O Problema Da Verdade e a Verdade Do

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O problema da verdade e a verdade do problema

O problema da verdade e a verdade do problemaPor Olavo de CaralhoI. O QUESTIONAMENTO RADICAL

1. DA FRIVOLIDADE SATISFEITA

Quid est veritas? Esta a mais sria e a mais frvola das questes. Depende, evidentemente, da inteno de quem pergunta. Uns admitem que o sentido e o valor da vida humana dependem da existncia de alguma verdade eminentemente certa e confivel, que possa servir de medida de aferio da validade de nossos pensamentos. Outros acham que a vida pode perfeitamente ir em frente sem verdade nenhuma e sem fundamento nenhum. Entre estes estava, decerto, o velho Pilatos. Ao exclamar "Que a verdade?" , ele no estava fazendo propriamente uma pergunta, mas expressando, com um dar de ombros, sua pouca disposio de fazer a srio essa pergunta. A perspectiva de no existir nenhuma verdade, que levaria ao desespero aqueles que julgam que a vida precisa dela para se justificar, era para Pilatos um alvio e um consolo a garantia de poder continuar vivendo sem preocupaes. Alguns apostam na existncia da verdade e cherchent en gmissant. Outros voltam-lhe as costas e lavam as mos1. A frmula verbal com que se exprimem a mesma: Quid est veritas? Mas na diferena de suas nuanas reside toda a distncia do trgico ao cmico.A escola frvola, ou cmica, amplamente dominante hoje em dia, seja nas universidades, seja na cultura em geral. Mesmo aqueles que procuram crer numa verdade efetiva cercam-na de toda sorte de limites e obstculos, por exemplo reduzindo-a ao tipo de verdade parcial e provisria que nos dado por algumas cincias experimentais. Outros apegam-se f, dizendo que a verdade existe, mas est acima de nossa compreenso.

Em qualquer debate sobre o problema da verdade, em nossos dias, o programa consiste quase que invariavelmente em desfiar de novo e de novo as observaes que os filsofos, de Pirro a Richard Rorty, fizeram sobre os limites do conhecimento humano. Esses limites, vistos em conjunto, armam uma formidvel montanha de obstculos a qualquer pretenso de conhecer a verdade. E essa montanha crescente, com um pico que se afasta mais e mais medida que a escalamos. Por exemplo, desde as objees simplrias da escola pirrnica contra a validade do conhecimento pelos sentidos at as construes enormemente complexas com que a psicanlise nega a prioridade da conscincia ou Gramsci reduz toda verdade expresso das ideologias que se sucedem atravs da Histria, muito evoluiu a mquina de injetar desnimo no buscador da verdade. No de espantar que muitos dos construtores dessa mquina, quando lhe acrescentam uma nova pea, em vez de lamentar o acrscimo da impotncia humana tragam nos lbios um sorriso semelhante ao de Pilatos. A inexistncia da verdade, ou a impossibilidade de conhec-la, para eles um reconforto. Veremos adiante quais so as razes mais profundas dessa estranha satisfao. 2. DEFINIO PROVISRIA DA VERDADE

Por enquanto, vamos deixar essas criaturas de lado e colocar, por nossa conta, a questo da verdade. Como no sabemos ainda se a verdade existe nem o que ela afirma, temos de apelar a uma definio formal provisria, que possibilite dar incio investigao sem nada prejulgar quanto ao seu desenlace. Essa definio provisria, para atender a esse requisito, tem de expressar o mero significado intencional do termo, tal como aparece mesmo na boca daqueles que negam a existncia de qualquer verdade, de vez que para negar a existncia de algo preciso compreender o significado do termo que o designa.Digo, pois, que a verdade, aquela verdade que ainda no sabemos se existe ou no, aquela verdade cuja existncia e consistncia sero o objeto da nossa investigao como o foram de tantas investigaes que nos precederam, o fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juzos. Se dizemos, por exemplo, que o nico fundamento da validade dos nossos juzos sua utilidade, negamos a existncia de um fundamento cognitivo, ou seja, negamos a existncia da verdade mediante a negao de um dos elementos que compem a sua definio. O mesmo acontece de dizemos que todos os juzos vlidos tm fundamento na f. Se afirmamos, porm, que no h juzos vlidos de espcie alguma, ento negamos a existncia de qualquer fundamento, cognitivo ou no. Se afirmamos que os juzos s so vlidos para determinado tempo e lugar, negamos que o fundamento seja permanente. Se afirmamos que os juzos s so vlidos subjetivamente para aquele que os profere, negamos que o fundamento seja universal. Se dizemos que o fundamento da validade dos juzos apenas lgico-formal, sem qualquer alcance sobre os objetos reais mencionados no juzo, negamos que esse fundamento tenha significado cognitivo. Todas essas negaes da verdade pressupem a definio da verdade como fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juzos. Do mesmo modo, se dissermos que existe a verdade, que ela conhecvel, que com base nela podemos construir um conjunto de conhecimentos vlidos, nada teremos acrescentado ou retirado dessa definio, mas teremos apenas afirmado que o objeto nela definido existe. Nossa definio provisria, sendo portanto compatvel com as duas correntes de opinio maximamente opostas que disputam em torno da questo, um terreno superior e neutro desde o qual a investigao pode ser iniciada sem preconceitos e com toda a honestidade e rigor. 3. POSSVEL O QUESTIONAMENTO RADICAL DA VERDADE?

Partimos, assim, de um consenso. O passo seguinte da investigao consiste em perguntar se a verdade, assim definida, pode ou no ser objeto de questionamento radical. Com a expresso questionamento radical quero dizer aquele tipo de questionamento que, admitindo ex hypothesi a inexistncia do seu objeto, como por exemplo tantas vezes se fez com a existncia de Deus, das idias inatas ou do mundo exterior termina por concluir, seja em favor dessa mesma inexistncia, seja da existncia.

O questionador radical de Deus, das idias inatas ou do mundo exterior pode question-los porque se coloca, desde o incio, fora do terreno divino, inatista ou mundano, ou seja, ele raciocina como se Deus ou as idias inatas ou o mundo no existissem. Conforme o desenrolar de sua investigao, ele chegar ou concluso de que sua premissa absurda, o que o levar portanto a admitir a existncia daquilo cuja inexistncia havia postulado, ou, inversamente, concluso de que a premissa se sustenta perfeitamente bem e de que aquilo que foi suposto inexistente realmente inexiste.

O mais clssico exemplo de emprego desse mtodo o de Descartes. Ele pressupe a inexistncia do mundo exterior, dos dados dos sentidos, do seu prprio corpo, etc., etc., e continua raciocinando nessa linha at encontrar um limite o cogito ergo sum que o obriga a recuar e a admitir a existncia de tudo quando havia inicialmente negado.O questionamento radical o mais duro teste a que a filosofia pode submeter qualquer idia ou ente que se pretenda existente.

O que devemos perguntar, portanto, logo aps termos obtido a definio formal da verdade, se a verdade assim definida pode ser objeto de questionamento radical. A resposta, que a muitos talvez parea surpreendente, um taxativo no. A verdade no pode ser objeto de questionamento radical.

Nenhuma investigao sobre a verdade, por mais radical que se pretenda, pode dar por pressuposta a inexistncia de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juzos e continuar a raciocinar de maneira consistente com essa premissa at chegar a algum resultado, positivo ou negativo. E no pode por uma razo muito simples: a afirmao da inexistncia absoluta de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juzos constituiria, ela prpria, o fundamento cognitivo permanente e universal dos juzos subseqentes feitos na mesma linha de investigao. A investigao estaria paralisada to logo formulada.

Examinemos brevemente algumas das estratgias clssicas de negao da verdade a que o questionador pudesse recorrer para escapar desse cul-de-sac.

Tentemos, por exemplo, a estratgia pragmatista. Ela afirma que a validade dos juzos repousa na sua utilidade prtica, que portanto o fundamento dessa validade no cognitivo. Se dissssemos que a inexistncia de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos no ela prpria um fundamento cognitivo universal e permanente, mas apenas um fundamento prtico, das duas uma: ou esse fundamento prtico teria de ser por sua vez universal e permanente, ou seria apenas parcial e provisrio.

Na primeira hiptese, teramos dois problemas: de um lado, cairamos no paradoxo de uma utilidade universal, ou seja, de algo que poderia utilmente servir a todos os fins prticos, mesmo os mais contraditrios. Seria o meio universal de todos os fins ou, mais claramente ainda, a panacia universal. De outro lado, teramos de perguntar se a crena nesta panacia teria por sua vez um fundamento cognitivo ou se ela seria apenas uma utilidade prtica, e assim por diante infinitamente.

Na segunda hiptese isto , na hiptese de o questionador admitir que a afirmao da inexistncia da verdade apenas um fundamento parcial e provisrio para a validade dos juzos subseqentes , ento, evidentemente, restaria sempre, inabalvel, a possibilidade de que fora do terreno assim delimitado pudessem subsistir outros fundamentos cognitivos universais e permanentes para validar uma infinidade de outros juzos, e a investigao poderia prosseguir indefinidamente, saltando de fundamento provisrio a fundamento provisrio, sem jamais poder chegar a fundamentar-se no seu prprio pressuposto, isto , na radical inexistncia da verdade.Tentemos uma segunda estratgia, a do relativismo subjetivista. Este proclama, com Protgoras, que "o homem a medida de todas as coisas", o que se interpreta correntemente no sentido de que "cada cabea, uma sentena", ou seja, de que o que verdade verdade apenas desde o ponto de vista daquele que a pensa, podendo ser falsidade desde o ponto de vista de todos os demais. Pode essa afirmao constituir a base de um questionamento radical da verdade, de tal modo que a negao da existncia de qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos no se torne ela mesma o fundamento cognitivo universal e permanente em que se apia a validade dos juzos subseqentes na mesma linha de investigao? Dito de outro modo, e mais simples: pode o relativismo negar a existncia de juzos vlidos para todos os homens sem que essa negao se torne ela mesma um juzo vlido para todos os homens? Para faz-lo, ele teria de negar a universalidade dessa negao, o que resultaria em admitir a existncia de algum ou de alguns ou de uma infinidade de juzos vlidos para todos os homens. Assim o relativismo estaria ele prprio relativizado e acabaria se resumindo numa platitude sem qualquer significado filosfico, isto , na afirmao de que alguns juzos no so vlidos para todos os homens, o que implica a possibilidade de que outros juzos talvez o sejam. No, o relativismo subjetivista no pode realizar um questionamento radical da verdade, tanto quanto no o podia o pragmatismo.Poder faz-lo, ento, o historicismo? Este declara que toda verdade apenas a expresso de uma cosmoviso temporalmente localizada e limitada. Os homens pensam isto ou aquilo no porque aquilo ou isto se imponha como verdade universalmente e permanentemente obrigatria, mas apenas porque se impe num lugar e por um perodo limitados. Ao proclamar esses limites, pode o historicismo impedir que a afirmao desses limites se torne ela prpria o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos? Para tanto, seria necessrio admitir que pode haver algum fundamento que negue essa afirmao; mas, se esse fundamento existe, ento existe alguma verdade cuja validade ilimitada no tempo e no espao, alguma verdade cuja validade escapa ao condicionamento histrico e o historicismo estaria reduzido miservel constatao de que alguns fundamentos de validade so condicionados historicamente, outros no, sem poder sequer aplicar esta distino aos casos concretos sem afirmar no mesmo ato a invalidade do princpio historicista tomado como regra universal.Pouparei ao leitor a enumerao de todos os subterfgios possveis e sua detalhada impugnao. Ele mesmo pode realiz-los, a ttulo de exerccio, se assim o desejar. Sugiro mesmo que o faa. E tantas vezes quantas venha a faz-lo terminar sempre voltando ao mesmo ponto: no possvel negar a existncia de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos, sob qualquer pretexto que seja, sem que essa negao, junto com o seu respectivo pretexto, tenha de se afirmar ela prpria como o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos, paralisando assim a negao seguinte pela qual deveria prosseguir, se pudesse, a investigao. A verdade tal como a definimos no pode, em suma, ser objeto de questionamento radical. Nem o pode a possibilidade de conhec-la. Negado que seja possvel conhecer qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos, ou esta impossibilidade mesma se tornaria tal fundamento, afirmando no mesmo ato sua prpria falta de qualquer fundamento, ou ento, para no assumir esse papel vexaminoso, teria de se limitar a afirmar que alguns juzos no tm fundamento e outros provavelmente tm, afirmao que est ao alcance de qualquer garoto de escola.No podendo atingir o alvo colimado, o inimigo da verdade est portanto condenado a ro-la pelas beiradas, eternamente, sem jamais chegar ao centro vital daquilo que desejaria destruir. Ele ora negar uma verdade, ora outra, ora sob um pretexto, ora sob outro, variando as estratgias e as direes do ataque, mas no poder nunca se livrar do seu destino: cada negao de uma verdade ser a afirmao de outra, e tanto aquela negao quanto esta afirmao resultaro sempre na afirmao da verdade como tal, isto , da existncia efetiva de algum fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos.

Isso explica, ao mesmo tempo, a proliferao contnua, ilimitada e irrefrevel das negaes da verdade, e a sua completa impossibilidade de varrer da face da Terra a crena na existncia da verdade, a crena na possibilidade de conhecer a verdade, a crena na posse atual e plena de alguma verdade capaz de dar fundamento universal e permanente validade dos juzos.

Por isso o nmero e a variedade dos ataques verdade, de Pirro a Richard Rorty, superam amplamente o nmero e variedade das defesas que se apresentam formalmente como tais: que eles prprios, ainda que a contragosto de seus autores, acabam sempre constituindo defesas e louvores da verdade, no s poupando trabalho ao apologista, mas vivificando eles prprios aquilo que desejariam sepultar e honrando aquilo que desejariam humilhar.Essa tambm a razo por que o principiante, impressionado pela variedade e contnua retomada dos ataques verdade que se observa na histria da filosofia em velocidade notavelmente crescente nos dias de hoje , adere logo ao ceticismo para no se sentir membro de uma minoria isolada e enfraquecida, mas, prosseguindo seus estudos e superando a primeira impresso fundada apenas na quantidade aparente, no consegue manter essa posio e acaba percebendo que a fora no reside no nmero dos que negam, por mais impressionante que parea, e sim na qualidade dos happy few que serenamente afirmam a verdade.II. A VERDADE NO UMA PROPRIEDADE DOS JUZOS

1. VERDADE E VERIDICIDADE

A impossibilidade do questionamento radical, que constatamos no captulo anterior, leva concluso de que a verdade s pode ser atacada em partes, mas que cada negao da parte reafirma a validade do todo. Dito de outro modo: o que se pode questionar so verdades. "A" verdade no pode ser questionada e de fato nunca o foi, exceto em palavras, isto , mediante um fingimento de negao que resulta em ltima instncia ser uma afirmao.

Mas isso leva-nos um passo adiante na investigao. Uma tradio venervel, iniciada por Aristteles, afirma que a verdade est nos juzos, que ela uma propriedade dos juzos. Alguns juzos "possuem" a verdade, outros no. Chamamos, aos primeiros, juzos verdadeiros, aos segundos, juzos falsos. O conjunto dos juzos verdadeiros portanto um subconjunto do conjunto dos juzos possveis. Os juzos possveis, por sua vez, so um subconjunto do conjunto dos atos cognitivos humanos, estes so um subconjunto do conjunto dos atos mentais, estes um subconjunto do conjunto dos atos humanos, e assim por diante. O territrio da verdade , assim, uma pequena rea recortada dentro do vasto mundo de pensamentos, atos e seres.

Ser isso realmente possvel? Como poderia a verdade ser ao mesmo tempo o fundamento da validade de todos os juzos e uma propriedade de alguns deles em particular? No h nisto uma gritante contradio ou, ao menos, um problema?Para equacion-lo e resolv-lo preciso convencionar aqui uma distino entre verdade e veridicidade. Verdade o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos. Veridicidade uma qualidade que se observa em alguns juzos, segundo a qual sua validade tem um fundamento cognitivo universal e permanente.

Uma vez compreendido isto, salta aos olhos que a verdade uma condio fundante da veridicidade, e no ao contrrio. Se no existisse um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juzos, nenhum juzo poderia ter um fundamento cognitivo universal e permanente. Se, porm, um juzo em particular possui esse fundamento, nada no mundo pode determinar que somente ele o possua, isto , que a existncia do fundamento dependa da existncia desse juzo em particular. J esse juzo em particular no poderia existir e ser verdico se no existisse verdade alguma. A verdade , pois, anterior, logicamente, veridicidade e constitui o seu fundamento.

Mas, sendo fundamento da veridicidade, a verdade tambm fundamento da inveridicidade, porque os juzos falsos s so falsos na medida em que possam ser impugnados veridicamente, seja pela sua simples negao verdica ela prpria , seja pela afirmao do juzo verdico contrrio.Sendo o fundamento no s da veridicidade dos juzos verdadeiros, mas tambm da inveridicidade dos juzos falsos, se a veridicidade s est presente nos juzos verdadeiros, e no pode estar presente nos juzos falsos, a verdade, por sua vez, tem de estar presente em ambos, como fundamento da veracidade dos primeiros e da inveridicidade dos segundos. O territrio da verdade, pois, no idntico ao conjunto dos juzos verdadeiros possveis, mas abrange este e o dos possveis juzos falsos. 2. O FUNDAMENTO DE TODOS OS JUZOS UM JUZO?

A verdade, fundamento de todos os juzos, tem de ser necessariamente um juzo? Somente um juzo pode ser fundamento de um juzo? A resposta sim e no. Sim, se por fundamento entendemos, restritiva e convencionalmente, a premissa em que se funda a prova do juzo. Mas a premissa afirma algo a respeito de algo, e este algo, por sua vez, no juzo e sim objeto dele. Digo, por exemplo, que as tartarugas tm cascas. Fundamento esse juzo nas definies de tartaruga e de casca, que so juzos, mas fundamento estas definies na observao que no juzo de tartarugas e cascas, que tambm no so juzos. No deve esta observao ser tambm verdadeira, captando traos verdadeiramente presentes em objetos verdadeiros? Ou apelarei ao subterfgio de que a observao tem de ser somente exata, no se aplicando a ela o conceito de "verdadeiro"? Mas qu quer dizer "exato", no caso, seno aquilo que nada me informa alm ou aqum do que foi verdadeiramente observado naquilo que um objeto verdadeiramente mostrava? E, ademais, trata-se de uma exatido autntica ou apenas de um simulacro dela? No h escapatria: ou h verdade na observao mesma, ou ela no pode ser exata, nem correta, nem adequada, nem suficiente, nem ter qualquer outra qualidade que a recomende exceto se essa qualidade for, por seu lado, verdadeira.Assim, o fundamento da veridicidade de um juzo no est somente na veridicidade dos juzos que lhe servem de premissas, mas tambm no caso dos juzos concernentes a objetos de experincia na verdade dos dados de onde extra essas premissas e na verdade do que deles sei por experincia.

Ademais, se o fundamento dos juzos tivesse de ser ele prprio sempre um juzo, o fundamento primeiro de todos os juzos seria ele prprio um juzo destitudo de qualquer fundamento. Aristteles, levado a este beco sem sada, afirmou que o conhecimento dos primeiros princpios imediato e intuitivo. Mas com isto quis dizer apenas que esses princpios no tinham prova, no que fossem desprovidos de fundamentos. O princpio de identidade, por exemplo, assim expresso no juzo A = A, no tem atrs de si nenhum juzo que possa servir de premissa sua demonstrao, mas tem um fundamento objetivo na identidade ontolgica de cada ser consigo prprio, a qual no juzo. Ora, o que pode ser conhecido intuitivamente esta identidade ontolgica, e no o juzo A = A que apenas o manifesta. A intuio do primeiro princpio lgico no se d sob a forma de um juzo, mas de uma evidncia imediata que, por si, no juzo. No pode haver juzo sem signos que transformem essa evidncia imediata num verbum mentis, num assentimento consciente, que, sem ser ainda uma proposio, uma afirmao em palavras, j no mais a pura e simples intuio e sim um reflexo mental dela e, portanto, um ato cognitivo derivado e segundo, no primeiro.Desse modo, se o territrio das premissas lgicas tem incio nos juzos que afirmam os primeiros princpios, esse territrio nem de longe abrange todo o campo dos fundamentos cognitivos, que se estende, ao contrrio, para dentro do domnio da percepo intuitiva, seja dos objetos de experincia, seja dos primeiros princpios.

Com isso, fica evidente a falsidade da imagem na qual a verdade uma pequena zona recortada na vastido do territrio dos juzos possveis. Os juzos todos, verdadeiros e falsos, que so um modesto recorte no imenso territrio da verdade.III. ONDE EST A VERDADE?

1. A VERDADE COMO DOMNIO

Com isso, somos levados a compreender que a verdade, sendo o critrio de validade dos juzos, no pode nem ser uma propriedade imanente dos prprios juzos, nem ser algo de totalmente externo aos juzos que, de fora, os julgasse; pois este julgamento seria por sua vez juzo. Se digo que a galinha botou um ovo, onde pode estar a verdade deste juzo? No prprio juzo, independentemente da galinha, ou na galinha, independentemente do juzo? A absurdidade da primeira hiptese levou Spinoza a proclamar a inanidade dos juzos de experincia, que nunca so vlidos ou invlidos em si mesmos e sempre dependem de algo externo: um juzo verdadeiro, para ele, teria de ser verdadeiro em si, independentemente do que quer que fosse, como por exemplo a = a independe do que seja a e de qualquer outra verificao externa. Mas a identidade de a com a tambm no est s no juzo que a afirma, e sim na consistncia de a, seja ele o que for. No h juzo puramente lgico, que possa ser verdadeiro ou falso em si e sem referncia a algo que aquilo do qual o juzo fala. Mesmo um juzo que falasse apenas de si mesmo desdobra-se no juzo que afirma e no juzo do qual algo se afirma, e este certamente no aquele. Dizer que um juzo verdadeiro em si mesmo no pode significar total alheamento do mundo, que est suposto na possibilidade mesma de se enunciar um juzo. A fuga para o domnio da identidade formal no resolve absolutamente o problema. Diremos ento, com uma velha tradio, que a verdade est na relao entre juzo e coisa? Ora, esta relao por sua vez afirmada num juzo, que por sua vez deve ter uma relao com seu objeto (a relao afirmada), e assim por diante infinitamente.A outra hiptese, de que a verdade do juzo a galinha botou um ovo est na galinha independentemente do juzo, nos levaria a dificuldades igualmente intransponveis. Resultaria em dizer que a verdade do juzo independe de que esse juzo seja emitido, ou seja, que uma vez que a galinha tenha botado um ovo o juzo que o afirma verdadeiro ainda que, como juzo, no exista. Edmund Husserl subscreveria isso sem pestanejar: a verdade do juzo uma questo de lgica pura, que nada tem a ver com a questo meramente emprica de um determinado juzo ser afirmado um dia por algum. A confuso entre a esfera da verdade dos juzos e a esfera da produo psicolgica deles fez de fato muito mal filosofia, e Husserl desfez essa confuso definitivamente. Mas se a galinha botou um ovo e ningum afirmou nada a respeito, a verdade no caso no est no juzo e sim no fato. O juzo que no foi emitido ainda no pode ser verdadeiro ou falso, pode apenas ter as condies para s-lo; se verdade que a galinha botou um ovo, o juzo que o afirma ser verdadeiro se formulado, ao passo que a verdade do fato j est dada com o aparecimento do ovo.

Mas, se a verdade do juzo a galinha botou um ovo no est nem no juzo independentemente da galinha, nem na galinha independentemente do juzo, nem na relao entre galinha e juzo, onde raios pode ela estar?Ora, acabamos de ver que, independentemente dos juzos que os afirmam, os objetos intencionados nos juzos tambm podem ser verdadeiros ou falsos, independentemente dos juzos que venham a ser emitidos a respeito. A galinha botou um ovo ope-se a a galinha no botou um ovo, independentemente de que algum o diga ou no diga. Existe contradio e identidade no real, independentemente e antes de que um juzo afirme ou negue o que quer que seja a respeito dele. Ou, o que d na mesma: a verdade existe na realidade e no s nos juzos, ou ento no poderia existir nos juzos de maneira alguma. H verdade no fato de que a galinha botou um ovo, h verdade no juzo que o afirma e h verdade, ainda, na relao entre juzo e fato bem como no juzo que afirma a relao entre juzo e fato: a verdade no pode ento estar no fato, nem no juzo nem na relao, mas tem de estar nos trs.

Mais ainda, se est nos trs, tem de estar tambm em algo mais, a no ser que admitamos que um nico fato, o juzo que o afirma e a relao que os une possam, juntos, ser verdadeiros na hiptese de tudo o mais ser falso. Mas este "tudo o mais", que no est contido nem no fato nem no juzo nem na relao, inclui necessariamente a prpria existncia de fatos, bem como os princpios lgicos subentendidos no juzo e na relao. Se no h fatos nem princpios lgicos, inutilmente as galinhas botaro ovos no domnio do no-fato e inutilmente se buscar uma relao entre fato e juzo no domnio do ilogismo. Logo, a verdade de um s fato, de um s juzo e de sua relao subentende a existncia da verdade como domnio que transcende e abrange a um tempo fatos, juzos e relaes.Procurar a verdade no fato, no juzo ou na relao como procurar o espao nos corpos, nas suas medidas e na distncia de um a outro; assim como o espao no est nos corpos, nem nas medidas nem nas distncias, mas corpos, medidas e distncias esto no espao, assim tambm a verdade no est no fato, nem no juzo, nem na relao, mas todos esto na verdade ou no esto em parte alguma, e mesmo este "no estar", se algo significa e no apenas um flatus vocis, tem de estar na verdade.

A verdade no uma propriedade dos fatos, dos juzos ou das relaes: ela o domnio dentro do qual se do fatos, juzos e relaes. 2. A VERDADE UMA FORMA "A PRIORI" DO CONHECIMENTO?

A tentao kantiana aqui praticamente incontornvel. Condio de possibilidade de fatos, juzos e relaes, a verdade efetivamente uma condio a priori. Mas condio a priori da existncia dessas trs coisas ou apenas do seu conhecimento?

Resolve-se este problema de maneira simples e brutal: se dizemos que a verdade uma forma a priori do conhecimento e pretendemos que isto seja verdadeiro, ento o conhecimento tem de estar na verdade e no a verdade no conhecimento, pois o a priori no poderia ser imanente quilo que ele prprio determina. Para ser condio a priori do conhecimento, a verdade tem de ser necessariamente condio a priori de algo mais, que por sua vez no conhecimento e sim objeto dele. O conhecimento, como os fatos, juzos e relaes, est dentro do domnio da verdade, e isto independentemente de considerarmos o conhecimento to-somente no seu contedo eidtico ou como fato: a verdade do conhecido, a verdade do cognoscente e a verdade do conhecer so aspectos da verdade, e no a verdade aspecto de um deles. No h enfim escapatria kantiana. Ou o conhecimento est na verdade ou no est em parte alguma.