1
O problema biológico da civilização humana Num livrinho recente, (1) Jean Rostand, em França um dos mais brilhantes e dos mais fecundos divulgadores da ciência, aborda um problema interessantíssimo posto pela biologia contemporânea: «o problema biológico da civilização humana». Como o ponto de vista de Rostand não nos parece completamente certo e como, por .outro lado, nos parece que podemos dar ao problema uma solução mais con- forme com a ciência e com a lógica da ciência, vamos abordá-lo por nossa vez e procurar resolvê-lo, pondo a nossa solução em paralelo com a de Rostand. # O problema é posto, ou deve ser posto, nos seguintes termos : A civilização tem alguma influência sobre a estructura genética (2) do homem ? — Essa estructura é transmissível por hereditariedade ? Ou a civilização, obra do homem, con- serva-se indefinidamente fora do homem? A transmissão dos elementos da civi- lização, a «hereditariedade social», como se diz, é feita exclusivamente pela tradição, ou tem um substractum biológico, genético? Digamos, desde já, que Rostand afirma categoricamente que a hereditariedade so- cial é apenas tradicional, não tem substra- ctum biológico : é uma hereditariedade que não cabe no mecanismo da genética. Apoia- (1) Jean Rostand — Hérédité et Racisme — ed. N. P. F., Gallimard, Paris 1939 (10 frs.). (2) Chamo estructura genética ao conjunto dos factores que no ôvo são encarregados de transmitir os caracteres hereditários. -se em argumentos sólidos, e por isso mesmo teremos de alongar um pouco este pequeno estudo da questão. Não seremos, de resto, muito maçado- res, porque teremos de abordar uma série de problemas dos mais interessantes da biologia. * De geração em geração, as espécies manteem as suas características essenciais mercê do complexo fenómeno biológico que é a hereditariedade. Pela hereditariedade, as características duma espécie transmi- tem-se indefinidamente de pais a filhos, e a espécie ó mantida. Se tivermos um macho qualquer (um cão, por exemplo), com a cer- teza de que pertence a uma raça pura, sem quaisquer cruzamentos no seu passado, e o juntarmos com uma fêmea da mesma raça, também pura, os filhos deste casal reproduzirão fielmente todas as caracterís- ticas morfológicas dos pais. Mantendo as gerações sempre puras, todos os indiví- duos, através de todas as gerações, man- terão indefinidamente sempre as mesmas características, a não ser que se dê uma mutação. Esta mutação implica o ter havido uma alteração na estructura genética, até então imutável, da linhagem considerada. Podemos pois definir mutação: uma trans- formação brusca, intempestiva, inesperada, imprevisível na estructura genética dum sêr vivo, tendo por resultado uma alteração correlativa dum pormenor morfológico na constituição somática dos seus descen- dentes. Exemplifiquemos: temos um grande nú- mero de gerações sucessivas de moscas do

O problema biológico da civilização humanantese AII, N5, 1940_16.pdf · teza de que pertence a uma raça pura, sem quaisquer cruzamentos no seu passado, e o juntarmos com uma fêmea

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

O p r o b l e m a b i o l ó g i c o

da c i v i l i z a ç ã o h u m a n a N u m livrinho recente , (1) J e a n R o s t a n d ,

em F r a n ç a u m dos mais b r i lhan tes e dos

mais fecundos d ivulgadores da ciência,

abo rda um p r o b l e m a in te ressan t í s s imo

pos to pe la biologia c o n t e m p o r â n e a : « o

prob lema biológico da civilização h u m a n a » .

Como o p o n t o de v i s t a de R o s t a n d não

nos pa rece comple t amen te cer to e como,

po r .outro lado, nos pa rece que podemos

dar ao p rob lema u m a solução mais con­

forme com a ciência e com a lógica da

ciência, vamos abordá- lo por nos sa vez e

p r o c u r a r resolvê-lo, pondo a nossa solução

em para le lo com a de R o s t a n d .

#

O prob lema é p o s t o , ou deve ser pos to ,

nos segu in tes t e r m o s :

— A civilização t e m a lguma influência

sobre a e s t r u c t u r a genét ica (2) do h o m e m ?

— E s s a e s t r u c t u r a é t ransmiss íve l por

he red i t a r i edade ?

— Ou a civilização, obra do homem, con­

s e r v a - s e indef inidamente fora do h o m e m ?

— A t ransmissão dos e lementos da civi­

l ização, a « h e r e d i t a r i e d a d e soc i a l» , como

se diz, é feita exc lus ivamente pela t r ad ição ,

ou t e m u m substractum biológico, gené t ico?

D i g a m o s , desde j á , que R o s t a n d afirma

ca t egor i camen te que a he red i t a r i edade so­

cial é apenas t r ad ic iona l , não t em substra­

ctum biológico : é u m a h e r e d i t a r i e d a d e que

não cabe no mecanismo da genét ica . Apoia-

(1) Jean Rostand — Hérédité et Racisme — ed. N. P . F . , Gallimard, Paris 1939 (10 frs.) .

(2) Chamo estructura genética ao conjunto dos factores que no ôvo são encarregados de transmitir os caracteres hereditários.

-se em a rgumen tos sólidos, e po r isso mesmo

t e remos de a longar u m pouco este p e q u e n o

es tudo da ques tão .

Não seremos , de res to , mu i to maçado­

res , p o r q u e t e r emos de a b o r d a r u m a série

de p rob lemas dos mais i n t e r e s san t e s da

biologia .

*

D e geração em geração , as espécies

m a n t e e m as suas carac ter í s t icas essenciais

mercê do complexo fenómeno biológico que

é a he red i t a r i edade . Pe la he r ed i t a r i edade ,

as ca rac te r í s t i cas d u m a espécie t r an smi -

tem-se indef in idamente de pa i s a filhos, e a espécie ó m a n t i d a . Se t ive rmos u m macho

qua lque r (um cão, por exemplo) , com a cer­

t e z a de que per tence a u m a raça pura , sem

qua i squer c ruzamen tos no seu pas sado , e o j u n t a r m o s com u m a fêmea da m e s m a

raça , t a m b é m pura , os filhos deste casal

r ep roduz i r ão fielmente todas as caracter ís­

t icas morfológicas dos pa is . M a n t e n d o as

ge rações sempre p u r a s , t odos os indiví­

duos , a t r avés de t odas as ge rações , man­

t e r ã o indef in idamente sempre as m e s m a s

carac te r í s t i cas , a não ser que se dê u m a

mutação. E s t a m u t a ç ã o impl ica o t e r hav ido

u m a a l te ração n a e s t r u c t u r a genét ica , a t é

en tão imutáve l , da l inhagem cons ide rada .

Podemos po is definir mutação: u m a t r a n s ­

formação b rusca , in t empes t iva , i ne spe rada ,

imprevis íve l na e s t ruc tu ra gené t ica dum sêr

v ivo , t endo por resu l t ado u m a al teração

corre la t iva dum pormenor morfológico na

cons t i tu ição somát ica dos seus descen­

d e n t e s .

Exempl i f iquemos : t emos um g rande nú­

mero de gerações sucess ivas de moscas do