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Este trabalho tem por objetivo avaliar o potencial que o Pensamento Sistêmico Multimodal (PSM) oferece para a interpretação e avaliação sociológica das estratégias de implantação de projetos de impacto socioambiental no contexto dos atuais processos de desenvolvimento local em Pontal do Paraná. Por causa do programa Pontal do Pré-Sal, a região vê-se diante de um esforço governamental que tenta combinar o incentivo a implantação de indústrias parapetrolíferas - fomentando com isso a manutenção indireta de uma matriz energética altamente poluente e um modelo de desenvolvimento local orientado por demandas externas – com projetos pa-ra proteção ambiental de áreas frágeis e melhoria das condições de vida da população local. Esses esforços traduzem-se em tensões que envolvem diretamente as comunidades locais e a administração de seu patrimônio ambiental, histórico e cultural, tão caros à sua sobrevivência. Como o PSM foi originalmente elaborado para abordar qualitativamente problemáticas relacionadas com a ideia de sustentabilida-de de modo transdisciplinar, realizamos adaptações para que ele pudesse ser utilizado como uma proposta intradisciplinar, incorporando de modo sistêmico categorias analíticas e conceitos sociológicos. Além dos elementos teórico-metodológicos relacionados especificamente com a viabilização desta questão, procuramos identi-ficar como alguns moradores de Pontal do Paraná percebem as mudanças que se lhes impõem; quais fatores socioambientais estão envolvidos nas dinâmicas regionais de desenvolvimento e como se relacionam entre si; quais fatores podem comprometer a sustentabilidade em longo prazo da região estudada, bem como fatores presentes em outras regiões do Brasil que possuem projetos semelhantes. Neste sentido, foram identificados fatores como: ética; modelo econômico; trabalho; contexto social; visão; ecossistemas, que nos permitiram elencar, por meio do PSM, conceitos e categorias analíticas como: utilitarismo de preferência, solidariedade intergeracional, ética samaritana, necessidades e satisfactores, hipereconomização, economia de permanência, meios-de-vida sustentável, capital social, mitos de acumulação, bases ecológicas do desenvolvimento sustentável. Por fim, verificamos que o PSM é capaz de viabilizar a construção de um modelo analítico intradisciplinar na medida em que se permite ser utilizado como uma espécie de metateoria capaz de integrar, ordenar e indicar possíveis interrelações sociológicas conceituais. Além disso, esse modelo sistêmico viabilizou um olhar crítico, embora panorâmico e de caráter ainda preliminar, sobre os atuais processos de desenvolvimento da indústria petrolífera em Pontal do Paraná, permitindo-nos encontrar, mesmo em sua fase inicial de implantação, características semelhantes às de outras regiões do país. Neste caso, se estivermos corretos e as devidas providências não forem tomadas, o crescimento econômico da região pode não ser acompanhado por: melhoria da qualidade de vida da população mais carente; distribuição mais igualitária da renda do município; proteção dos ecossistemas frágeis; realização de projetos de urbanização em áreas adequadas; desenvolvimento de economias alternativas e autóctones. Enfim, processos que culminem em um desenvolvimento sustentável dos sistemas socioambientais em longo prazo.
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS
CHRISTIAN MACIEL DE BRITTO
O Pontal do Pr-Sal e a busca por sustentabilidade em Pontal do Paran: uma
avaliao do Pensamento Sistmico Multimodal e exploraes preliminares.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Sociologia, Setor de Cincias Hu-
manas, Letras e Artes da Universidade Federal do
Paran, como requisito parcial para a obteno do
ttulo de Mestre em Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Dimas Floriani.
Co-orientador: Prof. Dr. Francisco Casiello.
CURITIBA 2013
2
LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1: Universo de Pesquisa ............................................................................... 10
Figura 2: Canteiro de obras da Techint em 2006 ..................................................... 14
Figura 3: Detalhe do Universo de Pesquisa. ............................................................ 16
Figura 4: Ponto de Cristalizao, Percepo Local e Perifrica. .............................. 38
Figura 5: Cadastro de Aspectos ............................................................................... 44
Figura 6: Cadastro de Fontes ................................................................................... 45
Figura 7: Cadastro de Fatores ................................................................................. 45
Figura 8: Cadastro de Itens ...................................................................................... 46
Figura 9: Sumrio dos Relatos ................................................................................. 47
Figura 10: Diagnstico ............................................................................................. 48
Figura 11: Representao Grfica do Sumrio ........................................................ 49
Figura 12: rea de Explorao do Pr-Sal ............................................................... 51
Figura 13: Fatores Identificados e Possveis Nexos. ................................................ 54
Figura 14: Aspectos e Sistemas Socioambientais .................................................... 63
Figura 15: Nexos Identificados em Percepes Locais. ........................................... 88
Figura 16: Ciclo Entre Fatores ................................................................................. 92
Figura 17: Modalidades e Entidades/Sistemas....................................................... 122
3
LISTA DE SIGLAS
COLIT Conselho de Desenvolvimento Territorial do Litoral Paranaense
BDM Banco de Dados Multimodal
IPARDES Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social
ITCG Instituto de Terras, Cartografias e Geocincias
PPS Pontal do Pr-Sal
PSM Pensamento Sistmico Multimodal
SAE Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica
SEMA Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hdricos
SEPL Secretaria de Estado de Planejamento
ZEE Zoneamento Ecolgico-Econmico
4
SUMRIO
1 Introduo ............................................................................................................... 8
2 Problema e Contextualizao ............................................................................... 10
2.1 Pontal do Paran: Breve Histrico e Contexto Atual ....................................... 10
2.2 O Pontal do Pr-Sal ........................................................................................ 13
2.3 Delineamento da Pesquisa ............................................................................. 15
2.4 Justificativa ..................................................................................................... 18
2.4.1 Escarabocho de uma Autoanlise: O Caminho At Pontal ....................... 19
3 A Ideia de Sustentablidade ................................................................................... 21
3.1 Breve Histrico ............................................................................................... 21
3.2 'Ideacionando' a Sustentabilidade................................................................... 23
3.3 Dimenses e Fatores Envolvidos.................................................................... 24
3.4 Implicaes Epistemolgicas .......................................................................... 28
3.4.1 Sociedade-Natureza ................................................................................ 28
3.4.2 Uma Abordagem Qualitativa .................................................................... 29
3.4.3 O Dilogo de Saberes .............................................................................. 30
3.4.4 A Questo das Origens ............................................................................ 32
3.4.5 Complexidade-Sustentvel ...................................................................... 33
3.5 Consideraes e Apontamentos ..................................................................... 34
4 Mtodo Para Coleta e Tratamento de Dados ........................................................ 36
4.1 Coleta de Dados ............................................................................................. 36
4.2 Amostragem Terica e Ponto de Cristalizao ............................................... 36
4.3 Tratamento dos dados Coletados ................................................................... 39
4.4 Banco de Dados Multimodal ........................................................................... 43
4.5 Consideraes e Apontamentos ..................................................................... 49
5 Relatos Referenciais ............................................................................................. 51
5
5.1 Algumas Promessas Ligadas ao Pr-Sal ........................................................ 51
5.2 Fatores Identificados em Atividades da Indstria Para-Petrolfera .................. 53
5.2.1 tica ......................................................................................................... 54
5.2.2 Trabalho ................................................................................................... 55
5.2.3 Modelo Econmico ................................................................................... 56
5.2.4 Contexto Social ........................................................................................ 57
5.2.5 Viso ........................................................................................................ 58
5.2.6 Ecossistemas ........................................................................................... 59
5.3 Consideraes e Apontamentos ..................................................................... 60
6 O Lugar da Sociologia no PSM ........................................................................... 62
6.1 Elementos para Uma Abordagem Sociolgica Multimodal da Sustentabilidade
............................................................................................................................. 67
6.1.1 Aspecto tico ........................................................................................... 67
6.1.2 Aspecto Operacional ................................................................................ 71
6.1.3 Aspecto Econmico ................................................................................. 75
6.1.4 Aspecto Social ......................................................................................... 77
6.1.5 Aspecto Fiducial ....................................................................................... 80
6.2 Consideraes e Apontamentos ..................................................................... 83
7 Relatos Primrios e Secundrios .......................................................................... 87
7.1 Nexos Identificados a Partir de Percepes Locais: Um Esboo .................... 87
7.1.1 tica => Modelo Econmico ..................................................................... 88
7.1.2 tica => Contexto Social .......................................................................... 89
7.1.3 tica Ecossistemas ....................................................... 92
6
7.2 Ciclo: Viso => tica => Modelo Econmico => Viso.................................... 92
7.3 Consideraes e Apontamentos ..................................................................... 93
8 Pensamento Sistmico Multimodal: Exploraes e Tensionamentos .................... 95
8.1 Breve Histrico ............................................................................................... 96
8.2 Entidades e Sistemas ..................................................................................... 97
8.3 Anlise e Abstrao: Diferenciao Este-Aquele ............................................ 97
8.4 Diferenciao Modal ....................................................................................... 98
8.5 Matriz Multimodal ......................................................................................... 100
8.6 Coerncia Modal .......................................................................................... 101
8.7 Nexos Condicionantes e Normativos ............................................................ 101
8.8 Leis Naturais e Normativas ........................................................................... 102
8.9 Tempo e Realidade Emprica ....................................................................... 104
8.10 Identificao das Modalidades Pelo Mtodo Transcendental-Emprico ...... 105
8.11 Dogmatismo ou Dilogo?............................................................................ 108
8.12 Explorando as Modalidades ........................................................................ 109
8.12.1 Distintiva (distino) ............................................................................. 109
8.12.2 Quantitativa (magnitude) ...................................................................... 109
8.12.3 Espacial (extenso) .............................................................................. 109
8.12.4 Cinemtica (movimento) ...................................................................... 110
8.12.5 Fsica (energia) .................................................................................... 110
8.12.6 Regulatria (equilbrio) ......................................................................... 111
8.12.7 Bitica (vida) ........................................................................................ 111
8.12.8 Sensitiva (sensitividade) ....................................................................... 111
8.12.9 Fiducial (crenas) ................................................................................. 111
8.12.10 Histrica (poder formativo) ................................................................. 113
8.12.11 Simblico-Informacional (significao) ............................................... 113
8.12.12 Epistmica (sabedoria) ....................................................................... 114
7
8.12.13 Social (sociao) ................................................................................ 115
8.12.14 Econmica (frugalidade) .................................................................... 116
8.12.15 Operacional (vocao) ....................................................................... 116
8.12.16 Jurdica (obrigao)............................................................................ 117
8.12.17 Esttica (harmonia) ............................................................................ 117
8.12.18 tica (gape) ...................................................................................... 117
8.13 Idionomia e Qualificao Modal .................................................................. 118
8.14 Qualificao dos Sistemas Sociais ............................................................. 119
8.15 Leis Tpicas ................................................................................................ 119
8.16 Funes Ativas e Passivas ......................................................................... 120
8.17 Sustentabilidade e Relaes Intersistmicas .............................................. 122
8.18 Relaes Intersistmicas: Encapsulao e Relao Todo-Partes............... 123
8.19 Analogia ..................................................................................................... 125
8.21 Disciplinas Acadmicas .............................................................................. 126
8.22 Teoria Social............................................................................................... 128
8.23 Pensamento Cientfico e Reducionismo ..................................................... 129
8.24 Consideraes e Apontamentos ................................................................. 130
9 Consideraes Finais .......................................................................................... 132
Referncias ............................................................................................................ 134
1 INTRODUO
Este trabalho tem como objetivo principal avaliar o potencial que o Pen-
samento Sistmico Multimodal (PSM) oferece para a interpretao e avaliao socio-
lgica das estratgias de implantao de projetos de impacto socioambiental no con-
texto dos atuais processos de desenvolvimento local em Pontal do Paran. Por cau-
sa do programa Pontal do Pr-Sal, a regio se v diante de um esforo governamen-
tal que tenta combinar a implantao de indstrias parapetrolferas fomentando
com isso a manuteno indireta de uma matriz energtica altamente poluente - pro-
moo de um modelo de planejamento que visa crescimento econmico a partir de
demandas externas, proteo ambiental de reas frgeis, melhoria das condies de
vida da populao local. Esforos estes que se traduzem em tenses que envolvem
diretamente as comunidades locais e a administrao de seu patrimnio ambiental,
histrico, cultural, to caros sua sobrevivncia.
Para que possamos avaliar o PSM, tentaremos compreender de forma
preliminar quais fatores socioambientais, relacionados direta ou indiretamente com o
programa Pontal do Pr-Sal, podem comprometer a sustentabilidade, em longo pra-
zo, da populao que vive nas regies de Ponta do Poo e Pontal II, localidades que
esto sendo diretamente afetadas pela implantao da indstria parapetrolfera. Pa-
ra tanto, ser importante considerarmos: a) como os moradores locais percebem as
mudanas que se lhes impem; b) quais fatores socioambientais esto envolvidos
nas dinmicas regionais de desenvolvimento e como se relacionam entre si; c) quais
fatores podem comprometer a sustentabilidade, em longo prazo, da regio estudada.
Esperamos, portanto, que nesta fase exploratria alm de avaliar a aplicabilidade do
PSM - nosso objetivo principal - possamos dar os primeiros passos para uma inves-
tigao mais aprofundada, que pretendemos realizar por meio de um projeto de dou-
toramento.
Isto posto, estruturamos nosso trabalho da seguinte maneira: i) apresen-
taremos a atual conjuntura da regio e delinearemos os parmetros que utilizaremos
em nossa investigao; ii) exploraremos o potencial heurstico da ideia de sustenta-
bilidade, para que possamos identificar importantes princpios epistemolgicos que
nos ajudem a fundamentar e a avaliar o PSM; iii) estabeleceremos regras para a
coleta dos dados empricos preliminares que sero utilizados para avaliar o PSM e
9
para realizarmos as primeiras exploraes na regio; iv) uma vez que a implantao
da indstria parapetrolfera em Pontal se encontra em fase inicial, realizaremos tam-
bm um breve estudo sobre fatores relacionados com os impactos socioambientais
decorrentes da implantao de indstrias petrolferas e parapetrolferas em outras
regies e temporalidades, de modo que possamos contextualizar e fundamentar cor-
retamente nossa investigao; v) uma vez que o PSM foi concebido originalmente
como uma proposta de investigao de cunho transdisciplinar, avaliaremos a possi-
bilidade de utiliz-lo como um meio de viabilizar a construo de uma sociologia mul-
timodal apta a lidar com questes complexas relacionadas com a ideia de sustenta-
bilidade; vi) com base nos fatores identificados em empreendimentos semelhantes
presentes em outras localidades, apresentaremos em forma de esboo algumas re-
laes entre estes fatores com base nas percepes de alguns moradores locais, o
que nos permitir apontar sucintamente possveis aplicaes para os conceitos so-
ciolgicos incorporados ao PSM; vii) por fim, faremos uma exposio das principais
caractersticas epistemolgicas do PSM explorando princpios que possam viabilizar
sua aplicao no tratamento de questes complexas relacionadas com a ideia de
sustentabilidade.
10
2 PROBLEMA E CONTEXTUALIZAO
2.1 PONTAL DO PARAN: BREVE HISTRICO E CONTEXTO ATUAL
O municpio de Pontal do Paran faz parte da regio litornea localizada a
aproximadamente 120 km da capital do Estado do Paran, Curitiba, e se encontra
entre os municpios de Matinhos e Paranagu (Figura 1). Localizado em uma regio
de grande beleza cnica e muitos recursos ambientais, l vivem aproximadamente
21.917 habitantes em uma rea territorial que abrange 202.159 Km2 (IPARDES,
2013).
Trata-se, tambm, de uma regio com alto valor histrico. H no local o
Sambaqui Guaragua, que alm de representar grande riqueza arqueolgica, sen-
do o maior e mais estudado do litoral paranaense, registra um processo de ocupa-
o que remonta h aproximadamente 6.000 anos (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM,
2006, p.144). Todavia, embora seja tombado como Patrimnio Histrico e Artstico
do litoral do Paran, possvel verificar a presena de srios indcios de degradao
Figura 1: Universo de Pesquisa
Fonte: Adaptado de (INETPONTAL, 2012) e (COLIT, 2008).
11
por processos antrpicos, como obras de loteamento prximas ao local (DEPIN;
OKA FIORI, 2005).
Historicamente a colonizao europeia chegou ao local por volta do scu-
lo XVI em busca de metais preciosos. Naquele tempo, a regio era habitada pelos
ndios carijs (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.144). Por volta de 1928 a
regio foi loteada, passando a se chamar Vila Balneria de Praia de Leste, mas por
falta de fcil acesso a gua potvel o desenvolvimento local s se estabeleceu a
partir de 1950 e, com mais intensidade, depois de 1960 e 70 (SAMPAIO, 2006,
p.174175). Este processo de urbanizao teve como caractersticas principais: o
loteamento, por iniciativa privada e de famlias de proprietrios, sem a presena de
qualquer infra-estrutura tcnica (SAMPAIO, 2006, p.175); o comprometimento da
paisagem natural; e, em alguns casos, expulso de colnias de pescadores, por for-
a da valorizao imobiliria da orla martima. De l para c a ocupao do territrio
segue em ritmo acelerado e desordenado, com presena de diversos impactos am-
bientais (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.147). O municpio possui recur-
sos: a) pesqueiros; b) tursticos, pois engloba algumas praias do litoral do Estado e
inclui um dos principais acessos Ilha do Mel, grande atrao turstica local; c) am-
bientais, contando com uma reserva de Mata Atlntica; d) porturios, por causa das
boas condies do calado na Baa de Paranagu (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM,
2006). Recursos estes que contabilizam riquezas, mas no ausncia de desafios e
riscos.
Quanto conservao ambiental, o litoral paranaense, como um todo,
conta com a maior rea contnua de Floresta Pluvial Atlntica ainda preservada
(PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.150). Em Pontal do Paran, h a Estao
Ecolgica do Guaragua, sob gesto do governo do estado, composta por uma
rea de proteo de 2.265,71 ha, representando aproximadamente 10,5% da rea
total do municpio (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.151152). Um srio
problema relacionado a estas reas de conservao que o uso de seu solo vol-
tado para a garantia de recursos para as geraes futuras, no atendendo, portanto,
as necessidades imediatas da populao permanente local (PIERRI; ANGULO;
SOUZA; KIM, 2006, p.165).
No que diz respeito ao turismo, em perodos de veraneio Pontal chega a
receber 400 mil visitantes (COLIT, 2008), sendo o municpio paranaense que mais
12
recebe turistas (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.156), a grande maioria
moradores da capital do Estado do Paran, Curitiba. Esta movimentao representa
grande impacto local, considerando que o municpio conta com uma estrutura urba-
na precria, inadequada at mesmo para atender os pouco mais de 21.000 habitan-
tes que l vivem.
Na regio de Pontal do Sul, considerada uma regio porturia no munic-
pio de Pontal, h canais escavados artificialmente com a presena de diversas mari-
nas, que chegam a abrigar mais de 1500 embarcaes (PIERRI; ANGULO; SOUZA;
KIM, 2006, p.161). O problema que este tipo de ocupao concorre com reas
ocupadas por populaes tradicionais gerando um contexto propcio a diversos tipos
de conflitos socioambientais e imobilirios.
A populao permanente registra o maior ndice de crescimento do litoral,
apresentando uma taxa mdia de 10,93% entre os anos de 1970 e 2000 (PIERRI;
ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.164). Este crescimento est relacionado com a
ocupao balneria, que acaba promovendo especulao imobiliria e implantao
de comrcio e servios ligados ao turismo, todavia, em contrapartida significativo o
crescimento da populao fixa de baixa renda (SAMPAIO, 2006, p.185).
H na regio vilas de pescadores, cuja estrutura social est relacionada a
uma economia pesqueira artesanal e industrial, agricultura itinerante, atividades re-
lacionadas ao turismo, produo e comrcio de artesanato. No ano de 2005 esta
populao foi estimada em 365 pessoas (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006,
p.153).
Tambm h na regio uma aldeia indgena Mby Guaran, a chamada al-
deia Sambaqui, que vive numa grande rea de Mata Atlntica e aguarda a conclu-
so do processo definitivo de demarcao de suas terras, fonte vital para as ativida-
des extrativistas, caa e pesca (GONALVES, 2011, p.29). Atualmente, a aldeia en-
frenta diversos problemas, dentre eles a falta de segurana. Segundo Gonalves:
[...] comum as mulheres da aldeia se esconderem nos matos beira da estrada sempre que percebem a aproximao de carros. Trata-se de uma cautela necessria pelo temor aos perigos que pessoas estranhas podem representar s mulheres da aldeia ao longo dos dez quilmetros de mata que precisam percorrer para chegar rodovia (GONALVES, 2011, p.30).
No que tange a economia, a regio enfrenta um problema, que parece
afetar o litoral paranaense como um todo. As atividades econmicas relacionadas ao
13
turismo, bem como as atividades do porto de Paranagu, cidade vizinha, no so
revertidas proporcionalmente em benefcios para a populao permanente (ESTA-
DES, 2003, p.39). Ainda, segundo Estades, a lgica econmica praticada na regio
acaba privilegiando setores externos:
[...] no caso do porto, aos produtores, exportadores e a todos os setores vinculados, de vrios estados; e no caso do turismo, alm dos setores econmicos que operam em nvel local, os beneficirios principais so os turistas, que pertencem classe mdia e alta, fundamentalmente curitibana. Nesse sentido, a populao permanente vive mais na expectativa do que vem de fora, que do que ela mesma pode gerar, o que em grande medida a deixa impotente para buscar caminhos de melhoria (ESTADES, 2003, p.3940, grifo nosso).
Portanto, a renda bsica da populao permanente est relacionada com
comrcio local que tem como alvo principal os turistas, mas por causa dos curtos
perodos de veraneio a movimentao econmica insuficiente para manter os cus-
tos anuais, compondo uma conjuntura que conspira contra a estabilidade e melhora
dos investimentos (ESTADES, 2003, p.34). Alm disso, grande parte do potencial
imobilirio do municpio marcado pela ociosidade, j que utilizado pelos veranis-
tas majoritariamente em pocas de temporada (SAMPAIO, 2006, p.170). Finalmen-
te, o servio pblico acaba sendo uma das poucas opes de trabalho na regio.
2.2 O PONTAL DO PR-SAL
Atualmente a regio de Ponta do Poo comea a receber investimentos
relacionados com a recente descoberta de jazidas de petrleo na camada Pr-Sal1.
Embora a estrutura viria, necessria para o transporte de mercadorias, esteja em
situao precria, o local uma rea muito favorvel para ocupao porturia pelo
seu grande calado natural (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.149). Neste
sentido, o governo do estado do Paran lanou o programa Pontal do Pr-Sal. Se-
gundo representantes do Conselho do Litoral, COLIT:
1 Segundo Gouveia (2010), as reservas de petrleo recentemente encontradas esto localizadas em
uma rea de 800 quilmetros de extenso que vai desde o estado do Esprito Santo at o de Santa Catarina e em profundidades que excedem sete mil metros com relao ao nvel do mar. Mesmo havendo reas ainda no identificadas, alguns campos j apresentam um potencial que pode dobrar o volume da atual produo nacional (GOUVEIA, 2010, p.30). Contudo, a explorao destas reservas requer altos investimentos econmicos e oferece inmeros desafios tecnolgicos e logsticos com alta probabilidade de riscos socioambientais.
14
O Pontal do Pr-Sal uma ao de articulao do Governo do Estado com os setores pblico e privado para colocar o Paran como um dos princi-pais fornecedores de materiais e servios de suporte explorao do pr-sal. O objetivo aliar o interesse do governo em atrair empreendimen-tos demanda de fornecedores nacionais de bens e servios da Petrobras para os prximos anos (COLIT, 2011, grifo nosso).
Com este incentivo, diversos investimentos esto sendo realizados na re-
gio. O grupo industrial talo-argentino Techint Engenharia e Construo (Figura 2),
presente no local desde a dcada de 1980, est agora retomando suas atividades,
aps um perodo de ociosidade, e est ampliaes de suas instalaes com o obje-
tivo inicial de produzir duas plataformas fixas de petrleo (COLIT, 2011). H previso
de que sejam lanados aproximadamente dez mil empregos diretos e indiretos com
expectativa de realizao de atividades, relacionadas com as demandas do Pr-Sal,
para os prximos 20 anos (EUSTQUIO, 2012).
J a empresa norueguesa Subsea 7, assinou um contrato de US$ 1 bi-
lho com a Petrobrs para a fabricao de dutos de ao necessrios explorao
das reservas martimas (AQUINO, 2011), chegou a comprar um terreno de 2.606
hectares2 na regio (ANTAQ, 2011), mas at o momento est impedida de operar no
local por falta de regularizao do licenciamento ambiental, as obras foram embar-
2 rea maior que a da Estao Ecolgica da Ilha do Mel, que possui 2.240 hectares (Decreto Estadu-
al, 1982), e da Estao Ecolgica do Guaragua, com 1.150 hectares (SIA, 2006), importantes reas de preservao na regio.
Figura 2: Canteiro de obras da Techint em 2006
Fonte: (DE PAULA, 2011).
15
gadas pelo Ministrio Pblico sob a percepo de que as atividades da empresa po-
deriam colocar em risco as comunidades tradicionais locais e as reservas de Mata
Atlntica da regio (Ministrio Pblico do Estado do Paran, 2011)3.
Alm disso, foram realizados os pedidos de licenciamento para a Constru-
tora Norberto Odebrecht S.A, que pretende construir um estaleiro, para a empresa
Melport Terminais Martimos, que intenciona construir um per de atracao e insta-
laes de caldeiraria e montagens mecnicas em ao para plataformas e equipa-
mentos navais (MENEZES, 2013), e para a construo do Porto de Pontal do Para-
n, que conta com recursos da iniciativa privada.
Toda esta movimentao vai de encontro a uma conjuntura complexa
presente na regio. Como explica Pierri:
[...] a anunciada instalao de terminais porturios em Pontal do Para-n criar uma confluncia local indita da atividade porturia e a turs-tica, cuja compatibilidade ser um grande desafio. Mas, independente-mente de como isso transite, pode-se afirmar que esse elemento iniciar, sem dvida, uma nova fase na configurao espacial e econmica do litoral (PIERRI; ANGULO; SOUZA; KIM, 2006, p.164165, grifo noso).
Resta-nos saber, em que medida as atividades realizadas sero reverti-
das em benefcios diretos para a populao, ou seja, quais as reais possibilidades
de desenvolvimento sustentvel local em longo prazo.
2.3 DELINEAMENTO DA PESQUISA
A rea diretamente afetada pelo programa Pontal do Pr-Sal envolve du-
as unidades especficas do municpio conhecidas como Ponta do Poo e Pontal do
Sul (Figura 3):
3 possvel que a nova regulamentao dos portos no Brasil permita a liberao da licena ambiental
para a implantao da Subsea 7 em Pontal (Correio Do Litoral, 2013).
16
Esta rea compreende os trechos conhecidos como: Ponta do Poo, Pon-
tal II, Marinas, Embarque Antigo, Praia Pontal do Sul. Na regio de Ponta do Poo,
h atividade porturia por causa do Porto Pontal e da Techint, nas marinas e na
praia de Pontal do Sul h atividade turstica intensa em perodos de veraneio, lem-
brando que ali est o principal ponto de embarque para a Ilha do Mel. Alm disso,
em todos estes locais, h atividades pesqueiras e tambm a via de acesso fluvial ao
porto de Paranagu, que apresenta alto fluxo de embarcaes. H tambm reas de
conservao de mata atlntica, o Centro de Estudos do Mar, da Universidade Fede-
ral do Paran, e a Escola Estadual Professora Sully da Rosa Vilarinho, que oferta
ensino fundamental e mdio para a populao local. Toda esta rea enfrenta diver-
sos tipos de problemas, como especulao imobiliria, urbanizao precria, polui-
o ambiental, conflitos entre moradores (COLIT, 2008). Isto posto, necessitamos de
uma metodologia que nos permita abordar sociologicamente o problema proposto
sem que percamos de vista toda a complexidade envolvida.
O estudo de problemticas relacionadas com a ideia de sustentabilidade
representa um grande desafio terico-metodolgico na medida em que envolve uma
compreenso acerca das complexas relaes entre indivduo, sociedade, natureza.
Isto significa que precisamos lidar com diversos fatores relacionados a aspectos
ambientais, sociais, econmicos, jurdicos, ticos. Neste caso, partimos da hipte-
se de que os fatores envolvidos interagem entre si sistemicamente, de modo
que todos afetam de algum modo e em alguma medida os demais. Pressupo-
Figura 3: Detalhe do Universo de Pesquisa.
Fonte: (COLIT, 2008).
17
mos, portanto, que a presena de fatores negativos pode comprometer a sustentabi-
lidade dos sistemas socioambientais locais em longo prazo, com efeito, precisamos
de uma metodologia de pesquisa que nos permita identificar estes fatores e suas
inter-relaes. Com base em estudos realizados anteriormente (DE BRITTO, 2011),
acreditamos que o Pensamento Sistmico Multimodal (PSM), desenvolvido pelos
pesquisadores Donald e Veronica De Raadt, com o objetivo especfico de tratar qua-
litativamente problemticas relacionadas com a ideia de sustentabilidade, pode ser
um ponto de partida vivel para a construo de uma abordagem sociolgica dos
diversos fatores e aspectos envolvidos no programa Pontal do Pr-Sal. Assim, nosso
primeiro objetivo ser o de avaliar o potencial que o PSM oferece para a interpre-
tao e avaliao sociolgica das estratgias de implantao de projetos de
impacto socioambiental no contexto dos atuais processos de desenvolvimento
local em Pontal do Paran. Para tanto, realizaremos um breve estudo sobre a ideia
de sustentabilidade, e alguns dos fatores e aspectos com ela relacionados, para que
possamos identificar os princpios epistemolgicos que devero compor nossa avali-
ao crtica do PSM.
Em seguida, ser fundamental tentar compreender, de forma preliminar,
quais fatores socioambientais, relacionados direta ou indiretamente ao pro-
grama Pontal do Pr-Sal, podem comprometer a sustentabilidade, em longo
prazo, da populao que vive nas regies de Ponta do Poo e Pontal II? Esta
pergunta servir como ponto de partida (QUIVY; VAN CAMPENHOUDT, 1992,
p.30) de nossa explorao emprica e, ao mesmo tempo, nos ajudar a avaliar o po-
tencial investigativo, analtico e sociolgico do PSM, que constitui nosso objetivo ini-
cial. Alm disso, interessa-nos, tambm, considerar as seguintes questes: a) como
os moradores locais percebem as mudanas que se lhes impem? b) quais fatores
socioambientais esto envolvidos nas dinmicas regionais de desenvolvimento e
como se relacionam entre si? c) h fatores que podem comprometer a sustentabili-
dade, em longo prazo, da regio estudada? Enfim, nesta fase exploratria, tenta-
remos perceber em que momento e onde os polticos, o bom senso popular e a pr-
tica malogram e, tambm, familiarizar-se com as pessoas e suas preocupaes
(DESLAURIERS; KRISIT, 2008, p.130).
Uma vez que o processo de implantao do programa Pontal do Pr-Sal
ainda se encontra em fase inicial, h, por um lado, a oportunidade de acompanhar-
18
mos criticamente o andamento das estratgias de desenvolvimento empreendidas
em suas diversas etapas, por outro, a identificao in loco de fatores que podem
comprometer a sustentabilidade dos sistemas socioambientais que constituem a re-
gio se torna mais difcil, pois h casos em que os impactos gerados por grandes
empreendimentos so percebidos apenas em longo prazo. Portanto, realizaremos
um levantamento preliminar de fatores relacionados com empreendimentos seme-
lhantes em outras regies e temporalidades4, de modo que possamos orientar nos-
sas primeiras exploraes empricas em Pontal de forma contextualizada.
2.4 JUSTIFICATIVA
A implantao do programa Pontal do Pr-Sal em Pontal do Paran se d
em meio a uma rea de intensa atividade porturia, turstica, e repleta de unidades
de conservao ambiental, formando uma conjuntura altamente complexa, que en-
volve a difcil inter-relao entre noes de conservao, modelos de desenvolvi-
mento, explorao petrolfera de alto risco, promoo de modelos societais basea-
dos em energias no renovveis e altamente poluentes, desenvolvimento sustent-
vel da populao local permanente em longo prazo. Neste sentido, uma reflexo cr-
tica acerca destas questes pode contribuir para o debate acerca das atuais estrat-
gias regionais, estaduais e nacionais de desenvolvimento sustentvel, indo, portan-
to, de encontro a uma demanda j consagrada pela Agenda 21. Alm disso, os re-
sultados finais desta pesquisa podem contribuir com processo de formulao de po-
lticas pblicas e de aes que possam beneficiar a populao local de Pontal do
Paran, j que, a partir de nossas observaes, recursos de diversas ordens, gera-
dos pelos grandes empreendimentos na regio, parecem no retornar de modo equi-
tativo para a populao local. Isto significa que, se o padro de desenvolvimento
atual continuar, possvel que haja impactos negativos sobre o turismo local, degra-
dao ambiental, gerao de novos bolses de pobreza. Esperamos, finalmente,
contribuir com alguns elementos importantes para o desenvolvimento terico da so-
ciologia e da epistemologia ambiental, uma vez que o tratamento terico destas
questes ainda representa um grande desafio graas complexidade envolvida.
4 Em nossa investigao, estas informaes sero utilizadas como relatos referenciais.
19
2.4.1 Escarabocho de uma Autoanlise: O Caminho At Pontal
O interesse pessoal envolvido nesta pesquisa faz parte de uma longa ca-
minhada de indagaes e descobertas. Como cristo protestante, muito me interes-
sa temticas que envolvem a relao entre f, cincia e sociedade, motivo pelo qual
acabei conhecendo a obra do filsofo cristo holands, ainda pouco conhecido no
Brasil, Herman Dooyeweerd (1894 -1977). Autor que a meu ver apresentou, desde a
dcada de 1930, ideias relevantes para pensarmos o que hoje chamamos de trans-
disciplinaridade e pensamento complexo.
Durante o curso de graduao em Cincias Sociais, realizado na UFPR,
desenvolvi sob a orientao do professor Dr. Dimas Floriani minha monografia de
concluso de curso com o tema: Dilogo de saberes e religio: uma reflexo episte-
molgica para a questo da sustentabilidade. Naquele trabalho, investiguei, a partir
da considerao do carter multidimensional do conceito de sustentabilidade, como
as propostas tericas de Edgar Morin (Pensamento Complexo), Enrique Leff (Racio-
nalidade Ambiental) e Herman Dooyeweerd (Filosofia da Ideia Cosmonmica), abor-
dam questes relacionadas temtica do dilogo de saberes. Foi ento que, duran-
te a defesa do trabalho, o professor Dr. Alfio Brandenburg, membro da banca exa-
minadora, ressaltou o desafio envolvido na tentativa de traduzir estas perspectivas
tericas de pensamento complexo em prticas sociolgicas de pesquisa emprica.
Desafio este que veio de encontro ao meu interesse de tentar avaliar criticamente a
aplicabilidade e a viabilidade do pensamento dooyeweerdiano, considerando seus
atuais desdobramentos tericos e empricos, para a pesquisa sociolgica emprica.
Outra importante questo, que percebi durante a elaborao deste traba-
lho de pesquisa, diz respeito relevncia desta investigao para a vida das pesso-
as que vivem e sentem os impactos socioambientais da indstria parapetrolfera.
Neste sentido, quais seriam as implicaes prticas de meu trabalho como cientista
social? Pensando numa cincia pertinente, como o produto de meu trabalho investi-
gativo e analtico poderia ser traduzido em melhoria de vida das pessoas afetadas
pela insustentabilidade em longo prazo dos atuais modelos de desenvolvimento local
praticados na regio? Questes que pretendo tratar, mas numa fase mais adiantada
desta investigao.
Destarte, este caminho at Pontal envolve o desafio de transpor a dis-
tncia entre questes filosficas e sociolgicas, e entre estas e a vida cotidiana, pr-
tica, dos pontalenses diante da atual conjuntura da regio.
21
3 A IDEIA DE SUSTENTABLIDADE
Atualmente, o termo sustentabilidade alvo de processos conturbados e
indefinidos de conceitualizao. Para muitos, a polissemia relacionada ao termo
promotora de ambiguidades e contradies, nossa hiptese, contudo, de que uma
distino entre as noes de ideia e conceito pode ajudar a dissipar esta confuso e
nos orientar de modo frtil, mas no isento de desafios, a uma reflexo epistemol-
gica capaz de identificar alguns elementos necessrios para a construo de uma
metodologia capaz de lidar com a complexidade envolvida em problemticas relaci-
onadas com a sustentabilidade.
Para tanto, realizaremos uma breve explorao da literatura especializada
identificando algumas dimenses e fatores relacionados com o contedo da ideia de
sustentabilidade, deixando de lado, para o momento, qualquer tentativa de mapear
exaustivamente toda a complexidade envolvida. Neste sentido, sero observadas as
seguintes etapas: a) apresentaremos um breve histrico da ideia de sustentabilida-
de; b) delinearemos uma distino entre ideia e conceito; c) exploraremos algumas
dimenses e fatores relacionados ao contedo da ideia de sustentabilidade e algu-
mas de implicaes epistemolgicas que possam nos orientar na escolha e utiliza-
o de uma metodologia apta a lidar com a sustentabilidade sem que percamos de
vista a plenitude de sua complexidade.
3.1 BREVE HISTRICO
Segundo o pesquisador alemo Ulrich Grober, o termo alemo nachhal-
tende se refere de maneira muito prxima ao que hoje chamamos de sustentabilida-
de, ele foi utilizado pela primeira vez pelo alemo Hans Carl von Carlowitz (1645-
1714) em seu livro Sylvicultura Oeconomica, um manual de economia florestal publi-
cado em 1713. Preocupado com o descontrole na explorao de madeira, ele cha-
mou a ateno para a necessidade de uma perspectiva administrativa de longo pra-
zo de modo que o processo de crescimento e corte das rvores se desse de forma
22
equilibrada, preservando, assim, a utilizao do recurso (GROBER, 2012). Nas pa-
lavras de Carlowitz:
Como tal, uma Conservao e cultivo de madeira podem ser providenciados de modo a tornar possvel um uso contnuo, estvel e sustentvel ("eine continuirliche bestndige und nachhaltende Nutzung"), como esta uma necessidade indispensvel, sem a qual o pas no pode manter sua Exis-tncia (VON CARLOWITZ, 2000 apud GROBER, 2012, p.8384, traduo nossa).
Mas foi a partir da dcada de setenta que a utilizao do termo comeou
a ganhar popularidade, at ento sem precedentes. Em 1971, a Organizao das
Naes Unidas realizou o encontro de Founex para discutir o atual modelo de cres-
cimento econmico, que caminhava juntamente com a degradao dos recursos na-
turais (SACHS, 2002, p.48). Na sequncia, a chamada Conferncia de Estocolmo,
realizada em 1972, teve por objetivo discutir a questo de forma mais ampla. Numa
tentativa de resposta aos desafios lanados naquela ocasio surge o conceito de
ecodesenvolvimento, proposto por Maurice Strong, ento diretor executivo do re-
cm-criado Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que pos-
teriormente ganhou formulao terica atravs do economista francs, radicado no
Brasil, Ignacy Sachs (PAULISTA; VARVAKIS; MONTIBELLER-FILHO, 2008; DA
VEIGA, 2005; LEFF, 2009). Desde ento, foram realizadas diversas outras confe-
rncias5, incluindo a RIO-926 e a RIO +20, que estimularam importantes discusses
sobre o tema em nvel nacional.
H hoje percepes diversas acerca da existncia e da dimenso do pro-
blema ambiental e o conceito, que passou a ser chamado desenvolvimento susten-
tvel, ou, simplesmente, sustentabilidade, adquiriu alta carga semntica e diversas
aplicaes e propostas que transcendem a questo ambiental, formando um espec-
tro que vai desde a elaborao terico-cientfica de inmeras disciplinas, passa pela
propaganda poltica, at a sua utilizao como estratgia de marketing para obten-
o de recursos financeiros. Todavia, segundo o socilogo brasileiro Antnio Carlos
Diegues, a questo de fundo relacionada com a sustentabilidade, ou conceitos cor-
5 Para um painel com uma relao das principais conferncias realizadas sobre desenvolvimento
sustentvel, e suas principais deliberaes, veja Brandon e Lombardi (2011, p.711). 6 Segundo Brandenburg (2005), por exemplo, aps a ECO-92 a questo ambiental ganhou relevncia
nas discusses sobre a agricultura no pas, levando diversos projetos de agricultura convencional "a orientar-se pela noo de sustentabilidade" (BRANDENBURG, 2005, p.53).
23
relatos - como o de sociedades sustentveis, em seu caso especfico - permanece
vlida, afinal:
Como construir sociedades ecologicamente e socialmente justas? [...] Com opes econmicas e tecnolgicas diferenciadas, voltadas principalmente para o desenvolvimento harmonioso das pessoas e de suas relaes com o conjunto do mundo natural (DIEGUES, 1992, p.29).
Para Sachs, o notvel que desde as conferncias da dcada de 1970, a
sustentabilidade se consolidou cada vez na agenda internacional promovendo uma
considerao global acerca da questo ambiental e, com ela, consequncias ticas
e epistemolgicas de longo alcance, as quais influenciaram o pensamento sobre o
desenvolvimento (SACHS, 2002, p.49, grifo nosso).
3.2 'IDEACIONANDO' A SUSTENTABILIDADE
Devido sua atual influncia, h quem considere a sustentabilidade como
uma ideia-fora (KANASHIRO, 2010; BRUNSTEIN; RODRIGUES; SCARTTEZINI,
2012; TEODSIO; BARBIERI; CSILLAG, 2006). O termo ides-forces, foi cunhado
pelo filsofo francs Alfred Fouille (1838-1912) com base na hiptese de que algu-
mas ideias possuem tal capacidade de penetrao na conscincia humana que al-
canam a mais ntima esfera da vontade (GOOD, 1993, p.8, traduo nossa), moti-
vando-a e inspirando-a de tal forma que a conduz, assim, ao no mundo real.
Elas possuem, portanto, um carter inspiracional diferenciado. De acordo com Mora
e Terricabras, para Fouille a idia no s pode ter uma fora, mas pode ser ela
mesma uma fora (MORA; TERRICABRAS, 1994, p.1419, grifo do autor). Neste
sentido, explica o pesquisador Robert Good, elas podem ser teis como uma ferra-
menta de anlise psicolgica, mas duvidosas se elevadas ao status de realidade
ontolgica (GOOD, 1993, p.9). No presente trabalho, portanto, compreendemos as
ideias, stricto sensu, como aquelas formas do pensamento atravs das quais nos
aproximamos e que transcendem os limites de um alcance conceitual (STRAUSS,
2009a, p.195). Neste sentido, ideias so mais vagas e mais abrangentes que concei-
tos, com efeito, nossa hiptese de que o tratamento da sustentabilidade como
ideia pode dissipar contradies e ambiguidades que surgem nas diversas tentativas
de conceitualiz-la, liberando, assim, seu potencial heurstico, proporcionando de
24
modo frtil, num segundo plano, operacionalizaes tericas e empricas a partir de
seu contedo. Deste modo, para o momento, interessa-nos mais explorar sua
abrangncia que delimit-la de modo exclusivo.
Qual ento seu contedo? No incio da dcada de noventa, o pesquisa-
dor indiano Sharachchandra M. Ll observou que o termo sustentabilidade pode
assumir conotaes sociais, quando se refere sustentao da base social da vida
humana (LL, 1991, p.608, traduo nossa); ecolgicas, quando diz respeito
sustentao da base ecolgica da vida humana (LL, 1991, p.608, traduo nos-
sa); ou, ainda, num sentido literal significar a sustentao de qualquer coisa (LL,
1991, p.608, traduo nossa). Ora, daremos sequencia a nossa explorao conside-
rando exatamente esta ltima conotao, a mais abrangente. Segundo Ll, qual-
quer discusso sobre sustentabilidade deve primeiro responder s questes: Sus-
tentar o que? Para Quem? Por quanto tempo? (LL, 1991, p.615, traduo nos-
sa). Com base neste raciocnio, acrescentamos: Quais fatores e dimenses esto
envolvidos? o que nos propomos a explorar agora.
3.3 DIMENSES E FATORES ENVOLVIDOS
Como vimos, no h consenso acerca de um conceito nico para a ideia
de sustentabilidade, tambm no h estratgia exclusiva para alcan-la e, tampou-
co, acordo sobre a percepo do real impacto causado pela degradao do meio
ambiente em nvel global. Todavia, parece no haver dvidas de que modelos de-
senvolvimentistas que visam apenas crescimento econmico so confrontados com
o esgotamento de recursos naturais necessrios a produo, altos nveis de polui-
o, intensificao das desigualdades sociais (DE SOUSA SANTOS, 2005, p.56).
H quem se refira a atual situao como resultado de uma crise mltipla, cuja di-
menso se traduz em tenses que afetam diversas reas da vida humana e dos
ecossistemas que as fundamentam (COMPAS, 2007, p.53; MORIN, 1977, p.56).
Segundo Leff, a problemtica ambiental fruto de uma crise de civilizao: da cultu-
ra ocidental; da racionalidade da modernidade; da economia do mundo globalizado
(LEFF, 2006, p.15). Ela consequncia de uma forma de pensar que exclui nature-
za, cultura, subjetividade, de seu ncleo duro (LEFF, 2006, p.263), e que abrange
25
tanto a morte entrpica do planeta quanto a simblica da humanidade (LEFF, 2006,
p.249).
Portanto, o reconhecimento de que os atuais modelos de produo preci-
sam incorporar princpios de preservao de recursos naturais para as geraes
atuais e futuras importante, e quanto a isso parece haver algum consenso
(PAULISTA; VARVAKIS; MONTIBELLER-FILHO, 2008; SACHS, 2004, 2002; OLI-
VEIRA, 2006). Mas, necessrio agregar a isto diversas outras dimenses e fatores
(LL, 1991, p.618). Partindo-se, ento, de uma ideia de sustentabilidade que en-
volva desenvolvimento econmico fundamentado em recursos ambientais renov-
veis, diversas propostas de incluso de outras dimenses e fatores so apresenta-
das como pertinentes. Chamando ateno para a relevncia intrnseca da dimenso
cultural, Enrique Leff argumenta que:
A sobredeterminao que exerce a dinmica do capital sobre a transforma-o dos ecossistemas e a racionalidade do uso dos recursos naturais est sempre condicionada por prticas culturais de aproveitamento dos recursos que medeiam as inter-relaes entre os processos ecolgicos e os pro-cessos histricos (LEFF, 2009, p.98).
Leff tambm ressalta a importncia da dimenso tica, estruturada em
torno dos princpios de um saber ambiental, cujo objetivo deve ser o de promover a
construo de um conhecimento que viabilize a abordagem das inter-relaes entre
ordem natural e simblica. Segundo ele, esta tica pode orientar a construo da
sustentabilidade instaurando um dilogo transdisciplinar de saberes fundamentado
na dialgica da outridade7, que contempla diferentes formas de significar e de dar
valor s coisas do mundo (LEFF, 2006, p.249).
No mesmo sentido, Sachs sugere a importncia das dimenses social,
cultural, ecolgica, ambiental, territorial, econmica, poltica nacional e internacional,
cada qual com diversos fatores a elas relacionados, como, por exemplo, distribuio
justa de renda, equilbrio entre tradio e inovao, utilizao limitada de recursos
no renovveis, respeito capacidade de autodepurao dos ecossistemas, supe-
rao de disparidades inter-regionais, desenvolvimento intersetorial equilibrado, co-
eso social, gesto do patrimnio global (SACHS, 2002, p.8588). Segundo ele, es-
7 Leff define a outridade como atitude de reconhecimento e respeito pelo outro, o absolutamente ou-
tro. Neste caso, o prprio ambiente percebido como um outro complexo, composto pela ordem tanto do real quanto do simblico (LEFF, 2006, p.293). Este conceito de outridade se baseia na noo de alteridade desenvolvida pelo filsofo Emanuel Lvinas.
26
tas dimenses e fatores compem trs pilares do desenvolvimento sustentvel, a
relevncia social, a prudncia ecolgica e a viabilidade econmica (SACHS, 2002,
p.35).
No caso especfico da agricultura a sustentabilidade envolve fatores como
otimizao da produo com reduo de insumos qumicos, retorno adequado aos
produtores, satisfao das necessidades humanas de alimentao e renda, atendi-
mento das necessidades das famlias produtoras (EHLERS, 1996, p.112). Alm dis-
so, necessrio considerar o controle da eroso de solos, a rotao de culturas, a
integrao da produo animal e vegetal e a busca por novas fontes de energia
(EHLERS, 1996, p.112).
Para o IBGE (2004), necessrio incluir a dimenso institucional em que
se do as articulaes polticas necessrias implantao das solues demanda-
das pela questo. Outros apontam a importncia das dimenses legal e psicolgica
(PAULISTA; VARVAKIS; MONTIBELLER-FILHO, 2008), da tica e da cidadania (DE
RAADT, 2002), espacial e geogrfica - que contabilizam as disparidades socioeco-
nmicas entre pases dos hemisfrios norte e sul - alm da importncia da educao
e da observao dos direitos humanos (UNESCO, 1999). Aps considerar o trabalho
de diversos autores, a pesquisadora italiana Patrizia Lombardi afirma que a susten-
tabilidade, em meio a muitos outros fatores, envolve:
Perspectiva de futuro; equilbrio e iseno de conflito; equidade; solidarie-dade e compartilhamento; oportunidades iguais para todos (incluindo em-pregabilidade); democracia e participao; regulamentaes e gerencia-mento; direito de posse; beleza; estilo arquitetnico; carter artstico e signi-ficado; eficincia, poder de compra; utilidades e funcionalidade; pluralidade e coeso (sociofilia); garantia; segurana; privacidade; comunicao e rede; colaborao; patrimnio cultural e conservao; tecnologia e mudana; di-versidade; diversidade funcional; flexibilidade; adaptabilidade; educao e conhecimento; sade e higiene; vitalidade; ambientalismo; prosperidade; re-cursos naturais; viabilidade; transporte; mobilidade; acessibilidade; disposi-o e forma; densidade; e questo ecolgica (BASDEN; LOMBARDI, 1997, p.477, traduo nossa).
Segundo os pesquisadores Donald e Veronica De Raadt, a sustentabili-
dade envolve necessariamente o tratamento de questes normativas complexas,
afinal: o que uma boa comunidade? Que tipo de pessoas devemos ser? O que de-
ve ser feito, ou no, com nossas vidas e o ambiente no qual vivemos? De que ma-
neira uma comunidade sustentvel deve servir a seus moradores de modo que, co-
mo retorno, estes possam nela trabalhar e desenvolv-la? (DE RAADT, 2002, p.4;
27
DE RAADT, 2000, p.18). Para Sachs, por exemplo, a questo ambiental envolve o
imperativo tico (SACHS, 2002, p.67, grifo nosso), que implica em respeito e con-
servao da diversidade da natureza, alm de solidariedade sincrnica e diacrnica,
para com as geraes atuais e futuras (SACHS, 2002, p.67). Neste caso, quais pol-
ticas pblicas devem ser estabelecidas para que os objetivos desejados sejam al-
canados? No que tange os agentes sociais, quais mudanas comportamentais e
ticas so necessrias? Neste sentido, o pesquisador argentino Francisco Casiello
refora a importncia do modificar o objeto de estudo (CASIELLO, 2011, p.24, tra-
duo nossa), considerando que uma importante etapa da pesquisa o ingresso no
terreno poltico.
H tambm quem chame ateno para a relevncia da dimenso espiri-
tual e humana (COMPAS, 2007), que englobam crenas religiosas e outros fatores
normativos que variam em sua relao direta com distintas vises de mundo. Se-
gundo Leff, tradies, mitos, ritos, religio, fundamentam princpios ticos e valores
que de maneira complexa fornecem coerncia e sentido s diferentes formas de
organizao cultural, que, por sua vez, orientam sistemas produtivos e tecnolgicos
(LEFF, 2006, p.327; LEFF, 2009, p.99). Esta orientao, portanto, pode promover,
de modo direto ou indireto, a utilizao de recursos socioambientais de modo sus-
tentvel ou no. Com base nessa percepo, a pesquisadora holandesa Martine
Vonk (2012) conduziu uma pesquisa em meio a comunidades crists Beneditinas,
Amish, Franciscanas, Huteritas, e identificou valores como vida comunitria, estabili-
dade, moderao, humildade, ritmo de vida e reflexo. Sua concluso de que em-
bora no haja relao direta entre estes valores e a formao de hbitos promotores
de baixo impacto ambiental, eles seguramente se convertem em fatores como foco
em qualidade e no quantidade, mudana reflexiva e valorizao da vida comunit-
ria - em detrimento do individualismo contemporneo, que podem ser incorporados
ideia de sustentabilidade com o objetivo de promover diretamente melhorias na qua-
lidade de vida. Em ltima instncia, as crenas religiosas corroboram para que ind-
genas8, cristos, budistas, muulmanos, humanistas seculares, ateus9, percebam e
8 Fernandes (2003), por exemplo, apresenta uma breve considerao sobre a cultura indgena Kain-
gang e o modo como sua relao com a natureza determinada por sua mitologia. Leff, tambm cita princpios fundamentados em crenas religiosas compartilhados pelas etinias Mapuche, Guarani, Maia (LEFF, 2009, p.306).
28
construam relaes entre natureza e sociedade de modo distinto, portanto indis-
pensvel considera-las criticamente em meio aos demais fatores que compem a
sustentabilidade. Um exemplo disso a realizao de diversas conferncias interna-
cionais voltadas para a discusso da questo da sustentabilidade e da relao entre
diversas religies e ecologia (MAANEIRO, 2011, p.186188). Mesmo assim, se-
gundo o antroplogo americano Clifford Geertz, a relevncia da religio muitas ve-
zes negligenciada no estudo e compreenso da sociedade em seus conflitos e
problemas (GEERTZ, 2001)10.
3.4 IMPLICAES EPISTEMOLGICAS
Focalizaremos, agora, algumas implicaes epistemolgicas envolvidas
no tratamento terico das diversas dimenses e fatores envolvidos na ideia de sus-
tentabilidade. Para tanto, realizaremos uma breve reflexo sobre: i) a relao socie-
dade-natureza; ii) a necessidade de uma abordagem qualitativa da sustentabilidade;
iii) a proposta da transdisciplinaridade; iv) a questo das origens; v) e, finalmente, a
apresentao de um princpio epistemolgico que chamaremos de complexidade-
sustentvel.
3.4.1 Sociedade-Natureza
Em suas obras, autores clssicos da sociologia como Marx, Durkheim e
Weber, no abordaram stricto sensu a questo ambiental presente na relao socie-
dade-natureza, tema fundamental para a compreenso da sustentabilidade. bvio
que esta problemtica no fazia parte da agenda cientfica, poltica, social, econmi-
ca, do contexto histrico em que viveram, todavia os pressupostos que eles utiliza-
ram em suas teorias geraram implicaes para o tratamento das especificidades
9 Pressupomos aqui que uma crena na no existncia, ou irrelevncia, de Deus qualitativamente
indistinguvel de uma crena religiosa, constituindo-se, com efeito, numa crena contedo negativo. 10
O tratamento terico da religio nas cincias sociais, entretanto, envolve alguns desafios. No caso de uma antropologia da religio, por exemplo, h logo de incio uma questo metodolgica importan-te, afirma a pesquisadora brasileira Rita Segato. Ao lanar mo de metodologias que procuram relati-vizar a experincia religiosa, na tentativa de compreend-la, a antropologia se afasta de seu objeto de pesquisa na medida em que a crena religiosa percebida e vivida como um absoluto pelos sujeitos pesquisados (SEGATO, 1992).
29
desta relao no contexto em que vivemos hoje. H uma importante questo aqui,
pois tanto no materialismo histrico de Marx, quanto no positivismo de Durkheim e,
ainda, na sociologia compreensiva de Weber, o que se percebe, de modo geral, a
manuteno de dicotomias como agncia/estrutura, indivduo/sociedade, socieda-
de/natureza. O problema que este legado terico foi herdado, com suas riquezas e
limitaes, pelos pensadores posteriores a eles. Segundo o socilogo alemo Niklas
Luhmann, a teoria sociolgica contempornea se encontra em crise, pois at os dias
de hoje os autores clssicos continuam a ser referncia fundamental. Para ele, isto
pode indicar um esgotamento da sociologia nestes autores (LUHMANN, 2011,
p.35)11. Para o socilogo ingls Anthony Giddens, atualmente a sociologia est divi-
dida entre teorias objetivistas ou hermenuticas (GIDDENS, 2003).
Para o socilogo brasileiro Dimas Floriani, uma melhor abordagem da
sustentabilidade envolve o desenvolvimento de uma epistemologia socioambiental,
que seria responsvel pelo tratamento:
Das condies de produo e de acesso ao conhecimento, em territrios de fronteira demarcados pela existncia de objetos complexos, que exigem uma atitude deliberada na formulao e no uso de diversos conhecimentos (cientficos e culturais) para pensar e agir no domnio da relao sociedade-natureza (FLORIANI, 2009, p.12).
Isto implica uma sociologia que supere a dicotomia sociedade/natureza,
contemplando suas inter-relaes. Neste caso, necessrio uma "reconstituio da
trajetria terica e metodolgica dessa sociologia especial, por meio de um dilogo
renovador entre cincias naturais e sociais" (FLORIANI, 2010, p.148).
3.4.2 Uma Abordagem Qualitativa
O tratamento terico da sustentabilidade requer metodologias capazes de
incorporar uma abordagem qualitativa das dimenses e fatores envolvidos. Todavia,
isto no significa, de modo algum, o estabelecimento de uma contraposio entre
nmeros e letras (PIRES, 2008, p.49), entre objetivismo e hermenutica. Segundo
Pires (2008), a natureza dos dados que pode ser quantitativa ou qualitativa. Neste
11
Mesmo se esforando para desenvolver uma nova perspectiva sociolgica, o prprio Luhmann parece no ter conseguido se desvencilhar da limitao analtica presente na dicotomia socieda-de/natureza. Segundo ele, tudo o que se relaciona com os problemas ecolgicos se reduz comun i-cao (LUHMANN, 2011, p.99).
30
sentido, tanto a preciso numrica quanto a descritiva podem ser utilizados como
instrumentos de aferio, ambos podem ser tratados e organizados dentro de uma
perspectiva epistemolgica que privilegie a quantidade ou a qualidade dos dados
obtidos. Isto significa que at mesmo entrevistas abertas e observaes participan-
tes podem ser tratadas de modo quantitativo.
A abordagem qualitativa importante na medida em que permite uma
"construo progressiva do prprio objeto de investigao" (PIRES, 2008, p.89) e,
com efeito, viabiliza uma percepo mais sutil de contextos complexos, pois possibi-
lita a utilizao combinada de diferentes tcnicas de coleta de dados durante o pro-
cesso de pesquisa. Deslauriers e Krisit (2008), concordam que a abordagem quali-
tativa permite a explorao e o aprofundamento de fenmenos complexos identifi-
cando sujeitos, prticas, processos organizacionais envolvidos. Neste caso, ela
permite uma avaliao da dimenso poltica envolvida e uma explicitao tanto dos
sujeitos pesquisados quanto as intenes do prprio pesquisador, dando conta tan-
to do objeto vivido, como do objeto analisado (DESLAURIERS; KRISIT, 2008,
p.131). Em suas palavras:
Sua proximidade ao campo no qual se tomam as decises e onde se viven-ciam as repercusses regionais, familiares e individuais das polticas sociais globais; sua capacidade de considerar os diferentes aspectos de um caso particular e relacion-los ao contexto geral; sua capacidade de formular proposies ligadas ao e prtica. Essas vantagens fazem com que a pesquisa qualitativa seja cada vez mais utilizada, quando se trata de anali-sar as polticas sociais e avaliar seus efeitos concretos (DESLAURIERS; KRISIT, 2008, p.131).
Deste modo, uma abordagem qualitativa abre inmeras possibilidades de
investigao da sustentabilidade e viabiliza a considerao da voz dos diversos
agentes envolvidos em conjunto com as percepes dos prprios investigadores.
3.4.3 O Dilogo de Saberes
Dado o carter multidimensional da sustentabilidade e o fato de que traz
em seu corolrio a demanda por um novo modelo de sociedade, fica clara a neces-
sidade de um dilogo de saberes, que, por sua vez, requerem novos paradigmas
epistemolgicos que possam fundamentar uma melhor compreenso das dimen-
31
ses, fatores e inter-relaes envolvidos e que sejam capazes de fundamentar inter-
venes sociais mais eficazes.
Segundo De Raadt (2000), a lei da complexidade, desenvolvida por W.
Ross Ashby a partir de seus estudos sobre a ciberntica (ASHBY, 1970), aponta que
problemas complexos requerem solues complexas. Portanto, todo sistema deve,
da maneira mais prxima possvel, encarar suas incertezas ambientais com um
montante equivalente de informao se quiser permanecer vivel (DE RAADT,
2000, p.23, traduo nossa). Para Lombardi, no basta aqui um esforo de compila-
o de ideias e teorias com pouca fundamentao terica e ontolgica, "precisamos
de um modelo e mecanismo que traga unidade dentro da diversidade" (BASDEN;
LOMBARDI, 1997, p.477, traduo nossa). Do mesmo modo, Leff argumenta que:
A logstica do desenvolvimento sustentvel vem sendo aplicada como uma ars combinatria, numa tentativa de reintegrar partes dissociadas e frag-mentadas do corpo social, sem um fundamento terico sobre as razes on-tolgicas, epistemolgicas e ticas dessa crise da humanidade (LEFF, 2006, p.348).
Esta integrao disciplinar requer, portanto, um autoconhecimento do co-
nhecimento cientfico em que pese a compreenso da razo que reconhea a exis-
tncia de fenmenos que so ao mesmo tempo irracionais, racionais, a-racionais ou
supra-racionais (FLORIANI, 2006, p.71). Estas questes caracterizam a necessida-
de de teorias que viabilizem no s um dilogo disciplinar, mas de saberes, conside-
rando que podem incluir e mesmo transcender o conhecimento disciplinar. Uma vez
que a sustentabilidade tambm est relacionada a um problema do conhecimento
(LEFF, 2006, p.288), epistemologias fragmentrias e assentes em velhas dicotomias
como sociedade/natureza, cincia/valores, precisam necessariamente ser supera-
das. Para Edgar Morin:
O problema da complexidade tornou-se uma exigncia social e poltica vital no nosso sculo: damo-nos conta de que o pensamento mutilante, isto , o pensamento que se engana, no porque no tem informao suficiente mas porque no capaz de ordenar as informaes e os saberes, um pensa-mento que conduz a aces mutilantes (MORIN, 1983, p.14).
Segundo Leff, a partir dos anos 1960, a interdisciplinaridade e as teorias
de sistemas apareceram como novas metodologias para articular um conhecimento
fracionado do mundo (LEFF, 2006, p.347). Sachs, afirma que o tratamento da ques-
to ambiental envolve o que ele chama de paradigma do biocubo, bio-bio-bio, ou
32
seja, requer uma abordagem holstica e interdisciplinar que procura integrar saberes
presentes na relao biodiversidade-biomassa-biotecnologia (SACHS, 2002, p.33).
Noo que apenas confirma o desafio epistemolgico envolvido.
Pesquisando a questo do dilogo de saberes, Basarab Nicolescu obser-
va que as cincias vivem num processo de babelizao (NICOLESCU, 1999, p.44,
grifo nosso), que dificulta sobremaneira um fsico terico de partculas dialogar seri-
amente com um neurofisiologista, um matemtico com um poeta, um bilogo com
um economista, um poltico com um especialista em informtica (NICOLESCU,
1999, p.44). Segundo ele, foi essa necessidade de laos entre as disciplinas que
deu a luz, na metade do sculo XX, pluridisciplinaridade, que proporciona o estudo
de um objeto especfico de uma disciplina por vrias outras, e a interdisciplinaridade,
cuja proposta focaliza a transposio de mtodos entre disciplinas. O problema
que em ambas permanecem as barreiras disciplinares, por isso ele prope o que
chama de transdisciplinaridade, que define da seguinte maneira:
Como o prefixo trans indica, diz respeito quilo que est ao mesmo tempo entre as disciplinas, atravs das diferentes disciplinas e alm de qualquer disciplina. Seu objetivo a compreenso do mundo presente, para qual um dos imperativos a unidade do conhecimento (NICOLESCU, 1999, p.46).
De modo geral, h atualmente diversos autores que reconhecem, a seu
modo, a importncia da transdisciplinaridade para a abordagem de temticas relaci-
onadas com a sustentabilidade (LEAVY, 2011, p.4950; HADORN; POHL; SHE-
RINGER, 2009). No Paran, a noo de olhar transdisciplinar (ITCG, 2008, p.41) j
utilizada, pelo menos como terminologia que compe a proposta de abordagem do
ITCG complexidade da dinmica fundiria e agrria brasileira (ITCG, 2008, p.41).
Todavia, de modo geral, assim como ocorre com a ideia de sustentabilidade, ainda
no h consenso quanto sua definio e estratgias de operacionalizao (HA-
DORN; POHL; SHERINGER, 2009).
3.4.4 A Questo das Origens
A proposta do dilogo de saberes, considerada principalmente desde a
perspectiva da transdisciplinaridade, traz em seu corolrio a questo da unidade do
conhecimento, que por sua vez se relaciona, em ltima instncia, com outro debate -
33
ao mesmo tempo, importante, complexo e delicado - que trata da origem da diversi-
dade e coerncia presente na realidade. Este debate, todavia, no recente. Por
volta de 1897, por exemplo, o telogo e filsofo holands Abraham Kuyper j argu-
mentava:
Suponha que voc tenha sido bem sucedido em obter um conhecimento adequado de todas as partes do cosmos, o produto destes resultados no te daria um conhecimento apropriado do todo. O todo sempre algo dife-rente da combinao de suas partes. Primeiro por causa da relao orgni-ca que mantm as partes unidas; mas muito mais por causa das questes completamente novas que a combinao do todo apresenta: questes quanto origem e o fim do todo; questes quanto s categorias que gover-nam o objeto em sua reflexo na sua conscincia; questes quanto ao ser absoluto, e quanto ao que o no-cosmos (KUYPER, 2008, p.80, traduo nossa, grifo nosso).
Deste modo, uma compreenso mais acurada do todo na sua relao
com as partes, e que envolve, podemos inferir, o prprio esforo de fundamentao
de um dilogo de saberes a partir da noo de transdisciplinaridade, evoca tambm
questes acerca da prpria origem da realidade e sua diversidade, tocando igual-
mente em propostas cientficas e crenas religiosas, apontando, mais uma vez, para
a relevncia da religio na discusso de questes relacionadas com a sustentabili-
dade. O que aumenta, ainda mais, a complexidade envolvida.
Mais recentemente, a importncia da questo das origens tambm foi
contemplada por Edgar Morin. Segundo ele, a questo da cosmognese se apresen-
ta como questo-chave da gnese do mtodo (MORIN, 1977, p.48).
3.4.5 Complexidade-Sustentvel
Alm da questo das origens, do ponto de vista epistemolgico podemos
dizer que a ideia de sustentabilidade pressupe, tambm, uma ideia de totalidade,
j que, como vimos, a diversidade que ela contempla no pode ser considerada de
modo fragmentado, pois envolve necessariamente complexas relaes de interde-
pendncia entre diversas dimenses e fatores. Outrossim, a ideia de totalidade
pressupe uma ideia de coerncia, afinal como so concebidas as relaes entre
estes fatores e dimenses de modo que possam constituir uma totalidade?
Para o filsofo holands Herman Dooyeweerd (1894-1977), as ideias de
origem, totalidade e coerncia compem o que ele chama de Ideia-Transcendental-
34
Bsica, ou, simplesmente, Ideia-Base (ground-idea). Segundo ele, a forma como o
contedo destas ideias compreendido determina o ponto de partida de qualquer
sistema de pensamento (DOOYEWEERD, 1984a, p.95). Portanto, elas se constitu-
em diretamente, de modo implcito ou explcito, em pressupostos bsicos de qual-
quer filosofia e, por sua vez, so abordadas indiretamente, e em alguma medida,
implicitamente ou explicitamente, por toda e qualquer cincia especial. No por
menos que discusses sobre sustentabilidade sejam to carregadas de ambiguida-
des e contradies, elas envolvem pressupostos que compem, juntamente com
outros elementos, diferentes contedos atribudos Ideia-Base. Estas discusses,
portanto, apenas refletem a complexidade e os desafios presentes na prpria hist-
ria do pensamento humano.
Por estarem intimamente relacionadas, as ideias de totalidade, coerncia
e origem formam, juntamente com a ideia de sustentabilidade, um composto cujo
tratamento terico requer a elaborao de uma epistemologia capaz de dar conta de
uma totalidade, compreendida no contexto de sua origem, cuja sustentao en-
volve complexas relaes sistmicas de interdependncia e coerncia, que em lon-
go prazo podem corroborar ou no com a sustentabilidade das diversas dimenses
e fatores que a constituem como totalidade. Princpio epistemolgico que chamare-
mos de complexidade-sustentvel, que basicamente incorpora a ideia de susten-
tabilidade noo de Ideia-Base.
3.5 CONSIDERAES E APONTAMENTOS
At aqui, observamos que no contexto histrico contemporneo a susten-
tabilidade se estruturou, de modo geral, no estabelecimento de princpios para um
desenvolvimento econmico fundamentado em recursos naturais renovveis. A par-
tir da, outras dimenses e fatores pertinentes, que envolvem necessariamente di-
versos saberes, foram identificados e incorporados. Neste sentido, parece-nos que a
ideia de sustentabilidade se tornou excessivamente ampla para ser delimitada em
forma de um nico conceito, mas adequadamente abrangente para orientar proces-
sos de reflexo a partir da operacionalizao de seu contedo. Esta caracterstica,
portanto, constitui sua virtude. A mirade de reflexes, discusses, conceitualiza-
35
es, movimentos sociais, pesquisas, que, de algum modo, se orientam por ela ilus-
tra seu imenso potencial heurstico. Se no plano da ideia est a abrangncia, no do
conceito est a delimitao, quanto mais delimitada for aquela, menos possibilidades
de diversificao restam para este.
Vale ressaltar, entretanto, que conceitos orientados pela ideia de susten-
tabilidade parecem herdar em alguma medida a complexidade que a caracteriza,
este pode ser um motivo de tantas ambiguidades e contradies encontradas neles -
questo que precisa ser devidamente tratada, avaliando-se, para tanto, cada caso
especfico individualmente. Com efeito, tais conceitos parecem alcanar um grau de
operacionalizao mais alto na medida em que so mais bem definidos, todavia pa-
rece ser justamente a preservao do carter irredutvel da ideia-complexa de sus-
tentabilidade que torna frtil tanto ela quanto os conceitos que orienta. Diante deste
desafiador universo de possibilidades, recebero os louros as propostas tericas e
empricas que oferecerem as melhores conceitualizaes, cujos contedos sejam
devidamente operacionalizados por meio de aplicaes analticas, empricas e prti-
cas.
No momento, interessa-nos saber se o PSM capaz de incorporar os
princpios presentes na ideia-complexa de sustentabilidade de modo que possamos
construir um modelo de anlise dos impactos socioambientais envolvidos nos atuais
processos de desenvolvimento local atualmente em andamento em Pontal. No pr-
ximo captulo, ento, abordaremos como os dados empricos preliminares sero co-
letados e tratados segundo princpios fundamentados no PSM, para que, em segui-
da, possamos construir nosso modelo de anlise.
4 MTODO PARA COLETA E TRATAMENTO DE DADOS
Trataremos agora das regras para coleta e tratamento de dados bibliogr-
ficos, documentais e empricos, que sero utilizados na construo do modelo ana-
ltico que servir de base para nossa reflexo sociolgica.
4.1 COLETA DE DADOS
A coleta de informao se dar a partir de diversas fontes que sero
agrupadas em trs categorias (CASIELLO, 2011, p.28): a) relatos primrios: cole-
tados atravs de entrevistas abertas com o objetivo de captar uma compreenso
acerca do modo como alguns agentes sociais locais percebem os impactos socio-
ambientais locais gerados pela indstria parapetrolfera, incluindo as complexas in-
ter-relaes envolvidas, interesses, resistncias, conflitos; b) relatos secundrios:
como no caso anterior, disponibilizam diversas percepes, mas so retirados de
fontes secundrias, como jornais, revistas, documentos institucionais; c) relatos re-
ferenciais: obtidos atravs de pesquisa bibliogrfica na literatura especializada, re-
lacionada com a ideia de sustentabilidade e com estudos sobre impactos socioambi-
entais envolvendo a indstria petrolfera e parapetrolfera em outras regies. Consti-
tui, portanto, a base terica que orienta a interpretao dos relatos primrios e se-
cundrios.
4.2 AMOSTRAGEM TERICA E PONTO DE CRISTALIZAO
A tcnica utilizada para a amostragem dos dados se baseia na seleo
gradual dos relatos primrios, secundrios e referenciais, processo semelhante ao
utilizado na estratgia de amostragem terica, em que as decises quanto esco-
lha e reunio de material emprico (casos, grupos, instituies, etc.) so tomadas
no processo de coleta e interpretao de dados (FLICK, 2004, p.79). Os critrios
para a seleo, portanto, so definidos e redefinidos durante cada etapa da pesqui-
37
sa (FLICK, 2004, p.81) e controlados pela pergunta de partida12 (QUIVY; VAN
CAMPENHOUDT, 1992, p.41) e pelos relatos referenciais.
Esta estratgia de amostragem privilegia no o grau de representativida-
de estatstica que os dados fornecem, mas sua relevncia para compor um Ponto
de Cristalizao suficiente para uma compreenso qualitativa do significado de al-
guns fatores e inter-relaes identificados na pesquisa. Segundo o cientista poltico
canadense John Hiemstra:
Um ponto de cristalizao o lugar no qual uma ampla gama de ques-tes significantes, interesses e prticas, efetivamente se concentram num composto irradiante de procedimentos cotidianos, processos e instituies. Um ponto de cristalizao um evento real ou processo que
organicamente envolve a considerao de uma ampla variedade de ques-tes disciplinares, temticas e dinmicas. (HIEMSTRA, 2008, p.15, traduo nossa, grifo nosso).
Hiemstra explica que estas complexas inter-relaes entre sujeitos, enti-
dades, instituies, fatores, que compem um sistema socioambiental complexo,
podem ser comparadas ilustrativamente a uma rede de pesca deitada sobre o cho,
com efeito, o Ponto de Cristalizao obtido ao pinarmos um ponto especfico tra-
zendo-o para cima formando um cone (HIEMSTRA, 2008, p.15, traduo nossa),
assim possvel focalizar uma parte da rede e considerar suas especificidades sem
que se perca de vista o contexto das complexas inter-relaes presentes. O ponto
de cristalizao, portanto, composto por elementos que representam de al-
gum modo e em alguma medida o sistema socioambiental que constitui a regi-
o pesquisada, incluindo os eventos, processos, agentes sociais e sistemas
que dele participam.
O processo de coleta de informao finalizado ao atingir um nvel de
saturao dos dados, alcanado quando os relatos coletados passam a ser repetiti-
vos, no apresentando novas contribuies para a compreenso j alcanada sobre
o problema pesquisado. Segundo Bauer e Aarts, o nvel de saturao pode ser afe-
rido atravs da aplicao de um princpio investigativo que eles chamam de Mxi-
mos Locais:
12
Quais fatores socioambientais, relacionados direta ou indiretamente ao programa Pontal do Pr-Sal, podem comprometer a sustentabilidade, em longo prazo, da populao que vive nas regies de Ponta do Poo e Pontal II?
38
Pode acontecer o caso em que falar com algum em um bar pblico no traz nenhuma faceta nova ao assunto em questo; contudo, indo para um bairro diferente, ou saindo da cidade, isto pode se dar. Os pesquisadores vivem em um mundo vivencial; e eles devem se perguntar se a variedade que descobriram cobre seu espao local ou um espao mais amplo (BAU-ER; AARTS, 2008, p.59).
Deste modo, informaes relacionadas com a regio pesquisada podem
ser coletadas em reas prximas, perifricas, com o objetivo de verificar se ainda h
algo que no foi devidamente investigado, caso isso ocorra o pesquisador deve re-
tornar ao campo de pesquisa em busca de mais informaes.
Ao final deste processo, espera-se que o ponto de cristalizao corres-
ponda em alguma medida com a percepo local investigada, neste caso, a per-
cepo perifrica utilizada para confirmar o nvel de saturao dados ou a neces-
sidade continuao com a coleta de dados empricos (Figura 4).
Por fim, a temporalidade dos relatos coletados tambm ser levada em
considerao, porque muitos dos impactos negativos relacionados com grandes
empreendimentos so percebidos apenas com o passar do tempo. Como o processo
de implantao da indstria parapetrolfera em Pontal ainda se encontra em fase
Figura 4: Ponto de Cristalizao, Percepo Local e Perifrica.
Fonte: O Autor (2013).
39
inicial, imprescindvel, portanto, a considerao de relatos desde outras localida-
des e temporalidades, estratgia que pode nos ajudar a aferir a percepo local dos
impactos, bem como a verificao de expectativas futuras.
4.3 TRATAMENTO DOS DADOS COLETADOS
A partir da amostra coletada realizado o processo de itemizao. Ca-
da item um extrato individual de um relato primrio, secundrio ou referencial, tra-
ta-se, portanto, de um pequeno segmento de texto que contm uma nica ideia prin-
cipal que apresenta relaes entre fatores distintos ou no.
Em seguida, os fatores que emergem em cada item escolhido so destacados
compondo uma lista preliminar no exaustiva e flexvel, que pode ser alterada vrias
vezes durante todo o processo de investigao, permitindo a incluso, excluso ou
justaposio de fatores (DE RAADT, 2000, p.71). Este processo especfico, de sele-
o de passagens textuais relacionando-as a cdigos ou a categorias de anlise,
muito utilizado em pesquisas qualitativas13. Segundo Saldaa:
Na investigao qualitativa um cdigo na maioria das vezes uma palavra ou frase curta que simbolicamente confere uma sumativa, uma salincia, que captura a essncia, e/ou evoca um atributo para uma poro de dados visuais ou baseados em linguagem (SALDAA, 2009, p.3, traduo nossa).
neste mesmo sentido que utilizamos o termo fator14. A relevncia dos fa-
tores escolhidos determinada com base: a) nas indicaes obtidas nos relatos re-
ferenciais; b) a partir da importncia dada pelos agentes locais investigados; c) e,
observaes do pesquisador.
13
Com diferentes especificidades, este mtodo , por exemplo, pela Teoria Fundamentada (BAUER e GASKELL, 2008, p.397; FLICK, 2004, p.188207). De modo geral, este procedimento muito utiliza-do por pesquisadores que utilizam softwares de apoio anlise qualitativa CAQDAS - como meio de organizao e administrao dos dados de pesquisa (FLICK, 2004, p.260270). 14
Segundo Saldaa (2009), o processo de codificao diretamente influenciado pela perspectiva analtica de cada pesquisador, neste caso um mesmo conjunto de dados pode ser codificado de di-versas maneiras diferentes (SALDAA, 2009, p.78). Estas possveis diferenas, entretanto, no sero tratadas no momento.
40
A organizao dos fatores destacados realizada a partir de uma lista
ordenada de aspectos sugerida pelo PSM, com efeito, cada fator relacionado ao
aspecto que melhor o qualifica (Tabela 1), permitindo uma compreenso acerca
do modo como as diversas inter-relaes entre os fatores ocorrem. Segundo Doo-
yeweerd (1984b), a diversidade presente na realidade possibilitada por vrios as-
pectos, ou modos de ser, que juntos compem uma estrutura ntica, coerente e
inquebrvel, cuja identificao e ordenao envolve cuidadoso processo de reflexo
e investigao (DOOYEWEERD, 1984b). A lista de aspectos, portanto, no um
ponto de partida, mas de chegada. Alm disso, ela uma sugesto, no uma impo-
sio. Os elementos constituintes desta reflexo sero tratados num captulo espec-
fico mais adiante.
Com base na ordem aspectual, os fatores so considerados de modo que
os mais normativos precedam sempre os mais condicionantes (DE RAADT, 2000,
p.77). Neste caso, possvel compreender melhor como os fatores se relacionam
entre si, podendo exercer, assim, uma restrio - quando mais condicionantes, ou
uma inspirao - porque mais normativos. Lembrando que uma restrio no ne-
cessariamente algo ruim, j que pode haver tanto restries benficas quanto inspi-
raes ruins. Um exemplo pode nos ajudar a compreender melhor estas inter-
relaes. Segundo Casiello (2000), condies do solo, temperatura e humidade po-
dem condicionar o fracasso ou o xito de um tipo especfico de cultivo, todavia
possvel influenciar estas determinaes fsicas criando um galpo com um micro-
Tabela 1 - Ordem Aspectual Segundo o PSM
Aspectos
Dis
tintiv
o
Quantita
tivo
Espacia
l
Cin
em
tic
o
Fs
ico
Regu
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rio
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tico
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na
l
Jurd
ico
Est
tico
tic
o
Mais condicionantes - Mais normativos
Fonte: O autor (2012)
41
clima controlado de modo que as condies ideais para o cultivo sejam alcanadas
(CASIELLO, 2000, p.8). Para que isso seja possvel, necessrio viso (aspecto
fiducial), conhecimento (epistmico), trabalho (operacional), fatores de carter
mais normativo que juntos podem influenciar as condies do solo (sistema com-
plexo que abrange os aspectos lgico, quantitativo, espacial, cinemtico, fsico, re-
gulatrio, bitico, de carter mais condicionante).
A seguir, a ttulo de ilustrao, apresentamos alguns exemplos de fatores,
relacionados com a ideia de sustentabilidade, organizados a partir dos aspectos que
podem qualifica-los15 (Tabela 2):
Tabela 2 - Exemplos de fatores relacionados com a ideia de sustentabilidade
Aspectos Fatores
Quantitativo Densidade demogrfica; Populao; Quantidade de recursos disponveis;
Nmero de espcies e seus nveis populacionais; Estatsticas censitrias
oficiais.
Espacial Design (layout); Morfologia; rea construda; Localizao; Proximidade;
Forma do terreno plano; montanhoso; etc.; reas vizinhas; rea urbana;
rea distrital; rea de restinga; Manguezal; Orla; reas de proteo ambi-
ental.
Cinemtico Estradas; Ciclovias; L