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O Poço do Visconde - Governo do Estado de São Paulo...O V isco n d e d e S ab u go sa d esco b riu en tre o s livro s d e D o n a B en ta u m tratad o d e geo lo gia e p s-se a estu

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O Visconde de Sabugosa descobriu entre os livros de Dona Benta um tratado de geologia e pôs-se a estudar essa ciência – a história da terra, não da terra-mundo, mas a terra-terra, da terra-chão. Ora, já que o pessoal do sítio estava justamente pensando em escavar um poço de petróleo, ninguém melhor que o pequeno sábio para introduzí-los nos mistérios da geologia.

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OPOÇODOVISCONDE

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Aoreceberojornal,Pedrinhosentou-senavarandacomospésemcima

da grade. Narizinho, que estava virando a máquina de costura de DonaBenta,disse:

— Vovó, eu acho uma grande falta de educação essa mania quePedrinhopegoudosamericanos,de sentar-se comospésna caradagente.Olheojeitodele...

DonaBentasuspendeuosóculosparaatestaeolhou.—Certossábiosafirmam,minhafilha,quequandoumapessoasesenta

comasextremidadesniveladas,acirculaçãodosangueagradece,eacabeçapensa melhor. É por esse motivo, que os homens de negócios da Américacostumamnivelarasextremidades, semprequetêmderesolverumassuntoimportante.Acoisaficamaisbemresolvida—dizemeles.

—Eéverdade?—Osnegóciosdeláprosperammelhorqueosdequalqueroutropaís;

se o tal nivelamento dos pés com a cabeça contribui para isso, não sei. Êproblemaparaosfisiologistasresolverem.

—Queéfisiologista?—Osfisiologistassãoossábiosqueestudamofuncionamentodonosso

corpo.Aquelelivroqueestoulendo,MantheUnknown,({*})foiescritoporumgrandefisiologista,AlexCarrel.

Depois que Pedrinho soube da opinião de Dona Benta, nunca maisdeixoude ler sembotarospésparacima,costumequeEmíliaeoViscondeadotaramimediatamente—EmíliaporespíritodeimitaçãoeoViscondeporordem de Emília. — "Vossa Excelência fica proibido de ler com asextremidadesdesniveladas"—ordenouela.—"Épor lerdepé,ousentado,que está velhinho e aindanementrouparaaAcademiaBrasileira."—EopobreVisconde,apesardosreumatismos,tevedecontinuara leituradasuageologiadobradoquenemumV.

Geologia?PoisoViscondeandavaaestudargeologia?Verdade,sim.OViscondedescobriraentreoslivrosdeDonaBentaum

tratadodessaciênciaepusera-seaestudá-la—aciênciaquecontaahistóriadaterra,nãodaterra-mundo,masdaterra-terra,daterra-chão.Edetantoestudar, ficou com um permanente sorriso de superioridade nos lábios—sorriso de dó da ignorância dos outros. "Ele já entende de terramais quetatu",diziaaboneca.

Mas, como íamos contando, naquele dia Pedrinho começou a ler ojornalàmodaamericana,comospésemcimadagrade.Emcertomomento

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interrompeualeituraparadizeremvozaltafalandoconsigomesmo:—Bolas!Todososdiasosjornaisfalamempetróleoenadadopetróleo

aparecer.EstouvendoquesenósaquinosítionãoresolvermosoproblemaoBrasilficarátodaavidasempetróleo.ComumsábiodamarcadoViscondeparanosguiar, comas idéiasdaEmília e comuma forçabruta comoadoQuindim,ébemprovávelquepossamosabrir

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Aoreceberojornal,Pedrinhosentou-senavaranda,comospésemcimadagrade.

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nopastoumformidávelpoçodepetróleo.Porquenão?Disse e ficou pensando no assunto com os olhos nas andorinhas que

desenhavam"riscosdevelocidade"nocéuazul.Depoischamouogeólogoedisse:

—OamigoViscondejádeveestarafiadíssimoemgeologiadetantoquelêessetratado.Podeportantodarparecernumproblemaquemepreocupa.Achaquepoderemostirarpetróleoaquinosítio?

OVisconderespondeudepoisdecofiaraspalhinhasdopescoço:— Ê possível, sim. Com base nos meus estudos estamos em terreno

francamenteoleífero.—Lávem!Lávemopedantecomostaistermosarrevesados!Quequer

dizeroleífero?—Oleífero,querdizerprodutordeóleo.Frutífero,produtorde frutas;

argentífero,produtordeprata...— Milhífero, produtor de milho — gritou a boneca, aparecendo e

metendoobedelhonaconversa.Emvezde tanta ciência, eupreferiaqueoSenhorViscondeproduzissegrãozinhosdemilhodepipoca.HáummêsquetiaNastácianãorebentanenhuma,porqueomilhoacabou.Seestesabugodecartolaproduzissepipocasemvezdeciência,seriamuitomelhor.

—Nãoencrenque,Emília—ralhouPedrinho.—Estamosatratardumassuntomuitosério:opetróleo.Queachadeabrirmosumpoçodepetróleoaquinosítio?

Emíliaarregalouosolhos.Alembrançapareceu-lhedeprimeiríssima.— Ótimo, Pedrinho! Até parece idéia minha. E tenho um plano

maravilhosoparaconseguirumaperfuraçãobemredondaeprofunda.—Qualé?—O tatu!Amarra-seum tatupela cauda ependura-se ele de cabeça

parabaixo,nopontoondequeremosabriropoço.Nafúriadefugir,otatuvaifurando,furandoatéchegarnopetróleo...

—Eaí?—Aíespirra—eagenteficasabendoquedeunopetróleo.Pedrinho tocou Emília da varanda e continuou na discussão com o

Visconde.—Primeiro— disse o grande sábio— temos de abrir um curso de

geologia. Sem que todos saibam alguma coisa da história da terra, nãopodemospensarempoço.ComojáliestaGeologiainteira,proponho-measeroprofessor.

—Ótimo!— exclamou Pedrinho levantando-se. Vou avisar o pessoalqueasaulascomeçamhojemesmo.Otimíssimo...

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FoiassimquecomeçouopetróleonoBrasil.

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I

OprimeiroserãoPedrinhoarrumouasalacomoumanfiteatrodeescolasuperior.Um

tamboreteemcimadamesaficousendoacátedradomestre.Naprimeirafila de cadeiras sentaram-se Narizinho, Emília e ele. Na segunda, DonaBentaetiaNastácia.Pedrinhofezquestãodequeapobrenegratambémseformasseemgeologia.

Naquela noite, logo que todos se reuniram, Pedrinho plantou ogeólogonacátedra.

—Niveleasextremidadesecomece,SenhorVisconde.Osábioassim fez;depoisdeapoiarospésnageologia,erguendo-os

aoníveldacartolinha,cuspiuopigarroecomeçou:— A Geologia é a história da Terra. Tudo que aconteceu desde o

nascimentodestenossoPlanetaseachaescritonasrochasqueoformam.Aterraéumarocha,umaboladepedra.

Comonasceu?Temosdeadivinhar,porquenenhumdenósassistiuaisso. Uns imaginamque foi dum jeito. Outros imaginamque foi de outrojeito.Voucontarcomonós,sábios,imaginamosonascimentodaterra.

Emcerto instantedoTempo Infinito,destacou-sedoSolumpedaçodamassadefogoqueeleéeficouregirandonoespaço.ATerra,portanto,começousendoumabolotadefogonoespaço...

—Espéciedebombadepistolão!—gritouEmília.— Sim. Tal qual bomba de pistolão. Mas as bombas de pistolão

descrevemumacurvaecaem.AbolinhadefogodenomeTerra,emvezdecair,ficoutodaavidaaregiraremtornodocanudodopistolão,queeraoSol.Efoiseresfriando.Quandoeudigoboladefogo,éummododedizer.Era uma bola de minerais derretidos, ou pedra derretida. Dessa massacandenteescapoumaistardeoespirroqueformouaLua.

—EporquemotivoaTerrafoiseesfriando?—perguntouNarizinho.— Porque a tendência do calor é espalhar-se. Tudo que é quente

esfria porque o calor se espalha— sai do corpo quente espalha-se peloespaço.Ocalor irradia-se,comodizemossábios.DemodoqueocalordabolademineraisderretidosquechamamosTerrafoiseirradiando—eaté

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hojeestáseirradiando.—Comoisso?PoisentãojánãoestátotalmentefriaaTerra?—Não.Jáqueesfriadeforaparadentro,sóestáfrianacrosta,ouna

cascaondenós,e todososanimaiseplantas,vivemos.Masàmedidaquevamosafundandodentrodaterra,ocalorcresce.

—Comosabedisso?

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Depoisdeapoiarospésnageologia,cuspiuopigarroecomeçou:—AGeologiaéahistóriadaTerra.

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—Emqualquerperfuraçãoprofundaobserva-semuitobemessefato.O termômetro,queéo instrumentodemedira temperatura, sobedeumgrauacada25metrosdedescida.Nessamarchaadoisoutrêsquilômetrosdefundotemosatemperaturadaáguaemebulição;eatrintaouquarentaquilômetrostemosatemperaturaemqueosmetaissederretem.,

—Quehorror!Querdizerentãoquelábemnocentrodaterraocalorédenemsefazeiidéia?...

—Exatamente.Não podemos fazer idéia dele. Alémdesse aumentodo calor com a fundura, ainda existem muitas outras provas do calorcentraldaterra.

—Osvulcões!—gritouEmília.—Simosvulcões.Sãoaberturasporondeofogointernojorra.Hoje

hámuitopoucosvulcões,uns250;masnocomeçoasuperfície inteiradacrostaeracoalhadinhadevulcões.

—Comosabe?— Porque pela superfície inteira da terra vemos sinais de vulcões

extintos — as rochas derretidas que saíram deles, as rochas ígneas, oueruptivas, como se diz em geologia. Temos, ainda, os gêiseres, que sãorepuxos de água quente. Se a água sai quente, de alguma parte recebe ocalor.

—Mascomonósnãosentimosessecaloraquiemcima?—Porquejáháumaespessacamadaderochasquasefria,entrenóse

as zonas de calor ainda forte. Essa camada constitui a crosta da Terra.Resfriou-se; as rochasderretidasquea compunhamsolidificaram-se—ecomosãomáscondutorasdocalor,evitamquemorramosassadosaquiemcima.

Nosvulcõesativospodemosterumaprovadecomoacoisaé.Alavaque escorre desses vulcões, sai candente, derretida, em forma de pastamole;ocalorétantoquenemolharparaaquilodepertoagentepode.Cegaos olhos. Mas logo que se afasta da cratera, a lava começa a resfriar-se,muda de cor; perde o fulgor cegante e fica vermelha, depois vermelho-escuro e por fim preta. A massa endurece por cima e esfria a ponto depodermospassearsobreela;masdentroocalorcontinuabravo.

—Muitobem,Visconde—disseNarizinho.Chegadecalor. Jáestousuando.Faledasrochas.

OViscondefalou.— Chamamos rocha a essa massa de minerais derretidos que se

esfriaram e solidificaram. São compostas duma mistura de mineraissimples, verdadeira salada. Existem nelas sílica, quartzo,mica, feldspato,

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ferroetodoosmineraisqueconhecemos.Aterra,portanto,aosresfriar-se,ficouumabolacomcascadepedra

dura,ouderochasígneas,tambémchamadaseruptivasouplutônicas.— Que quer dizer ígnea? — indagou Pedrinho. — Ígneo significa

nestecasoproduzidopelofogo.Essaboladepedraduraregiravanoespaçoenvolvidaporumacamadadeareuma imensanuvemdevapores.Essesvapores,compostosdehidrogênioeoxigênio, formavamumacombinaçãodenomeágua,interessantepormilrazões,entreasquaisadeseranossamãe—amãedetodososseresvivos,animaiseplantas.

—Queengraçado!Nuncapenseinisso.—Poisé.Aáguaéamãedavida—eopaiéocalor.Semáguaecalor

não há vida possível.Mas no começo, não havia água. Só havia vapor deágua, ou água em estado gasoso. O oxigênio e o hidrogênio quando secombinam ficam rebeldes ao calor excessivo. Por essa razão, em vez depermaneceremincorporadosnamassacandentedaterra,fugiram,ficandosuspensosnoarsobformadegrandenuvemaenvolverabola.

Assim, porém, que a crosta da terra entrou a resfriar-se e aconsolidar-se, a águapassoudoestadogasosoparaoestado líquido—edesceu sob forma de chuva para irrigar a crosta. A água acumulada naspartesmaisbaixasdeuorigemaosoceanos,mareselagos.Aquecaiunaspartesmais altas deuorigemaos rios.Aindahoje a água sofre a açãodocalordosoleevapora-se,paracairdenovosobformadechuva;masdaquiamilhõesdeanosocalordosolnãodaráparaevaporaraáguaeelaentãoficaráunicamenteemestadolíquido.

—Ousólido—ajuntouPedrinho.—Perfeitamente.Quandoporcimadetodaacrostadaterraocalor

dosolfortãopoucocomojáéhojenasregiõespolares,entãotodaaáguadomundosecongelará.Osriossecarão,porquenãohavendochuvasqueosalimentemnãopodehaverrios—eoslagoseosmaressetransformarãoemimensasplaníciesdegelo.

— Que ótimo! — exclamou Emília. Poderemos ir daqui à Europanumavoladadepatins.

—Ótimo,nada!—contestouPedrinho.Nessetempoestaráextintaavida na terra, como já se extinguiu nos pólos. Atéme arrepio de pensarnisso...

—Muitobem—continuouoVisconde.Estávamosjácomacrostadaterraendurecidaeaáguaformandoosmares,oslagoserios.Nestepontocomeçouadar-seumfenômenomuitointeressante.Aágua,detantolidarcomoCaloreoAr, fezcomelesumtrato. "Estámuito feiaa terra,assim

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reduzidaaumacrostaderochadura",disseaÁgua."Precisamoscombinarumas modificações que permitam o aparecimento da vida. Quero ver aterracheiadeverduraedebichosqueandem,corrameseataquemunsaosoutros."

—Eurrem,ezurrem,epiem—acrescentouEmília.—"Eparaisso,quefazer?"—perguntouoCalor.—"Aliar-nosostrêseatacarmosasrochasígneas,transformando-as

emrochassedimentárias"—respondeuaÁgua.—"Dequemodo?"—perguntouaindaoCalor,queerabemburrinho.— "Isso veremosnahorado trabalho.Tenhoque experimentar.No

momentobastaquevocêsjuremaliançacomigo."OCaloreoAraceitaramapropostaedesdeentãootrabalhodaÁgua,

do Calor e do Ar na transformação da crosta da terra não parou um sóminuto. Para atacar as rochas ígneas os três inventaram uma picaretainvisível, chamada Erosão. A Erosão ataca todas as pedras dum modocontínuo, e as vai rachando, lascando, esfarelando, até reduzi-las a pófiníssimo.

—Quenegócioéesse?—perguntouPedrinho.—Muito simples. Para atacar uma grandemassa de rocha, o calor

primeiro a aquece. Vem depois a água, sob forma de chuva, e a resfriabruscamente.Comoocalordilataoscorposeofriooscontrai,começounacrosta da terra um terrível rachamento de pedras. Pedra aquecida eresfriada de brusco, racha, parte-se. As grandesmassas de rochas foramsendo divididas em pedaços cada vezmenores. E quando esses pedaços,por ficarem muitos pequenos, puderam resistir ao processo dorachamento, a Erosão veio com processos novos. A água, nas grandeschuvas, criava as enxurradas, as torrentes. Os blocos de pedra eramarrastadosporessastorrentes,chocando-seunsnosoutros,desgastando-se.Quemexaminaumfundoderibeirãovêmilharesdepedrasdetodasascores,quedetãoesfregadasentresificaramroliças,comtodasasarestasdestruídas. Também o Ar entra em cena, e sob forma de Vento ajuda aErosão. O quebra-quebra, o esfrega-esfrega, o bate-bate e o rola-rolaacabam transformando tudo em pedregulho, e depois transformando opedregulho em areia e pó finíssimo de pedra — ou argila. E como asenxurradascorremparaosribeirões,eosribeirõescorremparaosrios,eosrioscorremparaomar,todasasrochasdestruídaspelaErosãoacabamdespejadasnomar.

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Depoisdeapoiarospésnageologia...

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— Mas, se é assim, os mares já deviam estar completamenteentupidos—observouNarizinho.

—Equedissequeosprimeirosmaresnãoforamtodosentupidos?Osmaresdehojenãoestãoondeestavamosmaresdemilhõesdeanosatrás.Temosmilprovasdisso.Oscontinentesmodernosjáforammares.Portodaparte,aténasmaisaltasmontanhas,vemossinaisdemar,oquequerdizerque tambémasmontanhas já foram fundos demar. As neves eternas doHimalaia,queéamaisaltamontanhadomundo,repousamsobrecamadasde calcário — e o calcário, como vocês devem saber, é uma rochasedimentária formada no fundo do mar. Rocha sedimentária quer dizerrochaquesesedimentou.

—Equeésedimentar?—Sedimentaréserdepositadonofundodaágua.Senumcopovocê

misturaareiacomáguaesacode,logoaareiasedepositanofundo,istoé,se sedimenta.Pois foioqueaconteceuna crostada terra.Omaterialdasrochas ígneas, desagregado pela Erosão, era arrastado para os mares edepositava-senofundodeles—eissosedeuemtamanhasproporçõesquena superfície da terra há hoje muito mais rochas sedimentárias do queígneas. Estas foram na maior parte destruídas — ou transformadas. Sórestamasqueestãonofundo,livresdocontactodaáguaedoar.

—Masseéassim—dissePedrinho—acrostadaterradeviaestartodareduzidaaareiaepó—enãoestá.

—Não está porque a Erosão tem três inimigos que invertem a suaobradepulverizamento.

—Quaissãoeles?—APressão,aCimentaçãoeoMetamorfismo.Logoqueseformaum

sedimento no fundo das águas, estes três inimigos entram em cena paraligardenovoaspartículasde rochaqueaErosãodesagregou.Eles ligamessas partículas, cimentam-nas, soldam-nas. Surgem então as massas derochas sedimentárias: os conglomerados compostos de pedregulhos oufragmentosderochacimentadosentresi:osarenitos,quenãopassamdegrãosdeareiatambémcimentadosentresi;osxistos,quesãopódeargilaconsolidado; e as chamadas rochas orgânicas, formadas de resíduos deconchaseossosdepeixeetambémdevegetais.

—Que lutaéavida!—exclamouNarizinho.Um fazeoutrodesfaz.Nadatemsossego...

OViscondeenxugouosuorzinhodatestaecontinuou:—EssabrigaentreaErosãoeosseustrêsinimigosfazquerealmente

asrochasnãotenhamsossego.Aerosãoasesfarela;osoutrosasrecompõe

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—eseráassimeternamente.—Eastaisrochasorgânicas?— São rochas sedimentárias constituídas pelos restos mortais dos

animálculos e das plantas. Quando uma floresta é soterrada, todas asárvores nela existentes se transformam numa rocha de nome hulha, oucarvãodepedra. Nos brejos as plantas aquáticas quemorreme afundamformam uma rocha de nome turfa. E nos mares, quando se sedimentamcasquinhas de numerosos animálculos e esqueletos de peixe, formam-seconglomeradosderochacalcária.Sãoessasasrochasorgânicas.

—EotalMetamorfismo?—quissaberamenina.—Bom.Ometamorfismodá-sequandoasrochassedimentáriassão

muitocomprimidaspelapressãoouatacadaspelocalor.Prestematenção:sempre que lá no fundo da terra um jato de rocha derretida sobe eintromete-se por entre as camadas de rocha sedimentária, o tremendocalor da rocha derretida derrete a rocha sedimentária comque ficou emcontacto—salda aspartículas, redu-lasquasea rocha ígneaoutravez.Apressão excessiva, junto com o calor, também as modifica. B as rochassedimentárias que sofrem esses calores e essas pressões são conhecidaspelosgeólogoscomorochasmetamórficas.

—Quequerdizermetamórfico?— Quer dizer que sofreu uma metamorfose. Metamorfose é a

passagemdumestadoparaoutro.Emília,porexemplo,metamorfoseou-seem gente, isto é, passou de boneca de pano a gente. As borboletas sãoprodutos duma interessantíssimametamorfose. Começam lagartas, essesbichos cabeludos que andam por aí a se arrastarem, comendo folhas deplantas;umdiaas lagartasparamdecomer,encolhem-senumgalhinhoesofrem umametamorfose; viram casulos. O casulo passa uma porção detempo dormindo, e um belo dia sai dele a borboleta. Tudo sãometamorfoses.

— Outra metamorfose interessante— disse Dona Benta— é a dopensamento lógico que temos durante o dia nessa coisa misteriosa quechamamossonho.Ecomoorelógiovaibaternovehoras,achoqueétempode irmos para a cama metamorfosear nossos pensamentos em sonhos.Bastaporhoje,Visconde.Gosteidasualiçãozinha.Estácerta.Deixeorestoparaamanhã.

Todos concordaram que a lição do Visconde fora boa, exceto tiaNastácia.Anegradormiraotempointeiro.EquandoNarizinhoacensurouporcausadisso,respondeucomamaiorsinceridade:

—Praqueouvir,menina?Nãoentendonadamesmo...

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II

Segundoserão

Noserãoseguintereuniram-semaiscedo.Acuriosidadeaumentava.Pedrinho plantou novamente o geólogo em cima damesa e cada qual sesentounacadeiradavéspera.TiaNastáciatambémveio,masnemesperouocomeço.Tratoulogodetirarumaboasoneca.

Depoisdecuspiropigarrinho,oViscondedeucomeçoàlição.—Vimosontem—disse ele—que a terraprincipiouumabolade

pedra feita dumamistura deminerais. Quer dizer que por aqui só haviaminerais — nada de animal ou vegetal. Mas a Água, o Ar e o Calor seligaramparacriarasprimeirasvidas,todasvegetais.Fizeramsurgirnomarumas coisinhas mínimas, fabricadas de minerais, mas que já não eramminerais—eramvegetais.Logo,ovegetalé filhodomineral;éoprópriomineral sob forma diferente. E o que caracteriza esse vegetal é aparecersob forma organizada, ou com órgãos. Organizado é uma coisa que temórgãos.

—Eórgãos,queé?—quissaberNarizinho.—Órgãoéumaparelhoquedesempenhaumafunção,istoé,quefaz

qualquer coisa. Os minerais não têm órgão; por isso são parados. Osvegetais têm.Asvidinhasvegetaisquesurgiramforamsedesenvolvendo,ficandocadavezmaiscomplicadaseaperfeiçoadas,atédaremosvegetaisquetemoshoje—asárvores,oscapins,tudo.Seanalisarmosamatériaquecompõe um vegetal, veremos que é toda mineral. Por isso digo que ovegetaléfilhodomineral.Éomineralcomórgãos.Emcertomomentodavida da terra alguns desses vegetais começaram a modificar-selentissimamente, porque tudo na natureza é terrivelmente lento. Pressanão é com ela — não passa de invenção dos homens. Começaram amodificar-senumsentidodiferentedoresto—efoiassimquesurgiramosprimeirosanimaizinhos.Aindahojeexistemseresminúsculosquenãosãobemvegetaisnembemanimais.

—Quesãoentão?—Sãovegetaiseanimaisaomesmotempo.Istomostraquenaqueles

começosdevidanaterra,houveumtempoemqueoanimalestavaainda

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meio lá meio cá, meio planta meio futuro animal. A natureza que viveexperimentando coisas, depois de criar a vida vegetal resolveraexperimentarumanovidade:avidaanimal.Oprocessodanaturezaéodaexperiência e erro. Experimenta, erra; experimenta, erra; súbito,experimentaeacerta—eentãofixaouconservaaqueleacerto,etocaparadiantecomoutrasexperiências.

—Eacertoucomoanimal?—Tantoacertouqueaquiestamosnós,animaisaperfeiçoadíssimos.EmíliacochichouaoouvidodeNarizinho:"Olhaapretensãodele!Nós,

animais!Umvegetalíssimosabugoaconsiderar-seanimal!Temgraça..."OViscondecontinuou:—Por fimoanimaldestacou-sedefinitivamentedovegetal, criando

órgãosnovos;masnãopassadumfilhodiretodovegetal.—Neto,portanto,domineral—acrescentouPedrinho.— Exatamente, neto do mineral. Se analisarmos a matéria que

compõe um animal veremos que é todinha formada deminerais. Logo, oanimaléa terceira formadomineral.Mais tarde,comodesenvolvimentodosanimais,surgiunelesumacoisanova:oPensamento.

—Bisnetodomineral!—gritouPedrinho.—Paramiméissomesmo—concordouoVisconde.Nãoseisepara

os outros sábios também será...Mas comoeu ia dizendo, a basede tudo,inclusivedavida,éomineral,quetemosnanatureza,sobformadasrochas,onde está escrita toda a história da terra. A história do homem, muitocurtinha,poisnãovaialémde7.000anos,nosécontadapelosdocumentosou restos humanos que resistiram à destruição do tempo—múmias deegípcios, inscrições emmonumentos, as pirâmides e outras coisas assim.Mas a história da terra, contada pelas rochas, alcança milhões de anos.Apesar disso, um geólogo como eu lê tão claramente numa rocha comoPedrinholênumlivro.

—Lêquecoisas?—Lê a idadedessa rocha, lê comoela se formou, o que sofreunas

suas lutas coma erosão; lê, portanto, ahistóriada formaçãoda terra, donascimentodasplantas,doaparecimentodosanimais,tudo.

—Dequemodoarochafaladasplantasedosanimais?—quissaberNarizinho.

— As rochas são túmulos de vidas passadas. Nelas encontramosfósseisdeplantaseanimaisquelevamosgeólogosamilconclusõessobreahistória da terra. Esses restosmortais, revelam inúmeras formas de vidaquejáseextinguiram.Mostramplantasesquisitas,avósdemuitasplantas

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de hoje. E vemos animais esquisitíssimos, também avós dos animais dehoje. E outros ainda mais esquisitos, que desapareceram sem deixardescendência. Mais tarde havemos de estudar a paleontologia, que é aciência dos fósseis. Por enquanto só falaremos dos que se relacionaremcom o petróleo. Nas escavações para petróleo os geólogos encontramrestos fósseis de animálculos e de plantículas marinhas — como asdiatomáceas,algasdecélulasrevestidasdumapelículadesílica.

—Queésílica?—Ummineraldosmaisabundantesnanatureza.Depoisdooxigênio

é o que aparece emmaior quantidade. As areias são formadas de sílica.Mas,comoiadizendo,essasplantinhaspossuemcélulascomcapadesílica,demodoquequandomorremedesapareceoquehádentrodascélulas,ficasó a casquinha. Ao lado das diatomáceas encontram-se também muitosfósseisderadiolários,foraminíferos,ostras,etc.

—Radiolário?...Foraminífero?Queéisso?— Animálculos com esqueletinhos de sílica que também chegaram

aténósemestadofóssilefornecemaossábiospreciosainstruçãosobreoestado da terra há milhões e milhões de anos. Em certos pontos essasformas de vida se acumularam em tremendas quantidades. Encontramoshoje extensões enormes atulhadas com os seus esqueletinhos. E surge apergunta:Paraondefoiasubstânciaqueenchiaascasquinhas?Paraondefoioprotoplasmadequeeramformadosessespequenosseres?

—Pro-to-plas-ma— repetiu Emília. Explique o que é. Eu não finjoqueseiascoisas.

—Protoplasma—explicouoVisconde—éocaldo,omingaudessesserezinhos. É a substância da vida. A vida começa sendo protoplasma. Oprincípiodetudoqueéorgânicoestánoprotoplasma.

—Vivaoprotoplasma!—gritouEmília.— Diante desses enormes amontoados de fósseis, os sábios

perguntam: "Onde está o gato?" Isto é: "Onde está o protoplasmaque osenchia?"Os sábios sabemquenanaturezanada seperde; uma coisanãodesaparece, apenas se transformaemoutra. Senão está aqui, está ali. Senão está sob esta forma, está sob outra forma. Os sábios fazem essapergunta e eles mesmos respondem, porque a função dos sábios éperguntareresponderasipróprios.

—Equerespondem?— Respondem uma porção de coisas; esse protoplasma, ou essa

matéria orgânica dos animálculos, muda-se numa porção de coisas quenestemomentonãonos interessam—emudam-se tambémnoquemais

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nosinteressa:empetróleo.Essesbichinhoseramseresmarinhoseporissosemultiplicavamtanto.Ograndereservatóriodavidasemprefoiomar.Naterra a vida só é possível na superfície e até a poucos palmos de fundo,onde moram as minhocas. Já no mar a vida é possível até nas maioresprofundidades.Malcomparando,avidanaterraéumafolhadepapel;eavidanomaréumapilhadefolhasdepapelquevaidesdeasuperfíciedasondasatélánofundo.Numpedaçodeterradotamanhodestasala,quantavidacabe?

—Pouca—respondeuPedrinho.Unsanimaisgrandes,umasplantas,unsbichinhoseosmicróbios.Só.

—Exatamente.Masnumpedaçodemardotamanhodestasalacabeum colosso de vida, porque esse pedaço de mar pode descer até 9.000metrosdefundo,comonoMardoJapão,eestácheiodevidadesdecimaatéembaixo.Poressemotivoafaunaeafloradomarsãoimensas,muitíssimomais ricas que a fauna e a flora da terra. Os cetáceos e os peixesrepresentamasformasgraúdasdevidamarinha—asbaleias,ostubarões,osespadartes,osatuns,ossalmões,osarenques.Masmuitomaisqueissosãoasformasdavidamiudinha,queemvezdenadarbóianaimensamassalíquida.Sea florae faunamiúdafossemjuntadasnumbloco,dariamumamontanhamuitomaior que a formadade todos os peixes.Ora, toda essavidalhadaestánascendoemorrendosemparar—eoquemorreafunda.Em virtude disso há nomar uma perpétua chuva de organismosmortos,quevãocaindoe seacumulandono fundo,onde formamumacamadadelodonegro,ouumsedimento.Tudoquesedepositaéumsedimento,comojámostrei.

— Bolas! — exclamou Emília. Então o dinheiro que Dona Bentadepositounobancoéumsedimento?

O Visconde coçou a cabeça. Emília atrapalhava-o com aquelasobjeçõesdebobagem.Mascontinuou,semdar-lheresposta:

— Esses sedimentos de animálculos e vegetais mortos cobrem ofundodosmares,demodoqueaquilonãopassadumimensocemitériodematériaorgânica.

—Quequerdizermatériaorgânica?—Éamatériaquecompõeosvegetaiseosanimais,istoé,ascoisas

dotadasdeórgãos.Orgânicovemdeórgão.Sótêmórgãosascoisasquetêmvida.Amatériaqueformaosmineraischama-sematériainorgânica.

OViscondetossiu—cuspiueprosseguiu:— Bem. Nas regiões marinhas próximas das terras, sobretudo nos

golfos,partedesselodonegrodofundodomarfoirecoberto,hámilhõesde

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anos,pelasareiaseargilasqueosriosdespejamnomar.Comojávimos,aerosãodesagregaasrochasepormeiodosriosasconduzparaomar.Porissooscontinentesestãosempreadiminuirdevolumeeo fundodomarestásempreacrescerdealtura.Ossábioscalculam,porexemplo,quecadamiltoneladasdematerialpulverizadoextraídodocontinente,demodoqueem cada dez mil anos o tal golfo fica mais raso ummetro. No fim de 7milhões de anos estará completamente aterrado. Aqui no Brasil temos oAmazonasque,segundooscálculosdeEuclidesdaCunha,levaparaomar3milhões de metros cúbicos de detritos por dia, ou sejam quase doisquilômetros cúbicos por ano. Mas esses detritos não se acumulam logoadiantedodespejodoAmazonas,porcausadavelocidadedacorrentezanafoz.SãolevadosmaradentroatéalcançaremacélebrecorrentedoGolfodoMéxico,enofundodestegolfosedepositam,demisturacomosdetritosdoMississipi.

—QuerdizerentãoqueoBrasiltambémforneceaterroparaoGolfodoMéxico?

—Sim,eemboaquantidade.Mandaparaláquasedoisquilômetroscúbicosdeterraamazônicaporano.

—Masassimaregiãoamazônicavaiseabaixandoeacabaráinvadidapelomar...

—Muito possível. Essa região já foimar, antes do enrugamento daterraquecriouaCordilheiradosAndes.EraummarqueligavaoAtlânticoaoPacífico.Hojeéumaguaçaldoce,de tanto rioquehá lá; e comoessesriosnãoparamdedesmontarasterras,acabarãobaixando-astantoqueaágua do mar cobrirá novamente a bacia amazônica, formando o futuroGolfodoAmazonas.PoressetempooGolfodoMéxicoestaráaterrado.

— Bonito! — protestou Pedrinho. Então os Estados Unidosaumentarãodeterritórioànossacusta,mandandoparacáogolfoquehálá?

—Claro.Osdoismaioresriosdomundo,oAmazonaseoMississipi,estãoempenhadosnessatarefadeaterraroGolfodoMéxicoeabriroGolfoAmazonense.

— Sim, senhor!— disse Narizinho. Vejo que a água émesmo umadanadinha.Mudatudonaterra,comasuamaniadenãopararnunca.Éaleva-e-traz,éasobe-e-desce,éasaúvacarregadeira.

—Realmenteéassim.OssábiossabemqueháunspoucosmilhõesdeanosoGolfodoMéxicotinhaumaextensãoodobrodadehoje.OmesmoacontececomoGolfodaCalifórnia,quejáfoimuitomaior.Estáemgrandeparte aterrado pelo despejo dos rios— e é nessa parte aterrada que os

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americanosextraemmaiorquantidadedepetróleo.—Querdizerqueopetróleoseformanesselodoenterrado?—Justamente.Amatériaorgânicaacumuladanossedimentosgerao

petróleo — pelo menos na opinião de muitos sábios. Mas para isso éprecisoquenessamatériaorgânicahajahidrocarbonetos.

—Quebichoesquisitoéesse?—Hidrocarbonetoéonomequeosquímicosdãoàscombinaçõesde

hidrogênioecarbono.Essesdoiscorposmostram-semuitoamigos,gostamdeandarjuntos,debraçosdados.Osátomosdeumseligamaosátomosdeoutro, oranesta, oranaquelaproporção—e conformeé essaproporção,surgemoshidrocarbonetoschamadosmetana, butana, propana, acetileno,benzina,etc.quesãogasesoulíquidosvoláteis,todoselesinflamáveis.

—Quequerdizerlíquidovolátil?— Quer dizer um líquido que se transforma em gás assim que é

expostoaoar.Conserva-selíquido,enquantopreso.Seosoltam,adeus!viragás.Mas,comoeuiadizendo,paraqueseformepetróleoéprecisoquenostais sedimentos haja hidrocarbonetos. Nos sedimentos semhidrocarbonetos, só de fósseis secos, tais como os sedimentos calcários,nãoseformaopetróleo.

—Bom—disseEmília—estouvendoqueotalpetróleonãopassadeazeitededefunto.Cadáveresde foraminíferos,peixepodre, cemitériosdecaramujo—atéjáestouficandocomoestômagoenjoado...

—Porissoéqueétãofedorento—ajuntouNarizinho.—OViscondefalounoaterrodosgolfosdoMéxicoedaCalifórnia—

dissePedrinho.EaquinoBrasil?Nãoteremosalgumaterroassim?—Comonão?Há,porexemplo,oPantanaldeMatoGrosso,umdos

maioresaterrosqueomundoconhece.—Expliqueisso,Visconde.— O Pantanal de Mato Grosso e o Chaco do Paraguai e da Bolívia

formam uma imensa depressão duns 700 quilômetros de comprimento.Essa região já foi um mar interno, ou mediterrâneo, como se vê dasinúmeras lagoas de água salgada ainda existentes. Chamava-se oMar deXaraés. Também inúmeros fósseis marinhos atestam o antigo mar quesecou—ouqueestásecando,porqueas lagoassalgadasaindasãorestosdomar.

—EquematerrouesseMardeXaraés?—EstáclaroquefoiaErosão,comaterratiradadaCordilheirados

Andes,dumlado,edasmontanhasdoBrasil,deoutro.Aindahojevemosnomeiodopantanalalgumasmontanhasbaixas,comoaSerradeMaracajuea

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da Bodoquena. Essas serras são ruínas de montanhas. Deviam ter sidoaltíssimas, mas foram rebaixadas pela erosão. Com as areias e argilastiradasdelas,dosAndesedasoutrasmontanhasdoBrasil,équeseaterrouovelhoMardeXaraés.

—DevehavermuitopetróleonoPantanal—observouPedrinho.—Claroquedeve.Reúnem-sealitodososrequisitosparaaformação

dopetróleo,alémdequeemmuitospontoshásinaisevidentesdepetróleo.BempossívelatéqueoPantanalsejaamaiorregiãopetrolíferadomundo.

—Quebeleza!—exclamouPedrinhopensativamente.Nessemomentoorelógiodaparedebateunovehoras.— Basta por hoje, Visconde— disse Dona Benta levantando-se.—

Ouvicomamaioratençãoasuageologiaeachoqueestácerto.Masbasta.Temosdealternarciênciacomsono—echegouahoraderecolher.

Depois,voltando-separatiaNastácia,quecochilaraotempointeiro:—QuetalestáachandoageologiadoVisconde?—perguntou.Tia Nastácia abriu uma enormíssima boca vermelha e respondeu

bocejando:— Ele só fala em peixe podre, Sinhá. Peixe há de ser fresquinho.

Quantomaisfresco,melhor.Esevemaindavivo,comoaquelesurubiqueoCoronelTeodoricomandououtrodia,entãoaindamelhor...

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III

ComoseformaopetróleoNo terceiro serão oVisconde começou sema clássica tossidinha do

costume.Emíliareclamou:—Esqueceu-sedelimparopigarro,Visconde.Afimdecontentá-la,ograndegeólogotevedefingirumpigarroque

nãoexistia—masparacastigoprincipiouaaulacomestapergunta:—SenhoraEmília,explique-meoqueéhidrocarboneto.Aatrapalhadeiranãoseatrapalhouerespondeu:—Sãomisturinhasdeumacoisachamadahidrogêniocomoutracoisa

chamadacarbono.Oscarocinhosdeumseligamaoscarocinhodeoutroeformammetanasebutanasepropanasebenzinaseoutrascoisasgasosasouvoláteisquepegamfogo.

— Isso mesmo. Só que esses carocinhos têm o nome científico deátomos.Eondeseencontramesseshidrocarbonetos,Pedrinho?

— Nos sedimentos marinhos, sobretudo rente às costas, em terrasque já forammares,oudentrodoscontinentes,emterrasque também jáforammares.

— Muito bem. Os tais sedimentos orgânicos, os tais cemitérios deanimálculoseplantículas,geramostaishidrocarbonetosquepegamfogo;mas isso só quando se reúnem umas tantas condições favoráveis. Essescemitérios de matéria orgânica devem ser cobertos um pouco depressapelos tais aterros dos rios. Têm que ficar incubados, como ovos naincubadeira,sobtaisetaiscondições;docontrárionãosaemospintosdopetróleo.

—Quecondiçõessãoessas?—perguntouPedrinho.—Uma delas é ficarem isolados das águas. Esse isolamento livra a

matériaorgânicadeserdevoradaporcertosseresviventes,osurubuzinhosdomundopequeno.E tambéma livrada fome insaciáveldomaiorurubuqueexistenaNatureza,otalSenhorOxigênio.Estefreguêstemumapetitedecabra.Cometudoquantoencontra, istoé,oxida tudoquantoencontra,

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como dizem os químicos. O oxigênio existe na água e no ar; por isso amatéria orgânica que cai na água, ou está exposta ao ar, estraga-sedepressa,desaparece,oxida-se—édevorada,emsuma,peloterrívelurubu.

—Ahn!—exclamouPedrinho.—Entãoéporessemotivoquenãoseformapetróleonamatéria orgânicade cimada terra. Está exposta ao ar,entregueàfúriadooxigênio...

—Istomesmo.Ooxigênioéumaespéciedeguardadanatureza,comamissãodeconservarascoisasnumcertoestadodeequilíbrio.Vemosissocom o ferro. Esse metal não existe na natureza no estado livre de ferropuro.Existesob formadoóxidodeferro, istoé,misturadooucombinado,comooxigênio.Osminériosdeferro,ouaspedrasdeferro,comoopovodiz,nãopassamdessacombinação—sãoóxidosdeferro.Masvaiohomemederreteapedraefabricaoferrometálicodequeseutilizaparafazermilcoisas—facas,arame,pregos,vergalhões,chapas,trilhos...

—Ferrosdeengomar,alfinetes—ajuntouEmília.— ... tudo enfim que é máquina, instrumento ou material de

construção. Mas o Senhor Oxigênio, que não concorda com a mudança,tratalogodedesfazeraobradohomem—eenferrujaoferro.Sabemoqueéaferrugem?

—Éorugedoferro—disseEmília.—Ferrugeméóxidodeferro.E'ooxigênioqueseligaaoferropara

restabelecer o que a natureza criou e o homem alterou. Vai lentamentetrabalhandonisso,sempararnunca,eforçaohomemafabricarmuitoferronovoparasubstituiroferrovelhoquevoltaaserferrugem,ouóxido.

—Quebiscaotaloxigênio!—exclamouEmília.— Também com amatéria orgânica o oxigênio faz a mesma coisa.

Oxida-a, enferruja-a, combina--se com o carbono que há nela e solta ohidrogênio.Masquandoamatériaorgânicaficaenterrada,eportantoforade contacto com o oxigênio da água ou do ar, podem acontecer coisasdiferentes—comoessadeformar-seopetróleo.

— Mas se é assim — disse Pedrinho — então o homem pode, sequiser,fabricarpetróleo...

—Podeejáfabricou.Umsábioalemão,denomeEngler,provouqueasgraxasdeorigemvegetalouanimalsetransformamempetróleo,quandoaquecidasaumatemperaturademaisoumenos400grausaumapressãode20a25atmosferas.

—Quehistóriadepressãoatmosféricaéessa?

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—Pressãoatmosféricaéopesoqueoarexercesobreumcorpo.—Oarentãotempeso?—Claroquetem.Todososcorpostêmpeso.—Parecetãoleve...—Leveé,nãohádúvida;levíssimoaté,mastempeso.Umlitrodear

pesa um bocadinhomais de um grama. E como a atmosfera é a camadagasosaquevaidesdeoníveldomaraté láemcimaondeoaracaba,essacamada atmosférica está sempre fazendo peso sobre tudo que existe naterra,inclusivenós,gente.Umacolunadeardeumcentímetroquadradodebasepesa1.033gramas,ou1quiloe33gramas.

— Puxa! — exclamou Emília. — Mais de um quilo para cadacentímetroquadrado,queéumaiscadeespaço!...Nãoentendo!Seéassim,entãoopesodoarsobreacartolinhadoViscondedeveserdunsdezquilos,porqueacartolinha, comasabas, teráunsdezcentímetrosquadradosdesuperfície.Ecomtamanhopesonãoachataacartolinha?

—Porqueessapressãoseexercedetodososladosetambémdebaixopara cima e de dentro para fora, demodo que se anula. Mas se a genteextrairoarquehádentrodacartolinha, fazendoovácuo,elaseachataráimediatamente.

— Bom, Visconde. Basta de ar e pressões atmosféricas.. Volte aopetróleo—reclamouPedrinho.

—Estadigressão...—Queédigressão,Visconde?—Ésairdoassuntoprincipal,comonóssaímos.Estadigressão,digo

eu foi para explicar por quemotivo não se forma petróleo nasmatériasorgânicasexpostasàáguaouaoar.Paraqueseformepetróleoénecessárioqueamatériaorgânicafiqueisoladapelosaterrosqueosriosfazemcomosmateriaistrazidospelacorrenteza.Nocomeçohámisturadoaterrocomamatéria orgânica; depois não semisturamais, fica aterro puro—o qualaterropuro formaumacapa,umacamada isoladoraque livraamassadematéria orgânica do contacto com a água, com o oxigênio e os outrosurubuzinhos comedores de matéria orgânica. Quando isso acontece, amassasossegaevailentamentefabricandoopetróleo.

—Interessante!—exclamouPedrinho,eoViscondecontinuou:— As jazidas de petróleo mais importantes que o homem conhece

encontram-se, como já contei, perto das costas e nos extintos maresinteriores, ou mediterrâneos, como foi o nosso Mar de Xaraés. Os

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riquíssimoscamposdepetróleodeBacu,renteaoMarCáspio,estãonessascondições.OmesmodireidoscampospetrolíferosdaMesopotâmia,renteaoGolfoPérsico.AquinaAméricadoSultemososcampospetrolíferosdeComodoroRivadávia,naArgentina,renteaoGolfodeS.Jorge.Essegolfojáfoimuitomaior.Osaterroséqueoreduziramaotamanhoatual.Naparteaterradaosargentinosabrirammaisde3.000poçosdepetróleo.

—Entãoéfácilsaberondeestáopetróleo—dissePedrinho.—Bastadeterminarseumaterraéformadadeaterrodomar.

— É o que os argentinos estão fazendo. Por meio de estudosgeológicosegeofísicos,elesprocuramdeterminarasterrasdeaterroparanelasabriremasperfurações.

—Estátudomuitobem,Visconde—dissePedrinho.—Maseuqueriasabercomoatalmatériaorgânicavirapetróleo.

— Ah — exclamou o Visconde — isso é uma história bastantecomprida. São precisos milhões de anos de paciência. A natureza é umalesma nos seus processos, como já observei. Primeiro há a mistura dossedimentos orgânicos com as areias que os rios trazem; depois acaba amisturaecomeçaoaterropuro.Esseaterropurodeveserdemateriaisquepermitam a formação duma camada impermeável, uma casca, uma capaquedefendaosossegodamatériaorgânicaaprisionadanofundo.Quando,em terra, uma vegetação fica por muito tempo recoberta e, porconseqüência, livre de contacto com o ar, os vegetais, em vez deapodrecerem,transformam-seemturfa,ouemcarvãodepedra.Equando,no mar, a matéria orgânica composta das gorduras e dos caldinhos dosanimálculos do lodo marinho fica isolada do oxigênio, ela vai seconvertendonumasériedematériasbetuminosas.

—Queéisso?— Matérias betuminosas são as que contêm hidrocarbonetos; o

asfalto, o petróleo bruto e certos xistos são matérias betuminosas. Ohomem refina essas matérias para extrair os hidrocarbonetos purosempregadosnaindústria.

— Mas eu quero saber como se faz a passagem do tal lodo dematériasorgânicasparapetróleo—reclamouNarizinho.

—Nolaboratórioosquímicossabemfazeressapassagem.JáconteiaexperiênciadeEngler.Calorde400grausepressãode20a25atmosferas.

—Espere,Visconde.VossaExcelência esqueceude explicar o que éUMAatmosfera.Sófalounaatmosferaemgeral.

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OViscondetomoufôlegoeexplicou:—Emfísica,apalavra"atmosfera"querdizerumamedidadepressão,

comoometroquerdizerumamedidade comprimento.Atmosfera,nestesentido de medida, equivale ao peso de 1.033 gramas por centímetroquadrado.Apressãode20a25atmosferasusadaporEnglercorresponde,pois, a um peso de 20 a 25 quilos por centímetro quadrado. Mas nolaboratórioaformaçãodopetróleosefazimediatamente,comapressacomqueoshomensqueremtodasascoisas.Nanatureza,não.Opetróleo levamilhares de séculos se formando— e os sábios não se entendem nesseponto.Nãosabemqualéamarchadoprocessodetransformação.

OViscondepassouolencinhopelorostoeprosseguiu:— Muito bem. Creio que quanto à formação do petróleo basta

ficarmos nisto. Meu curso não é para formar especialistas, sim para daruma idéia geral da coisa. Temos agora de ver quais as condições quetornam esses depósitos de petróleo exploráveis. Este ponto é da maiorimportância para o mundo. Se o petróleo fosse inexplorável, de nadavaleriaparanós.Éprecisonãoesquecerquea formaçãodas camadasdesedimentosedeuhámilhõesemilhõesdeanos,numtempoemqueogloboeraaindaumafrutafrescaeroliça.Depoisocoitadofoimurchandoatéficarapassaqueéhoje.

—Quehistóriadefrutafrescaepassaéessa,Visconde?—Umacomparaçãoparaquevocêsmeentendammelhor.— Comparações dessa ordem só servem para nos fazer vir água à

boca—disseNarizinho.—Passas!Quemmedera teraquiumpacotinhodaquelassemcaroço—seedless,quevêmdaCalifórnia...

— Pois uma passa é uma fruta murcha e ressecada, como aquelemaracujá que Pedrinho descobriu atrás do armário, todo enrugadinho,cheiodemontanhasevales.Coma terraaconteceuomesmo.Começouaesfriareamurchar,efoiseencolhendo,eseenchendodasrugasquehojeformam as montanhas e os vales. A Cordilheira dos Andes é uma dasmaiores rugas desse tipo; segue através de toda a América do Sul econtinuanosEstadosUnidoscomonomedeMontanhasRochosas.

—Equetemissocomopetróleo?— Tem que no começo as camadas de sedimento depositadas no

fundodosmareseramhorizontais,oumaisoumenoshorizontais.Comoenrugamento, ou o murchamento da crosta da terra, essas camadashorizontaisperderama suahorizontalidade, tornando-sepor assimdizer

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montanhosas, ouonduladas.Ainda existemno globo zonas onde a crostaestácomoeranosprimeirostempos.AsgrandesplaníciesdospampasdaAmérica do Sul e das estepes da Rússia foram planícies no começo econtinuaramplaníciesatéhoje.Nãoenrugaram.Masissoéraro.Nogeralacrostaseenrugou,formandoasmontanhaseosvales.Nesseenrugamentohouvemuitarupturadecamadas,comescorregamentosdumasobreoutra,torcimentos, penetração duma camada em outra, etc. Mil acidentesaconteceram.Voudesenharnapedraumdessespregueamentosdosmaissimples,paramostrarondeseacomodaopetróleo.

O Visconde berrou para tia Nastácia que lhe trouxesse o quadro-negroeogiz.

Apretasaiu,estonteadadesono(oquadro--negromoravanoquartodePedrinho),evoltouresmungando:

—Peixe,peixepodre,peixeseco,esqueletodepeixe...Paraqueserveesselixo?Bobagem...

O quadro-negro foi arrumadode jeito que o Visconde de pé na suacadeirinha,pudessedesenharumafiguraassim:

—Istoéumcortedaterranoestadoemqueelaseachavaantesdo

enrugamento.Temosumacamadasedimentáriacomopetróleojáformado.Notemqueopetróleoficaemnívelplanoeemcimadaágua.

—Porqueemcima?—quissaberNarizinho.— Porque namassa de lodo aprisionado pela capa do aterro havia

tambémágua—águadomar,águasalgada.Ecomoémaislevequeaágua,opetróleo,àmedidaqueseforma,vaisubindoesecolocandoemcimadaágua.Eogásquetambémseformaficaemcimadopetróleo,porqueogásémais leve que o petróleo. A ordem de colocação, pois, é, primeiro água,depoispetróleo,depoisgás.

DonaBentapiscouparatiaNastácia,comoquemdiz:"Quedanadinho,hein?"OViscondecontinuou:

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—Muito bem.Masumpetróleoqueseachadispostodessamaneiradenadaserveaohomem.Nãohá jeito de recolhê-lo. Para que o petróleo sirva é necessário que seaglomerenumcertoponto—oquesedáquandoascamadassofremotalenrugamento.Vamos fazeroutrodesenho, comestasmesmascamadas jáenrugadas.Teremosisto:—Ascamadasenrugaram—explicouoVisconde— ficaram onduladas que nemmontanha russa. E que aconteceu com opetróleojáformadoeacumuladoporigualemcimadossedimentos?

— Subiu para a parte mais alta por ser mais leve que a água —respondeuPedrinho.

— Exatamente. O petróleo subiu e ficou entalado entre o gás, emcima,eaágua,embaixo.Essasrugastêmonomedeanticlinais,quandosãoparacimaeemformademontanhas;etêmonomedesinclinaisquandosãoparabaixo,emformadevale.Opetróleonuncaestánotopodoanticlinal,simnasencostas.Seabrirmosumpoçobemnopicodoanticlinal,nãosaipetróleo,saigás.Seabrimosumpoçomuitonopédasencostas,saiágua.Masseabrimosumpoçobemnaencosta,saipetróleo.

—Entãoéfacílimotirarpetróleo—observouPedrinho.— Seria, se nós aqui de cima pudéssemos ver com os nossos olhos

essas dobras lá dentro da terra. Infelizmente nossos olhos não penetramfundoassim.

—Ecomofazer,então?—Pormeiodeobservaçõesgeológicas,istoé,deestudosdaterrana

superfície,oshomensconseguem,muitasvezes,localizaressesanticlinais.Ultimamente apareceu uma ciência nova que tem ajudado muito: aGeofísica.Graçasaosprocessosgeofísicosépossíveldeterminarcommuitaprecisão os anticlinais e os sinclinais, e, portanto, marcar os melhorespontosparaasperfurações.

—Emíliaantigamente tinhaunsolhinhosdeveratravésdoscorpos

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opacos— disse amenina olhando para a boneca.—Quem sabe se comesses olhinhos podemos determinar algum anticlinal de petróleo aqui nosítiodevovó?

Emíliaremexeu-setoda.— Ainda não fiz a experiência, mas acho possibilíssimo. Hei de

verificaresseponto.TiaNastáciaarregalouosolhos,murmurando:—Credo!—ecomoorelógiomarcassenovehoras,foiselevantando.— Basta por hoje — disse Dona Benta, erguendo-se também. —

Continuo a aprovar a ciência doVisconde. Tudoquanto ele disse está deacordocomoqueosgeólogosensinam.Eleéumsábiodeverdade,mas...cama,cama,criançada!

Meiahoradepoistodosdormiam,sonhandocomanticlinais,matériasorgânicas, hidrocarbonetos e peixinhos fósseis. Emília sonhou com umabaleiaimensa,queesguichavapetróleo.

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IV

Petróleo!Petróleo!

No serão seguinte, antes de o Visconde começar a aula, cada umcontouo sonhogeológicoque teve.OdeEmília, comosempre, foiomaiscomplicado. Tinha-lhe aparecido uma "baleia petrolífera", com váriastorneiras pelo corpo imenso; uma que dava gasolina; outra, querosene;outra,óleocombustível;outra,óleolubrificante...

—Pare, Emília!—gritouNarizinhoquandoa boneca chegounesseponto.—Vovófalade300produtosextraídosdopetróleo.Querdizerqueasua baleia vai ter 300 torneiras pelo menos — e se você começa aencarreirartodas,oViscondeficasemtempodedaraliçãodehoje.

—Alémdisso—ajuntouPedrinho—eudesconfiomuitodossonhosda Emília. São bem arranjados demais. Essa tal baleia com torneiraspetrolíferasestámecheirandoatapeação...

Emília pôs-lhe a língua, mas "guardou" a baleia, deixando que oViscondeabrisseaboca.

—Muitoquebem—começouele.—Vimosontemcomoseformamos lençóisdepetróleo, e vimosqueesses lençóisdevemestarprotegidosporumacapa impermeávelqueprendaosgaseseoóleo.Vimos tambémqueéprecisoqueoslençóisseenruguemeopetróleoseacumulenapartesuperiordasdobras.Seacapaserompe,ogáseoóleoescapameperdem-se.

—Perdem-secomo?—quissaberPedrinho.—Quandovocêpingaumpingodeazeitenumpapel,queacontece?

—propôsoVisconde.—Acontecequeoazeitevaiseespalhandoatétomarcontadopapel

inteiro.— Issomesmo. Espalha-se, vai caminhando. Omesmo se dá com o

petróleo lá do fundo, quando a capa impermeável se rompe. Vai seespalhando,vaisubindo,atéchegaràsuperfíciedaterra.EmmuitospontosdoBrasilvemosostaisxistosearenitosbetuminosos,quenãopassamdemateriaisimpregnadosdopetróleoqueveiosubindodofundo.NoValedoParaíba,aquiemSãoPaulo,noRiachoDoce,emAlagoas,emSãoGabriel,no

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RioGrandedoSuleemmuitosoutrospontosexistemgrandesquantidadesdexistosbetuminosos.Essebetumeésinaldepetróleodofundoquesubiuatéemcima.

—Antesdemaisnada,Visconde,expliqueoqueéxisto.— Xisto é uma argila compacta que aparece em lâminas, ou

camadinhas; e arenito já ensinei: é areia com os grãozinhos cimentadosentresi,formandoumaespéciedepedrameiodura.

— Nesse caso, quando há em cima da terra xisto ou arenitobetuminosonãodevehaverpetróleonofundo.Seopetróleochegaatéemcima,entãonãoestámaisacumuladoláondeseformou.

—Éenãoéassim—respondeuoVisconde.—Opetróleoexistentenacamadasubterrâneapodeter-sederramadotodoouemparte.Porumafenda, ou rachana capa impermeável, pode subir umapartedopetróleo,ficandoorestonofundo.

—Tomefôlego,Visconde.Nãotemospressa.OViscondeencheudearospulmõesecontinuou:—Muitobem. Já sabemosser indispensávelquea capadopetróleo

seja impermeável e inteiriça, sem fendas ou portas por onde o óleo fuja.Temos agora de saber mais uma coisa: os lençóis de petróleo não sãocompostosdepetróleosolto,líquido;eleestásempremisturadocomareia,formandoumapapa.Osgeólogosdizem,nasua linguagemtécnica,que"acamada portadora de petróleo tem de ser de rocha porosa", isto é,composta de grãozinhos com espaços entre si. Nesses espaços é que opetróleoseacumula.

—Entãonascamadasdeargilasnãopodehaverpetróleo—observouPedrinho.

—Nãopode.Osgrãozinhosdeargilascimentam-sedetalmodoquenão fica entre eles nenhumespaço emque o petróleo se acomode. Essascamadasdeargilaservemdecapa,issosim.

—Bem—continuouoViscondedepoisdeumapausa.—Estamosnacapa impermeável. Com o enrugamento da terra, a capa, no alto dosanticlinais, fica muito perto da superfície do solo; e, portanto, está maisarriscadaaromper-se.

—Porquê?— Sempre por artes da Senhora Erosão. Não suamania de corroer

tudo,elevairebaixandoosolo,afundando-oatéquealcançaoaltodacapaimpermeável e a ataca. O anticlinal é uma montanha enterrada — e aErosãotemódioàsmontanhas,comojávimos.Nãoadmitenenhuma.Querarrasá-lastodasparadeixaraterraumaplaníciesemfim.

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—Comoédemocrática!—exclamouNarizinho.—Sim a Erosão é inimiga das grandezas. OHimalaia, por exemplo,

queéamontanhamaisaltadomundo,jáfoimuitomaisalta.Aerosãovairaspando,vairoendo,vaidestruindoessaorgulhosamontanha,atéqueumdiadêcabodela.

—Quedia?—Umdialánofuturo,daquia100ou200milhõesdeanos.Nessedia

a terra toda estará lisinha, sem nenhuma das rugas que se formaramquandohouveotalenrugamento.

—Quebomparaasgeografiasdessaépoca!—exclamouEmília.—Porquê?— Porque com o desaparecimento das montanhas desaparece das

geografias a parte mais pesada, justamente as montanhas. Que gostoestudargeografialáparaoano20000000037!

— Ficarão mas é muito sem graça — disse Narizinho. — Acho asmontanhasa coisamais lindadomundo.OsAndes!OHimalaia!OMonteBranco,naSuíça!Asnevesquehánasmontanhas,aságuias,oscondores,aedelvais—tudoissodesaparecerá...

—Sim,tudodesapareceráporqueaErosãonãopáranunca.Róisemcessar,parafazeraterrosnaágua.

— Boba!— exclamou a Emitia.— Desde que não pode destruir aágua, omaisque consegue éque a água semudedumpontoparaoutro.Quematerraummarnãodestróiaáguadessemar—obriga-aamudar-se,só.

— Issomesmo— concordou o Visconde.— E essasmudanças sãocontínuas.Tudoestámudando,semqueagenteoperceba.Osmaresestãovirando continentes; e os continentes, virando mares. E a incansáveloperária dessa eternamudança é sempre a Senhora Erosão. No caso dopetróleo, a Erosão vai roendo a crosta por cima dos anticlinais, roendo,roendo,roendo,baixandocadavezmaisoníveldasuperfícieatéquetocanacapadopetróleo.Começaaafinaressacapa,eporfimarompenopontomaisalto.Opetróleoentãoescapa—ouaflora,comodizemosgeólogos.

—Queéaflorar?—Éapareceràflordaterra.—Terratemflor?—disseEmília,arregalandoosolhos.OViscondecoçouacabeça.— Flor, Emília, não é só esse mimo colorido e perfumado que as

plantas produzem. A palavra flor também significa superfície. Quando agentediz:Àflordapele,estádizendo:nasuperfíciedapele.Apareceràflor

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daterraquerdizeraparecernasuperfíciedaterra.Logo,quandoumacoisaaparece à flor da terra, aflora. Aflorar é isso; é aparecer na superfície.Entendeu?

Emília fez umfocinhinhodelebre,sinaldequetinhaentendido.OViscondecontinuou:

— O petróleo aflora, escapa, escorre, põe-se em contacto com ooxigêniodoar—eooxigênioooxida,transformando-oemasfalto.Hápelomundo numerosos depósitos desses restos do petróleo vasado pelosanticlinaisroídospelaerosão.Nessescasos,procurarpetróleoalié tolice.Seelesederramou,comohádeestarládentro?

— Mas pode estar perto, em outro anticlinal que ainda não fossealcançadopelaErosão—observouPedrinho.

— Perfeitamente. Perto ou embaixo do anticlinal esvaziado. Ascamadas, ou os horizontes, ou os lençóis de petróleo aparecem muitasvezesemsérie, superpostos,unsemcimadeoutros.Seoprimeiro lençolestáa800metros;outroestaráa1.000;outroestaráa1.500—eassimpordiante.Éporissoqueospetroleirosdehojecuidammuitodeperfuraçõesprofundas;eempontosondejátirarampetróleoa800metros,estãoagoraatirá-loa1.000,1.500eaté3.000metros.

—Muitobem,Visconde—dissePedrinho.—Peloqueosenhordiz,aErosão tirou petróleomuito antes de o homem se ocupar disso. Logo, agrandepetroleiraéaErosão.

—Perfeitamente.Quemcomeçoualidarcomopetróleonomundofoia Erosão; e observando o trabalho dela é que o homem resolveu fazer omesmo. Em vez de esperarmilhões de anos para que a Erosão rompa acapaimpermeáveldosanticlinais,ohomemvaiefuranessesanticlinais—e passa a perna na Erosão. O homem antecipa-se à Erosão, mas paraalcançaresoltaropetróleofazomesmoqueela:vaierodindoaterra.Umaperfuraçãoparapetróleoéumaerosãovertical,feitanumespaçopequeno,

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numcírculodedoisoutrêspalmosdediâmetros,emlinharetaquedescedasuperfícieatéolençoldepetróleo.AErosãonaturalnãofazburaquinhosretos assim: rói por igual e horizontalmente toda a superfície do campopetrolífero;poressemotivoéquelevatantotempo.Gastamilharesdeanosparaalcançarumanticlinalqueohomem,comassuasmáquinasdefurar,alcançaempoucassemanasdetrabalho—eatéemdias.Emcertaszonasospetroleirosabremumpoçonumasemana.

—Numasemana?—exclamouPedrinho.—Sim,numasemana.Tudodependedasrochasformadorasdaterra

naqueleponto.Sesãorochasmoles,comoasargilaseosxistos,tudocorreagalope.Masseosperfuradoresencontramumapestechamadadiábase,rochadeextraordináriadureza,babau!Aísóàforçadepaciênciadesanto.NoPoçodoAraquá,furadoaquiemSãoPaulonoMunicípiodeSãoPedro,osperfuradoresderamnumacamadadediábaseduríssima.Tãoduraqueaperfuração, que estava caminhando com a marcha de 7 metros por dia,passouacaminharcentímetrospordia—cincocentímetros,dez,quinze,paracada24horasdetrabalhoininterrupto.Umhorror!

— E quem foi que teve a ideia de lograr a Erosão e chegar aosdepósitosdepetróleoantesdela?

— Foi o Coronel Drake, nos Estados Unidos. No ano de 1859 essecoronelentendeudeabrirumpoçoemTitusville,noEstadodaPensilvânia— e tanto lidou que o abriu, apesar das ferramentas de que dispunhaserem das mais rudimentares. Esse poço virou o pai de todos os poçosabertosnaquelepaís.

—Quantosfilhosteve?—perguntouNarizinho.—Maisde900mil.Jáhámaisde900milpoçosdepetróleoabertos

nosEstadosUnidos.Osamericanossãoumasferas.Ecomofazemtudoempontogrande,tornaram-seopovomaisadiantadoericodomundo.

—Enós,noBrasil,quantospoçosabrimos?—Quedessepetróleo,nenhum.Atéhojeforamabertosnoterritório

brasileiro apenas sessenta epoucospoços, namaioria rasosdemaisparaatingiremalgumacamadapetrolífera.

—Quevergonha!EaArgentina?—AArgentina já abriumais de 4.000, quase todos produtivos. Por

essarazãoestáhojeextraindo16milhõesdebarrisdepetróleoporano.—EosoutrospaísesdaAmérica?—Todos estão cheiosdepoçosdepetróleo, donde tirammilhões e

milhõesdebarris.AVenezuelaconseguiutornar-seoterceiroprodutordomundo,commaisde140milhõesdebarrisporano.OPeruextraimilhões

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de barris. A Colômbia extrai outros milhões. O Equador extrai outrosmilhões. A Bolívia, idem. Todos os vizinhos do Brasil são grandesprodutoresdepetróleo,excetooUruguaieoParaguai.

— E por que o Brasil também não produz milhões e milhões debarris?Seráquenãoexistepetróleoaqui?

— Não existem perfurações, isso sim. Petróleo o Brasil tem paraabasteceromundointeiroduranteséculos.Hásinaisdepetróleoportodaparte — em Alagoas, no Maranhão, em toda a costa nordestina, noAmazonas, no Pará, em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina, no RioGrande,emMatoGrosso,emGoiás.AsuperfíciedetodosessesEstadosestácheiadosmesmosindíciosdepetróleoquelevaramasrepúblicasvizinhasaperfurareatirá-loaosmilhõesdebarris.Osmesmíssimossinais...

—EntãoporquenãoseperfuranoBrasil?—Porqueascompanhiasestrangeirasquenosvendempetróleonão

têminteressenisso.Ecomonãotêminteressenissoforamconvencendoobrasileiro de que aqui, neste enorme território, não havia petróleo. E osbrasileirosbobamentesedeixaramconvencer...

—Queararas!—exclamouEmília.—Masnãoestãovendopetróleosairemtodosospaísesvizinhosdonosso?

—Estão,sim,masquequervocê?Quandoumpovoembirraemnãoarregalarosolhosnãoháquemofaçaver.Astaiscompanhiaspregaramaspálpebrasdosbrasileiros comalfinetes.Ninguémvênada,nada,nada... Ecada ano o Brasil gasta mais de meio milhão de contos na compra dopetróleoqueascompanhiasespertalhonasnosvendem.

—Meiomilhãodecontos!—exclamouPedrinho.—Mil trezentosetantoscontospordia!Quarentaetrêscontosporhora!Quedoençacaraéacegueira...

— E a profundidade, Visconde! — perguntou Narizinho. — A queprofundidadevãoospoçosabertospeloshomens?

— Varia. Há poços de 200 metros; outros de 500; outros de 800,outrosde1.000,de1.500,de2.000etc.Omaisprofundoparece-mequeéum de 3.468 metros, no Estado da Califórnia. Na Argentina há um com2.500 metros, na Província de Mendonza. Mas ficam muito caros essespoçosprofundos.Osdepreçocomercialnuncavãoamaisde2.000metros.

—Edepoisqueofuroalcançaodepósitodepetróleo,queacontece?— Quando o poço alcança um anticlinal intacto, isto é com a capa

impermeável perfeitamente fechadinha, encontra lá, petróleo preso,submetidoapressõesmuitofortes,de150,200oumaisatmosferas.Assimqueofurorompeacapaimpermeável,essapressãofazqueopetróleosuba

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poreleacimaejorre.Àsvezes,quandoapressãoémuitoforte,opetróleoesguicha com tamanha fúria que escangalha com a torre de sondagem,arremessando as ferramentas a grandedistância.NoMéxico foi aberto océlebrepoçodeCerroAzul,que jorroucomumavazãode300milbarrispordia.Oesguichodopetróleosubiua180metrosdealtura!...

—Quemaravilha!—exclamouPedrinho.—Eatorredesondagem,comcerteza,foiparaoinferno...

—Sim,foitudoarremessadoadezenasdemetrosdedistância.—Ecomofizeramparadomaromonstro1?—Umatrabalheirahorrível.Masquempodecomobicho-homem?No

fimdealgunsdiasoCerroAzulestavadomado—estavadefreionaboca,isto é, com um registro, que é uma imensa torneira adaptada à boca docano. Esse poço produziumilhões emaismilhões de barris de petróleo,permanecendoatéhojeocampeãomundial.

—Ah,senósdescobríssemosumCerroAzulaquinosítiodevovó!—suspirou Narizinho. — Eu só queria ver a cara de assombro de tiaNastácia...

—Quemsabe?!Tudoépossívelnestemundo—disseoVisconde.—Mas temos de perfurar. Sem perfurar não aparecem Cerros Azuis, nemVerdes, nemAmarelos. Quemquer ter petróleo, perfura. Esperar que eleapareçaporsi,ébobagem.

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Eosbrasileirosbobamentesedeixaramconvencerdequeaqui,nesteenormeterritório,nãohaviapetróleo.

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—Equesefazparaprevenirqueojorrodepetróleoescangalhecomtudo?

— Os petroleiros tomam todas as precauções para evitar isso, emvirtudedosmuitosdesastresdocomeço.Colocamnabocadopoçoastaistorneiras fortíssimas, que são fechadas assim que o petróleo começa asubir.Porfaltadessaprecaução,certacompanhiaamericanalevouabreca.

—Como?— Estava a abrir um poço e descuidou-se de colocar o torneirão.

Subitamente o petróleo jorrou com enorme violência, varrendo com asondaearrancandoos tubosdeaçodoencanamento.Nãohouve jeitodeestancarorepuxo.Opetróleo inundoutudo, formouumalagoaemredor,invadiu os riachos próximos — uma verdadeira calamidade! Asindenizaçõesqueosvizinhosexigiramdapobrecompanhiaarrastaram-naàfalência.

— Que engraçado! Uma companhia que quebra por ter tiradopetróleodemais!...

— De fato foi assim. Pagou bem caro o descuido, e para evitardesastres dessa ordem os petroleiros tomam o máximo cuidado para"sossegaroleão"dopetróleoquandoelecomeçaajorrar.

—Eessa talpressãoquehá láno fundodosdepósitosdepetróleo,dondevem?

— São pressões dos gases do próprio petróleo. O petróleo está aomesmotempoemestadolíquidoeemestadogasoso.Comoosgasesficammuitocomprimidospelacapaimpermeável,elesexercemgrandepressão;eassim que o furo rompe a capa, essa pressão força o petróleo a sair. Osgases são damaior importância para os petroleiros; por isso evitam queeles se escapem pelo furo; se o gás se escapa, lá se vai a pressão e opetróleonãosubiráporsimesmo;terádeserpuxadopormeiodebombasaspirantes. Depois de rasgado o primeiro furo na capa impermeável dajazidadepetróleo,abrem-seoutrosperto;acapavaificandotodafuradinhaeportodososfurossaiopetróleo.Dessemodoospetroleirosaumentamaproduçãodocampo.Seumpoçodá1.000barrispordia,abrindooutroelesobtêm2.000;eassimpordiante,atéqueapressãodosgasesdiminuaeasaídadopetróleoesmoreça.Opoçomaisviolentoésempreoprimeiro;osabertosnasproximidadesjáencontramoleãosossegado,porqueapressãodogásdiminuiucomaaberturadoprimeiro.

—Ecomoospoçosacabam?—quissaberPedrinho.—Acabamcomotudonavida—eatécomoasaulas—respondeuo

Viscondecomosolhosnorelógio.Eramquase9horas.

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Todos se levantaram. Tia Nastácia, que dormira o tempo inteiro,ainda estava nos peixes; e certa de que o Visconde só falara de peixesfósseis,retirou-seresmungando:

—Peixe,peixeseco,peixepodre.Paraqueserveisso?Peixehádeserpescadoalinahorinha.Bobagem...

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V

Maispetróleo

— Onde ficamos ontem?— perguntou no serão seguinte o grandegeólogo.

—Estávamosnoesgotamentodospoços—lembrouPedrinho.—Sim.Tudoseacabanestemundo.Ospoçosdepetróleo,pormuito

queproduzam,emdadomomentocomeçamamorrer.Vãodandomenos,menos,eporfimtêmqueserabandonados;oóleoquesaijánãocompensaotrabalhodebombear.Masofatodeospoçossecaremnãoquerdizerqueo campo petrolífero esteja extinto. Quer dizer apenas que saiu todo opetróleoquepodiasairnavertical.Aexperiênciademonstraqueopetróleovazado pelos poços corresponde de 15 a 35 por cento do que existearmazenadonajazida.

—Só?—exclamouPedrinho.—Entãoamaiorparteficanofundo?—Fica.Nofundoficamde65a85porcentodopetróleoexistente.—Eohomemnadafazparaconseguiressepetróleo?— No começo ninguém cuidava disso. Abriam novos campos

petrolíferos,depoisdeabandonarosvelhos.MasaAlemanhateveidéiadefurargaleriascomoasusadasnasminasdecarvão-de-pedra,paraarrancaro petróleo que se recusa a sair pelos poços.Durante a GuerraMundial aescassez do petróleo fez que os alemães recorressem a esse processo naAlsácia—eocasofoiqueconseguiramextrairbastantepetróleo.Tambémos argentinos andam querendo empregar o processo de galerias emComodoroRivadávia,ondeospoçosproduzemcadavezmenos.Sódepoisdeusadasasgaleriaséquesepodedizerqueumcampodepetróleoestáesgotado.

—Equantotempoduraumpoço?— Varia muito. Cada poço tem a sua duração determinada pela

quantidade de petróleo que há embaixo, pela pressão dos gases e pelaquantidadeextraída.Hápoçosqueproduzemdurantediasapenas.Outros,durante semanas.Outros, durantemeses. Outros, durante anos.Umpoçoque dura dez anos já é de primeira ordem, embora haja poços até dequarentaanos.

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—Equantoproduzumpoço,emmédia?—quissaberPedrinho.—Tambémvariamuito.Unscomeçamproduzindoapenaslitrospor

dia; outros jorram milhares de toneladas por dia. Em 1934 os russosabriramemLokBatan,pertodeBacu,umquerompeucommaisde20miltoneladas por dia! Mas esses poçosmuito ricos são exceções. Poços quecomeçamcom15barrisdiáriosjárecebemgrau10,epoçosde100barrissãoexcelentes.Ésópegarnumpapelefazeracontadequantorendeumsimplespoçode100barrispordia.

—Rende3milpormêsou36milbarrisporano—gritouNarizinho,acampeãdocálculomental.—Equalopreçodopetróleobruto,comosaidopoço?

— Pode botar aí uns 30 cruzeiros — respondeu o Visconde — eNarizinhoimediatamente"cantou":

— Um milhão e oitenta mil cruzeiros por ano. Ótimo. Eu com umpocinhoassimjáviravabaronesadopetróleo.

—Poissemeaparecesseumpoçosóde100barrispordiaeunemligava—gritouEmília.—Sóquero saberdepoçosde10mil para cima.Nãomesujocompetrolinhosvagabundos...

Todos riram-se duma coitada que nunca soube nem como gastar otostãonovoquetinhanosseusguardados.

—Equantopetróleoseproduzhojenomundo,Visconde?—indagouPedrinho.

—Muito.Umcolosso.SóosEstadosUnidosproduzemumbilhãodebarrisporano.

—Umbilhão?Puxa!Milmilhões!Milpilhasdeummilhãodebarriscadauma!EtudoissoemconseqüênciadotalpocinhodoCoronelDrake...

— Sim. Foi desse pocinho que brotaram todas essas pilhas demilhões;comoserádoprimeiropocinhoabertonoBrasilquevaibrotaromilhãodepoçosqueteremosumdia.Porquenão?OBrasiltemomesmotamanhodosEstadosUnidos.Seaindaestádormindo,umdiahádeacordar—eentão...

Emíliabateupalmas.— Viva! Viva! Vamos acordar o Brasil! Rompemos aqui o primeiro

poçoepronto—estáacordadooBrasil.Viva!Viva!...— O Brasil poderá suceder aos Estados Unidos na produção do

petróleo— disse o Visconde, que apesar de simples sabugo, raciocinavamelhorqueosmilhõesderabanetesbípedesqueandamporaínegandoopetróleo.—Teremosopoçon.°1aquinosítioeon.°2noRiachoDoce,emAlagoas, ondeos trabalhos estãomuito adiantados.E a seguir teremos lá

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mesmomaisoutros,maisdez,maiscem—quinhentospoços!EafebredopetróleopegaránoBrasil inteiro,quenemgripe,e começarãoaaparecerpoçosportodaparte.SurgirãoosdeMatoGrosso, tremendos,dedezenasde milhares de barris por dia, como no México. E surgirão os poços deGoiás.EosdeSãoPaulo.EosdoParaná.EosdaBahia.EosdoEspíritoSanto.EosdoRioGrandedoSul.EosdeMinas...Tudodependedaaberturadoprimeiro.

—Coçaretirarpetróleovaisódocomeçar—sentenciouEmília.—Sim.NosEstadosUnidosoCoronelDrakeabriuoprimeiropoçona

Pensilvânia—eos rabanetesde ládisseramque sónaPensilvâniahaviapetróleo.MascomonovosDrakesfuraramemoutrospontos,aquelespaísestáhojeatirarpetróleonosEstadosdoTexas,daCalifórnia,doArkansas,doColorado,deIllinois,deIndiana,deKansas,doKentucky,deMontana,deMichigan, de Nova Iorque, do Ohio, de Oklahoma, da Virgínia e doWyoming.E coma continuaçãodos trabalhos, aindaacabamdescobrindopetróleoemmuitosoutrosEstados.Tudo,porquê?PorqueoCoronelDraketeveacoragemdecomeçar.

—Eupormimcomeçavaanossaperfuraçãoamanhãmesmo—dissePedrinho,jáaflitoporveropetróleojorrar.

— Inda é cedo— respondeuoVisconde.—Por enquanto vocês sósabemumpedacinhodopetróleo—têmqueaprendermuitomais.

—Quemais?—Oh,tantacoisa...Têmdeaprenderqueasreservasdopetróleodos

EstadosUnidos começama aproximar-sedo fim.O consumoé tremendo.Issodeextrairdaterraumbilhãodebarrisporanotemlimite.Pormaioresqueasreservassejam,umdiaseacabam—easreservasamericanasestãose acabando. Há lá um Instituto do Petróleo que só trata de estudospetrolíferos.Esseinstitutopublicouhápoucotempoumcálculo,provandoque as reservas americanas conhecidas não passam de 12 bilhões e 177milhõesdebarris.Ora,paraumpaísqueextraiumbilhãoporanoissoquerdizerpetróleoparadozeanos.

—Reservas"conhecidas"...—observouPedrinho.—Sim,haveráasdesconhecidas,asqueaindaserãodescobertas—

masserãodescobertas?Haveráaindapor lágrandes reservas ignoradas?Ninguém pode responder. O que se sabe é que as "reservas conhecidas"estãonofim—equandoseacabarem,osEstadosUnidosterãodecomprarpetróleofora,comohojecompramcaféeborracha.OBrasil,pois,deveirsepreparando para fornecer petróleo para os Estados Unidos, depois deabastecer-seasipróprio.

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—Quecolosso!— Realmente. No dia em que tal acontecer e o Brasil passar de

comprador a vendedor de petróleo, então deixaremos de ver essa coisatristíssima de hoje — milhões de brasileiros descalços, analfabetos,andrajosos—namiséria.OBrasil temtodososelementosparatornar-seumpaísriquíssimo—masriquíssimodeverdade,enão,comohoje,apenasricode"possibilidades"—oude"garganta."

—Bravos,Visconde!—exclamouDonaBenta.—Nemparecequeéumsabuguinhoqueestáfalando.

—Pudera!—gritouEmília.—Numpaísondeatéosministrosnãopensamempetróleo,ouquandofalamneleéparanegar,sómesmodandoapalavraaumsabugo.VivaoSenhorViscondedoPoçoFundo!

Osabugogeológicoagradeceuashomenagensecontinuou.Apesardebrotado de um pé demilho, ele amava a terra que produziu esse pé demilho.

—Sim,havemosdecrescereaparecer.Havemosdetirarpetróleoaosmilhõesdebarris.Havemosdeexportarpetróleoparatodosospaíses,edequeimá-lo aqui em quantidades tremendas, para matar a nossa maiorinimiga,queéaDistância.AbaixoaDistância!VivaomatadordaDistância!

—Viva!Viva!—berraramtodos.—Visconde—advertiuNarizinho—petróleoécombustíveleVossa

Excelênciaestápegando fogo.Sossegueumpoucoecontinuecoma lição.Diga-mequantoslitrosdepetróleotemumbarril.OViscondetomoufôlego,serenouoânimoerespondeucalmamente:

—Barriléamedidadepetróleoqueosamericanosadotaramdesdeocomeço.Equivalea42galões.

—Equantoslitrostêmessesgalosgrandes?—perguntouEmília.—Umgalãotem3litrose785centímetroscúbicos.Logo,umbarril

tem isso multiplicado por 42 — ou sejam 159 litros. Aqui no Brasilprecisamos nos acostumar desde já amedir o petróleo decimalmente—aos litros,aosmetroscúbicos, como fazemos argentinos. Issodebarril egalão e tantas outras medidas populares dos países que não seguem osistemamétricodecimal,queé,Emília?

—Ébesteira!—gritouaboneca.DonaBentaadvertiu-a.—Emília,asprofessoraseospedagogosvivemcondenandoesseseu

modo de falar, que tanto estraga os livros do Lobato. Já por vezes tenhopedidoavocêquesejamaiseducadanalinguagem.

—DonaBenta,asenhorameperdoe,masquemtortonasce,tardeou

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nunca se endireita. Nasci torta. Sou uma besteirinha da natureza — oudessanegrabeiçudaqueme fez.E,portanto,ou falocomoquerooucalo-me. Issode falarcomoasprofessorasmandam,que fiqueparaNarizinho.Pãoparamimépão;besteiraébesteira—nemquevenhadaInglaterraoudosEstadosUnidos,Cácomigoéalinabatata.

DonaBentasuspirou.Impossíveldomaraquelapequenaselvagem...—Continue,Visconde—disseelaemtomresignado.—Opetróleoémuitonovo—prosseguiuogeólogo.—Nãotemum

séculodevida,poispraticamentecomeçouem1859comopoçodoCoronelDrake.Quandoopetróleo apareceu emcena, o grande combustível era ocarvão-de-pedra.Etalvezquequandoopetróleoacabetenhamosdevoltarao carvão-de-pedra, muito mais abundante na natureza. Mas a culpa dopetróleoacabardepressavaicaberaosamericanos.Tirampetróleodemais;gastam-no demais. Quantos milhões de anos não levou a natureza parafabricar cada bilhão de barris que eles extraem anualmente? Nem temconta.Opetróleoéfilhodosol,comotambémocarvão-de-pedra.Osoléafontedavidae,portanto,afontedamatériaorgânicaquegeraopetróleo.Logo,opetróleoésol—sãoosraiosdumsoldemilhõesdeanosatrásqueficaram entesourados no seio da terra. Os homens, esses engenhososbichinhos, furam o chão e desenterram os raios de sol líquido. E osreduzemagasolina,aquerosene,aóleocombustível,aóleolubrificante,aparafina, a supergás, a quase 300produtos diferentes. Até perfumes elestiramdopetróleobruto.Ecomessesingredientesoperam-seprodígios—sobretudoemmatériadetransportes.Continuamente,pelomundointeiro,milhões de baratinhas metálicas, chamadas automóveis, percorrem oscaminhoseasruasemtodasasdireções.Cadavezmaisocéuseenchedasgigantescasavesmecânicas,chamadasaviões.Porcimadosmarescorremaosmilheirososnaviostocadosapetróleo.Peloseiodaságuassulcamossubmarinos movidos a petróleo. Por toda parte fábricas e mais fábricasrodamsemparar,graçasàforçadopetróleo.Opetróleotransformou-senomotordomundo.

—Porquê?— Porque não passa de energia mecânica sob forma líquida,

facilmentetransportávelparatodosospontosdaterra.Queéumacaixadegasolina?Sãomilharesdecaloriasenlatadas.Cadalitrodepetróleo,quandoqueimado,produz12milcalorias—muitomaisqueocarvão-de-pedra,alenhaetodasascoisasdequeimar.Colocadonummotor,essepetróleosetransforma em energia mecânica, a serviço de todos os trabalhos dohomem—parapuxarcarros,paramovernaviosouaviões,para levantar

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pesosnosguindastes,paramovimentarasmilmáquinasdasfábricas,paratudoquantoohomemfazcomofogooucomaspequeninasexplosõesdosgases.Vale,portanto,muitomaisqueaforçaelétrica.

—Porquê?—Porqueaforçaelétricasóéutilizávelnasredondezasdausinaque

aproduz;eaforçamecânicadopetróleoficapresadentrodaslatasepodesertransportadaparaqualquerpontodomundo—atéaospólos.Eláésóabriralataepronto—estáaliumafortequantidadede

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—Opetróleotransformou-senomotordomundo.

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energiaaserviçodohomem.Comofazerissocomaeletricidade?Denadanos vale aqui no sítio a força elétrica do Niágara, mas no entanto atépetróleodeBacuDonaBentajátemconsumidonestelampiãodasala.

Oraiodeaçãodaeletricidadeédepoucosquilômetros;oraiodeaçãodopetróleonãotemlimites.

—Vivaopetróleo!—berrouaEmília.OViscondecontinuou.—O grande valor do petróleo é aliar-se ao ferro para aumento da

eficiênciadohomem.—Quehistóriadeeficiênciaéessa?—quissaberNarizinho.—Muitosimples.Ohomemcomeçousuavidana terradispondosó

duma força — a força dos seus músculos — como ainda acontece comtodososoutrosanimais.Àmedida,porém,quefoiaprendendoautilizar-sedeoutrasenergiasdanatureza (comoosmúsculosdocavaloedoboi, asquedasdeágua,aforçadovento,aforçadovapor,aforçadaeletricidade,aforçadopetróleo),ohomemfoiaumentandoasuaeficiência, istoé,asuacapacidadedefazercoisas.Ajudadoapenasdosseusmúsculos,umhomempodepouco.Para irdaquiatéàvendadoEliasTurco temdedarseismilpassos, gastandonissoumahora—sehouver caminhobom.Aumentadocomasquatropernasdumcavalo,jáessemesmohomemfazopercursoemvinteminutos.

—Isso,naandadura—dissePedrinho.—Nogalopeeuvouatéláemmuitomenos.Sãosótrêsquilômetros.

—Eseemvezdeterasuaeficiênciaaumentadapelasquatropernasdocavalo,vocêativeraumentadapelasquatrorodasdumautomóvel?—perguntouoVisconde.

—Nessecasovouatéláemtrêsminutossemchisparmuito.—Eseasuaeficiênciaforaumentadapelasasasdumavião?—Ah,numaviãoeuchegoatéoEliasemsegundos.—Pois aí está o que é eficiência. Graças ao concurso do cavalo, do

automóvel ou do avião, o homem, que a pé vai daqui até lá numa hora,passa a ir emvinteminutos, em trêsminutos ou em segundos.Masnotequeéopetróleooquemaisaumentaaeficiênciadohomem,emmatériadevelocidade — o petróleo conjugado ao ferro. O mundo ficou pequenodepoisqueopetróleoveiomoverasmáquinasqueohomemconstróicomo ferro. Por isso vivo dizendo que sem produzir ferro e tirar e queimarpetróleo em grandes quantidades, como os Estados Unidos, o Brasil nãoganharáimpulso—nãosairádoburacodaopilaçãoeconômicaemqueseatolou.Obrasileiroestácomasuaeficiênciamuitoreduzidaporquequase

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quesódispõedaforçadosseusmúsculos,dosdoboiedocavalo.Portodaessa vastidão de território o meio de transporte mais comum é ainda ocarro de boi e as tropas de burros. Ora, tudo na vida é transporte, logo,enquantonãoaumentarmosanossaeficiênciapormeiodemáquinas,nãoresolveremos o nosso problema do transporte rápido e barato; e, pois,permaneceremosumpaísencarangado.

—Láissoéverdade—dissePedrinho.—Paramandaràcidadeoseucafé o Coronel Teodorico usa o carro de boi; cada carrada só leva 40arrobasegastaumdiainteiroparachegarláeoutroparavoltar.Comumcaminhão-automóvelelelevaria200arrobasemduashorasdeviagem...

— Issomesmo! Eu, se pudesse, pegava nummartelo e embutia nacabeçadetodososbrasileirosestaspalavras:Oferroéamatéria-primadamáquina, e o petróleo é a matéria-prima da melhor energia que move amáquina.Ecomosóamáquinaaumentaaeficiênciadohomem,oproblemadoBrasiléumsó:produzirferroepetróleoparacomelesteramáquinaqueaumentaráaeficiênciadobrasileiro.Tudomaisébobagem.

— Mas muitos acham que com uma nova revolução as coisasendireitam—disseNarizinho.—Comumanovaformadegoverno...

— Bobagem. Uma nova forma de governo, seja qual for, não passadumanovadistribuiçãodascoisasexistentes.Masascoisasexistentessãoescassasdemais.Nadaadianta tiraropratode feijãodeAparadá-loaB;poisB,queestavamorrendode fome,encheabarriga,masA,queestavacomabarrigacheia,começaapassarfome.ParaopaíséindiferentequeAouBsejaocondenadoapassarfome.OqueopaísprecisaéquenemAnemBpassemfome—eomeio,portanto,nãoémudardeformadegoverno:éaumentaracomidadagamela,demodoqueAeBpossamencherabarriga.É aumentar a riqueza — coisa que só conseguiremos aumentando aeficiência do homempormeio de ferro,matéria-prima damáquina, e dopetróleo,matéria-primadamelhorenergiaquemoveamáquina.

— Pois vamos tirar o petróleo, Visconde! — gritou Pedrinhoentusiasmadíssimo.—Peguenumapicaretaemeacompanhe.

OVisconderiu-se.—Bobinho! Como quer tirar petróleo, se, ainda nem sabe como se

escolheopontoondeabrirumpoço?— Então conte logo isso, que estou ardendo por abrir lá perto da

porteiraumpoçodemilbarrispordia.—Milbarris!...—exclamouEmília com focinhodepouco caso—e

deuumacuspidinhadedesprezo.—Voucontar, sim—continuouoVisconde—eestaparteémuito

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importante.Saberondesedeveabrirumpoçoémeiocaminhoandadoparatirar petróleo. Se o poço for aberto em lugarmal escolhido, nãodá coisanenhuma—eospetroleirosficamdecaraàbanda,aolharem-seunsparaosoutros,muitodesapontados.Umpoço,meucaroPedrinho,custagrandetrabalhoebomdinheiro.Saibadisso.

Pedrinho, que nunca havia pensado na parte financeira do negócio,abarroceu-se. Maçada! A pior coisa da vida é o tal negócio do dinheiro.Tudocustadinheiro,tudoexigedinheiro—eondeodinheiro?DonaBentaviviaacabocurto,semdinheiroparanada—easdemaispessoasdosítioainda tinhammenosqueela.Pedrinhosópossuíadez cruzeirosnocofre.Narizinho,umanotadecinco.Emília,apenasaquelecélebretostãonovo.EoVisconde,apesardevisconde,eraofidalgomaispobredomundo.Nuncachegounemaveracaradumvintémfurado.

—Comovaiser?—perguntouPedrinhovoltando-separaNarizinho.—Comoiremosabrironossopoço,seestamoscompletamentelimposdecapitais?

— Isso é lá com você que é homem — respondeu a menina. —Dinheiroéassuntomasculino—arrume-se.

Pedrinhocomeçouapensar—eestariaatéagorapensando,seEmílianãoresolvesseoproblemacomamaiorfacilidade.

—Oraagrandecoisa!—disseela.—Nadamaissimples.Aplica-seo"faz-de-conta" e logo aparece tudo quanto precisarmos — sondas,verrumasdeperfurar,tubosdeencanamentos,tatusperfuradores—eatépetróleo!Vocêbemsabequenãoháoqueresistaaofaz-de-conta...

Pedrinhosuspiroumurmurando:—É.Sóassim...Evoltando-separaoVisconde:—Poisvamoslá,senhorgeólogo.Continue.—Amanhã—respondeuosábio.—LávemvindotiaNastáciacomas

pipocas—essasinimigasdasaulas...Era verdade. Tia Nastácia vinha entrando com uma peneira de

pipocas.—VivamaspipocasgeológicasdetiaNastácia!—berrouEmília.—Deixedebrincadeirascomosvelhosetratedeencheropapo,sua

sapeca!—ralhouanegra.EstavamdapontinhaaspipocasdetiaNastácia,demodoquetodosse

atiraramàpeneira, concordando lápordentroqueseoViscondeeraumsábio interessante, tiaNastácia era interessantíssimaquandoo arrolhavacompipocas.

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VI

Trabalhosdecampo

NodiaseguinteaimpaciênciadePedrinhochegouaoauge.Aquilodeficarumapartedanoitesentado,aouviraspreleçõesdoVisconde,nãoeracomele.Queriapôrmãosàobra,abrirlogoopoçosalvadordapátria.

—OcoitadodoBrasilcansadodeesperarpetróleoeestecacetíssimoViscondeanosinjetarnoitesenoitesdeciência!Nãoqueromais.Chegouomomentodecomeçarmosopoço.

—Mas,como,Pedrinho,seaindaquasenadasabemosdegeologia?—objetouamenina.

— Muito bem. Vamos começar o trabalho e o Visconde nos vaiensinando.Liçõesaoarlivre—fazendo.Éfazendoqueohomemaprende,nãoélendo,nemouvindodiscursos.Euquerociênciaaplicada...

— Ali na batata!— gritou Emília que vinha entrando.— TambémpensocomoPedrinho.Querocomeçaropoçojá.

OViscondeapareceucomageologiadebaixodobraço.— Escute, senhor geólogo — disse Pedrinho. — Basta de aulas.

Fizemosgreve.Queremoscomeçaropoçojá,já,estáouvindo?Osabuguinhocientíficoarregalouosolhos.— Homessa! Como podem pensar em perfuração antes de terem

adquiridoumaboabasegeológica?—Domodomaissimples.DamoscomeçoaotrabalhoeV.Excelência

nos vai ensinando pelo caminho, à proporção que os problemasaparecerem.

— Issomesmo—berrouEmília.—Pazde conta que já sabemos ageologiainteira.

OViscondecocouacabeça;mascomoeragreve,tevedeconcordar.—Poisseja—disseele.—Serãoaulasaoarlivre.Começaremoscom

oestudogeológicodosterrenosdopasto.—Ótimo!—exclamouPedrinho—ecorreuapreparar-se.Voltoude

perneirasechapéudecortiça—vestuáriodeengenheiro-geólogo.—Pronto!Podemospartir.Foramtodos.Depoisdepassadaaporteiraedecorrerosolhospelo

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pastodavacaMocha,Pedrinhoficouatrapalhado.Sóviacapinsecapõesdemato. Que fazer? Quem não sabe é o mesmo que ser cego. Pedrinhogeólogo,sentiu-setotalmentecego.

—Eagora,Visconde?Porondecomeçamos?Osabuguinhogeológicotossiuerespondeu:—Antesdecuidarmosdaaberturadeumpoço,temosdeescolhero

lugarmaispropício.Essaescolhaétudo.Seerramos,babau!LásevaitudoquantoMarta fiou.Masseacertamos,podemoscontarcomumbelo jorrode petróleo. E para escolher o ponto adequado havemos de recorrer àciênciadestelivrinho—concluiuelebatendoumapalmadanageologia.—Aquiestátudo.

—Comosefazpraticamente?—inquiriuPedrinho.— Assim. Pede-se a um geólogo que examine o terreno, estude as

rochas aflorantes, isto é, as rochas que aparecem em certos pontos dasuperfície e as relacione comasqueaflorememoutraspontos. Issoparaverseestamosemcimadumanticlinal.

Pedrinhoolhoudesanimadoparaapastariaverde.— Mas como estudar rochas com este raio do capim-gordura a

esconderaterrainteira?— Temos de procurar barrancos, margens de rios, morros com

perambeiras ou boçorocas — pontos onde a terra esteja esfuracada edespidadevegetação.Sóaíencontraremosrochasadescoberto.

—Poisvamosaisso,então.Aumquilômetrodalihaviaummorrocomgrandedesbarrancado—

a"barreira",comosedizianosítio.OViscondelevou-osparalá.Diantedabarreira,parouesorriu.

Os meninos entreolharam-se. Não compreendiam que o Viscondeencontrassematériaparasorrisonumbarrancofeiocomotodososmais.

—Quegostoéesse,Visconde?—perguntouEmília.—Ah,osorrisoquetenhonoslábioséumsorriso

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——Eagora,Visconde?Porondecomeçamos.

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geológico—osorrisodequemsabe,olha,vêecompreende.Estebarrancoéparamimumlivroaberto,umapáginadahistóriadaterranaqualleiomilcoisasinteressantíssimas.

—Éumdosbarrancosmaislindosquejávi—continuouosábio.—Observematentamenteestassuperposiçõesdecamadas.Temosaquiumasérie de camadas paralelas. Estão superpostas, isto é, uma em cima daoutra,esãoconstituídasderochasdiferentes.

—Equetemisso?— Tem um colosso de coisas. Tem, em primeiro lugar, que são

camadasderochassedimentárias,produzidaspordepósitos formadosnofundod'água.

—Fundod'água?Poisosítiodevovójáfoifundod'água?—Claroquesim,Pedrinho.Leio issonestebarranco.Temoscáuma

camadadepedregulho,oupedrasqueseforamfragmentandoerolandonofundodosriosatéficaremsemarestas;depoissedepositaramemqualquerfundo de água sem correnteza.Mas notem que estes pedregulhos já nãoestão soltos, como os de fundo de rio. Estão grudados uns aos outros,soldados,cimentadosentresi.

—Comquecimento?—quissaberNarizinho.—Evidentementeumcimentocalcário—respondeuoVisconde.—

Os calcários dissolvem-se na água;mas a cal da água vai se depositandoentreasperninhasatéqueasliga,talqualopedreiroligaostijoloscomoreboco. E sabem como se chama uma rocha assim, feita de pedaços derochacimentadosentresi?

Ninguémsabia.—Chama-seumconglomerado—explicouoVisconde.Eapontando

paraacamadaque ficavaemcimadaquela:—Eestarochaaqui tambémnão deixa de ser um conglomerado, apesar de ter o nome de arenito. Écompostadeareiacomosgrãozinhosigualmentesoldadosentresiporumcimentoqualquer.Reparemqueformaumarochaumtantoquebradiça.

Pedrinho havia destacado um fragmento do arenito, que andou demãoemmão.

—Émesmo—disseNarizinho,quandochegousuavezdeexaminá-lo.—Vê-seperfeitamentequeéformadodegrãodeareia.

—Poiséoutrarochasedimentária—explicouoVisconde—eestána ordem normal em que os sedimentos se depositam. Primeiro, ospedregulho; depois, as areias, que são mais leves; e sobre as areias as

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argilas, esse pó de rochamais leve que tudo e que fica boiando na águamaistempo.

— E esta dura e preta aqui, Visconde? — perguntou a meninatentandoquebrar umpedaço de rochamuito irregular que se intrometiapelascamadas.

—Oh, issojánãoérochasedimentária—éumarochavulcânica. Jáexpliqueiqueasrochasvulcânicassãoderramesdaspedrasderretidaspelocalor central, que saem pela boca dos vulcões ou se intrometem pelasrochassedimentárias.

—Sãovômitosentão—disseEmíliacomcaradenojo,cuspindo.—Reparemqueestarochacinzentaetãoduranãoestáemformade

camada,comoasoutras.Nãoéumprodutodasedimentação.Oquefezfoiintroduzir-se a muque pelas camadas de rocha sedimentária adentro.Chama-seaistoumaintrusão.

—Umaintrusa—disseEmília.—Estouvendo.Fezparigatocomas

outrasequebrou-asespirrando-asparaoslados.—Sim.Estaintrusãoveiodebaixoparacima,numavertical,rompeu

ascamadasdesedimento,quebrou-as—oqueprovaqueémaismoça,ouquechegouporúltimo.

—Porquê?—Porquesópoderiafazeroquefezseencontrasseaquiascamadas

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sedimentáriasjáformadas.Nadamaislógico.— E a rocha orgânica, Visconde? Haverá por aqui alguma?— quis

saberamenina.OViscondecorreuosolhospelobarranco.—Nãohánenhuma.Creioquenosítiosópoderemosencontrarrocha

orgânicanofundodaquelebrejodosguembés,quesecanosmesesdeseca.Hádehaverláturfa,queéumarochaorgânicaformadapelatransformaçãodevegetaisenterrados.

Depois de bem vistas e revistas as rochas do barranco, o Viscondelevou-osparaoutroponto,dizendo:

—Notemqueascamadas,quecomeçavamhorizontais,estãoagoraasubirnumaleveinclinação.Ora,comonasceramhorizontalmente(porquetodasedimentaçãoéhorizontal),seestãosubindofoiporqueumapressãodebaixoparacima,ouumacompressãodoslados,asfezsubir.

— Um parigato — explicou Emília, e Narizinho quis saber quepressãoforaaquela.

—Nãosei—disseoVisconde.—Talvezdotempoemqueacrostadaterracomeçouaresfriar-seeencolher-se.Formou-seaquiumaruga.

Caminharamumpoucomais.—Notem— iadizendooVisconde—queas camadasvão subindo

sempre,esempreparalelas.Querdizerquequandosofreramapressãojáestavamformadasearrumadinhasumassobreasoutras.

Caminharammaisumadezenasdemetros.—Olhemquelindo!—exclamouoVisconde,detendo-se.—Háaqui

umabelíssimafalha.—Queé?

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— Prestematenção.Ascamadassofreramnestepontoumdesastresério.Partiram-seeoladodeláafundou,escorregouparabaixo.

— É mesmo! — gritou Pedrinho. — Ficaram desencontradas. Acamada de argila desceu ao nível da camada de pedregulho... Queengraçado...

—Poiséistoqueosgeólogoschamamumafalha,fenômenoquetemmuitaimportância,quandosefazemestudosparapetróleo.

NistoNarizinho,queseadiantara,gritou:—Corra,Visconde!Venhaverumacuriosidade.Ascamadassofreram

aquiumatalreviravoltaqueatéficaramdepé

Emília foi a

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primeiraquechegoulá.—Chi!Quecatástrofehorrível.Estãodepezinhascomopausdelenha

nolenheirodetiaNastácia.OViscondeexplicou:—Estefenômenoémuitofreqüente.Nasconvulsõesqueacrostada

terra sofreu, as camadas que vêm vindo na horizontal, ou levementeinclinadas,sofremmuitasvezesdestasreviravoltas.Maisadianteépossívelquedenovoapareçamnamesmainclinaçãocomquevinhamvindo.

Eassimfoi.Cemmetrosadianteascamadasvoltavamateramesmainclinaçãodocomeço.

Terminadooestudodobarranco,oViscondedisse:—Muitobem.Temosagoradeexaminaraquelecortedaestradaque

vaiparaafazendadoCoronelTeodorico.—Paraquê?—Paraver seas camadasde lá têmcorrespondência comestas. Se

tiverem,poderemostiraralgumasdeduçõesinteressantes.Otalcortedaestradaficavabemlongedali—aunstrêsquilômetros.

OViscondefoiexplicandopelocaminho:— Se as camadas do corte corresponderem às do barranco e

estiveremcomadireçãomudada,istoé,seseinclinaremparabaixoemvezdeiremsubindo,issoprovaráqueestecampojáfoimontanha.

—Montanha,aquinestaplanície,Visconde?—Sim.PodetersidoumagrandemontanhaqueaErosãodestruiu.Lá

no barranco vemos que a Erosão continua no seu trabalho de destruir omorro.Cadaanoobarrancoestámaior,edaquiaunsséculosquempassarporaquijánãoencontrarámaismorronenhum.

—Aschuvas,asenxurradaslevamaterradomorroparaoRibeirãodoCaraminguá;oCaraminguáalevaaoRioParaíba;eoParaíbaalevaparaS.JoãodaBarra,ondeadespejanoOceanoAtlântico.

—Quedesaforo!—exclamouNarizinho.—Entãoaterradestemorrode vovó vai parar em S. João, lá no Estado do Rio? Mas isso é umaladroeira...

—AErosãoeosriosmudamafacedaterra, transportamasrochasdum ponto para outro sem o menor respeito aos proprietários do solo.DonaBentaquepercaoamoraestemorro.Amaiorpartejáfoireduzidaaareia e carregada para longe; o resto irá também, não tenham disso a

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menordúvida.Chegaramaocortedaestrada.OrostodoViscondeiluminou-se.

—Exatamenteoqueeuesperei!—disseeleaoexaminarocorte.—

Ascamadasqueestudamosnobarrancotêmsuacontinuaçãoaqui.Cáestáa camada de arenito, e a de conglomerado, e a de argila, com a únicadiferença da direção. No barranco as camadas subiam; aqui descem. Istoprovaoqueimaginei:estamosemcimadumanticlinaljáemgrandepartedestruídopelaerosão.

—Queengraçado!—exclamouPedrinho.AgoracompreendoorisodoViscondedepoisquedeuparaestudarGeologia.Comotudoseesclarece!Comoficainteressante!Aquelebarrancoeestecortenuncamefizeramviràcabeçaamenoridéia.Agorajámefalam,dizemcoisas,contampedaçosdavidadaterra.Queengraçado!...

— Pois é isso, Pedrinho. Para o geólogo, o chão, os barrancos, asburaqueiras,asperambeiras,asboçorocas,asravinas,asmargensdosrios,oscortesdasestradasdeferro,tudosãopáginasdolivrodanatureza,ondeelelêmilcoisasquejamaispassarampelacabeçadosignorantes.

—Quegostosoésaber,hein,Narizinho?—Nemfale,Pedrinho.Cadaveztenhomaisdódosanalfabetos.—Muitobem—disseoVisconde.—Istoaquiestáprovadoqueéum

anticlinal.Obarranco lá longe e este corte aqui nospermitemverificar acorrespondência das camadas e sua inclinação. Mas a Erosão destruiu oaltodoanticlinal;sódeixouasencostas.Obarrancoláeocorteaquiestãonasencostasdoanticlinaldestruído.Temosagoradenosdarcontadeumacoisa:ascamadasgeológicassãocomoascapasdascebolasdecabeça.Hásempre uma debaixo da outra, de modo que ainda que não estejamosvendo, podemos, por um esforço de imaginação, figurar as camadas quenãoforamdestruídaspelaerosãoecontinuambemarrumadinhasdebaixodesta terra, até bem no fundo, onde não há mais rochas sedimentárias

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porquejáéocristalino.

—Quecristalinoéesse?— O cristalino é um modo de tratar as rochas ígneas que estão

sempre por baixo, servindo de alicerce às camadas sedimentárias. Sefizermosaquiumburaco,iremosindo,indosempreafurarsedimentos,atéchegarmosàrochaígnea,oucristalina.

—Sei—dissePedrinho.—Atéalcançarmosasrochasqueaindahojeestãocomoeramnocomeçodomundo,quandoacrostaaindanãoestavamodificadapelaerosão.

—Issomesmo.O trabalhodaerosãoé superficial. O fundoelanãotoca.

—Bemfeito!—exclamouEmília,que jáestavaa implicar-secomagrandedestruidora.

—Poiseuqueriavercomoéumadessasrochasdofundo,quenuncaforambulidaspelaerosão.

— Muito fácil — respondeu o Visconde. — O granito, que vocêconhece,éumadelas.Osmovimentosdacrosta(osmovimentosorogênicos,como dizem os sábios), trazem à superfície, em muitos pontos, bocadosdessasrochas,queemboraatacadaspelaerosãoaindaseachamemgrandeparteintactas.Aspedreirasdondeseextraemosparalelepípedosdecalçarruassãorochasígneasládofundoquesubiramatéàsuperfície.

—Trazidaspelosvulcões?— Não. As rochas que os vulcões trazem são muito diferentes do

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granito.Ogranitotambémestevederretido,masesfriounofundo,foradocontactocomoar—porissoédiferentedasrochasvulcânicas.

— Nesse caso não pode haver petróleo nessas rochas ígneas —observouPedrinho.

—De fatonãohá.Petróleosóaparecenasrochassedimentárias.Seporacasoalguémencontrarpetróleonumarochaígnea,équeopetróleofoipara lá,nãoquetenhanascido lá.Opetróleoemigramuito; forma-se numlugaremuda-separaoutro.

—Obradoeternoparigato—observouEmília.—Issomesmo.Aspressõessubterrâneasfazemqueele,queélíquido,

mudedecasaquandocomeçamacomprimi-lodemaisnopontoemqueseformou.

—Eopetróleoéencontradoassimliquidozinhocomosaidospoços?—perguntouamenina.

— Não. O petróleo não existe solto, em lagoas subterrâneas, comomuitagentepensa. Existeespalhadoentreosvãozinhosdasareiasoudeoutras rochas porosas. Os geólogos dizem camadas portadoras. Umacamadaportadoratemqueserporosa,istoé,tervãozinhosondeopetróleose acomoda. Se a camada não é porosa, ele não encontra espaço ondealojar-se.Porissoessascamadasdeargilassóajudamopetróleodumjeito:formandoascapasimpermeáveisquenãoodeixamfugir.

Pedrinhoestavapensativo.Porfimfalou:—Umacoisaandamepreocupando,Visconde—disseele.—Estou

vendo que os tais estudos geológicos só são possíveis quando hámuitosbarrancos e buracões. E quando não há nada disso? Quando o terreno étodoumaplanícieimensa,recobertadevegetação"?

—Bom, aí o geólogo não pode ver nada e portanto não pode tirarconclusões.Temde"pedirágua."

—Aquem?—ÀGeofísica.—Queéisso?—Geofísicaéaciênciadever.apalpar,medirasrochasqueestãolá

nofundo.—Ver,como,seestãolánofundo?—Veréummododedizer.Emvezdevezeudeviaterditoadivinhar.

A Geofísica consiste na aplicação de uns tantos princípios da Física, pormeio dos quais os sábios adivinham o que não podem ver, nem apalpar.EspéciedeRaioXdofundodaterra.OsRaiosXnospermitemveralgumacoisaatravésdoscorposopacos.AGeofísicatambémnospermiteestudar

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umaporçãodecoisaslánofundo.—Quecoisas,porexemplo?— Permite-nos, por exemplo, saber até que profundidade vão as

camadasderochassedimentárias.—Etemimportânciaisso?—Muita.Seemcertopontoamassaderochassedimentáriasémuito

grande, ou vai atémuito fundo, está claro quepoderá contermuitomaispetróleodoquenumacamadamenospossante,oumenosespessa.

—Equemais?—Tambémpermitedescobrirmosanticlinaisedomosdesal.—Queéisso?— Domos de sal são grandes acúmulos de sal de cozinha que em

muitos pontos se erguem e empurram as camadas sedimentárias paracima. Nas encostas desses domos de sal acumula-se quase sempre opetróleo.AGeofísicapermitedescobrirtaisdomosedeterminarcertinhoaáreaqueelesocupam.

—Equemais?— Muita coisa mais, como, por exemplo, determinar as falhas

existentes num campo petrolífero. E determinar as intrusões de rochasígneas. E verificar se os gasesdepetróleo chegamaté à superfície.Muitacoisa.AGeofísica éuma ciênciade talmodopreciosaparaospetroleirosque semelaelesnãodãoumpasso.Antesde começarumpoçomandamfazer o estudo geológico do terreno; depois mandam fazer o estudogeofísico; só então furam. E por isso estão furando hoje commuitíssimomaisacertodoqueantigamente.

—Erravammuitoantigamente?—Nemfale!EmcadacempoçosabertosnosEstadosUnidos,parece

quesótrêsalcançavamopetróleo.Eraomesmoquedartirosempontaria,oudeolhos fechados.Estáclaroqueàsvezesmatavamalgumpassarinho—poracaso...

—Ehoje?—Ah,hojetudomudou.Sódãotirocompontaria.Onúmerodepoços

queospetroleirosperdemreduziu-seenormemente.Osprimeirosestudosgeofísicos sérios que tivemos no Brasil foram feitos no Riacho Doce, emAlagoas.HáláumpetroleirochamadoEdson,eumgovernadordeEstado,denomeOsman,queatémerecemestátuasdeouro!Graçasaeles,oBrasilcomeçouaestudarpetróleoasério,cientificamente,comvontadedeachar—evocêsvãoverqueemconseqüênciadissooprimeiropoçodepetróleodoBrasilvaiseremAlagoas.

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—Protesto!—berrouEmília.—Onossotemqueganharacorrida—temquechegarnafrente.

OViscondeiaresponderquandosoouoberrodetiaNastácialálonge:—Ajantatánamesa,cambada!Temlambarifrito...Na voz de lambari frito, os meninos esqueceram a Geologia e

botaram-separacasa,navolada.Sóficouporali,pensativo,demãozinhanoqueixo,ograndesabugogeológico.

—Hum!hum!—monologoueledepoisdemuitomatutar.—Macacosmelambamseaquinãohouverpetróleo...

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VII

Depoisdoalmoço

Comidos os lambaris do almoço, a meninada voltou correndo aocampo,interessadíssimanacontinuaçãodoestudogeológico.

—Masquaissãoascondiçõesquedevemosdescobrirnestesterrenosparatermosacertezadequepodemconterpetróleo?—foiperguntandoPedrinho.

—Várias—respondeuoVisconde.—Temos,primeiro,deverificarsesãosedimentáriasasrochas...

—Issojávimosquesão.— ...e se têm possança. E se há camadas porosas, capazes de

armazenar o petróleo. E se há camadas impermeáveis entalando essascamadasporosas.Esenãohámuitaintrusãoderochaseruptivas,porqueestaspestes,quandoseintroduzemnumacamadaportadoradepetróleo,épara escangalhar tudo, destruir tudo com o seu calor brutal. E se háanticlinais bem formados onde o petróleo se acumule. E se há pelasuperfície algum sinal qualquer de petróleo, como xisto ou arenitobetuminoso.Equalaidadedoterreno...

— Idade do terreno? — repetiu Narizinho. — Esse ponto não foiestudado.

—Osgeólogosdividemos terrenosemvárias idades ouperíodos. Ecomo o petróleo quase sempre aparece em certos terrenos, tem muitaimportânciaconheceraidadedasrochasdumcampopetrolífero.

—Reduza isso a trocomiúdo, Visconde, que não estou entendendomuitobem—reclamouEmília.

— Vou explicar— assentiu o Visconde.— Bem lá no fundo há asmassas de rochas eruptivas sobre que se assentam as camadas de rochasedimentária. São rochas duras, cristalinas, que vão amolecendo até seconfundirem com a massa derretida do centro. A crosta solidificada daterra é coisinha mínima comparada com o volume da terra inteira.Correspondeamenosqueumacascadelaranja,paraalaranja.

— Então se descascarmos a terra ela fica novamente uma bola defogo?

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—Sim.Searrancarmosacrostadaterra,onossoplanetinhavoltaaseraboladefogo,osolzinhoquejáfoinotempoemquecomeçouaregirarpeloespaço.

Os olhos de Emília brilharam. Lembrou-se da viagem ao céu e detodas as coisas prodigiosas que se deram ali no sítio e viu nodescascamento da terra uma aventura nova, nunca sonhada nem pelosloucosmaisvarridos.

—Queestupendo,Narizinho!—exclamouela arregalandoosolhosbrilhantes,—Estáaquiumaaventurabemdignadenós:descascarmosaterra,comoquemdescascaumalaranjamexeriqueira!...

—Lávem, lávem!—disseamenina.—Eu jáandavaadmiradadotempoquevocêpassousemabriratorneirinha...

Emíliapôs-lhealínguaeoViscondecontinuou:—Estavaeudizendoqueagrossuradacascadaterraémínima.As

perfuraçõesqueohomemfazparapetróleoparecem-nosmuitoprofundasporque somos unsmicrobinhos de duas pernas. São profundas para nós.Paraaterra,correspondemasimplespicadasdealfinete.

—Entãoumpoçode1.000metroséumasimplespicadadealfinete?—Claroquesim.Bastafazerocálculo.Quediâmetrotematerra?Narizinho,quesabiadecor,"cantou"logo:—Depóloapólo,aterramede12.640quilômetrosdediâmetro.— Muito bem. Logo, um poço de 1.000 metros, ou 1 quilômetro,

representa apenas 1/12.640 do diâmetro da terra. Se eu tivesse aqui oquadro-negro,desenhariaaterraeessepoço,ambosnamesmaescala,paravocês veremque umburaco de 1.000metros não passa de picadinha depontadealfinete.Equeéaprópriacascadaterrasenãoumapelícula? Jávimosqueocalorcentralaumentadeumgraucada25metros. Issoquerdizer que a 100 quilômetros de profundidade temos a temperatura de4.000graus,maisquesuficienteparamantertodasasrochasnotalestadode fusão que nem olhar a gente pode, porque cega.Mas se procurarmosrelacionar esses 100 quilômetros da casca com o diâmetro da terra,acharemosafração1/126,apenas...

A pouca distância dali havia uma laranjeira carregada. Pedrinho foiescolherumadaslaranjasmaistaludasparaverificaraproporçãoentreacascaeodiâmetro.Fezsuasmediçõesedisse:

—Esta laranja tem126milímetrosdediâmetro, e a casca tem trêsmilímetros de espessura; logo, esta casca representa para esta laranjamuitomaisdoqueacrostadaterrarepresentaparaaterra.Paraacascadalaranja estar na mesma proporção da crosta da terra, devia ter só um

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milímetrodeespessura.— Puxa! Que "finura"'— exclamouNarizinho.—A crosta da terra

entãodevecorresponderaumacascadepêssego...—Exatamente—concordouoVisconde.—Arelaçãoentreacrosta

daterraeodiâmetrodaterradeveseramesmaqueentreumapelículadepêssegoeodiâmetrodopêssego.

DesdeaquelemomentoEmíliapassoua caminharmuito aode leve,na pontinha dos pés — de medo que seu peso-pluma rasgasse nalgumpontoapelículadepêssegoquechamamoscrostadaterra...

—Comessascascas todasestamosmaséesquecendoopetróleo—advertiuPedrinho.—Volteaoassunto,Visconde.

OViscondevoltou.— Sim. Estávamos falando sobre a idade das rochas. As primeiras

camadasderochasedimentáriaquelánofundorepousamsobreasrochascristalinas,pertencemàEraAzóica.Azóicaquerdizersemvida.Picamláosterrenos arqueanos, ou antiquíssimos, onde nunca há petróleo, nemnenhumsinaldefósseis,jáquenaqueletempoaindanãoexistiavida.

—Eemcimadosterrenosarqueanos?— Em cima dos terrenos arqueanos vêm as camadas da Era

Paleozóica, ou Primária, onde aparecem os primeiros fósseis de algasmarinhas e as primeiras conchas, isso bem embaixo; mais para cimacomeçamaapareceroutrosfósseis,comoosdosfetos,egrandeabundânciade cascas de moluscos. E ainda mais para cima surgem os fósseis dosprimeirossáuriosedosvegetaisqueformamasmaisvelhashulhas.

—Edepois?— Depois temos a Era Mesosóica, ou Secundária, cujos terrenos se

compõem de argilas, piçarras, calcários de conchas. Surgem fósseis deplantasjábastanteadiantadas,comoasconíferas,ascicadácias,osgrandesfetos arbóreos; e também fósseis de sapos gigantescos, sáurios enormes,plesiossauros,ictiossauros,lagartõesvoadores,todaessabicharadaqueatéparece pesadelo, quando a vemos reconstruída nas salas dos museuspaleontológicos.Sãoascamadasmaisromânticasdacrostadaterra.Avidanaqueletempoeramuitomaisviolentaquehoje,demodoqueoMesozóicopareceumverdadeiroromancedemonstruosidade.

—Quepenanãotermosnascidonessaépoca!—suspirouEmília.—Omundoestáhojeumavergonhaemmatériadebichos,sobretudoaquinoBrasil.Umaspaquinhas,umascapivaraseumastaisonçasaípelosfundões,que a gente nunca vê. Só se salva a África, com uma bicharia ainda bembonita—girafas,rinocerontes,hipopótamos,leões...

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MasoViscondenãoconcordou:—Sevivêssemosnaquela época,Emília, teríamosumavidinhabem

curta. Bastava que passasse por nós um simplesmesossauro, com a suacabeçademetroemeiodecomprimento.Lambia-nosatodoscomoboidecarrolambeoscapinsdabeiradaestrada...

— Que prosa esta Emília! — murmurou Narizinho. — Queria ternascidonaqueletempodosbichõesabsurdos,justamenteelaquenemtemcorpoparaencheracovadodentedumdeles...

—Edepoisdesseperíodotruculento?—perguntouPedrinho.—Depois do Secundário temos aEraCenozóica, ouTerciária, onde

tambémaparecemmuitosfósseisdeanimalõesquejánãoexistem,comoosmastodontes, os dinotérios, osmamutes.Mas tanto a flora como a faunadesseperíodo já começamadar idéiadasdehoje.E, finalmente, temosaEraQuaternária,queéamaismoderna,anossa.Nesteperíodoos fósseisencontrados são dos mesmos animais e das mesmas plantas queconhecemos.Jánãoaparecemoscolossaisbicharocosdoperíodoanterior.Foiquandoapareceunaterraobicho-homem.

Emília,quenãoseconsolava—murmuroususpirando:—"Queazareuternascidoagora!Meutemperamentoésecundário..."

—Equalomelhorperíodoparapetróleo?—quissaberPedrinho.—Ah,éoTerciário.Osmelhorescampospetrolíferosdomundosão

emterrenosdessaépoca.Atéalitudocorreramuitobem,porqueeramcoisasqueestavamnos

livros.Masquandotiveramdevernochãoserealmenteexistiamtodasascondiçõesfavoráveisparaaexistênciadopetróleo,osabuguinhocientíficocomeçou a mostrar exigências excessivas. Pedrinho danou. Viu logo quenaqueleandarpassariampelomenosumanoemestudosteóricosantesdedarem começo ao poço — e como era o poço o que mais interessava,convidouNarizinhoeEmíliaparaoutragreve.

— Sim— disse ele— porque nesta toadinha do Visconde ficamostoda a vida a estudar coisas dos livros e nada de perfuração. NossoViscondeélivrescodemais.Temosquedeclarargreve.Topam?

—Topamos—concordaramasduas,tambémjácansadasdeciênciateórica.

Pedrinhovoltou-separaosábioedisse:—Fecheolivro,Visconde.Resolvemosdarcomeçoaopoçojá,já,já.OViscondefezcarafeia.—Mascomopodehaverpoçosemciência,menino?Quebobagemé

essa?

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—Bobagemounão,queremoscomeçaropoço imediatamente.Estádecididopormaioriadevotos—trêscontraum.

— Mas se nem acabamos de fazer o estudo geológico do terreno!Depoisdeleaindatemosdefazeroestudogeofísico,homessa!

—Fazdecontaquejáestãofeitos—berrouEmília.—FazdecontaqueforamfeitosporunssábiosdaAlemanhaquemandamosvir,nãoacha,Pedrinho?

— Claro que sim. Os tais estudos geofísicos tanto estão feitos quetenhoaquiosmapas—dissePedrinhofingindoabrirnochãoumenormerolodepapeldedesenho.Venhamver.

Todossecurvaramemredordomapadementira.— Aqui está tudo explicadinho— disse ele, — Os sábios alemães

marcaram neste ponto um anticlinal magnífico, sem falha nenhuma,entupidodepetróleo láembaixo.Temosagorade localizaroanticlinaldoterreno.Olhem:começanaporteiradopastoevaiatélánocortedaestradaque estivemos estudando.Melhor fincarmos na terra várias estacas paraque fique tudo bemmarcadinho e não haja enganos depois. Se furarmosbem no alto do anticlinal, sai gás, segundo as teorias do Visconde; sefurarmosnas encostas, sai petróleo; e se furarmosmuito embaixo, nopédasencostas, saiáguasalgada.Vêcomoeusei?Vamosagoraestaquearoterreno.

Pedrinhosacoudofacãodematoquetraziaàcinturaecortouumasvinteestacas.

—Venhaatrásdemimcomofeixe,Narizinho,evámedandoumaporuma.

A menina obedeceu. Sobraçou o feixe de estacas e as foi dando aPedrinho,queasfincavaemterradepoisdefazerpontacomofacão.Numinstanteoanticlinalqueosalemãeshaviammarcadonomapa ficou todoestaqueadinhonoterreno.

—Pronto!—exclamouo"engenheiro"enxugandoosuordatesta.—Essasestacasmaioresmarcamotopodoanticlinal,ospontosondehágás.Aquelas ali marcam as meias encostas, boas para perfurar. Que acha,Visconde,daminhamarcação?

O sabugo geológico respondeu, depois de alisar as palhinhas dopescoço,quenãohavianenhumaobjeçãoafazer.

— Então, pronto!— gritou Pedrinho.— Hurra! Hurra! O principalestáfeito:marcarcientificamenteolugarexatoondeabriraperfuração.Orestoécanja.

Mas apesar de ser canja, Pedrinho engasgou.Não sabia o que fazer

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depoisdamarcaçãodopontocerto.TevederecorreraoVisconde.—Vamoslá,Visconde,contecomoéoresto.O Visconde explicou que o resto era furar, sendo para isso

indispensáveladquirirumaboasondadeperfuraçãoetodasasmáquinasecoisasacessórias.

—Emqueconsisteasonda?—Numcomplicadoaparelhoperfurador,comumatorredeunstrinta

metros de altura e ummotor a vapor ou a óleo quemova o aparelho. Eoficina mecânica para consertos, etc. Antes, porém, acho que você deveprovidenciaraáguaeocombustívelparaacaldeira—etambémascasasparaacomodaçãodasmáquinaseoperários.

— Água— resolveu Pedrinho— eu puxo num encanamento lá doCórrego do Caraminguá; e para combustível temos de tirar lenha noCapoeirãodosTucanos.Quantodelenhaépreciso?

—Quantomaismelhor— respondeuoVisconde.—Ébom termossempre uma boa reserva — aí uns 500 metros cúbicos. A caldeira vaiconsumirdevinteatrintametrospordia.

Pedrinho deu ordem à boneca para que cuidasse da lenha. Emíliaaplicouo faz-de-conta,enummomentodezcarrosdeboicomeçaramumvaivémcontínuodocapoeirãoatéali.Serviçorápidocomoorelâmpago.

— Pronto, Pedrinho! Empilhei lenha até demais — 523 metroscúbicos segundo a nota que meus carreiros apresentaram — disse eladandoaPedrinhoumpapelcomgarranchos.

—Bom.Águae lenha já temos—disse ele.—Agoraéprecisoquevocê,Narizinho,seencarreguedascasasedobarracãoparaasmáquinas.

Ameninatambémaplicouofaz-de-conta,demodoquenuminstantesurgiuda terraumexcelentebarracãodemadeira, com telhadodezinco,paraasmáquinas;eacemmetrosdaliumasériedecasasparaoperários,muitobonitasehigiênicas,tãobonitasquePedrinhoachoudemais.

— Demais, não!— protestou ela.— Quanto melhor acomodarmosnossos homens, melhor eles trabalham. Não concordo com o sistema detratar os operários como se fossem pedras insensíveis. As casinhas têmtudodentro—atégeladeiraerádio...

—Eestacasaaqui?—perguntouPedrinho,vendoumadistanciadadavilaoperária.

—Poisaquiéoescritório—oseuescritório,Pedrinho,jáqueévocêoSuperintendentedocampo.Eaquelamaispimpona,acolá,éobangalôdoperfuradorquetemosdemandarvirdoestrangeiro.

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— Muito bem— disse Pedrinho tomando conta doescritório. — Vou fazer o pedido das máquinas necessárias. Temos decomprá-lasnaAméricadoNorte,porquenoBrasilnãohádisso.

Abriuvárioscatálogoseminglêsepôs-seafolheá-los.Eramgravurasemais gravurasdemáquinas emaismáquinas, numaprocissão sem fim.Umcatálogoenorme,aícomoumdicionáriodosgordos.Pedrinhotonteounomeiodetantasmáquinasepeçasqueelenãoentendia.TevederecorreraosconhecimentosdoVisconde.

—Estoutonto,Visconde.Háaquiumaferramentalhadaquenãotemfim.Seráprecisoencomendarestecatálogointeiro?

OViscondefezumapequenapreleçãosobresondas.—Hásondasdedoistipos—disseele.—Umasperfurampormeio

dabatagem.A terra vai sendomarteladaporumaenormeepesadíssimatalhadeira chamada trépano, e as pancadas vão desagregando as rochas,esfarelando-as.

— E para tirar do buraco a rocha já esfarelada? — perguntouPedrinho.

—Hádoissistema.Umé,depoisdemartelarporcertotempo,retirardopoçootrépanopara,comumacaçambaprópria,extrairtodoomaterialescavado. Outro sistema é injetar água dentro do poço por meio dumabomba fortíssima. A água lá do fundo faz lama comomaterial escavado,lama que sobe e sai pela boca do poço. A água limpa entra com fortepressãopordentrodashastesdotrépanoealamasaiporforadashastes.Esteprocessoémaisaperfeiçoadoqueodacaçamba.

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—Seéomaisaperfeiçoado,queroesse.Aquitudohádeseraúltimapalavradatécnica.Eooutrotipodesonda?

—O outro é o tipo rotativo, omesmo sistema dos trados de furarmadeirasgrossas.Emvezdetrépanoquedesagregueasrochasàcustadetantomartelar, há na extremidade da haste uma broca que gira sobre simesmaevairoendo,desgastandoasrochas.Estesistematemavantagemdeandarmaisdepressaqueooutro.

—Poisentãoficaadotadoosistemarotativo—resolveuPedrinho.— Espere, Senhor Superintendente! — gritou o Visconde. — O

sistemarotativonãohádúvidaqueéótimo,masdependedoterreno.Emterrenos próprios dá para furar 50 ou 60 metros por dia. Mas se hácamadasdecertasrochasmuitoduras,oucertosconglomerados,elefalha—nãorendenadaourendemuitomenosqueabatagem.

—Entãoquefazeraquinosítio,senãosabemosquecamadasvamosencontrar?—perguntouPedrinhoatrapalhado.

—Minhaopinião—respondeuoVisconde—équevenhaumasondamista, de batagem e rotação ao mesmo tempo. Quando as camadaspermitiremo empregodasbrocas rotativas, furaremos comelas; quandonãopermitirem,furaremoscomostrépanos.

—Ótimasolução,Visconde!—dissePedrinho.—Encomendareiumasondamista,estáresolvido.Equemaisénecessário?

—Acaldeira,omotor,ostubos...—Quetubos?— Os tubos de aço para revestimento da perfuração. Não é só ir

furando, não, Senhor Superintendente! O furo tem que ser revestido decanosdeaço.

—Quemaçada!Porqueisso?—Porváriosmotivos—evitardesmoronamentos,fecharaságuas...—Queáguas,sabugodeDeus?— Quando a gente perfura, encontra pelo caminho lençóis

subterrâneos de água doce, que se formam com a infiltração das chuvas.Essaságuastêmdeserfechadaspormeiodostaistubos,senão—sabeoqueacontece"?

—?—Aconteceoseguinte:logoqueofurotocanumlençoldepetróleo,a

água, que está saindo sempre, desce e mete-se pelo lençol de petróleoadentro, e empurraopetróleopara longedali.As águas são eternas, nãoparamdecorrerporcausadainfiltraçãodaschuvas,queéconstante.Masocoitadodopetróleonão tem chuvadeóleoqueo abasteça, demodoque

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cede diante da água— e vai indo, vai indo, vai se afastando do campopetrolífero...Porissoospetroleirosdizemqueaáguaéamaiorinimigadopetróleo.

— Bem, já sei— disse Pedrinho.— A entubação é para fechar aságuas.Equemais?

—Ferramentasmiúdasemilcoisas.Éindispensávelumaboaoficinamecânica para reparos dos maquinismos. O melhor é você encomendaruma sondamista completa, com capacidade aí para uns 1.500metros. Equevenhamostubosderevestimentonecessários.

Pedrinhofoiàmáquinadeescreverredigiracartadeencomenda.— Por carta, Pedrinho?— reclamou Emília.— Leva muito tempo,

rapaz!Peçalogoportelegramaurgenteeexijaqueaferralhadaestejaaquiamanhãbemcedo.

—Absurdo,Emília,nãodátempo.—Dá sim— insistiu ela.—Eles que se utilizemdomeu poderoso

"Faz-de-Conta n. 7", o maior avião de carga do mundo. Dessa maneirateremostudoaquiamanhãantesdoalmoço.

Pedrinhocompreendeuquerealmentenãohaviaoutrojeitoeredigiuotelegrama.

Restavacalcularopreçodaencomendaemandarosdólares.—Venhafazeraconta,Narizinho,vocêqueéamatemática.Narizinho calculou pelos preços do catálogo a importância total do

pedido.—Andaem105.742dólares—disseelamostrandoaconta.E agora? Onde o dinheiro para a remessa? Só mesmo a Emília.

PedrinhochamouEmília.—Olhe,Emilinha,encarregue-sevocêdestaparte financeira.Dêum

jeitodeodinheiroserentreguehojemesmoàfirmaMcGowen&Tuttle,deNovaIorque.Vejaumbombancoparafazeraremessa.

— Banco? Não me fio em bancos, Pedrinho. Vou fazer o dinheirochuviscaremcimadacabeçadeMisterMcGowen.Querver?Evoltando-separaocéu,gritou:

—Nuvenzinhas,nuvenzonas,quecochilandopassaispeloazul!CorreiatéàcasadeMisterMc...Mcoquê,Pedrinho?

—McGowen—gritouomeninodofundodoescritório.— ... de Mister McGowen e despejai-lhe na cabeça uma chuva de

105.742 pingos doláricos — por conta da Companhia Donabentense dePetróleo.

DisseefoitercomoVisconde.

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—Pronto!MisterMcGowenvai ficartontocomanossachuvinhadeouro. As nuvens, mal me ouviram, botaram-se a galope. Já devem estarchegando.

—Eagora?—perguntouNarizinho.OViscondeestavaexausto.—Agora?—disseeledeitando-senochão.—Agoraumdescansinho.

Uf!Comotrabalhamoshoje!...Elimpounamangaosuorzinhodatesta.

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VIII

Montagens

Durante o jantar Dona Benta perguntou a Narizinho que é que oshaviaconservadoforadecasaodiainteiro.

—Ah,vovónãosabe!Éopoço...—Quepoço?—OpoçodepetróleoquevaisalvaroBrasil—oprimeiropoço,com

umaproduçãodemilbarrispordia.—Dezmil!—protestouEmília.—Nãofaçopormenos.— Ou isso. Já completamos os estudos geológicos e geofísicos; já

estaqueamosoterreno; jáconstruímosascasasdosoperários,obarracãodasmáquinas,oescritórioeobangalôdeMisterKalamazoo,operfuradorquemandamos vir daAmérica. Também já encomendamos amaquinariatoda,asonda,ostubosderevestimento.Umdinheirão,vovó!Maisdecemmildólares.

Dona Benta, que começara a trinchar uma galinha assada sorriu.Andavatãoafeitaàquelasmaluquicesdeseusnetos...

—MasesseMisterKalamazoofalaportuguês?—Não;sóinglês.Éamericaníssimo.—Ecomoseentenderácomvocês?—indagouela,pondonopratode

Narizinhoumpedaçodepeito.—Comintérprete.Quindimseráointérprete.Comoeleénaturaldo

Uganda,umapossessãoinglesadaÁfrica,sabeinglêsnapontadalíngua.—Napontadochifre!—emendouEmília.—Equenomevaiteropoço?Porquetodosospoçostêmnomes,ou

números.Osmeninos, que ainda não haviam pensado naquilo, entreolharam-

se;eEmília,asapecadadeiradenomesàscoisas,maisumavezimpôsoseucapricho.

— Vai chamar-se o Caraminguá n.° 1 — improvisou ela — emhomenagemaonossoribeirão-zinho.Osoutrosterãooutrosnomes,porqueaDonabentensevaiabrirpelomenoscinqüentapoçosnaqueleanticlinal.

—QueDonabentenseéessa?

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—Onomedacompanhia,vovó—respondeuNarizinho.—Antesquepensássemos no assunto, Emília já veio com esse nome, que ficou.CompanhiaDonabentensedePetróleoemhomenagemàsenhora...

—Muitobem—disseDonaBenta,pondonopratodePedrinhoumacoxa.—VejoqueEmíliaestácomeçandoameadular—provadequeandaquerendoqualquercoisa.Pregosemestopavocênãoprega,nãoé,Emília?

Abonecafezfocinhodelebre.Duranteojantarinteirosósefalounaperfuração.Iamextrairdopoço

milhares de barris de óleo, montar uma refinaria, inundar o Brasil degasolina, querosene, óleo lubrificante, óleo combustível, supergás edezenasdeoutrosprodutosdopetróleo.Dinheiroganhariamtanto,queadificuldadeseriasaberoquefazerdele.Pedrinhosópensavanumacoisa:viajar,conhecermundo.

— Por que, vovó, como posso saber de que modo empregar meuscapitais,senadaconheçodomundo?Tenhode,primeiramente,estudaromundoparaverificaroqueomundomaisprecisa,nãoacha?

— Muito bem pensado — concordou Dona Benta. — E vocêNarizinho?Quevaifazerdodinheiro?

— Meu sonho é construir hospitais, escolas, creches, bibliotecas,coisasdeutilidadegeral.Hátantapobrezaedesgraçanaterra...

— Quer dizer que será uma rockefellerzinha. O velho Rockeffeller,depois de ter ganhomontões emontões de ouro, ficou sem saber o quefazer daquilo. E fundou o Instituto Rockefeller, cuja função é gastar seusmilhõesemcoisasdebenefíciouniversal.Esseinstitutobeneficiatodosospaíses, inclusive o nosso. A grandiosa Escola deMedicina de S. Paulo, ládefronteaoCemitériodoAraçá, foipresentedele.Nãohápaísdomundo,sejaaFrançaouaChina,ondeoReidoPetróleonãodespejebenefícios.Evocê,Visconde?

Comotodososverdadeirossábios,oViscondenãoentendianadadedinheiro—eengasgoucomapergunta.Emíliatomouapalavra.

—Vai compraruma cartolinhanova eum remédioparaobolor—disseela.—Eeu...

—Ah,você!—exclamouDonaBenta.—Imaginooquenãoserá—quantamaluquice!Vamos,diga.Quevaifazerdodinheiro?

—Botá-loajurosparairjuntandosempremais,mais,mais...Aquelarespostaespantouatodos.Emíliasempreforaumaciganinha,

masninguémjamaissupôsquetambémfosseusurária.—Aquejuros?—perguntouDonaBenta,porcuriosidade.—Omaisaltopossível—10%aomês,senãopudersera12...

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—Explique-se,Emília.Nãoestouentendendobem.— Minha idéia é esta. A verdadeira vocação dos homens é

escravizarem-se ao dinheiro. Assim que uma pessoa sacode no ar umpacote de notas, gritando:— "Quem quer? Quem quer?" imediatamenteaparecemmilmãosestendidas,dizendo:—"Euquero!Euquero!"Eodonodasnotasdistribuiodinheiromasprendeaquelasmãos comalgemasdeaço— os juros. Os homens, donos dessas mãos, tornam-se escravos dodadordodinheiro;passamaviverparaele,atrabalharparaele,asópensarnele,porqueojuroéumacoisaquecrescesempre,diaenoite,façasoloufaça chuva, seja Domingo de Ramos ou terça-feira de carnaval. Essascriaturas ficam escravas pelo resto da vida — por gosto, por vontadeprópria, só porque alguém lhesmostroudinheiro e elas não resistiramàtentaçãodepegá-lo.Todomundofazdívidas—asgentes,asempresas,osmunicípios,osestados,asnações,osimpérios.Etodomundoandapedindodinheiro emprestado, isto é, estendendo as mãos para que os donos dodinheiroasalgemem.Eseacontecequeumdessesescravospagueadívida,atentaçãoédefazeroutra—efaz,eescraviza-senovamente.Saudadesdaescravidão!... Ora, isso quer dizer que a vocação, o gosto supremo doshomens é tornarem-se escravos do dinheiro. Muito que bem: pois se éassim,quandoeuficarmilionáriavoudaraoshomensogostoimensodeseescravizaremaomeudinheiro,bemalgemadinhocomjurosde10ou12%aomês.TiaNastácianãodizsemprequeoqueédegostoregalaavida?

—Jáseviuquemalvada?—murmurouDonaBenta.— Prosa dela, vovó — disse Narizinho. — Emília, quando tiver

dinheiro,oquevaifazeréassociar-seaoViscondeparaentupirossertõesdoBrasil com feras trazidas daÁfrica. Já pilhei uma conversa dela nessesentido.Emíliaconfessouqueseutemperamentoera"feroz"e"secundário"—istoé,amigodas ferasmonstruosasqueenchiamomundonoPeríodoSecundário. Como já não há disso, pretende encher o Brasil de ferasafricanas—leões,hipopótamos,rinocerontes,girafas,zebras,etc.Eusei,eusei...

O assunto continuou naquele tom até a sobremesa — um gordomamão mandado pelo Coronel Teodorico. Comido o mamão, saíram nadisparada a fim de receberemMister Kalamazoo, que fora chamado portelegramaevinhanumdosaviões-relâmpagosdaEmília.

Nãotardouqueoarzumbisseeumpontomóvelaparecessenoazul.—Éele!—gritaramtodos.EeradefatoMisterKalamazoo.Oaviãopousounopastoededentro

saiuumamericanoenorme,corado,desapatõesgrossos,amascarchiclete.

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Osmeninoscorreram-lheaoencontro.— How do you do, Mister Kalamazoo? — disse Pedrinho — e

engasgou. Todo o seu inglês era aquilo. E como Narizinho ainda sabiamenoseoViscondenemumyes,tiveramderecorreraoQuindim.

—Tragadepressaointérprete,Emília!—ordenouPedrinho.Enquantooamericano retiravadoavião suasbagagens,Emília foi e

veiocomorinoceronte.OsustodeMisterKalamazoovaleuapena,masafinalacomodou-see

teve com Quindim uma grande prosa em inglês, da qual os meninos sópescavam,aquieali,umyeseumno.Depoisqueoamericanoserecolheuao seu bangalô para descansar da viagem, Pedrinho correu a ouvir asimpressõesdointérprete.

—Quetalonossoperfurador,Quindim?Orinocerontetorceuofocinho.— Inda não sei — disse ele. — Conversamos longamente sobre

perfuraçõeseváriosassuntosdepetróleo,masnãosei...—Queéquenãosabe?—Nãoseiseestehomemmerececonfiança.Podeserumagentedos

tais trustes que não querem que o Brasil tenha petróleo; pode ser umperfurador subornado, que venha sabotar o nosso poço... Os meninosficaram apreensivos. Muito sério o perigo, na realidade. No negócio dopetróleo dão-se traições tremendas, sabotagens, incêndios, mortestrágicas...

—Masacha-ocomcaradesabotadordepoço?—insistiuPedrinho.— Os sabotadores não trazem nenhum S na testa — respondeu

Quindim.—Apenasestouavisando.Sintoumcheirodesabotagemnoar...— Como fazer, então? Nosso contrato com esse homem já está

assinado...Quindimrefletiuunsinstantes.—Ojeitoqueachoéoseguinte:eumontoguardaaopoçodiaenoite.

Demedodomeuchifre,podeserqueeleengulaqualquersabotagemquetenhanaintenção.

—Ótimo!—gritouPedrinho.—EtambémficadeguardaoVisconde,que é entendidíssimo em perfurações. Se o Visconde perceber qualquercoisa, qualquer manobra suspeita, pisca para você — e você avança dechifreapontado,comofezcomosdetetivesnacaçadadaonça.Entendido?

Acoisa ficouarrumadaassim.MisterKalamazooseriaoperfurador,mascomquatroolhospermanentesemcimadele—osdoisdorinoceronteeosdoisdoVisconde.

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—Ótimo, ótimo— continuou Pedrinho.— E o americano de nadadesconfiará, porque a presença dum intérprete na sonda se justifica.QuantoaoVisconde,queéapenasumsabugo,elenãocausadesconfiançaaninguém

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0aviãopousounopastoededentrosaiuumamericanoenorme,corado,desapatõesgrossos,amascarchiclete.

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quenãosejavaca.Sóvacadesconfiadesabugodecartolinha...Namanhãseguintechegaramosaviõesemilianoscomtodasaspeças

dasonda.Queferralhadainfinita,SantoDeus!Peçasemaispeças,tubosemaistubos,caixasemaiscaixasdistoedaquilo.Parecia incrívelqueparaabrirumburacodedoispalmosdediâmetrofosseprecisotantacoisa.

E veio também a turma de operários especialistas contratada porMister Kalamazoo, gente de várias nacionalidades — um rumaico, doisalemães,doisargentinos.Ospetroleirossóarranjambonsespecialistasnospaísesquejátêmexploraçãodepetróleo.

Além da turma de perfuradores havia um ferreiro, dois mecânicos,umfoguistaedoisajudantes,"pausparatodaobra".Etambémumgeólogo--químicoparafazeranálisesdemateriais,classificarfósseis,etc.

Começouamontagemdasonda.Foramconstruídosquatroalicercespara os quatro pés da torre— alicerces de tijolos bem cimentados. E atorrede ferro foi sendo articuladapeçapor peça, andar por andar, até oúltimo,queeraodécimo,a33metrosdealtura.Assimqueaarmaçãoficoupronta, os meninos subiram pela escadinha até o alto, para gozar opanorama.

—Quelindoéosítiodevovóolhadodaqui!—exclamouamenina.—Lá está o Caraminguá fazendo voltas emais voltas, com aquela preguiçadele.EláestáaestradacomavendinhadoEliasTurco...

— Até da fazenda do Coronel Teodorico a gente vê um pedaço, oterreiro, os chiqueiros, o pomar, o mastro de Santo Antônio — ajuntouPedrinho.

OViscondesóviaapaisagemgeológica.— Reparem como estava certa aminha teoria da erosão doMorro

Pelado, comasuabarreiraquenãopassados restosdaencostanortedamontanhadesaparecida.Aerosãocomeuamontanhainteira,sódeixandoessespedaços.no lugarondeela foi, temosagoraobaixadãodopastodaMocha.

Emíliadivertia-seemdarcuspidinhasparabaixo.— Para suicídio— disse ela— isto aqui ainda é melhor que a tal

RochaTarpéiaqueDonaBentacontou—aquelarochafeiaqueexistiaemRoma,decimadaqualeramjogadosaoprecipícioostraidores.ATarpéiatinha 32 metros — menos um que esta torre. Quer dizer que minhascuspidasduramnoarummetromaisqueoscriminososromanosjogadosdaTarpéia.

NarizinhotrocouumaolhadelacomPedrinho.Emíliaosdesnorteava.Apropósitodetudodiziasemprecoisasimprevistas.

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OViscondeexplicouarazãodatorre.—Tudo isto, só para criar umponto de apoio aqui em cima, que é

estaroldana,disseeleapontandoparaagrossaroldana fixadanodécimoandar.Nestepontodeapoiopassaocabodeaçoquesustentaashastes.

—Eporqueéatorreassimtãoalta?—perguntouomenino.—Parafacilitareapressarasmanobras.Ashastes,quetemcadauma

7metros,sãoatarrachadasumasnasoutras,formandoumasó,quepodeiraté 3.000 metros e mais de profundidade. Mas a broca que fica naextremidade inferior tem que ser retirada do poço depois

dealgumashorasdetrabalho.—Paraquê?—Paramudança.Depois dumashoras de trabalho a broca perde o

corte.Temquesertrocada.—Quetrabalheira,SantoDeus!—exclamouPedrinho.—Penseique

erasóirfurando...—Atrabalheiraégrande,sim,esónasmanobrasdedesceresubiras

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hastes os perfuradores consomem várias horas cada dia, e tanto maisquantomaisopoçoseaprofunda.

Depoisdaexplicaçãoosmeninosdesceramdatorreeforamvisitaracasadasmáquinaseasoficinas.Aumcantoerguia-seaenormecaldeira,dando idéia dum rinoceronte de ferro. Nela queimava-se a lenha paraproduziravaporquemoviatodasasmáquinasdasonda.

—Quantoscavalos?—perguntouPedrinhoaofoguista.—Cem—respondeuumoperáriodecarasujadecarvão,queoutra

coisanão faziasenãobotar lenhana fornalhaeolharosmanômetrosquemarcamaspressões.

—Essahistóriadecavaloseunãoentendobem—disseNarizinho.—Voltaemeiaouçodizer:automóvelde50cavalos,motorde20cavalos—enãovejocavalonenhum.QueéissoVisconde?

—É umamedida de força, como o quilo é umamedida de peso. Ocavalo, ouH. P. (iniciais deHorsePower, Cavalo-Força, em inglês) é umaforçade75quilogrâmetros.

—Fiqueinamesma.Nãoseiqueéquilogrâmetro.— Quilogrâmetro é a força capaz de erguer um peso de 1 quilo à

alturadeummetro,emumsegundo.Sóisso.— Quer dizer então que esta caldeira de 100 cavalos é capaz de

erguerumpesode7.500quilosàalturadeummetro,emumsegundo,nãoéisso?

—Perfeitamente.— Então bate o Quindim — observou Emília. — Num segundo

Quindimnãoergue7.500quilosaummetrodealtura.Nãotemjeito.Maslevantardochãoessepeso,issoelelevanta,aposto.

O Visconde explicou que o vapor produzido naquela caldeira eralevadoporumencanamentoatéàsmáquinasdasonda,sendocomaforçadessevaporquetudolásemovia.

— E por que assentaram a caldeira aqui, tão longe da sonda,cinqüentametros?

—Porque aqui se lida com fogo e num acampamento petrolífero énecessárioconservarofogobemlongedopoço.Perigodeincêndio.

AáguaparaoabastecimentodacaldeiravinhadoCaraminguá,ondeforacolocadaumabombatocadaporummotorzinhoaóleo.Masnãovinhadiretamente; primeiro enchia um grande reservatório, ou tanque, cavadonaterra,aunscemmetrosdali,numaltodoterreno.Logoqueotanqueseencheu,Emíliasoltouneledoispeixinhospescadoscompeneiranocórrego.Eumsapinhoverde.

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EmseguidaoViscondemostrouaforjadoferreiro,ondeostrépanoseramtemperadoseafiados.

Naoficinamecânicahaviatornosdetornearferro,máquinasdefurarferro, rebolos de esmeril e mil ferramentas miúdas, torqueses, alicates,limas, fresas, puas, martelos, serras, talhadeiras, bigornas, etc. MisterKalamazoo dirigia o serviço em mangas de camisa e cachimbo na boca;tinha esse ar de homem que entende de tudo e tudo resolve num ápice.Todoslheperguntavamcoisaseatodoseledavaordensmuitocertas.Erauma perfurador de grande prática adquirida nos campos de petróleo doOklahoma,ondeabriramaisdecempoços.Infelizmentesófalavainglês,demodoqueapenasQuindimaproveitavaasmuitascoisasinteressantesqueeledizianosmomentosdefolga.Eacabaramgrandesamigos.Oamericanocontava histórias do Oklahoma, que Quindim pagava com histórias doUganda.Masapesardessaamizadeorinocerontenãodeixavademantê-loemperpétuavigilância.

— Estes trustes mundiais de petróleo são o diabo— dizia ele. —Fazemcoisasdoarco-da-velha.DemodoqueapesardasimpatiaqueMisterKalamazoomeinspira,euotragosempredeolho—eoViscondetambém.O Visconde, esse, virou uma verdadeira sarna. Não o larga um sóinstantinho. O que vale é que Mister Kalamazoo, como é grandalhãodemais,nemenxergaosabuguinhodecartola.Àsvezesatétropeçanele...

Rapidamente tudo ficou pronto para o início dos trabalhos deperfuração. Que homens aqueles! Faziam tudo tão direitinho como oscélebresanõesdoscontosdefadas.SóumavezMisterKalamazooperdeuas estribeiras e berrou desaforos que os meninos não entenderam porserem em inglês. Isso porque a bomba de injetar água no poço, ao serexperimentada, engasgou — e ele atribuiu o defeito à imperícia domecânicoqueahaviamontado.

Tiveram de desmontá-la para ver o que era, e com grande espantodescobriram um peixinho entalado na válvula. Um dos peixinhos daEmília...

—Incrívelacuriosidadedesteburrico!—disseaboneca.—Escapoudo tanque,ondeopus,paravirpeloencanamentoespiaros trabalhosdasonda. Agora está aí, morto, mortíssimo — vítima da sua curiosidadecientífica...

E tratou de enterrá-lo debaixo duma árvore, num tumulozinho depedra em que havia a seguinte inscrição: Aqui jaz o primeiro mártir dopetróleobrasileiro.

Emcimadotúmulo,emvezdecruz,botouumanzol...

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IX

Começaopoço

Bem de madrugada, no dia seguinte, o foguista acendeu fogo nacaldeira para que os trabalhos da perfuração do Caraminguá n.° 1pudessemcomeçaràs8horas,comohaviadeterminadoMisterKalamazoo.Era um grande acontecimento, que Pedrinho resolveu festejar com umacarteirade traquesmandadavirdavendadoEliasTurco. Infelizmenteostraques, como tudo naquela venda, eram falsificados, e só um ou outrorebentou,muitochochamente.

Dona Benta e a negra foram convidadas para assistirem àinauguração.

—NossaSenhora!—exclamoutiaNastáciaaoveratorredeperto.—Quanto ferro! Neste andar Seu Pedrinho muda o "semblante" do sítio,Sinhá.Acoisajáestáficandoqueagentenãoconhecemaisnada.Virandoumacidadinhaestrangeira,comessascasasdeoperárioseo"bangalão"doMister.Eascaras?Tudoesquisito.Aqueleali,vermelhocomoumpresunto.Aqueleslá,decabeloigualzinhocabelodemilhonovo.Credo!...

DonaBentadeuparabénsaMisterKalamazzopelaperfeiçãocomqueorganizara o trabalho. E vendo o rinoceronte sempre de olho ferrado noamericano:

—Quetantaatençãoeaquela,Pedrinho?QuindimnãoperdeumsódosmovimentosdoMister...

O menino cochichou ao ouvido de Dona Benta: — "Ele é o nossoespião;estádeguardaaoamericanoporcausadasabotagem..."

D.Bentasorriu.Às oito horas um sino tocou, anunciando o começo do serviço. Os

operáriosdirigiram-separaasonda.Começou a batagem. A máquina fazia um movimento de vaivém,

puxandoe largandoocabodeaço,quesubiaatéàroldanadecima,davavolta e descia, tendo na ponta a haste do trépano. A cada um dessesmovimentosocaboerguiaotrépanoaumpalmodealturaeolargava;nolargar o trépano caía com a força do peso sobre a rocha do chão; dessemodoiadesagregando,esfarelandoessarocha.

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Um verdadeiro movimento de mão de pilão que sobe e desce semparar,fazendopum-pã,pum-pã,pum-pã...Obarulhodepumeraasubidadotrépano;obarulhodepãeraadescida,comochoquenarocha.Sóseouviaessebarulhoesóseviaopedaçodehastequeficavaparaforadopoço,asubireadescernaextremidadedocabo.

QuandoNarizinhoexplicouatiaNastáciaoqueeraaquilo,anegrafezcaratriste.

— Tenho dó das minhocas — disse ela. — Esses malvados estãomacetandoascoitadinhas...

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NossaSenhora!—exclamoutiaNastáciaaoveratorredeperto.—Quantoferro!

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— Boba! Lá na profundidade em que o trépano está não existemminhocas—sórochas.

—Credo!—murmurouanegra,quenãosabiaoqueerarocha.PedrinhocontouaDonaBenta todoo trabalhodasonda.Mostroua

bombadeinjeção,istoé,abombaqueestáconstantementeinjetandoáguanopoço,pordentrodoocodashastes.

—Lánofundo—disseele—essaágua injetadaformalamacomomaterialescavadopelotrépano,epelapressãodaáguainjetadaalamavaisubindoatéderramar-separafora,nabocadopoço.Éomeiodeextrairomaterial escavado. Do contrário a rocha moída ficava no fundo,atrapalhandootrépano,quebateriasónele,semprogredir.

—Háoutrosistemadetiraromaterial—ajuntouNarizinho.—Pormeio da caçambagem.Depois de perfurar um certo tempo, tira-se fora otrépanoedesce-seumacaçambapararecolheromaterialescavado.Masonossoprocessodeinjeçãodeáguaémaisaperfeiçoado.

DonaBentaachougraçadasabedoriatécnicadamenina.As batidas eram incessantes, pum-pã, pum-pã, pum-pã, numa toada

tão monótona que até dava sono. A distração dos meninos ficou sendomarcar um ponto de referência na torre a fim de acompanhar a lentadescidadahaste.Numahoradepum-pãahastedesciaaíummeiometromaisoumenos,conformearesistênciadarochaperfurada.

DepoisdetrêsouquatrohorasdetrabalhoMisterKalamazoofezumsinal.Omanobristadamáquinapuxouumaalavanca.Tudoparou.

—Quehá?—quissaberPedrinho.— Há que eles vão emendar mais uma haste — respondeu o

Visconde.—Ahn!Éassim!—murmurouDonaBenta.—Estoucompreendendoarazãodaquelapilhadehastesalifora.—Poisé,vovó—dissePedrinho.—Temosnaquelapilhaashastes

necessárias para descer até 1.500 metros de profundidade. Vão sendosucessivamenteatarrachadasparaformarum"sistemarígido",comodizoVisconde.

DonaBentariu-se.MisterKalamazoodividiraopessoalemtrês turmas, cadaumacom

oito horas de trabalho, de modo que o serviço fosse contínuo pelas 24horasdodia.Maseratrabalhomonótono.Umpum-pãdediaedenoite,sóinterrompidopelasparadasparacolocarnovahaste,oumudarotrépano.

Quando chegou a hora demudar o trépano, osmeninos prestaramtodaaatenção.Oshomens suspenderamo trépanoatéacimadabocado

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poço e o desatarracharam. Estava com o corte completamente rombudo.Foi substituído por um do mesmo calibre, bem afiado. Enquanto isso, oprimeirousadoerapostonumacarretasobretrilhoselevadoàoficinadoferreiro. Os meninos acompanharam a carreta, com Emília ajudando aempurrar.

Lá na oficina a carreta parou diante da forja. O ferreiro prendeu otrépano comas correntesdummoitão, ergueu-oedepositou-odentrodaforja,cobrindo-odepedaçosdecoque.Fezfogo,queassoproucomumfoleenorme.Ocoqueficouembrasaeoferrodotrépanofoiavermelhandoatéchegar no ponto. O ferreiromanobrou de novo omoitão para tirá-lo daforja e colocá-lo sobre a bigorna, onde o foimalhando até restabelecer ocorteperdido.

—Interessantecomoo ferrose tornamaleávelquandoaquecido—observouDonaBenta,quetambémvieraassistiràoperação.

Terminado o conserto, o moitão trabalhou de novo, erguendo otrépanodecimadabigornaedescendo-onumtanquecomágua.

—Paradartêmpera—respondeuoferreiro.—Quandoseaqueceoaço,eleperdeatempera,ficaferromole;paraquenovamenteganheasuadurezadeaço,temqueserresfriadobruscamentenaágua.

Enquanto o ferreiro cuidava daquele trépano, lá na sonda osoperáriosconcluíamacolocaçãodonovo,eoserviçorecomeçou,pum-pa,pum-pã,namonótonatoadadesempre.

Dentrodumpuxadocobertodezincohaviapelochãograndenúmerodetrépanosdetodososcalibres,desdeosdedoispalmosdediâmetro,unsmonstros,atéospequenosdetrêspolegadas.

—Porqueessadiferença?—perguntouPedrinho.OVisconde explicou que o poço, iniciado comumdiâmetro grande,

iriadiminuindoàmedidaqueseaprofundasse.— Começamos com o diâmetro de 20 polegadas— disse ele — e

iremostocarnopetróleocomodiâmetrode4apenas. Issoporcausadasentubações.Àmedidaqueopoçoseaprofunda,temdeserentubadocadavezqueatravessaumlençoldeágua.

—Parafecharaágua,sei—dissePedrinho.—Exatamente.Ecadavezqueéentubado,sópodecontinuarcomum

diâmetro menor, porque então o trépano passa a trabalhar dentro doentubamento feito. Se aparecemais embaixooutro lençolde água, temosque entubar novamente, para fechar esse outro lençol de água. Para issocolocamostubosdemenordiâmetrodentrodostubosquejáestãonopoço.E a perfuração prossegue com trépanos menores, para caberem dentro

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dessestubosdemenordiâmetro—eassimpordiante.TiaNastáciagritouládavarandaqueoalmoçoestavanamesa.Todos

correramparaabóia,menosoVisconde.Ocoitadinho juraraasipróprionãolargardeMisterKalamazoonemumsegundo.

OsomdaspancadasdotrépanochegavamàcasadeDonaBenta.—Láestáopum-pã—disseela.—Temosdeouviressesomdiae

noiteatéqueopoçochegueaofim.Pedrinho,deouvidoatento,murmurou:—Quesomlindo,vovó!Somquecontentaocoração...—Sabeporquê?Porquecadagolpesignificaumavançozinhoparao

fundo, para lá onde está o petróleo e, portanto, um passo para a grandevitória.Abelezadosomnãoestánele,estáemvocê,Pedrinho.

Acabado o almoço, Emília foi dar farelo de pão ao peixinho querestavanotanque,eosoutroscorreramàsonda.Sentaram-seeficaramatéa tarde, ouvindo opum-pã, vendo a haste descer lentissimamente, comoponteiro de relógio, e assistindo às manobras de colocar novas hastes esubstituirotrépano.

Eassimsepassaramduassemanas.Opoço jáestavaamaisdecemmetros de profundidade. Certo dia Mister Kalamazoo examinou,conjuntamente com o geólogo-químico, a lama saída do poço e ambosassentaramemqualquercoisa.Emseguidaoamericanodeuumaordem.Omaquinistaparouamáquina.

—Quehá?—perguntouPedrinhoaoVisconde.OVisconderespondeu,depoisdeumaconsultaaQuindim:—Elesvãomudardesistema.Achamqueoterrenoestáótimopara

serperfuradocomarotativa.— Bravos! — exclamou Pedrinho, que já se sentia cansado com o

monótonodeatéali.—Novidade!Venhamnovidades!Parapassardumsistemaaoutroforamnecessáriasmuitasmanobras;

tiraram-se umas peças e colocaram-se outras; por fim tudo ficou pronto.Pedrinhoprestava todaa atenção.Oquemais estranhou foiqueabroca,arrumada em substituição do trépano, não era broca; não passava dumpedaçodecanodeaço,aídaespessurademenosdedoiscentímetros,semcorte,semdentes,semnada.

O menino ficou intrigado. Se não tinha dentes, como é que aquilo,rodandonofundodopoço,conseguiabrocararocha1?

Tudoarrumado,abrocarotativadesceuaofundodopoçoefoipostaemmovimento.Começouagirarsobresimesma.Umsilêncio.Acabara-seopum-pãdotrépano.Ahasteacimadabocadopoço,girando,mostravaque

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abrocaláembaixotambémgirava.Ecomoahastedesciamaisdepressadoque no sistema de trépano, Pedrinho viu queMister Kalamazoo acertaracomamudança.

—Mascomodesce1?Comoabrocaperfura?—pensavaeleconsigo.— Se é um simples cano de aço semdentes, sem corte, sem nada, comopodiacorroerarocha?Mistério.Nãoconseguindoporsimesmoresolveroenigma,apelouparaoVisconde.

— É o seguinte — explicou o sabuguinho científico: — MisterKalamazoo,quandoabrocavaicomeçara trabalhar,despejano fundodopoçoumpunhadodeaçogranulado.

—Queaçogranuladoéesse?—Unscarocinhosdumaçoduríssimo,assimdotamanhodechumbo

decaçarpaca.Abrocavaicomprimindoesseaçogranuladocontraarochaeaesfarela.

—Ahn!Issosim!—exclamouomeninocomorostoiluminado.—Euaté já estava com dor de cabeça de tanto parafusar no assunto. Açogranulado,sim...

E foiaodepósitodemateriaisemprocurado talaço.Encontrouumcaixão cheio. Examinou aqueles grãozinhos, apertou um nos dentes paraverificar se de fato não era chumbo e com umpunhado no bolso correuparaomostraraDonaBenta,pensandoconsigo:"Elavai ficaraindamaisbobadoqueeu."

De fatoDonaBenta ficou boba, nãomuito, porque era filósofa,masmeioboba.

—Vejasó!—disseela.—Comestascoisinhasdenadaconseguem-seefeitostãograndes.Realmente,aaparênciaédechumbodecaça.

PedrinhotambémmostrouoaçogranuladoatiaNastácia,nacozinha.Masfoiinútil.Anegrariu-se.

—Istoéchumbodecaçador,menino.Nãoestávendo?ParatiaNastáciatudoquantoerametálicoeredondinhohaviadeser

chumbodecaçaepronto.Omeninotentouconvencê-la.—Chumboémole,boba,vocêbemsabedisso.Eestescarocinhosa

gente pode martelar com toda a força que não achatam, quer ver?— etrouxeomarteloebateunelescomtantaforçaqueumficouencravadonacabeçadomartelo.

—Convenceu-se?—exclamouPedrinhovitorioso.Masanegra,queerateimosa,veiocomumadassuas.—Issosóquerdizerqueéchumboduro—disseela.—Nãopense

quemetapeia,não.Seéde"meta"e

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Opoçojáestavaamaisdecemmetrosdeprofundidade.

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redondinho,estáclaroqueéchumbo—issodesdequeNossoSenhorfezomundo.Estanegraévelha,masnãoéboba,não.

Pedrinho contou o caso a Dona Benta, achando que só à força detrépanoseriapossívelabriraquelacabeçadura.

Oquímico-geólogoeraummoçomuitodistinto,parecidocomoClarkGable. Vinha sempre jantar com Dona Benta, com a qual conversavadurantehoras,em inglês.Chamava-seMr.Champignon, filhode francêseamericana.Numadessasprosas,DonaBentaperguntou:

—Meu caro Mr. Champignon, o poço já está a 300metros e nadaainda de óleo. A que profundidade supõe que poderemos encontrarqualquercoisa'?

—Meus cálculos— respondeu o químico— são para 600metros,issocombasenosestudoscomparativosque fizentreestes terrenoseosdoTexas,ondetrabalheimuitotempo.MasoViscondecalculaemmais—calculaem800metros.

O fato de aquele cientista americano citar com tanta seriedade aopiniãodoViscondefezDonaBentasorrir.

—Aquientrenós,Mr.Champignon—disseelaemseguida—achaque o Visconde seja realmente um sábio de verdade? Não tem qualquerdúvidasobreaciencinhadele?

Oquímico-geólogopossuíaaalmapura,dessasondeossentimentosinvejososnãoentram.Respondeucomocoraçãonasmãos:

— Acho, sim, minha senhora. Acho que o Senhor Visconde deSabugosadoPoçoFundo(queécomoaSenhoritaEmíliamedissequeelese chama), é na realidade um grande sábio. E isso me assombraextraordinariamente,porque,afinaldecontas,nãopassadumsabugo.Logoque aqui cheguei meu queixo caiu; primeiro, ao ver um sabugo vivente;depois,aoverificarqueerafalante;eporfim,aoreconhecerneleumsábio— mas sábio de verdade, desses que descobrem coisas e mudam asdiretrizesdacivilização.

—Serápossível,Mr.Champignon?— Perfeitamente, minha senhora. Já escrevi a uma sociedade

científica da América sobre o estranho fenômeno. Mandei um memorialsobreoVisconde.Estouconvencido,entretanto,dequeninguémmelevaráasério—enãomequeixo.Eufariaomesmo.Semefalassemdumsabugoassim,eunãoacreditaria.Masvi.Estouvendo,esou forçadoaconcordarcomShakespearequandodissequehánaterraenocéumaiscoisasqueosupõe a nossa vã filosofia. O Visconde, minha senhora, ainda há deassombraromundo—quandoomundopuserde ladoa incredulidadee

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prestaratençãonele.DonaBenta ficoupensativa.Quemistério,aNatureza!Ecomoainda

está atrasada a ciência dos homens! O que ela observava naquele sítiotambém punha-a atrapalhada, com as idéias zonzas. Tudo coisas que sóvendo. Contadas lá fora ninguém acreditaria. O fenômeno emiliano, porexemplo.

Emília nascera simples boneca de pano, morta, boba, muda comotodasasbonecas.Masmisteriosamentesefoitransformandoemgentinha.Todosaindaatratavamdeboneca,porforçadohábitoapenas,porquenarealidadeEmíliaeragentepura,decarne.Faziatudoqueasgentesfazem— comia com ótimo apetite, bebia, pensava, tinha um coraçãozinho ládentro, e alma e tudo. Como explicar este mistério, esta transformaçãodumafeiabonecadepanoemgente?

A mesma coisa com o Visconde, um reles sabugo que ela vira tiaNastácia apanhar ao pé do cocho da vaca. Pois não estava agoratransformadoemsábio—eemsábiotãosabidoqueatétonteavaopobreMr.Champignon?

DonaBentasuspirou.—Seestemeusítionãoéumsonho—dissedesiparasi—éentãoa

coisamaisespantosaqueomundoaindaviu.Ebeliscou-separaverseestavadormindoouerasonho.Doeu.Logo,

nãoerasonho.

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X

Emmarcha

Aos230metrosdeprofundidadeaperfuraçãoalcançouumlençoldeágua,ouum"horizonteaqüífero",comodiziaoVisconde.Assimqueaáguatransbordoupelabocadocano-guia,Pedrinhocorreuaprová-la.Estavamtodosansiososporveremsurgiráguasalgada,sinaldaformaçãomarinhadaquelesterrenos.

Nãoerasalgada.— Ainda é água de cima — explicou Mr. Champignon, depois de

analisá-la no pequeno laboratório montado perto da sonda. — Tem amesma composiçãodas águasda superfície.Masde repentedaremos emáguaquejánãoédechuva,esimfóssil—águaretidanoseiodaterrahámilharesemilharesdeanos.

NojantardaquelediaPedrinhorepetiuahistóriadaáguafóssil,quemuitointeressouDonaBenta.Aoouvirfalaremáguasalgada,TiaNastáciabateupalmas.

—Quebom!Seésalgada,agentesecaelaefazsal—eficalivredasladroeirasdoElias.AquelecenturiãocobraCrf1,50porumsaquinhodesalquenãodáparanada,opeste...

Aáguaquesaíadopoçotransbordavanumavasãode200litrosporhora. Mr. Kalamazoo, depois duma conferência com Mr. Champignon,resolveufechá-la.

— Temos que entubar e cimentar — disse ele. A operação doentubamentodopoçodivertiumuitoosmeninos,porsernovidade.Opoçoforaperfuradoatéos230metroscomumdiâmetrode35centímetros,demodo que cabiam nele os tubos de 30 centímetros. E Mister Kalamazoomandou que os operários trouxessem para ali 46 tubos desse diâmetro,tiradosdapilhacompetente.

—Porque46?—indagouNarizinho.—Porquecadatubotendo5metros,46tubostêm230metros—ou

sejaaprofundidadedopoço—respondeuoVisconde.Os tubos de revestimento, vindos da América, achavam-se

empilhadosemváriosmontes,conformeocalibre.Haviaomontedosde35

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centímetrosdediâmetro;omontedosde26;omontedosde22;omontedosde18efinalmenteomontedosde12centímetros.

— Em cada um dessesmontes— explicou o Visconde— há 1.500metrosdetubos,excetonoprimeiro,emquesóhá400.Querissodizerquepodemosrealizarcincoentubaçõessucessivas,umadentrodaoutra.

— Que desperdício! — exclamou Emília. — Se eu fosse dirigir otrabalho,fariaaentubaçãodummodomuitomaiseconômico.

—Como?

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Aos230metrosdeprofundidadeaperfuraçãoalcançouumlençoldeágua,ouum"horizonteaqüífero"—comodiziaoVisconde.

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— Em vez de cada vez entubar de cima para baixo, com umaentubaçãodentrodaoutra,euentubavaemcontinuação,estáentendendo1?

Pedrinboenrugouatesta,sinaldequenãoestavaentendendo.— Sim — explicou Emília. — Fazia como nos telescópio: uma

entubação mais fina continuava do ponto em que a outra parasse — edesenhounochãoasuaidéia.

—Émesmo!—exclamouPedrinhoentusiasmado.—Você fezumagrande descoberta, Emília. Vamos propor a Mister Kalamazoo o sistemaemiliano.

Mas a descoberta da Emília não passava de descoberta de pólvora.Coisa velha, esse processo de entubar telescòpicamente, com grandeeconomiadetubos.

—Mastemumgravedefeito—disseoperfurador.—Raroaságuasficam perfeitamente fecha das, e por isso esse sistema, apesar de maiseconômico,nuncaéusado.Ooutro,emboracaro,garanteofechamentodaságuasdummodoabsoluto.

Os operários trouxeram para ali os canos de 30 e deram começo àentubação. Cada tubo era agarradopelomoitão, suspensona vertical emcima do tubo-guia e enfiado nele até só ficar de fora um palmo. Nessepalmo de fora os "gatos" agarravam,mantendo o tubo em suspenso; e omoitão erguia um segundo tubo, que era atarrachado nele. Desse mododesceram ao fundo do poço os 46 tubos, formando de alto a baixo umacolunacontínua.

—Sim, senhor!—disseNarizinho.—Serviçobem feito.Masoquemaisadmiroéomoitão.

Paraelenãohápeso.Ergue tudonoar comamaior facilidade.Quegrandeinvenção!

—Realmente—concordouoVisconde.—Essemeioinventadopelohomem de multiplicar a força torna possível os maiores prodígios. Atélocomotivasgigantescassãolevantadasnoarcomosefossemdepaina,pormeio de guindastes que não passam destesmesmomoitão aperfeiçoado.Cadacanodesses,sabequantopesa?

—Calculoemdezarrobas.—Suba!Pesam300quilos—enoentantoessemoitãozinhoosergue

noarcomosefossempausdelenhaleve.Depoisdedescidososcanos,MisterKalamazootratoudacimentação.

Para isso fezo seguinte:Primeirodeixoua colunade canos suspensaumpalmo acima do fundo do poço. Depois injetou dentro dela uma boaquantidade de cimento bemmole, que, pormeio da força da bomba, foi

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comprimindo um tampão colocado sobre a massa de cimento. Foicomprimindo, comprimindo, até que o cimento saiu todo da coluna detubos,deuvoltaeseespalhouporforadacoluna,enchendoovãoentreelaeasparedesdopoço.Ecomoeracimentodesecaremcontactocomaágua,foisecandoeobturandoolençoldeágua.

Pronto. A água em cima parou de vasar. Estava fechada. Podiamrecomeçar a perfuração. Mas Mister Kalamazoo só retomou o trabalhodepois duma parada de três dias para que o cimento endurecessecompletamente.

Recomeçado o trabalho da perfuração com as rotativas, MisterKalamazoo notou que o avanço não estava rendendo nada. Caiu a umamisériadecentímetrospordia,emvezdemetros.

—Temosdevoltaraotrépano—disseoamericano.—Essacamadaláembaixoarotativanãofura.

— Como ele sabe que tem de voltar aos trépanos? — indagouPedrinho.

—Saberpropriamenteelenão sabe—explicouoVisconde.—Nospoços de exploração a gente nunca sabe de nada com certeza. Imaginaapenas,supõe.

—Quehistóriadepoçodeexploraçãoéessa?— Poço de exploração é o primeiro que se abre numa zona.

Correspondeportantoaumpulonoescuro.Operfuradornãopossuidadosparasaberqueterrenosvaiatravessar,queáguasequantasvaiencontrar,etc.Temqueirapalpando,experimentando.Eéoquevaifazerotrépano.Como qualquer coisa está impedindo que a broca roa as rochas, ele vaiexperimentarotrépano—massemsabersedaráresultado.

—Esenãoder?—Teráentãoderecorreraoutromeioqualquer,nãosei.Talvezlance

mão da broca de diamantes, que é a tira-prosa das rochas muito duras.Depoisdeabertoopoçodeexploração, tudo fica imensamente facilitado.Surgemos poços deprodução—oupoçode exportação, comodizemosperfuradoresnasualínguadeacampamento.

—Facilitadoporquê?—Porquejásabemcomoéoterrenolánofundo,quantoshorizontes

aqüíferos há, a que profundidades, e de que rochas são formadas ascamadas,etc.Sabemtudoe,portanto,adotamasondamaisprópriaparaocaso, e não erram, e não apalpam, e fazem o trabalho com rapidezmuitíssimomaior.Oprimeiropoçoésempreomaisdemoradoecaro.

— O primeiro é o poço-osso — disse Emília — os demais são os

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poços-canja,nãoéisso?OViscondenãorespondeu;nãogostavadomododefalardaEmília,

quelhepareciacafajéstico.Colocado o trépano, recomeçou o pum-pã, do qual os meninos já

andavamcomsaudades.Denadavaleu.Acoisanão ia.MisterKalamazoococou a cabeça. Súbito plaf!, um desastre. De tanto bater na misteriosarocha, uma haste se enfraqueceu na emenda e quebrou. Lá se foi para ofundootrépanocomtodoorestodacolunadehastes...

Osdoisamericanosconferenciaramunsminutossobreasituação.Sóhaviaumacoisaafazer:salvarashasteseotrépanocaídosnopoço.

—Vamosterpescaria—cochichouoVisconde.—Bravos!—exclamouEmíliabatendopalmas.—Pescariaécomigo

—equelindosepescamumpeixefóssildemilhõesdeanosatrás!—Peixefóssil,nada!Vãopescarotrépanoquecaiunopoço,sóisso.Osmeninosacompanharamcomamaior curiosidadeaoperaçãoda

pescadotrépano.Emíliaassanhadíssimaesemprecomesperançadopeixefóssil,nãoarredoupédali.Nemalmoçarfoinessedia.

Primeiramente, Mister Kalamazoo estudou com muito cuidado asituação. Mediu as hastes que ficaram fora do poço para achar aprofundidadeexataemquesederaaruptura:189metros.

—Allright!—rosnouele.Querdizerqueháládentro26hastes.

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—Quecontaéessa?—indagouamenina.—Muitosimples—respondeuoVisconde.—Comocadahastetem7

metros,eledividiu189por7parasaberquantashastesficaramdentrodopoço

—Masentãoerrou,porque189divididospor7dá27enão26.Errouporuma.

—Essaquefaltaéahaste-guiaeotrépano.Elefezodesconto.Para realizar a pescaria, o americanodesceu um aparelho chamado

"pescador",comgarrasdispostasdemodoaprendersolidamenteapontada haste quebrada logo que tocasse nela. Esse aparelho foi fixado numacolunadehastesedescidocuidadosamente.Quando iachegandoaos189metros,MisterKalamazoomandouqueomanobristamovesseamáquinaomaisdevagarpossível,e ficoucomamãoapoiadanacolunadescendentepara, por meio das menores vibrações, perceber o momento em que opescadortocassenapontadahastepartida.

— Veja a atenção dele — observou o Visconde. — Está de olhosfechadosparanãodistrair-se comcoisanenhuma, rodeadodosoperários

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imóveis, todos guardando o maior silêncio. Como não pode ver com osolhosdacara,MisterKalamazooestávendocomotacto,àmodadoscegos.Temqueguiar-sepelavibraçãodometal.

Eassimfoi.Acolunadehastecomopescadornapontafoidescendo,descendoemmarchalentíssima,atéqueoamericanoergueubruscamentea mão — sinal ao manobrista para parar. A máquina parou. MisterKalamazooabriuosolhos.Pelo tactosentiraqueopescador tinha tocadonapontadahastequebrada.

Restava agora manobrar delicadamente, erguendo e baixando acoluna de pesca, numa série de tentativas, até que a ponta da hastequebrada entrasse dentro das garras do pescador. Suamão, pousada deleve, não saía da coluna descendente, para sentir o que se passasse láembaixo.Súbito:

—Allright!—exclamou.—Estápresa.Eestavamesmo.Apontadahastequebradaforasegurapelasgarras

do pescador. A operação seguinte seria torcer a coluna de pesca até queuma das hastes da coluna caída cedesse numa emenda qualquer e sedesatarraxasse.

Ashastessãoatarrachadasumasnasoutraspormeiodeluvas.Havialá no fundo, portanto, 24 luvas, emendando 26 hastes. A que estivessemenosbemapertada,essadestorceriaprimeira.

— Mas os perfuradores ficam danados — explicou o Visconde —quando em vez de destorcer-se uma das luvas bem debaixo, destorce-seumadecima.

—Porquê?—indagouPedrinho.—Porquedestorcendoumabemdebaixoelessacamfora,dumavez,

um bandão de bastes, ao passo que destorcendo em cima só sai uma ouduashastes,obrigando-osamuitomaistrabalho.

Daquelavezosoperadorestiveramsorte.Aluvaquecedeufoiaqueligavaavigésimahasteàvigésimaprimeira,demodoqueaosuspenderemacolunadepescasaíramdumaassentada20hastes.Sóficaramnopoçoas6restantes.

Repetiram-se as manobras de pesca e por fim as 6 hastes finaistambém saíram. Restava pescar a haste-guia com o trépano na ponta,operação feita com um pescador de tipo diferente e que correu semnovidades.

Foiumalívioquandootrépanoapareceuàbocadopoço,comcaradecachorrinhoquequebrouapanela(Emília).Umahoraapenastinhaduradoapescaria.Tempomagnífico.Hápescasdificílimas,queduramsemanas,até

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meses. Mister Kalamazoo recolheu um pedacinho de rocha encravadonumafendadotrépano.Achando-aesquisita,levouMr.Champignon.

Aopiniãodoquímico-geólogonãosefezesperar.—Diábase—disse ele depois do exame.—Demos em cima duma

camadadediábase.O Visconde explicou aos meninos que a tal diábase era uma rocha

eruptiva muito dura de furar, que aparece em intrusões, por entre ascamadassedimentárias.

—Umapestededureza—disseele.—MisterKalamazoovaisuarnapontadonariz.

E suou. Apesar dos cálculos otimistas de Mr. Champignon sobre aprovávelespessuradaintrusãoeruptivas,MisterKalamazoolevouummêsparaperfurardezmetros—enãoviusinaldefim.Estavacommedoqueaintrusão se prolongasse por cem ou duzentos metros, o que seria umatremendamaçada.Felizmenteahipótesenãoserealizou.Aosdozemetrosaeruptivachegavaaofim.

O processo usado para perfurar essa rocha foi o da coroa dediamantes,istoé,umabrocacomseisdiamantesencravadosnoaço,sócomaspontinhasde fora.Odiamanteéo corpomaisduroqueexiste; cortaatodososoutrosenãoécortadopornenhum.

Naperfuração rotativa a rocha é roleteada, demodoquedentrodoocoda broca vai ficandoum cilindro tão bem calibrado como se feito aotorno.

Depois da broca perfurar aí uns dois metros, o oco da broca ficatotalmentecheioporessecilindroeéprecisoarrancá-lo fora.Omododefazer isso é interessante.Pormeiodabombade injeçãooperfurador fazcairdentrodabrocaumpunhadodepedregulho.Aspedrinhasentalam-seentre o cilindro da rocha e as paredes internas do tubo da broca,amarrandoo cilindro.Depoisdissoamáquinadáumpuxãopara cima.Ocilindrodarochaquebra-senabaseepodeserretiradodopoço.

Com muita dificuldade os meninos levaram para casa um dessescilindrosdediábase,paraomostraraDonaBenta.

— Veja que bonito, vovó! Um rolete de diábase cortado à força dediamantes.

DonaBentamuitoadmirouaquelarochaquasenegra,degranulaçãofiníssima,comoadaslousas—emandouquealevassemparaacozinha.

— Tia Nastácia anda reclamando um tamborete. Isso dá umtamboretedeprimeiraordem.

Anegraassombrou-sedequelánofundodaterraexistissempedras

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comaqueleformatoque"atépareciafeito."—Nãoexistemnão—explicouPedrinho.—Estecilindrofoifeito—

foicortadonummaciçoderochapormeiodabrocadediamantes.Anegrariu-se.—Diamantes,euseidisso!OMisterachouessapedra lánofundoe

agoraestáinventandoessahistóriadecilindroediamantes.Tomaraeleterumdiamanteparabotarnoaneldodedo.Pensaquesouboba?

A perfuração prosseguiu sem novidades, com rotativa, até aos 500metros, cota em que, subitamente, irrompeu nova água à boca do poço.MisterKalamazooprovou-a,comumacareta.

—Saltwater!—exclamou.—Águasalgada!Era um grande acontecimento.Os meninos correram a provar e

também fizeram caretas. No maior assanhamento recolheram numa latavárioslitroseforamparacasaafimdeassombrarDonaBenta.

—Água salgada, vovó!— gritou Pedrinho da porta.—Água fóssil.Águaqueestevepresanofundodaterraalgunsmilhõesdeanos.Prove.

DonaBentaprovou,comamesmacaretadeMisterKalamazoo.—Venhaver,Nastácia!Anegraapareceu,decolherdepaunamão.—Águasalgada,veja!Dopoço.Águafóssil—atropelouNarizinho—

fazendoanegraprovar.—Chi!Salmourapura—disseelacareteandotambém.—Queseriao

malvado que despejou sal no poço? Tão caro — mil e quinhentos osaquinho—egentedesperdiçadaestragandosalparasalgaráguadepeixepodre...

Custou convencê-ladeque erauma salmouranatural que vertia dopoçoemgrandequantidade.Issoadeixouradiante.

—Oragraças!Agentesecandonofogoumasalmouradessasficasalno fundo — sal igualzinho àquele que a gente compra. Podemos secarbastanteáguadessepoçoe fazerummontedesalparacozinharummêsinteiro—epelomenosnessemêsagentenãoengordaabarrigadaqueleturcoladrão.Milequinhentosporumsaquinhodenada,Sinhá.Ondejáseviusalpelopreçoqueoturcoestávendendo?Váserladrãonaterradele,credo!...

Pedrinhoarredouaspanelasdofogãoepôsaofogootachodefazermarmelada,comasalmourafóssildentro,eficoualiatéquetodaaáguaseevaporasse e uma camadinha de sal aparecesse no fundo. A negra davarisadasdegosto,àlembrançadapeçaqueiriampregarnoEliasTurco.

O jantardaquelanoite (saiumuitoatrasadoo jantar) foi temperado

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com o sal pré-histórico do Caraminguá n.° 1— um sal enterrado haviamilhõesdeanoseagorapostodenovoemcirculaçãograçasàiniciativadosmeninospetroleiros.

Emília levou para a mesa um pires com uma pitada. Volta e meiapunhaapontadodedinhona línguaedepoisno sal—ena línguaoutravez,fazendoumacaretadegosto.

—Issoéqueésal!—dizia.—Penanãoteremtambémpescadoumpeixefóssil—dosquemoravamnessaáguasalgadanotempoemqueelafoi mar. Teríamos então um quitute completo, tirado do guarda-comidasubterrâneodogloboterráqueo.

—Seriaperigoso—advertiuPedrinho.—Porquê?—OViscondefaladumpeixedenomeanfioxo,quenaopiniãodelefoi

um dos antepassados do homem. Sendo assim, você correria o risco decomerumseutatatatatataravôfóssil...

— Mas eu sou boneca — disse Emília. — Não pertenço à raçahumana.

—Mordaaqui!—exclamouomeninoespichandoodedo.—Vocêétão gente como eu. É gentíssima até. Essa história de boneca, Emília,ninguémmaisengole...

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XI

Petróleo,afinal!

Depois dos 700 metros os meninos notaram que o perfurador e oquímico-geólogo vinham prestando muita atenção aos testemunhosextraídosdopoço.Eleschamavamtestemunhosaostaiscilindrosderochaobtidospormeiodaperfuração rotativa.Numgalpãoarmadoàesquerdadasondaessestestemunhosiamsendodispostosunsemcimadosoutros,formando altas colunas, com papeletas indicativas das profundidades.Dessemodoficavaperfeitamentevisívelaconstituiçãodosubsolodaquelazona.

Pedrinhoaproveitou-sedavantagemparadesenharemváriasfolhasde papel-cartão emendadas o Corte Geológico dos Terrenos de Vovó, deacordo com as indicações de Mr. Champignon. Marcava no papel, comriscoshorizontais,ascamadasatravessadas,indicandoaespessuradecadaumaeomaterialdequeeramcompostas.EsseCorteGeológicofoipregadonaparededasaladejantar,emdiversassecções,ocupando-atoda.

Certo dia, ao extrair um testemunho, o rosto de Mister Kalamazooiluminou-se.Eraumcilindrodearenitoumtantodiversodosanterioresnacoretambémmaisporoso.Oamericanochamouoquímico-geológoeporalgum tempo conferenciaram, com muitos exames e cheiramentos docilindro. Mr. Champignon levou um pedaço para o laboratório. Quandovoltoutinhaacararisonha.

—Sim—disse ele.—Éumarenito gasífero, sinal evidentedequeestamosbempertodopetróleo.

Disseram isso em inglês, que o rinoceronte imediatamente traduziuparaoViscondeeestecorreuacontaraosmeninos.

—Abrocaestáperfurandoumacamadadearenitoporosogasífero,istoé, impregnadodegásdepetróleo.Querdizerqueestamospertodumhorizontepetrolífero.

Aalegria foi imensa.Houvehurrasepinotes.Pedrinho foi correndodaraboanotíciaaDonaBenta.

—Gás,vovó!Acabadesairumarenitoporosoimpregnadodegás—de gás de petróleo! Ora, onde há fumo, há fogo. Logo, se temos gás de

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petróleo,entãoéqueopetróleoestáperto.Umnãoandasemooutro.—Aqueprofundidade,meufilho?—Setecentosecinqüentametros.— Então o nosso viscondinho vai ganhar de Mr. Champignon, pois

previuopetróleoa800metros.Éumdanado...Dadaaboanotícia,Pedrinhovoltouparaasondanavolada,demedo

queopetróleojorrassenasuaausência.Masnãojorrou.Aperfuraçãoaindaprosseguiupormaisunstrintametrossemalcançaropetróleo;mascadanovo testemunho que saía vinha com mais evidências dele. O arenitoporoso jánãoeragasíferoesimgordurento,apontodesujarasmãosdequemopegava.Destilandoumpoucodessearenito,MrChampignonobteveum frasco dum óleo pardo-esverdeado, que classificou de excelentepetróleoparafinoso—umdosmelhorestiposqueexistem.

Depois dessa prova os dois americanos conferenciaramanimadamente. Mr. Champignon era de parecer que se suspendesse otrabalho da perfuração e se esvaziasse o poço. Calculou que a coluna deágua lamacenta que enchia o poço estava exercendo uma pressão de 9Uatmosferas,obastantepara impedirqueopetróleoviesseà tona, caso játivessempenetradonumhorizontepetrolíferodosnãomuitograndes.MasMister Kalamazoo, que com a sua longa prática de poços adivinhava ascoisas,resolveuperfurarumpoucomais,eopoçonodiaseguintechegouaos798metros.

— Agora, sim— disse ele, vendo a boca do cano-guia referver deborbulhas de gás ascendente. — Podemos esvaziar o poço, depois decolocadooblowoutpreventer,

Blowoutpreventernãopassadonomeinglêsdoregistrooutorneirãoquesecolocanabocadopoçoparaimpedirqueopetróleojorreeinundetudo.Pronuncia-seblôáutpriventer.

Um fato daquela importância precisava ser sabido lá em cima— ePedrinhodespachouEmílianacarreiracomrecadoaDonaBenta.

Emíliasaiuvoando.— Dona Benta!— gritou ela ao chegar.— Já vão botar no poço o

blowoutpreventer e Pedrinho quer que a senhora corra à sonda quantoantesporque"acoisaestáporumfio."

Dona Benta, ignorante do que fosse blowout preventer, fez cara deinterrogaçãomuda.Emíliaexplicoutratar-sedoregistro,dotorneirãoqueimpedequeopetróleofaçaasneiras.

Percebendoquese tratavadenegóciosério,DonaBentachamoutiaNastácia e botou um xalinho ao ombro, depois de caçoar com Emíliadizendo que ela, às vezes, bem precisava dum blowoutezinho quando

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asneiravademais.Emseguidamurmurou,voltando-separaanegra:—Serápossívelqueestesdiabinhostiremmesmopetróleo?— E Sinhá ainda duvida?— respondeu a preta.— Que é que não

fazem? Depois que deram comigo na lua, cozinhando para S. Jorge, comaqueledragãohorrendonoquintal,eunãoduvidodemaisnadanestavida...

Enquanto caminhavam, uma grande agitação refervia na sonda. Pordescuidonoembarquedaspeças,naAmérica,houvetrocadecaixões,eemvezdeviracaixacomaspeçasdoblowoutpreventer, veioumcom... doisaparelhosderádio!

— Sabotagem! — gritou Pedrinho. — Juro como foi sabotagemdaquelestrustesmalvados.EagoraVisconde?

O Visconde não sabia o que responder. Era um caso novo, nuncadiscutidonostratadosdepetróleoqueeleandavalendo.Eopiordetudofoique justamentenaquele instanteumroncosubterrâneose fezouvir,elogodepoisasborbulhasdopoçopipocavamcomredobradaviolência.

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—Estamosperdidos!—gritouMisterKalamazoo.

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—Estamosperdidos!—gritouMisterKalamazoo.—Opetróleovaisairenãotemosmeiodefecharopoço—enoseudesesperodeumurrosnacabeçaepuxõesnoscabeloslouríssimos.

— Que há? — perguntou Dona Benta, que vinha chegando com apretaeaEmília.—SeráqueMisterKalamazooenlouqueceu?

— É que não há blowout preventer! — respondeu Pedrinho muitoaflito.—Sabotaramaremessademateriais,mandandonumacaixa,emvezdoblowoutpreventer,doisaparelhosderádio,imagine...

—Eagora?—Agora eles não sabem o que fazer. O gás está borbulhando com

forçacadavezmaior.Acolunadeáguadopoço,quepesa90atmosferas,está resistindo por enquanto. Mas quando não puder mais resistir aoimpulsodopetróleo?Aíentãovaitudopelosareseopetróleoderrama-seporestescampos,eencheoCaraminguáeinundatudoeasenhoralevaabreca, tal qual a companhia americana que faliu por ter tirado petróleodemais...

—Nossa senhora!—exclamouDonaBentapondo asmãos.—Quevaiserdemim,SantoDeus?

—Opior—continuouPedrinho—équeMisterKalamazooperdeucompletamenteacabeça.Olheodesesperodele...

—Acabeçanãodigo—observouEmília—masoscabelosvaiperdertodos,secontinuaaarrancá-losassim...

Nessemomentooestrondosubterrâneoroncoumaisforte.— Chi!— exclamou tia Nastácia.— Trovoada no fundo da terra é

coisaquenuncavi.Vaichovergrossoàsavessas...A situação era verdadeiramente trágica. Mr. Champignon deixou-se

cair sentado sobre um trépano, com a cabeça entre as mãos. Estavaarrasado.MisterKalamazoo andavade um ladopara outro a ameaçar oscéuscomospunhosfechadoseadizernomesquedeviamserfeíssimos—e felizmente só Quindim entendia. Vendo os chefes naquele estado dedesespero, os operários olhavam--se atônitos, sem saberem o que fazer.Dona Benta, tomada de medo, caiu sentada, com aquela sua célebresufocação cardíaca dos momentos perigosos. E os roncos subterrâneoscadavezmaisfortes...Eabocadopoçocadavezmaisborbulhantedegás...

No meio de tanto horror, só Emília e o Visconde conservavam-seabsolutamentedonosdesi.ForamconferenciarcomQuindim.Conferênciarápida. Quindim aprovou a idéia de Emília e levantou-se do chão ondeestava deitado. Pesadamente encaminhou-se para a sonda, seguido doVisconde,enquantoEmíliavoavaaoescritório.

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AochegaràsondaQuindimentroue,comenormeassombrodetodos,plantou-sesentadoemcimadocano-guia!

Apesardoseudesespero,MisterKalamazoonãopôdedeixarderir-se.Emtodaasualongavidadeperfurador,jamaistiveraensejodeverumblowoutpreventerdaquelamarca—blowoutpaquidérmico!

—Pronto!Estátudosalvo!—gritouoVisconde.—Acolunad'águado poço faz sobre o petróleo que quer subir um peso de 90 atmosferas.Quindimpesaráoutrastantasatmosferas—ecomtodasessasatmosferassomadasjuroqueescoramosopetróleoatéqueoblowoutchegue.

EstasúltimaspalavrasfizeramMisterKalamazooarregalarosolhos.—Atéqueoblowoutchegue,Visconde?—repetiuele.—Quehistória

éessa?— Sim, até que chegue da América. Emília foi ao escritório fazer a

encomenda. Basta que Quindim escore o petróleo uns vinte minutos eteremosaquioblowoutpreventer.

Oamericanoficounamesma.—Sim—continuouoVisconde.—Emíliavaipediroblowooutcoma

maiorurgência.Jápediu.Olheacarinhadela...Emíliavinhavoltando,muitolampeira,demãosàcintura.—Pronto!—exclamouaochegar.—Pediàfábricaquemandassem

imediatamente o blowout esquecido e passei-lhes uma descomposturatremenda.Emquinzeminutosteremosotorneirãoaqui.

O absurdo era tamanho que Mister Kalamazoo sentiu ímpetos deamassarEmíliacomumsoco.

—Temosoblowoutaqui,como,bonecadumafiga?—berrouele.—Figaéoseunariz,sabe?—respondeuelaabespinhada.—Pedio

blowoutàfábricasim,comordem

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AochegaràsondaQuindimentrou,e,comenormeassombrodetodos,plantou-sesentadoemcimadocano-guia.

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paraqueomandassemcomamaiorrapidezpelo"Faz-de-Contan.°4",queéoaviãomaisvelozdaminhaempresa.

MisterKalamazoosuspirouefoisentar-senotrépanoaoladodeMr.Champignon. E também enterrou a cabeça entre as mãos, no maiordesnorteamentodasuavida.

Minutossepassaram.Quindim,firmeemcimadopoço,somavaoseupesoaopesodacolunad'águaeambos iamescorandoopetróleo,oqualroncava lá no fundo cada vez mais furioso por sair. Súbito, um zunidodistanteatraiuaatençãodetodos.Umpontonegroapareceunocéuazul.Era o avião da Emília. Chegou. Posou. O piloto fez sinal aos operários egritou-lhes:

—Tragoaquiumagrandecaixa,pesadíssima.Venhamretirá-la.Osoperáriosforamearrastaramacaixaatéàsonda.Abriram-na.—Maisrádio?—gritouPedrinhoaproximando-se.Não. Dessa vez a encomenda viera certa: um blowout preventer

novinho.Quando Mister Kalamazoo viu que era mesmo um blowout, seu

assombro não teve limites. Ficou completamente bobo. Impossívelcompreender o milagre. Por fim acordou do estuporamento e correu acolocarapeçachegada.Maseraimpossívelatarrachá-lanocano-guia,comorinocerontesentadoemcima—etirarQuindimdalierasoltaropetróleo.Quefazer?

—Iwilltakeachance—murmurouele,como

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quem diz: Vou arriscar. Deu ordem aos operários para que limpassem eengraxassem a rosca do cano-guia e a do blowout, e depois de tudoarrumado do melhor jeito pediu a Quindim que pulasse fora. Quindimpuloueosoperários,semperdadeumsegundo,ergueramapesadapeçaepuseram-se a atarrachá-la no cano-guia. Mas com a saída de Quindim acolunad'águadopoçonãoescorouopetróleoecomeçouajorrarametrosdealtura,enlameandotudo.

—Hurry up! Hurry up! era só o que sabia dizerMister Kalamazoo.Depressa! Depressa! E nunca homemnenhum foi tão bem obedecido. Osoperários trabalharam como relâmpagos de pernas e braços. Numinstantinhooblowoutfoiatarrachado.

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Enãosemtempo.Assimqueoshomensderamaúltimavoltanaroscativeram de fugir dali aos pinotes, porque o petróleo ganhara grandeimpulsoearremessaraparaoar,comenormeviolência,orestodacolunad'água.Umachuvadelamabarreouatorredealtoabaixo,espirrandoatéemDonaBenta e tiaNastácia, distantesdali. Emseguidao jorrode lamaavermelhadafoisubstituídoporumjorronegro,tãoviolentoquearrebatouapartesuperiordatorre.

Todoscorreramparalonge,numagritaria.—Petróleo!Petróleo!Eraopetróleo,afinal!EraojorrodepetróleosalvadordoBrasil,que

se levantava numa colunamagnífica até quarentametros para o céu. Láfazia uma curva de repuxo na direção do vento e caía sob forma dechuveiro forte. E como aconteceu que Dona Benta, tia Nastácia e osmeninos estivessem na direção do vento, foram colhidos pela chuva deóleo,ficandocompletamenteempapados...

EmíliaeoViscondeavançaram,pordentrodachuvanegra,atéàrodadoblowout,quetorceramafimdefecharoregistro.Foramfechando-oe,àmedida que o registro se fechava, o repuxo de petróleo foi diminuindo,baixando,atéquecessoudetodo.OCaraminguán.°1,oprimeiropoçodepetróleonoBrasil,estavacontrolado—istoé,defreionosdentes,humildecomoumcavaloqueabaixaacristadiantedaforçadopeão!

Umhurra tremendo ecoou.Os operários batiampalmas e gritavam,saudandoomaravilhosoacontecimento.TinhamsidoosobreirosdoPoçoNúmero1—opoçoqueiriamudarosdestinosdeumpaís,arrancando-oda sua eterna anemia econômica para lançá-lo na larga Avenida doProgressoSemFim.

—VivaMisterKalamazoo!—gritouPedrinho.—VivaQuindimoblowoutdecarne!—gritouEmília.—VivaoVisconde,ograndegeólogo!—gritouNarizinho.Os operários, reunidos a pouca distância, acompanhavam as

aclamaçõesdosmeninos.— Vocês esqueceram do pobre Mr. Champignon— lembrou Dona

Benta.—VivaMr.Champignon!—gritouNarizinho.

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DonaBenta,tiaNastáciaeosmeninosforamcolhidospelachuvadeóleo,ficandocompletamenteempapados.

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O químico-geólogo, lá da porta do laboratório, agradeceu ahomenagemcomumacurvaturadecabeça.

—Tudo está ótimo—disseDonaBenta.—Mas toca a voltar paracasacorrendo.Estamostodosquenempaviosdelampiãodequerosene...

Realmente assim era.Ninguémescapara ao banhode óleo negro.OpobreVisconde,então,queerasabugoeportantomaisabsorventequeosdecarne,esseficouempapadoatéàmedula.

— Nós ainda nos arranjamos com um bom banho — disse DonaBenta.—MasoVisconde,nãosei.SósetiaNastáciaoferverumdiainteironotachodefazermarmelada.Comohádeser,Nastácia?

— Deixe ele comigo que dou jeito, Sinhá — respondeu a negra,pegandonoViscondeeexaminando-o.—Chi!Estáquenemumaesponja.Ojeitoquevejoéumsó:mudarocorpinhodele—botarumsabugonovo...

Em casaNastácia pôs a ferver várias tachadas e latas de água e foibuscar seispãesdesabãonavendado turco.Nuncaopessoaldosítio seensaboou com tanta fúria. Até cacos de telha entraram em cena. Mas opetróleodoCaraminguán.°1eraterrível.Entranhavatãofundoqueapesardas lavagens todos ficaramcomumcheirinhodequerosenedurante trêsdias.

Asroupasforamempilhadasnummontenoquintalparaumafervuradehoras.(Masmesmodepoisdafervuraficarampormuitotempocomumvago"perfumezinho"apetróleo.)

Lá na sonda os americanos, os operários e o rinoceronte fizeram omesmo.Lançaram-senoribeirãoparaumalavagemafundo...

Emília,noseubanheirinho,estavaaesfregar-sefuriosamentecomumcacodetelha.Derepentedisse:

—Opetróleopode serumaexcelente coisa, pode ser a riquezadasnações,podeserourolíquidoouoquequiserem.Masnocorpodagenteé,comperdãodapalavra,umagrandissíssimaporcaria...

Dessaveznãohouvequemnãoconcordasse.

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XII

OabalodoPaísAaberturadoCaraminguán.°1,comumavasãode500barrispordia,

começouaespalhar-sefulminantementepeloPaísinteiro.Osjornaisderamanotícia,combasenumacomunicaçãomandadaporPedrinho;mascomoessasnotíciassensacionaissãomuitasvezespeta,todossemantiveramnadúvida. Umdeles publicou o comunicado de Pedrinho com este título:Sinon é vero... Outro escreveu que quando a esmola é demais o santodesconfia.

Pedrinho danou e mandou segundo comunicado, convidando osincrédulosaviremver.Desdequesetratavadumfato,nadamaissimplesdoqueaveriguá-lo.Queviessemver,cheirar,provaromagníficopetróleoparafinosodopoçoabertonosítiodeDonaBenta.

EssenovocomunicadodePedrinho,queeleassinaracomoseufuturonomedegentegrande,PedroEncerrabodesdeOliveira, causousensação,apesardaesquisiticedosobrenomeEncerrabodes,quelevavaopovoarir-se e pilheriar. Quem era esse tal Encerrabodes? Ninguém sabia. Só ascriançasdoBrasil sabiamquePedroEncerrabodesdeOliveiranãopodiaseroutrosenãoPedrinho,onetodeDonaBentaEncerrabodesdeOliveira.

—ÉPedrinho!ÉPedrinho!—afirmaramascriançasdetodoopaís.—ÉonetodeDonaBenta!Eledissequeiatirarpetróleoetiroumesmo!...

Mas as gentes grandes, marmanjões pretensiosos, riram-se dascrianças,dizendo:"HádeserentãoumadasmuitasmaluquicesdotalsítiodeDonaBenta,queotalLobatovivecontando.Brincadeira."

Certo jornaldoRiode Janeiro,porém, criou coragememandouumseu repórter investigar o que havia. O repórter foi recebido por DonaBenta.

—Minha senhora—disseele—circulamboatosdeque foi abertoaqui em suas terras um poço de petróleo. Mas ninguém lá fora acreditanisso;primeiro,porqueestáoficialmenteassentadoqueoBrasilnão tempetróleo;segundo,porqueopetróleosurgiu justamenteaquinoseusítio,que tem fama demaluco; terceiro, porque a comunicação aos jornais foifeita por um Senhor Encerrabodes que ninguém nunca viu mais gordo.

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Apesar disso, omeu jornal encarregou-mede chegar até aqui para ver oquehá.

DonaBentadesceuosóculosparaapontadonariz.—Foibomqueviesse,meusenhor.Porestranhaquepareçaanotícia,

é a verdade pura. Meus netos meteram-se a estudar geologia com oViscondedeSabugosaeconvenceram-sedaexistênciadopetróleoaquinosítio.Ecomosãolevadosdabreca,arranjaramsonda,perfurador,operáriosespecialistasepuseram-seafurar.Passarammesesnisso,atéqueenfimopetróleoapareceunumgrandejatode40metrosdealtura,quenosdeixouatodoscomopintospeladosquecaemnomelado.

O repórter refranziu a boca num risinho de incredulidade.Evidentementeaquelavelhotaestavaamangarcomele,ouentãoeraumacaducaquenãosabiaoquedizia.Erespondeuzombeteiro:

—Poismuitobem. Se saiupetróleo emquantidadeparaumbanhoemtodosdacasa,eutambémqueriatomarmeubanhozinhodepetróleo.Épossível?

—Achoquesim—respondeuDonaBenta.—Masissonãoécomigo.Vouchamarmeunetoparaqueelesatisfaçaoseudesejodebanho.

Evoltando-separaacozinha:—Nastácia,ondeandamosmeninos?—Nasonda,Sinhá—respondeuapreta.—Sinhábemsabequeeles

sóaparecemporaquiquandoafomeaperta.—ChamePedrinho—ordenouDonaBenta.TiaNastáciafoiàjanelae

deuumassobioagudo.Momentosdepoisomeninoaparecianavaranda.—Quehá,vovó?—Háaquiestesenhor,repórterdo"CorreiodaManhã",queveiover

seépossíveltomarumbanhodepetróleo.Dizqueláforaninguémacreditana descoberta do petróleo aqui no sítio, nem sabem quem é o talEncerrabodesquemandouacomunicaçãoaosjornais.

Pedrinhomediuorepórterdealtoabaixo.—PedroEncerrabodes,netoaquidevovó,soueu,oautordanotícia

aos jornais.Quantoaobanhoqueosenhordeseja,bastaquemesiga.Vaiserprontamentebanhado.

Aquelemodo seguro de falar encabulou o repórter, cujo risinho deironiaficouumtantodesmanchado;eomaisquepôdedizerfoi:"Poisestouàssuasordens."

Pedrinho conduziu-o à sonda. Assim que viu aquele acampamentopetrolífero,comumatorreaprumadaparaocéu,emáquinasde todososlados,eoficinasecasasdeoperários,orepórteramarelou.Seriaverdade?

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Um americano grandalhão estava a conversar com outro sujeito tambémcomcaradeamericano.Pedrinhoapresentou-lhesorepórter.

—MisterKalamazoo,permita-meque lheapresenteaquiorepórterdo"CorreiodaManhã."Eleveiodelongeparatomarumbanhodepetróleo,porqueédostaisSãoTomesdoverparacrer.

—How do you do sir? — rosnou o americano, moendo a mão dorepórtercomumshakehanddequebrardiábase.

— E aqui temos Mr. Champignon, nosso químico-geólogo —continuouPedrinho,indicandoooutroamericano.

—Howareyou?—disseeste,acabandodemoeramãodojornalistacomoutroshakehandde20atmosferas.

Orepórtersuavafriosacudindoamãonoar.MesmoassimarregalouosolhosquandoPedrinhofezaapresentaçãodoViscondedeSabugosaedoQuindim.Seuespantofoiimenso,aodarcomorinoceronte.Quisfugir.Quissacardo revólverpara abater aquelemonstroafricanoqueoolhava comumaestranhaexpressãodebondade.Vendo,porém,queopaquidermenãosemovia,aquietou-se,comosuorapingar-lhedatestaemgotasgraúdas.

—Poisé—dissePedrinho.—Sãoestesoshomensquenosabriramo poço do Caraminguá n.° 1, o qual está controlado por um possanteblowoutpreventeretemcapacidadepara500barrispordia.

NarizinhoeEmíliaaproximaram-se.— Esta aqui éminha prima— disse omenino— e esta outra é a

celebérrima Emília de Rabicó. Nós apenas "sapeamos" o serviço dopetróleo. Quem tudo dirige é ali Mister Kalamazoo, auxiliado por Mr.Champignon. No começo tivemos receio de que nos sabotassem o poço,mashojegostode confessarempúblicoqueasnossasdesconfiançasnãotinhamfundamento.Ponhoaminhamãonofogopelalealdadedessesdoishomensedetodososoperáriosqueelestrouxeram.

O repórter nem sabia o que dizer, de tanto que tudo ali lheatrapalhava as idéias. Seria possível, então? Seria possível que ocomunicadodosjornaisrepresentasseaverdadepura?

— Senhor Encerrabodes — disse ele — confesso o meudesnorteamentoabsoluto.Vimcácertodenãovercoisanenhuma,poisacomunicação feita aos jornais tem todas as aparências duma engenhosamistificação.Masestecampopetrolíferoestasonda,estasmáquinas,esteshomenslouros,tudoistomefazcrerquepelomenosintençãodedescobrirpetróleo existe aqui. Mas entre intenção de tirar petróleo e petróleo deverdade vai uma grande distância. Eu só me daria por cabalmenteconvencido se visse, cheirasse, provasse o petróleo supostamente

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produzidoaqui.— Nada mais fácil — disse Emília. — Nós provamos tudo quanto

afirmamos,emboraomundoserecuseaacreditaremcertascoisas,como,por exemplo, a nossa viagem ao céu. Há de crer que muita gente aindaduvidadisso,apesardetermostrazidodeláaprova—umanjinhodeasaquebrada!Comopetróleo,porém,acoisamuda.Ésóabrirmosatorneiraalinoblowoutepronto:estáprovadoopetróleo.

Otomsegurodaquelacriaturinha,quepositivamenteeraumabonecafalante, tonteou o repórter. Novas gotas de suor pingaram-lhe da testa.Chegou a duvidar de si, a pensar que estivesse sonhando; edisfarçadamentebeliscouapernaparaverseestavamesmoacordado.Viuqueestavaesuspirou.Naverdadenãocompreendianadadenadadetudoaquilo.

—Poismuitobem—disseeleporfim.—Mostrem-meopetróleoeestarátudoacabado.

PedrinhocochichouqualquercoisaaoouvidodoVisconde,oqualfoiconferenciar com Quindim, o qual chamou Mister Kalamazoo, trocandocomeleváriaspalavras."Allright"—foiarespostadoamericanocomumpiscoparaPedrinho.

—Muito bem—murmurou este, compreendendo a significação dapiscadela. — O senhor repórter vai sentar-se aqui por um momento,enquantoMisterKalamazoomexenoblowout.Oblowout é o registroquefechaopoço.Abrindoesseregistro,opetróleojorra.Prepare-se,pois,paraassistiraumbelíssimojorrodepetróleo.

Opobrerepórter,quenuncatinhavistopetróleo,sentou-senopontoindicadopelomenino,justamentenumlugardeventoafavor,demodoquequandoopetróleojorrasseachuvadorepuxoviriacairbememcimadele.Não desconfiou de nada, nem desconfiou de o deixarem ali sozinho e sepassaremtodosparaoladooposto.

Mister Kalamazoo dirigiu-se ao blowout e torceu a manivela.Imediatamenteumjorropotentíssimodepetróleonegroelevou-senoaradezenasdemetrosdealtura,abriu-seláemcimaempenachoedesceusobformadechuvagrossabemsobreopontoondeseachavasentadoomíserorepórter.

Quebanho!Ojornalistafugiudalicomquantaspernastinha,masnãoescapou de ficar empapado até à medula dos ossos. E quando parou acinqüentametrosdedistânciaeolhouparatrás,oqueviufoioamericanofecharotorneirão,pondofimaotremendorepuxodeóleonegro.

Osmeninoscorreramaoencontrodohomempetrolizado.

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—Então?Estáconvencido?—indagouPedrinho.Orepórternemfalarpodia.Opetróleoentrara-lhepelaboca,ouvidos

enariz,causando-lheummalmedonho.Cuspia,espirrava,tentavalimparaboca — mas limpar como, se as mãos, o lenço, tudo não passava dumempapamentodepetróleo?

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—Então?Estáconvencido?—indagouPedrinho.

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— Ele é capaz de morrer envenenado— disse Mr. Champignon, eordenouaosoperáriosqueoconduzissemaoribeirãoeolavassemafundo.O pobre repórter foi levado ao rio, despido e ensaboado por dez mãoscalosas, ásperas como lixa. E como suas roupas ficassem inutilizadas enenhumdoshomensdasondalhequisessecederumterno,oremédiofoivestirem-nocomumasaiaeumvelhocasacodeDonaBenta,enquantotiaNastácialhefervia,secavaepassavaasroupascomqueviera.

Tevededormirnosítio,porquesuaroupasóficariaprontanamanhãseguinte — além de que a brincadeira o deixara completamentederrancado.

—Uf!— exclamava omísero na varanda.— Fui bem castigado daminhaincredulidade,masachoqueabusaramdemim.Nãoeranecessárioiremtãolonge.

— Longe,meu caro?—disseDona Benta.—Mas não foi o senhormesmo quem me disse, aqui nesta varanda, que desejava um banho depetróleo?Pedrinhonadamaisfezdoquesatisfazeroseupedido.

—Sim,maseuestavacaçoando.Disseaquiloporbrincadeira.—Enóstambémlhedemosobanhodepetróleoporbrincadeira—

disseEmília.—Tudobrincadeira.—É,masquaseme iamenvenenando.Comoeunãoesperassea tal

chuvadepetróleo,deixei-me colherpor ela—ebebi, sim,bebipetróleo.Ugh!Quegostohorrível!Tenhoaimpressãodequenuncamaismesairádaboca...

— Tout passe, tout casse, tout lasse — murmurou Dona Benta,repetindoumversodeVítorHugo.—Tudopassa,meusenhor.Essegostodepetróleoemsuabocapassarátambém.Sossegue.

TiaNastáciadeu-lheumcháde losnabem forteearrumou-lheumaboacamanoquartodePedrinho.Orepórterdeitou-secedo,nãoquerendonem que lhe falassem em jantar. Impossível comer qualquer coisa comaquelehorrívelgostonaboca.

Nodiaseguinteamanheceumelhor,eassimquetiaNastácialhelevouasroupasfervidas,lavadasepassadas,eledespiu-sedasaiaedocasacodeDonaBentaeenvergou-as.Etratouderaspar-sedali.

—Minhasenhora—declarouaodespedir-se.—Atragédiadeontemservirá para uma coisa: fazer que o Brasil inteiro acredite no grandemilagrerealizadonestesítio.Adescobertadopetróleorepresentaumfatodesignificaçãomaisaltadoquepodemosconceber.RepresentaalgomaisimportantedoqueaprópriaindependênciadoBrasil.Nodia7desetembroo Brasil proclamou a sua independência política, mas só agora acaba de

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proclamarasuaindependênciaeconômica.Emquediafoi?—Opoçojorrounodia9deagosto—respondeuNarizinho.—Poiso9deagostovaificarimortalizadonahistóriadonossoPaís.

A República Argentina considera feriado nacional o dia 19 de dezembro,datadoaparecimentodopetróleoemComodoroRivadávia.BreveteremosaquinoBrasilo9deagostotransformadoemdatanacional,aoladodo7desetembro. Este comemora a nossa independência política; o 9 de agostocomemoraráanossaindependênciaeconômica.

—Muitosatisfeitaficodequeassimseja—disseDonaBenta.—Euestou que não caibo emmim de contente, porque forammeus netos osheróisdagrande façanha.Começarama coisabrincandoe tudoacabouasério.Graçasaeles,aoViscondeeaoQuindim,temospetróleo—oBrasiltempetróleoe,portanto,oelementobásicoparatornar-seumanaçãoricaepoderosa.Podeescrevernoseujornalquenãoexistenomundonenhumaavómaisfelizdoqueeu.

—Nemmaisrica!—berrouEmília.—Opoçoestádando500barrispordia.ACr$30,00,são15milcruzeirospordia.Qualéaavóporessesmundosaforaquetem,alinabatata,15milcruzeirospordia?

Os olhos do repórter brilharam. Quinze mil cruzeiros por dia!Quatrocentos e cinqüentamil pormês! Cincomilhões e quatrocentosmilporano!Umaverdadeiramina.Ah,seelepudessetirarumacasquinha...Seaquelavelhaseapaixonasseporele...

Logo depois da partida do repórter os jornais do Brasil inteiropuseram de lado as notícias de crimes americanos e das mexericagenspolíticas para só tratar do petróleo. Petróleo! Petróleo! A descoberta dopetróleonoBrasil!Umpoçode500barrispordianosítiodeDonaBenta!Aavómilionária! Cincomilhões e quatrocentosmil cruzeiros por ano, só doprimeiro poço! O banho de petróleo! A chuva de petróleo! Um sabugocientíficoqueéumformidávelgeólogo!Umrinocerontequesabeinglêsenãochifragente!MisterKalamazooeMisterChampignon!

Essas notícias sensacionais determinaram uma verdadeira romariaaosítio.Automóveisemaisautomóveis,cheiosdefigurões,apareciamporlá,umatrásdooutro.Engenheiros,industriais,capitalistas,curiosos—nãohaviaquemnãoviessever,cheirar,provaropetróleodeDonaBenta.

Telegramas foramenviadospara aAméricadoNorte.ORockefellermandouoferecerpelosítio5milhõesdedólares.

—Nãovendoporpreçonenhum—foiarespostadeDonaBenta.—Dequemeadiantaumaboladade5milhõesdedólares?Noqueempregarisso?Ondeencontrarumsitiozinhocomoeste,tãocheiodeárvoresvelhas,

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derecordaçõesagradáveis—etãoricoempetróleo?Não,nãoenão.Naimpossibilidadedeadquiriromaravilhososítio,osespeculadores

trataramdesegurarasterrasvizinhas.AfazendadoCoronelTeodorico,umsapezinhosemvalornenhum, foi vendidapor10milhõesde cruzeiros.OEliasTurcocedeuopontodasuavendapor500milcruzeiros—elásefoiparaaTurquia,comgrandecontentamentodetiaNastácia.AnegranuncalheperdoouodesaforodepedirCr$1,50porumsaquinhodesal.

—Queváfurtarnaterradele—foioseucomentárioquandosoubedanotícia.

UmsitiantedenomeChicoPirambóia,cabocloopiladoquemaltiravadas suas terras (dez alqueires) o necessário para não morrer de fome,vendeuapropriedadepor230milcruzeiros—eaindalevouocapadinhodecevaeacabra.

Organizaram-selogocompanhiaspetrolíferasparafazerestudosnasterrasemredordosítiodeDonaBentaeperfurar.Avilapróxima,queeraum vilarejo ordinaríssimo, com duas vendas ainda piores que a do EliasTurco,aigrejinhamuitopobre,umfarmacêuticocaolho,doiscurandeiroseum antigo coronel da guarda nacional, começou a transformar-se comrapidezvertiginosa.Opreçodascasaseterrenossubiuagalope.Casebresqueantesdopetróleonãoalcançavamnem800cruzeiros,eramvendidospor30,40,50milcruzeiros.Casasnovas,bonitas,começaramaerguer-senos terrenos vagos. Vinha gente de fora aos bandos — gente dascompanhias de petróleo e aventureiros. Surgiram casas de sorvete, umcinema, dois, três, dez bares. Depois, um cabaré com umas francesasroucas,ondeàsvezesrebentavambrigasmedonhas.

—Issoéquenãoestádireito—comentoutiaNastácia.—Nossavilasempre foi uma coisa quietinha, sossegadinha — agora está que nemaquelafitaqueeuviumavez,cheiadehomenscomcintoscheiosdebalas,que bebem nos balcões e de repente sacam do revólver e espatifam olampião do forro e garram a moer gente com cada soco que parecemartelada.Credo!Euaténemtenhomaiscoragemdechegaratélá.

Tia Nastácia em toda a sua vida, só tinha assistido a uma fita decinema."OsBandoleirosdoFarWest",emquehaviatantotiroemlampião,e tantas lutas corpo-a-corpo e tantosmurros de arrebentar cara, que elanuncamaisquissaberdecinemas."Credo!"—dizialembrando-sedafita."Euestavavendoahoraemqueaqueleshomõesvinhamdelápracimadagentenascadeiras,detiroesoco,nãodeixandoumvivo.Sueifriodaquelavez,masnuncamais.Cruz,credo,canhoto..."

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XVIII

Grandesmudançasnavila

Com o aparecimento do petróleo, a conversa nos serões de DonaBenta tornou-se exclusivamente petrolífera. Quem falava era sempre oVisconde, sabidinhocomoele só.Nodia imediatoaobanhodo jornalista,suadissertaçãofoisobreomododerefinaropetróleobruto.

—Porqueopetróleobruto—disseele—sóserveparaqueimar.Masseorefinarmos,obteremosumaporçãodeprodutosdemuitovalor,comoabenzina,agasolina,oquerosene,osupergás,oóleocombustível,oóleolubrificante,asparafinas,asvaselinas,oasfalto,ocoquedepetróleoemaisnumerosos produtos de menor importância. Os petróleos brutos variammuito. Uns são bastante ricos em produtos voláteis; outros não dãoprodutosvoláteis;outrossódãoprodutosvoláteis,comoodeMontechino,naItália,querende95porcentodegasolinaequerosene.

—Noventa e cinco por cento?— admirou-se Pedrinho.— Então équasetodoelegasolinaequerosene...

— Exatamente. Já os petróleos americanos, embora variem dumpontoparaoutro,dãoemmédia20porcentodegasolina,38porcentodequerosene,15porcentodegáse25porcentodeóleocombustível.

—Nessecaso,éinteirinhoaproveitável—advertiuomenino.—Sim.Oqueseperdenãopassade2porcento,umaninharia.—Quemina?Ecomosefazpararefinar?— O petróleo bruto é uma mistura de vários hidrocarbonetos

diferentes, uns gasosos, comoometanaque vemdissolvidonos líquidos;outros líquidos;outrossólidos, comoaparafina.Arefinaçãoéoprocessoqueseparaosvárioshidrocarbonetos.

—Emqueconsiste?— Cada um desses hidrocarbonetos, cujamistura forma o petróleo

bruto,temasuatemperaturaprópriadeebulição.—Ebuliçãoéfervura,nãoé?—Sim.Ebuliçãoéopontoemqueoslíquidoscomeçamaferverea

evaporar-se.Ora,esseshidrocarbonetosdopetróleobrutofervemdesde35até600graus.

—Estoucomeçandoaentender—dissePedrinho.—Estounapista.

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Continue,Visconde.— O petróleo bruto — continuou o Visconde — é aquecido em

grandes caldeiras; quando a temperatura chega a 35 graus, começam aevaporar-seoshidrocarbonetosmaisvoláteis,osquaispassam,emestadode vapor, para o reservatório onde se resfriam e se condensam, isto é,voltam ao estado líquido. Mas o calor da caldeira continua a crescer,chegando até 600 graus, e pelo caminho vão se evaporandomais este emais aquele hidrocarboneto, conforme o grau de ebulição de cada um;evaporam-seepassamemestadodevaporparaostaisreservatóriosondeseresfriam.Aos600grausevaporam-seosmaispesadosepronto.Dalipordiante é inútil aquecer. Não sai mais nada. Tudo que tem valor já seevaporou; ficaapenasumresíduoque,conformeaqualidadedopetróleo,podeseromazu(óleocombustível),ouocoquedepetróleo.Noscomeçosda indústria o único produto que se tirava do petróleo era o querosene,empregado na iluminação e ainda hoje muito usado no mundo inteiro,inclusiveentrenós.Nãohácasadecabocloporessesmatosquenãotenhasualamparinadequerosene.

—Porsinalqueéumacoisahorrível—observouEmília.—Alémdedarumaluzqueneméluz,detãofracaefeia,aindadeitaumpenachodefumo negro imundíssimo. E de respirar aquilo de noite, a caboclada ficacomonarizpretopordentro...

—Entãoperdiamagasolina,abenzinaeosoutrosprodutosdetantovalorhoje?—perguntouPedrinho.

— É verdade. Tudo isso era deitado fora. Só aproveitavam oquerosene.Hojeospetroleiroschoramasenormesquantidadesdapreciosagasolinaqueantigamenteera jogada forapornãoteraplicaçãonenhuma.Masomotordeexplosãoveiomudartudo.Agasolinapassouparaafrente,comoomaispreciosoprodutodopetróleo.Secorremnomundomilhõesdeautomóveiseaviõesaelaodevemos.

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—Opetróleobruto—disseoVisconde—sóserveparaqueimar.Masseorefinarmosobteremosumaporçãodeprodutosdemuitovalor.

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—Querdizerqueospetroleirosdehojeseesforçamsobretudoparaobteragasolina...

—Issomesmo.Sepudessem,reduziriamoóleobrutosóagasolina—equaseoconseguem.

—Como?—Pormeiodocracking.Ninguémentendeu.—Cracking—explicouoVisconde—vemdoverbo inglêstocrack,

partir, quebrar. E quando dizemos o cracking significamos um certoprocesso de destilar petróleo, no qual asmoléculas dos hidrocarbonetospesadosquebram-se,dandoorigemahidrocarbonetosleves.

—Expliqueissopormiúdo—pediuPedrinho.— Foi uma das numerosas descobertas devidas ao Acaso. Num dia

frigídissimode1861,estavaumtrabalhadortomandocontadumacaldeiradeóleobrutoao fogo.Adestilação já iabemadiantada,quaseno fim,demodo que só saía um fiozinho de hidrocarboneto domais pesados. Esseoperário,porém,eramalandro.Aover-sealisemfiscal,aproveitouoensejopara uma fugida. Entupiu de combustível a fornalha e raspou-se. Picouhoras na pândega. Quando voltou, abriu a boca. A caldeira quentíssima,estava jorrandoumprodutoclaro, idênticoaodadestilaçãodasmatériasmaisvoláteis.Eragasolinaoutravez...

—Queengraçado!—Osdonosdafábricapuseram-seaestudarofenômeno.Repetindoa

experiência,viramquesobaaçãodumcalormuitoforteasmoléculasdosóleospesadossequebravam,produzindoasessênciasmaisleves.Foiassimquecomeçounomundoesseimportantíssimoprocessodochacking—oudoarrebentamentodasmoléculas.

—Querdizerqueporesseprocessopode-setransformarqueroseneemgasolina?

—Perfeitamente.Aquinosítio,quandomontarmosanossarefinaria,poderemosproduzirmaisoumenosgasolina,conformefordointeressedaCompanhiaDonabentese.

—Pois vamos tratardisso semdemora—berrouEmília.—MisterKalamazoo disse a Quindim que está com todos os estudos e plantas danossarefinariajáprontinhos.Alémdisso...

Nãoconcluiu.Alguémbatianaporta.Narizinhofoiver.—Oh,oCoronelTeodorico!Entre,façaofavor.Vovó?Está,sim.Vou

chamá-la...

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O Coronel Teodorico era um homemmoreno, gordo, duns sessentaanos,comumaverruganonarizefortechumaçodecabelosnosouvidos.

DonaBentaapareceu.—Comoestápassandoacomadre?—disseele,apertando-lheamão.

—Desdequesaiuopetróleo,euaindanãotiveumminutinhoparachegaratécá.Sóagora.

— É verdade então, compadre, que vendeu a sua fazenda por 10milhõesdecruzeiros?

—Opovoexageraseupouquinho,comadre.Vendi,sim,nãopordez,masporummilhãoeduzentosmilcruzeiros.Foinegócio,hein?

—Foienão foi, compadre.A fazenda,antesdesabermosquehaviapetróleoaqui,eraumapropriedadedovalordunssetentacontos,nãoacha?

—Verdade. Foi o preço que sempre pedi por ela— e não achei. Omelhorquemechegaramforamsessentaecinco.Agorameofereceramummilhão de cruzeiros, e como eu fizesse cara muito esquisita (era deespanto),elespensaramqueeuestivesseachandopoucoeforamchegandomais 200 mil. Eu não quis saber de histórias. Me veio uma tontura nacabeça,e foiquasesemeuquererqueminhabocarespondeu:"Fechado!"Nodiaseguinte"vinheram"passaraescrituraebateramemcimadamesaospacotes...

O Coronel estava orgulhosíssimo com a façanha, mas Dona Bentatorceuonariz.

—Pois,meucarocompadre,achoque fezumpéssimonegócio.Suafazendatemamesmaformaçãogeológicadomeusítio,sendomuitíssimoprovável que também nela haja petróleo, emuito. Por que nãomandou,antesdevendê-la,fazerunsestudosgeológicosegeofísicos?

OCoronel cocoua cabeça, comumrisinhodeespertezamatutanoslábios.

— Eu, a ser verdadeiro, comadre, nem entendo, nem acredito emnada dessas histórias. Sou homem da roça, como meu pai e meu avô,criadoresdeporcoseplantadoresdemilho.Deciêncianãopescoumxis—nem acredito. Minha fazenda não valia mais de setenta mil cruzeiros.Pegueiporelaummilhãoeduzentosmil.Quemaispoderiaeuquerer?

—Compadre—disseDonaBenta—oseumalsemprefoiafaltadeestudos.Seostivesse,ousefreqüentasseaquiosnossosserõesparaouviras conversas geológicas do Senhor Visconde, juro que não venderia afazendanempor10milhões.Aquilovaleouro,compadre.Asuainvernadadeengordaestánoeixodonossoanticlinal.

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FalaremanticlinalparaumcoroneldaroçaéomesmoquefalardobinômiodeNewtonparatiaNastácia.DonaBentachamouoVisconde.

— Explique aqui ao compadre o que é um anticlinal petrolífero emostrecomoonossoanticlinalseprolongapelasterrasdele.

OcoitadinhodoViscondetudoexplicoucomamaiorclarezapossível.Masomiolodumcriadordeporcosdesessentaanosestáendurecido.Nãorecebemaisnada.OCoronellimitou-searir-sedosabuguinhocientífico.

—Basta—disseeleporfim.—Estoumuitovelhoparaessascoisasde ciência. Se o "anticriná" daqui entra naminha fazenda, entãomelhorparaquemacomprou.Quesearranjem,quetiremmuitopetróleoefaçambom proveito. Não sou ambicioso. Esta dinheirama está até meatrapalhandoavida.Chovememcimademimtantosnegóciosótimosqueadificuldadeestánaescolha.

— Cuidado com esses negócios ótimos, compadre! Sei dum sujeitoque herdou 500mil cruzeiros e os empregou em cinco negócios ótimos,cadaqualmelhorqueooutro.Ocoitadoficoutãolimpoquehojeézeladordumcemitério.

— Sei disso, comadre. Já vivi bastante. Conheço o mundo. Mas odinheiromeuninguémmetira.

—Equevaifazeragora?—EstoupensandoemmemudarparaoRiodeJaneiro...—Olhovivocomosgrandescentros,compadre!Nós,quepassamosa

maiorpartedanossavidanestesdesertos, ficamosmeiobobos.Qualquerpiratadasavenidasnosembrulha.Háporláunstaispassadoresdoconto-do-vigárioquesãoumaspestes.

OCoronelTeodoricodeuumarisadagostosa.—Comadre,oespertalhãocapazdeembrulharoCoronelTeodorico

FagundesdaCostaPicançoaindanãonasceu,acredite...— Assim seja— disse Dona Benta.— Meus votos são para que o

compadretenhaumrestodevidafelizenuncasearrependadetervendidoassuasterras.

OCoronel conversou ainda sobre várias coisas e depoisde tomarocafezinhodetiaNastáciaedecomermeiapeneiradepipocas,levantou-se.

— Pois então adeus, comadre. Lá do Rio lhe escreverei, mandandomeuendereço.Asenhorasemprefoiamelhordasvizinhas.Nãobrigamosnunca—nemdaquelavezemqueasuavacaMochaentrounaminharoçademilho e fez aquele estrago. Sempre que precisar dalguma coisa lá na"Corte",ésómandarumbilhetinho.

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—Muitoagradecida,compadre.Tambémeuaqui ficoaoseu inteirodispor. Quando cansar-se da civilização e quiser uma temporada dedescanso, escreva-me. Terá sempre um talher na mesa da sua velhacomadre.Eunãosaio.Continuonaroça.

—Roça, comadre?A senhora chama roça a istopor aqui? Foi roça!Hoje está virando cidade com uma fúria louca. A vila está que está queninguémmaisseconhece.OntemrepetitrêsvezesasessãodoCineTucanoAmarelo.Aquiloéqueécinema!

—Eessatransformaçãodavilanãopararámais—disseDonaBenta.—Seidemuitascompanhiasdepetróleoque jáse formaram,edeoutrasqueestãoseformandoparapesquisarpetróleonazona.Logoteremosaquiumacidadeàmodaamericana,movimentadíssima,quemudarátudo—oscostumeseasgentes.

—Asgentesjánãosãoasmesmas,comadre.Quandoatravesseiavilapara chegar até cá, só topei comduas ou três caras das de dantes. Tudomaiséestranja—unslouros,outrosdecabelodefogo.Ealinaperneira,noblusão,nochapéudecortiça,nocachimbo.Oqueeuqueroésumirdaqui.Meutempo,minhagente,minha,vidanoTucanoAmareloacabou.TudoporcausadessepetróleoquealioSenhorPedrinhotirou—concluiuoCoronelsacudindoodedoparaomenino.—Esseseunetovailonge,comadre...

O Coronel despediu-se também dos meninos, montou a cavalo epartiu. Dona Benta ficou de olhos nele até que se sumisse na volta daestrada. Sim, o petróleo começava a mudar tudo, não havia dúvida. Osvelhos conhecimentos,osvelhoshábitos, asvelhas tradições— tudo issotinhadedesaparecerdiantedaamericanizaçãoqueaindústriatraz.EDonaBentasentiuumapontadesaudadedosossegoantigo.

No dia seguinte tiveram a visita do Chico Pirambóia, que tambémvenderaosítioesepreparavapara"afundarnomundo."Eraumcaboclãodoslegítimos,xucroatémaisnãopoder.

— Dona Benta— disse ele — vou-me embora com os pacotes nobolso.Estagenteenlouqueceu.Nãoentendomaisnadadenada.Poisentãonãoéloucuramedarem230milcruzeirosporaquelapinóiadomeusítio—dezalqueiresdesapezalquenuncavaleunemmilcruzeiros.

—Nãoéloucuranão,Chico.E'apenasopetróleo.Quemdeu230milcruzeiros pelo seu sítio vai tirar dele alguns milhões. Você não pensounisso.

—Asenhoraestásereferindoaotal"criosene"?Ah,entãoasenhora,que é uma velha de juízo, também "aquerdita" nisso? "Criosene" nada. O

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quedeunessa gente foi loucura, issoninguémme tirada cabeça. Eu voufugindodaquicomoscobresantesqueelessearrependamemeassaltemacasaprapegaroutravezospacotes.

— Então guarda consigo o dinheiro, Chico? Não sabe que éperigosíssimo?

—Ondeeu"haverá"deguardarentão?—Nobanco,homemdeDeus!Paraissoéquehábancos.Chico Pirambóia deu uma grande risada, muito parecia com a do

CoronelTeodorico.— Banco! Banco! ... Tinha graça eu guardar 230 mil cruzeiros,

dinheirinhonovo,numbanco—prósoutrostomarcontadele.Ah,ah,ah!...Ummêsmais tardeDonaBenta tevenotíciadosdoismatutos—do

compadreTeodoricoedoChicoPirambóia.Esteforavítimadumassaltoàmãoarmadaemplenodia,ecomolevassetodooseudinheironumlençovermelho,ficousemodinheiroesemolenço.Moeram-noapancadas.Nãofosseasuanaturezaextraordinariamenterijadecaboclocriadonamisériadosapezeiroejáestarianooutromundo.

Com o Coronel Teodorico, então, aconteceu uma que até parecepilhéria.ElenuncahaviaidoaoRiodeJaneiro,demodoqueadmiroutudo,principalmenteosbondeselétricos.Etantoadmirouosbondeselétricosefaloudaquilo,queafinalo"donodosbondes"apareceu, fezcamaradagemcom ele e acabou levando-o a um bar. Lá fez vir cerveja e contou oexcelentenegócioqueeraterbondesquecobram20,30e40centavosdecadapessoaqueentrenelesparairdaquiatéali.

—Lá isso é—disse o Coronel.—Tenhome regalado de andar debonde,eparamedistrairvoucontandoaspessoasqueentramefazendoacontadosníqueisquepingam.Queénegócio,istoé.Quantoachaquerendeumbondepordia?

O dono dos bondes provou que cada carro dava uma renda de dezcontosdiários—dezcontoslíquidos,foratodasasdespesas.Mastambémdisse que como fosse donode "bondesdemais"- (mil e tantos), não faziaquestão de vender dois ou três aos amigos— a cinqüentamil cruzeiroscadaum.Melhornegócioeraimpossível.Seelevendiaalgunsbondes,erasóparaserviraosamigos,e tambémporqueandavaatéenjoadodetantobonde e tantodinheiro.Alémdisso, simpatizara-semuito comoCoronel,emquemviaumhomeminteligente,esperto,deótimocoraçãoe,portanto,merecedordeentrarnoRiodeJaneirocomopédireito.

OCoronelTeodoricoFagundesdaCostaPicanço comoveu-se como

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elogio e fechounegóciodequatrobondes a50mil cruzeiros cadaum—total:200milcruzeiros...

—Pobredomeucompadre!—suspirouDonaBentaquandosoubedahistória.—Suasortefoitercompradoapenasquatro.Seadquirissevinteequatrobondes,estariaaestashorastãolimpocomooChicoPirambóia...

Evoltando-separaPedrinho:— Aproveite a lição, meu filho. Quando propuserem a você um

negócio"bomdemais", fiquedeorelhaempé,perguntandolápordentro:"Ondeestáogato"?HásempreumgatoescondidoemtodososnegóciosdaChina,queospirataspropõemàscriaturasdeboa-fé...

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XIV

Piratasdopetróleo

O poço Caraminguá n.° 1 determinou uma mudança completa nazona. Todas as terras mudaram de dono; e no caso de um ou outroproprietário mais cabeçudo, que teimava em não vender, a questão seresolvia por meio dum contrato para a exploração do subsolo. Ospetroleirosqueremoqueestálánofundo,nãooqueexistenasuperfície.

Formadasascompanhiaseadquiridasasterras,começaramemtodasasdireçõesosestudosgeológicosegeofísicos.Osboisdospastos, afeitosaos vaqueiros, de pé no chão e chapéu de palha na cabeça, estranhavamaquela gente esquisita, de cachimbo na boca, perneiras e capacete deexplorador africano. E ainda mais o que eles faziam. Andavam com unsaparelhos que boi não sabe o que é, medindo o chão, espiando por unscanudos e dando tiros. Não tiros de espingardas, mas uns tiros surdos,esquisitíssimosequenãomatavamnada.

Eram as explosões subterrâneas do processo sísmico, um dosprocessos geofísicos empregados. Eles explodem uma dinamite numburaco,eemváriospontos,longedali,recolhem,pormeiodeinstrumentosespeciais, as ondas vibratórias causadas pela explosão. E conforme essasondassemodificampelocaminho,elesficamsabendodeváriascoisaslánofundodaterra.

E ao mesmo tempo que faziam esses estudos, iam depositandoenormes quantidades de materiais de perfuração em vários terrenosadquiridos. Eram torres e mais torres, caldeiras, montes de tubos derevestimento,hastesemaishastes,enormescarretéisdecabosdeaço,etc.MasasatividadesdasnovascompanhiasseacentuavamsobretudorenteàsdivisasdosítiodeDonaBenta.

MisterKalamazooficoudeorelhasempé.Andouacavaloespiandoasdivisas, em companhia de Mr. Champignon, e depois de cuidadosaobservação foi conversar com Dona Benta, que era a diretora daCompanhia Donabentense de Petróleo. Mister Kalamazoo já falavaregularmenteoportuguês.

— Minha senhora — disse ele — temos de tomar providências

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imediatascontraobanditismopetrolífero.Nomeupasseiodehoje,viqueos piratas se preparam para roubar uma boa parte do petróleo aqui dosítio.Temosqueorganizaradefesa.

DonaBentanãocompreendeu.ApesardediretoradaDonabentense,amaiorcompanhiadepetróleodoBrasil, elanãoentendiagrandecoisadoassunto. Felizmente o Consultor Técnico da companhia, o Visconde deSabugosa,eraumaverdadeirasumidade.MasDonaBentanãoqueriaqueMister Kalamazoo desconfiasse da sua ignorância, e por isso respondeucomgrandesuperioridade:

— Perfeitamente, Mister Kalamazoo. Já pensei nisso e estou aorganizaronossoplanodedefesa.Hojemesmotereioprazerdesubmetê-loàsuaapreciaçãoeàdeMr.Champignon.

O americano retirou-se, admirado da proficiência técnica da boasenhora—eDonaBentachamouoVisconde.

Veioosabuguinhocientífico,maisaEmília.—SenhorVisconde—disseavelha—MisterKalamazooacabarde

sair daqui. Contou umas histórias de que não pesquei nada. Acha quedevemosorganizar a defesadonosso campopetrolífero, ameaçadopelospiratasdopetróleo.Quequerdizerisso,Visconde?

Osabuguinhoriu-se.—Ah,sei.Piratadopetróleosãoosqueabrempoçosnasdivisasdum

campopetrolíferopararoubarpartedasexistênciasdessecampo.Umpoçode petróleo drena, ou puxa o petróleo num raio de muitas dezenas demetros,demodoquecadapoçoqueabremnasdivisasdosítiopuxaráumaboapartedopetróleodaquidosítio.

—Hum!—estoupercebendoamarosca—murmurouDonaBenta—emandouqueEmíliachamassePedrinho.

—Meu filho— disse ela logo que omenino apareceu— traga-meaquiaplantadosítio.

Pedrinhotrouxeumrolodepapeldedesenho,queabriudiantedela,nochão.Osítiotinhadivisasmuitoregulares,formandoumparalelogramo.Depoisdeexaminaraplantaporalgumtempo,oViscondetomouapalavra.

—Apresunção—disseele—édequetemospetróleoemtodosostrintaalqueirescádosítio.Logo,seospiratasabriremquatropoços,pertode cada canto das divisas, acabam roubando pelo menos um quarto dopetróleodosítio.

—Ecomoevitarisso?—perguntouDonaBenta.—Dummodomuito simples— respondeu o Visconde.—Abrindo

nestesquatrocantosquatropoçosdoladodecá,nasnossasterras,assim

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—edesenhoucomoera.— Desse modo a senhora contrapirateia, e o petróleo que eles

roubaremficarácompensadopeloqueasenhoraroubadeles—esenhoraainda sai ganhando, porque tira deles mais do que eles podem tirar dasenhora,comoseverificadomeudesenho.

—Mas senas terrasdelesnãohouverpetróleo,nemnos cantosdomeusítio?

—Nesse caso a senhora perde o latim e eles também.Mas a únicaformadedefesaéessa.

DonaBentaficouameditarunsinstantes;depoischamouPedrinho.— Dê ordem a Mister Kalamazoo, Pedrinho, para perfurar quatro

poçosdedefesa,umemcadacantodosítio.Já...Ao receber a ordem, Mister Kalamazoo muito se admirou da

sabedoriadeDonaBenta,umavelhaque

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OViscondedesenhaoplanodedefesa.

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jamaissaíradaroça,enoentantoentendiaatéda técnicadapiratariadopetróleo.Emontandoacavalofoiaumdoscantosnortedosítioestudaroterreno.

Logoquechegouàdivisadeucomumaturmadeoperáriosparaládacerca, ocupados no descarregamento de caminhões com material desondagem.Dirigia-osumengenheirocordefiambre,decachimbonaboca.OamericanodeDonaBentapulouacercaefoitercomele.

— Hello, John Casper!... How do you do? — exclamou MisterKalamazoo,comcaraalegre.

O outro também o reconheceu imediatamente. Haviam trabalhadojuntosnumcampodepetróleodoOklahoma.Houveapertosdemãoetrocadeamabilidades.Depoisentraramnoassunto.

—Vaiperfuraraqui?—perguntouKalamazoo.—Sim,paraaCompanhiaAtaripdePetróleo,donadestesterrenos.O americano de Dona Benta arreganhou os dentes num sorriso de

quemsabeasignificaçãodapalavraAtarip({†})—erespondeu:— Mas o golpe falhará, John, porque acabo de receber ordem da

CompanhiaDonabentenseparaabrir,ali juntoàcerca,umaperfuraçãodedefesa.

O engenheiro John Casper empalideceu. Aquela notícia vinhaestragar-lhetodososplanos.Mascomonessaslutasdopetróleoéprecisomostrarmuita indiferença, apenas rosnouum frioGoahead! como quemdiz:Poisabra.

Mister Kalamazoo pulou de novo o aramado e marcou o local daperfuraçãodedefesa,queseriaoCaraminguán.°2.

Emseguidamontouetocouparaooutrocantonorte.Encontrouláamesmacoisa.Numerososoperáriosdescarregavammateriaisdesondagemalémdacerca.

—Aquempertenceisto?—indagouMisterKalamazoodohomemdeperneiraquedirijaostrabalhos.

—Mindyourbusines—foia insolenterespostado"perneira",comoquemdiz:Cuidedasuavidaenãosemeta.

— "Bom—pensou consigoMisterKalamazoo— já temospor cá alutapelopetróleo,comtodososseusmistériosedesaforos."—Correuosolhos pelo material. Era da mesma fábrica do de John Casper — sinalevidentedequepertenciamàmesmaempresa.

—Allright!—exclamouentãoMisterKalamazoo.AAtaripestásemsorte,porqueaDonabentensevailocalizaraquioCaraminguán.°3...

O "perneira" voltou o rosto bruscamente, tirando dos lábios o

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cachimbo.—Número3,hein?Háentãoumn.°2?—Nãoháainda,masvaihaver,meucaroamigo.OCaraminguán.°2

será aberto no canto norte, bemdefronte doAtarip n.° 1, a cargo deMr.JohnCasper...

O "perneira" desapontou duma vez e, furioso da vida, deu umtremendopontapénumapobretouceiradebarba-de-bodequeviunasuafrente.

—So long!—murmurouMisterKalamazoo, retirando-se e tocandoparaasdivisasdosul.AochegaraoprimeirocantodadivisasulviuqueaAtarip tambémestava lá, emplenaatividade.Dirigiu-seaooutrocanto:amesmacoisa—aAtaripláestavadesembarcandomateriais.

—Nãoháremédio—disseeleaMr.Champignonlogoquevoltouaoacampamento.—Amedida tomadapelaDiretoradaDonabentenseédasmaisoportunas.AAtaripjádeucomeçoaostrabalhosdequatropoçosnasdivisas do nosso campo — nos cantos. Temos de agir sem demora nadefesa.

AaberturadosnovosCaraminguáscorreumuitomais fácilqueadoprimeiro. A constituição dos terrenos estava já conhecida de modo queMisterKalamazoopôdenãosóescolherasondamaisadequadacomoaindapreverasentubaçõesderevestimentoquetinhadeexecutar.

Noprimeiro poço ele fizera três entubações para o fechamento dastrês águas encontradas; nos novos poços, porém, só entubaria quandochegasse à última água, fechando assim, duma vez, os três horizontesaqüíferos.Dessemodoeconomizavam--seduasentubaçõeseduascolunasde tubos, além de ser possível alcançar o horizonte petrolífero com umdiâmetromaior—22centímetrosemvezde18.

Otipodesondaescolhidofoio"Rotary",nãomaisotipomistousadonoCaraminguán.°1.Aexperiênciadestepoçoindicouquepodiamperfurarrotativamentedocomeçoaofim,semnecessidadedetrépanos.

Encomendadasasquatrosondasnovas,tudochegoucomaprestezadocostume,porqueosaviõescomerciaisdaEmíliaestavamcadavezmaisaperfeiçoados.FoicomverdadeiroassombroqueosengenheirosdaAtaripviram tais aviões pousarem e descarregarem todas as peças, inclusive ascaldeiraspesadonas.Eraummilagrequeelesnãopodiamcompreender.

Ocálculodessesengenheiros,quandosouberamqueaDonabentenseia contrapiratear, fora que antes dum ano esta empresa não abriria osquatropoços.Ora,ficandoelesassimcomumanodeavanço,poderiam,napiorhipótese,roubarumanodepetróleodosítio.EsecadapoçodaAtarip

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desseomesmoqueoCaraminguán.°1,istoé,500barrispordia,osquatropoços dariam, nesse ano de avanço, 720.000 barris, dos quais a quartaparte saída dos terrenos de Dona Benta. A quarta parte de 720.000 são180.000. A 30 cruzeiros, cinco milhões e quatrocentos mil cruzeiros! AAtarip, portanto, roubaria de Dona Benta, num ano, a gorda quantia decincomilhõesequatrocentosmilcruzeiros.

Mas a chegada dos aviões emilianos com o novo material desondagem da Donabentense veio estragar completamente os planos dacompanhiapirata.

OutradesvantagemdaAtariperanãoconheceroterrenoaperfurar.Bem que eles tentaram obter informes técnicos da perfuração doCaraminguán.°1.Nadaconseguiram.OsdoisamericanoseosoperáriosdaDonabentensesouberamguardaromaisrigorososegredo—eosmeninostambém.

CertodiaumagentesecretodaAtarip,queandavarondandoacasadeDonaBenta,pilhouEmíliadejeito,sozinhanaporteiradaestrada,eveiocomunsoferecimentosdedoces(queEmíliarecusou)eumasperguntinhasingenuamentemanhosasdessasdeplantarverdeparacolhermaduro.MasEmília,quetinhafarodecãoperdigueiro,percebeulogoqueestavadiantedo inimigo.E tapeouoperguntantecomrespostasmuitodireitinhas,maserradas. O agente saiu dali contentíssimo com as preciosas informaçõescolhidas — informações, entretanto, que só serviram para causardistúrbioseatrasosnasperfuraçõesdaAtarip.E tal foiodesastre,queochefedessacompanhiaacaboubotandooagentenoolhodarua, comumvalentepontapénofimdaespinha.

—"Seucachorro!Vádarinformaçõesfalsasnacasadodiabo!"Enquanto do lado da Atarip tudo eram desastres e mais desastres,

atrasosemaisatrasos,osnovospoçosdaDonabentensecorriamagalope.OCaraminguán.°1levaraoitomesesparaseraberto.JáoCaraminguán.°2chegouaos800metrosnummêsOcaraminguán.°3emmenos:27dias.OCaraminguá n.° 4, ainda em menos: em 24 dias. E o Caraminguá n.° 5realizouomilagredeperfurar-seem12diasapenas.

EstamaravilhosafaçanhaescangalhoucomosprojetosmaliciososdaAtarip,demodoqueoladrãosaiulogrado.EmvezdeospiratasroubaremopetróleodeDonaBenta, foiDonaBentaquemroubouopetróleodeles.Resultado:aAtaripabriufalência.

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Emíliatapeouoperguntantecomrespostasmuitodireitinhas,maserradas.

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ComosquatrosCaraminguásnovosaproduçãodosítioficouelevadaa2.500barrispordia—umcolosso.

—Eagora"?Quevamosfazerdetantopetróleo?OVisconde respondeuaessaperguntaapresentandoumprojetode

refinariaasermontada,nãoali,masjuntoaumexcelenteportodemar.—As refinarias— explicou ele— devem sermontadas em pontos

comercialmente estratégicos, de modo a facilitar a distribuição dosprodutos. Montaremos a nossa refinaria nesse porto, levando para lá opetróleobruto.

—Como?—perguntouDonaBenta.—Pormeiodumoleoduto—canalizaçãooupipe-line,comodizemos

americanos. O melhor meio de conduzir o petróleo é esse — o mesmousadoparaconduziráguaparaasgrandescidades.

Masumserviçodeoleodutoécomplicado.Temosdemontargrandesreservatóriosnoponto final, epelo caminhoestaçõesdebombeamentoeaquecimento.

—Paraquê?—perguntouPedrinho.—Porqueacanalizaçãoseguesubindoedescendomorros,demodo

quededistânciaemdistânciasetornamnecessáriasbombasquepuxemopetróleo.

—Eoaquecimento?— No tempo frio o petróleo fica tão viscoso que não corre com

facilidade dentro dos canos. Torna-se preciso aquecê-lo de espaço emespaço.

—Oh,masumacoisaassimdeveficarnumdinheirão..—Issofica.NaAméricaocustodumamilhadeoleodutoandaaíentre

18a20.000dólares.Dáparacadametroumcustode11a12dólares.— Duzentos e tantos cruzeiros na nossa moeda! — calculou

Narizinho.—Écarete...—Masnofimsaimaisbaratoquetudo—explicouoVisconde.—Na

Américaotransportedepetróleopelosoleodutosficanametadedopreçocobradopelasestradasdeferro.

—Edequegrossurasãooscanos?— Varia. Há oleodutos de todos os diâmetros, desde 5 até 30

centímetros.—Eondehámaisoleodutosnomundo?—perguntouamenina.—VaiseraquinoBrasil,mas,porenquantoénosEstadosUnidos—

opaís"mais"emtudo.Em1928elestinham160.000quilômetrosdepipe-lines com capacidade para o transporte de 150milhões de toneladas de

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óleoporano.Haviamcustado,sabemquanto?Aninhariade950milhõesdedólares...

—Upa!Maisde15bilhõesdecruzeirosnanossamoeda,odólara16cruzeiros—calculoudecabeçaNarizinho.—Édinheiro...

Pedrinhoassustou-secomaquelesalgarismos.—Maçada!Ondehavemosdeobterdinheiroparaumacoisaquesai

tãocara?—Onde?Homessa!Nofundodospoços—respondeuoVisconde.—

Opetróleoéouro-líquido,nãosabe?Comos2.500barrisdiáriosqueDonaBenta possui aqui, podemos perfeitamente construir o oleoduto que euestudei. Não tem mais de 300 quilômetros e portanto custará... quanto,Narizinho?

Ameninacalculouinstantaneamente:—A200cruzeirosometro,seriam60milhõesdecruzeiros.— Pois é isso — disse o Visconde. — Com a renda dos cinco

CaraminguásDonaBentapagaesseoleodutoemdoisanosepico.—Eodinheiroparaamontagemdarefinarialánoporto?— Aparece — respondeu o Visconde. — Basta que Dona Benta

anuncie ao mundo que quer construir uma refinaria e dispõe de 2.500barris de petróleo diários, para que chovam em cima dela propostas deempréstimosajurosbaratíssimos.Alémdisso,nósnãovamosficarsócomoscincoCaraminguás.Podemosabrirmaiscinco,maisdez,maisvinte—ededentrodaterrasairátodoodinheiroprecisoparaessasgrandesobras.Ooleodutoearefinariaqueprojeteinãoficarãoemmaisde150milhõesdecruzeiros.

OViscondedeSabugosanuncateveumvintémfurado,masparafalaremmilhões não havia outro. Jogava em cima damesa da discussão 150milhõesde cruzeiros, comomesmo cinismo comque tiaNastácia jogavacincodentesdealhodentrodumapanela...

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XV

Adinheirama

Enquantonão se construíama refinaria e a canalização, eraprecisofazer qualquer coisa do petróleo— e o remédio foi vendê-lo em estadobruto às pequenas refinarias já existentes no País. Eram refinariasmontadas para extrair gasolina e querosene do óleo bruto importado doestrangeiro.AssimqueelassouberamquehaviapetróleonosítiodeDonaBenta,mandaramparaláseusrepresentantesfazerpropostas.

Quem discutiu com eles foi Narizinho, recentemente nomeadaDiretora Comercial da Companhia. Dona Benta era a Diretora Geral. OVisconde, o Consultor Técnico. Emília, a Diretora dos Transportes eQuindim,oEncarregadoGeraldaDefesa.

Narizinho recebeu os homens e discutiu muito bem a questão dopreço,nãopedindonemdemaisnemdemenos.

—Vou fazerumprecinhode amigo—disse ela.—Dez centavosolitro.Serve?

Os homens acharam baratíssimo, porque andavam comprando óleoimportado por preço três vezes maior. Mas, ciganos como são todos oscomerciantes,torceramonariz,dizendoqueerapreçomuitoalto.Ocálculodeles fora que como Dona Benta não tinha meios de se aproveitar dopetróleo,vendê-lo-iaporqualquerpreçoeofereceram5centavos.

Narizinhodanou,edepoisdeconsultarDonaBenta, respondeu-lhesdaseguintemaneira:

— O preço que dei foi muito bem estudado por vovó, que não énenhumacigana,mastambémnãoéboba.Ossenhores,entretanto,alémdebobos são uns ciganos, e para castigo das duas coisas eu só dou agora opetróleoa12centavoso litro.Dezcentavoséonossopreçoe2centavosficasendoataxadocastigo.

Oshomensriram-se.Nesse caso, não fazemos negócio e quero ver o que sua avó faz do

petróleo.Narizinhorespondeu:—Vovótemsessentaecincoanosenuncaprecisoudopetróleopara

viver. Nem nunca aturou ninguém. É independentíssima. Se não achar

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quemlhepagueopetróleopelopreçoquepede,pensamqueelaseamola?Ah,ah,ah!Fechaospoçosparasóabri-losquandoestivercomooleodutoearefinariamontados—eossenhoresficambigodeados.Nãotemospressanenhumaemvenderonossopetróleo.Passemmuitobem.

Vendo aquela firmeza da Diretora Comercial, os ciganos cocaram acabeça.

— Pois bem — disseram eles. — Aceitamos o seu preço de dezcentavos.

—Meupreçoé12, jádisse.Eamanhãserá13.Nósaquinãosomosbrincadeiradeninguém.

OsciganospararamcomaciganagemefecharamacompradetodoopetróleoproduzidopeloscincoCaraminguásàrazãode12centavosolitro.

—Mashádeserentreguenanossaporta—disserameles,querendonovamentetapearamenina.

—Estãomuitoenganados—respondeuela.—Essepreçoéaquinabocadospoços.Otransportecorreporcontadoscompradores.

A segurança com que ela falou meteu medo aos ciganos, os quaisassinaramoscontratossemmaisumpio.

O problema do transporte é sempre um tanto sério. Não havendooleodutoqueleveopetróleoaoscentrosdeconsumo,oremédioérecorreracarros-tanque,ouanavios-tanquesseaviagemtemqueserpormar.

Os compradores tiveram de arranjar caminhões-tanques quelevassem o petróleo dali até à primeira estação de estrada de ferro, etiveramaindadeforneceràestradadeferrovagões-tanquesquelevassemopetróleoatéàscidadesondetinhamasrefinarias.

O Visconde falou dos caminhões e carros-tanques. O caminhão-tanquenãopassadumreservatóriode ferrosobrerodas,comcapacidadeparauma,duasoutrêstoneladasdepetróleo;eocarro-tanqueéumvagãocomumdeestradade ferro,compostoderodaseumgrandereservatório"hermeticamente fechável" em cima, com capacidade para 20 ou 30toneladas.

—Eonavio-tanque?—Eumenormereservatóriode ferro, "hermeticamente fechável"e

queocupaumnaviode capacidademuitogrande.Hánavios-tanquesquecarregam 500 toneladas de petróleo e outros que carregam 5.000. OsEstados Unidos tinham, em 1927, 412 navios-tanques, com a tonelagemtotalde2.372.000toneladas.

—Quehorror!EaInglaterra,quetemfamadetermaisnaviosqueosoutrospaíses1?

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—AInglaterra,nesseano,tinhamaisnavios-tanquesqueosEstadosUnidos, mas com menor capacidade. Tinha uma frota de 479 navios-tanques,comcapacidadepara2.248.000toneladas—124.000menosqueatonelagemamericana.

—Eosoutrospaíses?— Os outros possuem frotas muito menores. A Noruega dispunha,

naquele, tempode65navios-tanques.A Itáliade48.AHolanda,de64.AFrança,de40.AArgentina,de15.Masnestesúltimosanosessasfrotastêmaumentado.AArgentina,porexemplo,estáhojecom54navios--tanques.

—E para guardar o petróleo—as tulhas do petróleo— como sãoelas?—quissaberNarizinho.

—Omais usado são uns enormes reservatórios cilíndricos, de aço,como uma caixa redonda de pó de arroz com a tampa em forma cônica.Tambémseusamreservatóriosdecimentoarmadoemvezdeaço,ouentãoreservatóriossubterrâneos,ouenterradosnochão.

—Eotamanho?—Variamuito.Hádesdeosde13metrosdediâmetroatéosde50

metros de diâmetro, com altura de 4 a 10 metros. A capacidade dessesreservatórios varia conforme o tamanho, podendo ir acima de 15.000toneladas.Anossaproduçãoaqui, sendode2.500barrispordia,oumaisoumenos400toneladas,dáparaencherumdessesreservatóriosgrandesempoucomaisdeummês.

—Equantoscarros,oucaminhões-tanques,vãosernecessáriosparaotransportedonossopetróleo?

— Trabalhando com caminhões-tanques de 2 toneladas, serãoprecisos200.Mascomoessescaminhõespodemfazercincoviagenspordiaaté à estação da estrada de ferro, bastam uns 40. E na estrada de ferrobastaquecorram20vagões-tanquespordia,casopossamvoltarvaziosnomesmodia.

—Issonãopode,garanto!—dissePedrinho.— Nesse caso, com 40 vagões-tanques os ciganos se arrumam,

contantoquenãoparem—queestejamindoevoltandoconstantemente.OutropontoemqueNarizinhonãotransigiufoiquantoaopagamento

dopetróleo.Osciganosvieramcomhistóriasdeemitirduplicatasa90dias,etc.,masameninarecusou.

—Nadadisso.Sóvendemosonossopetróleoalinabatata,comodizaEmília.Comoos,ovosdosítiodeNháVeva.Quemquerumadúziadeovos,vailá,pede-os,recebe-osepaga-osnaficha.Issosimplificaimensamenteonegócio.

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—Mas é praxe comercial este pagamento a prazo — disseram oshomens.

—Praxe—respondeuNarizinho—éumcostume,nadamais;eachoquenestecasoseráummaucostume.Nãoqueroquenonegócionovodopetróleo o País fique mal acostumado. Adoto, portanto, a praxe de NháVeva,comosovos.Quemquiserquepagueàvista.Quemnãoquiser,ounãopuder,quesefomente.

Comessesistemadopão-pão,queijo-queijo,arendadosítiodeDonaBenta ficou uma coisa colossal: 48 mil cruzeiros diários. No começo oViscondefizeraocálculodopetróleoa30cruzeirosobarril.MasNarizinhoentendeude ajudaroPaís e reduziuopreço a12 centavoso litro, o quedavadezenovecruzeirosevintecentavosporbarrilde160litros.

—Petróleo quantomais baratomais ajuda a Pátria—dizia ela.—Paravovó48milcruzeirospordiajásãodinheiramatamanhaqueelanemsabe o que fazer dela. Podia vender pelo dobro — mas para quê?Ciganagemécoisaquenãoentraemnossosítio.

ComopassardosmesesodinheirofoisejuntandodetalmaneiraqueDonaBentachegoua ficarapreensiva.ApesardoconselhodadoaoChicoPirambóia,dedepositarodinheironobanco,DonaBentaguardavaoseuemcasa.

— Como é isso vovó? — observou Pedrinho. — Para o Chico asenhoradisseumacoisaeagorafazoutra?Pareceahistóriadofrade:"Façaoqueeumandoenãofaçaoqueeufaço..."

— Explica-se, meu filho— respondeu Dona Benta. — O hábito deguardardinheiroembancotemsuarazãodesercomogarantiadodinheirocontraosassaltoseparafacilidadesdepagamentocomcheques,etc.Masaquiemnossosítiotudoédiferente,comovocênãoignora.Medodeassaltonãotemos,porqueacasaestásempreguardadapelonossotanquedecarne...

—OQuindim...— Issomesmo. E necessidade de pagamentos com cheques, emais

coisas do comércio, nós não temos, porque não saímos daqui, nãonegociamos,nãovivemosavidaquevivemtodososcomerciantes.Poressemotivoguardoodinheironaarca.

E assim ficou. No fim do ano Narizinho resolveu dar um balanço.Esparramouodinheiropelochãoecontou.Tinhamganhoumpoucomaisde 17 milhões de cruzeiros. Esse pouco mais saiu para pagamento dossalários dos americanos, dos operários e das despesas da casa, demodoquenasarcashavia17milhõesdecruzeiroscertinhos.

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— E agora? — murmurou Dona Benta. — Que fazer destadinheirama?

— Construir um palácio — propôs Narizinho— cheio de quadrospreciososeestátuas,eumjardimdeinverno,eestufasparafloresraras—etantacoisa,vovó...

—Minha filha—disseDonaBenta—nossavidaaqui temsido tãofeliz quemeumedo é que esta riqueza nos traga desgraça. Um palácio1?Masjulgavocêquenumpaláciopossamosvivermaisfelizesdoquenestacasinhagostosa?Ah,vocêsnãocalculamcomoosmilionárioseosreisseaborrecem em seus palácios de ouro, no meio da criadagem solene,perfiladacomosoldadosdecasaca...VejaesseEduardoVIIIdaInglaterra,omais poderoso rei do mundo, que se enjoou de palácios e criados eetiquetas a ponto de mandar tudo às favas, para ir viver com suamulherzinha a vida livre dos homens comuns. Não. O acertado é nãomudarmosonossoviver.Sesomosfelizes,quemaisqueremos?

— Mas se não gastarmos o dinheiro, ele entupirá todas as suascanastraseacabarásemvalor—ficandodinheirorecolhido.

—Sim,issoseonãogastarmos.Temosdegastá-lo,nãohádúvida.Odinheirofoifeitoparacircular,nãoparaapodrecernasarcas;masemvezdegastá-loegoisticamentesóconosco,comofazemosmausricos,podemosgastá-los de modo a beneficiar os milhares de pobrezinhos que nuncatirarampetróleo.

—Estáaíuma idéia!—exclamouPedrinho.—Eagentediverte-semuitomaisgastandoodinheiroassimdoquesócomagente.

—Isso,meu filho.Vocêestácerto.Omaiorprazerdavidaé fazerobem.Eusemprequisbeneficiarestenossopovodaroça,tãomiserável,semcultura nenhuma, sem assistência, largado em pleno abandono no mato,corroídodedoençastãofeiasedolorosas.Seempregarmosnossodinheiroemmelhorar-lhe a sorte, não só nos divertiremos, como você diz, comoficaremoscomaconsciênciatranqüila.Meuprogramaéesse.

Bravos, vovó!— exclamouPedrinho.—E ainda podemos fazermilcoisas: estradas de verdade, por exemplo. Isso que no Brasil chamamestradasderodagem

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NofimdoanoNarizinhoresolveudarumbalanço.Esparramouodinheiropelochãoecontou.

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éumamentira.Estradasdeatolagem, sim.Duranteosmesesde chuva, oBrasil inteirosófazumacoisa:atola-senasestradas,nãoroda.Nadarodanelas.Oscarrosdeboisatolamatéoseixos.Osautomóveisatolamapontodeprecisaremdeboisparaarrancá-los.Osburrosde tropaatolam.Tudoatolanasnossasestradasdeatolagem.Podemoscomeçaraquipelonossomunicípioedepois iremosnosalastrandopeloPaís inteiro. Istoé, iremosconstruindoestradasderodagemdeverdade—pavimentadasdeconcreto,com um lado para ir e outro para vir— e uma faixa de grama nomeio,comoasdaAlemanha.

—Perfeitamente.Aprovooprograma—disseDonaBenta.—E tambémpoderemoscriarumasboasescolasprofissionaispara

estacabocladabronca—propôsNarizinho.—Elessãoaproveitáveis,mastêmqueserajudados.Porsinadafazemporquenadapodemfazer.

— E também organizaremos umas casas-de-saúde bem modernas,com os melhores médicos e todas as comodidades, como os hospitaisamericanosqueasenhoracontououtrodia.

—Aprovado!—disseDonaBenta.— E construiremos para eles casas decentes, com higiene e coisas

modernas, que lhes sejam vendidas a prestações bem baixinhas. É umavergonhaparanossaterracomomoramasgentesdaroça—emcasebresdesapéebarro,imundíssimos,semmobília,semnadaládentro.Qualquertocadebichodomato,qualquerninhodejoão-de-barro,valemaisqueumcasebredecaboclo.

—Aprovado!—disseDonaBenta.OViscondetomouapalavra.— E eu acho que devemos criar casas de ciências para o

aproveitamento dos meninos que mostrarem vocação para os altosestudos. E mais tarde poderemos criar uma universidade como a deHarvard.

—Aprovado!—SenhorVisconde.Picadesdejánosnossosplanosacriação da Universidade Sabugosa, da qual o nosso viscondinho será oprimeiroreitoreoprofessordegeologia—disseDonaBenta.

FaltavaEmília.—Eeuacho—disseela—quepoderemosatacarumproblemaem

queninguémaindapensou:adomesticaçãodasformigas...Todosolharamparaaboneca,muitoespantados.—Sim,ohomemdomesticouváriosanimais,comooboi,ocavalo,o

cachorro.Porquenãohádedomesticarmaisum—aformiga?Dizemqueoestragoqueessebichinhofaznaagriculturaéimenso,eatéaquiohomem,

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nasuabrutalidade,sópensounumacoisa:mataraformiga.Maspormaisque as mate elas aí estão cada vez mais numerosas. Minha idéia éabandonaressaguerrainútilefazerumtratadodepazentreohomemeaformiga—domesticando-a,comojásefezcomocavalo,oboieocão.

—Como?—Ensinando-asasócomeremaservasdaninhasqueosfazendeiros

arrancamcomasenxadasdostrabalhadores.Dessemodoelasresolveriamo problema da limpa das roças. Teriam licença de comer só as plantasdaninhas,respeitandoasúteis—comoaslaranjeiras,etc.

Todosriram-sedaidéiaemiliana.—Dequeseriem?—exclamouEmília.—Tudoépossívelnomundo,

sobretudo tratando-se de formigas, uns bichinhos verdadeiramenteinteligentes. Se um sábio cuidasse disso e conseguisse educar uma certaquantidadedeformigas,elasiriamserasprofessorasdasoutrase...

— Pedrinho— disse Dona Benta— peça a Mister Kalamazoo quemandevirdaAméricaumblowout-preventerzinhoquesirvanaEmília.Umblowoutquefecheestenossocaraminguazinhodeasneiras.

Emíliafezbico.—Asneira!Asneira!Achamasneira tudoquantoeu falo—masnos

momentosdeapertoquemsalvaasituaçãoésempreaasneirenta.Sóumacoisaeudigo:seeufosserefazeromundo,eleficavamuitomaisdireitoeinteressante do que é. Os homens são todos uns sábios da Grécia,mas omundoandacadavezmaistorto.Juroquecomissoquechamamasneiraeutransformavaaterranumparaíso...

DonaBentaficoupensativa.QuemsabeseEmílianãotinharazão.

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XVI

OBrasiltempetróleo!AdescobertadopetróleonosítiodeDonaBentaabalouoPaísinteiro.

Até ali ninguém cuidara de petróleo porque ninguém acreditava naexistência do petróleo nesta enorme área de oito e meio milhões dequilômetros quadrados, toda ela circundada pelos poços de petróleo dasrepúblicas vizinhas. Mas assim que irrompeu o Caraminguá n.° 1 osnegadoresficaramcomcaradeasno,amurmurarunsparaosoutros:"Oraveja!Enãoéquetínhamospetróleomesmo?"

Eafebrecomeçou.EmtodososEstadosformaram-seempresasparapesquisarpetróleo.EmAlagoasabriu-seoprimeiropoçonoRiachoDoce,com600barrispordia—easeguirtoda,aquelaregiãoseencheudepoços.Vendoaquilo,osEstadosvizinhosatiraram-se.Sergipefurouváriospoçoseporfimtambémacertounopetróleo.Pernambuco,idem;emmenosdeumanoestavacomdezpoçosemváriospontos;oprimeiroabertopertinhodeOlinda.ABahiaperfurouna zonadosCamamuse encheu-sedepetróleo;até na zona do Lobato, nos subúrbios da capital, abriram-se poços deexcelentepetróleo({‡}).OAmazonaseoParánão ficaramatrás.Emváriaspontos surgiramexcelentespoçosdepetróleo.NoMaranhãooMunicípiodeCodótornou-seumcentropetroleirodemuitaimportância.

Amesmacoisanosulenocentro.NosEstadosdoEspíritoSantoedoRiodeJaneiro,pertodeCampos,abriram-seváriospoçosdepetróleo.EmSãoPaulo, idem, lá pelos ladosdePiraju e S. Pedro.OParaná entrou emcena com grande fúria, abrindo poços ótimos em várias zonas. SantaCatarina também. No Rio Grande perfuraram em Pelotas e na beira daLagoadosPatos,eoRioGrandetambémficoualagadodepetróleo.

Nos Estados centrais, a mesma coisa. O petróleo do Rio Verde, emGoiás, foiumacoisalouca.Poçospotentíssimos.EemMatoGrosso,então,nemébomfalar.SurgiramnesseEstadoosmaiorespoçosdaAméricadoSul,tãoespetacularescomoosdoMéxico.OPoçoXaraésn.°2,rompeucomtanta violênciaque arrebentou a torre, arremessando a ferralhada a cem

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metrosdedistância.Picouajorrarsemcontrole,numacolunade80metrosdealtura,duranteummês.Porfimfoidominado.OPoçoRondonn.°1,noRio Negro, também deu trabalho. A sua produção inicial foi de 10.000barrispor24horas!AtéoEstadodeMinasserevelouricoempetróleo.

E aconteceu então um fato espantoso. O Brasil, que não tinhapetróleo,queestavaoficialmenteproibidode terpetróleo,passouaseromaior produtor de petróleo do mundo. Houve logo superprodução.Felizmenteopetróleonãoé comoo café,que temque ser colhido,dêounãodêpreçoremunerador.Nopetróleo,quandoháproduçãoemexcesso,ascompanhiasentramemacordoerateiam—cadaumaficaautorizadaasó produzir um tanto. Coisa facílima, aliás, pois basta que se dê umavoltinhanatorneiradospoçosparaimediatamenteaproduçãocair.

O mercado interno, que até então se abastecia com petróleocomprado no estrangeiro, passou a ser fornecido inteiramente com opetróleo nacional. A gasolina caiu de preço. Era em todas as bombasvendida a 20 centavos o litro; e o óleo combustível, a 10 centavos. Osagentessecretosdos trustes,queandavamaespalharpor todapartequequandooBrasil tirassepetróleoagasolinaseriavendidamaiscaraqueaágua de Caxambu, ficaram desapontadíssimos. Toda gente percebeu queeles não passavam de espiões dos trustes, encarregados de espalhar adescrençanopovoparaqueninguémselembrassedepesquisarpetróleoeoBrasilficasseeternamenteacomprarpetróleofora.

Emcertascidades,comoMaceió,porexemplo,opovo,entusiasmadocoma torrentedepetróleoquebrotavadoRiachoDoceecomagasolinavendidanasbombasa20centavos,agarrouos"caxambueiros"(comoeramconhecidos esses marotos) e os fez passear pela cidade com caraças deburronacabeça—enofimdapasseataosjogounalamadosmanguesparaseremcomidospelossururus.

O País entrou a prosperar dum modo maravilhoso. Todo mundocompreendeu que o nosso emperramento antigo provinha da falta decirculação. Nada circulava no Brasil, porque não havia transporte e otransporteétudoparaumpaísdegrandeterritório.Parahavertransporteénecessárioquehaja combustível abundanteebaratoora, comopoderiatercombustívelabundanteebaratoumpaísqueocompravaforaapesodeouro?

Onúmerodeautomóveiscresceuvertiginosamente.Odecaminhõesdecarga,aindamais.Asfazendasadotaramostratoresdepuxarosaradoseaposentaramosboiseasmulas.Asestradasdeferropassaramaqueimaróleo combustível emvezde lenha e carvão.Os navios que aindausavam

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carvãoreformaramasmáquinasparasóconsumiremóleocombustível.O supergás, ou gás líquido, acondicionado em cilindros de ferro,

invadiuatéascasasdaroça.Ninguémmaiscozinhoucomlenha:sóagás,comonascidadesgrandes.

O petróleo produzido no Brasil, porém, não ficou pormuito tempolimitado ao consumo interno. A primeira partida negociada foi de 4.000toneladasdo"Donabentensecru",eapartirdessediaaexportaçãonuncamaisparoudecrescer.Bastadizerquenoanode

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Opovoagarrouos"caxambueiros"eosfezpassearpelacidadecomcaraçasdeburronacabeça.

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1955oBrasil já estava exportando1milhão e 200mil toneladas. E paracada 100mil toneladas vendidas fora ia de lambuja, amarrado de pés emãos,umdosantigos"caxambueiros."

AtransformaçãooperadanoTucanoAmarelofoimaravilhosa.Aquelavilinhade200anosdeidadeequejamaispassarademilhabitantes,cadaqualmais feio, pobre e bronco, virou uma esplêndida cidade de 100milhabitantes,comruaspavimentadascomoasfaltoproduzidoalimesmo,dezcinemas, cincohotéisde luxo,escolasmagníficaseaCasadeSaúdeDonaBenta, que apesar de ser absolutamente gratuita punha num chinelo ascasas de saúde das capitais, que cobram 50 cruzeiros por dia, fora osextraordinários. Os doentes saíam invariavelmente curados e gordos. AEscolaTécnicaNarizinhotornou-seumpadrãocopiadopeloPaísinteiro.Osrapazes e as raparigas que lá se diplomavam em inúmeros ofícios, eramdisputadosapesodeouro."Aquiseaprendedeverdade"eraoletreiroquehavianafachadadoestabelecimento—eaprendia-semesmo.

Asestradasdomunicípio, feitasporDonaBenta,atraíamturistasdelonge.Duasfaixasdeconcreto,umaparaireoutraparavir,separadasporumacintasemfimdegramatosadinha;dedistânciaemdistânciaagramaerasubstituídaporumcanteirodefloresdecincometrosdecomprimento.Estrada iluminada à noite e combombas de gasolinaDonabentense de 3em 3 quilômetros; e estações de consertos de carros, e pequenosrestaurantes muito pitorescos, e "Casas de Abrigo" — uma idéia deNarizinho.Nessascasasdeabrigoosviajantesseacomodavamàvontadeecomoqueriam,semnadapagar.

— Isto é a evolução dos antigos ranchos de tropeiros — dizia amenina.

Eera.DonaBentaeosmeninoscostumavamsairemlongasexcursõesnum

excelenteautomóvelquerebocavaumtrailerconstruídosobmedida.Quetrailer gostoso! Uma verdadeira casinha ambulante, com tudo que énecessárioàvida.Pedrinhoguiavaoautomóvel, comEmíliaeoViscondesempreaolado.NotraileriaDonaBenta,NarizinhoetiaNastácia,todasnafrescata,etãoacômodocomoseestivessemnacasinhadosítio.

A negra no começo arrenegou de tantas novidades; por fim acabougostando.

—Agentenãotemremédiosenãoirnaonda—diziaela—Enofimgosta,porqueébommesmo.QuandoSeuPedrinhoveiocomahistóriadotalsupergáslánacozinha,eudanei,pensandoqueerapeta.Masdeucerto.Acabouaquelaendrôminadeacenderfogode lenha,eassoprar,assoprar,

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com os olhos ardendo. Agora basta torcer uma torneirinha e sai umventinhoquepegaum fogoazul—equente comoodiabo!Que limpeza!Uma criatura até fica vadia com tantas facilidades de hoje. E a geladeira,então?E'sóbotarascoisasalidentro,puxarumferrinhoefecharaporta.GeraumfrioládentroqueatépareceotalpóloqueSeuPedrinhoconta.Aágua vira vidro, de tão dura. Diz que é gelo. E a carne e o peixe não seestragamali—podemficarumtempão.Eestacasinhaemcimaderodasqueandaportodaparte?Coisaboa,sim.Diverteagente.Agentevaria,vêcarasecoisasnovas.Estougostando,estougostando,sim...

Saíamapasseio,àsvezesdesemana,sempressadechegar,porqueafestanãoerachegar—erairandandoeparandoaquieali,oraparapegaruma borboleta para a coleção da Emília, ora para Pedrinho tirar uminstantâneo,oraparaNarizinho(queaprenderaadesenhar)fazerumlindocroquisemseuálbum.Quandopassavamporalgumriooulagoa,erafatalumaparadaparaoViscondefazersuafezinhaàbeirad'águacomoanzol.Pescadorcomoelenãohaviaoutro.EleetiaNastácia.Apretasentava-seaoladodoViscondeparairbotandominhocanoanzol.

NumdessespasseiosencontraramoCoronelTeodorico.—Viva,compadre!—exclamouDonaBenta.—Quenovidadeasua

presençaporestasbandas?O Coronel estava avelhentado, cheio de rugas na testa, com ar de

quemtinhasofridomuito.—Poisé,comadre.Quemévivosempreaparece.Ouvitantahistória

distoporaqui,quecrieicoragemevimver.Masantesnãoviesse...—Porquê?—Porquetudomeconfirmaassuaspalavrasdaqueledia,lembra-se?

Eu fui um bobo, confesso. Vendi minha fazenda, pensando fazer umnegocião,masoquefizfoinegóciodesandeu.

—Eubemdisse...—Disse,simcomadre,eseeupusessetentonassuaspalavras,tudo

teriacorridomuitobem.Maseuerapresunçoso,tinhaconfiançademaisemmime...

—Equeaconteceu?—Acabeilimpo,comadre.OspiratasládoRiodeJaneirocaíramem

cima de mim como piranhas que atacam boi n'água. Primeiro foi umacompradebondesqueatétenhovergonhadecontar...

— Eu sei da história— disse Dona Benta. O Coronel arregalou osolhos.

—Sabe?Quemlhecontou?

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—Linosjornais.OsjornaisdoRioinsistirammuitonessecaso.OCoronelcocouacabeça.— Pois então, ainda pior. Como não leio jornal, fiquei sem saber

disso... Pois é, comadre, comprei aqueles quatro bondes por 200 milcruzeiros — e levei na cabeça, porque era conto-do-vigário. Depois meaprecateimais.Nãoadiantou.Ospiratassabemlidarcomosbobosdaroça.Houveumquemevendeupor300mil cruzeirosumamáquinaqueeraamaiormaravilhadestemundo.Agentebotavapapelembrancodumlado,edespejavaumasdrogasnunscanudoseviravaumamanivela—esaíacadanotade200cruzeirosqueeraumabeleza.Masverdadeiras,simsenhora!Tão verdadeiras que eu andei com duas delas de banco em bancoindagando se eram falsas ou verdadeiras e todos me confirmaram: "Sãoverdadeiras".E foientãoqueeucompreiamáquinamaravilhosade fazerdinheiro verdadeiro — porque o crime é fazer dinheiro falso. Fazerdinheiro verdadeiro não é crime porque o dinheiro é verdadeiro, não éassim?

—Equandorecebeuamáquinaefoifazerdinheiroverdadeiro,errounamisturadasdrogaseamáquinaexplodiu,nãofoiisso?

OCoronelarregalouosolhos.— Homem, comadre, a senhora até parece que tem parte com o

demo: adivinha as coisas!... Como sabe duma "conseqüência" que eu sóconteipraminhavelha?

— Sei porque adivinho, está claro... — respondeu Dona Bentasorrindo.

— Pois adivinhou certo — continuou o Coronel. — A máquinaexplodiu,pluf!eláseforamosmeus300milcruzeiros.BatioRiodeJaneirointeirinhoatrásdohomemquemevendeuaquiloenada.Nemsombra.

— Bem— disse Dona Benta. — Temos já aqui 500 mil cruzeiroslambidospelospiratas.Eoresto?

—Orestofoicomidopeloleãoeporumafrancesa—aquelapeste!—Quêhistóriaéessa?— Sim, andei seguindo o leão no jogo do bicho, a milhares de

cruzeirospordia,durantequasedoismeses.Poishádecrer,comadre,queassimquepareidejogarodesgraçadodeucom64?Eoqueescapoudoleãocaiu no bucho da francesa, uma tal Odete, que depois descobri que nemfrancesa,nemOdeteera.Medeixou limpo.Entãovendiminhacasaevimveristoporaqui...

—Eacomadre?—Morreu, coitada. Morreu de desgosto, depois que a máquina de

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fazerdinheiroarrebentou...OCoronelpassouamangadopaletónosolhos.—Equepretendefazeragora?—perguntouDonaBenta.— Homem, não sei. Estou assuntando. Para que presta um velho

loucoebobocomoeu?—Prestaparamuitacoisa—disseDonaBenta.—Apareçalánosítio

asemanaquevemquelhearranjoumbomempreguinho.—Acomadreaindamoralámesmo?—Sim,namesmacasinhadesempre.— Namesma casinha? Então, sendo tão rica, não teve coragem de

fazerumpalácio?DonaBentariu-se.—Minhacasinha,compadre,éopaláciodafelicidade.Nãotroconem

peloBuckinghamPalacedoReiJorgeVI...OCoronelTeodoricoficouaolhá-lacomespanto.Depoisdisse:—Ah,comadre,setodosfossemcomoasenhora,setodostivessema

sabedoria da senhora... Como me arrependo de não ter ouvido os seusconselhos!

—Poisapareçaeouça-os,queaindaétempo.Despediram-se.Pedrinhopôsocarroemmovimento—e láse foio

trailer com a boa senhora na janela, a dizer adeus demão para o pobrecompadre.

Logoadianteencontraramoutrovelho,estedebonénacabeça.—PareceoChicoPirambóia,vovó—disseamenina.—Éelemesmo!—gritoutiaNastácia.—Mascomoestáimportante!

Deboné...PedrinhoparouocarroeDonaBentachamouoPirambóia.—Então,queéisso,meuvelho?—Pois istoéavida,DonaBenta—respondeuocaboclo.—Depois

daqueledesastrequemesucedeu,estivemaisdeanonohospital,eporfimfui soltona rua.Mas estavaquenemaquele JódaBíblia—semnadadenada,semnenhumtostãonobolso.Osmalvadosmeroubaramos230milcruzeirosepassaramrecibocomperobanomeu lombo.Ospestes!...MasDeuségrande,DonaBenta.Fuiandandoebatilánomeuantigosítio.Quasenemreconheci.Tudomudado,tudobonito,tudoimportante.Elesestavamdesmanchando uma torre de ferro, como essas que a gente vê agora portodaparte.Euprocureiochefedostrabalhosepediserviço.Eleolhoubempara mim (era um engenheiro de perneira) e perguntou para que euprestava.Eeuentãofuierespondi:

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—"Sempreheideprestarparaalgumacoisa,capinarchão,tratardeburro de carroça, carregar coisas na cacunda — mas já prestei paranegóciosmuitoimportantes."

O"perneira"estranhouminhaconversaedeucorda.—"Sim—disseeu— jámepresteiparaosentendidos fazeremno

meu lombo grandes negócios, como o deste sítio que vendi por 230milcruzeirosnocontado."

Oengenheiroarregalouosolhos.—"Seráverdade?Entãofoiosenhoroantigodonodestasterras?"—"Eumesmo—ChicoPirambóia,podeperguntarparaqualquer."Ohomemriu-sedummodoesquisito.Depoisdisse:—"Poisfiquesabendoquenospassouaperna.Compramosestesdez

alqueires por 230mil cruzeiros na certeza de encontrar petróleo— e jáabrimosdoispoçossemresultadonenhum.Estamosagoradesmontandoasonda para armá-la numas terras que compramos adiante. Lá, sim, opetróleo é certo. Isto aqui não vale nada. Você nos passou a perna, seubarba-raladumafiga.Eagoravemrir-sedenósnasnossasventas,nãoé?"

Contei para ele então o que me tinha sucedido — o assalto dosladrões, o ano emeio que passei no hospital, a minha vidamiserável. EDona Benta há de crer que o "perneira" teve dó de mim? Até parecementira,masteve.Olhoubempraminhacaraedisse:

—"Bem,seéassim,entãoocasomuda—epossoajudarvocê.NossacompanhiaestáconstruindomuitasobraslánaantigafazendadoCoronelTeodorico,ondeprecisamosdumaboa turmadeguarda-poços.Vá lácomestecartãoeprocureochefedoserviço.Paraguardaropoçodenoitevocêserve.Nãohánadaquefazer—ésónãoferrarnosono.Dormirédedia."

—Eufuiemederamserviçonaturmadeguarda—edetantoficaracordadode noite e dormir de dia, quase virei coruja. Por fimme enjoeidaquiloepedioutroserviço.Elesentãomepuseramguarda-diurno,queécomoládizem.

—Poisvocênãopodequeixar-se,Pirambóia—disseDonaBenta.—Estánoseuempreguinhograçasaopetróleo.Quantoganhapormês?

—Trezentoscruzeiros.—Equantotiravapormêsquandoerasitiante?ChicoPirambóiadeuumarisada.—Mecêestábrincandocomigo,DonaBenta!Naquele tempoeunão

tiravanada.OquefaziaerameendividarnavendadoEliasTurco.— Issomesmo. E agora está com 300 pormês, graças ao petróleo.

Poislambaasunhas.Apesardenãohaverpetróleonoseusítio,vocêpode

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dizerquefoiumdosquetirarampetróleo.Éounãoé?—Láissoé—concordouoguarda-diurno.—Equeestáescritonoseuboné?Antesqueeledissesse,Narizinhorespondeu:— C. G. P. — Companhia Guaxanduba de Petróleo, a tal que está

furandonafazendadoCoronel.—Issomesmo—confirmouocaboclo.—Aquilo láatépareceuma

cidade. Já abrirammaisde cempoços—masnenhumchegaaospésdosseus, Dona Benta. É poço de 30, 40, 50 barris por dia. O petróleo estámesmonoseusítio,segundotodosdizem.Eles,lánoCoronel,têmqueabrirumbandãodepoçosparadaroquedáumCaraminguásozinho.Masondeparece que vai rebentar poço dosmacanudos é lá na vertente doNheco.Estácorrendoporaíqueontemacabaramdeabrirumquedeu1.500barrisnoprimeiroarranco.

—Ficomuitosatisfeitadesaberdisso,porquequantomaispetróleotivermos por aqui, tanto melhor para todos — disse Dona Benta. —Francamente,euandavaaborrecidadosmeuspoçosseremosmaioresdazona, demaneira que o que vocême contamuitome alegra. Eu tambémtenhoumasterrinhasporlá...

—Eu sei.O antigo sítiodo JoãoMaleiteiro, quea senhora comproupor50milcruzeirose todomundodeurisada.Asenhoraéamulherqueenxergamais longequeeuconheço. Indaé capazde tirardessesítioquecustou50milcruzeirosumpoderdepetróleodeassustaromundo...

—Eavila,Chico?—Vila?Cidade,issosim!Aquilovirouumaprepotênciadecidadeque

atédámedo.Etudoláépetróleo.AantigavendadoCanhamboravirouumarmazémde seisportas, comum letreiro assim:AOTRÉPANODEOURO.AquelebotequimdoChicoPileque,quesótinhapingaefumodecorda,estáagoraumhoteldeseisandares—HOTELROTARYMODELO.MasomaisbonitodetudoéaESCOLANARIZINHO,ondeacriançadaentrabobaesaimaissabidaqueodefuntovigárioPadrePedrosa,queDeushaja.

—Poisé—disseDonaBenta.—Masquandoabrimos lánosítiooCaraminguán.°1evocêfoidespedir-sedemim,lembra-sedoquemedissedo"criosene?"

ChicoPirambóiaergueuobonéecomamesmamãococouacabeça.—Lembro,sim,DonaBenta.Euduvidei,nãonego.Fuiumbobo,como

todosporaqui,menosasenhora.MashojeminhaBíbliaéo"criosene."Juroemcimadele,seforpreciso...

—Eaindadiz"criosene",emvezdepetróleo?

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—Digosóporfiguração,paramatarsaudadesdotempoantigo.Masnessepontojánãoestoubobo.Seioqueépetróleo,seioquesefazdele,seitantojá,queaindaacabofazendoumasociedadeparaabrirumpoçonumlugarzinhoqueeuconheço...

EcomoDonaBentafizessecaradecuriosidade:—Paraasenhoraeuconto—praninguémmais:nositinhodeNhá

Veva,aqueladosovos.Outrodiaestive láe tireiuma linhacomosolhos,porcimadaquelemorrinhoselado;esabeondebateualinha*?Noeixodo"anticriná"ládoseusítio!Pramim—ninguémmetiradacabeça:osítiodeNháVevaéumrabode"anticriná..."

DonaBentadespediu-sedeChicoPirambóiaeficouarir-se.—Veja,minha filha—disseela aNarizinho.— Istoémaisumdos

milagresdopetróleo.EssepobreChico,queeraocaboclomaisxucroaquinazona,játiralinhacomoolhoedescobre"rabosdeanticlinais..."

—Outromilagredopetróleo—disse amenina—é amudançadegênio de tia Nastácia. Olhe o jeitinho dela com o Visconde. Assim que otrailer parou para a senhora falar com o Pirambóia, correu para aquelecórregocomoVisconde—forampescar.Evejacomoestáalegre,contenteda vida e remoçada. Até parece uma negra americana do cinema, dassabidas...

Logo depois tia Nastácia voltou com uma traíra pescada peloVisconde.Vinhaarreganhandodegosto,comopeixenoar.

—Vejaquelinda,Sinhá!Istorecheadinhodáumsuco...DonaBentaolhou-abemeperguntou:—Nastácia,éverdadequevocêsesentefeliz?—Quepergunta,Sinhá—respondeuanegra—evirouacarapara

quenãolhevissemosolhosmolhados...

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XVII

Agrandefesta

Mesesdepois,nacidadedoTucanoAmarelo,sósefalavadumacoisa:oPoçoQuindimn.°1queaCompanhiaDonabentenseacabavadeabrirnovelhosítiodeNháVeva,vendidoaDonaBentapor50mil cruzeiros.Quepoço magnífico! Aos 800 metros os perfuradores atingiram o horizontepetrolífero comum a toda a zona;mas, por sugestão do Visconde,MisterKalamazoonãofezcasoetocouparadiante.

—"Estoudesconfiadoqueabaixodessehorizonteexisteoutromuitomaisimportante,disseraele—eDonaBentadeuordemaoamericanoparaseguiraidéiadosabuguinho.Eofatofoiquea1.200metrosaperfuraçãodeunumacúmulodepetróleomuitíssimomaispotente.Opoçojorroucom10milbarris e foiminguandoaté estabilizar-senumaproduçãode7milbarrispordia.

Era acontecimento sensacional, porque até ali os poços de maiorprodução tinham sido os cinco Caraminguás abertos no começo. Dosinúmeros poços das outras companhias só um, na fazenda do CoronelTeodorico, dera tanto como um Caraminguá— o Guaxanduba n.° 7. Emhomenagemaovelhorinoceronte,opoçode7milbarris teveonomedeQuindimn.°1.

GraçasaeleaCompanhiaDonabentense firmou-secomoaprimeiraentre todas, comgrande gosto da população doTucanoAmarelo, porqueDona Benta e os netos só queriam petróleo para uma coisa: fazer obraspúblicasdebenefíciosparatodagente.Nasoutrasempresasosistemaerao antigo: encherem-se de dinheiro egoísta, razão pela qual o povo seantipatizavacomelas.

Paracomemoraragrandevitória,DonaBentadeuumafestaqueficoucélebre.Umbanquete ao ar livre, nopasto da vacaMocha, comdanças efogosdeartifícionofim.

Todos os seus amigos e conhecidos foram convidados— e o povotambém.Quemquisessecomeratéarrebentar,dançaraténãopodermaiseassombrar-se com as maravilhas pirotécnicas do famoso fogueteiro JucádasRodinhas,erasóirchegando.

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Essa festa lembrou um milagre das Mil-e-Umas-Noites. Além dacomedoriaimensa,dasmontanhasdefrutasedoces,daspipasemaispipasdevinho,dostonéisdegarapaazedaecajuada,dosblocosdemarmeladaegoiabadaedumqueijoem formadepirâmidemaisaltoquedoishomensum em pé nos ombros do outro, cada comensal recebia um presente devalor:relógio,caneta-tinteiro,papagaio,grafonolaseatéautomóveis.ChicoPirambóia calculou que aquela festa devia ter custado nomínimo10milbarrisdepetróleo.Masqueé10milbarrisdepetróleoparaquemestavatirandodosseispoços9.500pordia?Eraumdiaepicodeprodução,nadamais.

Namesaprincipal sentaram-seosmembrosda família e as pessoasmais íntimas. A cabeceira foi ocupada por Dona Benta, com Pedrinho àdireitaeNarizinhoàesquerda.AoladodePedrinhosentou-seoVisconde,de cartolinha nova, e ao lado de Narizinho sentou-se Emília, nos trajeshabituaisqueelaadotaradesdequecomeçouaexploraçãodopetróleonosítio: culote amarelo, perneirinhas, blusa cheia de bolsos e capacete decortiça.DepoisvinhamMisterKalamazooeMr.Champignon;efinalmente,naoutracabeceira,tiaNastáciaeQuindim.

Quemiafazerodiscursodesaudaçãoeraesteúltimo.Quandochegaramàsobremesa,orinocerontelevantou-seedisse:— Minha senhora e meus senhores! Embora eu não seja o mais

qualificadopara falar nesta festa, estou cumprindoordensdaEmília. Eramemandou que falasse, dizendo andar enjoada de discursos de bípedes.Não fosse isso e eu ficaria lá nomeu canto, ouvindo—pois gostomuitomaisdeouvirdoquedefalar.

— Por isso é que você não diz asneiras, Quindim ! — aparteouPedrinho.

— Será— continuouQuindim—mas nem sempre o calor é sábio.Seria,porventura,sábioqueDonaBentasecalasse"?Prestomuitaatençãoquandoela falaenuncapercebiemsuaspalavrasdemonstraçãodeoutracoisaquenãofosseamaisaltasabedoria.

EmíliasussurrouparaNarizinho:"EleestáadulandoDonaBentaparaversepegaumlugarnaDiretoria..."

— Sabedoria sim, meus amigos — continuou Quindim — porqueDona Benta é uma verdadeira filósofa, não digo como Sócrates, que sóconheçoporouvirfalar,mascomoosaudosoKalavaka,orinocerontemaissábiodaminhatribolánoUganda.Eutenhoummeiopráticodeconheceraverdadeira sabedoria: é medir os resultados que ela dá. A sabedoria dedona Benta deu como resultado final a felicidade completa que todos

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gozamosaqui,vocêshomensenósanimais—eu,aMocha,oBurroFalante,os passarinhos aí do mato nunca perseguidos por ninguém. Eu, porexemplo,sóvimencontraraverdadeirafelicidadeaqui.

MinhavidanoUgandaeraumperpétuodesassossego.Alémdaslutasentrenósmesmos,dentrodobando,haviaopavordoshomensdecapacetede cortiça que nos furavam o couro com balas dundum. Depois fuiescravizadoeandeiacorrermundonumcirco,exibindomeucorpanzilaosbasbaquesdentrodumajauladeferro.Senti-megrandementedesgraçadonesseperíododeminhavida.A liberdadeéomaiordosbens.Afinal fugi,corripelasmatasàstontasatédarcomoscostadosnosítiodeDonaBenta.

Emíliame descobriu e tomou conta demim. Fez-seminha aliada eminhaamiga.TiaNastácia tevemuitomedodomeuchifre,mashojeestáuma grande camarada. Todos se tornarammeus amigos—eminha vidasossegou.Vivonumaperfeitabeatitude.Semeperguntaremondeéocéu,responderei:aqui!

E por que é assim? Por causa da sabedoria deDonaBenta, que é aauramisteriosaquetudodirigenesteabençoadopedacinhodemundo.Nãotenhomãoscomoosdemaispresentes,eporissonãopossoerguerataçade cajuada que Emília botou diante de mim para eu bebê-la à saúde deDonaBentaedosseusqueridosnetos—edaEmília,edoVisconde,edetiaNastácia,eaquidestesamigosdaAmérica.MastrocareiessasaudaçãopelaqueusamoslánoUganda,entreosdaminharaça;umurro—Muuuuuu...

Ourro deQuindim foi tão formidoloso que o pânico se estabeleceunasoutrasmesas.Quecorreria!Queatropelo!Pedrinhotevedetreparemcimadumtoneleberrarcomumalto-falantenaboca:

—Calma,pessoal!Nãofoinada!ApenasasaudaçãoàvovófeitaporQuindim,àmodadoUganda.Calma!Calma!Todosaosseuslugares!...

Osconvivasforamvoltandoparasuasmesas,muitoressabiados.Urrocomoaquelejamaistinhamouvidoporaquelasparagens.

O discurso de Quindim recebeu palmas de todos. Para umrinoceronte,estavadeprimeiraordem.

—Eagora,quemfala?—gritouPedrinho.—Eu!—berrouEmília,levantando-sedeco-pinhoempunho.Masameninaprotestou:— Não, senhora! Primeiro os mais velhos. Tem a palavra Mister

Kalamazoo.Oamericanolevantou-semuitovermelhoelouro.

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Quandochegaramàsobremesa,orinocerontelevantou-separafalar.

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— Só sei furar poços— disse ele.— Para discursos não presto. Eainda que prestasse, que poderia eu dizer, mais do que disse esseprodigiosorinocerontequeacabadefalar?Sim,donaBentaéumpoçodesabedoria.Otrépanodoestudoedameditaçãodesceuatéàscamadasmaisprofundas onde se acumula a ciência da vida. Vou confessar uma coisa:quando cheguei até cá, vim pago para sabotar todos os poços que DonaBenta quisesse abrir. Mas não tive coragem. Tudo me seduziu tanto,encontrei caracteres tão nobres, que até me envergonhei da minhaprimitiva intenção.E transformei-me.Passeia trabalharcomoomais lealdoshomens,comooresultadodosmeusserviçosodemonstra.VivaDonaBenta!Vivamosseusnetos!...

Palmasebravoscobriramasúltimaspalavrasdosabotadorquenãoteveânimodesabotar.

—FaleagoraMr.Champignon!—gritouNarizinho.Mr.Champignonlevantou-se,todorisonho.—Meus amigos— disse ele— eu igualmente fui contratado para

sabotar de parceria cá com o amigo Kalamazoo. Mas também não tivecoragem.Quempoderátercoragemdeprejudicarumasenhoradetãoaltosespíritos, comoDonaBenta; ou ummenino tão empreendedor e sincero,como Pedrinho; ou um encanto de menina, como Narizinho; ou esseprodígiodaNatureza,queéaEmília;ouoSenhorViscondedeSabugosa,omaisprofundogeólogoqueaindatopeinavida;ouessatiaNastácia,queéuma quituteira do céu; ou ali o amigo Quindim, o mais nobre dosrinocerontes? Quem? Até o pérfido lago, se por cá aparecesse, não teriacoragemdepermanecermau.Abondadehumanatemissoconsigo:seduz,arrasta, converte, catequiza. Eu fui um homem como os outros, com asqualidadesedefeitosdocomum.Masmudei—osítiodeDonaBentamemudou.Meucoraçãoestálimpodemaldade.Oambientesãoaquidosítiodecantouminhaalma...

(O Visconde explicou a Pedrinho que decantar era uma expressãousadapelosquímicosparasignificardestilar.)

—E,portanto,nadamaistenhoa fazersenãocomungarcomMisterQuindim e Mister Kalamazoo no hino de louvor que ergueram a DonaBenta,aboafadaquepresideosdestinosdetodosnós!...

—Bravos!VivaMr.Champignon!—gritaramosmeninos.DonaBentaagradeceucomumsorrisoluminosodebondade.—AgoratiaNastácia!—gritouNarizinho.A negra, de vestido novo, engomado, levantou-se com o maior

desembaraçoedisse:

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—Falarbonitocomoosoutroseunãosei.Sóseicozinhar...— E botar minhoca no anzol do Visconde também! — aparteou

Emília.— Isso também faz parte do cozinhar — respondeu a preta —

primeiroagentepegaopeixe,depoiséqueescamaefrita.Seitudoqueédecozinha,emeugostoéquandofaçoumpratoevejoacriançadalamberosbeiçosdegosto.

—Beiçoédeboi—aparteouEmília.—Gentetemlábios...— Essa pestinha quer me atrapalhar, mas não me atrapalha, não.

Quemfezelafuieu.Depano—masdepoisopanogeroucarneehojeestáumagentepura—sóquemaisatropeladeiraqueosoutros.

—Issonãoédiscurso,Nastácia—disseNarizinho.—Deiapalavraavocêparafazerumdiscursocomoodosoutros.

— Discurso não sei fazer, porque não tenho estudos. Dizer coisasbonitas sobreDonaBenta tambémnão sei. Só sei beijar amãodela—ecorreu,comosolhosrasosdelágrimas,abeijaramãodeDonaBenta.

Todossecomoveram,inclusiveQuindim,quepingouumalágrimadotamanhodumajabuticabanabaciacomcapimpicadoqueEmíliapuseranasuafrente.

DonaBentaabraçouapreta,dizendo:— Sim,minha negra. Você, além de ser aminha grande amiga, é a

outraavódosmeusnetos...—AgorafalePedrinho!—gritouamenina.Pedrinholevantou-secomogarbodumPeterPan.—Vovó,àsuasaúde!—disseeleerguendoocopo.—Meudesejoé

queasenhorapareondeestá—enãomorranunca.Asenhoraéamaiordas avós domundo inteiro— e agora com o petróleo, é a mais rica. Asenhoranostemensinadotudo.Asenhoraétudoparanós.AsenhoraéaAvóNúmero1!Vivavovó!

—Viva!Viva!...—Umdia—continuouPedrinho—euheiderealizarumaidéiaque

tenho na cabeça: erguer um monumento a vovó. Narizinho, que édesenhista,estáfazendooesboço.E'assim:Bemnoalto,aestátuadevovó,deóculos,sentadanacadeirinhadepernascurtas,comumlivronocolo,eudumlado,Narizinhodeoutro,EmíliaeoViscondeaospés.Àdireita,comacabeça na altura do ombro de vovó, tia Nastácia fritando um peixe: àesquerda,comochifrenaalturadosjoelhosdevovó,Quindimdeitado,coma cabeçona entre as patas. Essas figuras ficarão dispostas em grupo emcimadumgrandecubodemármorecomaltosrelevosdetrêsladoseesta

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inscriçãonumaplacadebronze:

"ADONABENTAE.DEOLIVEIRA,DESCOBRIDORADOPETRÓLEONOBRASIL,

EAVÓDEPEDRINHOENARIZINHO,

OFERECEAPÁTRIAAGRADECIDA"

—Porqueesse"E."abreviadononomedeDonaBenta?—perguntouEmília.

— Porque fica feio gravar no bronze o sobrenome por extenso.Encerrabodeséumaidioticedesobrenomequefaztodagentedarrisada.Poremos E. só — e quem ler fica pensando que é Eduarda, Edviges,Emerência,EuláliaouqualquercoisamaisdecentequeoEncerrabodes...

—Enosoutrosladosdocubodemármore?— Nos outros três lados do cubo de mármore vão altos relevos

representandocenasaquidosítio.NumaparecemostodosnósfugindodachuvadepetróleodoCaraminguán.°1.Noutro,acenadoQuindimsentadoemcimadocanoparaescoraropetróleoquequeriasair.Enoterceiro...

— No terceiro, eu comandando os meus aviões "Faz-de-Conta!"—berrouEmília.

—Não, senhora!—protestouPedrinho.—A senhora já está lá emcima,aospésdevovó.Osaltos-relevossãodecenaspassadasaqui.Poderáser, por exemplo, o banho de petróleo do tal jornalista. Esse pontoresolveremosdepois.

—Sóisso?—Não.Aindahámais.Essegrandecubodemármoreassenta-seem

cimadamultidãodos"caxambueiros"emaisnegadoresesabotadoresdopetróleo do Brasil. O escultor poderá representá-los sob forma dumconglomeradodecretinosesafados,unsporcimadosoutros,delínguadeforaeolhospulandodasórbitas,porqueestarãoesmagadospelopesodoblocodemármore.Quetalmeumonumento?

Todosacharam-noótimo.—Poiséisso!—concluiuPedrinho.—Ergueremosessemonumento

no pasto da Mocha, isto é, aqui onde estamos, para "edificação dospósteros",comodizoVisconde.Tenhodito.

Esentou-se.

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Narizinho,queédesenhista,fezomonumentoaDonaBenta.

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PalmasegritariaacolheramamaravilhosaidéiadePedrinho.—Estáumsuco!—disseEmília.— Silêncio! — gritou Narizinho. — Agora quem vai falar é Sua

ExcelênciaoSenhorViscondedeSabugosadoPoçoFundo.TemapalavraoSenhorVisconde...

OVisconde levantou-se,mascomoeramuitopequenino tevedeserplantadoemcimadamesa.

— Enfie o cóccix dele na garrafa barriguda! — gritou Emília — ePedrinho assim o fez: fincou o Visconde na boca duma garrafa de cristalbojuda.

Apesardoincômododaposição,queodeixaradepéssoltosnoar,oViscondefezoseudiscursinho.

—Meus senhores eminhas senhoras!—disse ele.Euquisera ter aeloqüência de Cícero para colocar-me na altura dos oradores que meprecederam; mas não foi a Musa da Eloqüência quem presidiu ao meunascimento.

—FoitiaNastácia!—gritouEmília.— Sim, foi ela, a boa preta que mantém a paz dos estômagos dos

moradoresdestesítio.SoufilhodetiaNastácia,confesso...—Credo!—Murmurouanegra,benzendo-se.—E, no entanto, por umdessesmisteriosos caprichos da natureza,

souumcasodefilhoquenadatemdecomumcomasuaprogenitora.Nãoentendodecozinhaenemsequercomo.Meupendorsemprefoicientífico.A ciênciame atrai dummodo incoercível. No começo dei-me à Filologia:hoje dou-me à Geologia. E sabem por que mudei? Por uma razãoeconômica.Afilologianãoaumentaariquezadumpaís,pondereieucomosmeusbotões.

—Comosmeuscarocinhosdemilho!—emendouaboneca.—MasaGeologiaaumenta.E'umaciênciaqueconduzaresultados

práticos,positivos,degrandesreflexoseconômicos.Emquenosenriquece,por exemplo, saber que a palavra ontem vem de à noite? Em nada. Massaber que em tal ou tal terreno existem condições para o acúmulo dopetróleo, isso sim, enriquece. Pelomenos enriqueceuDonaBenta. Senãofosse a nossa mania geológica, não teríamos descoberto o anticlinal dosCaraminguás—e não estaríamoshoje nadando emdinheiro e fazendo afelicidadedeste pobrepovo, que até aqui viveudescalço, analfabeto e namaiorpenúria.

OViscondebebeuumgolinhod'águaecontinuou:— A Geologia, meus senhores e senhoras, é a ciência do solo e do

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subsolo—eénosubsoloqueseacumulamasmaioresriquezasdumpaís.O solo, que é? Apenas uma superfície. E o subsolo? O subsolo é umacubagem,éumamassaquevaidesdeasuperfícieatéocentrodaterra.Voudar um exemplo. Um alqueire de terra não passa de 24.200 metrosquadrados de chão, ou de superfície.Mas um alqueire de subsolo é umamassavolumétricaquedesceatéocentrodaterra.Hojeohomemexploracomercialmente o subsolo até 3.000 metros de profundidade; temos,portanto, que um alqueire de subsolo comercialmente explorável correspondeaumamassade24.200metroscúbicosmultiplicadospor3.000—ousejam72.600.000metroscúbicos!

—Puxa!—exclamouPedrinho.— Pois bem: essa imensa massa de subsolo, que corresponde a

apenasumalqueiredesuperfície,encerrainúmerosmineraisutilíssimosaohomem,eque,portanto,constituemoquechamamosRiqueza.OsEstadosUnidos são o país mais rico do mundo porque compreenderam isso elançaram--se à exploração das reservas do subsolo. Eles extraem dosubsolo,porano,produtosnovalorde6bilhõesdedólares,ousejammaisde100bilhõesde cruzeirosnanossamoeda!EnósnoBrasil?Queéqueextraíamosdonossosubsolo,antesdaaberturadoCaraminguán.°1?

—Minhocas!—berrouEmília.—Exatamente—concordouoVisconde.—Sóextraíamosminhoca

—eporissoéramosumpovotãopobre.Masagoratudocomeçouamudar.Graçasaoquefizemosnosítio,acorridaaosubsoloestáiniciada—enãopararámais—efarádoBrasilograndePaísqueelemereceser. Tenhodito.

—Bravos!Bravosaosabuguinhocientífico!—gritaramtodos.— Interessante! — observou Dona Benta. — O Visconde até num

discursodebrincadeirarevela-seosábiodesempreenosdálições.Oqueeledisseérigorosamentecerto...

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XIII

OtriunfodeDonaBenta— Agora eu! — berrou Emitia, ansiosa por botar a sua colher no

banquete.— Pois seja você — disse Narizinho. — Tem a palavra a Senhora

EmitiadeRabicó...Emitiadeuumsaltoparacimadamesa,comtalestabanamentoque

caiuabraçadaaumperurecheado,sujando-setodadegordura.Masnãofezcaso,taleraasuaganadefalar.Enãoveiocomospreâmbulosdocostume.Foilogoaoassuntoprincipal.

—Estoucomumaidéiaótima!—disseela.—Talvezamelhoridéiadetodaaminhavida...

—Lávemasneira!—rosnouPedrinho.— Uma idéia do tamanho da torre do Caraminguá! — prosseguiu

Emitia.—Umaidéiadegênio!...—Escorropichelogoessaidéiaenãocaceteie—disseNarizinho.—

Vovójáestácomsono.—Voudizer—continuouEmitia.—Minhaidéiaéorganizarmosum

"triunforomano"paraDonaBenta.Quetal?Todosseentreolharam;ninguémhaviaentendido.—Sim,umtriunforomano—o"TriunfodeDonaBenta"!Elaetodos

nósmontadosnoQuindim,elacomumcetronamãoenóscombandeiras,efaremosumaentradatriunfalpelomeiodessepovaréuqueestácomendoebebendo à tripa forra. Na frente botamos Mister Kalamazoo e Mr.Champignon na posição da Estátua da Liberdade, segurando fogos-de-bengalapara iluminarocaminho.AtrásdoQuindim, tiaNastáciacomumtridente, feitoNetuna,para ir cutucandoQuindimquandoeleparar.Enarabeira,opessoaltododaDonabentense,comarchotes.Emaiscoisasquenomomentolembrarei.Quetal?

— Ótima a idéia, Emília! — gritaram Pedrinho e Narizinho,entusiasmados.

—Poderemos,porexemplo—continuouEmília—pintarnatestadeQuindimestasletrasfamosas:S.P.Q.R.

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—Quesignificam?—perguntouamenina.—Nãosei,maseramusadasnos triunfosromanos.TiaNastáciadiz

quequeremdizer:SãoPedroQuerRapadura,masachoquedeveseroutracoisa.

— É outra coisa, sim — disse Dona Benta. — Essas letras são asinicias do célebre dístico romano: Senatus Populusque Romanus — oSenadoeoPovoRomano.

— Pois é isso— gritou Emília.— O Senado é a senhora e o PovoRomanosomosnós.Quetalminhalembrança?

Todosaacharamótima,elevantaram-sedamesaematropeloparaaorganizaçãodoTriunfodeDonaBenta.

Comaboavontadedosmeninoseofaz-de-contadaEmília,meiahoradepoisocortejocomeçavaadesfilar.

Nafrentemarchavamosdoisamericanos,queimandonoarfogos-de-bengaladecoresvivíssimas.DonaBenta iaescarrapachadanocongotedeQuindim, comum cetrode cabode espanadornamão, tendo à esquerdaNarizinho,vestidade"Netan.°1"eàdireitaPedrinhovestidode"Neton.°1"—tudoinvençõesdaEmília.OVisconde,entrajadodegeólogo,vinhadepé,comasmãosnacintura,sobreaancadorinoceronte.TiaNastáciavinhaatrás,comocabodevassouraempunhoparavoltaemeiadarumcutucãoemQuindim.

EEmília?Ah,Emíliaocupouoseulugarzinhodesempre,montadanochifredo

paquiderme, cujo corpo, forrado com uma colcha de seda amarela dotempo do imperador, estava todo ornamentado de guirlandas de flores.Emíliatrazianamãoumagrandecoroaderosas.

Atrás de Quindim vinham todos os operários e empregados daCompanhiaDonabentense,comarchotesacesos—archotesembebidosnopetróleocrudoCaraminguán.°1.

O "triunfo" causou tremendo efeito no povo reunido em redor dasnumerosíssimas mesas espalhadas pelo pasto da Mocha. Os maldizentestiveramvontadededizerqueaquilonãopassavadumacaduquicedeDonaBenta, mas ao se lembrarem da sua renda diária de 9.500 barris depetróleo,emudeceram;engoliramairreverênciaejuntaramsuaspalmaseberrosàsaclamaçõesdelirantesdosmilharesdecomensais.

—VivaDonaBenta,abenfeitoradoTucanoAmarelo!—Viva!Viva!...— Vivam os netos de Dona Benta, essas duas delícias do gênero

humano!

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—Vivam!Vivam!...—VivaoViscondedeSabugosa,ogeólogodosgeólogos!—Viva!Viva!...—VivaaMarquesadeRabicó!—Viva!Viva!...O cortejo seguiu solenemente na direção do Caraminguá n.° 1,

acompanhado pela multidão dos comensais em delírio. Lá, defronte dasonda,QuindimparoueDonaBentapediuaMisterKalamazooquepegasseacoroaderosasdasmãosdaEmíliaeacolocassenatorre,comoletreiroquePedrinhotraçaraemletrasdeouronumquadradodepapelão.

Mister Kalamazoo assim fez. Pendurou na torre a coroa de rosas eprendeuporbaixooletreirodePedrinho.

Todoscorreramaler.Novas palmas, novos bravos, novos hurras acolheram aquela

inscriçãoemletrasdeouroecomumsignificadodeouro.MasDonaBenta,quenãopodiadesono,apenasdisse:—AMÉM...EmandouQuindimtocarparacasa.Foidormir.

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({*})"Ohomem,essedesconhecido."({†})Pirata,detrásparadiante.({‡})Aprimeiraediçãodeste livroapareceunoanode1937,muitoantesdaaberturadoprimeiropoço de petróleo do Brasil — o de Lobato, na Bahia. Os fatos, portanto, confirmaram a notávelprofeciadoViscondinhodeSabugosa.Eafuturaaberturademaispoçosnospontosaquiindicadosviráprovarqueaquelesimplessabugocientíficoentendiamaisdopetróleobrasileirodoquetodosossábiosoficiais.