resguardar a garantia do juízo. Caso não sejam encontrados bens penhoráveis, será o devedor
intimado para indicá-los, advertido de que sua conduta, inclusive omissiva, poderá ser considerada atentatória
à dignidade da justiça. 59 Isso ocorrerá sempre que, apesar de não serem encontrados bens penhoráveis, o devedor ostente padrão de
vida incompatível com aludida escassez financeira, a exemplo da ampla veiculação em suas redes sociais de
fotografias ilustrando constantes viagens ao exterior. 60 MEIRELES, Edilton. Medidas sub-rogatórias, coercitivas, mandamentais e indutivas no Código de Processo
Civil de 2015. In.: DIDIER JÚNIOR, Fredie (Org. Geral). MACEDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi;
FREIRE, Alexandre. Coleção Novo CPC. Doutrina Selecionada. Vol. 5/Execução. Salvador: Juspodivm, 2016,
pp. 197-200. 61 Não efetuado, por exemplo, o pagamento de dívida oriunda de multas de trânsito, e superados os expedientes
tradicionais de adimplemento (penhora de dinheiro e bens), seria lícito o estabelecimento da medida
coercitiva/indutiva de suspensão do direito a conduzir veículo automotor até pagamento do débito (inclusive
com apreensão da CNH do devedor); não efetuado pagamento de verbas salariais devidas a funcionários da
empresa, possível o estabelecimento de vedação à contratação de novos funcionários até que seja saldada a
dívida; não efetuado o pagamento de financiamento bancário na forma e no prazo avençados, possível, até que
se tenha a quitação, que se obstem novos financiamentos, ou mesmo a participação do devedor em licitações
(como de ordinário já acontece com pessoas jurídicas em débito tributário com o Poder Público), etc.
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gravosos já tiverem sido utilizados62. Em segundo lugar, caso tenham sido esgotadas as
tentativas convencionais, deve haver indício robusto nos autos de que o devedor esteja
ocultando patrimônio para não arcar com as obrigações63.
Seguindo essa lógica, apenas poderá sofrer com as medidas coercitivas da
suspensão da CNH e da apreensão do passaporte o executado que venha a se comportar da
maneira descrita como a do executado “cafajeste”, isto é, aquele que sobre si recai
fundamentada suspeita de estar escondendo patrimônio, que não possui qualquer
compromisso nem intenção de quitar a dívida perante o exequente64.
Importante destacar que, o antigo jargão de que os fins não justificam os meios deve
ser observado pelo magistrado na hora de escolher qual medida será aplicada, sobretudo
porque o direito material não deve ser realizado à custa dos princípios e garantias
fundamentais do cidadão65. O postulado da proporcionalidade66, aplicado por um interprete
62 Primeiro, é importante que tenham sido esgotadas as ferramentas convencionais, como a tentativa de penhora
de ativos financeiros, protesto da dívida no tabelionato, inclusão do devedor nos cadastros restritivos de crédito,
intimação do devedor para indicação de bens penhoráveis, dentre outras. Essa é uma exigência que advém do
art. 805 do CPC/15 ao preconizar que “[...] quando por vários meios o exequente puder promover a execução,
o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”. 63 Alexandre Câmara entende que “a atividade executiva é essencialmente patrimonial. Significa isto dizer que
os atos executivos incidem sobre bens do executado, e não sobre seu corpo (com a única exceção da prisão
civil do devedor de alimentos, constitucionalmente autorizada). Impende, então, compreender qual a parcela
do patrimônio do executado que pode ser alcançada pela execução. Chama-se responsabilidade patrimonial à
sujeitabilidade de bens à execução, de modo que os bens sobre os quais tal responsabilidade incide ficam
sujeitos a suportar atos executivos, podendo vir a ser usados para a satisfação do crédito exequendo. Por conta
disso, estabelece o art. 789 que o executado responde “com todos os seus bens presentes e futuros” pelo
pagamento do débito, excluídos apenas aqueles bens que a lei ressalve, declarando como não sujeitos à
execução (os chamados bens impenhoráveis). 64 Destaca-se que penderá sobre o executado, ao ver contra si ser deferida uma medida coercitiva de tal natureza
(suspensão da CNH e/ou apreensão do passaporte), o ônus argumentativo para afastá-la. É dizer, cumprirá ao
devedor convencer o juiz de que a adoção de tais medidas implica um gravame desarrazoado. 65 É importante destacar que para aplicação dessas medidas o magistrado precisa enxergar a possibilidade de
sucesso no resultado pretendido com a adoção de tal meio. Nas palavras de Quitéria Tamanini: “Exemplo disso
seria a hipótese em que restasse demonstrado que o inadimplemento decorre da real inexistência de patrimônio,
caso em que eventual aplicação de medida coercitiva constituiria injustificada onerosidade e, por isso,
afrontaria os direitos do devedor, já que o processo não se presta a servir de instrumento de vingança. Por certo,
o melhor resultado possível da aplicação desta nova previsão legislativa decorrerá da conjugação de dois
fatores: de um lado, o consciente comprometimento do operador do direito em relação ao objetivo de assegurar
as condições necessárias para que o processo constitua meio hábil para alcançar a efetivação do direito,
representado também pelo cumprimento das decisões judiciais; e, de outro, a sensata análise das circunstâncias
do caso concreto, justamente para perceber se há impossibilidade de cumprimento da obrigação ou se,
diversamente, o que há é apenas a deliberada intenção do devedor em descumpri-la”.
EMPÓRIO DO DIREITO. Execução: há esperança! (ncpc, art. 139, iv). Disponível em:
<http://emporiododireito.com.br/execucao-ha-esperanca-ncpc-art-139-iv-por-quiteria-peres/>. Acesso em: 14
mar. 2017. 66 A medida escolhida deverá ser proporcional, devendo ser observada a regra da menor onerosidade ao devedor
(art. 805 do Código de Processo Civil). A fim de prestigiar a celeridade da execução e inibir condutas
protelatórias, o CPC/15 transfere para o executado o ônus de demonstrar a ofensa ao princípio da menor
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imparcial e sob o ponto de vista neutro, trará a resposta, no caso concreto, dos valores a
sofrerem limitações em favor de outros67. Seja como for, a atuação judicial nesse sentido
sempre deverá se desenvolver à luz das normas do devido processo legal, proporcionando
ao obrigado, de forma incisiva, clara e expressa, as garantias da ampla defesa.
Como bem ressaltado por Eduardo Talamini: “A eleição concreta das medidas
coercitivas atípicas, mediante a aplicação dos princípios da proporcionalidade e
razoabilidade, tende a ser tarefa delicada. É da essência do instrumento coercitivo certa
desproporção entre o bem atingido pela sanção e o bem tutelado. Para ser eficaz, a medida
de coerção terá de impor ao réu um sacrifício, sob certo aspecto, maior do que o que ele
sofreria com o cumprimento do dever que lhe cabe. Daí a extrema dificuldade de estabelecer
limites de sua legitimidade, sem destruir-lhe a essência: a medida coercitiva deve configurar
efetiva ameaça ao réu, apta a demove-lo da intenção de transgredir e, simultaneamente, não
afronta os princípios acima mencionados”68.
O meio de coerção não pode inviabilizar o cumprimento da ordem em função da
qual ele foi adotado. Não é providencia que se destine a penalizar o destinatário da ordem:
o sacrifício que se lhe impõe não é castigo nem visa à sua educação; está instrumentalmente
vinculado à perspectiva de cumprimento69. O juízo de ponderabilidade deve estar informado
onerosidade da execução. “Ao executado que alegar ser a medida executiva mais gravosa incumbe indicar
outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados”.
O novo texto permite que o exequente pleiteie o emprego das técnicas que julgar mais eficientes e céleres,
deixando a cargo do executado o ônus de indicar outros meios mais eficazes e menos gravosos; em segundo
lugar, serve para corroborar a noção de que a penhora de dinheiro deve ter preferência sobre os demais bens
pelo simples fato de que não há meio mais eficaz para a satisfação do exequente (art. 835, I e §1º). Com efeito,
adverte Humberto Theodoro Junior que a fixação da multa ou de qualquer outra medida coercitiva deve ser
realizada em “observância dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, de sorte a guardar a relação de
adequação com o fim perseguido, não podendo acarretar para o réu sacrifício maior do que o necessário”.
Exatamente nesta medida que o princípio da proporcionalidade se mostra fundamental e, deve ser observado
na fixação da multa sob duas óticas: a matéria em demanda e o patrimônio da parte, a fim de apresentar poder
coercitivo suficiente para o cumprimento da decisão judicial, atentando-se para evitar que a parte adversa se
enriqueça ilicitamente. Em THEODORO JUNIOR, Humberto. Tutela específica das obrigações de fazer e não
fazer. Revista de Processo. vol. 105. São Paulo: Ed. RT, jan-mar. 2002, p. 30 67Cfr (AMARAL, Guilherme Rizzo. Cumprimento e execução da sentença sob a ótica do formalismo-
valorativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 194.) 68 MIGALHAS. Medidas judiciais coercitivas e proporcionalidade: a propósito do bloqueio do whatsapp por
48 horas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br. Acesso em: 14 mar. 2017. 69 Marcelo Abelha Rodrigues, ao tratar do tema, distingue com muita propriedade as medidas processuais
punitivas das medidas processuais coercitivas, ambas aplicáveis ao executado, por meio de um “duplo dever
do magistrado”. As primeiras, aplicáveis às situações que atentem ao dever de lealdade e boa-fé estariam
previstas no inciso III, do art. 139, e as segundas, destinadas à promoção das ordens judiciais, se enquadrariam
no inciso IV, do mesmo dispositivo legal. Nesse contexto, se o comportamento do executado estiver voltado
para atos de improbidade processual (arts. 77, IV e 774), aplica-se uma medida processual de caráter punitivo
(art. 139, III). Contudo, se a conduta do executado se relacionar ao descumprimento da ordem judicial, cabível
21
pelos princípios do meio mais idôneo e da proporcionalidade, a fim de que a lesão de um
bem, em detrimento de outro bem, não vá além do necessário.
O magistrado está sempre fazendo escolhas e nessa atuação faz o uso de um
“raciocínio” que não é regulado nem ensinado pelo Direito. O raciocínio do juiz deriva do
senso comum, e vai além das amarras da lei. O juiz deve ter a sensibilidade de aferir a
capacidade de o devedor cumprir a ordem, e o faz, com base em sua experiência pessoal e
no senso comum. Sem retirar a importância da doutrina em definir e traçar limites na adoção
dessas medidas, não se pode olvidar o elemento humano, os valores subjetivos intrínsecos
do homem que julga. O juiz deve zelar pela idoneidade da prestação jurisdicional através da
aplicação da técnica processual adequada, para que se possa evitar uma tutela não efetiva,
imprestável ou tardia, o que não significa que a decisão não esteja sujeita a nenhum
controle70.
se torna a aplicação de medidas processuais coercitivas ou sub-rogatórias (art. 139, IV), desde que adequadas,
proporcionais e razoáveis para atingir sua finalidade. De toda sorte, as medidas processuais punitivas devem
seguir o regime de tipicidade, pois ela é a própria consequência (fim), em contraposição à aplicação de medidas
processuais coercitivas, que adotam o regime de atipicidade, sendo apenas um instrumento (meio) para o
alcance do resultado pretendido, embora ambas possam ser cumuladas.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. MIGALHAS. O que fazer quando o executado é um “cafajeste”? Apreensão
de passaporte? Da carteira de motorista? Disponível em: <http://www.migalhas.com.br>. Acesso em: 14 mar.
2017. 70 Os limites à atuação discricionária e interpretativa do juiz se encontram no sistema à disposição da parte
executada: são os recursos cabíveis contra as decisões proferidas no curso do procedimento, a defesa do
executado e, ainda, o manejo do Habeas Corpus, sem desprezo de outras demandas autônomas.
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4. ANÁLISE DO CASO CONCRETO
Como forma de ilustrar uma norma tão abstrata e tão aberta como a em questão,
passemos a analisar um dos casos sobre o assunto que gerou maior repercussão e
posicionamentos divergentes no Brasil. Estamos falando da decisão proferida por uma juíza
de São Paulo que diante do comportamento do executado de não pagar a dívida, não indicar
bens à penhora, não fazer proposta de acordo e não cumprir de forma adequada as ordens
judiciais, considerou esgotadas as medidas executivas cabíveis, e determinou a suspensão da
Carteira Nacional de Habilitação, a apreensão do passaporte do devedor e o cancelamento
dos cartões de crédito do executado, até o pagamento da dívida7172.
O executado reagiu impetrando habeas corpus e obteve liminar, fundada no
seguinte argumento: “O art. 8º, do CPC/2015, também preceitua que ao aplicar
ordenamento jurídico, o juiz não atentará apenas para a eficiência do processo, mas
também aos fins sociais e às exigências do bem comum, devendo ainda resguardar e
promover a dignidade da pessoa humana, observando a proporcionalidade, a razoabilidade
e a legalidade”.
O caso repercutiu nacionalmente, com posições divergentes sobre o tema. Por se
tratar de clausula geral o debate torna-se importante, tendo em vista que os conceitos
indeterminados, por sua essência, não podem ser aprioristicamente esgotados ou
71 A juíza ressaltou, que as medidas indutivas inominadas, conquanto cabíveis, “não poderão ser aplicadas
indiscriminadamente”, devendo seguir “alguns critérios de excepcionalidade, para que não haja abusos, em
prejuízo aos direitos de personalidade do executado”, quais sejam, “o esgotamento dos meios tradicionais de
satisfação do débito” e a existência de “indícios que o devedor usa a blindagem patrimonial para negar o direito
de crédito ao exequente”, relevante este último porque “não se pode admitir que um devedor contumaz, sujeito
passivo de diversas execuções, utilize de subterfúgios tecnológicos e ilícitos para esconder seu patrimônio e
frustrar os seus credores”. Também destacou a necessidade de buscar a medida menos onerosa ao executado
(art. 805, CPC) e de respeitar os direitos e garantias assegurados na Constituição, pré-excluída a prisão civil.
Sobre a sucessão fática, registrou que: o processo tramita desde 2009; de lá pra cá, foram utilizadas e frustradas
medidas executivas típicas cabíveis; o executado não paga, não indica bens à penhora, não faz proposta de
acordo e “não cumpre de forma adequada as ordens judiciais” (embora sem explicitar o que seja esse
descumprimento). Ponderou que “se o executado não tem como solver a presente dívida, também não recursos
para viagens internacionais, ou para manter um veículo, ou mesmo manter um cartão de crédito. Se porém,
mantiver tais atividades, poderá quitar a dívida, razão pela qual a medida coercitiva poderá se mostrar efetiva”.
Processo nº 0121753-76.2009.8.26.0011/01 – 2ª Vara Cível de Pinheiros – Tribunal de Justiça de São Paulo/SP. 72 Podemos citar também, um outo curioso caso que ocorreu no Brasil no final do ano de 2015. Para possibilitar
uma investigação criminal de tráfico de drogas, uma juíza criminal de São Bernardo do Campo/SP quebrou o
sigilo telemático (que envolve dados de uso da internet) de três suspeitos, requisitando à empresa WhatsApp o
envio das informações sobre eles. Diante do não cumprimento da requisição, reiterou-a a magistrada sob pena
de multa. Após quase cinco meses de insucesso na obtenção dos dados, foi ordenado a suspensão temporária
do aplicativo WhatsApp em todo o território nacional.
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determinados pela doutrina e necessitam de uma concretização por parte da jurisprudência.
O legislador de 2015 conferiu maiores poderes aos juízes e, justamente por isso, exige-se da
jurisprudência uma postura responsável e prudente, interagindo e confluindo com a doutrina,
evitando os perigos do subjetivismo ou do decisionismo.
Analisando o caso em questão, se faz necessário analisar se as medidas atípicas
escolhidas pelo juiz, de forma conjunta, violam a Constituição Federal, se cada uma delas,
individualmente consideradas, também o fazem e se a escolha eleita pelo juiz se traduz em
violência física contra a pessoa do devedor colocando-o em situação desproporcionalmente
detrimentosa. As medidas judiciais foram: (i) a suspensão da Carteira Nacional de
Habilitação, (ii) a apreensão de passaporte e (iii) o cancelamento dos cartões de crédito do
executado.
O direito ao transporte é considerado um direito social, previsto no art.6º da
Constituição Federal e o seu cumprimento é realizado através do Estado que assim o faz
através dos transportes públicos. Dirigir veículo automotor é direito de todo cidadão, mas
não pode ser confundido com o direito fundamental ao transporte, com exceção dos que
usam o veículo como instrumento de trabalho73. Nesse caso, no nosso entendimento, ter a
Carteira de Habilitação suspensa não configura qualquer violação a direito fundamental ou
social, nem a direito da personalidade ou colocação do devedor em situação
desproporcionalmente detrimentosa74. Sendo assim, ao menos com relação a essa parte, seria
completamente viável a suspensão da carteira de motorista75.
Da mesma forma, se passa com a medida restritiva do cancelamento dos cartões de
crédito do executado. Também não nos parece haver qualquer violação a direito fundamental
ou social, nem a direito da personalidade ou colocação do devedor em situação
desproporcionalmente detrimentosa. Isso porque, para ser titular de cartão de crédito
significa possuir uma presunção de crédito e, além disso, se porventura, passando por
73 Nesse caso aplica-se o art. 833, inc. V. 74 Tanto assim o é, que a Administração Pública pode pôr condições ao seu exercício, bem como pode
administrativamente suspender esse direito. Demais disso, milhares ou mesmo milhões de cidadãos, por
questões financeiras ou por mera opção pessoal, não dirigem. Pode, ainda, haver outras restrições ao exercício
do direito de dirigir, tais como as impostas pelo rodízio de veículos, por pedágios em rodovias. 75 A parcela da doutrina que é contra a suspensão da carteira de motorista, alega que a mesma é consequência
de infração administrativa regida pela legalidade estrita e só aplicável ao cabo de devido processo
administrativo no bojo do qual haja sido oportunizado o contraditório e a ampla defesa à pessoa física
envolvida.
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dificuldades financeiras, a pessoa deixa de honrar com pagamentos, a mesma instituição
financeira concedente do cartão de crédito pode cancelá-lo ou recusar-lhe a concessão.
Então, se instituições financeiras, para sua proteção patrimonial, possam ferir esse suposto
“direito fundamental” ou esse suposto “direito da personalidade”, porque não poderia o
Poder Judiciário igualmente fazê-lo contra aquele devedor moroso que, instado ao
pagamento, e frustradas todas as tentativas de constrição patrimonial, leva vida luxuosa,
valendo-se de cartões de crédito como forma de ocultar renda e patrimônio76.
Em relação à apreensão de passaporte, assim como o direito a dirigir carro é um
direito de amplitude especial, mas sem se tratar de direito fundamental, viajar de avião
também. Realizar uma viagem internacional, ainda mais nos dias de hoje, não faz parte da
realidade de quem não tem dinheiro, inclusive, muita das vezes, se faz necessário comprovar
algum valor mínimo para entrar em determinados países, por exemplo. Se pressupõe então,
ter uma condição financeira que o devedor justamente diz não possuir.
Em que pese o fato de cada medida, isoladamente analisada, não ferir o
ordenamento jurídico, essa cumulação pode acabar por violar o princípio da
proporcionalidade. No nosso entender, o juiz poderia sim adotar todas as medidas, mas de
forma gradativa até chegar a sua cumulação, caso o descumprimento permanecesse e não,
desde logo, aplica-las de uma única vez. Mas isso não significa, que tais medidas não possam
ser aplicadas, por serem violadoras de princípios constitucionais e, nesse ponto, precisamos
fazer uma ponderação.
Quem entende que essas medidas não poderiam ser aplicadas, alega que as mesmas
configuram uma restrição do direito de ir e vir previsto constitucionalmente e que o art. 139,
IV, do CPC/15, não pode dar ensejo à restrição unilateral de direitos individuais para que
seja obtida a satisfação de pretensões pecuniárias. Ocorre que, assim como o direito de ir e
vir faz parte do rol dos direitos fundamentais, igualmente é o caso do direito de propriedade
do credor, previsto no caput do art. 5º da Constituição.
76 O entendimento contrário ao exposto, entende que ter cartão de credito não é sinônimo de possuir credito e
nem de se fazer dele para uso supérfluo. Ademais, é da realidade de parte significativa das pessoas de classe
média e média-baixa brasileiras utilizarem o cartão de crédito para pagarem parte das suas despesas ordinárias.
Por isso, privá-las desse recurso creditício pode onerar demasiadamente a ordenação básica de suas vidas, não
produzindo qualquer resultado útil para a execução
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Sendo assim, estamos diante de um conflito entre dois princípios amparados
constitucionalmente. Não conseguimos ver subsistir o argumento de impossibilidade de ser
apreendido o passaporte e suspensão da carteira de habilitação, simplesmente pelo fato de
estar sendo promovida uma restrição ao direito constitucional de ir e vir, já que, do outro
lado, está a pretensão de satisfazer-se uma obrigação pecuniária, que, em última análise,
encontra amparo também em direito fundamental que é o direito constitucional de
propriedade.
Precisamos ter em vista que os princípios constitucionais não podem servir de
“barreira” para aplicação de medidas coercitivas, pois, se tudo for considerado direito
fundamental, então nada mais o será. O que deve ser feito, portanto, é que o magistrado, no
caso concreto, em coparticipação com os demais sujeitos processuais, deverá sopesar os
princípios constitucionais analisando qual deles merece sofrer uma restrição em detrimento
do outro. Sem dúvidas, a aplicação dessas medidas exige uma sensibilidade muito grande
dos juízes.
CONCLUSÕES
Como podemos observar no fim da pesquisa, mas longe de esgota-la, o incremento
de poderes executivos, com a possibilidade de determinação de medidas atípicas, implica
não apenas maior responsabilidade judicial, mas também exige maior criatividade do juiz.
A atuação judicial em casos de descumprimento de suas ordens deve considerar o
tipo de executado e seu comportamento, se de mero descumprimento de ordem judicial ou
se de efetiva impossibilidade de cumpri-la bem como, a ponderação de princípios
envolvidos.
Essas potencialidades executivas podem representar grande avanço na efetividade
das decisões judiciais, mas ainda demandarão amadurecimento cultural e jurídico para se
solidificarem em nosso ordenamento. Prova disso foi cassação da decisão pelo tribunal, que
embora no caso concreto tenha exercido um controle aparentemente correto, especialmente
diante da desproporcionalidade demonstrada, pode configurar uma posição conservadora a
inviabilizar a adoção de outras medidas similares. Há ainda um longo caminho para sua
aplicação jurisprudencial e para sua sistematização doutrinária, definindo-lhe contornos e
limites.
“O direito existe para se realizar. A realização é a vida e a verdade do direito: é
o próprio direito. O que não passa à realidade, o que não existe senão nas leis e no papel,
é só um fantasma de direito, são só palavras”77.
77 Segundo Ihering, apud SILVA, Joao Calvao Da. Cumprimento e sanção pecuniária compulsória: 4.
Coimbra: Almedina, 2002.
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