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R GO Maria Paula Zurawski ~O ponto de virada na « ~Educação de crianças até 3 anos O que mudou na Educação de crianças até 3 anos no Brasil? É preciso refletir. A Reso- lução n Q 5/2009 do Conselho Nacional de Educa- ção (CNE) fixa as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e apresenta uma concepção de ensino contempo- rânea, avançada, que enfatiza "a transição do en- tendimento da creche e da pré-escola como um favor aos socialmente menos favorecidos para a compreensão desses espaços como um direito de todas as crianças, independentemente do seu gru- po social". Isso quer dizer que a creche atualmen- te pode ser muito mais que um benefício para as famílias que trabalham e precisam deixar seus filhos aos cuidados de outrem: são as crianças que têm direito a um atendimento de qualidade. É importante considerar quanto esse novo paradigma influi na qualificação dos am- bientes e nas relações vividas pelos pequenos que o frequentam. Se eles são os sujeitos de direito desses espaços, têm de ser vistos como protagonistas. A Educa- ção Infantil precisa se configurar como um ambiente que privile- gia a convivência dos bebês e das crianças pequenas, bem como que contempla especi- ficidades de cada faixa etária no que diz res- peito à construção de seus conhecimentos. Faz-se necessano, portanto, avaliar as Graduada em Artes Cênicas e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) Entender a creche como um ambiente de aprendizagens diversas para bebês e crianças pequenas é fundamental para aprimorar o trabalho. Propomos, aqui, quatro aspectos que podem ajudar na reflexão docente: considerar as formas de estar no mundo dos pequenos, vivenciar valores dentro da creche, propiciar a eles experiências com a natureza e encantar-se com a criança, sendo o parceiro responsável pela organização de ambientes ricos para seu desenvolvimento. 72 NOVEMBRO 2014 novaescola.org.br condições existentes para alcançar esses objetivos. Em 2010, a Fundação Carlos Chagas (FCC) divul- gou os resultados da pesquisa Educação Infantil no Brasil: Avaliação Qualitativa e Quantitativa, realizada em 2009 e 2010 em seis capitais brasilei- ras. A escala utilizada incluía um roteiro de ob- servação reunindo sete subtemas: espaço e mobi- liário; rotinas de cuidado pessoal; falar e compre- ender; atividades; interação; estrutura do progra- ma; e pais e equipe. As instituições observadas podiam receber de um a sete pontos, em que um correspondia ao nível de qualidade inadequado, três ao mínimo, cinco ao bom e sete ao excelente. Os resultados são preocupantes. Praticamente metade das creches avaliadas (49,5%) encontrava- -se em nível inadequado e 37,4% delas no míni- mo. Apenas 12,1% puderam ser consideradas adequadas e só 1,1% boas. Para os pesquisadores, o ponto que apresentou maiores preocupações foi o das atividades - item que relaciona-se àquilo que de fato acontece no cotidiano, envolvendo crianças e professores em práticas que traduzem o projeto pedagógico das instituições. E é essa a questão que nos interessa neste artigo: no que o reconhecimento da importância da creche como instância educativa, bem como o do direito de todos os pequenos a ela, tem influenciado as ex- periências vividas dentro dela? Apesar das conquistas na área, ainda é muito forte o modelo pensado com base na comodidade e na conveniência dos adultos, e não das crianças. Os dias são organizados prioritariamente em tor- no dos momentos de cuidado e alimentação, não porque sejam vistos como oportunidades de de- licadas aprendizagens para cada um, mas pela urgência e pela maior competência do adulto em atender a todos. Ou seja, o foco ainda está nele e não na valorização das experiências infantis nem da potência das crianças.

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R GO Maria Paula Zurawski

~O ponto de virada na«

~Educação de crianças até 3 anos

O que mudou na Educação de crianças até 3anos no Brasil? É preciso refletir. A Reso-

lução nQ 5/2009 do Conselho Nacional de Educa-ção (CNE) fixa as atuais Diretrizes CurricularesNacionais para a Educação Infantil (DCNEI) eapresenta uma concepção de ensino contempo-rânea, avançada, que enfatiza "a transição do en-tendimento da creche e da pré-escola como umfavor aos socialmente menos favorecidos para acompreensão desses espaços como um direito detodas as crianças, independentemente do seu gru-po social". Isso quer dizer que a creche atualmen-te pode ser muito mais que um benefício para asfamílias que trabalham e precisam deixar seusfilhos aos cuidados de outrem: são as crianças quetêm direito a um atendimento de qualidade.É importante considerar quanto esse novo

paradigma influi naqualificação dos am-bientes e nas relaçõesvividas pelos pequenosque o frequentam. Seeles são os sujeitos dedireito desses espaços,têm de ser vistos comoprotagonistas. A Educa-ção Infantil precisa seconfigurar como umambiente que privile-gia a convivência dosbebês e das criançaspequenas, bem comoque contempla especi-ficidades de cada faixaetária no que diz res-peito à construção deseus conhecimentos.

Faz-se necessano,portanto, avaliar as

Graduada em ArtesCênicas e mestreem Educaçãopela Universidadede São Paulo (USP)

Entender a creche como umambiente de aprendizagensdiversas para bebês e criançaspequenas é fundamental paraaprimorar o trabalho. Propomos,aqui, quatro aspectos quepodem ajudar na reflexãodocente: considerar as formasde estar no mundo dospequenos, vivenciar valoresdentro da creche, propiciar aeles experiências com a naturezae encantar-se com a criança,sendo o parceiro responsávelpela organização de ambientesricos para seu desenvolvimento.

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condições existentes para alcançar essesobjetivos.Em 2010, a Fundação Carlos Chagas (FCC) divul-gou os resultados da pesquisa Educação Infantilno Brasil: Avaliação Qualitativa e Quantitativa,realizada em 2009 e 2010 em seis capitais brasilei-ras. A escala utilizada incluía um roteiro de ob-servação reunindo sete subtemas: espaço e mobi-liário; rotinas de cuidado pessoal; falar e compre-ender; atividades; interação; estrutura do progra-ma; e pais e equipe. As instituições observadaspodiam receber de um a sete pontos, em que umcorrespondia ao nível de qualidade inadequado,três ao mínimo, cinco ao bom e sete ao excelente.

Os resultados são preocupantes. Praticamentemetade das creches avaliadas (49,5%) encontrava--se em nível inadequado e 37,4% delas no míni-mo. Apenas 12,1% puderam ser consideradasadequadas e só 1,1% boas. Para os pesquisadores,o ponto que apresentou maiores preocupaçõesfoi o das atividades - item que relaciona-se àquiloque de fato acontece no cotidiano, envolvendocrianças e professores em práticas que traduzemo projeto pedagógico das instituições. E é essa aquestão que nos interessa neste artigo: no que oreconhecimento da importância da creche comoinstância educativa, bem como o do direito detodos os pequenos a ela, tem influenciado as ex-periências vividas dentro dela?

Apesar das conquistas na área, ainda é muitoforte o modelo pensado com base na comodidadee na conveniência dos adultos, e não das crianças.Os dias são organizados prioritariamente em tor-no dos momentos de cuidado e alimentação, nãoporque sejam vistos como oportunidades de de-licadas aprendizagens para cada um, mas pelaurgência e pela maior competência do adulto ematender a todos. Ou seja, o foco ainda está nele enão na valorização das experiências infantis nemda potência das crianças.

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Mas como mudar? Com tudo o que já avança-mos na compreensão da importância dos trêsprimeiros anos na vida dos pequenos, por que osambientes coletivos de convivência parecem ain-da não considerar o que é característico da faixaetária e continuar ignorando a riqueza de desafiosque ela propõe a seus educadores?

Algumas vezes, as famílias também valorizammais os cuidados fisicos, de alimentação e de saú-de do que as oportunidades dos pequenos deconstruir conhecimentos e aprender sobre si esobre o mundo. Outra pesquisa recente, realizadapelo Ibope com mais de 2 mil mães e pais, mostraque 530Al deles acreditam que as crianças só come-çam a aprender depois dos 6 meses de idade. Ouseja: a cultura de que o bebê não precisa de mui-to mais do que cuidados fisicos é ainda muitoforte e influencia as decisões das instituições so-bre a gestão e a organização dos ambientes, bemcomo o que é privilegiado na formação docente.

Onde estará o ponto de mudança? Descobri-loe, principalmente, tomar decisões no sentido derealmente transformar ambientes e práticas é ogrande desafio. Algumas considerações podem serfeitas para estimular a reflexão e apontar cami-nhos sobre quando, por onde e por que mudar.

Considerar o mundo da criançaUm importante ponto de partida para transfor-mar práticas e ambientes da creche é consideraras formas de conhecer e aprender de bebês ecrianças até 3 anos. Eles estão no mundo e seutempo é diferente do dos adultos. Os pequenosnão se afastam da experiência que estão vivendoe estão sempre intensamente implicados nas situ-ações. Saber disso pode ajudar a mudar substan-cialmente nossa forma de interagir com eles e deplanejar boas atividades. Aliás, considerar isso éuma das marcas de algumas abordagens de cuida-do e Educação atuais, como a de Pikler-Lóczy emFalk (2004) e a ideia de brincadeira heurística, deElinor Goldschmied (2006).É preciso também positivar nosso modo de ver

a criança - buscar compreendê-Ia por aquilo queela é e pela forma como está no mundo, e não poraquilo que ainda não é. Ela não pode ser vistacomo alguém que "todavia não consegue isso","tem dificuldade para contar, ler, resolver confli-tos, entender regras", "não sabe representar ideiaspor meio de desenhos nem manusear materiaiscomo cola, tinta e pincéis", "come o giz de cera e

amassa ou suja folhas", "ainda não consegue falar,bate, não sabe ficar na roda" etc.

Diante disso, é importante pensar que ouviruma bela história é uma experiência suficiente-mente significativa e deve ser valorizada pela im-portância que há em os pequenos terem contatocom a boa literatura e com textos que alimentemsua imaginação desde cedo. Não é necessário leruma história para que aprendam conteúdos. Damesma forma, o valor de movimentar-se livre-mente, correr, pular, subir, descer e explorar rit-mos corporais não está em ensinar gestos queserão usados adequadamente em outras brinca-deiras e demais situações de interação, A criançatem direito de conhe-cer o próprio corpo econstruir um repertó-rio de gestos sobre oqual deve ter governoà medida que cresce.

Os pequeno não eafastam da experiênciaque e tão vivendo e e tãoempre intensamente

implicado nas ituações.aber dis o pode ajudar

a mudar ub tancialmenteno aforma de inten ·rcom ele e de p .anejarbo atividade.

Viver valoresUma das experiên-cias mais belas e pra-zerosas que a crechepode proporcionarà criança pequena éa de estar em grupo,conviver com outrasno cuidado amorosodos adultos. É assim:imersa em um ambiente que a compreenda e quetenha como objetivo que seja feliz, que goste desi, que construa uma autoimagem positiva, masonde ao mesmo tempo aprenda a ser generosa erespeitosa com todos e a ser e a estar no mundo.E aqui fica o convite para avaliar a forma comocontemplamos os valores em nosso trabalho.

Bebês e crianças não constroem saberes de for-ma fragmentada. A aprendizagem mais eficientede valores está relacionada à maneira como oseducadores se comportam diante deles no enca-minhamento de conflitos ou na compreensão dapredominância funcional do movimento na atu-ação sobre o mundo e nas interações com os co-legas - é o que explica os pequenos incidentes quemarcam tanto a convivência nessa faixa etária efazem parte das formas de conhecer e de se rela-cionar da criança até 3 anos. Valores como o res-peito à diversidade étnico-racial são mais bemensinados quando vividos realmente, e não ape-

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ARTIGO Maria Paula Zurawski

nas tematizados em projetos. Elas certamentepodem aprender muito ao ver que o professornão discrimina e trata igualmente meninos e me-ninas, com características físicas diversas, ofere-cendo colo e tratando-os com respeito.

Da mesma maneira, compartilhar e aprender aser generoso não é algo que possa ser trabalhadoapenas no "dia do brinquedo", mas diariamente,como uma atitude para a vida. Temos de revertambém a prática da verificação, emprestada tal-vez do Ensino Fundamental, e pensar no senti-do que ela possui para as crianças pequenas. Oexemplo da leitura de histórias serve novamenteaqui: encher os ouvidos e olhos delas com be-

las palavras e imagensdeveria ser suficiente,mas nem sempre pare-ce ser. Assim, depois dahistória, continuamosa pedir que recontem,desenhem ou drama-tizem. Essas atividades,longe de serem lúdicas,tornam-se obrigações,quando não avaliações.

A Educação lnfantil é ummomento privilegiadopara o contato com a

natureza, com as ciências,uma área que tanto tem

a ver com os pequenos,cientistas natos,

ampliando a relaçãodeles com o mundo.em que utuem.

Criar experiênciascom a naturezaO bebê e a criança até 3anos são "pequenoscientistas", como se diz

popularmente. E,de fato, a Educação Infantil ofe-rece oportunidade para que vivam experiênciasde descoberta do mundo e dos objetos, de cons-truir sentidos para as coisas e para o mundo queos cerca. Estão vendo tudo com olhos de "primei-ridade" - e como seria bom se seus professores selembrassem disso!É nossa responsabilidade mostrar a elas que

esse é um mundo que precisa ser cuidado, no quala consciência ecológica é tão importante e as con-dições ambientais influenciam as atitudes, a orga-nização de ambientes e mesmo as relações entreos seres humanos. Por exemplo: certamente hojenão usamos a água como usávamos há 20 anos. Eé nesse cenário - e não naquele em que nós, adul-tos, crescemos - que os bebês nascem e aprendema viver. O que isso tem a ver com a creche? Deve-mos elaborar projetos que ensinem os pequenosa usar a água com parcimônia? Talvez não apenasprojetos. Essa é uma atitude para sempre, que

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precisa ser vivida diariamente. O uso da água, ossegredos das plantas e o cuidado com os animaissão temas que interessam às crianças e as intri-gam. Favorecê-los nos projetos pedagógicos érespeitá-Ias. Elas estão imersas na complexidadedeste mundo, em que não há sentido em mostraro vermelho para só então mostrar o verde. A Edu-cação Infantil é um momento privilegiado parao contato com a natureza, com as ciências, umaárea que tanto tem a ver com os pequenos, cien-tistas natos, ampliando a relação deles com omundo em que vivem.

Encantar-se com os pequenosEducadores de bebês e crianças até 3 anos podemencantar-se, divertir-se e emocionar-se com as des-cobertas deles. Ser responsável por proporcioná--Ias é um privilégio, mas o bom professor podetambém explicitar o que fez, como pensou, e porque desenvolveu determinada atividade - ou seja,refletir sobre ela.

É, de fato, um desafio imenso a formação deprofissionais especialistas na Educação das crian-ças pequenas em contextos brasileiros, que pre-servem aquilo que nosso país traz como marcasculturais, como o hábito de cantar acalantos, dan-çar ou brincar ao ar livre. Soma-se a isso a impor-tância da compreensão da especificidade de seupapel e das diferenças existentes entre um profes-sor especialista na Educação de crianças mais no-vas e maiores.

Por tudo isso,é fundamental que as práticas detodo o país sejam registradas e compartilhadas,ajudando a iluminar o caminho de construçãodessa profissional idade tão antiga e, ao mesmotempo, tão original: educar crianças pequenas emambientes coletivos.

Referências bibliográficas• CAMPOS, M.M., e ROSEMBERG, F.Critériospara um atendimento em creches que respeite osdireitos fundamentais das crianças. 6' ed. Brasflia:MEC, SEB, 2009.• FALK,J. (org.). Educar os três primeiros anos: aexperiência de Lóczy. Araraquara: JM Editora, 2004.• GOLDSCHMIED, E.,e JACKSON,S. O brincar heurísticocom objetos. In: Educação de O a 3 anos: o atendimentoem creche. Porto Alegre: Artmed, 2006.• MARINO, E., e PLUCIENNICK,G.A.(org.). Primeiríssima Infância: da gestação aos trêsanos. Percepções e práticas da sociedade brasileirasobre a fase inicial da vida. São Paulo: FundaçãoMaria Cedi ia Souto Vidigal, 2013.