O problema do infixo em português. - Valter Kehdi

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  • 8/8/2019 O problema do infixo em portugus. - Valter Kehdi

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    Filologia e Lingstica Portuguesa, n. 3, p. 191-196, 1999.

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    O PROBLEMA DO INFIXO EM PORTUGUS

    Valter Kehdi *

    RESUMO:Neste artigo, faz-se o levantamento das diferentes propostas de existncia de infixosem portugus, acompanhadas dos comentrios crticos correspondentes. O objetivo mos-trar que provavelmente no existe, em nossa lngua, esse tipo de morfema.

    Palavras-chave: infixo, alternncia voclica, fonemas de ligao.

    uitas gramticas e dicionrios especializados vm se pre-

    ocupando com a depreenso de infixos em portugus.Dada a diversidade dos casos apresentados, oportu-

    no que se faa um levantamento do que se escreveu

    sobre esse tema, o que nos possibilitar realizar uma anlise crtica das

    diferentes propostas.

    Cumpre, inicialmente, estabelecer o conceito de infixo em que

    nos baseamos, o que no problemtico, pois a maioria dos manuais

    e dicionrios de Lingstica est de acordo em caracterizar o infixo

    como o morfema que se introduz no radical, diferentemente dos prefi-

    xos e sufixos. O exemplo mais freqente o do elemento nasal que

    figura no interior do radical de alguns verbos latinos e cuja funo caracterizar as formas do Infectum, em oposio s do Perfectum, des-

    providas de nasal: uiNco/uici1. Em portugus, a extenso da nasal a todo

    o paradigma fez com que esta passasse a ser elemento integrante do

    radical: veno/venci. Dessa forma, a impossibilidade de transposio do

    exemplo latino para nossa lngua acabou constituindo um estmulo

    para a investigao da existncia de infixos em portugus.

    * Universidade de So Paulo.1 Essa observao vlida do ponto de vista do latim clssico. Numa perspectiva indo-

    europestica, a questo bem mais complexa, relacionada ao fenmeno do alargamen-

    to.Cf. Meillet & Vendryes (1960, 238, p.156-7).

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    Inicialmente, foram consideradas como infixos as consoantes de

    ligao: capin-z-al. Essa posio j se encontra em Joo Ribeiro (1906,

    s.v. infixo (p.180-1)); a Gramtica portuguesa, de Mrio Pereira de Souza

    Lima, bem posterior obra de J. Ribeiro, com uma bibliografia notavel-mente atualizada para a poca de sua publicao, continua conside-

    rando o /z/ de ligao como infixo (1945, 261 (p.113)). Observando-

    se, contudo, que, em capinzal, o /z/ se pospe ao radical e no tem

    valor significativo, conclui-se que constitui, na realidade, um exemplo

    de consoante de ligao, como bem o notou Mattoso Cmara noDicio-

    nrio de fatos gramaticais (1956, s.v. infixo (p.124)). A influncia de M.

    Cmara faz-se sentir na Nomenclatura Gramatical Brasileira, em cuja

    segunda parte Morfologia, no item A.Estrutura das palavras, se reco-

    nhecem como afixos apenas os prefixos e os sufixos, apontando-se em

    seguida a existncia de vogais e consoantes de ligao, posio mantidapelas gramticas portuguesas posteriores NGB.

    Convm, todavia, reconhecer que, a rigor, os fonemas de ligao

    representam exemplos de morfes vazios em portugus, segundo a

    designao proposta por Hockett (1947, 15 (p.333)). Trata-se de ele-

    mentos desprovidos de sentido, que no pertencem a nenhum morfema

    do vocbulo; com efeito, a ocorrncia de capim e de-al, sem-z- (cf.,

    para-al: bananal, laranjal, tomatal), leva-nos a depreender, em capinzal,

    o morfe vazio /z/. Posteriormente, props-se a integrao desse ele-

    mento ao sufixo, que passava, assim, a apresentar-se sob a forma de

    variante: -al/-zal.

    Em seu artigo Sobre a formao de palavras com prefixos em

    portugus actual, Li Ching (1973, 16 (p.213)), ao elencar alguns

    pseudo-prefixos do portugus - aro-, foto-, micro-, etc. (p. ex., em

    aeroclube, foto-cmara e microagulha), afirma:

    O terminus-o-, que o eixo mais importante nesta srie, uma espcie doinfixo da composio que se encontrou h muito tempo, sem dvida nenhu-ma, nas formaes adjectivas (cf. luso-brasileiro, luso-espanhol, etc.).

    Ora, considerando que o infixo s pode figurar no interior de

    radical, os exemplos acima no nos permitem reconhecer na vogal-o-

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    um elemento infixal, pois esta se encontra no interior do vocbulo

    composto. O verdadeiro carter da vogal terminal do primeiro ele-

    mento do composto muito mais sufixal (diferentemente do que afir-

    ma Li Ching), sobretudo levando-se em conta a produtividade dessetipo de formao e a freqente reduo do composto ao seu primeiro

    elemento.

    Herculano de Carvalho (1963, s.v.afixo (p.521)) chega mesmo a

    identificar no pronome tono em mesclise um infixo. O exemplo apre-

    sentado f-lo-ei altamente questionvel: a variante lono morfema

    verbal e a existncia de f-lo (em comparao comf-lo-ei) constitui

    um argumento a mais para negar o valor infixal do pronome2.

    Na Gramtica construtural da lngua portuguesa, Back e Mattos

    (1972, p.373) assinalam o carter infixal de-inho em nomes prprios

    masculinos terminados em-s- ou-a: Carlos Carl-inh-os, Lucas Luqu-inh-as, Marcos Marqu-inh-os, Mota Mot-inh-a. Um exame mais atento

    dos exemplos arrolados permite-nos rever a questo; trata-se, na ver-

    dade, do sufixo -inho num comportamento especfico. A tendncia a

    dizer Carlinho e, com maior freqncia,Luquinha e Marquinho (alm do

    par Rubens Rubinho, em que na ltima forma no ocorre -s) revela com

    clareza que o sufixo diminutivo tende a recuperar a sua posio nor-

    mal; confirmam-no tambm alguns nomes prprios femininos:Lurdes

    Lurd-inha, Mercedes Merced-inha, em que se verifica a perda do -s3.

    Heckler, Back e Massing (1984, p. XVIII), a respeito do infixo em

    portugus, observam:

    H gramticos que negam a existncia de infixos na Lngua Portuguesa,embora possamos apresentar casos, como:faz, fez, fiz, em que a alternncia

    voclica nos parece um verdadeiro infixo. Para haver um verdadeiro infixo,este deve ser um morfema, isto , uma unidade significativa e no apenasuma unidade funcional. (...).

    2 interessante observar que o pronome tono mesocltico tambm foi dado como exem-plo de infixo por gramticos mais antigos. Cf. Joo Ribeiro (1930, p.118).

    3 Herculano de Carvalho (1973, p.530 (n.34)) assinala tambm a ocorrncia de infixo em

    lapinhos. Contudo, a freqncia maior de lapinho confirma a concluso acima.

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    A afirmao est, sem dvida, atenuada, mas cabe observar que

    a existncia de infixos , aqui, tambm questionvel. Lembre-se que M.

    Cmara (1964, 50 (p.104)), ao estabelecer a diferena entre morfemas

    alternativos e infixos, esclarece que estes ltimos so morfemas aditivosque se integram num radical existente na lngua. Com efeito, retoman-

    do o exemplo latino acima mencionado - uiNco/uici -, constata-se a ocor-

    rncia de uic-; j nos exemplos apresentados por Heckler et alii, com a

    eliminao da vogal se obtm f...z, que no ocorre como lexema em

    portugus. Neste caso, deve-se falar em alternncia voclica (exceto

    emfaz); a raizf...z terica e s se realiza como lexema com a insero

    da vogais -e- e -i-.

    Do ponto de vista diacrnico, temos, aqui, um exemplo de

    metafonia:feci>fiz, fecit>fez. A metafonia constitui o ponto de partida

    para explicar os numerosos casos de alternncia voclica em nossalngua.

    Embora os argumentos acima nos levem a negar a existncia de

    infixos em portugus, constituem, inegavelmente, veios de pesquisa

    importantes e explorveis, como passamos a indicar.

    Os fonemas de ligao remetem-nos ao problema dos morfes

    vazios, que tambm so representados pelas vogais temticas verbais

    e nominais4.

    No caso de formas como Carlinhos, assinalou-se que estvamos

    diante de um comportamento particular do sufixo diminutivo. Note-se

    que a variante -zinho tambm apresenta comportamento especfico;relativamente ao radical, menos coesa que os demais sufixos, como

    se pode verificar pelo plural leezinhos, em que a flexo de nmero

    no se d apenas no final do vocbulo. Com o sufixo -mente temos

    tambm a flexo da base: generosamente. Pode-se, portanto, afirmar

    que o levantamento de sufixos implica tambm a referncia s suas

    particularidades de emprego.

    4 Saliente-se que as vogais temticas verbais nem sempre so morfes vazios. No par amAs- amEs a oposio -A-/-E- que permite distinguir o presente do indicativo do pres. do

    subjuntivo; aqui, a vogal temtica morfema significativo.

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    Finalmente, nos exemplos de alternncia voclica, cumpre assi-

    nalar que esta um trao marcante nas flexes nominal e verbal do

    portugus. Causa, portanto, estranheza o fato de no termos ainda um

    estudo exaustivo do fenmeno da alternncia em nossa lngua5.Encerrando nossas consideraes, queremos esclarecer que no

    negamos, taxativamente, a existncia de infixos em portugus; os ar-

    gumentos propostos pelo diferentes autores aqui estudados no nos

    pareceram convincentes, o que no significa que no estejamos aber-

    tos considerao de novas propostas sobre o tema em questo.

    BIBLIOGRAFIA

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    5 O que se conhece de mais completo sobre o assunto a importante dissertao de Cavacas,mas trata-se de trabalho publicado em 1917 (reedio em 1992), a reclamar atualizao

    em alguns pontos.

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    ABSTRACT: This article is a survey of the various views about the existence of infixes inPortuguese, followed by critical comments. It aims to show that, most probably, this type ofmorpheme is non-existent in the language under study.

    Keywords: infix, vowel gradation, connecting vowels/consonants.