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O Problema do Conhecimento Introdução O conhecimento é descrito de numerosas maneiras no seio da epistemologia normativa contemporânea. Alguns dos rótulos mais usados são: conhecimento proposicional, factual, objectual, perceptual, por habilidade, por contacto, por descrição, empírico, a priori, indutivo, potencial (would-be knowledge), fundacional, inferencial, não-inferencial, animal, reflexivo, etc. Estas designações parecem indicar mais o modo como o conhecimento é intrinsecamente ou, em alternativa, algumas das suas propriedades intrínsecas, e menos o seu conteúdo ou o seu objecto. Por outro lado, o conhecimento é frequentemente qualificado de comum, social, informacional, científico, tecnológico, lógico-matemático, moral, religioso, histórico, filosófico, etc. Por sua vez, estas etiquetas parecem derivar a sua razão de ser do conteúdo ou objecto do tipo conhecimento por elas qualificado. Seja como for, perante esta multiplicidade de sentidos da palavra “conhecimento” torna-se difícil apresentar uma elucidação do fenómeno que seja, a um tempo, maximamente abrangente e explicativa. Por exemplo, uma dificuldade que de imediato se coloca é a de compreender se, quando falamos de conhecimento, estamos perante uma complexa teia de conceitos com semelhanças de família, cujos componentes identificam individualmente coisas diferentes, ou se há uma só entidade que manifesta diferentes propriedades. Não parece estar ainda disponível uma resposta clara para esta dificuldade. E essa lacuna dificulta bastante a tarefa de responder ao que chamarei Questão-C, ou seja, a questão ‘O que é o conhecimento?’. Na segunda metade do Século XX e princípio do XXI, o escopo temporal deste artigo, os debates em torno do tema conhecimento incidiram principalmente, mas não apenas, sobre o chamado conhecimento proposicional, grosso modo, conhecimento de uma proposição verdadeira, como por exemplo a proposição a neve é branca. Em grande medida, a discussão em torno do conhecimento fez-se em três vertentes: a epistemológica, a conceptual e a linguística. Na primeira vertente discutiu-se a natureza e propriedades do conhecimento. Na segunda discutiu-se o próprio conceito de conhecimento e a sua relação com outros conceitos de conhecimento. Na terceira vertente discutiu-se principalmente a estrutura logico-linguística e o comportamento semântico de expressões que relatam conhecimento ou servem para fazer atribuições de conhecimento (ou de ignorância) a um qualquer agente cognitivo. Não destrinçando ou esmiuçando isoladamente cada uma destas três vertentes, o presente artigo faz 1

O Problema Do Conhecimento Prova 4

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teoria do conhecimento

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  • O Problema do Conhecimento

    Introduo

    O conhecimento descrito de numerosas maneiras no seio da epistemologia normativa

    contempornea. Alguns dos rtulos mais usados so: conhecimento proposicional, factual,

    objectual, perceptual, por habilidade, por contacto, por descrio, emprico, a priori, indutivo,

    potencial (would-be knowledge), fundacional, inferencial, no-inferencial, animal, reflexivo,

    etc. Estas designaes parecem indicar mais o modo como o conhecimento intrinsecamente

    ou, em alternativa, algumas das suas propriedades intrnsecas, e menos o seu contedo ou o seu

    objecto. Por outro lado, o conhecimento frequentemente qualificado de comum, social,

    informacional, cientfico, tecnolgico, lgico-matemtico, moral, religioso, histrico, filosfico,

    etc. Por sua vez, estas etiquetas parecem derivar a sua razo de ser do contedo ou objecto do

    tipo conhecimento por elas qualificado. Seja como for, perante esta multiplicidade de sentidos

    da palavra conhecimento torna-se difcil apresentar uma elucidao do fenmeno que seja, a

    um tempo, maximamente abrangente e explicativa. Por exemplo, uma dificuldade que de

    imediato se coloca a de compreender se, quando falamos de conhecimento, estamos perante

    uma complexa teia de conceitos com semelhanas de famlia, cujos componentes identificam

    individualmente coisas diferentes, ou se h uma s entidade que manifesta diferentes

    propriedades. No parece estar ainda disponvel uma resposta clara para esta dificuldade. E essa

    lacuna dificulta bastante a tarefa de responder ao que chamarei Questo-C, ou seja, a questo

    O que o conhecimento?.

    Na segunda metade do Sculo XX e princpio do XXI, o escopo temporal deste artigo, os

    debates em torno do tema conhecimento incidiram principalmente, mas no apenas, sobre o

    chamado conhecimento proposicional, grosso modo, conhecimento de uma proposio

    verdadeira, como por exemplo a proposio a neve branca. Em grande medida, a discusso

    em torno do conhecimento fez-se em trs vertentes: a epistemolgica, a conceptual e a

    lingustica. Na primeira vertente discutiu-se a natureza e propriedades do conhecimento. Na

    segunda discutiu-se o prprio conceito de conhecimento e a sua relao com outros conceitos

    de conhecimento. Na terceira vertente discutiu-se principalmente a estrutura logico-lingustica

    e o comportamento semntico de expresses que relatam conhecimento ou servem para fazer

    atribuies de conhecimento (ou de ignorncia) a um qualquer agente cognitivo. No

    destrinando ou esmiuando isoladamente cada uma destas trs vertentes, o presente artigo faz

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  • porm incurses em todas elas, de modo a fornecer uma perspectiva tanto quanto possvel

    abrangente do problema entre mos.

    Prope-se um roteiro composto por duas seces. Na primeira esclarecem-se alguns pontos

    preliminares e enquadra-se luz da epistemologia normativa o problema levantado pela

    Questo-C. Na seco 2 revisitam-se algumas das mais salientes tentativas de responder a essa

    questo.

    Seco 1

    Resumo

    Nesta seco introduzem-se alguns pontos preliminares que visam emoldurar histrica e

    conceptualmente a Questo-C.

    1.1. Redutibilidade e inclusibilidade

    Embora exista uma tendncia na epistemologia normativa para tomar o conhecimento

    proposicional como o tipo de conhecimento mais inclusivo, no contudo pacfico que todos

    os tipos de conhecimento possam ser reduzidos a esse tipo de conhecimento. Considere-se, por

    exemplo, o caso dos jovens seres humanos que ainda no possuem o arcaboio conceptual e

    lingustico suficiente a ponto de poderem entender ou formular proposies. Seria talvez

    excessivo negar que eles possuem conhecimento, sendo no entanto claro que esse conhecimento

    no pode ser conhecimento proposicional, uma vez que este parece exigir um domnio

    lingustico e conceptual que no possuem.

    A dificuldade em reduzir todos os tipos de conhecimento ao proposicional igualmente

    evidenciada pelo debate entre os defensores do intelectualismo (Stanley & Williamson 2004;

    Stanley 2011) e os paladinos do anti-intelectualismo (No 2005, Williams 2006, Cath 2009,

    Zardini 2013). Famosamente iniciado por Ryle (1949), um anti-intelectualista, o debate centra-

    se na possibilidade de o conhecimento-de-como (acima designado por conhecimento por

    habilidade) ser redutvel ao conhecimento proposicional. Os intelectualistas defendem essa tese

    e os anti-intelectualistas rejeitam-na. Independentemente de quem tenha ou no razo, o prprio

    debate revela que a possibilidade de reduo no bem-vista por muitos. Isso parece ser

    suficiente para no se aceitar precipitadamente a tese da redutibilidade.

    No obstante haver resistncias fortes tese de que o conhecimento proposicional

    totalmente inclusivo, tanto quanto podemos afirmar no h objees de monta tese de que

    um dos mais inclusivos, ou mesmo tese de que o mais inclusivo. De modo que, se assim,

    for, justifica-se que o coloquemos neste artigo como o alvo preferencial da Questo-C.

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  • 1.2. Formatos de resposta Questo-C

    As tentativas de definir o conhecimento costumam apresentar-se em um de dois formatos:

    (i) anlises conceptuais e (ii) elucidaes nominais (que no aspiram ao estatuto de anlise

    conceptual). As tentativas do tipo (i) procuram estabelecer identidades e equivalncias

    extensionais entre o definiendum conhecimento e um dado definiens, tal como por exemplo

    se estabelece a identidade e a equivalncia extensional entre o definiendum gua e o definiens

    H2O. As tentativas do tipo (ii) no reclamam estabelecer esta identidade ou equivalncia,

    limitando-se a clarificar o fenmeno e o seu conceito custa de certas ideias que, objectiva ou

    apenas intuitivamente, esto associadas a esse fenmeno e ao seu conceito.

    Parece todavia haver um conjunto padro de requisitos tericos que tm de ser satisfeitos

    por todas as tentativas de resposta Questo-C. Zagzebsky (1999, p. 95) elenca-os. Uma

    definio do conhecimento (1) no pode ser ad-hoc, (2) negativa, (3) circular, (4) deve ser breve

    e precisa, e (5) os conceitos no definiens devem ser menos obscuros do que o conceito que

    definem. Alegadamente, definies que no satisfaam os preceitos (1) a (6) no so boas

    explicaes do conhecimento.

    1.3. Crena (Ver entrada Crena)

    Tradicionalmente aceite que uma das condies necessrias para X saber que p X

    acreditar que p. Alegadamente, X no pode saber que a neve branca se no acreditar que a

    neve branca. Assim, diz-se, a condio de crena tem de ser satisfeita para um qualquer X ter

    conhecimento.

    Condio 1: X acredita que p

    A necessidade desta condio no absolutamente pacfica (Radford 1966).

    1.4. Verdade (Ver entrada Verdade)

    No h conhecimento sem que aquilo que alvo de crena seja o caso. Por exemplo, no

    se pode saber que a neve branca se a neve for azul, e no se pode saber que as rbitas dos

    planetas do sistema olhar so circulares se forem elpticas. Esta intuio (sugerida por

    Parmnides, Plato e muitos outros que lhes sucederam) amplamente aceite

    contemporaneamente e traduz-se em mais uma condio necessria:

    Condio 2: verdade que p

    Outra formulao tpica da condio 2

    Condio 2*: p

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  • Deve-se porm notar que a noo de verdade to ou mais difcil de enquadrar e

    conceptualizar do que a prpria noo de conhecimento. E a existncia de muitas teorias rivais

    acerca da verdade no pode ser omitida. Em todo caso, os epistemlogos tendem a usar uma

    noo genrica e operacional de verdade, pressupondo com isso, em regra, uma teoria

    correspondentista da mesma (i.e., o facto f o fazedor de verdade da proposio p).

    1.5. A relao de suporte

    Pode o conhecimento ser apenas crena verdadeira? Suponha-se que X despertou de um

    sonho no qual JFK fora assassinado. Como X confia muito (talvez demasiado) no poder

    premonitrio dos seus sonhos, passa a acreditar que JFK morreu. A essa mesma hora, JFK

    assassinado. Essa informao no est contudo disponvel para X. Segue-se portanto que X

    acredita que JFK morreu e isso verdade. As duas condies necessrias para o conhecimento

    descritas at este momento so satisfeitas, mas no se pode atribuir a X o conhecimento acerca

    da morte de JFK. Assim porque a evidncia que X possui para acreditar na morte de JFK

    insuficiente. Isto significa que no basta haver crena e verdade para haver conhecimento. Alm

    disso ter de existir uma relao de suporte adequada entre a crena e aquilo que contribui para

    a formar e sustentar (Neta 2009).

    1.6. Justificao

    A exigncia clssica de suporte adequado das nossas crenas manifesta um conjunto de

    desideratos epistmicos h muito identificados: evitar o erro e a iluso, procurar activamente a

    verdade, acreditar apenas no que racional e plausvel, so disposies com outputs

    epistmicos relevantes que devem ser objectivamente abraadas por todo aquele que pretende

    saber. John Locke e Ren Descartes encabeam a lista dos defensores clssicos da ideia de que

    a aquisio de conhecimento exige que o agente faa trabalho epistmico relevante. Com eles,

    a noo de conhecimento passa a estar associada ideia de crena justa ou justificada.

    Contemporaneamente, pensadores como Bonjour (1985), Hack (2001) e Russell (2011)

    defendem a necessidade de uma ligao estreita entre a responsabilidade epistmica de um

    agente e a justificao das suas crenas. Esta posio apelidada de deontologismo epistmico,

    ou teoria responsabilista da justificao, e supe que possvel um agente controlar

    voluntariamente o processo de formao das suas crenas. Esta hiptese de controle voluntrio

    est porm longe de recolher consenso (vide Alston 1989, 2007).

    Em todo o caso, claramente inspirados pela tradio lockiana e cartesiana, filsofos

    contemporneos como Lewis (1946), Ayer (1956) e Chisholm (1957, 1982) parecem indicar a

    seguinte como uma condio necessria para o conhecimento:

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  • Condio 3: X est justificado em acreditar que p

    Esta condio reclama que o agente que deve estar justificado. Todavia, parece ser

    possvel um agente possuir justificao para acreditar que p (justificao situacional) sem que

    a sua crena esteja justificada (justificao doxstica), simplesmente porque esse agente no

    possui essa crena (de forma ocorrente, embora possa t-la disposicionalmente). Para acomodar

    esta importante distino, altera-se em regra a condio 3 para a seguinte frmula:

    Condio 3*: a crena de X que p est justificada

    A noo de justificao emergente na condio 3* caracterizada de muitas maneiras na

    literatura (Fumerton 2002). Alm das trs caracterizaes descritas acima, temos ainda as

    seguintes: justificao epistmica, racional, interna, externa, falvel, infalvel, etc (Ver entrada

    justificao). Adiante veremos a importncia de algumas destas caracterizaes para a Questo-

    C.

    1.7. A Definio Tradicional do Conhecimento

    A chamada Definio Tradicional do Conhecimento (DTC), ou anlise tripartida do

    conhecimento (referindo-se esta anlise por vezes entidade e por outras ao seu conceito),

    sugere que X sabe que p se e somente se as trs condies acima descritas forem satisfeitas:

    Condio 1: X acredita que p

    Condio 2: p

    Condio 3: A crena de X que p est justificada

    (Definio Tradicional do Conhecimento)

    Se a DTC estiver em ordem, o conhecimento crena verdadeira justificada. A cpula

    indicar neste caso a equivalncia extensional dos conceitos conhecimento e crena

    verdadeira justificada. O conhecimento pois, segundo a DTC e no sentido identitrio da

    expresso, crena verdadeira justificada.

    1.8. O Problema de Gettier

    A DTC um aglomerado de quatro teses filosficas. As trs primeiras sugerem a

    necessidade de cada condio que a prpria definio estabelece individualmente, ao passo que

    a quarta indica a suficincia conjunta dessas trs condies. Cada uma destas teses pode ser

    questionada. Por exemplo, Sartwell (1991) famosamente rejeita a tese da necessidade da

    justificao quando prope que o conhecimento apenas crena verdadeira. E com o muito

    discutido exemplo do estudante que no exame acerta por sorte na resposta correcta questo

    que lhe colocada, sem contudo acreditar nessa resposta, Radford (1966) contesta a tese da

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  • necessidade da crena. No tendo muitos seguidores, estas perspectivas tm contudo o mrito

    de mostrar que as teses da necessidade podem ser disputadas e no so auto-evidentes.

    Mas o verdadeiro desafio DTC, tanto do ponto de vista histrico como conceptual,

    consiste na falsificao e rejeio da sua quarta tese, a da suficincia das trs condies.

    Historicamente, o problema da suficincia parece ter sido exposto pela primeira vez, de forma

    intencional e explcita, por Gettier (1963). Conceptualmente, Gettier apresentou dois contra

    exemplos quarta tese da DTC que, tendo em conta uma vasta maioria de opinies, falsificam

    essa tese e, por conseguinte, falsificam a prpria DTC. Para ilustrar o argumento de Gettier,

    recupera-se de seguida, com algumas alteraes, o seu segundo contra-exemplo.

    Suponha-se que Smith tem boa evidncia para acreditar na seguinte proposio:

    (A) Jones tem um Ford

    Embora Smith possua evidncia para acreditar em (A), essa proposio falsa; pois ainda que

    Jones conduza actualmente um Ford alugado e tenha em tempos tido um Ford, agora no

    proprietrio de um carro dessa marca. Ignorando Smith a falsidade de (A), uma vez que tem

    evidncia para acreditar que (A) verdadeira (que Jones conduz um Ford, que em tempos teve

    um Ford, etc) infere a seguinte proposio:

    (C) Jones tem um Ford ou Brown est em Barcelona

    Note-se que Smith no faz ideia de onde possa estar o seu amigo Brown nesse momento, mas

    ainda assim aceita que (C) verdadeira, porque aceita que (A) verdadeira, passando pois a

    acreditar em (C). Estranhamente, o palpite de Smith acerca da localizao de Brown est certo,

    pois embora Smith o ignore, Brown est de facto em Barcelona nesse instante. Assim, (C)

    verdadeira, porque Brown est em Barcelona (uma disjuno s falsa se ambos os disjuntos

    o forem) e est justificada, porque embora (A), que um disjunto de (C), seja falsa, ela est

    justificada pela evidncia que Smith possui para acreditar nela, e essa justificao que Smith

    tem para (A) transmite-se (principio do fecho para a justificao) para (C). Smith tem pois uma

    crena verdadeira e justificada que (C), masintuitivamente, pelo menosSmith no sabe que

    (C).

    Os contra-exemplos de Gettier e similares parecem sustentar-se em duas intuies

    (Zagzebski 1999, pp. 99-101). A primeira a de que o conhecimento incompatvel com o

    modo acidental como certas crenas so verdadeiras. Este o problema do acaso epistmico. A

    segunda intuio a de que no basta as crenas candidatas a conhecimento estarem justificadas

    para o serem, mas necessrio, alm disso, que estejam apropriadamente sustentadas. Esse o

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  • problema da natureza e alcance da evidncia e de como ela suporta aquilo em que um agente

    cognitivo acredita

    A chamada Indstria-Gettier uma longa e multifacetada discusso filosfica em torno do

    Problema de Gettier e do modo como deve ser solucionado (Huemer 2001, p. 346). Por exemplo,

    Rodrigues (2012, p. 28) prope uma tipologia de respostas ao Problema de Gettier. Nela

    constam duas categorias maximamente inclusivas, as respostas de carcter positivo e as de

    carcter negativo. No interior do primeiro conjunto encontramos as seguintes vias. (1) a

    demisso da fora dos casos Gettier e a respectiva afirmao da validade da DTC (Pailthorp

    1969). (2) a soluo de Sartwell (ver acima). (3) Alterar o prprio conceito de conhecimento de

    modo acomodar os casos Gettier (Hetherington 1999). (4) Reforar a DTC acrescentando-lhe

    uma ou mais condies (Lehrer e Paxson, Seco 2.2. deste artigo). (5) Substituir a condio

    de justificao por outra ou outras mais eficazes que evitem contra-exemplos.

    No interior do segundo conjunto de respostas encontramos a duas estratgias. A primeira

    passa por questionar a formulao do prprio Problema de Gettier e as intuies que lhe

    subjazem (Weatherson 2003). A segunda passa por demitir a possibilidade de soluo do

    problema (Williamson 2000).

    Seco 2

    Resumo

    Nesta seco apresentam-se sucintamente algumas das mais salientes tentativas

    contemporneas de responder positiva ou negativamente Questo-C, com nfase no

    tratamento dos problemas do acaso epistmico e da sustentao das crenas, os quais motivam

    os principais desideratos epistmicos subjacentes a essas tentativas.

    2.1. Justificao sem falsidades

    Numa das primeiras respostas aos artigo de Gettier, Clark (1963) sugere que o

    conhecimento crena verdadeira justificada cujo processo de formao no contm, ou

    depende de, falsidades, algo que no sucedia nos casos apresentados por Gettier. Ou seja, X

    sabe que p se, e s se,

    Condio 1: X acredita que p

    Condio 2: p

    Condio 3: A justificao da crena de X que p no depende de falsidades

    (Ausncia de falsidades)

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  • Esta refinao da DTC, aparentemente solucionadora, porm rejeitada por alguns crticos

    (e.g., Saunders & Champawat 1964), alegadamente por ser demasiado forte. Por exemplo,

    Rozeboom (1967) prope o seguinte caso de uma crena que, sendo conhecimento, contm no

    entanto falsidades no seu processo de formao. Num domingo de tarde, a senhora Silva v o

    carro dos seus vizinhos, a famlia Pereira, sair da garagem. Ela sabe que os Pereira saem para

    um passeio no campo todos os domingos tarde. Uma vez que senhora Silva tambm acredita

    quer todos os Pereira esto no carro nesse dia, ela infere correctamente que a senhora Pereira

    no est em casa a essa hora, ficando a sab-lo. No obstante, falso que todos os Pereira

    estejam no carro nesse dia, pois uma das crianas est na festa de aniversrio de um amigo.

    Assim sendo, h uma falsidade na cadeia de sustentao da crena da senhora Silva. Essa

    falsidade a de que todos os Pereira esto no carro nesse dia. Mas o facto de essa cadeia de

    sustentao possuir essa falsidade no nos inibe de atribuir senhora Silva o conhecimento de

    que a Senhora Pereira no est em casa nesse dia.

    2.2. Infalibilidade da justificao

    Lehrer e Paxson (1969) propem que o conhecimento (no-inferencial) crena verdadeira

    infalivelmente justificada. Para eles, nos casos Gettier a justificao falvel porque h uma

    proposio verdadeira que anula a justificao da crena de X. Assim, Lehrer e Paxson propem

    que X tem conhecimento que p se, e s se,

    Condio 1: p

    Condio 2: X acredita que p

    Condio 3: h uma proposio r que justifica completamente X em acreditar que p e no

    existe qualquer proposio q que anule esta justificao

    Condio 4: uma proposio q invalidar a proposio/justificao r que X tem para

    acreditar que p se (a) q verdadeira e (b) a conjuno de p e q no justifica completamente

    S em acreditar que p (invalidante da justificao)

    (Infalibilidade da justificao)

    Importa sublinhar que Lehrer e Paxson corrigem a sua prpria noo de invalidante da

    justificao porque pensam que ela demasiado exigente, uma vez que permite que certas

    proposies verdadeiras possam invalidar uma justificao quando no tm legitimidade para

    o fazer. O caso Tom Grabit, avanado pelos prprios, o paradigma dessa ilegitimidade.

    Suponha-se que X v Tom a sair da biblioteca com um livro escondido no casaco, passando

    assim a acreditar justificadamente que (A) Tom furtou o livro. Contudo, a me de Tom, uma

    mentirosa compulsiva e recorrente, afirma que quem furtou o livro foi o irmo gmeo de Tom,

    John, um cleptomanaco, o que falso (vamos supor que John no estava na biblioteca nessa

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  • ocasio). Considerando a definio de infalibilidade da justificao, a proposio verdadeira

    (B) A me de Tom disse que quem roubou o livro foi o seu irmo gmeo aparentemente

    um invalidante da justificao que X tem para acredita que A, uma vez que B verdadeira e a

    sua conjuno com A impede que X esteja completamente justificado em acreditar que A.

    Lehrer & Paxson alegam no entanto que B no realmente um invalidante da justificao que

    X tem para a sua crena que A; porque, apesar de verdadeira, essa proposio no est ela

    prpria infalivelmente justificada, uma vez que h uma proposio verdadeira C, a me de

    Tom uma mentirosa recorrente, tal que a sua conjuno com B impede que X esteja

    completamente justificado em acreditar que B, etc.

    Embora atractiva, a definio de infalibilidade da justificao foi sendo rejeitada. Por

    exemplo, Lycan & McCall (1974) argumentam que embora esta anlise disponha condies

    necessrias para o conhecimento, ela colapsa na prpria DTC, sendo ipso facto redundante e

    insuficiente (porque a DTC j o era).

    2.3. Causalidade epistmica

    Um problema srio que afeta as crenas gettierizadas a desconexo causal entre os

    fazedores de verdade (plausivelmente, factos) que tornam essas crenas verdadeiras e essas

    mesmas crenas. Por exemplo, no contra-exemplo de Gettier acima exposto no h qualquer

    conexo causal entre o facto de Brown estar em Barcelona e a crena de Smith de que Brown

    est em Barcelona. pois por mero acidente que essa crena verdadeira. As teorias causais

    (Goldman, 1967) defendem que a condio de justificao da DTC deve ser substituda (ou

    complementada) por uma condio que imponha esse vnculo causal entre facto e crena. Assim,

    genericamente, X sabe que p se e s se

    Condio 1: X acredita que p

    Condio 2: p

    Condio 3: p a causa da crena de X ou est causalmente ligado a essa crena

    (Causalidade epistmica)

    As teorias causais no esto isentas de crtica. Por exemplo, Shope (2002, p. 33) refere-se

    ao modo pouco plausvel como a condio de causalidade lida com algumas proposies

    universais, como por exemplo, a proposio o ferro magntico. Sendo uma crena nesta

    proposio um forte candidato a conhecimento, no talvez razovel pensar que X acredita

    nela por causa do facto de o ferro ter propriedades magnticas, mas porque aprendeu na escola

    ou com um amigo cujo testemunho fivel, etc. A rplica dos defensores do desiderato da

    ligao causal ser talvez que, no caso da proposio acima, no sendo as propriedades

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  • magnticas a causa directa da formao da crena de X, esse facto indirectamente o fazedor-

    de-verdade que torna a crena verdadeira, e que, por isso mesmo, a supracitada conexo causal

    necessria. Mas este tipo de respostas esbarra com as habituais chamadas de ateno dos

    crticos das teorias causais para o problema das cadeias causais desviantes. Por exemplo,

    Plantinga (1993) defende que Eu no acredito que B com base em A apenas porque A causa a

    minha crena que B (p. 8), apoiando esta afirmao com o seguinte caso:

    Subitamente, ao ver Slvia, eu formo a crena de que estou a v-la; fico por isso agitado

    e deixo cair a minha chvena de ch, queimando a minha perna. Formo ento a crena de

    que a minha perna di; mas embora a minha primeira crena seja (em parte) a causa da

    segunda, no o caso que eu aceite esta ltima com base na evidncia fornecida pela

    primeira. (nota 8)

    O caso parece mostrar um desfasamento epistmico entre a causa primeira da crena e a

    evidncia que realmente contribui para a sua formao. Se assim for, o vnculo causal pode no

    ser uma condio necessria para o conhecimento.

    2.4. Rastreando a verdade, segurana epistmica e aptido cognitiva

    O alcanar da verdade tido como um dos principais bens epistmicos. Uma das intuies

    recorrentes na Indstria-Gettier e afins a de que alcanar a verdade pode no ser suficiente

    para o conhecimento se o modo como a ela se chega for meramente acidental. Algumas

    tentativas de responder Questo-C pem o foco neste importante aspecto. Por exemplo,

    Dretske (1971) prope que X sabe que p se, e s se,

    Condio 1: X tem razes conclusivas, r, para (X acreditar que) p

    Condio 2: se r uma razo conclusiva para p, ento no seria o caso que r se no fosse

    o caso que p

    (Razes conclusivas)

    Nozick (1981) sugere uma definio inspirada por um desiderato semelhante mas que

    diferente na forma. Para ele X sabe que p se, e s se,

    Condio 1: X acredita que p

    Condio 2: p

    Condio 3: X no acreditaria que p se no-p

    Condio 4: X acreditaria que p apenas se p

    (Sensibilidade epistmica modal)

    As propostas diferem. A de Dretske sugere que a evidncia (as razes) que tem de rastrear

    a verdade. A de Nozick sugere que so as crenas que tm de rastrear a verdade. Nos dois casos

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  • a noo de rastreamento estabelecida com recurso a condies que assentam em intuies

    modais e que tentam eliminar a possibilidade de acaso epistmico que governa todos aqueles

    casos de crena que no podem ser considerados casos de conhecimento.

    Muitos contra-exemplos tipo Gettier parecem desaparecer se estas condies forem

    satisfeitas. Note-se que a crena de Smith de que Jones tem um Ford ou Brown est em

    Barcelona no , segundo a Condio 2 de Dretske, sustentada por razes conclusivas. Smith

    continuaria a ter as razes (no conclusivas) para a sua crena mesmo se Brown no estivesse

    em Barcelona, pois essas razes so as entregues pela evidncia (enganadora) que Smith tem

    para sustentar a proposio (falsa) que Jones tem um carro. Logo, no tendo razes conclusivas,

    Smith no teria conhecimento.

    Algo semelhante pode ser afirmado a respeito da definio de Nozick: Smith continuaria a

    ter a sua crena mesmo se ela fosse falsa. Falham as condies 3 e 4. Por conseguinte, Smith

    no tem conhecimento mesmo tendo uma crena verdadeira justificada.

    Como tantas outras, as definies de Dretske e Nozick so alvo de controvrsia. Descreve-

    se de seguida um alegado contra-exemplo (ligeiramente modificado) de Pritchard (2007)

    suficincia dessas condies. X forma a crena de que esto 23C no interior de uma sala porque

    olha para um termmetro (na sala) que marca essa temperatura. A crena de X verdadeira

    porque essa de facto a temperatura ambiente na sala. Mas sem que X possa estar ciente disso,

    o termmetro s marca a temperatura certa porque um brincalho se diverte a introduzir esse

    valor no termmetro (cujo sensor de temperatura est avariado), isto sem que X se aperceba.

    Supondo agora que o brincalho insere o valor certo de temperatura no termmetro de cada vez

    que acontecer uma variao de temperatura na sala, segue-se que X ter sempre razes

    conclusivas para acreditar (satisfazendo a definio de Dretske) e as suas crenas iro, nestas

    condies, rastrear a verdade (satisfazendo a definio de Nozick). Contudo, no nada claro

    que se possa atribuir a X conhecimento acerca da temperatura da sala, pois algo de estranho

    ocorre no seu processo de formao de crenas. Especificamente, o sucesso epistmico no

    pode ser imputado ao trabalho epistmico feito pelo agente. Se o contra-exemplo estiver correto,

    embora as crenas de X relativas temperatura da sala satisfaam as definies de Dretske e

    Nozick, elas no so conhecimento.

    Outro problema com a definio de Nozick o de que concede demasiado ao cepticismo

    (Dancy 1985). Se X fosse um crebro numa cuba, uma hiptese que no logicamente

    contraditria ou metafisicamente impossvel, nunca poderia satisfazer a condio (iii), pois as

    suas crenas no poderiam rastrear a verdade (e.g., X continuaria a acreditar que est a comer

    macarrone no restaurante mesmo se no estivesse e essas percepes e sensaes fossem

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  • implantadas directamente no seu crebro por mquinas maldosas). Assim, se X fosse um

    crebro numa cuba, nunca poderia saber, por si s, que no o era. O cptico vale-se naturalmente

    da definio de Nozick para dizer que no podemos asseverar que no somos crebros em cubas.

    O truque neo-mooreano para rejeitar esta pretenso do cptico e definir o conhecimento

    passa por propor o seguinte esquema:

    Condio 1: X tem, no mundo actual, a crena, C, que p

    Condio 2: C verdadeira no mundo actual

    Condio 3: C no poderia facilmente ter sido falsa (i.e., ser falsa nos mundos possveis

    relevantes mais prximos do mundo actual)

    (Segurana epistmica)

    Considere-se, por exemplo, a crena de Smith de que Jones tem um Ford ou Brown est em

    Barcelona. Como vimos, essa crena (acidentalmente) verdadeira, mas poderia facilmente ter

    sido falsa, pois em mundos possveis prximos do mundo actual Brown no est em Barcelona

    mas em L'Hospitalet de Llobregat. A condio 3 no satisfeita e assim se explica por que

    razo Smith tem crena verdadeira que no conhecimento.

    A condio 3 serve tambm para mostrar por que razo casos como o do celeiro (Goldman

    (Ginet) 1976), nos quais no h aparentemente qualquer problema com a evidncia de um

    agente ou com o modo como adquirida atravs do correcto exerccio das suas virtudes

    intelectuais e cognitivas (Plantinga, 1993a/b; Sosa 2007), no podem contar como casos de

    conhecimento. O caso do celeiro pode ser resumido da seguinte maneira: guiando o seu

    automvel por uma estrada no campo, Henrique depara-se com um conjunto de fachadas de

    celeiros que da perspectiva de quem passa na estrada so indistinguveis de celeiros reais. Entre

    essas fachadas h porm um celeiro real. Vendo-o, Henrique passa a acreditar que est perante

    um celeiro. Esta crena verdadeira e est suportada por boa evidncia (perceptual), mas,

    segundo alguns, no conhecimento, precisamente porque poderia muito facilmente ter sido

    falsah um mundo possvel prximo do actual onde o celeiro real no existe, sendo nesse

    mundo substitudo por mais uma fachada de celeiro.

    2.5. Alternativas relevantes e adequao semntica

    O caso do celeiro e outros, como o famoso caso da mula no zoolgico habilmente pintada

    para se assemelhar a uma zebra (Drestske 1970), parecem impor uma exigente clusula para o

    conhecimento:

    X sabe que p se, e s se, X consegue eliminar todas as alternativas relevantes a p

    (Condio exigente)

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  • Dretske e outros (Stine 1976) indicam como hiptese de trabalho que

    X sabe que p se no h qualquer proposio verdadeira q, contraditria a p, que falseie p

    (Interpretao da condio exigente)

    A condio exigente geralmente alicerada em duas teses. Por um lado, a tese de que as

    limitaes cognitivas prprias dos seres humanos no lhes permitem, na maior parte dos casos,

    eliminar todas as alternativas relevantes quilo em que acreditam. Por outro lado a tese de que

    o conhecimento no fechado sob implicao lgica (Dretske 2006): X pode saber que p, saber

    que p implica que q, mas no saber que q (impenetrabilidade dos operadores epistmicos).

    A respeito da primeira tese, Lewis (1996) mapeia algumas regras que alegadamente ditam

    quais as alternativas que podem ser seguramente ignoradas e quais as que no podem. O

    objetivo do exerccio reduzir ao mximo o nmero de alternativas relevantes que se colocam

    a cada proposio passvel de ser conhecida, evitando-se assim o ceticismo e substituindo-o

    pelo falibilismo, um mal menor. Mas o prprio Lewis reconhece (ironicamente) que o simples

    facto de as regras mencionarem algumas alternativas impede que estas ltimas possam ser

    seguramente ignoradas. A concluso a que chega a de que o conhecimento um fenmeno

    esquivo, principalmente quando mencionamos, no interior da epistemologia, o que pode coloc-

    lo em risco.

    A respeito da segunda tese, a motivao para rejeitar a aplicao universal do princpio do

    fecho emana, segundo Dretske (2006, p. 7), da necessidade de se bloquear a inferncia

    subjacente a argumentos cpticos, nomeadamente a seguinte premissa:

    Se X no sabe que p, ento no sabe que q

    Se X sabe que tem mos, ento sabe que no um crebro numa cuba (porque sabe que ter

    mos implica no ser um crebro numa cuba). Mas, no sentido inverso da demonstrao, o

    usado pelo argumento cptico, se X no sabe que no um crebro numa cuba ento no sabe

    que tem mos (uma vez que sabe que no saber que no um crebro numa cuba implica que

    no possa saber que tem mos). No entanto, segundo Dretske, a excluso do princpio do fecho

    aplica-se somente quando a passagem tem consequncias fortes para a posio cognitiva do

    agente, como quando este tem que garantir que no um crebro num cuba ou quando o cptico

    quer mostrar que ele o ou pode s-lo.

    Hawthorne (2006) rejeita a eliminao do princpio do fecho porque ela implica

    consequncias bastante implausveis, como por exemplo a invalidade de algumas inferncias

    feitas com recurso regra de introduo da conjuno. E segundo De Rose (1995), a estratgia

    de Dretske leva s chamadas asseres abominveis, como por exemplo, Eu sei que tenho

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  • mos (conhecimento comum) mas no sei que no sou um crebro numa cuba (conhecimento

    com fortes consequncias). De Rose sugere como alternativa o seu contextualismo semntico,

    segundo o qual o valor de verdade de uma mesma atribuio de conhecimento (e.g., X sabe que

    no um crebro numa cuba) pode variar em funo dos standards epistmicos que governam

    os contextos nos quais essas atribuies so feitas.

    2.6. Conhecimento primeiro

    A resposta de Williamson (2000) Questo-C rompe com as posies analticas

    tradicionais. Esta resposta sugere que o conceito de conhecimento inalisvel em conceitos

    mais primitivos e mais explicativos. O conceito de conhecimento vem primeiro na ordem da

    explicao ( primitivo) e o conhecimento no pode ser decomposto em partes como crena

    verdade e justificao, ou outras quaisquer, uma vez que nenhuma anlise conceptual do

    conhecimento poderia exaurir satisfatoriamente a extenso desse conceito. Assim se explica,

    segundo Williamson, a razo por que todas as tentativas no interior da Indstria-Gettier para

    responder Questo-C com uma definio analtica falharam. A alternativa sugerida por

    Williamson a de que o conhecimento um estado mental factivo, o epistemicamente mais

    inclusivo, sendo linguisticamente determinado por um operador sinttico: sabe que p

    Tendo a primazia na ordem da explicao, o prprio conceito de conhecimento que elucida

    os conceitos de crena verdadeira justificada e outros do mesmo gnero, como por exemplo o

    conceito de evidncia, com o qual estabelecida uma identidade: s o conhecimento evidncia.

    2.7. Outras ideias

    Outras respostas interessantes Questo-C passam por apelar a intuies divergentes sobre

    o conhecimento (Weatherson 2003) ou por enfraquecer o conceito de conhecimento de maneira

    a que possa acomodar o Problema de Gettier (Hetherington 1999, 2011) ou para ver o conceito

    de conhecimento como uma famlia de conceitos (Saunders & Champawat 1964)

    Weatherson sugere que h um conflito de intuies dificilmente solucionvel a respeito do

    Problema de Gettier. Crucialmente, defende que os proponentes da falsificao da DTC tm

    entre mos o nus de demonstrar que a intuio de que DTC falsa melhor do que a intuio

    de que o conhecimento , pelo menos numa grande maioria de casos, apenas crena verdadeira

    justificada. O caso ilustrado a partir de estudos empricos que revelam intuies divergentes

    acerca do Problema de Gettier tidas por diferentes pessoas em diferentes zona do Globo e

    inseridas em diferentes contextos scio-culturais. Segundo o autor, existe uma amostra

    significativa de pessoas que tm a intuio de que os casos Gettier so, apesar de tudo, casos

    de conhecimento.

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  • Hetherington (1999) defende que os casos Gettier e afins (pelo menos os mais bsicos)

    devem ser admitidos como casos de um tipo especial de conhecimento: conhecimento failvel.

    So casos nos quais o agente tem conhecimento mas esteve muito perto de no ter (mais uma

    vez, discute-se se estes casos esto numa zona conceptual cinzenta que circunda o conceito de

    conhecimento). X sabe que p quando as trs condies da DTC so satisfeitas mas uma dessas

    condies poderia facilmente no ter sido satisfeita. Assim, X sabe failivelmente que p se X

    acredita justificadamente que p e p verdadeira no mundo actual (@), mas em pelo menos um

    mundo possvel prximo de @ uma das trs condies necessrias para X saber que p no

    satisfeita. Por exemplo, no mundo prximo de @, X acredita justificadamente que p mas

    falso que p (no satisfeita a condio de verdade); ou no mundo prximo de @ verdade

    que p e X est justificado em acreditar que p, mas X no acredita que p (no satisfeita a

    condio de crena); ou ainda, no mundo prximo de @, X acredita que p e p verdadeira

    mas a crena de X que p no est justificada (no satisfeita a condio de justificao).

    Saunders & Champawat (1964) sugeriram que os contra-exemplos de Gettier e a

    problemtica a eles associada so reveladores de que o conceito de conhecimento uma teia de

    uma teia de entidades tericas que partilham semelhanas de famlia, devendo esta expresso

    ser lida luz da clebre proposta de Wittgenstein (1953, 65-67). Lycan (2006) recusa no

    entanto que conhece ou sabe e o conceito de conhecimento satisfaam as duas estruturas que

    a noo de famlia de semelhanas poderia indicar com respeito ao conhecimento: a estrutura-

    paradigma, por um lado, e a estrutura-cruzamento, por outro.

    Quanto estrutura-paradigma Lycan define-a do seguinte modo: y satisfaz o conceito X, e

    portanto um x real, puro, absoluto, etc., se e s se exibe todas propriedades desse conceito X.

    Se, mesmo no exibindo todas essas propriedades, z exibe no entanto suficientes propriedades

    do conceito X, ento z pertence, conjuntamente com outros candidatos nas mesmas condies,

    a uma famlia com semelhanas cujos elementos partilham o paradigma X. Para Lycan,

    candidatos a elementos da estrutura paradigma conhecimento, como por exemplo crena

    verdadeira justificada, no pertencem estrutura paradigma porque no so objectivamente

    conhecimento. Isto negar que haja uma definio que satisfaa o paradigma conhecimento

    porque nenhuma definio pode satisfazer esse paradigma. Assim, a posio de Lycan parece

    incorrer numa petio de princpio: z no pertence a uma famlia de conceitos que em conjunto

    formam o conceito de conhecimento porque z no conhecimento. Descries e raciocnios

    similares podem ser aplicados estrutura-cruzamento.

    A literatura filosfica recente sobre o conhecimento aponta um extenso nmero de

    respostas Questo-C. No pudemos fazer justia a todas em virtude desse grande volume de

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  • propostas. Por outro lado, tendo em conta o estado da arte, tambm no possvel escolher

    apoditicamente quais so as melhores ou quais deveriam ter a prioridade e, logo, ser inseridas

    num texto que visa elucidar o fenmeno do conhecimento. No obstante, em razo do que se

    viu e da histria distante e recente do problema, possvel certificar duas coisas com alguma

    segurana. Primeiro, existe uma grande indeterminao a respeito dos melhores candidatos para

    definir o conhecimento. Segundo, dada a dificuldade em encontrar uma definio real para o

    fenmeno, talvez seja prefervel defini-lo nominalmente, recorrendo para tal a intuies e

    conceitos que foram sendo associados ao fenmeno pelas tentativas de submeter uma definio

    real para ele. Entre estas intuies e conceitos contam-se, notavelmente, os de crena, verdade,

    justificao, garantia, evidncia, fiabilidade, causalidade e no-acidentalidade epistmicas.

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    IntroduoSeco 1Resumo1.1. Redutibilidade e inclusibilidade1.2. Formatos de resposta Questo-C1.3. Crena (Ver entrada Crena)1.4. Verdade (Ver entrada Verdade)1.5. A relao de suporte1.6. Justificao1.7. A Definio Tradicional do Conhecimento1.8. O Problema de Gettier

    Seco 2Resumo2.1. Justificao sem falsidades2.2. Infalibilidade da justificao2.3. Causalidade epistmica2.4. Rastreando a verdade, segurana epistmica e aptido cognitiva2.5. Alternativas relevantes e adequao semntica2.6. Conhecimento primeiro2.7. Outras ideias