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O Processo civilizador: volume 2 - Formação do Estado e ......Agradecimentosa Esta tradução não poderia ter sido feita sem a ajuda de amigos. Em particular, o professor Johan

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NORBERTELIAS

OPROCESSO

CIVILIZADORVolume2

FormaçãodoEstadoeCivilização

Tradução:

RUYJUNGMANN

Revisão,apresentaçãoenotas:

RENATOJANINERIBEIRO

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SumárioAgradecimentos

Apresentação:

Umaéticadosentido,RenatoJanineRibeiro

parteI

FeudalizaçãoeFormaçãodoEstado

Introdução

I Sumáriodasociedadedecorte

II Umaconsideraçãoexploratóriadasociogênesedoabsolutismo

Capítuloum:

Dinâmicadafeudalização,

I IntroduçãoII ForçascentralizadorasedescentralizadorasnaconfiguraçãomedievaldepoderIII OaumentodapopulaçãoapósamigraçãodospovosIV AlgumasobservaçõessobreasociogênesedasCruzadas

V Aexpansãointernadasociedade:aformaçãodenovosórgãoseinstrumentossociais

VI Elementosnovosnaestruturadasociedademedieval,emcomparaçãocomaAntiguidade

VII SobreasociogênesedofeudalismoVIII SobreasociogênesedaMinnesangedasformascortesãsdeconduta

Capítulodois:

SobreasociogênesedoEstado

I Oprimeiroestágiodamonarquianascente:competiçãoemonopolizaçãonocontextoterritorial

II DigressãosobrealgumasdiferençasnastrajetóriasdedesenvolvimentodaInglaterra,FrançaeGermânia

III SobreomecanismomonopolistaIV Primeiraslutasnocontextodoreino

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V Oressurgimentodastendênciascentrífugas:aconfiguraçãodospríncipesrivais

VI Asúltimasfasesdalutacompetitivalivreeaposiçãomonopolistafinaldovencedor

VII Distribuiçãodastaxasdepodernointeriordaunidadedegoverno:suaimportânciaparaaautoridadecentral:aformaçãodo“mecanismorégio”

VIII Sobreasociogênesedomonopóliodetributação

parteII:sinopse

SugestõesparaumaTeoriadeProcessosCivilizadores

I DocontrolesocialaoautocontroleII DifusãodapressãopelaprevidênciaeautocontroleIII Diminuiçãodoscontrastes,aumentodavariedadeIV AtransformaçãodeguerreirosemcortesãosV Oabrandamentodaspulsões:psicologizaçãoeracionalizaçãoVI Vergonhaerepugnância

VII Restriçõescrescentesàclassealta:pressõescrescentesapartirdebaixo

VIII Conclusão

Notas

ÍndiceRemissivo

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Dedicadoàmemóriademeuspais,

HermannElias,falecidoemBreslauem1940,e

SophieElias,mortaemAuschwitz,1941(?)

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AgradecimentosaEstatraduçãonãopoderiatersidofeitasemaajudadeamigos.Emparticular,oprofessorJohanGoudsblominvestiugrandevolumede tempoeesforçocomparandoos textoseminglês e alemão a fim de assegurar o significado exato dos termos. Durante todo otrabalho,EricDunningcontribuiutambémcomcertonúmerodesugestõesmuitoúteis.Oexercíciodeconferiratraduçãoconstituiuemsitarefamuitoútil,porquantomepermitiurevisarotextoempequenosmasimportantesdetalheseacrescentarnotasquecolocaramaobra no contexto demeu entendimento posterior sobre o assunto. Nada disso deve serconsideradocomoqualquerdesdouroparaotrabalhodotradutor,EdmundJephcott,comquem tenho uma grande dívida. Meus agradecimentos também a Johan e MariaGoudsblompelaleituradasprovastipográficasepreparaçãodoíndiceremissivo.

Notadoeditoringlês

OVolumeIdeOProcessoCivilizadorintitula-seUmahistóriadoscostumesbeconsistededoiscapítulos.OVolumeII,publicadoeminglêspelaprimeiravezem1982,consistiainicialmente do Capítulo 3 (em duas Partes) e de uma Sinopse. Essas divisões sãodesignadasaquicomoParteI(compostadedoiscapítulos)eParteII:Sinopse.

Os tipos em itálico, nas citações em ambos os volumes, indicam a ênfase dada peloautor.______________

aNotadoautoràtraduçãoinglesa.(N.E.)

bPublicadonoBrasilporestaeditoraem1990.(N.E.)

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Apresentação

UmaéticadosentidoNorbertEliasdemorouaserreconhecido,ousequerconhecido,nomundoacadêmico.Elefaleceuhápouco tempo, a 1º de agostode1990, em idade avançada—menosdedoismeses antes, completara noventa e três anos. E no entanto, embora tenha escrito esteProcessoCivilizadornadécadade1930(primeiraedição,1939,naSuíça), somentenosanos 70 é que ele alcançouum reconhecimentomais amplo, começando sua obra a sercitada e a inspirar novas pesquisas. Com efeito, muitas questões que se consideravammenores,porexemploadaetiquetaoudasboasmaneiras,adquiriram,graçasaousoqueEliasfezdaidéiade“processo”,umsentido.Provavelmente,aliás,éaquestãodosentidoquedevenortearumaapreciaçãodasindicaçõesmaisnotáveisdessesociólogodevocaçãointerdisciplinar.

Se não articularmos cada elemento da cultura humana, se não engatarmos o que àprimeira vista aparecedescontínuo emesmo, com freqüência, estranho, absurdo, jamaisentenderemosoqueoshomensproduzemecomoelesvivem.NorbertEliasadota,assim,comoidéia-chave,atesedequeacondiçãohumanaéumalentaeprolongadaconstruçãodoprópriohomem.Essaafirmaçãopodeparecerbanal,mas rompecoma idéiadeumanatureza já dada, bem como com a da ininteligibilidade última de nosso ser: nem acondiçãohumanaéabsurda(eladescreveumsentido),nemesteéconferidodeumavezpor todas, de fora de nós (não existe um Deus doador de sentido, nem uma naturezaimutável do homem). Desta convicção de princípio, Elias retira conseqüênciasmetodológicas importantes—torna-se imprescindível,paraumestudosériodohomem,articulartodasortededocumentosetodaespéciedeciências.BemantesdeFoucault,eleentende, comooautord’AArqueologiadoSaber, que todo e qualquer texto oumesmogesto de um pensadormerece, por princípio, a atenção de quem o estuda, e damesmaforma os dos não-pensadores. Uma rede enorme de elementos significantes assim seconstitui,1comadiferençadequeparaMichelFoucaultoessencialsedaránumarelativasincronia(asepistemesdequeeletratouemAsPalavraseasCoisas),eparaEliasnumadecididadiacronia—numtrajetoqueseestiraaolongodosséculos,cobrindopelomenostodoosegundomilêniodaeracristã,equedestilaumsentido,odacivilizaçãoentendidacomo processo, como verbo que se substantiva, o civilizar dos costumes. Ainterdisciplinaridadeassim,paraElias,nãoésimplessenhaouslogan,masprocedimentoque decorre de suas convicções mais profundas, um método que está necessariamenteligado a sua doutrina ou, melhor dizendo, a sua filosofia. É porque o homemconstantementeseconstróiquenadadoqueéhumano—poderianossoautordizer—éestranho, a quempratica esta sorte de estudo.Daí a constante crítica a umapsicologia,uma sociologia, uma história, uma economia entendidas como especialidades isoladas,fechadassobresimesmas.

Daí,também,umaética—porque,sepropusemos,paraalgumastesesdeElias,onomede“filosofia”,épelaabrangênciadeseupensamento,quenãosesatisfazcomconheceroshomens, com tentar uma espécie de ciência das ciências humanas, mas se estende,também,aumadoutrinadaação.AludiàfrasedeTerêncio,tãoqueridadojovemMarx,

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“homosum:humaninil amealienumputo”:2 ela assinala tantoummétodode trabalhoquanto uma forte convicção moral. Sua relevância, nestes dois séculos em que seconstituíram o que chamamos de ciências humanas, certamente ficará mais clara selembrarmos o papel que teve, na gestação deste mundo em que vivemos, a doutrinarousseaunianadapitié,dapiedadeoucomiseração,estesentimentoquelevaohomemacompartilharo sofrimentode todo equalquer servivo.Umaexpansãodos sentimentos,uma idéia (ou melhor, um afeto) de comunhão com toda a humanidade sem a menordúvidasevinculacomumadisposiçãoacuidardepessoasemesmoassuntosque,soboAntigoRegime, soariamdesprezíveis, no sentido literal do termo: comooquenão temdireitoanossoapreçoourespeito.Ora,essenovosentimentodeligaçãocomtudooquevive induz também uma disposição a conhecer. Questões que antes não mereceriamatençãopassamaserdignasdafilosofia.Emoutraspalavras:comaquedadoabsolutismoe com a Revolução Francesa, dois acontecimentos preparados deste ponto de vista portodaaatividadedosPhilosophesnoséculoXVIII,começaa ter fimumregistroquefoibastante forte, o do desdém, que era parte essencial da maneira aristocrática de ver omundo(lembremosalgumaspáginasdecisivasdeNietzsche,certamenteumdosfilósofosquemelhorentenderamonobre,naGenealogiadaMoral:paraosguerreiros,mauéoqueeles desprezam, o meramente ruim ou de má qualidade; para os sacerdotes e osressentidos,mauéoquederivadamaldade,domal,damáintenção;omilitarouonobresecontentacomoresultadoquevê,edesdenharemontaratésuascausas;jáopadreouosofridonecessariamentetemquerecuaratéumaintenção,umacausaqueseconcebecomoestando ancorada na psique e na moral dos homens). Deste ponto de vista, podemossugerir que o saber mais moderno sobre os seres humanos, sobre nós, procede de ummodo de ver que temmais em comum com o homem sofrido, do que com o homemsuperior,aquelenobreparaquemamisériaeadoralheiasnãoconstituíamproblema.Ador,namedidaemquedeixoudeseraceitacomnaturalidade(assimcomodeixoudeseadmitircomoóbviaahierarquiadenascimentoentreoshomens),descortinouummododepensamento emque se espera que ela seja abolida, e com ela a antiga nobreza, que dealgumaformaapareciacomosuasócia.Aumsótempoabandonamopalcoanaturalidadecom que se aceitavam as diferenças de condição social — a sociedade torna-se, emdefinitivo,obradoprópriohomem,àmedidaqueasdistinçõessociaisdeixamdesefundarnanaturezaesemostramapenasartificiais—,eodesdém,queosnobresvotavamabomnúmerodepessoas,classesouassuntos—tudopassaamerecer,dealgummodo,nossaobservação.“Tudooqueéhumano…”ahumanidadeéuma invençãodoséculoXVIII,quepode ter tido seus sinaisprecursoresao longodos tempos,masque somentecomaextensãodadignidadehumanaacírculoscadavezmaisvastos,comodesenvolvimentoademaisdohumanitarismo,équeveioateroalcanceeadimensãoquelheconhecemos.

OpróprioobjetodeinteressedeNorbertEliasassimapontaumavaloraçãomoral,umaopçãopelohomem;issobemsedepreendedepáginasquerecendemaumotimismoatésurpreendente, se recordamos que a primeira edição desteProcessoCivilizador data davésperadaSegundaGuerraMundial;aindaqueaobratenhasidorevisada,seueixoéodeumacrençanumcivilizardohomemque,emboranãotenhachegado,porenquanto,aseutermo,prossegue.Porqueonazismonãochegaadestruir,nemmesmonumhomemqueforçou ao exílio3, a crença em dias melhores? Seja qual for a resposta no planopsicológico, no íntimo a nós desconhecido do homem Norbert Elias, da perspectivafilosóficaarazãoaseapresentaréqueopensadorEliasacreditavanoprogresso,equepor

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suavezestesefunda,emseupensamento,nopressupostodosentido.Seosatoseobrasdohomemseengrenamnumprocesso,eestetemporsentidoacivilização,osacidentesqueaatrasemnãopassamdissomesmo,demerosincidentesdepercurso.Éverdadequesoaumpoucodifícilentendercomopodeohomemproduzirumsentidosemqueestejáestivesse,desdetodoosempre,inscritoemsuanatureza;emoutraspalavras,comopodeEliasafirmarumsentidonahistóriadohomemeaomesmotemponegarqueexistaumanaturezahumanajádada?Suaresposta,vemos,équeosentidosevaiproduzindo,eque,seoconhecemosaposteriori,nemporissodeixaeledeestarsolidamentesustentadoporuma necessidade de razão. É um argumento, mas não se pode esquecer que a ele asúltimasdécadasforamdandocadavezmenosfé.Acríticaaoprogressismo(umacríticanoplano da teoria, que não se confunde com um conservadorismo ou reacionarismopráticos),quetantoseevidenciounasciênciashumanasduranteasúltimasdécadas,éemparteumacríticademétodo,quenegapossamosabordarumobjeto,p.ex.ahistóriadohomem,comumpartiprisque,inevitavelmente,hádenosocultartudooquedeledestoe;étambémofrutodasexperiênciasdifíceisdenossoséculo,emespecialogenocídioeototalitarismo, que tornaram pouco crível a idéia de que o ser humano caminha para aemancipação ou a redenção; mas é, sobretudo, uma crítica ao sentido. Pode haver umsentido não propriamente dado (até aqui Elias daria seu acordo), mas necessário,inevitável,naaventurahumana?Assim,seacontribuiçãodeNorbertEliasémuitobem-vinda no que diz respeito ao interdisciplinar, ao gosto pelos assuntos que se diziammenores— em especial, os costumes— emesmo no tocante à idéiamais genérica deprocesso,opontoemqueelapodeencontrarresistêncianospesquisadoresatuaisestánaconvicçãodenossoautor,segundoaqualesseprocessodestilaumsentidonecessário.

Mascomissotambémnosdeparamoscomumadificuldadeemsepensar,hoje,aética.UmadimensãoéticaestápresentenopensamentodeElias,comodissemos—aconvicçãodequeohomemseciviliza,edequeissoconstituiumvalorpositivo.Poderíamosafirmarque essa ética porta um sentido consolador; em tempos adversos, como os do TerceiroReich, acreditar que o homem haveria de varrer o racismo, o ódio e o horror dava aosociólogo— ou a qualquer pessoa uma esperança, uma força interna para enfrentar osmomentosmaus,massemqueemnadaessacrençasepudessesustentar racionalmente:umpensamentodosentidovale,assim,porseusefeitos,porquefortaleceaalma,nãoporseus fundamentos, pois não há razão que baste para o sustentar.Contudo, tais objeçõesquemsabe sepossamdirigir a toda ética, a todopensamentoque seproponha tratar daaçãoedadecisãohumanasdopontodevistadosvalores;emnadaafetamagrandezadasidéiasedos ideais.Esepensarmosassim,seconsiderarmosqueo largovetorqueEliastraçacobrindotodaahistóriadoOcidente—e,hoje,domundodesdeostemposdeCarlosMagnotemumavalidadequenãoseesgotanasidéiasdenossoautorapropósitodoquesucedeu,masqueseestendeaosideaisqueeleprojetanorumodofuturo—teremosentãoamedida do interesse de sua obra, e recuperaremos o valor, hoje, do que é civilizar ohomem.

RENATOJANINERIBEIRO

SetePraias,janeirode1993______________

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1Esseselementos,estáclaro,significamenquantorede,enãoisoladamente.

2Literalmente:“Souhomem:anadadoqueéhumanoeumeconsideroestranho”.HeautonTimoroumenos.

3NorbertEliasnasceuemBreslau,naPrússia(atualWroclaw,naPolônia),em1897.Era,portanto,cidadãoalemão,elecionava em Frankfurt quando, em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, escapou para a França, depois seinstalandonaInglaterra.

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parteI

FEUDALIZAÇÃOEFORMAÇÃODOESTADO

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introdução

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I

SumáriodaSociedadedeCorte1.Aslutasentreanobreza,aIgrejaeospríncipesporsuasrespectivasparcelasno

controleeproduçãodaterraprolongaram-sedurantetodaaIdadeMédia.NosséculosXIIeXIII,emergemaisumgrupo

comoparticipantenesseentrechoquedeforças:osprivilegiadosmoradoresdascidades,a“burguesia”.

O desenvolvimento concreto dessa luta constante, e as relações de poder entre osadversários,variamprofundamenteconformeospaíses.Oresultadodosconflitos,porém,é, em sua estrutura, quase sempre o mesmo: em todos os maiores países da EuropaContinental,eocasionalmente tambémnaInglaterra,ospríncipesouseusrepresentantesterminamporacumularumaconcentraçãodepoderaoqualnãosecomparamosdemaisestados.aAautarquiadamaioria, eaparceladepoderdosestados,vãosendo reduzidaspassoapasso,enquantoseconsolidaopoderditatorial,ou“absoluto”,deumaúnicafigurasuprema,pormaioroumenorperíodo.NaFrança,InglaterraenospaísessobomandodosHabsburgo essa figura é o rei; nas regiões alemã e italiana, cabe esse papel ao senhorterritorial.

2. Numerosos estudos descrevem, por exemplo, como os reis franceses, de FelipeAugustoaFranciscoIeHenriqueIV,aumentamseupoder,oucomooeleitorFredericoGuilhermepõedeladoosestadosregionais,emBrandenburgo,comoosMediciagemdeidênticamaneiracomospatrícioseosenadoemFlorençaou,ainda,comoosTudorfazemamesmacoisacomanobrezaeoparlamentonaInglaterra.Emtodaparte,oquevemossãoosagentes individuaiseseusatos,eoquesedescrevesãosuasfraquezase talentospessoais.Nãohádúvidadequeéfrutíferoemesmoindispensávelestudarahistóriadessamaneira,comoummosaicodeaçõesindividuaisdepessoasisoladas.

Não obstante, é evidente que alguma coisa mais acontece nesse contexto, além daemergênciafortuitadeumasériedegrandespríncipesedaocasionalvitóriadenumerosossenhores territoriais oude reis sobre estados,mais oumenospelamesma época.Não ésemmotivo que falamos em uma era de absolutismo. O que encontra expressão nessamudançana formadadominaçãopolítica éumamudançaestrutural, comoum todo,nasociedadeocidental.Não apenas reis isolados expandemseupoder,mas, claramente, asinstituiçõessociaisdamonarquiaoudoprincipadoadquiremnova importâncianocursodeumatransformaçãogradualdetodaasociedade,umaimportânciaquesimultaneamenteconferenovasoportunidadesdepoderaosmaiorespríncipes.

Porumlado,podemosindagarcomoesteouaquelehomemadquiriupoder,oucomoeleouseusherdeirosoaumentaramouperderam,nocontextodo“absolutismo”.

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Poroutro,podemosperguntarcombaseemquemudançassociaisainstituiçãomedievaldo rei ou do príncipe adquiriu, em certos séculos, o caráter e poder a que se referemconceitos como “absolutismo” ou “despotismo”, e que estrutura social, quedesenvolvimentodasrelaçõeshumanas,capacitarama instituiçãoapreservaressaformaporummaioroumenorperíododetempo.

Ambososenfoqueslidamcommaisoumenosomesmomaterial.Sóosegundo,porém,atingeoplanodarealidadehistórica,noqualocorreoprocessocivilizador.

Nãofoimeracoincidênciaque,nosmesmosséculosemquereioupríncipeadquiriramstatusabsolutista,acontençãoemoderaçãodaspaixõesdiscutidasnovolumeanterior,a“civilização” do comportamento, aumentasse visivelmente. Nas citações antes reunidasparademonstraressaalteraçãonocomportamento,evidenciou-seoaltograuemqueessamudança se associou à formação da ordem hierárquica, tendo à frente o governanteabsoluto,ouemtermosmaisamplos,suacorte.

3. Istoporqueacorte, igualmente residênciadopríncipe,assumiuumnovoaspectoeuma nova importância na sociedade ocidental, em um movimento que se espalhoulentamentepelaEuropa,pararefluirnovamente,maiscedoaqui,maistardeali,duranteaépocaquedenominamos“Renascença”.

Nosmovimentos desse período, as cortes foram se tornando omodelo concreto e oscentrosformadoresdoestilo.Nafaseprecedente,elashaviamsidoforçadasadividiroumesmoaabdicarinteiramentedessafunçãoemfavordeoutroscentros,segundoabalançadepoderpredominante—oraaIgreja,oraascidades,quandonãoascortesdosgrandesvassalosecavaleiros,espalhadaspelopaís.Apartirdessaépoca,nasregiõesgermânicase,particularmente, nas protestantes, as cortes das autoridades centrais ainda repartem essafunçãocomasuniversidades,queformamasburocraciasdospríncipes,aopassoquenospaísesromânicos,etalvezemtodososcatólicos—estaúltimahipóteseaindaprecisasercomprovada—aimportânciadascortescomoautoridadesocial,comofonteeorigemdemodelos de comportamento, excede de muito a da universidade e todas as demaisformações sociais então existentes. Os primórdios da Renascença em Florença,caracterizados por homens como Masaccio, Ghilberti, Brunelleschi e Donatello, nãochegamaconstituirumestiloinequívocodecorte.JáaAltaRenascençaitaliana,eaindamaisprecisamenteobarrocoeorococó,osestilosLuísXVeLuísXVI,sãoefetivamentedecorte,comoafinaldecontas tambémacontececomo“Império”,aindaquede formamaistransitóriaejápermeadadeelementosindustriaiseburgueses.

Nascortes,evoluiumaformadesociedadeparaaqualnãoexisteumtermoespecíficoeinequívoco em alemão pela óbvia razão de que, na Alemanha, esse tipo de associaçãohumananuncaadquiriu importância fundamentaledecisiva,exceto,nomáximo,apenasna forma final e passageira que assumiu em Weimar. O conceito alemão de “boasociedade” ou, mais simplesmente, de “sociedade” no sentido de monde, tal como aformaçãosocialcorrespondenteaomesmo,carecedanítidadefiniçãodostermosfrancêseinglês.Osfrancesesfalamdelasocietépolie.EostermosfrancesesbonnecompagnieougensdelaCour,ouoinglês“Society”,revestem-sedeconotaçõessemelhantes.

4.Amaisinfluentedassociedadesdecortedesenvolveu-se,comosabemos,naFrança.A partir de Paris, os mesmos códigos de conduta, maneiras, gosto e linguagem

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difundiram-se, em variados períodos, por todas as cortes européias. Mas isso nãoaconteceuapenasporqueaFrançafosseopaísmaispoderosodaépoca.Somentesetornoupossível porque, em uma transformação geral da sociedade européia, formações sociaissemelhantes,caracterizadasporformasanálogasderelaçõeshumanas,surgiramportodaaparte.Aaristocraciaabsolutistadecortedosdemaispaísesinspirou-senanaçãomaisrica,mais poderosa e mais centralizada da época, e adotou aquilo que se adequava às suaspróprias necessidades sociais: maneiras e linguagem refinadas que a distinguiam dascamadas inferioresda sociedade.NaFrançaelavia, plenamentedesenvolvido, algoquenascera de uma situação social semelhante e que se ajustava a seus próprios ideais:pessoas que podiam exibir seu status, enquanto observavam também as sutilezas dointercâmbio social, definindo sua relação exata com todos acima e abaixo através damaneira de cumprimentar e de escolher as palavras — pessoas de “distinção”, quedominavama“civilidade”.Aoadotaremaetiquetafrancesaeocerimonialparisiense,osváriosgovernantesobtiveramosinstrumentosquedesejavamparatornaremmanifestasuadignidade,bemcomovisívelahierarquiasocial,e fazeremtodasasdemaispessoas,emprimeirolugareacimadetudoanobrezadecorte,conscientesdesuaposiçãodependenteesubordinada.

5. Também aqui não basta observar e descrever isoladamente os eventos particularesocorridos em diferentes países. Um novo quadro emerge e uma nova compreensão sealcançaseváriascortesocidentaisdistintas,comsuasmaneirasrelativamenteuniformes,são consideradas como vasos comunicantes na sociedade européia em geral. O quecomeçaaconstituir-seaospoucos,nosfinsdaIdadeMédia,nãoéapenasumasociedadedecorteaquieoutraali.ÉumaaristocraciadecortequeabraçatodaaEuropaOcidental,comseucentroemParis,dependênciasemtodasasdemaiscorteseafloramentosemtodososoutroscírculosquealegavampertencerà“Sociedade”,notadamenteoestratosuperiordaburguesiaeaté,emcertamedida,emcamadasdaclassemédia.

Os membros dessa sociedade multiforme falam a mesma língua em toda a Europa,inicialmenteoitalianoe,depois,ofrancês:lêemosmesmoslivros,têmomesmogosto,asmesmasmaneirase—comdiferençasemgrau—omesmoestilodevida.Nãoobstantesuasdivergênciaspolíticas,quenãosãopoucas,easnumerosasguerrasquetravamentresi,orientam-secomquaseunanimidade,emperíodosmaisoumenoslongos,nadireçãodeumcentroqueéParis.Acomunicaçãosocialentreumacorteeoutra,istoé,nointeriordasociedadearistocráticadecorte,durantemuitotempoémaisfortedoqueentreumacortee outros estratos de seu próprio país.Uma expressão disso é a língua comum que elasfalam.Mais tarde, demeados do séculoXVIII emdiante,mais cedo emumpaís e umpoucodepoisemoutro,massempreseconjugandocomaascensãodaclassemédiaeogradual deslocamento do centro de gravidade política e social da corte para as váriassociedades burguesas nacionais, os laços entre as sociedades aristocráticas de corte dediferentesnaçõessãolentamenteafrouxados,mesmoquenuncacheguemaseromperdetodo. A língua francesa cede lugar, não sem lutas violentas, às línguas nacionaisburguesas, mesmo na classe alta. A própria sociedade de corte torna-se cada vezmaisdiferenciada, damesmamaneira que acontece com as sociedades burguesas, sobretudoquandoavelhasociedadearistocráticaperde,derepenteeparasempre,seucentro,comaRevolução Francesa. A forma nacional de integração substitui a que se baseava nasituaçãosocial.

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6. Ao estudar as tradições sociais que fornecem a base comum e a unidade maisprofunda das várias tradições nacionais no Ocidente, devemos pensar não só na IgrejaCristã, na herança comum romano-latina, mas também nessa última grande formaçãosocialpré-nacionalque,parcialmenteàsombradasdivergênciasnacionaisque lavravamnasociedadeocidental,ergueu-seacimadosestratosinferioreintermediárionasdiferentesáreaslingüísticas.Aquisecriaramosmodelosdointercâmbiosocialmaispacíficodeque,em maior ou menor grau, todas as classes precisavam, depois da transformação dasociedade européia ocorrida ao fim da Idade Média; aqui os hábitos mais rudes, oscostumes mais soltos e desinibidos da sociedade medieval, com sua classe guerreirasuperioreocoroláriodeumavidaincertaeconstantementeameaçada,são“suavizados”,“polidos”e“civilizados”.Apressãodavidadecorte,adisputapelofavordopríncipeoudo“grande”edepois,emtermosmaisgerais,anecessidadededistinguir-sedosoutrosede lutar poroportunidades atravésdemeios relativamentepacíficos (comoa intriga e adiplomacia),impuseramumatuteladosafetos,umaautodisciplinaeumautocontrole,umaracionalidade distintiva de corte, que, no início, fez que o cortesão parecesse a seuopositorburguêsdoséculoXVIII,acimadetudonaAlemanhamastambémnaInglaterra,comoosupra-sumodohomemderazão.

Nessasociedadearistocráticadecorte,pré-nacional,forammodeladasou,pelomenos,preparadaspartesdessasinjunçõeseproibiçõesqueaindahojesepercebem,nãoobstanteas diferenças nacionais, como algo comum ao Ocidente. Foi delas que os povos doOcidente,adespeitodesuasdiferenças,receberampartedoselocomumqueosconstituicomoumacivilizaçãoespecífica.

Umasériedeexemplosdemonstraqueaformaçãogradualdessasociedadeabsolutistadecortefoiacompanhadaporumcivilizardaeconomiadaspulsõesedacondutadaclassesuperior.Eindicatambémcomquecoerênciaessamaiorcontençãoeregulaçãodeanseioselementaresseassociaaoaumentodocontrolesocial,edadependênciadanobrezafaceaoreiouaopríncipe.

Dequemaneiraaumentaramessaslimitaçõesedependência?Dequemodoumaclassesuperiordeguerreirosoucavaleirosrelativamenteindependentesfoisuplantadaporumaclassesuperiordecortesãomaisoumenospacificados?Porqueteriasidoainfluênciadosestados progressivamente reduzida no curso da IdadeMédia e nos começos do períodomodernoeporque,mais cedooumais tarde, veio a se estabelecerogovernoditatorial“absoluto”deumaúnicafigurae,comele,acompulsãodaetiquetadecorte,apacificaçãodeterritóriosmaioresoumenoresporiniciativadeumúnicocentro,queseconsolidouporumperíodomais longooumaiscurtoem todosospaísesdaEuropa?Asociogênesedoabsolutismo ocupa, de fato, uma posição decisiva no processo global de civilização.Acivilização da conduta, bem como a transformação da consciência humana e dacomposição da libido que lhe correspondem, não podem ser compreendidas sem umestudodoprocessodetransformaçãodoEstadoe,noseuinterior,doprocessocrescentedecentralização da sociedade, que encontrou sua primeira expressão visível na formaabsolutistadegoverno.

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II

UmaConsideraçãoExploratóriadaSociogênesedoAbsolutismo1.Algunsdosmecanismosmaisimportantes

que,emfinsdaIdadeMédia,foramaumentandoopoderdaautoridadecentraldeumterritóriopodemserdescritos

sumariamentenesteestágiopreliminar.Elesforam,demodogeral,semelhantesemtodososmaiorespaísesdoOcidente,e

issopodeserobservadocomespecialclarezanodesenvolvimentodamonarquiafrancesa.

Aexpansãogradualdosetormonetáriodaeconomia,aexpensasdosetordetroca,ouescambo,emumadadaregiãonaIdadeMédiagerouconseqüênciasmuitodiferentesparaa maior parte da nobreza guerreira, por um lado, e para o rei ou príncipe, por outro.Quanto mais moeda entrasse em circulação numa região, maior seria o aumento dospreços. Todas as classes cuja renda não aumentava à mesma taxa, todos aqueles queviviamde renda fixa, ficavamemsituaçãodesvantajosa, sobretudoos senhores feudais,queauferiamforosfixosporsuasterras.

As funções sociais cuja renda se elevava com essas novas oportunidades passaram adesfrutardevantagens. Incluíamelascertossetoresdaburguesia,mas,acimade tudo,orei,osenhorcentral.Istoporqueamáquinadecoletadeimpostoslheconferiaumaparceladariquezacrescente;paraeleseencaminhavapartedetodososlucrosobtidosnessaárea,esuarenda,emconseqüência,cresciaemgrauextraordináriocomacirculaçãocadavezmaiordamoeda.

Comosempreacontece,essemecanismofuncionalsófoiexploradoaospoucose,porassimdizer,retrospectivaeconscientementepelaspartesinteressadas,sendoadotadoemumestágiorelativamenteposteriorpelosgovernantescomoprincípiodepolítica interna.Teve como primeiro resultado um aumento mais ou menos automático e constante darenda do suserano. Esta foi uma das precondições sobre as quais a instituição damonarquiaobtevegradualmenteseucaráterabsolutoouilimitado.

2. À medida que cresciam as oportunidades financeiras abertas à função central, omesmo acontecia com seu potencial militar. O homem que tinha à sua disposição osimpostosdetodoumpaísestavaemsituaçãodecontratarmaisguerreirosdoquequalqueroutro; pela mesma razão, tornava-se menos dependente dos serviços de guerra que ovassalofeudaleraobrigadoaprestar-lheemtrocadaterracomaqualforaagraciado.

Essefoitambémumprocessoque,comotodososdemais,começoumuitocedomassóaos poucos culminou na formação de instituições definidas. Até mesmo Guilherme, oConquistador,invadiuaInglaterracomumexércitoquesóemparteconsistiadevassalos,sendo o resto constituído de cavaleiros a seu soldo. Entre essa época e a criação de

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exércitos permanentes pelos senhores centrais transcorreram séculos. Um pré-requisitopara a existência desses exércitos, à parte a renda crescente gerada por impostos, era oexcessodepotencialhumano—ouadiscrepânciaentreonúmerodepessoaseonúmeroelucratividadedeempregosdisponíveisemumadadasociedade,oquehojeconhecemoscomo“desemprego”.Áreasquesofriamcomexcedentesdessetipo,como,porexemplo,aSuíçaepartesdaAlemanha,forneciammercenáriosatodosaquelesquetinhammeiosdesustentá-los. Muito mais tarde, as táticas de recrutamento de Frederico, o Grande,mostraramassoluçõespossíveisaumpríncipequandoopotencialhumanodisponívelemseu território não é suficiente para finalidades militares. A supremacia militar queacompanhava a superioridade financeira constituiu, por conseguinte, o segundo pré-requisito decisivo que permitiu ao poder central de uma região assumir um caráter“absoluto”.

Atransformaçãodastécnicasmilitaresacompanhouereforçouessefenômeno.Graçasao lentodesenvolvimentodasarmasde fogo,amassadesoldadosde infantariacomunstornou-se militarmente superior aos nobres, inferiores em número, que combatiammontados.Issoacontecia,também,emproveitodaautoridadecentral.

Orei,quenaFrançadeiníciosdadinastiaCapeto,porexemplo,poucomaiseradoqueumbarão,umsenhorterritorialentreoutrosdeigualpoder,eàsvezesatémenospoderoso,obtevecomsuamaiorreceitaapossibilidadededesfrutardeumasupremaciamilitarsobretodas as forças de seu país. Qual das famílias nobres a que conseguiria, em casosespecíficos,conquistaracoroae,comela,obteracessoaessasoportunidadesdepoder,eraumasituaçãoquedependiadeumagrandesériedefatores,incluindoostalentospessoaisdosindivíduose,nãoraro,asorte.Jáoaumentodasoportunidadesdepoderfinanceiroemilitarque,aospoucos,foramseassociandoàmonarquianãodependiadavontadeoudostalentosdoindivíduo;naverdade,seguiaumaestritaregularidade,constatadaemtodososcasosemqueseobservamprocessossociais.

Esseaumentodasoportunidadesdepoderemmãosdafunçãocentralconstituíaassimmais uma condição prévia para a pacificação de um dado território, maior ou menor,conformefosseocaso,apartirdeumúnicocentro.

3.Asduas sériesde fenômenosqueocorreramembenefíciodeuma forte autoridadecentralforam,emtodososcasos,prejudiciaisaovelhoestamentomedievaldosguerreiros.Não mantinha ele conexão direta com o crescente setor monetário da economia.Dificilmentepodiaobterqualquerlucrodiretocomasnovasoportunidadesderendaqueseofereciam.Sentiaapenasadesvalorização,oaumentodospreços.

Calculou-sequeumafortunade22.000francosnoano1200valia16.000francosem1300,7.500francosem1400e6.500em1500.NoséculoXVI,essemovimentoacelerou-se,ovalordasomacaiupara2.500francoseomesmosucedeuportodaaEuropa1.

Ummovimentoque seoriginou emépocamuito recuadada IdadeMédiapassouporextraordinária aceleração no século XVI. Do reinado de Francisco I até o ano 1610apenas, a libra francesa foi desvalorizada na razão de aproximadamente 5 a 1. Aimportânciadessacurvadedesenvolvimentoparaatransformaçãodasociedadeassumiuproporçõesmuitomaioresdoquepodeserdescritoempoucaspalavras.Enquantocresciaa circulação da moeda e se desenvolvia a atividade comercial, enquanto as classes

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burguesaseareceitadaautoridadecentralseexpandiam,caíaarendadetodaanobrezarestante.Algunscavaleirosviram-sereduzidosàpobreza,outrostomavampelorouboeaviolência aquilo que não mais podiam obter por meios pacíficos, e outros aindaconseguiam livrar-se de apuros, por tanto tempo quanto possível, vendendo suaspropriedades; e, finalmente, boa parte da nobreza, forçada por essas circunstâncias eatraídapelasnovasoportunidades,entrouparaoserviçodereisoupríncipesquepodiampagar.Taiseramasopçõeseconômicasabertasaumaclasseguerreiranãovinculadaaocrescimentodacirculaçãomonetáriaeàrededecomércio.

4. Jámencionamos como a tecnologia da guerra atuou em detrimento da nobreza: ainfantaria,osdesprezadossoldadosapé,tornou-semaisimportanteembatalhadoqueacavalaria. Não apenas se quebrava, dessa forma, a superioridade militar do estadomedievaldoguerreiro,mastambémseumonopóliodearmas.Umasituaçãoemquetodososnobreseramguerreirosou, reciprocamente, emque todososguerreiroseramnobres,começou a transformar-se em outra na qual o nobre era, na melhor das hipóteses, umoficialdetropasplebéiasquetinhamqueserremuneradas.Omonopóliodasarmasedopodermilitarpassoudetodooestadonobreparaasmãosdeumúnicomembro,opríncipeoureique,apoiadonarendatributáriadetodaaregião,podiamanteromaiorexército.Porissomesmo,amaiorpartedanobrezamudou,deguerreirosoucavaleiros relativamentelivres,paraguerreirosouoficiaisassalariadosaserviçodosuserano.

Essesforamalgunsdosprincipaisaspectosdessatransformaçãoestrutural.

5.Mashouveoutro,também.Anobrezaperdeupodersocialcomaexpansãodosetormonetário da economia, enquanto aumentava o poder das classes burguesas. Mas, demodo geral, nenhum dos dois estados mostrou ser forte o suficiente para obter apredominânciaporumperíodoprolongado.Tensõesconstantesemtodaparte irrompiamemlutasocasionais.Asfrentesdebatalhaeramcomplicadasevariavammuitodecasoacaso. Ocorreram alianças ocasionais entre grupos da nobreza e da burguesia e tambémformastransitóriasemesmofusõesentresubgruposdosdoisestados.Mas,comoquerquefosse,aascensãoeopoderabsolutodainstituiçãocentralinvariavelmentedependiamdaexistência contínua de tal tensão entre nobreza e burguesia. Uma das precondiçõesestruturais para amonarquia, ouoprincipado absoluto, eraquenenhumdos estadosougruposobtivesseapredominância.Os representantesdaautoridadecentral absoluta,porissomesmo,tinhamqueestarconstantementealertaparagarantiresseequilíbrioinstávelnoterritório.Noscasosemqueserompiaoequilíbrio,emqueumúnicogrupoouclassesetornavamfortesdemais,ouemquegruposaristocráticosedaaltaburguesiasealiavamtemporariamente,asupremaciadopodercentralcorriasérioriscoou—comonocasodaInglaterra—tinhaseusdiascontados.Dessamaneira,observamosfreqüentementeentreosgovernantesque,enquantoumprotegeepromoveaburguesiaporqueanobrezaparecepoderosademaise,porissomesmo,perigosa,outroseinclinaparaanobreza,porqueestasetornoumuitofracaouporqueaburguesiasemostramuitorefratária,semcontudoqueooutro lado jamais seja inteiramente negligenciado. Os governantes absolutos eramobrigados,estivessemounãointeiramenteconscientesdisso,amanipularessemecanismosocial, que não haviam criado. Sua existência social dependia da sobrevivência efuncionamentodetalmecanismo.Eles,também,estavampresosàregularidadesocialcoma qual eram obrigados a conviver. Essa regularidade e a estrutura social a elacorrespondente emergiram,mais cedo oumais tarde, com numerosasmodificações, em

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quase todosospaísesdoOcidente.Maselasassumemumdelineamentoclaroapenasseobservadas no processo de emergência, através de um exemplo concreto. Odesenvolvimento na França, o país em que esse processo, a partir de um momentoparticular,assumiuaformamaisdireta,serviráaquicomoexemplo.______________

a“Estados”nosentidodeestamentosounoquetemaexpressão“TerceiroEstado”: trata-seportantodosestadosquecompõem oEstadomedieval emoderno (convém lembrar que, na época, o termo “Estado” não tinha o sentido quedepoisadquiriu).(RJR)

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capítuloum

Dinâmicadafeudalização

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I

Introdução1. Se, em termos do poder de suas autoridades centrais, comparamos a França, a

InglaterraeoImpérioGermânicoemmeadosdoséculoXVII,oreideFrançadestaca-secomoparticularmenteforteemrelaçãoaoreiinglêseaindamaisnotocanteaoimperadorgermânico.Essaconstelaçãoconstituioresultadodeumaevoluçãomuitolonga.

Em fins do período carolíngio e começos da dinastia Capeto, a situação é quase oinverso. Nessa época, o poder central dos imperadores germânicos era forte emcomparação com o dos monarcas franceses. E a Inglaterra não passara ainda por suadecisivaunificaçãoereorganizaçãosobosnormandos.

A partir dessa época, o poder central no Império Germânico vai desmoronando semretorno—aindaquecomocasionaisinterrupções.

NaInglaterra,começandocomosnormandos,períodosdefortepoderrealalternam-secomapreponderânciadosestadosoudoparlamento.

NaFrança,apartirdoiníciodoséculoXII,opoderdoreicresce—maisumavez,cominterrupções—deformabemregular.UmalinhacontínuaperpassaapartirdosCapeto,passandopelosValoisechegandoaosBourbon.

Nadanospermitesuporqueessasdiferençasobedecemaqualquertipodecompulsão.Com grande lentidão, as diferentes províncias dos três países fundem-se em unidadesnacionais.No início, enquanto permanece relativamente pequena a integração das áreasqueserãoconhecidasmaistardecomo“França”,“Alemanha”,“Itália”e“Inglaterra”,elasnãotêmmuitaimportância,comoorganismossociais,noequilíbriodasforçashistóricas.As principais curvas de desenvolvimento na história dessas nações são, nessa fase,incomparavelmentemais influenciadas pelas fortunas e infortúnios de indivíduos, pelasqualidadespessoais,pelassimpatias,antipatiase“acidentes”,doquemaistarde,quandoa“Inglaterra”,“Alemanha”ou“França” transformaram-seemformaçõessociaiscomumaestruturabastanteespecíficaeumimpulsoeregularidadepróprios.Nocomeço,aslinhashistóricasdedesenvolvimentosãoco-determinadasmaciçamenteporfatoresque,dopontodevistadaunidadeposterior,nãoserevestemdeumanecessidadeintrínseca.2Maistarde,gradualmente, comacrescente interdependênciademaioresáreasepopulações, emergeumpadrãoque, segundoascircunstâncias, limitaouabreoportunidadesaoscaprichoseinteressesdeindivíduospoderososoumesmodegruposespecíficos.Maistarde,esómaistarde, é que a dinâmica do desenvolvimento inerente a essas unidades sociais supera omeramenteacidentalou,pelomenos,marca-ocomseuselodistintivo.

2. Nada ainda nos permite supor qualquer necessidade irresistível determinando queseria em torno do ducado de Francia, a “Ilha de França”, que a nação se cristalizaria.Cultural e também politicamente, as regiões meridionais da França mantinham laçosmuitomaisfortescomasdonortedaEspanhaeregiõesitalianaslimítrofesdoquecomaárea em torno de Paris. Sempre houvera uma diferença muito grande entre as regiões

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antigas,maiscelto-românicasdaProvença,alangued’oc,easpartesdelangued’oïl,istoé, regiões com uma influência francamais forte, acima de tudo as que se situavam aonorte do Loire, juntamente com o Poitou, o Berry, a Borgonha, Saintonge e o Franco-Condado.3

Além do mais, as fronteiras orientais estabelecidas pelo Tratado de Verdun (843), emais tarde pelo Tratado de Meerssen (870), para o Império Franco do Ocidente erammuito diferentes das fronteiras entre as regiões que gradualmente emergiram como a“França”,a“Alemanha”ea“Itália”.

O Tratado de Verdun fixava como fronteira oriental do Império Franco do Ocidenteumalinhaque,apartirdoatualgolfodoLeãoaosul,aproximava-sedamargemocidentaldo Ródano seguindo então para o norte até a Flandres. A Lorena e a Borgonha —excetuadoo ducado a oeste doSaône—e, por conseguinte,Arles,Lyon,Trier eMetzsituavam-se fora das fronteiras do Império Franco do Ocidente, enquanto, ao sul, ocondadodeBarcelonapermaneciaaindanoseuinterior.4

O Tratado de Meerssen estabelecia o Ródano como fronteira direta no sul entre osImpériosFrancodoOcidenteedoOriente,apartirdeondeseguiaoIsèree,maisaonorte,oMosela. Trier eMetz, portanto, tornaram-se cidades fronteiriças, como aconteceu aonortecomMeerssen,acidadequedeunomeaotratado.AfronteiraterminavafinalmenteaonortedoReno,naregiãodaFrísiameridional.

Essasfronteiras,porém,nemseparavamEstados,nempovosnemnações,seporestesentendemos formações sociais que são, em qualquer sentido, unificadas e estáveis. Nomáximo,eramestados,povos,naçõesemformação.Nessafase,oaspectomaisnotáveldetodososmaioresterritórioseraseubaixoníveldecoesão,opoderdasforçascentrífugasquetendiamadesintegrá-los.

Qual a natureza dessas forças centrífugas? Que peculiaridade de estrutura dessesterritórioslhesconfereseupoderioparticular?Equemudançanaestruturadasociedade,dos séculos XV, XVI ou XVII em diante, concede finalmente às autoridades centraispreponderância sobre todas as forças centrífugas e, dessa forma, proporciona aosterritóriosmaiorestabilidade?

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II

ForçasCentralizadoraseDescentralizadorasnaConfiguraçãoMedievaldePoder3.OenormeimpériodeCarlosMagnofoiplasmadopelaconquista.Nãohádúvidadequeafunçãobásicadeseuspredecessores,emaisaindaadopróprioCarlos,foiadecomandantedeexército,vitoriosonaconquistaenadefesa.Proporcionouelaasfundaçõesde

seupoderreal,renomeeforçasocial.Como comandante de exército, Carlos Magno controlava a terra que conquistava e

defendia.Comopríncipevitorioso, premioucom terrasosguerreirosque lhe seguiamaliderança.E,emvirtudedessaautoridade,manteve-oscoesos,mesmoquesuas terrasseespalhassemportodoopaís.

Oimperadorereinãopodiasupervisionarsozinhotodooimpério.Despachoupelaterraamigos e servidores de confiança para fazer cumprir a lei em seu nome, assegurar opagamento de tributos e a prestação de serviços, bem comopunir quem resistisse.Nãolhesremuneravaosserviçosemdinheiro.Amoedacertamentenãoeradetodoinexistentenessa fase, mas circulava apenas em medida muito limitada. As necessidades eramatendidas,namaiorparte,diretamentepela terra,oscampos,as florestaseosestábulos,sendoaproduçãodeiniciativadafamília.Oscondes,duques,oucomoquerquefossemchamados os representantes da autoridade central, tiravam também seu sustento, e o deseusagregados,da terracomaqualos agraciaraa autoridadecentral.Deconformidadecom a estrutura econômica, a máquina de governo nessa fase da sociedade era muitodiferente da que seria utilizada pelos “Estados” em fase posterior. A maioria dos“oficiais”,segundosedissearespeitodessafase,“eramagricultoresquedesempenhavamdeveres‘oficiais’apenasduranteperíodosestabelecidosounocasodefatosimprevistos,eportanto cabia mais compará-los a donos de terra exercendo poderes policiais ejudiciários”.5 Com esse papel judiciário e mantenedor da lei se combinavam funçõesmilitares;eramguerreiros,comandantesdegruposmaisoumenosmarciaisedetodososdemais senhores de terra na área que o rei lhes dera, contra qualquer ameaça de uminimigoexterno.Emsuma,todasasfunçõesdegovernoeramenfeixadasemsuasmãos.

Talconfiguraçãodepoderpeculiar,porém,quenessa faseconstituíaum indicadordadivisão de trabalho e da diferenciação, gerava constantes tensões que decorriam de suaprópria estrutura.Engendrava certas seqüências típicas de eventos que—comalgumasmodificações—repetiam-senumerosasvezes.

4.Quemquerquehouvessesidoantesinvestidopelosuseranonasfunçõesdegovernonumaáreadeterminadaeassimsetornavaosenhorefetivodessaárea,nãomaisdependiadopodercentralparasustentar-seeprotegerasimesmoeseusdependentes,pelomenosenquanto não fosse ameaçado por um inimigo externo mais forte. À primeira

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oportunidade, por conseguinte, logoqueopoder central demonstrasseomenor sinal defraqueza, o governante local ou seus descendentes procuravam mostrar seu direito ecapacidade de governar o distrito que lhes fora confiado e sua independência daquelaautoridade.

Ao longo dos séculos, os mesmos padrões e tendências reaparecem constantementenessamáquinadegoverno.Osgovernantesdepartesdoterritóriodosuserano,osduquesechefeslocais,constituememtodasasocasiõesumperigoparaopodercentral.Príncipesereis vitoriosos, com a força dos exércitos que comandam e da proteção que garantemcontra os inimigos externos, esforçam-se, com um sucesso inicial, para enfrentar esseperigonaáreaquecontrolam.Semprequepossível,substituemosgovernanteslocaisporseusprópriosamigos,parentesou servidores.Masempouco tempo,não rarodentrodeuma geração, omesmo roteiro anterior se repete: os antigos representantes do governocentralfazemoquepodempararecuperarocontrolequetinhamsobrearegião,comoseelafossepropriedadehereditáriadesuafamília.

Ora são os comes palatii, os antigos superintendentes do palácio real, que queremtornar-segovernantesindependentesdeumaregião;orasãoosmargraves,duques,condes,barõesou servidoresdo rei.Emondas sucessivas,os reis, fortalecidospelasconquistas,enviam às várias partes do país seus amigos, parentes ou servidores de confiança,enquanto os anteriores enviados ou seus descendentes lutam para manter a naturezahereditáriaeaindependênciadesuasregiões,queanteriormentehaviamsidoespéciesdefeudos.

Porumlado,osreiseramforçadosadelegaraoutrosindivíduospoderessobrepartedeseuterritório.Ascondiçõesdosmeiosmilitares,econômicosedetransportenaépocanãolhesdeixavamalternativa.Asociedadenãolhesproporcionavafontesdereceitatributáriaquelhespermitissemmanterumexércitoprofissionaloudelegadosoficiaisremuneradosem regiões remotas.Aúnica formadepagá-losou remunerá-losconsistianadoaçãodeterras— em volume grande o suficiente para garantir que eles seriam realmente maisfortesquetodososdemaisguerreirosoudonosdeterradaregião.

Poroutrolado,nãohaviajuramentodefidelidadeoulealdadequeimpedisseosvassalosque representavam o poder central de afirmar a independência de suas áreas tão logosentissem pender em seu proveito a balança de poder. Esses senhores territoriais oupríncipeslocaispossuíam,naverdade,aterraqueoreioutroracontrolava.Excetoquandoameaçados por inimigos externos, nãomais necessitavamdo rei.Colocavam-se fora deseupoder.Quandodeleprecisavamcomolídermilitar,omovimentoerainvertidoeojogorecomeçava, supondo que o suserano fosse vitorioso na guerra. Neste caso, graças aopodereameaçaqueemanavamdesuaespada,elerecuperavaocontrolerealsobretodooterritórioepodiaredistribuí-lonovamente.Essefoiumdosprocessosqueserepetiramnodesenvolvimento da sociedade ocidental em começos da Idade Média e, às vezes, emformaalgomodificada,emperíodosposteriores.

5.ExemplosdessesprocessosaindahojeseencontramforadaEuropa,emregiõesnasquaisvigoraumaestruturasocialsemelhante.OdesenvolvimentodaAbissíniademonstra-o fartamente, embora sua sociedade tenha sido ultimamente um tanto modificada peloingressodamoedaeoutrasinstituiçõesprocedentesdaEuropa.AascensãodoRasTafariàposição de suserano ou imperador de todo o país, porém, só se tornou possível pela

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subjugaçãomilitardossenhoresterritoriaismaispoderosos.Jáocolapsoinesperadamenterápido diante da Itália se explica em boa parte pelo fato de que, nessa região feudal epredominantemente agrária, as tendências centrífugas dos territórios individuais seacentuaramdesdequeogovernantecentralfracassouemsuamissãomaisimportante,aderesistiraoinimigoexterno,mostrando,dessamaneira,queera“fraco”.a

Na história européia, traços desse mecanismo são encontrados já na época dosmerovíngios. Neste caso, já estão presentes “os começos de um fenômeno quetransformouoscargosimperiaismaiselevadosemformashereditáriasdegoverno”.6Atémesmo a esse período aplica-se o princípio que dispõe: “Quantomaior se torna o realpoder econômico e social desses servidores,menos pode amonarquia tentar retirar umcargoda famíliaqueoocupa,pormotivodamortedeseu titular.”7Emoutraspalavras,grandes partes do território passaram do controle do suserano para o de governanteslocais.

Seqüênciasdefatosdomesmotipoemergiramcommaisclarezanoperíodocarolíngio.CarlosMagno,deformamuitoparecidaaoimperadordaAbissínia,substituiusemprequepossívelosvelhosduques locaispor seuspróprios “oficiais”,os condes.Quando, aindaem sua vida, esses condes demonstraram possuir vontade independente e exercer umcontrole efetivo sobreo territórioque lhes fora confiado, despachouumanovaondademembrosdeseucírculocomoenviadosreais,osmissidominici,afimdesupervisioná-los.Sob Luís, o Pio, a função de conde já começava a adquirir caráter hereditário. OssucessoresdeCarlosMagnojánãoconseguiammais“escapardoreconhecimentofactualdodireitoàhereditariedade”.8Osprópriosenviadosreaisperderamsuafunção,forçandoLuís, o Pio, a retirar osmissidominici. Sob esse rei, que carecia do renomemilitar deCarlos Magno, as tendências centrífugas no interior da organização imperial e socialvieramà luz.AtingiramseuprimeiropicosobCarlosIIIque,em887, jánãoconseguiudefenderPariscontraos inimigosexternos,osnormandosdinamarqueses,pelopoderdaespadaesódificilmenteofezpelopoderdodinheiro.Foicaracterísticodessa tendênciaque, com o fim da linhagem direta dos carolíngios, a coroa passasse inicialmente paraArnulfodeCaríntia,filhobastardodeCarlomano,sobrinhodeCarlos,oGordo.Arnulfoprovaraseuvalorcomochefemilitarnosconflitosdefronteiracontratribosestrangeirasque invadiamoImpério.Aoliderarosbávaroscontraofracosuserano,ele rapidamenteconquistou o reconhecimento de outras tribos, os francos do ocidente, os turíngios, ossaxõeseossuábios.Comochefemilitarnosentidooriginal,foielevadoàdignidadedereipela nobreza guerreira das tribos germânicas.9Mais uma vez, ficava demonstrado, comgrandeclareza,ondeafunçãodereinessasociedadeassentavaseupoderelegitimidade.Em 891, conseguiu rechaçar os normandos em Louvain-sobre-o-Dyle. Mas quando,confrontadocomumanovaameaça,hesitouapenasligeiramenteemconduziroexércitoàbatalha,areaçãofoiimediata.Prontamenteasforçascentrífugasassumiramocontroleemseu domínio fracamente unificado: “Illo diumorante, multi reguli in Europa vel regnoKaroli sui patruelis excrevere,” dizia um autor da época.10 Por toda parte na Europa,pequenosreissurgiramquandoelerelutouporummomentoemcombater.Essefatoilustraem uma única frase as regularidades sociais que, nessa fase, imprimiam suamarca nodesenvolvimentodasociedadeeuropéia.

Omovimento,maisumavez,seguecursoinversosobosprimeirosimperadoressaxões.O fatodequeogovernoem todoo império tenhacaídonasmãosdosduques saxônios

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mostra,maisumavez,qualeraaprincipalfunçãodosuseranonessasociedade.Ossaxõeseramparticularmentevulneráveisàspressõesdetribosnão-germânicasqueavançavamdoleste.Constituíaoprimeirodeverdeseusduquesproteger-lhesoterritóriotribal.Mas,aofazê-lo,elesdefendiamtambématerradeoutrastribosgermânicas.Em924,HenriqueIconseguiu negociar pelomenos uma trégua com os húngaros; em 928, ele avançou atéquase Brandenburgo; em 929, estabeleceu fortes de fronteira em Meissen; em 933,derrotouoshúngarosemRiade,massemdestruí-losourealmenteafastaroperigo;eem934, no Schleswig, conseguiu restabelecer as fronteiras setentrionais contra osdinamarqueses.11 E fez tudo isso principalmente na qualidade de duque saxão. Foramvitóriasdesaxõessobrepovosquelhesameaçavamasfronteiraseterritórios.Masaolutarevencerdentrodesuasprópriasfronteiras,osduquessaxõesobtiveramopodermilitareareputação imprescindíveis para combater as tendências centrífugas que lavravamdentrodoimpério.Atravésdevitóriasexternas,lançaramosalicercesdeumpodercentralinternofortalecido.

HenriqueIconseguira,demodogeral,mantereconsolidarasfronteiras,pelomenosnonorte.Logoquefaleceu,osvênedosdenunciaramotratadodepazcomossaxões.OfilhodeHenrique,Oto,rechaçou-os.Nosanosde937e938,oshúngarosavançaramnovamenteeforamdeidênticamaneirarepelidos.Iniciou-senessaépocaumanovaemaisvigorosaexpansão.Em940,oterritóriogermânicochegouàregiãodorioOder.Ecomosempre,ealiás também no presente, à conquista de novas terras seguiu-se a implantação daorganizaçãoeclesiásticaque—naquelaépocacommuitomaisvigordoqueemnossosdias—serviaparaconsolidaradominaçãomilitar.

Amesmacoisaaconteceunosudeste.Em955—aindaemterritóriogermânico—oshúngaros foram derrotados em Augsburgo e, dessa forma, mais ou menos expulsosdefinitivamente da região. Como barreira contra eles, foi criada a Marca Oriental, oembriãodafuturaÁustria,comafronteiraaproximadamentenaregiãodePressburg.Maisparaleste,naáreadoDanúbiocentral,oshúngaroscomeçaramlentamenteaseestabeleceremcaráterpermanente.

Os sucessosmilitares deOto aumentaram seu poder dentro do império.Em todos oscasospossíveis,tentousubstituirosdescendentesdossenhoresinstaladosporimperadoresanteriores e que nesse momento se opunham a ele na qualidade de chefes locaishereditários,porseusprópriosparenteseamigos.ASuábiafoidadaaseufilho,Ludolfo,aBaviera a seu irmão, Henrique, a Lorena ao cunhado Conrado, a cujo filho Oto deutambémaSuábia,quandoLudolfoserebelou.

Simultaneamente, procurou—de formamais deliberada, aoqueparece, doque seuspredecessores—combaterosmecanismosqueconstantementedebilitavamocentralismo.Fez isso, por um lado, limitando os poderes dos governantes locais que instalava. Poroutro, ele, e ainda mais resolutamente seus sucessores, enfrentaram esse mecanismoinstituindoreligiososnogovernodeváriasregiões.Abisposfoiconferidoocargoseculardeconde.Anomeaçãodealtasfiguraseclesiásticas,semherdeiros,tinhaaintençãodepôrfim à tendência de funcionários da autoridade central de transformar-se em uma“aristocraciahereditáriaelatifundiária”,comfortesdesejosdeindependência.

A longo prazo, contudo, essas medidas, tomadas para combater forçasdescentralizadoras, apenas as reforçaram. Culminaram finalmente na conversão de

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governantes clericais em príncipes, em potentados mundanos. Reemergiu apreponderânciadastendênciascentrífugas,enraizadasnaestruturadessasociedade,sobreas centrípetas. No curso do tempo, as autoridades espirituais demonstraram nãomenosinteresse que as seculares na preservação de sua hegemonia independente sobre oterritórioquelhesforaconfiado.Foi tambémdointeressedelasqueaautoridadecentralnão se tornasse forte demais. Essa convergência dos interesses de altos dignitárioseclesiásticos e seculares foi um fator quemuito contribuiu, séculos a fio, paraminar opoderefetivodaautoridadecentraldoImpérioGermânico,enquantoaumentavamopodereaindependênciadosgovernantesterritoriais—oinversodoqueaconteceranaFrança.Nesta, as principais figuras eclesiásticas jamais se tornaram grandes governantes nosaeculum.Os bispos, cujas propriedades em parte se espalhavam pelas terras de váriossenhoresterritoriais,permaneciaminteressadosempreservarumaforteautoridadecentral,tendo em vista sua própria segurança. Esses interesses convergentes da Igreja e damonarquia,estendendo-seporumconsiderávelperíododetempo,deramaopodercentralpreponderância,desdecedo,sobreastendênciascentrífugas.Anteriormente,contudo,porefeitodomesmoprocesso,oImpérioFrancodoOcidentedesintegrou-seaindamaisrápidaeradicalmentedoqueodoOriente.

6. Os últimos carolíngios do Ocidente foram, segundo todas as versões,12 homenscorajosos e perspicazes, alguns deles dotados de qualidades notáveis.Mas enfrentaramuma situação que pouca oportunidade dava ao governante central e quemostrava, comgrandeclareza,comonessaestruturasocialerafácilmudar-seocentrodegravidade,emprejuízodosuserano.

Deixandode lado seupapel comochefemilitar, conquistador edistribuidordenovasterras,abasedopodersocialdosuseranoconsistianaspossesdesuafamília,naterraquecontrolavadiretamenteecomaqualtinhaquesustentarseusserviçais,corteeagregadosarmados.Nesterespeito,osuseranonãodesfrutavadesituaçãomelhorqueadequalqueroutrogovernanteterritorial.AmaiorpartedodomíniopessoaldoscarolíngiosfrancosdoOcidentehaviasido,nocursodelongaslutas,distribuídaemtrocadeserviçosprestados.Afimdeobtererecompensarapoio,seusantepassadoshaviamsidoobrigadosadistribuirterra. Em todas as ocasiões em que isso acontecia — sem novas conquistas —, suaspropriedadespessoaiseramreduzidas.Essasituaçãodeixavaosfilhosnumaposiçãoaindamais precária. Toda nova ajuda implicava novas perdas de terra. No fim, os herdeirospoucomaistinhamparadistribuir.Osagregadosquepodiamsustentarepagartornaram-secadavezmenosnumerosos.Osúltimoscarolíngios francosdoOcidenteenfrentaram,àsvezes,situaçõesdedesespero.Parasermosexatos,seusvassaloseramobrigadosasegui-losnaguerra.Massenãosentiaminteressepessoalemassimproceder,sóapressãoabertaoudisfarçadadeumsenhorfeudalmilitarmentepoderosoéquepodiainduzi-losacumpriressaobrigação.Notocanteaopodermilitar,comotambémnoquediziarespeitoàterra,essesmecanismossociais,umavezpostosemmovimento,debilitaramprogressivamenteaposiçãodosreiscarolíngios.

LuízIV,umhomemvalentequelutoudesesperadamentepelasobrevivência,àsvezeséchamadode“leroideMonloon”,oreideLaon.Detodasaspropriedadesfamiliaresdoscarolíngiospouco lhe restava, salvoa fortalezadeLaon.Emcertasocasiões,osúltimosfilhosdacasamalpossuíamtropasparalutaremsuasguerras,damesmamaneiraquemalpossuíam, em matéria de terra, o suficiente para sustentar e pagar seus seguidores:

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“ChegouaépocaemqueosdescendentesdeCarlosMagno,cercadospordonosdeterraque eram senhores de seus domínios, não tiveram outromeio demanter homens a seuserviçodoque lhesdando território, comconcessõesde imunidade, istoé, ligando-osaeles ao torná-los mais independentes, e continuando a reinar ao abdicarem cada vezmais”.13Dessamaneira, a função damonarquia despencou irremediavelmente, e tudo oqueseusocupantes fizeramparamelhoraraposiçãoacabou,no fim,por sevirarcontraeles.

7. O antigo território dos carolíngios francos do Ocidente, o embrião do que deviatransformar-se na França, por essa época se havia desintegrado em grande número deáreasgovernadasseparadamente.Apósprolongadalutaentreváriossenhoresterritoriais,deforçaaproximadamenteigual,estabeleceu-seumaespéciedeequilíbrio.Aoextinguir-sealinhagemdiretadoscarolíngios,oschefesesenhoresterritoriaiselegeramumdeles,cujaCasasuperaraasdemaisnalutacontraosnormandoshostisequepormuitotempofora a rivalmais forte damonarquiamoribunda.Analogamente, nas regiões francas doOriente,comofimdoscarolíngios,ospríncipeslocaisquehaviamdefendidocomsucessoo país contra os povos invasores do leste e norte, os eslavos, os húngaros e osdinamarqueses,istoé,osduquesdaSaxônia,foramtransformadosemreis.

EssasucessãofoiprecedidaporumademoradalutaentreaCasadeFrânciaeosúltimoscarolíngiosfrancosdoOcidente.

QuandoacoroapassouaosprimeirosnapessoadeHugoCapeto,eles jáestavam,decerta forma, debilitados por um processo semelhante ao que provocara a queda doscarolíngios.OsduquesdeFrância,igualmente,haviamsidoobrigadosaformaraliançaseobter serviços em troca de terras e direitos. O território dos duques normandos, queentrementeshaviasidocolonizadoereceberaocristianismo,osducadosdaAquitâniaedaBorgonha,oscondadosdeAnjoueFlandres,oVermandoiseaChampagne,erampoucomenores,e,emalgunsaspectos,atémaisimportantes,doqueoterritóriofamiliardanovaCasaRealdeFrância.E,nessaépoca,oquecontavaeraopoderfamiliareoterritório.Opoderdisponívelaoreiatravésdaspropriedadesdesuafamíliaconstituíaabaseconcretadopoder régio.Seaspossesda famílianãoerammaioresqueasdeoutrosgovernantesterritoriais, então seupoder tampoucoeramaior.Dosoutros territórioso rei recebia,nomáximo,emolumentoseclesiásticos.Oqueauferiaalémdissoemsuacondiçãode“rei”era mínimo. Além do mais, o fator que, nos territórios germânicos, restabeleciaconstantemente a preponderância da função real centralizadora sobre as tendênciascentrífugas dos governantes territoriais, ou seja, sua função como chefemilitar na lutacontra inimigos externos e na conquista de novas terras, cessou, em um estágiorelativamente antigo, de ter importância na área franca ocidental. E essa foi uma dasrazõesdecisivasparaadesintegraçãododomíniorealesuatransformaçãoemterritóriosindependentes ocorrer mais cedo aqui e, no começo, de forma mais radical. A regiãofranca doOriente esteve exposta pormuitomais tempo a ataques e ameaças de tribosestrangeiras. Por isso mesmo, os reis não só reemergiam constantemente como chefesmilitares,emguerras travadasemaliançacomvárias tribos,paraproteger-lhesas terras,mas também tiveram oportunidade de invadir e conquistar novas terras, que depoisdistribuíam.Por issomesmo, foram inicialmente capazesdemanternadependênciaumnúmerorelativamentegrandedeagregadosevassalos.

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Emcontraste,aáreafrancadoOcidente,desdequeosnormandosseestabeleceram,malfoi ameaçada por tribos externas. Além domais, não havia possibilidade de conquistadiretadenovasterrasalémdasfronteiras,aocontráriodaregiãofrancadoOriente.Estefato acelerou a desintegração. Faltavam ao rei os principais fatores que lhe davampreponderância sobre as forças centrífugas: a defesa e a conquista. Uma vez quevirtualmentenadahavianaestruturasocialquetornasseasváriasregiõesdependentesdosuserano, o domínio deste último reduziu-se, de fato, a poucomais do que seu próprioterritório.

Essechamadosoberanopoucomaisédoqueumbarão,quepossuinasmargensdoSenaedoLoirecertonúmerodecondados que poucomaiores são do que quatro ou cinco dos atuais départements. O domínio real mal dá parasustentar-lheamajestadeteórica.NãoéomaiornemomaisricodosterritóriosqueconstituemaFrançadehoje.Orei émenos poderoso que alguns de seus principais vassalos. E tal como eles, vive da renda produzida por suasposses,detributospagosporseuscamponeses,dotrabalhodeseusservosedos“donativosvoluntários”dasabadiasebispadosdeseuterritório.14

Pouco depois da coroação deHugoCapeto, a debilitação não só dos reis individuaismasdaprópriafunçãoreal,ecomelaadesintegraçãodosterritóriosreais,começoulentaeininterruptamenteaseacentuar.OsprimeirosCapetoaindaviajavampelopaísseguidosdesuacorte.Oslocaisondeforamassinadosdecretosreaisdão-nosumaidéiadamaneiracomoelesviajavamdeumladoparaooutro.Aindapresidiamajulgamentosnassedesdosmaioresvassalos.MesmonosuldaFrança,conservavamcertainfluênciatradicional.

EminíciosdoséculoXII,anaturezainteiramentehereditáriaeindependentedosváriosterritórios antes sujeitos ao rei tornou-se fato consumado.OquintodosCapeto,Luíz, oGordo(1108-37),umsenhorvalente,beligeranteenadadébil,poucavoztinhaforadeseupróprio território. Os decretos reais mostram que ele quase nunca viajava fora dasfronteirasdeseupróprioducado.15Residiaemseuprópriodomínioenãomaistransferiaacorteparaasterrasdosgrandesvassalos.Estesraramenteapareciamtambémnacortereal.A troca de visitas cordiais tornou-se mais rara, e mais esparsa a correspondência comoutraspartesdoreino,particularmentecomosul.AFrança,noiníciodoséculoXII,era,namelhordashipóteses,umauniãodeterritóriosindependentes,umafederaçãofrouxadedomínios maiores e menores, entre os quais se estabelecera uma espécie de equilíbrioprovisório.

8.NoImpérioGermânico,apósumséculodeguerrasentreosdetentoresdacoroarealeimperial e as famílias dos poderosos duques, um destes últimos, da Casa da Suábia,conseguiu, no séculoXII, subjugarosdemais e, por algum tempo, reunir na autoridadecentralosnecessáriosmeiosdepoder.

A partir de fins do século XII, porém, o centro social de gravidade, também naGermânia,moveu-se cada vezmais clara e inevitavelmente na direção dos governantesterritoriais.Nãoobstante,enquantonaimensaáreado“ImperiumRomanum”germânico,ou “Sacrum Imperium”, comomais tarde veio a ser chamado, osEstados territoriais seconsolidavamapontodepoderem,nessemomentoeduranteséculos,impediraformaçãodeumfortepodercentrale,destarte,aintegraçãodetodaaárea,naáreamenordaFrançaadesintegração extremade finsdo séculoXII começanessemomento aospoucos—ecomreveses—,deformaregularecontinuada,acederlugaràrestauraçãodaautoridadecentral e à lenta reintegração de regiões cada vezmais extensas em torno de umúnicocentro.

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Acenadessadesintegração radicaldeveservistacomo,decertamaneira,opontodepartida, sequeremoscompreendercomoáreasmenores seaglutinarampara formarumaunidademais forteeatravésdequeprocessossociais seconstituíramosórgãoscentraisdasunidadesmaisamplasdegoverno,quedesignamospeloconceitode“absolutismo”—a máquina de governo que forma o esqueleto dos Estados modernos. A relativaestabilidadedaautoridadeedasinstituiçõescentrais,nafasequedenominamosde“Idadedo Absolutismo”, contrasta vivamente com a instabilidade da autoridade central naprecedentefase“feudal”.

O que teria havido na estrutura da sociedade que beneficiou a centralização na faseposteriormasfortaleceuasforçasqueaelaseopunhamnafaseanterior?

Essaperguntanosremeteaocentrodadinâmicadosprocessossociais,àsmudançasnoentrelaçamento e interdependência humanas, em conjunto com as quais a estrutura dacondutaedaspulsõesfoialteradanadireçãoda“civilização”.

9. Não é difícil compreender o que deu às forças descentralizadoras na sociedademedieval, particularmente nos seus primórdios, preponderância sobre as tendênciascentralizadoras.Essesfatosforamenfatizadosdeváriasmaneirasporhistoriadoresdessaépoca.Hampe,porexemplo,emseuestudosobreaAltaIdadeMédiaEuropéia,escreve:AfeudalizaçãodosEstadosportodaaparteobrigouosgovernantesadarterrasaseuschefesdeexércitoeoficiais.Sequeriamevitar serempobrecidosnesseprocesso,econtinuarausarosserviçosmilitaresdeseusvassalos,eramtambémvirtualmenteobrigadosatentaraexpansãopelasarmas,geralmenteaexpensasdovácuodepoderàvoltadeseusterritórios.Na época, não era economicamente possível evitar essa necessidade, constituindo umaburocracianospadrõesmodernos.16

Essa citaçãomostra a natureza fundamental das forças centrífugas e dosmecanismosem que se enredava amonarquia na sociedade, contanto que a “feudalização” não sejaentendidacomo“causa”externadetodasessasmudanças.Osvárioselementosdodilema,tais como a necessidade de conceder terras a guerreiros e servidores, a inevitáveldiminuição das propriedades reais, a menos que se procedesse a novas guerras deconquista, a tendência da autoridade central a debilitar-se em tempos de paz, tudo issofaziapartedograndeprocessode“feudalização”.Acitaçãoindicatambémcomoessetipoespecífico de governo e de máquina governamental estavam indissoluvelmenteentrelaçadoscomumaestruturaeconômicaespecífica.

Ou, tornandomais explícito o que se disse acima: enquanto as relações de escambopredominassem na sociedade, era quase impossível a formação de uma burocraciafortementecentralizadaeumamáquinaestáveldegovernoquefuncionasseprimariamenteatravés demeios pacíficos e fosse dirigida sempre por um centro.As fortes tendênciasacimadescritas—orei-conquistador,oenvioderepresentantesdaautoridadecentralparaadministrar o país, a independência desses indivíduos ou de seus herdeiros comogovernantes territoriais e suas lutas contra o poder central — correspondem a certasformasderelaçõeseconômicas.Se,nasociedade,aproduçãodeumapequenaougrandeglebadeterraerasuficienteparaatenderatodasasnecessidadesessenciaisdavidadiária,dovestuárioaosalimentoseimplementosdomésticos,seerapoucodesenvolvidaadivisãodotrabalhoeatrocadeprodutosemlongasdistâncias,ese,concomitantemente—todosessesdiferentesaspectosincluíam-senamesmaformadeintegração—,asestradaseram

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ruins e subdesenvolvidos os meios de transporte, era muito fraca também ainterdependência das diferentes regiões. Só quando a interdependência cresceuconsideravelmente é que instituições relativamente estáveis puderam ser estabelecidas,enfeixandocertonúmerodeáreasmaiores.Antesdisso, a estrutura social simplesmentenãoofereciabaseparaelas.

Apropósito,escreveuumhistoriadorsobreoperíodo:“Malpodemosimaginaroquantoeradifícil,dadasascondiçõesmedievaisdetransporte,governareadministrarumextensoimpério”.17

Carlos Magno, também, tirava o seu sustento e o de sua família principalmente daproduçãodepropriedadesespalhadasentreoReno,oMaaseoMosela.Cada“Palatium”,oucastelo—naconvincenteanálisedeDopsch18—estavavinculadoacertonúmerodeunidades familiares e aldeias situadas nas vizinhanças. O imperador e rei movia-se decasteloacastelonessaárearelativamentepequena,eleeseusagregadosvivendodarendaproduzida por essas famílias e aldeias. Embora, mesmo nessa época, não deixasse dehaver comércio a longa distância, este se limitava essencialmente a bens de luxo e, dequalquermodo, não abrangia artigos de uso diário.Nemmesmo o vinho era, demodogeral,transportadoalongadistância.Quemquisessebebê-lotinhaqueproduzi-loemseupróprio distrito e só os vizinhos mais próximos é que podiam obter alguma parte doexcedente,mediante troca.Esse omotivo por que, na IdadeMédia, havia vinhedos emregiões em que o vinho não émais hoje produzido, uma vez que as uvas eram azedasdemaisouporseremantieconômicasasplantações,como,porexemplo,naFlandresenaNormandia. Inversamente, regiões como a Borgonha, que para nós são sinônimos devinicultura, não eram tão especializadas na produção de vinho, comomais tarde veio aacontecer. Nelas, também, cada agricultor e cada terra tinha que ser, até certo ponto,“autárquico”. Ainda no século XVII, havia na Borgonha apenas 11 paróquias em quetodos os moradores eram plantadores de uvas.19 Assim, lentamente, os vários distritostornaram-seinterligados,ascomunicaçõesforamdesenvolvidas,expandiram-seadivisãodo trabalho e a integração de áreas maiores e de populações, bem como aumentoucorrespondentementeanecessidadedemeiosdetrocaeunidadesdecálculoquetivessemomesmovalornumextensoterritório,ouseja,amoeda.

Afimdecompreenderoprocessocivilizador,édesumaimportânciaformarumaclaraevívidaconcepçãodessesprocessossociais,doquesequerdizercom“economiadetroca,doméstica, de escambo”, “economia monetária”, “interdependência de grandespopulações”, “mudança na dependência social do indivíduo”, “crescente divisão defunções”, e assim por diante. Com uma facilidade grande demais, esses conceitostransformaram-se em fetiches verbais, que perderam toda a sua qualidade pictórica edestarte,realmente,todaclareza.Afinalidadedestaanálisenecessariamentesucintaédarumapercepçãoconcretadasrelaçõessociaisaquireferidaspeloconceitode“economiadeescambo”,outroca.Oqueestaindicaéumamaneiramuitoespecíficapelaqualpessoasseligam e se tornam dependentes umas das outras. Aponta uma sociedade em que atransferênciadebensdohomemqueostiradosolooudanaturezaparaohomemqueosusaocorrediretamente,istoé,semouquasesemintermediários,eondeelaéfeitanacasade um ou de outro, o que pode ser a mesma coisa. Só muito lentamente é que essatransferência se torna mais diferenciada. Aos poucos, mais e mais pessoas entram noprocesso, como agentes do processamento e distribuição, na transferência de bens do

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produtor primário para o consumidor final.É umaquestão distinta o como e, acima detudo,oporqueissoacontece,quala forçapropulsorapor trásdoprolongamentodessascadeias.Dequalquermodo,amoedanadamaisédoqueuminstrumentonecessárioqueasociedadecriaquandoessascadeiasseestendemaindamais,quandotrabalhoeproduçãovêm a ser diferenciados, e que, em certas circunstâncias, tende a reforçar essadiferenciação. Se forem usadas as expressões “economia de escambo” e “economiamonetária”,podefacilmenteparecerqueexistisseumaantíteseabsolutaentreessasduasformas econômicas, uma antítese imaginada, que provocou um sem-número decontrovérsias.Noprocessosocialreal,ascadeiasentreproduçãoeconsumomudaramesediferenciaram muito lentamente, para nada dizer do fato de que em alguns setores dasociedade ocidental, nunca cessaram inteiramente as comunicações econômicas a longadistânciae,assim,ousodamoeda.Dessamaneira,comgrandelentidão,osetormonetárioda economia voltou a crescer, como também a diferenciação das funções sociais, ainterdependênciadasdiferentesregiõeseadependênciarecíprocadegrandespopulações,constituindotodaselasdiferentesaspectosdomesmoprocessosocial.E,deigualmaneira,amudançanaformaemáquinadogoverno,acimadiscutida,nadamaisfoidoqueoutroaspectodesseprocesso.Aestruturadosórgãoscentraiscorrespondiaàestruturadadivisãoeentrelaçamentodefunções.Aforçadastendênciascentrífugasvoltadasaumaautarquiapolítica local, em sociedades baseadas predominantemente na economia de troca,correspondeuaograudaautarquiaeconômicalocal.

10. De modo geral, podemos distinguir duas fases no desenvolvimento dessassociedadesguerreiraspredominantementeagrárias, fasesquepodemocorrerapenasumavezoualternar-secomfreqüência:adossuseranosbeligeranteseexpansionistaseadosgovernantesconservadoresquenãoconquistamnovas terras.Naprimeira fase,é forteaautoridade central. A função social primária do suserano nessa sociedade manifesta-sediretamente:adechefedoexército.Se,durantelongoperíododetempo,aCasaRealnãosemanifestanessepapelbeligerante,seoreinãoénecessáriocomolídermilitarounãotemsucessocomotal,asfunçõessecundáriasdesmoronamtambém,comoporexemploadeárbitrosupremooujuizderegiõesinteiras,eafinalogovernantenadamaistemqueseutítuloparadistingui-lodeoutrossenhoresterritoriais.

Na segunda fase, se as fronteiras estão seguras e, por uma razão ou outra, torna-seimpossível a conquista de novas terras, as forças centrífugas necessariamente assumempapel preponderante. Embora o rei conquistador tenha efetivamente controlado todo opaís,emtemposdepazrelativaopaísescapa,cadavezmais,asuaautoridade.Todososquepossuemumpedaçodeterraseconsideramcomoseuprincipalgovernante.Essefatorefleteadependênciaquetêmdosuserano,que,emtemposdepaz,émínima.

Nesse estágio, quando não existe ou apenas está começando a interdependênciaeconômicaeaintegraçãodegrandesáreas,surgeaindacommaisvigorumaformanão-econômicadeintegração:aintegraçãomilitar,aaliançapararepeliruminimigocomum.Além do senso tradicional de comunidade, com sua base maior na fé comum, e seusprincipaisdefensoresnoclero—masquenuncaimpedeadesintegraçãonembastaparagerarumaaliança,meramenteafortalecendoeorientandoemcertasdireções—,oanseiode conquistar e a necessidade de resistir à conquista constituem os fatores maisimportantes de coesão entre pessoas residentes em regiões relativamentedistantes umasdasoutras.Poressamesmarazão, todasasaliançasdesse tipoemtaissociedadeseram,

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em comparação com períodos posteriores, altamente instáveis, e muito sensível apreponderânciadasforçasdescentralizadoras.

As duas fases dessa sociedade agrária — de governantes conquistadores ouconservadores,oumeramentedeesforçosnumaounoutradireção—poderiamalternar-se,conformejánotamos.EfoiissooqueaconteceunahistóriadoOcidente.Osexemplosdodesenvolvimentogermânicoefrancês,porém,demonstramtambémque,adespeitodetodososmovimentosemsentidocontrárionosperíodosdosgovernantesconquistadores,atendência dos domínios maiores a se desintegrarem e da terra a passar do controle dosuseranoparaodeseusantigosvassalosprosseguiuininterruptamenteatécertaépoca.

Por quê? Diminuíra a ameaça externa ao antigo Império Carolíngio, que, na época,constituía realmente o Ocidente? Teria havido outras causas para essa progressivadescentralizaçãodoImpério?

Aquestãodas forçaspropulsorasdesseprocessopoderá assumirnova importância sefor abordada em função de um conceito bem-conhecido.A gradual descentralização degovernoeterritório,atransferênciadaterra,docontroledosuseranoconquistadorparaoda casta guerreira como um todo, nada mais é do que o processo conhecido como“feudalização”.

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III

OAumentodaPopulaçãoApósaMigraçãodosPovos11.Jáháalgumtempo,acompreensãodoproblemadafeudalizaçãovempassandopor

umaacentuadamudançaque,talvez,mereçamaiorênfasedoqueatéagorarecebeu.Comoacontececomosprocessossociaisemgeral,ométodomaisantigodepesquisahistóricanãoconseguiuenfocardevidamenteoprocessodefeudalizaçãonoOcidente.Atendênciaa pensar em termos de causas isoladas, a identificar fatores individuais gerando astransformações sociais ou, quando muito, a examinar apenas o aspecto legal dasinstituiçõessociaiseabuscarosexemplos,deacordocomosquaisforammodeladosporesteouaqueleagente—tudoissotornouessesprocessoseinstituiçõestãoinacessíveisaonossoentendimentocomoeramosprocessosnaturaisparaospensadoresescolásticos.

Recentemente,algunshistoriadorescomeçaramaabrirumnovocaminhoparacolocaraquestão. Cada vez mais, os historiadores interessados pelas origens do feudalismoenfatizam que esse sistema não foi criação deliberada de indivíduos nem consistiu eminstituiçõesquepossamser explicadasde forma simplesporoutras, anteriores.Dopsch,por exemplo, diz sobre a feudalização: “Aqui estamos interessados em instituições quenãoforamcriadasdeliberadaeintencionalmentepelosEstadosoupelostitularesdopoderestatalcomofimdeatingircertosfinspolíticos.”20

Calmettedescrevedemaneira aindamais clara essamaneiradeabordarosprocessossociais dahistória:Pormais diferentequeo sistema feudal seja doqueoprecedeu, eleresultadiretamentedomesmo.Nãofoiproduzidoporumarevoluçãoouporumavontadepessoal.Fazpartedeumalongaevolução.Ofeudalismopertenceàcategoriadaquiloquepoderia ser chamado de “ocorrências naturais” ou “fatos naturais” da história. Suaformaçãofoideterminadaporforçasquasemecânicaseocorreuporetapas.21

EmoutrotrechodeseulivroLasociétéféodale,dizele:Parasermosexatos,oconhecimentodeantecedentes,istoé,defenômenosanálogosanterioresaumdadofenômeno,é interessante e instrutivo para os historiadores e não iremos ignorá-lo.Mas esses “antecedentes” não foram osúnicos fatores envolvidos e talvez nemmesmo osmais importantes.O principal não é saber de onde procede o“elementofeudal”,sesuasorigensdevemserprocuradasemRomaouentreospovosgermânicos,masporqueesseelementoassumiuseucaráter“feudal”.Seessasfundaçõessetransformaramnaquiloquesabemos,devemosissoaumaevoluçãocujosegredonemRomanemosgermânicospodemnosrevelar…Suaformaçãoéresultadodeforçasquesópodemsercomparadasàsdecarátergeológico.22

O emprego de imagens tiradas dos reinos da natureza ou da tecnologia é inevitável,porquanto nossa linguagem não criou um vocabulário claro, específico, para descreverprocessos sócio-históricos.Omotivo por que as imagens são provisoriamente buscadasnessesreinospodeserexplicadosemdificuldade:porora,elasexpressambemanaturezacompulsivadosprocessos sociaisnahistória.Eemboracom issopossamosexpor-nosamal-entendidos,comoseosprocessossociaisesuascompulsões,originando-senasinter-relaçõeshumanas,fossemdamesmanatureza,digamos,queocursodaTerraemvoltadoSolouque a açãodeumaalavancanamáquina, o esforçopara encontrar umamaneiranova,estrutural,deequacionarasquestõeshistóricasrevela-secomgrandeclarezanessas

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formulações. É sempre importante a relação das instituições mais recentes com asinstituições semelhantesdeuma faseanterior.Masaquiaquestãohistóricadecisivaéomotivoporquemudam as instituições,e, também,acondutaeaconstituiçãoafetivadepessoas, e por que mudam dessa maneira particular. Estamos interessados na ordemrigorosa das transformações sócio-históricas. E talvez não seja fácil, mesmo hoje,compreender que essas transformações não devem ser explicadas por algo que, em si,permanece inalterado, e ainda menos fácil compreender que, na história, nenhum fatoisoladojamaisproduzporsimesmoqualquertransformação,masapenasemcombinaçãocomoutros.

Finalmente, essas transformações permanecem inexplicáveis enquanto a explicaçãoficarlimitadaàsidéiasdeindivíduosexpostasemlivros.Quandopesquisamosprocessossociais, temosqueexaminara redede relacionamentoshumanos,aprópria sociedade,afimdeidentificarascompulsõesqueasconservamemmovimentoelhesconferemformae direção particulares. Isso se aplica tanto ao processo de feudalização quanto ao dacrescentedivisãodotrabalho,etambémaincontáveisoutrosprocessosrepresentadosemnosso aparato conceitual por palavras sem o caráter de processo, e que destacam, emespecial, instituições formadas pelo processo em questão, como, por exemplo, osconceitosde“absolutismo”,“capitalismo”,“economiadetroca”,“economiamonetária”,eassimpordiante.Todoselesapontamparaalémdesimesmos,paramudançasnaestruturadosrelacionamentoshumanosque,evidentemente,nãoforamplanejadasporindivíduoseàsquaiselesficaramsujeitos,quisessem-noounão.Eaplica-se,finalmente,amudançasnaconstituiçãodasprópriaspessoas,aoprocessocivilizador.

12.Umdosprincipaismotoresdamudançana estruturadas relaçõeshumanas, e dasinstituições a elas correspondentes, é o aumento ou diminuição das populações. Elestampoucopodemserisoladosdetodaateiadinâmicadasrelaçõeshumanas.Nãosãoemsi, como os hábitos do pensamento nos inclinam a supor, a “causa primeira” domovimentosócio-histórico.Entreosfatoresentrelaçadosdamudança,porém,constituemumelementoimportante,quejamaisdeveserignorado,equedemonstra,comumaclarezatoda especial, a natureza irresistível dessas forças sociais.Resta saberquepapel fatoresdesse tipo desempenharam na fase sob discussão. Talvez ajude a compreendê-los serecordarmosbrevementeosúltimosmovimentosnasmigraçõesdospovos.

AtéosséculosVIIIeIX,tribosprovenientesdoleste,norteesuldesabavamemondassucessivassobreaspartesjápovoadasdaEuropa.Essafoiaúltimaemaioronda,emummovimento que vinha se desenvolvendo desde muito tempo. O que dela vemos sãopequenos episódios: a irrupção dos “bárbaros” helênicos pelas áreas povoadas da ÁsiaMenor e da península balcânica, a penetração dos “bárbaros” italianos na vizinhapenínsula ocidental, o avanço dos “bárbaros” célticos pelo território dos italianos, quenesse momento haviam se tornado, até certo ponto, “civilizados”, e cuja terra setransformaraemumcentrode“culturaantiga”,eoassentamentodefinitivodessastriboscélticasaoesteeparcialmenteaonortedosmesmos.

Por último, tribos germânicas ocuparam grande parte do território céltico, queentrementes dera também origem a uma “culturamais antiga”.Os germânicos, por seulado,defenderamessaterra“culta”,quehaviamconquistado,contranovasondasdepovosqueavançavamdetodososlados.

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PoucodepoisdamortedeMaomé,em632,osárabesentramemmovimento.23Em713,jáhaviamconquistado todaaEspanha, comexceçãodasmontanhasdasAstúrias.PelosmeadosdoséculoVIII,aondafoidetidanafronteirasuldoImpérioFranco,assimcomoantesocorreracomasondascélticas,anteosportõesdeRoma.

Vindodo leste, triboseslavasavançaramcontrao ImpérioFranco.Emfinsdo séculoVIII,chegaramaoElba.

Se, no ano 800, um profeta político tivesse ummapa da Europa, da forma como ora podemos reconstruí-lo, elepoderiamuitobemequivocar-seepredizerquetodaametadeorientaldocontinente,dapenínsuladinamarquesaatéoPeloponeso,estavadestinadaatornar-seumImpérioEslavoou,pelomenos,umpoderosogrupodepaíseseslavos.DoestuáriodoElbaatéomar Jônico,corriauma linha ininterruptadepovoseslavos…equepareciadelimitarafronteiradoterritóriogermânico.24

Omovimentodessespovossedeteveumpoucodepoisdodosárabes.Nolongoperíodoqueseseguiu,alutaprossegiusemumadecisão.Afronteiraentreastribosgermânicaseeslavasmovia-seoranumadireção,oranoutra.Demodogeral,aondaeslavafoicontidanoElbaapartirdoano800.

O que poderia ser chamado de “território inicialmente colonizado” do Ocidentepreservara, sob o domínio e liderança das tribos germânicas, suas fronteiras contra astribosmigrantes.Representantes das ondas precedentes defenderam-na contra as que seseguiram, as últimas ondas de migração a varrerem a face da Europa. Essas tribos,impedidasdeprosseguir emseuavanço, instalaram-se lentamente foradas fronteirasdoImpérioFranco.Dessaforma,umafímbriaderegiõespovoadasformou-se,emtornodoImpérioFranco, emgrandes áreasdo interiordaEuropa.Tribos anteriormentenômadesradicaram-senaterra.Asgrandesmigraçõesterminaramlentamente;asnovasinvasõesdepovosmigrantesquevieramaocorrer(doshúngarosefinalmentedosturcos)esboroaram-se cedo ou tarde diante das técnicas defensivas superiores e do poder daqueles que jáocupavamaterra.

13. Estava criada uma nova situação. Já não havia espaços vazios na Europa.Virtualmentenãohaviamaisterrautilizável—utilizávelemtermosdastécnicasagrícolasentãoconhecidas—quenãoestivesseocupada.Demodogeral,aEuropa,eacimadetudoas suas grandes regiões interioranas, estava mais compactamente povoada do que emqualqueroutraépoca,aindaqueincomparavelmentemenosdensadoquenosséculosqueseseguiram.Ehá todasas indicaçõesdequeapopulaçãoaumentavanamesmamedidaemque diminuíam as sublevações que acompanhavam as grandesmigrações. Esse fatomudoutodoosistemadetensõesentreosváriospovosenointeriordecadaumdeles.

NaAntiguidade tardia, a população das “velhas regiões culturais” diminuiumais oumenosrapidamente.Emconseqüência,desapareceramtambémasinstituiçõessociaisquecorrespondiamapopulaçõesrelativamentenumerosasedensas.Oempregodamoedanasociedade,porexemplo,estáligadoacertoníveldedensidadedemográfica.Constituiumaprecondição essencial à diferenciação do trabalho e à formação de mercados. Se apopulaçãocaiabaixodecertonível—porquaisquerquesejamasrazões—,osmercadosautomaticamenteseesvaziam.Diminuemascadeiasentreohomemqueproduzumbemextraídodanaturezaeoconsumidor.Odinheiroperdeafunçãodeinstrumento.TaleraadireçãododesenvolvimentoaofimdaAntiguidade.Osetorurbanodasociedadereduziu-se. Aumentou o caráter agrário da sociedade. Esse fenômeno ocorreu ainda maisfacilmenteporqueadivisãodo trabalhonaAntiguidadenuncafoinemremotamente tão

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grande como, por exemplo, em nossa própria sociedade. Certa proporção de unidadesfamiliaresurbanaserasempre,atécertoponto,diretamenteabastecida,independentementedos intermediários comerciais ou manufatureiros, pelas grandes propriedadesescravagistas. E como o transporte por terra de mercadorias em longas distâncias erasempre extremamente difícil, em virtude do estado da tecnologia na Antiguidade, ocomérciodesse tipobasicamente se limitavaao transporteporágua.Grandesmercados,cidades e atividademonetária vigorosa desenvolviam-se nas proximidades da água. Asáreas interioranas preservavam sempre um tipo de economia predominantementedoméstico. Mesmo no caso das populações urbanas, a unidade familiar autárquica e aauto-suficiênciaeconômicanuncadeclinaramnamesmaextensãoqueocorrenamodernasociedade ocidental. Com o declínio na população, esse aspecto da estrutura social daAntiguidaderecuperouimportância.

Com o fim da migração dos povos, esse movimento mais uma vez se inverteu. Achegada e o subseqüente assentamento de tantas novas tribos criaram a base para umapopulaçãonovaemaioremtodaaáreaeuropéia.Noperíodocarolíngio,essapopulaçãoainda exibia uma economia quase inteiramente doméstica, talvez mais até do que noperíodomerovíngio.25Podemoster,talvez,umaindicaçãodessasituaçãonofatodequeocentro político se moveu ainda mais para o interior, onde até então — devido àsdificuldades do transporte por terra— os centros políticos anteriores aos do Ocidentemedievalnuncasehaviamsituado,compouquíssimasexceções,entreelasadoImpérioHitita.Podemos supor que a população, nesseperíodo, começava a crescer comgrandelentidão.Jáouvimosfalaremderrubadadeflorestas,oquesempreconstituiumsinaldequea terraestáse tornandoescassa,dequeadensidadedapopulaçãoestáaumentando.Mas esses certamente foram apenas os estágios iniciais. As migrações dos povos nãohaviamaindacessadointeiramente.SóapartirdoséculoIXéquesemultiplicamossinaisdeaumentomaisrápidodapopulação.E,nãomuitodepois,jásurgemindicaçõesdeumasuperpopulaçãoaquieali,nasantigasregiõescarolíngias.

AquedanoníveldapopulaçãoaofimdaAntiguidade,alentaascensão,umavezmais,em circunstâncias diferentes, no rescaldo dasmigrações de povos inteiros, e esse curtoretrospectodevemsersuficientesparanosfazerlembraracurvadessemovimento.

14.Fasesdeperceptívelexcessodemográficoalternaram-senahistóriadaEuropacomoutrasdepressão internamaisbaixa.Otermo“excessodemográfico”exige,noentanto,umaexplicação.Nãoresultavadonúmeroabsolutodepessoasqueresidiamemcertaárea.Emsociedadesaltamenteindustrializadas,comutilizaçãointensivadaterra,comérciodelongadistância altamente desenvolvido e governos que favorecemo setor industrial emdetrimentodoagrícola,podevivertoleravelmentecertonúmerodepessoasque,emumaeconomia de troca, com métodos agrícolas extensivos e pouco comércio de longadistância, constituiriam um excesso de população, com todos seus sintomas típicos. O“excesso de população”, por conseguinte, é acimade tudo uma expressão descritiva docrescimento demográfico em uma dada área até o ponto em que, na estrutura socialexistente, a satisfação de necessidades básicas só é possível para um número cada vezmenordepessoas.Por issomesmo,deparamoscom“excessodepopulação”apenasemrelação a certas formas sociais e a certo conjuntodenecessidades, ou seja, umexcessosocialdepopulação.

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Seussintomasemsociedadesqueatingiramcertograudediferenciaçãosão,emtermosgerais,sempreosmesmos:aumentodastensõesnasociedade;maiorisolamentoentreosque“têm”,istoé,numaeconomiapredominantementedeescambo,osque“têmterra”,eos que “não têm”, oude qualquermaneira não têmo suficiente para se sustentaremdemaneira consentânea com seus padrões; e, não raro,maior isolamento, no seio dos que“têm”,daquelesquetêmmaisdoqueoresto;umacoesãomaispronunciadadepessoasnamesma situação social, a fim de resistirem à pressão dos que estão de fora ou,inversamente,umaumentodapressãosobreáreasvizinhascompopulaçõesmenoresoudefesasmaisfracase,finalmente,umaumentodaemigraçãoedatendênciaaconquistaroupelomenosestabelecer-seemnovasterras.

Édifícilsaberseasfontesdisponíveispodemdar-nosumquadroexatodocrescimentodemográfico na Europa nos séculos que se seguiram às migrações e, em especial, dasdiferenças em densidade demográfica nas diversas regiões. Mas uma coisa é certa: àmedidaqueasmigraçõesiamlentamentecessando,equeaslutasmaisintensasentreastribos chegavam ao fim, todos os sintomas dessa “superpopulação social”, um após ooutro, fizeram seu aparecimento — com o rápido crescimento demográfico sendoacompanhadoporumatransformaçãonasinstituiçõessociais.

15. Os sintomas de uma crescente pressão demográfica apareceram claramente pelaprimeira vez no Império Franco do Ocidente. Nessa região, por volta do século IX, aameaça criada por tribos estrangeiras diminuiu lentamente, ao contrário da situaçãovigente no Império Franco doOriente.Na parte do Império que recebeu seu nome, osnormandos haviam se tornadomais pacíficos.Comajuda da Igreja franca doOcidente,eles absorveram rapidamente a língua e toda a tradição que os cercava, e nas quais semesclavam elementos galo-românicos e francos. Adicionaram, assim, novos elementosaosquejápossuíam.Emparticular,introduziramprogressosimportantesdasuaestruturaadministrativanocontextoterritorial.Daíemdiante,desempenharampapeldecisivocomoumadasprincipaistribosnafederaçãodosterritóriosfrancosdoOcidente.

Os árabes e sarracenos eram responsáveis por perturbações ocasionais na costa doMediterrâneo,mas, demodo geral, a partir do século IX dificilmente constituíramumaameaçaàsobrevivênciadoImpério.

AlestedaFrançaestendia-seo“Imperium”germânicoque,sobosimperadoressaxões,voltara a se tornar poderoso.Compequenas exceções, a fronteira entre ele e o ImpérioFrancodoOcidentemalsealteroudoséculoXatéoprimeiroquarteldoséculoXIII.26Em925,aLotaríngiafoitomadadoImpérioe,em1034,aBorgonha.Àparteessesfatos,astensões ao longo da fronteira permaneceram estáveis até 1226. As tendênciasexpansionistasdoImpériovoltavam-seprincipalmenteparaoleste.

Aameaçaexternaao ImpérioFrancodoOcidente,porconseguinte,era relativamenteligeira. Igualmente pequenas, contudo, eram as possibilidades de expansão além dasfronteirasexistentes.Oleste,emespecial,estavabloqueadopeladensidadepopulacionalepelaforçamilitardoImpério.

Dentro dessa área, porém, nesse momento em que diminuíra a ameaça externa, apopulação começou a expandir-se fortemente. Cresceu tanto após o século IX que, emcomeçosdoséculoXIV,eraprovavelmentetãonumerosacomoaqueexistianosinícios

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doséculoXVIII.27

Essemovimento,claro,nãosedesenvolveuemlinhareta,masháinúmerasindicaçõesademonstrarque,demodogeral,apopulaçãoaumentoumuito.Masessas indicaçõestêmqueservistascomoumtodo,sequisermoscompreenderaforçadomovimentogeraleosignificadodecadapeçaindividualdedocumentação.

DosfinsdoséculoXemdiante,emaisaindanoséculoXI,apressãosobreaterra,odesejo de novas terras e amaior produtividade das antigas, tornaram-se cada vezmaisvisíveisnaregiãofrancaocidental.

Conforme dissemos, já se derrubavam florestas no período carolíngio, e sem dúvidaantesdele.NoséculoXI,porém,oritmoeextensãododesmatamentoaumentaram.Eramabatidosbosqueseterraspantanosastornadasaráveis,tantoquantoopermitiaatecnologiadaépoca.Operíodode1050amaisoumenos1300foiagrandeeradodesflorestamentoeda conquista interna de novas terras na França.28 Por volta de 1300, esse movimentocomeçouadiminuir.

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IV

AlgumasObservaçõessobreaSociogênesedasCruzadas16.Ograndeataqueexternoamainara.Aterraerafértil.Apopulaçãocrescia.Aterra,o

mais importante dosmeios de produção, o supra-sumo da propriedade e da riqueza nasociedade,tornara-seescassa.Odesmatamento,oempregodenovasterrasnaregião,nãoeram mais suficientes para contrabalançar a escassez. Novas terras teriam que serconquistadas além-fronteiras. Paralelamente à colonização interna, ocorreu a conquistaexterna de novos territórios. Em princípios do século XI, cavaleiros normandoscomeçaramadirigir-separaaItália,ondeofereceramsuaespadaapríncipesindividuais.29Em1029,umdelesrecebecomofeudo,pelosserviçosqueprestou,umapequenaglebadeterraaonortedasfronteirasdoducadodeNápoles.Chegamoutros,entreelesosfilhosdeumpequenosenhornormando,TancredodeHauteville.Tendo12filhos,dequemaneirapoderiasustentá-los,emumpadrãoconsentâneo,comaspoucasterrasquepossuía?Oitodelesdirigiram-separaaItáliaeláobtiveram,nodevidotempo,oquelheseranegadonopaísdeorigem:ocontroledeumpedaçodeterra.Umdeles,RobertoGuiscardo,acabousetornando o chefe reconhecido dos guerreiros normandos. Uniu as propriedades outerritóriosquemembrosdesuagreihaviamrecebidoporseusserviços.Apartirde1060,sobsualiderança,elescomeçaramapenetrarnaSicília.AofalecerRobertoGuiscardoem1085,ossarracenoshaviamsidorepelidosparaocantosudoestedailha.Todoorestanteseencontravaemmãosnormandaseformavaumnovoimpériofeudal.

Nadadisso fora realmenteplanejado.No início,haviapressãodemográficae faltadeoportunidades em casa, emigração de indivíduos cujos sucessos atraíamoutros; no fim,tínhamosumimpério.

Algo semelhante acontecia naEspanha.No séculoX, cavaleiros franceses acorreramemauxíliodospríncipesespanhóisemsuaslutascontraosárabes.Conformejádissemos,aárea francaocidental, aocontráriodaoriental,não fazia fronteira comáreasextensas,abertasàcolonizaçãoehabitadasnamaiorparteportribosdesunidas.Aleste,oImpérioimpediaexpansãoulterior.Apenínsulaibéricaeraaúnicasaída.AtémeadosdoséculoXI,apenasindivíduosisoladosoupequenosgruposcruzaramasmontanhas;mais tarde,elesgradualmente se transformaram em exércitos. Os árabes, cindidos internamente, sóofereciam resistência fraca, esporádica. Em 1085, Toledo foi capturada e, em 1094,Valência,portropassobocomandodeElCid,masparaserretomadapelosinimigoslogodepois.Alutaprosseguiuemumvaivém.Em1095,umcondefrancêsfoiinvestidocomoterritórioreconquistadodePortugal.Massóem1147,comajudademembrosdaSegundaCruzada, é que seu filho conseguiu finalmente obter controle de Lisboa e lá, até certoponto,estabilizarseudomíniocomoreifeudal.

ÀparteaEspanha,aúnicapossibilidadedeconquistarnovasterrasnasproximidadesdaFrançasituava-senooutroladodoCanaldaMancha.JánaprimeirametadedoséculoXI,cavaleirosnormandos isoladoshaviamatacadonessadireção.Em1066,porém,oduquenormando, à frente de umexército de cavaleiros de suanação e de franceses, cruzouocanal,chegouàilha,tomouopodereredistribuiuaterra.Aspossibilidadesdeexpansão,

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asperspectivasdeobtençãodenovas terrasnasvizinhançasdaFrança tornaram-secadavezmaisrestritas.Osolhosseestenderamparamaislonge.

Em1095, antes que os grandes senhores feudais começassem a semexer, um bandocomandado pelo cavaleiro Walter Habenichts, ou Gautier Senzavoirb, partiu paraJerusaléme terminouporserdestruídonaÁsiaMenor.Em1097,umpoderosoexércitosob o comando de senhores territoriais franceses e normandos avançou contra a TerraSanta.Antes, esses cruzados conseguiramapromessade ser investidos, pelo imperadorromanodoOriente,comas terrasqueviessemaconquistar;prosseguiramentãoemseuavanço,ocuparamJerusalémefundaramnovosdomíniosfeudais.

Nãohá razãopara supor que, semaorientaçãoda Igreja e os laços religiosos comaTerraSanta,aexpansãotivesseseorientadoexatamenteparaessaregião.Neméprovávelque,semapressãosocial,inicialmentenaregiãofrancaocidentalemaistardeemtodasasdemaisregiõesdaCristandadelatina,asCruzadasocorressem.

Note-sequeastensõesnasociedadenãosemanifestavamapenasnodesejodeterraepão.Naverdade,exerciampressãomentalsobretodaapessoa.Apressãosocialforneceuaforçamotivadora,maisoumenoscomoumgeradorfornececorrenteelétrica.Pôspessoasemmovimento, cabendo à Igreja dirigir a força preexistente, que enfeixava a angústiageralelhedavaumaesperançaeumobjetivoforadaFrança.Econferiuàlutapornovasterrasumsignificadoejustificaçãonobres.Transformou-senumalutapelafécristã.

17. As Cruzadas constituíram uma forma específica da primeira grande onda deexpansão e colonização deslanchada pelo Ocidente cristão. Durante as migrações dospovos, quando tribosdo leste enordestemarcharamemdireção aooeste e sudoeste, asáreas utilizáveis da Europa haviam sido ocupadas até suas fronteirasmais distantes, asIlhas Britânicas. Nesse momento, já haviam cessado as migrações. Clima ameno, solofértil e energias sem limites favoreciam amultiplicação rápida das populações. A terratornou-seescassademais.Aondahumanaficaraencurraladanumbecosemsaída,decujoconfinamentorefluiuparaoleste,tantonasCruzadascomodentrodaprópriaEuropa,deonde as áreas de população germânica gradualmente se expandiram para o leste, adespeito de séria resistência, deixandopara trás oElba e chegando aoOder, daí para oestuáriodoVístulae,finalmente,paraaPrússiaeasterrasbálticas,emboratenhamsidoapenasoscavaleiros,enãoosagricultores,osquemigraramtãolonge.

Mas exatamente esse último fato demonstra muito bem uma das peculiaridades quedistinguiram essa primeira fase de superpopulação social e expansão das que se derammais tarde.Demodo geral, com o avanço do processo civilizador e das concomitanteslimitação e regulação das pulsões humanas — o avanço é sempre maior nas classessuperiores que nas inferiores, por razões que serão discutidas adiante —, a taxa denatalidadedeclinoulentamente,emgeralcommenosrapideznoestratoinferiordoquenosuperior. Essa diferença entre a taxa média de natalidade das classes alta e baixa serevestiu,comfreqüência,degrande importânciaparaamanutençãodospadrõesdevidadaprimeira.

A primeira fase de rápido crescimento demográfico noOcidente cristão distinguiu-sedasposteriores,contudo,pelofatodequenelaoestratogovernante,aclasseguerreira,ounobreza,aumentouquasequecomamesmarapidezqueoestratodosservos,arrendatários

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e camponeses, em suma, daqueles que cultivavam diretamente a terra. A luta pelasoportunidades disponíveis que, com o crescimento da população, necessariamentediminuemparacadaindivíduo,asrixasincessantesqueessastensõesdesencadeiam,aaltataxa demortalidade infantil, a doença e a peste, tudo isso pode ter eliminado parte doexcedente humano. E é bem possível que o campesinato relativamente desprotegidosofressemais que os guerreiros.Além domais, a liberdade demovimento do primeirogrupo era tão limitada e, acima de tudo, eram tão difíceis as comunicações entre asdiferentes regiões,queoexcessodemão-de-obranãopodiaser rápidaeuniformementedistribuído. Dessa maneira, a falta de mão-de-obra podia resultar de rixas, pilhagens,pestes,daaberturadenovasterrasoudafugadosservosdagleba,enquantoumexcedenteseacumulavaemoutrasparagens.E,naverdade,temos,noquedizrespeitoaessemesmoperíodo,umaclaraprovadoexcessodeservosnumaáreaedosesforçosfeitosporoutraspara atrair rendeiros livres, hospites30 — isto é, de governantes oferecendo melhorescondiçõesaostrabalhadores.

Mas, o que quer que tenha acontecido, o que mais caracterizou o processo emdesenvolvimento nessa esfera foi o fato de que não só um “exército de reserva” deescravos e servos estava se formando,mas tambémum “exército de reserva“ da classesuperior, de cavaleiros sem terras ou, pelo menos, sem o suficiente para manter seuspadrões de vida. Só assim poderemos compreender a natureza dessa primeira faseexpansionista do Ocidente. Os camponeses, os filhos de servos, indubitavelmentetomaram parte, de uma forma ou de outra, nas lutas pela colonização,mas o principalimpulso proveio da carência de terras pelos cavaleiros. Novas terras só podiam serconquistadaspelaespada.Cavaleirosabriramcaminhopelaforçadasarmas,assumiramaliderança e formaram o grosso dos exércitos. A população excedente da classe altaimprimiu,nesseprimeiroperíododeexpansãoecolonização,asuamarcaespecial.

Acisãoentreosquepossuíam terras e aquelesquenada tinham,ou só tinhammuitopouco, cindia a sociedade de cima a baixo. Por um lado, havia, no início, osmonopolizadores de terra— famílias de guerreiros, Casas nobres e latifundiários, mastambém camponeses, escravos, servos, hospites, que ocupavam a gleba que ossustentavam,aindaqueprecariamente.Poroutro,haviaaquelesdeambasasclassesqueestavamprivadosdeterras.Osmembrosdasclassesinferiores—desalojadospelafaltadeoportunidades ou pela opressão de seus senhores — desempenharam certo papel nasemigrações e colonizações,mas, acimade tudo, formaramapopulaçãode cidades cadavezmaiores.Membrosdaclassedosguerreiros,emsuma,os“filhosmaismoços”,cujasherançaserampequenasdemaisparalhesatenderasnecessidades,osque“nadatinham”entreoscavaleiros,passampelosséculosusandoasmáscarassociaismaisdíspares:comocruzados,chefesdebandosdeassaltantes,mercenáriosaserviçodosgrandessenhores—,atéque,finalmente,formamabasedosprimeirosexércitospermanentes.

18.Aexpressãomuitocitada,“Nenhumaterrasemumsenhor”,nãoconstituíaapenasum princípio jurídico básico. Era também o lema da classe guerreira. Traduzia anecessidadedoscavaleirosdeseapossaremdetodosospedaçosdeterrautilizável.Cedoou tarde, isso acontecera em todas as regiões daCristandade latina.Todas as glebas deterraeramsólidapropriedadedealguém.Ademandadeterra,porém,continuavaemesmocrescia.Ediminuíamasoportunidadesdesatisfazê-la.Elevou-seapressãopelaexpansão,paralelamenteàstensõesnasociedade.Adinâmicaespecíficaqueeraassimtransmitidaà

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sociedadecomoumtodo,porém,nãoemanavaapenasdosdescontentes.Necessariamente,comunicava-se aos que eram ricos em terras.Nos cavaleiros pobres, cheios de dívidas,decadentes, a pressão socialmanifestava-se como um desejo simples de um pedaço deterra ede trabalhadoresqueos sustentassem,de acordocomseuspadrões de vida.Nosguerreiros mais ricos, os maiores latifundiários e senhores de territórios, expressava-seigualmentecomooanseiodenovas terras.Masoquenobaixoescalãoeraumsimplesdesejo demeios de subsistência, apropriados à classe do indivíduo, constituía nosmaisaltosumimpulsoparapossuirdomíniosmaisvastos,“mais”terrae,portanto,maispodersocial, também. Esse anseio demais terras entre os latifundiáriosmais ricos, acima detudonosquecompunhamamaisaltacamada,oscondes,duquesereis,nãotinhaorigemapenas na ambição pessoal de indivíduos. Já vimos com o exemplo dos francoscarolíngios ocidentais, e também dos primeiros Capeto, como, a menos que houvessepossibilidade de conquista de novas terras, até mesmo Casas Reais eram forçadas adeclinarporumprocessosocialirresistível,baseadonapropriedadeedistribuiçãodeterra.E se, durante toda essa fase da expansão externa e interna, vemos não só os cavaleirospobres,mastambémmuitosricos,lutandoparaconquistarnovasterrase,assim,aumentaropoderde suas famílias, issonadamais foidoqueumsinalda forçaqueaestruturaesituação da sociedade impunham ao mesmo anseio em todos os estratos, fossesimplesmenteodepossuirterra,nocasodosdespossuídos,fosseodepossuir“mais”terra,nocasodosricos.

Jásesupôsquetalanseiopor“mais”propriedade,essacompulsãoaquisitiva,fosseumacaracterística exclusiva do “capitalismo”e, assim, dos tempos modernos. Segundo essaopinião,asociedademedievalsedistinguiapelasatisfaçãocomumarendaapropriadaàposiçãosocialdecadaum.

Dentro de certos limites, essa tese é sem dúvida correta, se o desejo de “mais” éentendidocomoseaplicandoapenasaodinheiro.Mas,duranteboapartedaIdadeMédia,não era a posse de dinheiro, mas a de terra, que constituía a forma essencial depropriedade. A compulsão aquisitiva teve assim, necessariamente, forma e direçãodiferentes.Exigiamodosdecondutadiversosdosvigentesnumasociedademonetáriaedeeconomia de mercado. Pode ser verdade que só nos tempos modernos é que sedesenvolveuumaclasseespecializadanocomércio,comodesejodeganharumvolumecadavezmaiordedinheiro,atravésdeumtrabalhoincessante.Asestruturassociaisque,naeconomiapredominantementedetrocanaIdadeMédia, levavamaumdesejosempremaiordepossuirmeiosdeprodução—eseusaspectosestruturais,importantesemambosos casos— são menos fáceis de se perceber porque o que se desejava era terra, nãodinheiro.Alémdomais,asfunçõespolíticasemilitaresaindanãosehaviamdiferenciadodaseconômicas,comoocorreugradualmentenasociedademoderna.Aaçãomilitareasambições políticas e econômicas eram, na maior parte, idênticas; o desejo ardente deaumentarariquezasobaformadeterrasequivaliaàmesmacoisaqueampliarasoberaniaterritorialeaumentaropodermilitar.Ohomemmaisriconumaáreadeterminada,istoé,oquepossuíamaisterras,eraportantoomilitarmentemaispoderoso,comomaiornúmerodeservidorese,aumsótempo,comandantedeexércitoegovernante.

Exatamente porque o relacionamento entre um dono de propriedade e outro nessasociedadeeraanálogoaoquehojeexisteentreEstados,aaquisiçãodenovasterrasporumvizinhorepresentavaumaameaçadiretaouindiretaaosoutros.Implicava,comohoje,uma

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mudançadeequilíbrionoqueeraemgeralumsistemamuitoinstáveldebalançadepoder,noqualosgovernanteseramsemprepotenciaisaliadosouinimigosunsdosoutros.Essefoi,porconseguinte,omecanismosimplesque,nessafasedeexpansãointernaeexterna,manteve tantooscavaleirosmaisricosepoderososquantoosmaispobresemconstantemovimento,todoselessempreemguardacontraaexpansãodosoutroseinvariavelmenteprocurando aumentar suas posses. Quando uma sociedade é colocada nesse estado demovimentaçãopelobloqueiodaexpansãoterritorialepelapressãodemográfica,todososquese recusamacompetir, equeremmeramenteconservar suaspropriedades,enquantooutrosseesforçamparaaumentá-las,terminamnecessariamentesendo“menores”emaisfracosdoqueosdemais,ecorremoperigosempremaiordesucumbiraelesnaprimeiraoportunidade. Os ricos cavaleiros e senhores territoriais da época não consideravam oassuntodeformatãoteóricaegeralquantoaenfocamosaqui,maspercebiamnaprática,comgrandeclareza,oquantoficavamimpotentesàmedidaqueseusvizinhossetornavammais ricos em terras ou que outros conquistavam novas terras e soberania. Esses fatospodemserdemonstradoscommaisdetalhesno tocanteaos líderesdasCruzadas, como,porexemplo,GodofredodeBouillon,quevendeuehipotecousuasposseseuropéiasafimde conquistar outras,maiores, em regiõesmuito distantes e acabou fundandoum reino.Num período posterior, o mesmo fato poderia ser demonstrado pelo exemplo dosHabsburgo, que, mesmo como imperadores, foram dominados pela idéia de ampliar o“poder da família” e semostraram,mesmo como imperadores, inteiramente impotentessemoapoiodela.Naverdade,foiprecisamenteporcausadessapobrezaeimpotênciaqueo primeiro imperador da família foi escolhido para esse cargo por senhores poderosos,enciumadoscomopoderrecíproco.EissotambémpoderiaserilustradopelaimportânciaqueaconquistanormandadaInglaterra teveparaodesenvolvimentodoImpérioFrancodoOcidente.Naverdade, esse crescimentodopoderdeumúnicogovernante territorialimplicouumcompletodeslocamentodo equilíbriona aliançadegovernantes territoriaisque compreendiam o Império. O duque normando que, em seu próprio território, aNormandia,nãoeramenosafetadopelasforçascentrífugasquequalqueroutrogovernanteterritorial, não conquistou a Inglaterra para os normandos como um todo, masexclusivamenteparaaumentaropoderdesuaprópriafamília.Earedistribuiçãodeterrainglesaparaosguerreirosqueoacompanharamvisouexpressamenteacontrabalançarasforças centrífugas no seu novo reino, impedindo a formação de grandes domíniosterritoriais nopaís conquistado.Adistribuiçãode terra a seus cavaleiros foi ditadapelanecessidade de governá-la e administrá-la, mas evitando-se conceder uma grande áreaauto-suficienteaqualquerindivíduo.Atémesmoaosgrandessenhores,quepodiamexigirparasuamanutençãoaproduçãodegrandesáreas,eledistribuiuterrasdispersasportodoopaís.31

Aomesmotempo,eleascendera,comaconquista,àcondiçãodegovernanteterritorialmaispoderosodoImpérioFrancodoOcidente.Maiscedooumaistarde,teriaquehaveruma confrontação entre sua Casa e a dos duques de Frância, que eram os titulares damonarquia—umaconfrontaçãonaqualaprópriacoroaestariaemjogo.Esabe-sebemoaltograu emquegrandes acontecimentosnos séculos subseqüentes foramdeterminadospor essa luta entre osduquesdeFrância eNormandia, comoosgovernantesda IlhadeFrançarestauraramlentamenteoequilíbriodepodercomaaquisiçãodenovosterritórios,e como essas lutas, em ambos os lados do Canal, finalmente deram origem a doisdiferentes domínios e a duas diferentes nações.Mas esse é certamente um dos muitos

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exemplosdosprocessosirresistíveisque,nessafasedinâmicadaIdadeMédia, impeliamcavaleirosricosepobresademandarnovasterras.

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V

AExpansãoInternadaSociedade:AFormaçãodeNovosÓrgãoseInstrumentosSociais19.Aforçapropulsoradaexpansãosocial—adesproporçãoentreumapopulaçãocrescenteeasterrassujeitasaumregimedepropriedade

fixa—levougrandepartedaclassegovernanteaconquistarnovosterritórios.Essasaída,noentanto,estavaemsua

maiorpartebloqueadaaosmembrosdasclassesmaisbaixas,ostrabalhadores.Assim,aspressõesderivadasdaescassezdeterratomaramprincipalmenteumaoutradireção,ouseja,adiferenciaçãodotrabalho.Osservosexpulsosdaterraforneceram,conformedissemos,materialparaocrescenteassentamentodeartesãosque,aospoucos,se

concentraramemtornodesedesfeudaisbem-situadas,ascidadesemcrescimento.

Aglomeradosumpoucomaioresdepessoas—apalavra“cidade”talveztransmitaumaimpressãoerrônea—jápodiamencontrar-senasociedadedoséculoIX,quevivianumaeconomiade troca.Masnãoeramcomunidadesque“viviamdosofíciosedocomércio,em vez do trabalho na terra, ou possuíam quaisquer direitos e instituições especiais”.32Eram fortalezas e, ao mesmo tempo, centros de administração agrícola dos grandessenhores.Asprópriascidadesdosperíodosanterioreshaviamperdidosuaunidade.Eramapenaspeçasjustapostas,gruposquepertenciamfreqüentementeadiferentescavaleirosediferentes domínios, alguns seculares, outros, eclesiásticos, cada um deles levando suaprópria vida econômica independente. O único contexto da atividade econômica era apropriedade, o domínio do senhor territorial. Produção e consumo ocorriamessencialmentenomesmolugar.33

No século XI, porém, essas formações sociais começaram a crescer. Aqui também,como geralmente acontecia na expansão efetuada pelos cavaleiros, porém agoraigualmente entre os servos da gleba, eles começaram como indivíduos desorganizados,trabalhadores excedentes, impelidos a procurar esses centros.A atitudedosgovernantesem relação aos recém-chegados, que emcada casovinhamdeuma terra diferente, nemsempre era a mesma.34 Às vezes, concediam-lhes um mínimo de liberdade, mas, namaioriadoscasos,esperavameexigiamosmesmosserviçosetributosquecobravamdeseusprópriosservoserendeiros.Oacúmulodessagente,noentanto,mudouarelaçãodepoder entre o senhor e a classe inferior.Os recém-chegados ganharam força através donúmero, e gradualmente alcançaram novos direitos em lutas sangrentas e, não raro,

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prolongadas. Essas lutas começaram primeiro na Itália, e um pouco mais tarde naFlandres:em1030emCremona,em1057emMilão,em1069emLeMans,em1077emCambrai,em1080emSaint-Quentin,em1099emBeauvais,em1108-9emNoyon,em1112 emLaon, e em1127 emSaint-Omer.Essas datas, juntamente comas referentes àexpansão territorial porpartedos cavaleiros, proporcionamumavisãogeral das tensõesinternasquenessafasemantinhamasociedadeemmovimento.Foramasprimeiraslutaspela libertação por parte de trabalhadores residentes em cidades. O fato de terem sidocapazes, após algumasderrotas, emsuas lutas comaclasseguerreiranamaiorpartedaEuropa, de obter direitos próprios, primeiro um grau limitado e depois substancial deliberdade, mostra como era grande a oportunidade que o desenvolvimento social lhescolocava nas mãos. E esse fato peculiar, a lenta ascensão dos estratos mais baixos,trabalhadoresurbanos,àautonomiapolíticae,finalmente—noiníciosobaformadeumaclassemédiadeprofissionais livres—à liderançapolítica forneceumaexplicaçãoparaquase todas as peculiaridades estruturais que distinguiam as sociedades ocidentaisdaquelasdoOrienteelhesconferiamsuamarcaespecífica.

EminíciosdoséculoXI,existiambasicamenteapenasduasclassesdehomenslivres,osguerreiros (ounobres)eoclero;abaixodeles,estavamosescravoseservos.Havia,porconseguinte,“aquelesquerezam,aquelesquelutam,eaquelesquetrabalham”.35

Porvoltade1200, istoé, apósdois séculos,oumesmoumséculoemeio—porque,como a derrubada das florestas e a expansão colonial, esse movimento também seacelerouapós1050—,grandenúmerodepovoadosdeartesãos,oucomunas,haviaobtidodireitosejurisdição,privilégioseautonomia.Umaterceiraclassedehomenslivresjuntou-se às duas outras.A sociedade se expandia, sob a pressão da falta de terras e aumentodemográfico, não apenas extensa mas também intensamente. Tornava-se diferenciada,geravanovascélulaseformavanovosórgãos,ascidades.

20.Comacrescentediferenciaçãodotrabalho,comosnovosemaioresmercadosqueentão se formavam, com o lento processo de troca a longa distância, porém, cresceuigualmenteanecessidadedemeiosdetrocamóveiseunificados.

À época em que o servo ou pequeno rendeiro levavam diretamente seus tributos aosenhor, quando era curta a cadeia entre produtor e consumidor, e sem intermediários, asociedadenãoprecisavadeumaunidadedecálculo,deummeiodetrocaaoqualtodososdemais objetos trocados pudessem ser referidos como a uma medida comum. Nessemomento,porém,comagradualseparaçãodosartesãosdaunidadeeconômicadafamília,com a formação de um corpo artesanal financeiramente independente e com a troca deprodutosatravésdemuitasmãoseaolongodecadeiasmaislongas,tornou-secomplicadaa rededeatos de troca.Era necessário umobjeto unificadode troca.Tornando-semaiscomplexaadiferenciaçãode trabalhoe troca,emaisativa,umvolumemaiordemoedapassouasernecessário.Odinheiroera,naverdade,umaencarnaçãodotecidosocial,umsímbolo da teia de atos de troca e cadeias humanas, através dos quais a mercadoriapassava em seu caminho do estado natural para o consumo. O dinheiro só se tornounecessário quando cadeias longas de troca se formaram na sociedade, isto é, em certoníveldedensidadedemográficaealtoníveldeinterdependênciaediferenciaçãosocial.

Serianecessáriaumadigressãograndedemaisparaestudaraquiaquestãodagradualdecadência da economia monetária em muitas áreas, no fim da Antiguidade, e seu

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ressurgimentoapartirdoséculoXI,maséprecisopelomenosformularumaobservaçãoarespeito.

Énecessárioressaltarqueamoedanuncasaiuinteiramentedeusonasáreashabitadasmais antigas da Europa. Durante todo esse período, subsistiram enclaves de economiamonetáriano interiordaeconomiade trocae, alémdisso, foradaáreacarolíngia,haviaextensasregiõesdovelhoImpérioRomanoondeacirculaçãodamoedanuncadiminuiunamesmaextensãoquenoImpériodeCarlosMagno.Podemossempreecomtododireito,por conseguinte, indagar sobre os “antecedentes” da economia monetária no OcidenteCristão,os enclavesondeelanuncadesapareceu.Caberiaperguntar:onde seoriginouaeconomiamonetária?Comquemsereaprendeuousodamoeda?Essetipodeindagaçãonãodeixadetervalor,poisédifícilimaginarqueesseinstrumentovoltasseaserusadodemodo relativamente tão rápido, senão tivesse sidodesenvolvidoemoutrascivilizações,precedentesouvizinhas,ousenuncahouvessesidoconhecido.

O aspecto essencial da questão relativa ao renascimento da circulação da moeda noOcidente,porém,nãoseesclarecedessamaneira.Permaneceaquestãodesaber-seporqueasociedadeocidentalprecisoude relativamentepoucodinheiroduranteo longoperíodode seu desenvolvimento e por que a necessidade e o emprego damoeda, com todas asconseqüentes transformações da sociedade, gradualmente voltaram a aumentar. Nesteparticular,a indagaçãodeveserdirigida,maisumavez,aos fatoresquesemoviam,quemudavam.Eaessaperguntanãoserespondecomoexamedasorigensdamoedaedosantecedentes da economia monetária. Responde-se apenas com o exame dos processossociais concretos que, após o lento refluxo da circulação da moeda na Antiguidadedecadente,maisumavezgeraramosnovosrelacionamentoshumanos,asnovasformasdeintegraçãoeinterdependência,quefizeramaumentarnovamenteanecessidadedemoeda:a estrutura celular da sociedade se diferenciava. Uma das manifestações disso foi oreaparecimento do uso da moeda. É de logo evidente que não foi apenas a expansãointerna, mas também as migrações e colonização que — através da mobilização depropriedades, do despertar de novas necessidades, do estabelecimento de relações decomércio em distâncias maiores — desempenharam papel importante nesserecrudescimento. Cada movimento individual, na interação global de processos, reagesobreosoutros,querobstruindo-os,querreforçando-os:comissoarededemovimentosetensões passa a complicar-se pela diferenciação social. Fatores únicos não podem serabsolutamente identificados. Mas sem a diferenciação na própria sociedade, sem apassagemdaterraparaapossefixa,semoviolentoaumentodemográfico,semaformaçãodecomunidadesindependentesdeartesãosemercadores,anecessidadedemoedanuncateriasurgidotãofortemente,nempoderiaosetormonetáriodaeconomiatercrescidocomtalrapidez.Amoedaeadiminuiçãoouaumentodeseuusonãopodemsercompreendidosemsi,masapenasdopontodevistadaestruturaderelacionamentoshumanos.Éaqui,naformamodificadade integraçãohumana, quedevemser procuradas asprincipaismolaspropulsorasdessatransformação.Claroque,quandoousodamoedacomeçouacrescer,essefatoajudou,porseuturno,aimpulsionaraindamaistodoomovimento—oaumentopopulacional, a diferenciação, o crescimento das cidades — até atingir um ponto desaturação.

“Os inícios do século XI caracterizaram-se, ainda, pela ausência de transaçõesmonetáriasemgrandeescala.Ariquezaestavaemgrandeparteimobilizadanasmãosda

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Igrejaedossenhoresterritoriaisseculares.”36

Posteriormente, aumentou a necessidade de instrumentos móveis de troca. A moedacunhadaemcirculaçãojánãoerasuficiente.Inicialmente,aspessoasseajeitavamcomopodiam,vendendobaixelaseornamentosemmetaispreciosos,queerampesadosafimdeproverumaunidadedecálculo;cavalos,igualmente,podiamservircomomedidadevalor;nova moeda foi cunhada para atender à necessidade crescente, isto é, peças de metalpreciosodecertopeso,validadopelasautoridades.Ecertamente,comanecessidadecadavezmaior de instrumentos de trocamóveis, o processo se repetiu em vários níveis. E,talvez,quandoaofertademoedanãomaisatendiaàdemanda,orecursoàtrocavoltasserepetidamenteaganharterreno.Aospoucos,adiferenciaçãocrescenteeoentrelaçamentodeaçõeshumanas,ovolumesempremaiordecomércioe troca,elevavamovolumedacunhagem e acontecia o oposto. Nos intervalos, aumentavam continuamente asdesproporções.

PelasegundametadedoséculoXIII,pelomenosnaFlandres,eumpoucomaiscedooumaistardeemoutrasregiões,ariquezamóveljáeraconsiderável.Circulavacomgranderapidez, “graças a uma série de instrumentos entrementes criados”:37 moedas de ourocunhadas no país — até então, mesmo na França, como na Abissínia dos temposmodernos, nenhuma moeda de ouro fora cunhada: circulavam, e eram guardadas nostesouros,moedasdeourobizantinas—juntamentecommoedasdepequenovalor,eletrasdecâmbioemedida—todaselassímbolosdecomoacadeiainvisíveldetrocaestavasetornandomaissólida.

21.Masdequemaneirapodiamseestabelecerrelaçõesdetrocaentreáreasdiferentes,ea diferenciação do trabalho estender-se além da região local, se o transporte erainadequado,seasociedadenãotinhacomodeslocarcargaspesadasalongasdistâncias?

Exemplos do período carolíngio jámostraram que o rei era obrigado a viajar com acorte de um palácio imperial a outro, a fim de consumir no local o produto de suaspropriedades.Pormenorquepudesseseracorte,emcomparaçãocomasqueseformaramnoiníciodafaseabsolutista,eratãodifícilmovimentarasquantidadesdebensnecessáriosaoseusustentoqueaspessoastinhamquesedeslocaratéondeestavamosbens.

Mas no mesmo período, quando a população, as cidades, a interdependência e seusinstrumentos cresciam de modo cada vez mais visível, o mesmo acontecia com otransporte.

NaAntiguidade,osarreiosdoscavalos,comoaliásdetodososanimaisdecarga,erampoucoapropriadosaotransportedecargaspesadasemlongasdistâncias.Équestãoabertaquedistânciaspodiamserpercorridasdessamaneira,embora,evidentemente,essemododetransportefossesuficienteparaaestruturaeasnecessidadesdaeconomiainterioranadaAntiguidade.Durantetodoesseperíodo,otransporteporterrapermaneceuextremamentecaro38, lentoedifícil, emcomparaçãocomo transporteporágua.Praticamente todososcentros de comércio se situavam na costa ou às margens de rios navegáveis. Essacentralizaçãodo transporte em tornodosmeios aquáticos era característicamarcantedaestruturadasociedadeantiga.Nasviasnavegáveise,acimadetudo,nascostasmarítimas,surgiram centros urbanos às vezes densamente povoados e ricos, cujas necessidades dealimentoseartigosdeluxocomfreqüênciaeramatendidasporregiõesmuitoremotas,e

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queconstituíameloscentraisnascadeiasaltamentediferenciadasdeumextensotráficodetrocas.Noimensointerior,que,viaderegra,sóeraacessívelaotransporteporterra,istoé,de modo geral na maior parte do Império Romano, a população satisfazia suasnecessidades primárias sobretudo com a produção do meio circundante. Nessa época,predominavamcadeiasdeprocuracurtasou,emoutraspalavras,oquesepoderiachamarmaisoumenosde “economiade escambo”,ou troca;pouquíssimamoedacirculava eopoder aquisitivo desse setor de escambo da economia antiga era baixo demais para aaquisiçãodeartigosdeluxo.Era,assim,muitograndeocontrasteentreopequenosetorurbanoeasextensasáreasdointerior.Talcomopequenosfiosnervosos,asáreasurbanasmaiores, situadas ao longo da vias navegáveis, se insinuavam pelos distritos rurais,drenando-lhes a força e os produtos do trabalho até que, com o declínio do governocentralizado, e em certa medida devido à ativa luta de elementos rurais contra osgovernantes urbanos, o setor agrário libertou-se da dominação das cidades.Mais tarde,esse setor urbano estreito,mais diferenciado, com sua extensa interdependência, entrouemdecadênciaefoiobliteradopelaformaalgoalteradadecadeiasdetrocaeinstituiçõesda economiade escambo, curtas e limitadas à região.Nesse setor urbanodominantedasociedade antiga, contudo, evidentemente não havia necessidade de desenvolver aindamaisotransporteporterra.Tudoqueaprópriaáreacircunvizinhanãopodiafornecer,ouapenascomaltocustodetransporte,podiaserobtidomaisfacilmentenoultramar.

Nesse momento, porém, no período carolíngio, a principal via navegável do mundoantigo,oMediterrâneo,estavafechada,principalmentedevidoàexpansãoárabe,paraumgrande número de povos. O transporte por terra e as ligações internas assumiram umaimportância inteiramente nova. Esse fato gerou uma pressão para que o transporte porterra fosse desenvolvido, a fim de promover a interdependência e a troca. E se,subseqüentemente,damesmaformaquenaAntiguidade,asligaçõesmarítimas,comoasque existiram entreVeneza eBizâncio, as cidades flamengas e a Inglaterra, voltaram adesempenhar um papel decisivo na ascensão do Ocidente, o caráter específico dodesenvolvimento ocidental não foimenos determinado pelo fato de que a rede de rotasmarítimasseligavaaumaredecadavezmaisdensadecomunicaçõesporterraedequegrandescentrosinterioranosdecomérciotambémvieramasurgir.Odesenvolvimentodotransporteporterra,paraalémdonívelatingidonomundoantigo,constituiumexemplomuitoclarodessagrandediferenciaçãoe interdependênciadesociedadesespalhadasportodasasáreasinterioresdaEuropa.

Oempregodecavaloscomoanimaisde tração,comojámencionamos,nãofoimuitodesenvolvidonomundoromano.Oarreiopassavapelagargantadoanimal.39Essesistematalvezfosseútilaocavaleiroparaguiaramontaria.Acabeçalançadaparatrás,apostura“altiva”docavalofreqüentementevistaembaixos-relevosantigos,eramconseqüênciadamaneiradeconduziroanimal.Mastornavamocavaloouamulainteiramenteimprópriospara a tração, especialmente de cargas pesadas, que necessariamente lhes apertavam agarganta.

Omesmoaconteciacomocalçamentodosanimais.Osantigoscareciamdasferradurasdeferro,fixadascomcravos,semasquaisnãosepodeexplorartodaaforçadocavalo.

AmbasassituaçõesmudaramlentamenteapartirdoséculoX.Namesmafaseemqueoritmo da derrubada das florestas aumentava gradualmente, quando a sociedade se

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diferenciavae se formavammercadosurbanos,quandoamoedapassavaa ser cadavezmaisusadacomosímbolodessa interdependência,o transportepor terra, também,sobaformadedispositivosparaexploraçãodaforçadetrabalhodoanimal,realizouprogressosdecisivos. Essemelhoramento, insignificante como possa nos parecer hoje, dificilmenteteve na épocamenos importância do que o desenvolvimento da tecnologia damáquinanumaépocaposterior.

“Numpoderosoesforçoconstrutivo”,escreveuumautor,40osusosdo trabalhoanimalseampliarammuito, aindaque lentamente,nocursodos séculosXIeXII.Na tração, aprincipalcargafoitransferidadagargantaparaasespáduas.Surgiuaferradura.NoséculoXIII,apareceu,emprincípio,atécnicamodernadetraçãoparacavalosebois.Lançavam-se assim os alicerces do transporte por terra em longas distâncias. Nomesmo período,surgiram o carro de rodas e os primórdios de estradas com leito de cascalho. Com odesenvolvimentodatecnologiadotransporte,omonjoloassumiuumaimportânciadequecarecera na Antiguidade. Nesse momento, tornou-se lucrativo trazer a ele, de longasdistâncias, o cereal.41 Esse, também, era um passo no caminho da diferenciação e dainterdependência,noqualseseparavamfunçõesantesunidasnaesferafechadadagrandepropriedaderural.

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VI

ElementosNovosnaEstruturadaSociedadeMedieval,emComparaçãocomaAntiguidade22.Amudançanocontrole

daspaixõesecondutaquedenominamos“civilização”guardaestreitarelaçãocomoentrelaçamentoe

interdependênciacrescentesdepessoas.Nospoucosexemplosquepudemosfornecer,esseentrelaçamentopodeseridentificadocomosefizessepartedoprocessodeviraser.Mesmonessecaso,nessafaserelativamenteprecoce,a

naturezadotecidosocialnoOcidenteera,emcertosaspectos,diferentedavigentenaAntiguidade.Àmedidaqueaestruturacelulardasociedadecomeçava,maisumavez,atornar-sediferenciada,eramusadas,demuitasmaneiras,quaisquerinstituiçõesdealtadiferenciaçãodeixadaspeloestágioanterior.Ascondiçõesemqueessarenovada

diferenciaçãotevelugare,destarte,anaturezaeadireçãodaprópriadiferenciaçãodivergiram,porém,emcertosaspectosdasquehaviamocorridonoperíodoanterior.

Algunsautoresfalaramdeuma“renascençadocomércio”nosséculosXIeXII.SeissosignificaqueinstituiçõesdaAntiguidadeganharamatécertopontonovavida,aalegaçãoéporcertocorreta.SemaherançadaAntiguidade,osproblemasqueasociedadeenfrentouno curso de seu desenvolvimento certamente não poderiam ter sido superados comsucessodessamaneira.Nesseparticular,oquehouvefoiumaconstruçãoqueaproveitoualicercesjálançados.Aforçapropulsoradomovimento,contudo,nãoresidiuno“aprendercomaAntiguidade”.Estevenaprópriasociedade,emsuaprópriadinâmicainerente,nascondiçõesemqueaspessoas tinhamque se acomodar reciprocamente.E tais condiçõesnãoeramasmesmasdaAntiguidade.HáumaconvicçãogeraldequesónaRenascençaoOcidenterecuperourealmente,edepoissuperou,onívelalcançadonaAntiguidade.Masestejamos ou não interessados em “superação” ou “progresso”, o fato é que váriosaspectos estruturais e tendências de desenvolvimento, que se desviavam dos que sefizeramsentirnaAntiguidade,foramvisíveisnãosónaRenascença,masjá—pelomenosatécertoponto—naprimeirafasedeexpansãoecrescimento,quevimosdiscutindoaqui.

Cabemencionar duas dessas diferenças estruturais. A sociedade ocidental carecia damão-de-obrabaratadosprisioneirosdeguerra,dosescravos.Ouquandoexistiam—e,naverdade,nuncaestiveramtotalmenteausentes—,elesnãodesempenhavammaisqualquer

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papel relevantenaestruturageraldasociedade.Essefato imprimiu,desdeo início,umanovadireçãoaodesenvolvimentosocial.

Nãomenosimportantefoioutracircunstânciajámencionada.Osreassentamentosnãoocorreram, como antes, nas proximidades domar ou exclusivamente ao longo das viasnavegáveis,mas,graçasarotasdetransporteporterra,demodogeralemáreasdointerior.Essas circunstâncias, freqüentemente em íntima interação, criaram para a sociedadeocidental, desde o início, problemas que a sociedade antiga não tivera necessidade deresolver, e que orientaramo desenvolvimento social por novos caminhos.O papel bemmenorqueosescravosdesempenharamnaexploraçãodaspropriedadespodeseexplicarpelafaltadeumagrandereservadesseselementos,oupelasuficiênciadapopulaçãonativadeservosdaglebaparaatenderàsnecessidadesdaclasseguerreira.Comoquerquetenhasido,ainsignificânciadotrabalhoescravotevecomocontrapartidaaausênciadospadrõessociais típicos da economia escravista. E só contra o pano de fundo desses diferentespadrõeséquepodeserinteiramenteapreciadaanaturezaespecialdaestruturaocidental.Não só a divisão do trabalho, o entrelaçamento de pessoas, a dependência mútua dasclassessuperioreinferiore,concomitantemente,aeconomiadepulsõesvigenteemambasasclasses,desenvolve-senasociedadeescravistademaneiradiferentedaqueocorreemoutraondeotrabalhoémaisoumenoslivre,mastambémastensõessociaisemesmoasfunçõesdamoedanãosãoasmesmas,semfalarnaimportânciadotrabalholivreparaodesenvolvimentodetécnicas.

Aquidevesersuficiente,paracompará-loscomosprocessosespecíficosdacivilizaçãoocidental, um breve sumário dos diferentes processos que operam em sociedades quepossuemmercadosdeescravosaltamentedesenvolvidos.Essesprocessosnãosãomenosimportantesnosúltimosdoquenosprimeiros.Numbalançodapesquisamodernasobreoassunto, os mecanismos de sociedades baseadas no trabalho escravo podem sersumariadosdaseguintemaneira:

… o trabalho escravo interfere na produção pelo trabalho livre. E interfere de trêsmaneiras: provoca a retirada de certo número de homens do processo de produção,desviando-os para atividades de supervisão e defesa nacional; difunde um sentimentogeral contra o trabalho manual e todas as formas de atividade concentrada; e, maisespecificamente, expulsa trabalhadores livres de ocupações em que são empregadosescravos.Damesmamaneiraque,deacordocomaleideGresham,moedasvistiramdecirculaçãomoedas boas, a experiência demonstrou que, emqualquer dada ocupação oufaixa de ocupações, o trabalho escravo expulsa o trabalho livre, demodo que se tornamesmo difícil encontrar recrutas para os cargos mais altos de uma ocupação, se fornecessárioqueelesadquiramperíciaservindocomoaprendizes,ladoaladocomescravosnasposiçõesmaisbaixas.

Esse fato gera graves conseqüências, uma vez que os homens expulsos dessasocupações não são suficientemente ricos para viver do trabalho de escravos. Por isso,tendem a formar uma classe intermediária de ociosos, que ganham a vida da melhormaneiraquepodem—aclasseconhecidapeloseconomistascomo“brancospobres”ou“lixobranco”eparaosestudiososdahistóriaromanacomo“clientes”ou“faexRomuli”.EssaclassetendeaagravarainquietaçãosocialeocarátermilitareagressivodoEstadoescravista…

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A sociedade escravista é, por conseguinte, nitidamente dividida em três classes:senhores,brancospobreseescravos;eaclasseintermediáriaéumaclasseociosaquevivedacomunidadeoudaguerra,quandonãodasuperior.

Masháaindaoutroresultado.Osentimentogeraldeaversãoaotrabalhoprodutivolevaa um estado de coisas em que os escravos tendem a ser os únicos produtores e, asocupações em que trabalham, as únicas indústrias do país. Em outras palavras, acomunidadedependerá,parasuariqueza,deocupaçõesqueemsinãoadmitemmudançaouadaptaçãoàscircunstânciaseque,amenosquesuprampelareproduçãoasdeficiênciasdemão-de-obra,vivememnecessidadeperpétuadecapital.Masessecapitalnãopodeserencontrado em parte nenhuma da sociedade. Tem, por isso mesmo, de ser trazido doexterior e a comunidade escravista tenderá quer a empenhar-se em guerras agressivas,queraendividar-seemcapitalcomvizinhosquepossuemumsistemadetrabalholivre…42

O emprego de escravos tende a afastar homens livres do trabalho, que é visto comoocupaçãoindigna.Aolongodaclassesuperior,quenãotrabalha,proprietáriadeescravos,forma-seumaclassemédiaquetambémnãotrabalha.Devidoaoempregodeescravos,asociedadeéforçadaaadotarumaestruturadetrabalhorelativamentesimples,servindo-sede técnicas que podem ser utilizadas pelos escravos e, que, por essa razão, tornam-serelativamente impermeáveis à mudança, ao melhoramento e à adaptação a novassituações. A reprodução do capital fica vinculada à reprodução dos escravos e, dessamaneira, direta ou indiretamente, ao sucesso de campanhas militares, à produção dereservasdeescravos,enuncaépassíveldecálculonomesmograuquenumasociedadenaqual não é a pessoa inteira que se compra por toda a vida, mas serviços especiais detrabalhodeindivíduosque,socialmente,sãomaisoumenoslivres.

Só contra esse pano de fundo podemos compreender a importância, para todo odesenvolvimentodasociedadeocidental,do fatodeque,duranteo lentocrescimentodapopulaçãona IdadeMédia,osescravosestivessemausentesoudesempenhassemapenaspapelsecundário.Desdeoinício,porconseguinte,asociedadefoicolocadaemumcursodiferente do que o adotado na Antiguidade romana.43 E ficou sujeita a regularidadesdiferentes. As revoluções urbanas dos séculos XI e XII, a gradual liberação detrabalhadores desalojados da terra— os burgueses— da submissão ao senhor feudal,constituíramasprimeirasmanifestaçõesdessesfatores.Daíemdiante,ocorreuagradualtransformação doOcidente numa sociedade onde um número sempremaior de pessoaspodia ganhar a vida através de ocupações.O papelmuito pequeno desempenhado pelaimportaçãodeescravosedemão-de-obraescravadavaaos trabalhadores,mesmocomoclasse inferior, um grande peso social. Quantomais prosseguiu a interdependência daspessoas e, por conseguinte,mais terra e sua produção eram incluídos na circulação docomércio e damoeda,mais dependentes as classes superiores, que não trabalhavam, osguerreiros,ounobreza,setornavamdasclassesinferioremédia,quetrabalhavam,emaisestasúltimasganhavamempodersocial.Aascensãodasclassesburguesasparaaclassesuperiorconstituiuexpressãodessemodelo.Deformaexatamenteopostaàquelaporque,na sociedade escravista antiga, homens livres da cidade eram expulsos da força detrabalho,nasociedadeocidental,comoresultadodotrabalhodehomenslivres,acrescenteinterdependênciadetodosfinalmenteatraiuatémesmomembrosdasclassesaltas,quenãotrabalhavam, em números sempre maiores, para a divisão do trabalho. O própriodesenvolvimentotécnicodoOcidente,aevoluçãodamoedaparaaquelaformaespecífica

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de “capital” que a caracteriza, pressupõem a ausência de trabalho escravo e odesenvolvimentodotrabalholivre.

23.OquefoiditoacimaconstituiapenasumexemplodosfenômenosespecificamenteocidentaisqueocorreramduranteaIdadeMédiaechegaramaostemposmodernos.

Pouco menos importante foi o fato de que os assentamentos na Idade Média nãoocorressem à beira-mar. As primeiras ondas de povos que migravam deram origem,conformedissemos,aredesconcentradasdecomércioeàintegraçãodegrandesáreasnaEuropa,masapenasaolongodasmargensderiose,acimadetudo,nasregiõescosteirasdo Mediterrâneo. Essa situação se aplicava à Grécia e sobretudo a Roma. O domínioromano espalhou-se lentamente em torno da bacia do Mediterrâneo e, finalmente,envolveu-a por todos os lados. “Suas fronteiras mais remotas ficavam no Reno, noDanúbioenoEufrates,aopassoqueoSaaraformavaumenormecírculodefensivoqueprotegiaoperímetrocosteiro.Indubitavelmente,omarfoiparaoImpérioRomanotantoabasedesuaunidadepolíticaquantoeconômica.”44

As tribos germânicas, igualmente, avançaram por todos os lados na direção doMediterrâneo e fundaram seus primeiros impérios nas áreas do Império Romano quecercavam o mar que os romanos chamavam de “mare nostrum”.45 Os francos nãochegaram tão longe: encontraram já ocupadas as regiões costeiras, e tentaram irromperpela força.Todas essasmudanças e lutaspodemmuitobem ter começadoaperturbar eafrouxar as comunicações que abraçavam oMediterrâneo.Mas, evidentemente, a velhaimportânciadoMediterrâneocomomeiodetransporteecomunicação,comobaseecentrodo desenvolvimento cultural mais alto no solo europeu, foi ainda mais destruída pelasinvasõesárabes.Eforamelasquefinalmenteromperamosdebilitadosfiosdeligação.Omar romano tornou-se emgrande parte ummar árabe. “Foi cortado o laço que unia asEuropasOrientaleOcidental,OImpérioBizantinoeosImpériosGermânicosnoOeste.Aconseqüênciada invasãoislâmicaconsistiuemcolocaresses impériosemcircunstânciasque jamais haviam existido desde os primórdios da história.”46 Ou em outras palavras:pelomenosnaspartesinterioresdaEuropa,longedosvalesdosgrandesriosedaspoucasestradasmilitares,nenhumasociedadealtamentediferenciadae,porconseguinte,nenhumsistemadeproduçãodiferenciadosedesenvolveudesdeentão.

Aindaédifícilconcluirseainvasãoárabebastou,ounão,paracriarascondiçõesdeumdesenvolvimento concentrado no interior. A ocupação das terras européias pelas tribosdurante as migrações dos povos pode ter também desempenhado um papel nesseparticular.Mas,dequalquermodo,esseestrangulamentotemporáriodasprincipaisartériasde transporte então utilizadas produziu um efeito decisivo sobre a direção tomada pelodesenvolvimentodasociedadedasEuropasOcidentaleCentral.

Noperíodocarolíngio,pelaprimeiravez,umterritóriopoderosoformou-seemtornodeum centro situado no interior. A sociedade enfrentou o desafio de desenvolver maisplenamente as comunicações por terra. Quando, depois de séculos, conseguiu isso, aherançadaAntiguidadepôdeserretomadaemnovascondições.Haviamsidolançadososalicercespara formaçõessociaisdesconhecidasnaAntiguidade.Éapartirdesseaspectoque devem ser entendidas certas diferenças entre as unidades de integração naAntiguidadeeasquelentamenteseformaramnoOcidente.Estados,nações,ouoquequerquechamemosaessasentidades,eramnessemomento,emgrandeparte,aglomeradosde

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pessoas agrupadas em torno de centros, ou capitais, interioranos, ligados por artériasterrestres.

Se, subseqüentemente, esses centros ocidentais não só colonizaram as costas oumargens de rios, mas também grandes regiões no interior, se, na verdade, grandesextensõesdaTerraforamocupadasecolonizadaspelasnaçõesocidentais,asprecondiçõesparatudoissopodemserencontradasnaevoluçãodaformasinternasdecomunicação,nãovinculadasatrabalhoescravo,dentrodasprópriasmães-pátrias.OsiníciosdessecursodedesenvolvimentosãoencontradostambémnaIdadeMédia.

E se, finalmente, até mesmo o setor agrário interiorano da sociedade acha-se hojeintegrado em uma complexa divisão de trabalho e extensas redes de intercâmbio comonunca existiram antes, as origens desse fenômeno devem ser igualmente buscadas nomesmoperíodo.Ninguémpodedizerhojequeasociedadeocidental,umavezpostanessecurso, tinha necessariamente que continuar no mesmo. Uma constelação inteira deinfluências,quenãopodemseraindaclaramentedestrinçadas,contribuiuparamantê-laeestabilizá-la nesse curso.Mas é importante reconhecer que a sociedade tomou, em fasemuito antiga, um caminho no qual permanece até os tempos modernos. Podemosfacilmente imaginarque,observando juntosodesenvolvimentodesseperíodo inteirodasociedadehumana,omedievaleomoderno,erasposterioresconsiderem-noscomoumaúnica época unificada, uma grande “IdadeMédia”. E não émenos importante observarque a IdadeMédia, no sentidomais limitado da palavra, não foi o período estático, a“floresta petrificada”, que freqüentemente se julga ter sido,mas incluiu fases e setoresaltamente dinâmicos, que se moveram exatamente na direção em que continua a eramoderna, estágios de expansão, de aumento da divisão do trabalho, de transformaçãosocialerevolução,deaperfeiçoamentodosinstrumentosdetrabalho.Ladoalado,éclaro,houve setores e fases emque instituições e idéias se tornarammais rígidas e, até certoponto,“petrificadas”.Masatémesmoessaalternaçãodefasesesetoresemexpansão,comoutras em que o conservantismo era mais importante do que o crescimento e odesenvolvimento,nãoé,demaneiraalguma,estranhaaostemposmodernos,mesmoqueoritmododesenvolvimentosocialedessaalternaçãosetenhaaceleradovivamenteapósaIdadeMédia.

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VII

SobreaSociogênesedoFeudalismo24. Processos de expansão social têm limites. Cedo ou tarde, chegam ao fim. De

idênticamaneira,omovimentodeexpansãoiniciadoporvoltadoséculoXIgradualmentecessou. Tornou-se cada vez mais difícil aos cavaleiros francos do Ocidente desbravarnovasterrascomaderrubadadeflorestas.Sóobteriamterrasalém-fronteiras,quandoissofosseefetivamentepossível,acustodepesadaslutas.AcolonizaçãodasregiõescosteirasdoMediterrâneoorientaldeuemnadaapósosprimeirossucessos.Apopulaçãoguerreira,no entanto, continuava a crescer. As pulsões e paixões dessa classe governante erammenosrestringidaspelasdependênciassociaisepelosprocessoscivilizadoresdoqueemclassessuperioresdaserassubseqüentes.Adominaçãodamulherpelohomemcontinuavaintacta. “Em todas as páginas das crônicas da época são citados cavaleiros, barões egrandessenhoresquetêmoito,dez,12oumesmomaisfilhoshomens.”47Odenominado“sistema feudal” que emergiu commais clareza no séculoXII, e ficoumais oumenoscompleto e bem-enraizado no século XIII, nada mais foi do que a forma final dessemovimento de expansão do setor agrário da sociedade.No setor urbano, essemomentopersistiupormais algum tempoem formadiferente atéque terminoualcançando formadefinitivanosistemafechadodasguildas.Tornou-secadavezmaisdifícilaoscavaleirosdasociedadequejánãopossuíamterraviraobtê-lae,nocasodefamíliascompequenaspropriedades, ampliá-las. As relações de propriedade ossificaram-se. Ficou mais difícilascender na sociedade. E, em conseqüência, tornaram-se mais nítidas as diferenças declasseentreosguerreiros.Emergiumaisoumenosclaramente,nanobreza,umahierarquiaque correspondia ao volume de terras que se possuía. Os vários títulos que antesdesignavamcargosnoserviçoaogovernante,deformamuitoparecidacomosistemadepromoções no funcionalismo civil de hoje, assumiram um significado novo e cada vezmaisfixo:eramligadosaonomedeumadadaCasacomoexpressãodotamanhodesuaspropriedades e, assim, de seu poder militar. Os titulares dos ducados descendiam deservidores reais outrora enviados para representar o rei em um território; gradualmentetornaram-se senhores feudais, mais ou menos independentes, sobre todo o território epossuidores de propriedades vinculadas dentro domesmo. Omesmo acontecia com oscondes.Osviscondeseramdescendentesdeumhomemqueumcondenomearacomoseudelegado em uma região menor e que, nesse momento, controlava essa terra comopropriedade hereditária. Os “seigneurs” ou “sires” descendiam de um homem que umcondeinstalaracomoguardiãodeumdeseuscastelosoumansões,ouquepodemtê-losconstruído na pequena área que deviam superintender.48 Nessemomento, o castelo e aterraemvoltadomesmohaviamsetornadopropriedadehereditáriadesuafamília.Todosseagarravamaoquetinham.Anadarenunciavamemfavordosqueestavamacimaenãohaviaespaçoparaninguémorigináriodascamadasmaisbaixas.A terraestavaocupada.Uma sociedade que se expandia interna e externamente, na qual a ascensão social, aaquisiçãodeterrasoumaisterrasnãoeradifícilparaoguerreiro,istoé,umasociedadedeposições ou oportunidades relativamente abertas, havia se transformado, em algumasgerações,numasociedadenaqualamaioriadasposiçõesestavafechada.

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25.Atransiçãodeumafaseemquesãograndesaspossibilidadesdeprogressosocialeexpansão para outra que só oferece satisfaçãomitigada dessas necessidades, na qual osrelativamente desprivilegiados são isolados e, por isso mesmo, se unem com maisempenho àqueles que se encontram na mesma difícil situação— processos desse tiporepetem-sefreqüentementenahistória.Nósmesmosestamosagoranomeiodeumadessastransformações,modificadaemborapelaelasticidadepeculiardasociedadeindustrial,quepode abrir novos setores quando são fechados outros mais antigos, e pelos diferentesníveisdedesenvolvimentodasregiõesinterdependentes.Mas,noconjunto,asituaçãonãoera daquelas emque cada crise assinalava umamudança numa direção e cada surto deprogresso,umamudançaemoutra.Atendênciageraldasociedadeapontavacadavezmaisclaramenteparaumsistemadeoportunidadesfechadas.

Essesperíodospodem,delonge,serreconhecidosporcertalassidãomental,pelomenosentreosdesprivilegiados,peloenrijecimentodasformassociais,portentativasderebeliãoapartirdebaixoe,conformejádissemos,porumacoesãomaisfortedosqueocupamasmesmasposiçõesnahierarquia.

O modelo particular desse processo, no entanto, difere nas economias de troca emonetária, embora não seja menos rigoroso. O que, acima de tudo, pareceincompreensívelaoobservadormaisrecentenoprocessodefeudalizaçãoéofatodequenem reis nemduques, nem todas as graduações abaixo deles, conseguiram impedir queseusservidoressetornassemosdonosindependentesdeseusfeudos.Maséexatamenteauniversalidade desse fato que mostra o vigor da regularidade social então emfuncionamento.JáesboçamosaspressõesqueprovocaramolentodeclíniodaCasaRealna sociedade guerreira com economia de troca, tão logo a Coroa deixou de poderexpandir-se, isto é, de conquistar novas terras. Processos análogos surgiram tão logodiminuíramapossibilidadedeexpansãoeaameaçaexternaàsociedadeguerreira.Taleraomodelotípicodeumasociedadefundamentadanapossedaterra,naqualocomércionãodesempenhavapapelimportante,ondecadapropriedadeeramaisoumenosautárquicae,finalmente,emqueaaliançamilitarparaadefesaouoataqueconstituíaaprincipalformadeintegraçãodegrandesregiões.

Na unidade tribal, os guerreiros viviam relativamente próximos uns dos outros.Maistarde,lentamente,espalharam-seportodooterritório.Cresceramemnúmeros.Mas,como aumento e a dispersão por uma grande região, o indivíduo perdia a proteção outroraproporcionadapela tribo.Famíliasconfinadasemsuaspropriedadesecastelos,não raroseparadas por longas distâncias, guerreiros individuais dirigindo essas famílias e umcortejodecriadoseservos,tornaram-seentãomaisisoladosdoquenunca.Gradualmente,novos relacionamentos foramestabelecidosentreosguerreiros,emfunçãodeseumaiornúmeroedadistânciaqueosseparava,domaiorisolamentodoindivíduoedastendênciasintrínsecasàpropriedadedaterra.

Comagradualdissoluçãodasunidadestribaiseafusãodeguerreirosgermânicoscommembros da classe superior galo-românica, coma dispersãodos guerreiros por grandesáreas, o indivíduo não dispunha de outramaneira de defender-se contra os socialmentemais poderosos do que se colocando sob a proteção de um deles. Estes, por seu lado,nenhuma outramaneira tinhamde se proteger de outros senhores de propriedades e depodermilitar igualmente importantes anão sermediante a ajudadosguerreiros aquem

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davamterrasoucujasterrasprotegiamemtrocadeserviçosmilitares.

A dependência de indivíduos foi assim estabelecida. Sob juramento, um guerreiroentravaemaliançacomoutro.Oparceirodemaisaltaclasse,possuidordemaioráreadeterra— as duas coisas se completavam— era o “senhor”c e, o parceiromais fraco, o“vassalo”.Esteúltimopodia,seascircunstânciasassimoexigiam,tomarsobsuaproteçãoguerreiros ainda mais fracos em troca de serviços. A contratação dessas aliançasindividuaisfoi,noinício,aúnicaformapelaqualaspessoaspodiamseprotegerumasdasoutras.

O“sistemafeudal”apresentavaumestranhocontrastecomaconstituiçãotribal.Comadissolução desta última, novos grupamentos e novas formas de integração foramnecessariamente criados. Havia uma forte tendência à individualização, reforçada pelamobilidade e expansão da sociedade. Ocorria aí uma individualização em relação àunidadetribale,emparte,tambémemrelaçãoàunidadefamiliar,damesmamaneiraqueocorreriammais tarde movimentos de individualização em relação à unidade feudal, àunidadedaguilda,àunidadedeclassee,repetidamente,àunidadefamiliar.Ojuramentofeudal nada mais era do que a conclusão de uma aliança protetora entre guerreirosindividuais, a confirmação sacramentalda relação individual entreoguerreiroquedavaterra e proteção e o outro que prestava serviços.Na primeira fase domovimento, o reiocupava um dos lados. Como conquistador, controlava toda a área e nenhum serviçoprestava, limitando-se a distribuir terras. O servo situava-se na base da pirâmide: nãocontrolavaterraesimplesmenteprestavaserviçosou—oqueequivale—pagavatributos.Todososgrausentreelestiveram,noinício,umaduplaface.Possuíamterrasecapacidadedeproteçãoparadistribuirentreaquelesemsituação inferiore serviçosaprestara seussuperiores.Mas essa redededependências, anecessidadede serviços sentidapelosqueestavamemcondiçãoelevada,particularmentedenaturezamilitar,eanecessidadedeterrae de proteção por parte dos inferiores, alimentavam tensões que acabaram provocandomudanças muito precisas. O processo de feudalização nada mais foi que uma dessasmudanças compulsivas na rede de dependências. Em toda a parte e numa dada fase noOcidente,adependênciadosgrandesemrelaçãoaos serviçosprestados tornou-semaiordoqueadependênciade seusvassalosquantoaproteção.Esse fato reforçavaas forçascentrífugasnumasociedade,naqualcadapedaçodeterrasustentavaseuproprietário.Essafoi a forma simples desses processos, no curso dos quais, em toda a hierarquia dasociedade guerreira, os antigos servidores foram se tornando, em número crescente,proprietários independentes da terra que lhes fora confiada, e os títulos nobiliárquicos,baseados em serviço, tornaram-se designações simples de posição na escala social, emcorrespondênciacomotamanhodapropriedadeeopodermilitar.

26.Essasmudançaseseusmecanismosnãoseriamemsidifíceisdecompreenderseoobservador recente não projetasse constantemente, nas relações entre os guerreiros nasociedadefeudal,suaprópriaidéiade“lei”e“justiça”.Tãocompulsivossãooshábitosdepensamentoemnossaprópriasociedadequeoobservadorinvoluntariamenteperguntaporquereis,duquesecondestoleravamessausurpaçãodesoberaniasobreaterraquehaviamcontroladoinicialmente.Porquenãofaziamvalerseus“direitoslegais”?

Mas não estamos interessados aqui no que é chamado de “questões legais” emsociedades mais complexas. Constitui uma precondição para compreender a sociedade

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feudal não considerar nossas próprias “formas legais” em um sentido absoluto. Formaslegais correspondem, em todos os tempos, à estrutura da sociedade. A cristalização denormas legais gerais por escrito, que é parte integral das relações de propriedade nasociedadeindustrial,pressupõeumgraumuitoaltodeintegraçãosocialeaformaçãodeinstituições centrais capazes de dar àmesma lei validade universal em toda a área quecontrolam, e suficientemente fortes para exigir o cumprimento de acordos escritos. Opoderqueconfereforçaaostítuloslegaisedireitosdepropriedadenãoémaisdiretamentevisívelnostemposmodernos.Emproporçãoaoindivíduo,eleétãogrande,suaexistênciaeaameaçaquedeleemanasãotãoaxiomáticasqueraramenteésubmetidoateste.Éesseomotivoporqueháuma tendência tão forteaconsiderara leicomoalgoquedispensaexplicação,comosetivessesidobaixadapeloscéus,um“Direito”absolutoqueexistiriamesmosemoapoiodessaestruturadepoderouseaestruturadepoderfossediferente.

Osvínculosentreosistemajurídicoeaestruturadepodersãoatualmentemaislongos,em conformidade com a maior complexidade da sociedade. E uma vez que o sistemajudiciáriofreqüentementeoperaindependentementedaestruturadepoder,emboranuncainteiramente, é fácil esquecer o fato de que a lei neste caso é, como em todas associedades, uma função e símbolo da estrutura social ou — o que equivale — doequilíbriodepodersocial.49

Nasociedade feudalessa relaçãoeramenosescondida.Eramenora interdependênciaentrepessoaseregiões.Nãohaviaumaestruturaestáveldepoderqueseestendesseportoda a região. As relações de propriedade eram reguladas diretamente pelo grau dedependênciamútuaepelopodersocialconcreto.d

Hánasociedadeindustrialumtipoderelaçãoquepode,emcertosentido,comparar-seaoqueexistiaentreosguerreiros,ousenhoresfeudais,eatravésdaqualomodelopodeser esclarecido.Referimo-nosà relaçãoentreEstados.Nesteparticular, também,o fatordecisivoé, com todacerteza,opoder social, noqualopodermilitardesempenhapapelrelativamenteimportanteaoladodainterdependênciadecorrentedaestruturaeconômica.O poder militar é, por seu turno, de forma muito parecida com o que acontecia nasociedadefeudal,determinadoemboapartepelotamanhoeprodutividadedoterritórioepelopotencialdetrabalhodapopulaçãoquepodesustentar.

NãoháDireitopautandoasrelaçõesentreEstadosquesejadomesmotipodaquelequeéválidodentrodeseusterritórios.NãoexisteumaparatodepoderdeaplicaçãogeralquepossafazercumprirtalDireitoInternacional.AexistênciadeumDireitoInternacionalsemestrutura correspondente de poder não pode ocultar o fato de que, a longo prazo, asrelações entrenações sãogovernadas exclusivamentepelopoder social relativode cadauma e que qualquer mudança neste último, qualquer aumento de poder nas váriasconfigurações de Estados em diferentes partes do mundo, e agora — com ainterdependênciacadavezmaior—dentrodasociedademundialcomoumtodo,significaumaautomáticareduçãodopodersocialdeoutrospaíses.

Enesteparticular,também,astensõesentreosque“têm”eosque“nãotêm”,entreosquedefatopossuemeosquenãodispõemdeterrasoumeiosdeproduçãosuficientesparaatender suasnecessidadesepadrõesdevida, automaticamenteaumentamquantomaisasociedade burguesa em escala mundial se aproxima do estado de um “sistema deoportunidadesfechadas”.

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Émaisdoque simplesmente fortuita a analogia existentenas relações entre senhoresindividuaisnasociedadefeudaleentreEstadosnomundoindustrial.Elastêmsuabasenacurva de desenvolvimento da própria sociedade ocidental. No curso dessedesenvolvimento, com sua crescente interdependência, relações de tipo análogo sãoestabelecidas, entre elas formas legais, inicialmente entre unidades territoriaisrelativamente pequenas e, mais tarde, em níveis cada vez mais altos de magnitude eintegração, mesmo que a transição para grupos de uma diferente ordem de tamanhorepresentecertamudançaqualitativa.

Mostraremosadianteaimportânciadoprocessoquecomeçamosadelinearaqui,istoé,o da criaçãode unidades cadavezmaiores, internamente pacificadasmas externamentebeligerantes,paraamudançadomodelodecontroledaspulsõeseparaopadrãosocialdeconduta—emsuma,paraoprocessocivilizador.

Asrelaçõesentresenhoresfeudaisisoladosassemelham-se,defato,àsqueexistemhojeentre os Estados. A interdependência econômica, a troca, a divisão de trabalho entreEstados individuais eram,para sermos exatos, incomparavelmentemenosdesenvolvidasnos séculos X e XI do que entre os Estados modernos, e pela mesma razão eracorrespondentemente menor a dependência econômica entre guerreiros. Ainda maisdecisivo em suas relações, por conseguinte, era o potencial militar, o número de seusagregadoseaáreadeterraquecontrolavam.Pode-seobservarrepetidasvezesque,nessasociedade,nenhum juramentode fidelidadeoucontrato—comoacontecehojeentreosEstados— podia, a longo prazo, resistir àsmudanças no poder social. A lealdade dosvassalos era, afinal, regulada exatamente pelo grau real de dependência entre as partes,pelojogodaofertaeprocuraentreosquedavamterraeproteçãoemtrocadeserviços,porumlado,eaquelesquedelesnecessitavam,poroutro.Quandoaexpansão,aconquistaoudesbravamento de novas terras se tornavam mais difíceis, as maiores oportunidadesencaminhavam-separaosqueprestavamserviçose recebiam terras.Eraesseopanodefundo da primeira das mudanças que nesse momento ocorriam na sociedade, aemancipaçãodosservidores.

A terra, nessa sociedade, era sempre “propriedade” do homem que realmente acontrolava, efetivamente exercia os direitos de posse e era suficientemente forte paradefender o que possuía. Por essa razão, o homem com terra para investir em troca deserviços sempre começava com desvantagem em relação ao homem que a recebia. O“senhor feudal” tinha “direito” à terra que confiara a alguém,mas era o vassalo quemrealmenteacontrolava.Aúnicacoisaque tornavaovassalodependentedosenhor,umavez assumisse posse da terra, era a proteção no sentidomais amplo da palavra.Mas aproteçãonemsempreeranecessária.Damesmamaneiraqueosreisdasociedadefeudalsempre eram fortes quando seus vassalos precisavam de proteção e liderança, seameaçadosporinimigosexternos,eacimadetudoquandopossuíamterrasrecentementeconquistadas para distribuir, mas eram fracos quando os vassalos não se sentiamameaçadosnemseesperavaaconquistadenovosterritórios,assimossenhoresfeudaisdemenor magnitude debilitavam-se quando aqueles a quem haviam confiado terras nãonecessitavamdesuaproteção.

O senhor feudal de qualquer nível podia compelir um ou outro de seus vassalos acumprir suasobrigações e expulsá-lo à forçade suas terras.Masnãopodia fazer issoa

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todosoumesmoamuitos.Issoporque,jáquenãopodiasequercogitaremarmarservos,precisava dos serviços de um guerreiro para expulsar outro ou de novas terras pararecompensar-lhe os serviços. Mas para conquistar precisava de novos serviços. Dessamaneira, o território francodoOcidentedesintegrou-se, nos séculosXeXI, emgrandenúmero de domínios cada vezmenores. Todos os barões, todos os viscondes, todos osseigneurs, controlavam sua terra ou suas terras a partir de seu castelo, ou castelos, talcomo um governante controlava o Estado. Era pequeno o poder do senhor feudal comdireito à vassalagem, das autoridades centrais. Os mecanismos irresistíveis da oferta eprocura, que tornam o vassalo que controla a terra geralmente menos dependente daproteção do soberano feudal do que este de seus serviços, cumpriram sua missão. Adesintegração da propriedade, a transferência da terra do controle do rei para as váriasgradaçõesdasociedadeguerreiracomoumtodo—eisto,enadamais,éa“feudalização”— alcançou seu limite máximo. O sistema de tensões sociais que é criado com essaextensa desintegração, porém, contém simultaneamente as forças propulsoras de umcontra-ataque,umanovacentralização.

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VIII

SobreaSociogênesedaMinnesangedasFormasCortesãsdeConduta

27.Podemosdistinguirduasfasesnoprocessodefeudalização:adedesintegraçãototal,queacabamosdediscutir,edepoisafaseemqueessemovimentocomeçouasereverter,emergindo as primeiras formas, ainda frouxas, de reintegração. Começa assim, seaceitamos esse estado de desintegração extrema como ponto de partida, um longoprocesso histórico, no curso do qual áreas e números cada vez maiores de pessoastornaram-seinterdependentese,finalmente,foramorganizadosemunidadesintegradas.

NosséculosXeXI,continuaessafragmentação.Parecequeninguémconservaumaparceladepodersuficienteparalhepermitirexercitarqualqueraçãoefetiva.Osfeudos,asoportunidadesdegovernar,osdireitos,sãodespedaçadoscrescentemente…decimaabaixo,portodaahierarquia,todaautoridadeseencaminhaparaadesintegração.

NoséculoXIe,especialmentenoséculoXII, inicia-seuma reação.Ocorreumfenômenoquese repetiuváriasvezes e em formas diferentes na história. Os senhores feudais emmelhor situação e que dispõem dasmelhoresoportunidadesapossam-sedomovimentofeudal. Imprimemà lei feudal,quecomeçaraa tornar-sefixa,umanovadireção. Manipulam-na em detrimento de seus vassalos. Seus esforços são beneficiados por certas conexõeshistóricas…eessasituaçãoserve,emprimeirolugar,paraconsolidarasituaçãoqueacaboudeserestabelecida.50

Após a gradual transição da sociedade guerreira — de uma fase mais móvel, comoportunidadesrelativamentegrandesdeexpansãoeprogressosocialparaoindivíduo,paraumafasedeposiçõescrescentementefechadas,naqualtodostentavamretereconsolidaroquetinham—opoder,maisumavez,mudouentreosguerreirosespalhadospelaterraerepoltreadoscomorégulosemseuscastelos.Ospoucossenhoresmaisricosepoderososampliaramseupodersocialemrelaçãoaosmaisfracos.

O mecanismo monopolista que, dessa maneira, começou a funcionar, será discutidoadiante emmaior detalhe.Nesta parte estudaremos apenas um dos fatores que, a partirdesse momento, atuou de modo cada vez mais decisivo em favor dos poucos grandesguerreiros,aexpensasdosnumerososmaisfracos:aimportânciadacomercialização,quelentamente crescia.A redededependências, a interaçãodaoferta eprocurade terras, aproteçãoeosserviçosemumasociedademenosdiferenciada—noséculoXeaindanoXI—eramdeestruturasimples.Aospoucos,noséculoXI,emaisrapidamentenoXII,arede começou a tornar-se complexa. No atual estado de pesquisa, é difícil determinarexatamenteo crescimentodo comércio e a circulaçãodamoedaqueocorreramnaquelaépoca. Somente esse dado permitiria medir efetivamente as mudanças nas relações depoder social. Seja suficiente dizer que a diferenciaçãodo trabalho, omercado e o setormonetário da sociedade estavam crescendo, mesmo que a economia de escambocontinuasseapredominar,comoaconteceriaaindapormuitotempo.Essecrescimentodocomércioedacirculaçãodamoedabeneficiavamuitomaisospoucossenhoresricosdoqueosmuitospequenos.Estescontinuavamaviveremsuasterrasmaisoumenoscomohaviamfeitoatéentão.Consumiamdiretamenteoqueelasproduziameeramínimoseuenvolvimentonarededecomércioerelaçõesdetroca.Osprimeiros,emcontraste,nãoselimitavamaingressarnarededasrelaçõesdecomércio,utilizandoaproduçãoexcedentede suas terras.Os povoados, cada vezmais numerosos, de artesãos emercadores, bem

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como as cidades, geralmente se vinculavam às fortalezas e centros administrativos dosgrandesdomínios,eporincertasquepudessemserasrelaçõesentreosgrandessenhoreseas comunas situadas em seu território, pormais que oscilassem entre a desconfiança, ahostilidade,alutaabertaeacordospacíficos,nofinaldecontastambémelas,eosdeveresquedelasderivavam,fortaleciamosgrandessenhores,emcomparaçãocomospequenos.Elaslhesofereciamaoportunidadedeescapardocírculoperpétuodedistribuiçãodeterraemtrocadeserviçosedasubseqüenteapropriaçãodaterrapelovassalo—oportunidadesessasqueseopunhamàsforçascentrífugas.Nascortesdosgrandessenhores,emvirtudedeseuenvolvimentodiretoouindiretonarededecomércio,atravésdematérias-primasoumetais preciosos cunhados ou em bruto, acumulou-se uma riqueza de que careciam ossenhoresmenores.Essasoportunidadesforamsuplementadasporumademandacrescentede oportunidades a partir de baixo, demaior oferta de serviços pelos guerreirosmenosfavorecidoseporoutrosindivíduosexpulsosdesuasterras.Quantomenoressetornavamaspossibilidadesdeexpansãodasociedade,maiscresciaoexércitodereservaconstituídodetodasasclasses,incluindoaclassealta.Muitosmembrosdessaclasseficavambastantesatisfeitos se podiam encontrar abrigo, vestuário e alimento nas cortes dos grandessenhores, contraaprestaçãodealgumserviço.E sealgumdia,pormunificênciadeumgrandesenhor,recebessemumpedaçodeterra,umfeudo,issoseriaumgolpeespecialdasorte.AhistóriadeWalthervonderVogelweide,bem-conhecidanaAlemanha,é típica,nesse aspecto, valendo também para muitos fidalgos franceses. E lembrando-nos dasnecessidades sociais, podemos imaginar que humilhações, que súplicas vãs edesapontamentos podem ter-se ocultado por trás do brado de Walther: “Tenho o meufeudo!”

28.Ascortesdossenhoresfeudaismaisimportantes,osreis,osduques,oscondeseosbarõesmaisricosou,parautilizarumaexpressãodeaplicaçãomaisgeral,ossenhoresdeterritório, atraíam dessa maneira, pelas crescentes oportunidades presentes em suascâmaras,umnúmerocadavezmaiordepessoas.Processosmuitoparecidosvoltariamaocorreralgunsséculosmaistarde,emumnívelmaiselevadodeintegração,nascortesdospríncipes e reis absolutos. Nessa época, porém, o entrelaçamento de funções sociais, odesenvolvimentodocomércioedacirculaçãodamoedaeramtãograndes,queumareceitaregularobtidaatravésdetributaçãodetodoodomínioeumexércitopermanentedefilhosdecamponeseseburgueses,sobocomandodeoficiaisnobres,financiadopelogovernanteabsolutocomessas fontesderenda,podiamparalisar totalmenteas forçascentrífugas,odesejode independênciadaaristocraciapossuidorade terras.Nesseparticular,noséculoXII, a integração, a rede de comércio e comunicações, não era nem remotamente tãodesenvolvidaassim.Emáreasdotamanhodeumreino,eraaindainteiramenteimpossívelcombatercontinuamenteasforçascentrífugas.Mesmoemterritóriosdadimensãodeumducadooucondado,continuavaasermuitodifícilfazê-loe,emgeral,sódepoisdecruentaluta se conseguia conter vassalos que desejavam furtar suas terras ao controle de umsenhor feudal.Oaumentodopodersocialcoube inicialmenteaossenhores feudaismaisricosdevidoaotamanhodaspropriedadesdesuafamília,desuasterrasnãoenfeudadas.Nesse aspecto, os que usavam a coroa não diferiam dos demais grandes senhores. Asoportunidades que todos eles desfrutavam, graças a suas grandes propriedades, com ocomércio e as finanças, davam-lhes superioridade, inclusive militar, sobre os meroscavaleiros auto-suficientes, antes demais nada sobre todos aqueles situados dentro doslimitesdeumterritório.Mesmonaspéssimascondiçõesdetransportedaépoca,oacesso

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da autoridade central aos feudosmenores já não eramuitodifícil.Tudo isso convergiu,nesse estado de desenvolvimento, para dar aos governantes de territórios de tamanhomédio,menoresdoquereinosou“Estados”,nosentidoposteriordestapalavra,emaioresdoqueogrossodaspropriedadesdoscavaleiros,umaparticularimportânciasocial.

Porém, nada disso implica dizer que, nesse estágio, uma máquina governamentalrealmente estável pudesse ser estabelecida mesmo em um território desse tamanho. Ainterdependência de regiões e a saturação do país pelamoeda não avançara ainda nemremotamenteobastanteparapermitirqueossenhoresfeudaismaisnobresemaisricosdaregiãoestabelecessemumaburocraciaremuneradaexclusivaousequerprincipalmenteemdinheiroe,assim,umacentralizaçãomaisrigorosa.Serianecessáriaaindaumalongasériede lutas, lutas constantemente reativadas, antes que reis, duques e condes pudessemconsolidarseupodersocialatémesmoemseupróprioterritório.Equalquerquefosseoresultado dessas batalhas, os vassalos, os cavaleiros de porte pequeno e médio,conservavam ainda os direitos e funções de governo dentro de suas propriedades, ondecontinuavamamandarcomosefossempequenosreis.Masenquantoascortesdosgrandessenhores tornavam-se mais povoadas, enquanto suas câmaras palacianas se enchiam ebenscomeçavamacircular,ogrossodospequenoscavaleiroscontinuavaalevarumavidaauto-suficiente e não raromuito restrita. Tiravam dos camponeses tudo o que podiam,alimentavamtãobemquantolheserapossívelospoucosservidoreseosnumerososfilhosefilhas;lutavamincessantementeentresi;eaúnicamaneiradeapropriarem-sedemaisdoqueproduziamos seuspróprios campos erapormeiodapilhagemdos campos alheios,acima de tudo dos domínios das abadias e mosteiros e, gradualmente, à medida quecresciaacirculaçãodemoedae,assim,anecessidadededinheiro,atravésdapilhagemdecidadesecaravanasdemercadoresedacobrançaderesgateporprisioneirosdeguerra.Aguerra,arapina,oataquearmadoeapilhagemconstituíamfonteregularderendaparaosguerreirosnaeconomiadetrocae,alémdomais,eramasúnicasquelhesestavamabertas.E quanto mais miseravelmente viviam, mais dependentes se tornavam dessa forma degeraçãodereceita.

Acomercializaçãoemonetarização,emlentocrescimento,porconseguinte,favoreciamospoucosgrandesproprietáriosdeterraesenhoresfeudaisenãoamassadospequenos.Asuperioridade dos reis, duques e condes, porém, não era ainda nem remotamente tãograndequantomaistarde,naeradoabsolutismo.

29.Mudançasanálogas,conformejáassinalamos,ocorreramcomfreqüêncianocursoda história.A crescente diferenciação entre a classemédia alta e as classes da pequenaburguesiaéprovavelmentemaisconhecidadoobservadordoséculoXX.Nesteparticular,também,apósumperíododelivreconcorrência,comoportunidadesrelativamenteboasdeprogresso social e enriquecimento para os pequenos e médios proprietários, apreponderância na burguesia gradualmente se transferiu, em detrimento doseconomicamente mais fracos, para o grupo economicamente mais forte. Todos os quepossuíampropriedadesdeportepequenooumédio,àpartealgumasáreasdecrescimento,descobriramquese tornaramaisdifícil acumulargrande riqueza.Cresciaadependênciadireta e indireta do pequeno emédio face ao grande, e enquanto as oportunidades dosprimeirosdiminuíam,asdosúltimosaumentavamquaseautomaticamente.

Algo semelhanteocorreuna sociedade feudal francaocidentalde finsdo séculoXIe

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século XII. As possibilidades de expansão do setor agrário da sociedade, que erapredominantemente uma economia de troca, estavampraticamente esgotadas.A divisãodotrabalhoeosetorcomercialdasociedadecontinuavamaespalhar-se—adespeitodemuitos reveses. O grosso dos cavaleiros donos de terras pouco proveito tirava dessaexpansão. Os poucos grandes senhores participavam do processo e lucravam. Dessamaneira, ocorreu uma diferenciação na sociedade feudal que não deixou de terconseqüênciasparaasatitudeseestilosdevida.

A sociedade feudal como um todo (diz Luchaire em seu incomparável estudo da sociedade na era de FelipeAugusto),51poucomudara,comexceçãodeumaelite,seushábitosemaneirasdesdeoséculoIX.Emquasetodaaparte,osenhordocastelocontinuavaaserumbandidobrutalerapace;iaparaaguerra,lutavaemtorneios,passavaosperíodosdepazcaçando,arruinava-secomsuasextravagâncias,oprimiaoscamponeses,praticavaextorsãocontraosvizinhosepilhavaaspropriedadesdaIgreja.

As classes influenciadas pela divisão do trabalho em lenta expansão e pelamonetarizaçãoseexpandiam;asdemaispermaneciamestacionáriaseeramatraídasapenasa contragosto e quase que passivamente para a corrente das forças da mudança.Indubitavelmente,jamaisécorretodizerqueestaouaquelaclasse“nãotemhistória”.Maspode-se afirmar o seguinte: as condições de vida dos pequenos proprietários e doscavaleiros sómudaram com grande lentidão. Não desempenharam eles papel direto ouativona redede trocas,nacirculaçãodamoeda,nomovimentomais rápidoquea faziacircular pela sociedade.E quando sentiamos choques e convulsões dessesmovimentossociais,estesaconteciam,praticamentesempre,deformaprejudicialaosseus interesses.Todasessascoisaseramsubversõesdaordemqueosdonosdeterra,damesmaformaqueos camponeses, geralmente não conseguiam compreender e que freqüentementedetestavam,atéqueforamtangidosporelas,commaioroumenorviolência,desuasbasesautárquicasparaasclassesqueevoluíammaisrápido.Elescomiamoquesuaterra,seusestábulos e o trabalho de seus servos produzia. Nesse particular, nada mudava. Se ossuprimentos eramescassos ou se tornavanecessária umaquantidademaior, recorriamàforça, à pilhagem, ao saque. Era uma existência simples, claramente visível eindependente.Nesseparticular,oscavaleiros,ebemmais tarde tambémoscamponeses,foramsempre,eemcertosentidocontinuamsendo,senhoresdesuasterras.Osimpostos,o comércio, a moeda, a subida e a queda dos preços de mercado, tudo isso eram osfenômenosestranhosefreqüentementehostisdeummundodiferente.

O setor regido pelo escambo, que, na Idade Média e ainda muito tempo depois,enfeixava a grandemaioria da população, não escapoupor completo, sequer nessa faseinicial,aomovimentosocialehistórico.Mas,adespeitodessasperturbações,oseuritmode mudança social em comparação com a que ocorria em outros estratos, continuavasendomuito lento.Nãoeraumsetor“semhistória”,masneleeparagrandenúmerodepessoasnaIdadeMédia,eparaumnúmeromenoraindaemtemposrecentes,asmesmascondiçõesdevidaeramconstantementereproduzidas. Ininterruptamente,aproduçãoeoconsumoeramrealizadosquasesemprenomesmolugar,naestruturadamesmaunidadeeconômica,ea integraçãosupralocalqueocorriaemoutras regiões sociais só se tornouperceptívelmais tarde e indiretamente.Adivisãodo trabalhoe as técnicasdeproduçãoque,nosetorcomercializado,avançavammaisrapidamente,nosetordetrocasómudaramcommuitalentidão.

Somente muito mais tarde, por conseguinte, as personalidades dos homens que

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compreendiam esse setor foram submetidas às compulsões peculiares, aos controles erestriçõesmais rigorosos decorrentes da redemonetária e damaior divisão de funções,com seu número crescente de dependências visíveis e invisíveis. Os sentimentos e acondutarelutammuitomaisemsesubmeteraumprocessocivilizador.

Conforme já notamos, na Idade Média e ainda mais tarde, esse setor agrário deeconomiadeescambo,comsuabaixadivisãodotrabalho,baixaintegraçãoalémdonívellocal e alta capacidade de resistir à mudança, compreendia uma parceladesproporcionalmente grande da população. Se queremos realmente compreender oprocessocivilizador,temosquepermanecerconscientesdessapolifoniadahistória,deumritmodemudançaqueé lentonumaclasse,mais rápidoemoutra, edaproporçãoentreestes. Os governantes desse grande e pesado setor agrário do mundo medieval, oscavaleiros, dificilmente seriam controlados em sua conduta e paixões por cadeiasmonetárias.Deles,amaiorparteconheciaumúnicomeiodesustento—e,portanto,umaúnica dependência direta: a espada. No máximo, só o perigo de serem fisicamentevencidos, a ameaça militar de um inimigo visivelmente superior, isto é, a compulsãodireta,física,externa,équepodialevá-losàmoderação.Àparteisso,suasafeiçõestinhamlivreeilimitadaexpressãoemtodososterroresealegriasdavida.Otempodeles—eotempo, como a moeda, é função da interdependência social — era sujeito apenassuperficialmenteàcontínuadivisãoeregulação impostaspeladependênciaemrelaçãoaoutraspessoas.Omesmoseaplicavaasuaspaixões.Eramselvagens,cruéis,inclinadosaexplosõesdeviolênciae,deigualmodo,abandonavam-seàalegriadomomento.Podiamfazerisso.Poucohavianasituaçãoemqueviviamqueoscompelisseaadotarmoderaçãoemseusatos.Poucoemseucondicionamentoosforçavaadesenvolveroquepoderíamoschamardeumsuperegorigorosoeestável,comofunçãodadependênciaedascompulsõesorigináriasdeoutraspessoasequenelessetransformassememauto-disciplina.

Perto do fim da Idade Média, para sermos exatos, um número bastante grande decavaleirosfoiatraídoparaaesferadeinfluênciadasgrandescortesfeudais.Exemplosdavidadeumcavaleiro,queanteriormenteanalisamosarespeitodeumasériededesenhos(cf.vol. I,pág.200esegs.),sãodessecírculo.Ogrossodessescavaleiros,porém,viviaainda nessa época de maneira muito parecida aos séculos IX e X. Na verdade, certonúmero,emboracadavezmenor,desenhores feudaiscontinuoua levarumavidadessetipomuitodepoisdaIdadeMédia.Esepodemosacreditaremumapoetisa,GeorgeSand—que confirmou expressamente a autenticidade histórica do que disse—, havia aindaalguns indivíduosvivendoessa indomadavidafeudalemcantosprovincianosdaFrançaaté a Revolução Francesa, embora, nesse momento, duplamente selvagem, temerosa ecruelcomoresultadodesuasituaçãodeestranhosnomeio.Emseuconto“Mauprat”eladescreveu a vida num desses últimos castelos, que nesse momento havia adquirido ascaracterísticas de covil de ladrões,menos porque houvessemmudado os castelões,masporqueasociedadeemvoltamudara.

Meuavô[dizoheróidahistória]foi,dessemomentoemdiante,juntamentecomseusoitofilhos,oúltimorestoquenossaprovínciaconservaradaquelaraçadepequenostiranosfeudaisquesehaviamespalhadoeinfestadoaFrançadurante tantos séculos. A civilização, que nesse momento dava grandes passos em direção à grande sublevaçãorevolucionária,estavacadavezmaiseliminandoessasextorsõeseessebanditismoorganizado.Aluzdaeducação,umaespéciedebomgostoqueeraumreflexodistantedeumacorteelegante, e talvezumpressentimentodeumpróximo e terrível despertar do povo, penetrava nos castelos e mesmo nas mansões quase rústicas da pequenanobrezaempobrecida.

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Precisaríamos citar trechos inteirosdessadescrição a fimdemostrar comomodosdecondutaque,nosséculosX,XIeXII,eramcaracterísticosdamaiorpartedaclassealtapodiam ainda ser encontrados entre estranhos isolados, graças a condições de vidasemelhantes.Continuavaaprevaleceremseumeioumbaixograudecontroledaspulsões.Nãoocorreraainda,entreeles,atransformaçãodeanseioselementaresnosmuitostiposdeprazer refinado,conhecidosdasociedadeemvolta.Reinavadesconfiançaemrelaçãoàsmulheres,queerambasicamenteobjetode satisfaçãosexual;oprazernapilhagemenoestupro, o desejo de não reconhecer senhor algum; servilismo entre os camponeses queeles exploravam e, por trás de tudo isso, as pressões impalpáveis que não podiam sereliminadas pelas armas ou violência física; dívidas, um sistema de vida sufocante,empobrecido, que contrastava violentamente com suas grandes aspirações, e umadesconfiança do dinheiro, estivesse ele em mãos dos senhores ou dos camponeses:Maupratnãopediadinheiro.Valoresmonetárioseramoqueoscamponesesdessasterrasobtinhamcomgrandedificuldadee,algunsdeles,comamaiorrelutância.“Odinheiroécaro”,eraumdeseusprovérbios,porqueodinheiro representavaparaelealgumacoisaoutraquenãootrabalhofísico.Éumcomérciocomcoisasepessoasdefora,umesforçodeprevisãoecautela,umaespéciedelutaintelectual,queoarrancavaviolentamentedeseus hábitos apáticos, em uma palavra, um esforço mental e, para ele, isso era maisdolorosoeperturbadorquetudo.

Nessa região,encontravam-seaindaenclavesdeumaeconomiabasicamentede troca,emmeioaotecidomaisamploderelaçõesdecomércioedivisãodotrabalho.Mas,mesmonela,ninguémpodiaresistirparasempreàatraçãodacadeiadecirculaçãodamoeda.Osimpostos, principalmente, e também a necessidade de comprar certas coisas que nãopodiam ser produzidas domesticamente, obrigavam pessoas a tomarem essa direção.Porém a natureza peculiarmente opaca do controle e da previsão — a contenção dasinclinações,mais rigorosadoqueé estritamenteexigidopelo trabalho físiconecessário,quequalquerenvolvimentocomascadeiasdodinheiroimpõeaoserhumano—,tudoissocontinuava, nesses enclaves, a constituir um tipo de compulsão detestado e não-compreendido.

Acitaçãoacima refere-sea senhoresecamponesesemfinsdoséculoXVIII.E serveparamostrar,maisumavez,olentoritmodamudançanessesetordasociedadeepartedasatitudesdaspessoasqueneleviviam.

30. Da larga paisagem da economia de troca, com seus inúmeros castelos e muitosdomíniosmaioresemenores,porconseguinte,emergiramlentamentenaFrança,duranteoséculoXIemaisclaramenteduranteoséculoXII,doisnovostiposdeórgãosocial,duasnovas formasdeassentamentoe integração,queassinalaramumaumentonadivisãodotrabalhoena interdependênciadaspessoas: as cortesdosgrandes senhores feudais e ascidades.Essasduasinstituiçõesestãoestreitamenteligadasemsuasociogênese,pormaisdesconfiadosehostisqueseusmembrospudessemfreqüentementesecomportarentresi.

Essaspalavrasnãodevemsermal-interpretadas.Nãoeracomoseosetorindiferenciadodaeconomiadetrocafosseconfrontado,deumsógolpe,porformasmaisdiferenciadasdeassentamento, nas quais númerosbastante grandesdepessoaspudessem ser sustentadasdiretaouindiretamentenabaseda trocaedadivisãodotrabalho.Cominfinita lentidão,estações economicamente autônomas foram construídas no caminho percorrido pelos

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bens,doestadonaturalparaoconsumo.Eassim,passoapasso,cidadesegrandescortesfeudais nasceram da forma de atividade econômica que sobrevivia nas pequenaspropriedades.NoséculoXII,emuitotempodepois,nemosaglomeradosurbanosnemasgrandescortes feudais estavam tão separadasdaeconomiade trocacomoascidadesdoséculoXIXestariamdochamadocampoaberto.Muitoaocontrário,aproduçãoruraleaurbanacontinuavamestreitamenteligadas.Asrarasgrandescortesfeudaisestavam,parasermos exatos, ligadas à rede de comércio e ao mercado através de sua produçãoexcedente,dostributosquecobravametambémdademandacrescentedeartigosdeluxo;masamaiorpartedasnecessidadesdiáriasaindaeraatendidadiretamentepelaproduçãode seus próprios domínios. Nesse sentido, elas ainda funcionavam em uma economiapredominantemente de troca. Reconhecidamente, o próprio tamanho de seus domíniosocasionava uma diferenciação das operações que neles tinham lugar. De forma muitoparecida com a Antiguidade, época em que as grandes propriedades escravagistastrabalhavam em parte para o mercado e até certo ponto para atender às necessidadesdiretas da família governante e, nesse sentido, ainda representavam um tipo maisdiferenciado de economia não comercial, o mesmo acontecia com essas grandespropriedadesfeudais.Essefatopodiaaplicar-seatécertopontoaotrabalhomaissimplesnelasrealizado,mas,acimadetudo,aplicava-seàorganizaçãodapropriedade.Odomíniodograndesenhorfeudaldificilmenteformavaumúnicoepoderosocomplexo,situadoemumaglebaauto-suficiente.Suasterrashaviamsido,comfreqüência,obtidaspordiversosmeios,taiscomoconquista,herança,doaçãooucasamento.Geralmenteseespalhavampordiferentesregiõesdoterritórioe,porconseguinte,nãopodiamsersupervisionadascomamesma facilidade que uma pequena propriedade. Era preciso haver uma organizaçãocentral,pessoasparacontrolaraentradaesaídadasmercadorias,paramanterascontas,pormaisprimitivaspudessemsernoinício,pessoasquecontrolassemareceitaproduzidapelostributoseadministrassemosterritórios.“Aspequenaspropriedadesfeudaiseram,doponto de vista intelectual, um órgão rudimentar, principalmente quando o senhor nemsabia ler nem escrever”.52 As cortes dos grandes e ricos senhores feudais atraíraminicialmenteumquadrodeamanuenseseducadosparafinsdeadministração.Masgraçasàsoportunidadesqueseabriamparaelesnessaépoca,osgrandessenhoresfeudaiseram,conformejámencionamos,oshomensmaisricosepoderososdesuaregiãoe,comisso,cresceuodesejodemanifestaressaposiçãomedianteoesplendordesuascortes.Elesnãosóerammaisricosdoqueosdemaiscavaleiros,mastambém,paracomeçar,maisricosdoquequalquerburguês.Poressarazão,asgrandescortestiveram,nessaépoca,importânciacultural muito maior do que as cidades. Na concorrência entre os governantes deterritórios, elas se tornaram os locais para exibir o poder e a riqueza de seus senhores.Estes, por isso mesmo, reuniram escribas não só para finalidades administrativas mastambém para redigir a crônica de suas façanhas e destino. Eram generosos com osmenestréis que os exaltavam e a suas damas. As grandes cortes tornaram-se “centrospotenciaisdepatrocínio literário”e“centrospotenciaisdehistoriografia”.53Nessaépocanão havia ainda mercado para o livro. E, no contexto da sociedade secular, no casodaquelesquesehaviamespecializadonaescritaenacomposiçãoetinhamqueviverdisso,fossemounãoamanuenses,opatrocíniodacorteconstituíaoúnicomeiodesustento.54

Nesteparticular,comosemprenahistória,formasmaiselevadaserefinadasdepoesiadesenvolveram-seapartirdeoutrasmaissimples,emcombinaçãocomadiferenciaçãodasociedadeeaformaçãodecírculossociaismaisricoseapurados.Opoetanãotrabalhava

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como um indivíduo inteiramente auto-suficiente para um público anônimo, do qualconhecia nomáximo apenas alguns representantes. Criava e escrevia para pessoas queconhecia por contacto diário.A convivência, as formas de relacionamento e conduta, aatmosfera do círculo social em que semovia e o lugar que nele ocupava encontravamexpressãoemsuaspalavras.

Artistas viajavam de um castelo para outro. Se alguns eram cantores, a maioriatrabalhava simplesmente como palhaços ou bufões no sentidomais simples da palavra.Nessa qualidade, eram encontrados também nos castelos dos cavaleirosmais simples emenosimportantes.Massóosvisitavamdepassagem,poisnãohaviaalialojamento,neminteresse e, não raro, tampouco meios de alimentá-los e remunerá-los por um longoperíodo. Tais condições só as poucas cortes maiores podiam fornecer. E por “artistas”temos que compreender uma faixa inteira de funções, variando do comediante maissimples e do bufão aoMinnesänger e ao trovador. A função era também diferenciadasegundoopúblico.Ossenhoresmais importantes,mais ricos—oquevaledizer,osdegraduaçãomaisalta—podiamatrairosmelhoresartistaspara suascortes.Eramaioronúmero de pessoas que nelas se reuniam; havia possibilidade de convívio eentretenimentos mais refinados, de modo que era também mais fino o tom da poesia.Tinhacursofreqüentenessaépocaaidéiadeque“quantomaisimportanteosenhoresuadama,maisinspiradoemelhorobardo”.55Issoeraaceitocomonatural.Comfreqüência,nãoumúnicomasvárioscantoresresidiamnasgrandescortesfeudais.“Quantomaisfinasasqualidadespessoaiseaposiçãodaprincesa,maisbrilhantesuacorte,emaispoetaselareuniaaseuserviço.”56Paralelaàlutapelopoder,entreosgrandessenhoresfeudaistrava-se uma batalha constante por prestígio. O poeta, como o historiador, era um de seusinstrumentos. Por issomesmo, amudança de emprego doMinnesänger, de um senhorpara outro, podia, com freqüência, implicar uma mudança completa nas convicçõespolíticasaquedavavoz.57ComrazãosedissearespeitodaMinnesang:“Emsignificadoeintenção,elaeraumpanegíricopolíticosobaformadetributopessoal.”58

31.Retrospectivamente,aMinnesangtalvezpareçaumaexpressãodasociedadefidalgaemgeral.Essa interpretação foi reforçadapelo fatodeque, comodeclíniodas funçõescavaleirosas e a crescente subserviência da classe alta nobre ante a ascensão doabsolutismo,aimagemdasociedadelivre,fidalga,sempeias,passouarevestir-sedeumaauradenostalgia.Masédifícil conceberqueaMinnesang, especialmente em seus tonsmais delicados — e ela nem sempre foi assim — tivesse origem na mesma vida deconduta rudeedesabridaquecaracterizavaogrossodoscavaleiros.JásalientoualguémqueaMinnesangera,narealidade,“muitocontráriaàmentalidadecavaleirosa”.59Todaapaisagem, com sua diferenciação incipiente, tem que ser conservada em mente sequeremosentenderessacontradiçãoeaatitudeexpressadanapoesiadostrovadores.

Houve três formas de existência cavaleirosa que, com numerosos estágiosintermediários, começaram a ser discerníveis nos séculos XI e XII. Tínhamos oscavaleiros menores, governando uma ou mais glebas de terras não muito grandes; emsegundolugar,haviaosgrandesericoscavaleiros,governantesdeterritórios,poucosemnúmero em comparação com os primeiros; e finalmente os cavaleiros sem terra, oupouquíssima terra, que se colocavama serviçodosmaispoderosos.E foiprincipalmasnão exclusivamente deste último grupo que emergiu oMinnesänger cavaleiroso, nobre.Cantar e compor a serviço de um grande senhor e nobre dama era um dos caminhos

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abertosàquelesquehaviamsidoexpulsosdaterra,fossemelesdaclassealtaoudaclasseurbano-ruralmaisbaixa.Antigosmembrosdeambososgruposeramencontradoscomotrovadores nas grandes cortes feudais. E mesmo que um grande senhor feudalocasionalmenteseentregasseaocantoeàcomposição,aindaassimapoesiaeoserviçodotrovadoreramcaracterizadospelostatusdependentedeseuspraticantesnaricavidasocialque, lentamente, assumia formas definitivas. Os relacionamentos e as compulsõeshumanasestabelecidosnesseambientenãoeramtãoestritosecontínuos,ouinescapáveis,comomaistardeviriamasetornarnascortesabsolutistasmaiores,queerammuitomaisestruturadas por relações monetárias. Mas já agiam na direção de um controle maisrigoroso das pulsões. No círculo restrito da corte, e encorajadas acima de tudo pelapresença da castelã, formas mais pacíficas de conduta tornaram-se obrigatórias. Mascertamenteessasituaçãonãodeveserexagerada.Apacificaçãonãoeranemdelongetãoavançadacomomaistarde,quandoomonarcaabsolutopodiamesmoproibirosduelos.Aespadacontinuavasoltanabainha,eaguerraeasrixasestavamsempreporperto.Masamoderaçãodaspaixões,asublimação,tornaram-seinequívocaseinevitáveisnasociedadeda corte feudal. Os cantores fidalgos e burgueses eram socialmente dependentes e seustatussubordinadoformavaabasedesuascanções,atitudesemoldeafetivoeemocional.

Se o cantor de corte queria conquistar respeito e consideração para sua arte e pessoa, só podia elevar-sepermanentemente acima do artista ambulante entrando para o serviço de um grande príncipe ou princesa.Minnesänge dirigidas a uma amiga distante que ela ainda não conhecia tinham por única finalidade expressar odesejoeaprestezadeservirnacortedahomenageada.

NascondiçõesdeserviçodeWalthervonderVogelweidepodemosobservar,comofoiclaramentedemonstradoporKonradBurdach,umexemplotípicodavidadoMinnesänger.OreiFelipetomaraWalther“parasimesmo”,aexpressãohabitualquedesignavaoingressonoserviçoministerial.Eraumserviçosemremuneraçãonemgarantiadeduração,podendodurardequatromesesaumano.Terminadoesseprazo,elepodiaprocurarumnovosenhor,compermissãodoantigo.WalthernãorecebeufeudoalgumdeFelipe,nemdeDietrichdeMeissen,etampoucodeOtoIVoudeHermann,daTuríngia,acujascortes tambémpertenceu.De igualmaneira, foicurtoseuserviçoaobispoWolfgar,deEllenbrechtskirchen.Finalmente,FredericoII,conhecedordearteepoetaelemesmo,concedeu-lheumsaláriocomoqualpodiamanter-se.Umenfeudamentodeterraouanomeaçãoparaumcargo(sómaistarde,pagamento emdinheiro) eram,na economiade trocada era feudal, amais alta honrapor serviçosprestados, e oobjetivo final de quem servia.Mas raramente eram concedidos a cantores de corte na França ouAlemanha. Emgeral,tinhamestesquecontentar-seemservircomopoetasdacorte,divertindoseusmembros,recebendoemtrocamoradiaealimentaçãoe,comohonraespecial…asroupasnecessáriasparaoserviçonacorte.60

32.AestruturaçãoparticulardossentimentosexpressadosnaMinnesangerainseparáveldaposiçãosocialdoMinnesänger.OscavaleirosdosséculosIXeX,emesmoamaioriados cavaleiros posteriormente, não se portavam com especial delicadeza com suasprópriasesposase,demaneirageral,commulheresdeclassesmaisbaixas.Noscastelos,as mulheres ficavam expostas às “cantadas” grosseiras do homem mais forte. Podiamdefender-semedianteestratagemas,mas,nesseslocais,eraohomemquemmandava.Asrelaçõesentreossexoseramreguladas,comoaliásemtodasassociedadesguerreirascomgovernomaisoumenospronunciadodohomem,pelopodere,freqüentemente,porlutasabertasouveladasquecadaumtravavacomosmeiosdequedispunha.

Ouvimosocasionalmentefalardemulheresque,portemperamentoeinclinação,poucodiferiamdoshomens.Asenhoradocasteloeranessecasouma“megera”detemperamentoviolento, paixões ardentes, submetida desde a juventude a todos os tipos de exercíciosfísicosequetomavaparteemtodososprazereseperigosdoscavaleirosqueacercavam.61Mas,comfreqüência,ouvimostambémfalardooutroladodamoeda,doguerreiro,fossereiousimplessenhor,queespancavaaesposa.Pareciaserumhábitoquasetradicionaldo

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cavaleiro,enraivecendo-se,socaraesposanonarizatéosanguecorrer.

“Oreiouviuissoearaivacoloriu-lheorosto;erguendoopunho,atingiu-anonarizcomtal força que tirou quatro gotas de sangue. E a senhora disse: ‘Meus mais humildesagradecimentos.Quandolheaprouver,podefazerissonovamente.’”

“Poderíamos citar outras cenas do mesmo tipo”, diz Luchaire.62 “Sempre o soco nonariz com o punho fechado.” Além disso, o cavaleiro era sempre censurado por ouvirconselhosdaesposa.

“Senhora,retire-separaseulugar”,dizporexemploocavaleiro,“ecomaebebacomsuacorteemsuascâmaraspintadasedouradas,ocupe-seempendurarcortinadosdeseda,poisesseéoseumister.Omeuécortarcomespadadeaço.”

Pode-setiraraconclusão(citandonovamenteLuchaire)dequemesmonaépocadeFelipeAugustoaatitudecortesã,cortês, para com as mulheres só excepcionalmente se encontrava nos círculos feudais. Na grande maioria dosdomínios,atendênciaantiga,menosrespeitosa,brutal,aindaprevalecia,transmitidae,talvez,exagerada,namaioriadas “chansons de geste”.Não devemos nos deixar enganar pelas teorias sobre o amor expostas pelos trovadoresprovençaiseporunspoucos“Trouvères”daFlandresedaChampagnee:ossentimentosqueelesexpressavameram,acreditamos,deumaelite,deumapequenaminoria…63

A diferenciação entre as cortes menores e médias e as poucas grandes, maisestreitamente ligadasà redeem lentodesenvolvimentodocomércioedamoeda, trouxeconsigotambémumadiferenciaçãonocomportamento.Semdúvida,essecomportamentonão apresentava um contraste tão flagrante como podem sugerir essas reconstruções dopassado. Neste particular, também, pode ter havido formas transitórias e influênciasmútuas. Mas, de modo geral, uma vida social mais tranqüila formou-se em torno dacastelã apenas nessas poucas grandes cortes. Só nesse ambiente os cantores tinhampossibilidade de encontrar serviço de alguma duração e só nelas se estabeleceu aquelapeculiar atitude de o homem servir à dama da corte, que encontra expressão naMinnesang.

A diferença entre a atitude e os sentimentos manifestados naMinnesang e os maisbrutaisqueprevaleciamnaschansonsdegeste, eparaasquaisahistória forneceampladocumentação, tinhaorigememdois tiposdiferentesde relaçãoentrehomememulher,correspondendo a duas diferentes classes de sociedade feudal. Esses dois modos deconduta,porconseguinte,surgiramcomamudançadocentrodegravidadedasociedade,jádiscutida.Emumasociedadedenobrezasenhoradeterras,altamentedispersapelopaís,radicada em seus castelos e propriedades, era muito grande a probabilidade de que ohomempreponderassesobreamulhere,assim,deumadominaçãomasculinasemquasenenhumdisfarce. E em todos os casos em que uma classe com essas características—nobre, guerreira, dona de terras —, influenciou fortemente o comportamento geral dasociedade, os traços de dominação pelo homem, as formas de vida social puramentemasculinas, com seu erotismo específico e um parcial eclipse das mulheres, aparecemmaisoumenosclaramentenatradiçãovigente.

Relacionamentos desse tipo predominaram na sociedade guerreira medieval.Característicadelaeraumtipoespecialdedesconfiançaentreossexos,refletindoagrandediferença na forma e escopo da vida que cada um levava e o isolamento espiritual quesurgia como conseqüência. Como em épocas posteriores — enquanto as mulherescontinuaram destituídas de vida profissional—, os homens da IdadeMédia, quando as

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mulheresestavamdemodogeralexcluídasdaesferaprincipaldavidamasculina,aaçãomilitar,passavamamaiorpartedotempoemcompanhiadeseuspares.Easuperioridadedeleseraacompanhadaporumdesprezomaisoumenosexplícitopelamulher:“Váparasuas câmaras enfeitadas, senhora, nosso afazer é a guerra.” Essa frase era inteiramentetípica.O lugardamulhereraemseusaposentosprivados.Essaatitude, talcomoabasesocialqueaproduzia,persistiudurantemuitotempo.Seustraçospodemserencontradosna literatura francesa até o próprio século XVI, ou seja: enquanto a classe alta éconstituída principalmente de uma aristocracia militar e agrária.64 Depois essa atitudedesaparecenaliteratura,quenaocasiãoécontroladaemodeladaquaseexclusivamente,naFrança,porgentedacorte,masnãosebaseandomaisnavidadanobrezafundiária.

As grandes cortes absolutistas foram os lugares, na história européia, em que sealcançouamaiscompletaigualdadeatéhojeconhecidaentreasesferasdevidadehomense mulheres, e também as de seu comportamento.f Seria necessária uma digressãoexcessivamentelongaparamostrarporquejáasgrandescortesfeudaisdoséculoXII,eascortesabsolutistasnumamedidaincomparavelmentemaior,ofereceramàsmulherestantasoportunidades de superar a dominaçãomasculina e de conseguir um status igual ao dohomem.Observaramalgunsautores,porexemplo,quenosuldaFrançamulherespodiam,numestágioantigo,tornar-sesenhorasfeudais,possuirpropriedadesedesempenharpapelpolítico; houve quem pensasse que esses fatos tenham facilitado o desenvolvimento daMinnesang.65Mas,parareduziroalcancedessatese,enfatizou-setambémque“asucessãoaotronopelasfilhassóerapossívelseosparentesdosexomasculino,oseusenhoreosvizinhos não impedissem a senhora de receber sua herança”.66 Na verdade, mesmo nopequenoestratodosgrandessenhoresfeudais,erasempreperceptívelasuperioridadedohomem sobre amulher, resultante de sua função guerreira.Nas grandes cortes feudais,contudo, reduziu-se em certa medida a função militar. Nelas, pela primeira vez nasociedade secular, grande número de pessoas, incluindo homens, viviam juntos emcontacto íntimo na estrutura hierárquica, sob os olhos da figura principal, o senhor doterritório.Essefatobastavaparaimporumacertacontençãoatodososdependentes.Tinhaqueserrealizadoumgrandevolumedetrabalhoadministrativoeburocrático,jásemnadademilitar.Tudoissocontribuíaparacriarumaatmosferaumpoucomaispacífica.Comoaconteceemtodasasocasiõesemquehomenssãoobrigadosarenunciaràviolênciafísica,aumentouaimportânciasocialdasmulheres.Nasgrandescortesfeudais,estabeleceram-seumaesferacomumdevidaeumavidasocialcomumparahomensemulheres.

Para sermos exatos, a dominação masculina não foi absolutamente quebrada, comoaconteceualgumasvezes,posteriormente,nascortesabsolutistas.Paraosenhordacorte,sua função como cavaleiro e chefemilitar continuava a ser a principal e sua educação,igualmente,eraadeumguerreiroafeitoaomanejodearmas.Apenasporessarazão,asmulheres superavam-no na esfera da sociedade pacífica. Como aconteceu com tantafreqüêncianahistóriadoOcidente,nãoforamoshomensmasasmulheresdealtaclasseos primeiros liberados para o desenvolvimento intelectual, para a leitura.A riqueza dasgrandescortesdavaàmulherapossibilidadedepreencherseutempodeócioededicar-sea interesses de luxo.E, assim, foi em tornodemulheres que se formaramos primeiroscírculos de atividade intelectual pacífica. “Nos círculos aristocráticos do século XII, aeducaçãodasmulheres emgeral eramais refinadaqueadoshomens.”67Essas palavrasreferem-secertamenteaohomemdomesmostatus,omarido.Orelacionamentodaesposa

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comomaridonãodiferiaaindamuitodoqueeracostumeironasociedadeguerreira.Eramaismoderadoeumpoucomaisrefinadodoquenocasodospequenoscavaleiros,masarestrição a que o homem se obrigava, em comparação com a que exigia da esposa, emgeral não era grande. Nesse particular, também, era inequivocamente o homem quemmandava.

33. Não é, porém, esse relacionamento entre marido e mulher que serve de base àpoesia dos trovadores e da Minnesang, mas a relação entre um homem socialmenteinferior euma senhorade alta classe.E sónas cortes suficientemente ricas epoderosasparagerartaisrelaçõeséquesurgiaaMinnesang.Mas,emcomparaçãocomaclassedoscavaleiroscomoumtodo,elasnadamaiseramdoqueumdelgadoestrato,uma“elite”.

Nesteparticular,emergecomgrandeclarezaaligaçãoentreaestruturadasrelaçõesnasociedade em geral e a estrutura da personalidade dos indivíduos. Na maior parte dasociedade feudal, onde o homemmandava e a dependência dasmulheres era visível equaseirrestrita,nadaoobrigavaacontersuaspulsõeseaimpor-lhescontroles.Poucosefalava de “amor” na sociedade guerreira. E ficamos até com a impressão de que umhomemapaixonado teriaparecido ridículonessemeiodeguerreiros.Demodogeral, asmulheres eram consideradas inferiores. Havia mulheres em número suficiente e elasserviamparasatisfazeraspulsõesmasculinasnassuasformasmaissimples.Asmulhereseramdadasaohomempara“suasatisfaçãoedeleite”.Issofoiditonumaépocaposterior,masestavadeperfeitoacordocomacondutadosguerreirosemépocaanterior.Oqueelesprocuravamnasmulhereseraoprazer físicoe, àparte isso, “dificilmente seencontravaumhomemcompaciênciaparaaturaraesposa”.68

Aspressõessobreavidasexualdasmulheresforam,emtodaahistóriaocidental,comaexceção das grandes cortes absolutistas, consideravelmente mais fortes do que asexercidas sobre homens de igual nascimento. O fato de que mulheres que ocupavamposições elevadas na sociedade guerreira, e portanto gozavam de um certo grau deliberdade, sempre tenham achado mais fácil controlar, refinar e transformarvantajosamenteseussentimentosdoquehomensdeigualstatustalvezrefletisseumhábitoe um condicionamento precoce nessa direção.Mesmo em relação ao homem de statussocialaparentementeigual,elaeraumserdependente,socialmenteinferior.

Em conseqüência, era apenas o relacionamento de umhomem socialmente inferior edependentecomumamulherdeclassemaisaltaquedavaorigemàcontenção,àrenúnciae à conseqüente transformação das pulsões. Não foi por acidente que nessa situaçãohumanaaquiloquedenominamosde“poesialírica”evoluiucomoumeventosocialenãomeramente individual.g — de idêntica maneira, como evento social — aquelatransformaçãodoprazer,aquelanuançadeemoções,aquelasublimaçãoerefinamentodesentimentos que chamamos “amor” finalmente surgiram. Não como exceção, mas emforma socialmente institucionalizada, surgiram contatos entre homem e mulher quetornaram impossível o homem forte simplesmente tomar a mulher quando ela lheagradasse,oquetornavaamulherinacessível,ouacessívelapenasaduraspenase,talvezporque fosseeladeclassemaisaltaedifícildeconquistar,especialmentedesejável.Taleraasituação,oambienteemocionaldaMinnesang,noqual,daíemdiante,atravésdosséculos,osamantesreconheciampartedeseusprópriossentimentos.

NãohádúvidadequegrandenúmerodecançõesdetrovadoreseMinnesänger foram

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essencialmenteaexpressãodeconvençõesdascortesfeudais,ornamentosdavidasocialemeramente uma parte do jogo social. Pode ter havido muitos trovadores cujorelacionamento interior com sua dama não fosse tão devorador assim e que secompensassemcomoutrasmulheresmaisacessíveis.Masnemessaconvençãonemsuamanifestaçãopoderiamtersurgidonafaltadeexperiênciasesentimentosautênticos.Elassugeremumnúcleodesentimentogenuínoedeexperiênciareal.Essestonsnãopodiamtersidosimplesmentemeditadosouinventados.Algunsamaramealgunstiveramaforçaeagrandezadeexpressarseuamorempalavras.Aliás,nãoésequerdifícil identificaremquepoemasossentimentoseexperiênciassãoautênticos,eemquaissãomaisoumenosconvencionais. Alguns devem ter encontrado as palavras e as nuanças para seussentimentos,antesqueoutrospudessemjogarcomelasedelasfazerumaconvenção.“Osgrandes poetas, indubitavelmente, fundiam sua própria verdade até mesmo com essespoemasdeembeiçamentoamoroso.Daplenitudedesuasvidasfluíaasubstânciadesuascanções.”69

34.AsfonteseprecursoresliteráriosdaMinnesangforamrepetidamenteinvestigados.Suas relações com a poesia religiosa dirigida para a Virgem e com a lírica latina dosSábiosAmbulantesforamassinaladas,provavelmentecomrazão.70

O aparecimento e a essência daMinnesang, porém, não podem ser compreendidosapenasemtermosdeantecedentesliterários.Essasformasmaisantigasencerravammuitaspossibilidades distintas de desenvolvimento. Por que teria mudado a maneira como aspessoas procuravam expressar-se?Ou, reduzindo a pergunta a termos bem simples: porque essas duas formas de lirismo religioso e secular não continuaram a ser formaspredominantes de expressão? Por que elementos formais e emocionais delas foramretirados emodelados em algo novo? Por que esse novo gênero assumiu exatamente aforma que conhecemos comoMinnesang? A história possui sua própria continuidade:conscientemente ou não, os que chegammais tarde começam com o que já existe e odesenvolvem mais. Mas quais teriam sido a dinâmica desse movimento e as forçasmodeladoras da mudança histórica? Tal é o nosso problema aqui. A investigação dasfonteseantecedentesé semdúvida importanteparaacompreensãodaMinnesang,mas,sem um estudo sociogenético e psicogenético de suas origens, permanecerão obscurassuasconexõesfeudais.AMinnesang,comoeventosupra-individual,comofunçãosocialemrelaçãoàsociedadefeudalcomoumtodo,nãopodeserentendida,comotampoucosuaformaespecíficaeconteúdo típico,amenosquenosconscientizemosdasituação realerelacionamentodepessoasqueseexpressampormeiodela,edagênesedessasituação.Essaquestãoespecíficaexigiriamaisespaçodoquedispomosaqui,ondenossoprincipalinteresse diz respeito amovimentos e conexões numa escalamais ampla. Se indicamosaqui uma direção mais precisa de estudo para uma instituição específica, como aMinnesang, e delineamos alguns dos principais contornos de suas condições sócio epsicogenéticas,issoserátudooqueénecessárioparaasfinalidadesdesteestudo.

35. Grandes mudanças históricas exibem uma regularidade precisa que as distingue.Freqüentementeparece,àvistadeestudosmodernos,queformaçõessociaisparticulares,cuja crônica constitui a história como tal, se seguiriam umas às outras aleatoriamente,comoasformasdenuvensnamentedePeerGynt:oraseparecemcomumcavalo,logodepoiscomumurso,—nummomentoasociedadeseafiguracomoromânicaougótica,edepois,barroca.

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O que mostramos aqui foram algumas tendências básicas e interdependentes queculminarammodelandoasociedadecomoum“sistemafeudal”e,finalmente,comootipoderelaçõesconhecidoporMinnesang.Umadessastendências—orápidocrescimentodapopulação após amigração dos povos— vinculou-se estreitamente à consolidação dasrelaçõesdepropriedade,àformaçãodeumexcedentehumano,tantonapobrezacomonaclasse dos servos, e à pressão, sobre essas pessoas deslocadas de seus grupos, paraencontraremnovosserviços.

Ligado a tudo isso, gradualmente se distinguiram sucessivas etapas na passagemdosbensdaproduçãoaoconsumo,cresceuademandadeummeiodetrocaunificadoemóvel,mudou o centro de gravidade na sociedade feudal, passando dos numerosos pequenossenhores a uns poucos grandes, criaram-se grandes cortes no centro de regiões dedimensõesdeterritório,ondetraçoscavaleirosofeudaisseconjugamcomoutros,típicosdavida cortesã, numa unidade comparável à que as relações monetária e de escamboarticulavam,aomesmotempo,naquelasociedadecomoumtodo.

Ehaviatambémanecessidadedeprestígioeexibiçãodosgrandessenhoresfeudais,quetranspareciaemlutasmaisoumenosviolentasentresi—oseudesejodesedistinguiremdoscavaleirosmenosimportantes.E,comoexpressãodetudoisso,ospoetasebardosquecantavamossenhoreseassenhoras,pondoempalavrasosinteresseseopiniõespolíticasdos primeiros e a beleza das segundas, transformaram-se em instituição socialmais oumenosfirmementeestabelecida.

Deigualmaneira,podia-seobservar,emboraapenasnessepequenoestratosuperiordasociedade cavaleirosa, uma primeira forma de emancipação feminina, uma maiorliberdadesuademovimento—muitopequena,parasermosexatos,quandocomparadaàliberdade dasmulheres nas grandes cortes do absolutismo—, contatosmais freqüentesentre a damada corte, amulher de alta posição, e o trovador, homemdependente e decondiçãomais humilde, fosse ele ounão cavaleiro; a impossibilidadeoudificuldadedeconquistaramulheramada,oautocontroleimpostoaohomemsubordinado,anecessidadedediscriçãoeumacertaregulaçãoetransformação,aindaquesuperficial,desuaspulsõesenecessidadesbásicas;e,finalmente,aexpressãodessesdesejos,dificilmenterealizáveis,nalinguagemdossonhos,napoesia.

A beleza de um poema e o convencionalismo vazio de outro, a grandeza desteMinnesänger e a trivialidade daquele, são fatos distintos. Mas a Minnesang comoinstituiçãosocial,ocontextonoqualoindivíduosedesenvolvia—esóissonosinteressaaqui—evoluíramdiretamentedessainteraçãodeprocessossociais.

36.Namesmasituação,istoé,nasgrandescortesfeudais,surgiusimultaneamenteumaconvençãomaisrígidadeconduta,umacertamoderaçãodosafetoseumaregulaçãodasmaneiras. Foi a esse padrão de maneiras, a essa convenção de comportamento, a essepolimentodacondutaquea sociedadedeuonomedecourtoisie.ObteremosumavisãocompletadamesmaapenasseincorporarmosoquefoiditonoVolume1,sobreacondutacourtoise,àdescriçãodascortesfeudaisqueaquipropomos.

Preceitos da sociedade cortês forammencionados antes, no início de várias séries deexemplosqueilustravamocivilizar-sedacondutaedossentimentos.Asociogênesedasgrandes cortes feudais ocorreu ao mesmo tempo que a da conduta cortês. A cortesia

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também foi uma forma de conduta que se desenvolveu primeiro entre os membrossocialmentemais dependentes de uma classe alta cavaleirosa-cortesã.71Mas o que querqueseja,umfatoseevidencia:essepadrãocortêsdecondutanãoconstituía,emsentidoalgum,umcomeço.Nãofoiumexemplodecomoaspessoassecomportamquandosuasafeiçõessemanifestamlivrese“naturais”,semrestriçõesimpostaspelasociedade,istoé,pelasrelaçõesentreaspessoas.Umatalcondiçãodepulsõesinteiramentedescontroladas,de um “começo” absoluto, simplesmente não existe. A liberdade relativamente grandeparasedarexpressãoinstintivaeafetivaaimpulsos,quecaracterizouohomemnasaltasclassescorteses—grandeemcomparaçãocomadasclassesaltassecularesocidentaisdosséculos seguintes— correspondia exatamente à forma de integração, ao grau e tipo dedependência mútua na qual se vivia nessa ocasião. A divisão do trabalho era menosdesenvolvidadoqueaoseconstituirosistemadegovernoabsolutomaisestrito;eramenora rede de comércio e, também, o número de pessoas que podiam ser sustentadas numúnicolugar.E,fossemquaisfossemasformasdedependênciaindividual,ateiasocialdedependênciasquesecruzavamdentrodo indivíduonasociedadeeramuitomais toscaemenosextensadoqueemsociedadescommaiordivisãodotrabalhoeondemaiornúmerode pessoas vivem constantemente bem perto umas das outras, num sistema maisorganizado.Emconseqüência,ocontroleeamoderaçãodaspulsõeseafeiçõesindividuaiserammenos rigorosos, contínuoseuniformes.Nãoobstante, já eramconsideravelmentemaisextensasnasmaiorescortes feudaisdoquenasmenoresounasociedadeguerreiracomo um todo, onde era bemmenos geral e complexa a interdependência das pessoas,onde a rede que envolvia os indivíduos possuía tessitura mais frouxa e onde a grandedependência funcional entre eles continuava a ser a da guerra e da violência. Emcomparação com o comportamento e vida afetiva nela encontrada, a cortesia járepresentava um refinamento, uma marca de distinção. E as críticas que lemos, quasesempredamesmaformanosmuitospreceitosmedievaissobreasmaneiras—eviteisso,abstenha-sede fazer aquilo—referia-semaisoumenosdiretamenteaocomportamentoparaticado pela massa dos cavaleiros, que entre os séculos IX ou X e o século XVImudaramtãolentaesuperficialmentecomosuascondiçõesdevida.

37.Noatualestágiodedesenvolvimento,carecemosaindadeinstrumentoslingüísticosquefaçamjustiçaànaturezaedireçãodetodosessesprocessosassimentrelaçados.Seriatalvez apenas uma contribuição imprecisa e provisória ao entendimento dizer que asrestriçõesimpostasaoshomensesuaspaixõestornaram-se“maiores”,aintegração,“maisestreita”,eainterdependência,“maisforte”,damesmamaneiraquenãofariamuitajustiçaàrealidadesócio-históricadizerqueumacoisapertenceà“economiadetroca”eoutraà“sociedade monetária”, ou repetir a forma de expressão escolhida nessas páginas, que“crescia o setormonetário da economia”. Em quanto cresceu, grau após grau?De quemaneiras as restrições se tornaram “maiores”, a integração “mais estreita” e ainterdependência “mais pronunciada”? Nossos conceitos são demasiado grosseiros eaderem excessivamente à imagem de substâncias materiais. Em tudo isto não estamosinteressados meramente em gradações, em “mais” ou “menos”. Cada “aumento” nasrestrições e interdependência era expressão do fato de que os laços entre as pessoas, amaneiracomodependiamumadaoutra,estavammudando,emudandoqualitativamente.É isso o que significam diferenças em estrutura social. Com a rede dinâmica dedependênciasdequeseteciaavidahumana,aspulsõesecomportamentodosindivíduosassumiamumaformadiferente.Eéissooquesignificamtambémdiferençasemestrutura

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de personalidade e em padrões sociais de conduta. O fato de que essas mudançasqualitativas fossem, às vezes, a despeito de todas as flutuações dentro do movimento,mudançasquenumlongoperíodosenotateremseguidoumamesmaeúnicadireção,istoé,processos contínuos,dirigidos, enãouma seqüência aleatória, autoriza-nos, emesmonosobriga,arecorreratermoscomparativosquandodiscutimosfasesdiferentes.Nãoquerisso dizer que a direção em que esses processos se desenvolviam fosse no sentido domelhoramento,do“progresso”,ounorumooposto,a“retrogressão”.Mastampoucoquerdizerqueenvolvessemsimplesmentemudançasquantitativas.Nestecaso,comoacontececom tanta freqüência na história, estamos tratando de mudanças estruturais que sãoapreendidasdemaneiramaisfácilevisível,mastalveztambémmaissuperficial,emseuaspectoquantitativo.

Observamosaevoluçãoseguinte:emprimeirolugar,umcasteloseopunhaaoutro,emseguida, um território a outro e, finalmente, um Estado a outro. Hoje, no horizontehistórico, vemosos primeiros sinais deuma luta por integraçãode regiões emassas depessoasemescalaaindamaior.Podemos suporque, continuandoa integração,unidadesainda maiores serão gradualmente reunidas sob um governo estável e que elas,internamente pacificadas, voltarão suas armas contra aglomerados humanos do mesmotamanho até que, prosseguindo a integração e a redução de distâncias, elas, também,gradualmente se fundirão e a sociedade mundial será pacificada. Tal evolução podeconsumir séculos ou milênios. Mas, o que quer que aconteça, o surgimento de novasunidades de integração (e de governo) sempre é expressão demudanças estruturais nasociedade,ouseja,nasrelaçõeshumanas.Emtodososcasosemqueocentrodegravidadedasociedadesemoverumoaunidadesdeintegraçãodeumanovaordemdemagnitude—e a mudança que inicialmente beneficiou os grandes senhores feudais a expensas dosmenores e de porte médio, em seguida os reis contra os grandes senhores feudais outerritoriais,foiumcasodestes—,emtodasasocasiõesemqueessasmudançasocorrem,elasofazememconjuntocomfunçõessociaisquesetornarammaisdiferenciadasecomcadeiasdeaçãosocialorganizada,militaresoueconômicas,quesetornarammaislongas.Em todosos casos, a redededependências que se cruzamno indivíduo tornou-semaisamplaemudoudeestrutura;emtodasasocasiões,numacorrespondênciaexatacomessaestrutura, a modelação do comportamento e de toda vida emocional, a estrutura dapersonalidade,mudou também.Oprocesso “civilizador” visto a partir dos aspectos dospadrõesdecondutaedecontroledepulsõeséamesmatendênciaque,seconsideradadoponto de vista das relações humanas, aparece como um processo de integração emandamento,umaumentonadiferenciaçãodefunçõessociaisenainterdependênciaecomoa formação de unidades ainda maiores de integração, de cuja evolução e fortuna oindivíduodepende,saibadissoounão.

Tentamosaquicomplementaradescriçãogeraldafasemaisantigaemenoscomplicadadessemovimentocomalgumasprovasconcretasilustrativas;aseguir,examinaremosasuaprogressãoulterior eosmecanismosque a impulsionaram.Mostramos comoeporque,nas primeiras fases da história do Ocidente, que possuiu predominantemente umaeconomia de escambo, ou troca, eram escassas as probabilidades de se estabeleceremgovernos estáveis em grandes impérios. Reis conquistadores podiam, é certo, subjugarenormes áreas pela força das armas e mantê-las unidas por algum tempo, graças aorespeitoquesuaespadainfundia.Aestruturadasociedade,contudo,aindanãopermitiaa

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criação de umamáquina suficientemente estável para administrar emanter unificado oimpério, com emprego de meios relativamente pacíficos, durante extensos períodos depaz. Resta mostrar que processos sociais tornaram possível a formação desse governomaisestávele,comele,obrigaçõesmuitodiferentesporpartedosindivíduos.

Nos séculos IX eX, quando, pelomenos nas regiões francas doOcidente, a ameaçaexternaerapequena—e ligeira tambéma integraçãoeconômica—,adesintegraçãodafunção de governar atingiu uma dimensão extraordinária. Cada pequena fazendah tinhagoverno próprio, era um “Estado” em si mesmo, tendo à frente seu pequeno cavaleirocomo senhor independente. A paisagem social era composta de um caos de unidadesgovernamentais e econômicas. Todas eram essencialmente autárquicas, com poucadependênciaentresi,exceçãofeitaaunspoucosenclaves—mercadoresestrangeiros,porexemplo,oumosteiroseabadias—que,àsvezes,mantinham ligaçõesouelosalémdonível local.No estrato governante secular, a integração atravésde conflito agressivooudefensivo era a formapredominante. Pouco havia que constrangesse osmembros desseestrato governante a controlar de qualquer forma constante suas paixões. Era uma“sociedade” no sentidomais amplo da palavra, abarcando todas as possíveis formas deintegração humana. Mas não era ainda uma “sociedade” no sentido estreito, de umaintegraçãomaiscontínua,relativamenteíntimaeuniformedepessoasqueefetuaummaiorcontrole de violência, pelo menos dentro de suas fronteiras. A primeira forma dessa“sociedade”, no sentido estreito, emergiu lentamente nas grandes cortes feudais. Nelas,ondeocorriamaiorconfluênciadebens,devidoaosvolumesproduzidoseàsua ligaçãocomarededocomércio,eondemaispessoassereuniamàprocuradeserviço,umnúmeroapreciáveldepessoaseraobrigadoamanterumconvívioininterruptamentepacífico.Issoexigia,particularmenteemrelaçãoàsmulheresdealtalinhagem,umcertocontroleeumasérie de restrições no comportamento, uma modelação mais precisa dos afetos e dasmaneiras.

38.Talrestriçãotalveznãotenhasidotãograndecomoaqueprevalecianarelaçãodobardo coma senhora, na convençãodaMinnesang.Ospreceitos corteses sobre as boasmaneiras proporcionam uma visãomais exata do padrão de comportamento exigido navidadiária.Ocasionalmente, lançam também luz sobreacondutadoscavaleiros faceàsmulheres,quenãoreproduziaarelaçãodomenestrelcomasenhoradacorte.

Lemos,porexemplo,nos“preceitosparaoshomens”:72“Acimadetudo,cuidaparateportaresbemcomasmulheres…Seumasenhoratepedirquetesentesaseulado,nãotesentesemcimadeseuvestido,nemjuntodemaisdela,esedesejaresfalar-lhebaixinho,nuncaaapertesnosbraços,oquequerquequeirasdizer-lhe.”

A julgar pelos padrões habituais dos cavaleirosmenores, uma tal consideração pelasmulheres pode ter exigido grande esforço.Mas o comedimento ainda era pouco, assimcomoaconteciacomoutrospreceitoscorteses,emcomparaçãocomoquesetornoupraxeentre os cortesãos de Luís XIV, por exemplo. Esse fato nos fornece uma idéia dosdiferentes níveis de interdependência e integração que modelaram os hábitos dosindivíduosnasduasfases.Mastambémmostraqueacourtoisiefoiumpassonocaminhoquefinalmentelevouaonossoprópriomoldeafetivoeemocional—umpassonadireçãoda“civilização”.i

Porumlado,temosumaclassealtasecularfrouxamenteintegradadeguerreiros,como

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seu símbolo, o castelo, emuma terra auto-suficiente; por outro, uma classe alta secularcompostadecortesãosmaisestreitamente integradanacorteabsolutista,oórgãocentraldoreino.Sãoestesosdoispólosdocampodeobservação,que isolamosdomovimentomuito mais demorado e amplo, a fim de ter acesso inicial à sociogênese da mudançacivilizadora. Mostramos, sob grande número de aspectos, o lento aparecimento napaisagem castelã das grandes cortes feudais, os centros da cortesia. Resta mostrar adinâmicabásicadosprocessosatravésdosquaisumúnicodosgrandessenhoresfeudaisouterritoriais — o rei — assumiu preponderância sobre os demais, e a oportunidade decontrolar um governomais estável em uma região que abrangia muitos territórios, um“Estado”.Eesseétambémocaminhoquenoslevarádopadrãodecondutadacourtoisieparaodecivilité.______________

aRas (ou príncipe) Tafari é o nome que teve, até ser coroado Imperador daAbissínia (ouEtiópia), em 1930,HailéSelassié,que jágovernavaopaísdesde1916.Selassié resistiuaos italianosque invadiramseupaísem1935,massóconseguiusuaexpulsãoem1941.Foidepostoem1974e faleceunoanoseguinte. (RJR)bHabenichtsouSenzavoir:literalmente,“nadatem”(emalemão)ou“semhaveres”(emfrancês).(RJR)cNoinglês,“liegelord”,quenãoéapenasosenhorfeudal,masosenhorprincipaldeumvassalo.Sucediaqueummesmonobrefossevassalodeváriossenhores,pordistintasterrasquetivesse;parasesaberaquemeledeviasuasprincipaisobrigações,determinava-sequeumdessesseussenhoresfosseseu“liege”,seuprincipalsenhor.(RJR)dNotasobreoconceitodepodersocial.O“podersocial”deumapessoaougrupoéumfenômenocomplexo.Notocanteaoindivíduo,elenuncaéexatamenteidênticoàsuaforçafísicae,noqueinteressaagrupos,àsomadasforçasfísicasindividuais.Masaforçafísicaeahabilidadepodem,emalgumascondições,constituirelementoimportantedopodersocial.Tudodependedaestruturatotaldasociedadeedolugarnelaocupadopeloindivíduo,damedidaemqueaforçafísicacontribuiparaopodersocial.Esteúltimovaria,emsua estrutura, tanto quanto a própria sociedade.Na sociedade industrial, por exemplo, o poder social extremodeumindivíduopodeexistircombaixaresistênciafísica,emboratalvezsurjamfasesemseudesenvolvimentoemqueaforçacorporalnovamenteassumamaiorimportânciaparatodos,comoumdosingredientesdopodersocial.

Na sociedade guerreira feudal, a força física considerável era elemento indispensável ao poder social, embora demaneiranenhumaseuúnicodeterminante.Ou,simplificandoumpouco:podemosdizerqueopotencialdepodersocialdohomemnasociedadefeudaleraexatamenteigualaotamanhoeprodutividadedesuaterraeàforçadetrabalhoqueelecontrolava.Suaforçafísicaeraindubitavelmenteumelementoimportanteemsuacapacidadedecontrolá-las.Nessasociedade,apessoaincapazdelutarcomoguerreiroeexporocorpoaoataqueeàdefesanãotinha,alongoprazo,muitapossibilidade de possuir alguma coisa. Mas todo aquele que controlava uma grande gleba de terra nessa sociedadepossuía,comomonopolistadosmaisimportantesmeiosdeprodução,certograudepodersocial,istoé,umvolumedeoportunidades,quetranscendiasuaforçapessoalindividual.Apessoasquedependiamdessepoder,elepodiadarterras,recebendo-lhes em troca os serviços. O fato de seu poder social igualar o tamanho e a produtividade da terra queefetivamente controlava significava que esse poder era tão grande quanto seus seguidores, seu exército, seu podermilitar.

Mas,de idênticamaneira, ficaclarodoprecedentequeeledependiade serviçosparamanter edefender a terra.Adependênciade seguidoresde importânciavariadaconstituíaumelemento importantenopoder socialdestesúltimos.Quandosuadependênciadeserviçoscrescia, reduzia-seseupodersocialequandoanecessidadeedemandade terrassubiaentreosdestituídosdepropriedade,aumentavaopodersocialdosqueascontrolavam.Opodersocialdoindivíduoougruposópodiaseexpressarrealmentemedianteproporções.Oquefoiditoacimaconstituiumsimplesexemplo.

Investigar emmaisdetalhesoque constitui “poder social” éuma tarefa em si.Dificilmenteprecisaremosdizerdaimportânciadecompreenderosprocessossociaisnopassadoenopresente.O“poderpolítico”,geralmente,nadamaiséquecertaformadepodersocial.Nãopodemos,porconseguinte,entenderocomportamentonemodestinodepessoas,grupos,classessociaisouEstados,amenosquedescubramosqualseupodersocialreal,poucoimportandooqueelesmesmos dizem ou no que acreditam.A própria vida política perderia parte de sua imprevisibilidade emistério, se aestruturadasrelaçõesdepodersocialentretodosospaísesfossepublicamenteanalisada.Criarmétodosmaisexatospararealizaressatarefacontinuaráaserumadasmuitastarefassociológicasdofuturo.(Notadoautoràtraduçãoinglesa.)eTrouvèreseramoequivalente,seassimsepodedizer,nonortedaFrança,aos“trovadores”(emfrancês,troubadours)doSuldoquehojeéaFrança.(RJR)fDevemosrecordarqueaprimeiraediçãodestaobraéde1939.(RJR)gNo textoalemão,falo,nessetrecho,emfenômenossociaiseindividuais.Naépocaemqueescreviaestelivro,minhapercepçãodasambigüidadesinerentesaotermo“fenômeno”,eemespecialdesuasconotaçõesquasesolipsísticas,nãoeraaindasuficientementeaguçadaparaevitar-lheoemprego.Natraduçãoinglesa,contudo,pareceu-mepreferívelsubstituí-lopor

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termoscomo“eventos”,“dados”,etc.Édamaior importância,naturalmente,paracompreendera influênciaque tiposfenomenalistasdefilosofiaexerceramsobreoempregolingüísticoacadêmico,mastambémnão-acadêmico,queotermo“fenômeno”tenhasetornadoaexpressãoinespecíficamaiscomumparadadosoueventosdetodosostipos.Talveznãopercebamosoquantoessetermoémaculadopeladúvidasolipsísticaquantoaseessesdadosrealmenteexistem,setaiseventosrealmenteocorreram.Émuitofácilesquecerqueotermo“fenômeno”encerraaidéiadequeosdadosaquesereferepodemsermerasaparências,criadaspelaconstituiçãodosujeitohumano.Mas, sejamosounãoconscientesdaherançafilosóficarepresentadaporesseconceito,seuusocontínuoreforçarepetidamenteastendênciasaparicionistasdenossaera.Émelhorbuscarexpressõesmenosvagasemenosafetadasporessatradiçãofilosófica.Achoquedevoameusleitoresumaexplicaçãopelouso inocentedesse termoemalemãoe suaomissãonaedição inglesa. (Notadoautoràtraduçãoinglesa.)hFazendaéumatraduçãoadequadaparaoinglês“estate”,juntandoosentidoagráriodestetermoàsuaacepçãoeconômica—umconjuntodebens.(RJR)iSemprenosentidodaação,istoé,do“civilizar”,enãodeumasituaçãoacabada.(RJR)

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capítulodois

SobreasociogênesedoEstado

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I

OPrimeiroEstágiodaMonarquiaNascente:CompetiçãoeMonopolizaçãonoContextoTerritorial

1. A coroa teve significados diversos em fases diversas do desenvolvimento social,emboratodososqueacingiramexercessememcomumcertasfunçõescentraisconcretasenominais,acimadetudoadechefemilitarcontrainimigosexternos.

NoiníciodoséculoXII,oantigoImpérioFrancodoOcidente,quequasenãoeramaisameaçado por inimigos externos, decaíra e se transformara em um aglomerado dedomínios separados: O laço que antes unira as “províncias” e as dinastias feudais àmonarquiaestavapraticamenterompido.Apagadosestavamostraçosdedominaçãorealque haviam permitido a Hugo Capeto e a seu filho, se não atuar nas grandes regiõescontroladas pelos seus vassalos, pelo menos circular por elas. Os grupos feudais deprimeira categoria… conduziam-se como Estados independentes, impermeáveis àinfluência do rei e, mais ainda, aos seus atos. As relações entre os grandes senhoresfeudais e osmonarcas estavam reduzidas aomínimo. Essamudança refletia-se até nostítulosoficiais.OspríncipesfeudaisdoséculoXIIdeixaramdesedenominar“comtesduRoi”ou“comtesduroyaume”.73a

Nessasituação,o“rei” limitava-seaoque faziamosoutrosgrandessenhores feudais:concentrava-se em consolidar suas posses, aumentando seu poder na única região ondeaindamandava,oducadodeFrância.

Luís VI, rei de 1108 a 1137, preocupou-se, durante toda a vida, com duasmissões:ampliarsuapossediretadaterranoducadodeFrância—aspropriedadesecastelosaindanão,ouapenasparcialmente,enfeudados,istoé,aspropriedadesdesuaprópriafamília—e, na mesma área, subjugar todos os possíveis rivais, todos os guerreiros que podiamigualá-lo em poder. Um dos propósitos facilitava o outro: dos senhores feudais quesubjugava ou derrotava tomava toda ou parte de suas propriedades, sem enfeudá-las aqualqueroutrapessoa;atravésdessespequenospassos,aumentouaspossesdesuafamília,abaseeconômicaemilitardeseupoder.

2.Nessecontexto,paracomeçar,omonarcanãodiferiadosgrandessenhoresfeudais.Osmeiosdepoderasuadisposiçãoeramtãopequenosqueatésenhoresdeportemédioemesmopequeno—desdequesealiassem—podiamenfrentá-locomsucesso.NãoapenasapreponderânciadaCasaReal em todoo reinodesaparecera aodeclinar sua funçãodecomandante do exército comum, e ao avançar a feudalização, mas se tornara tambémextremamenteprecárioseupodermonopolistadentrodeseupróprioterritóriohereditário,queeradisputadoporsenhoresrivaisoufamíliasdeguerreiros.NapessoadeLuísVI,acasadosCapetolutoucontraasCasasdeMontmorency,Beaumont,Rochefort,Montlhéry,Ferté-Alais, Puiset e muitas outras,74 da mesma maneira que, séculos depois, osHohenzollern, na pessoa do Grande Eleitor, tiveram que enfrentar os Quitzow e osRochow.ComadiferençadequeosCapetotinhampossibilidademuitomenordesucesso.

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Era menor a diferença entre os meios militares e financeiros dos Capeto e de seusadversários, dado o estado menos desenvolvido das técnicas monetárias, tributárias emilitares. O Grande Eleitor já exercia uma espécie de monopólio do poder em seuterritório,aopassoqueLuísVI,àparteoapoioquerecebiadasinstituiçõeseclesiásticas,erabasicamenteumgrandesenhordeterraqueenfrentavasenhoresfeudaispossuidoresdeterrasepodermilitaralgomenores;sóovencedordessasbatalhaspoderiaalcançarumaespéciedeposiçãomonopolistanoterritório,asalvodaconcorrênciadasdemaisCasas.

A leitura de crônicas da época mostra-nos o quão pouco os meios militares eeconômicosdosCapetodesseperíodosuperavamosdasdemaisCasasfeudaisnoducadode Frância; e como era difícil — dados o baixo grau de integração econômica, ostransportes e comunicaçõesprecários e as limitaçõesdaorganizaçãomilitar feudal—aluta do “soberano” para conquistar um monopólio de poder mesmo no interior dessapequenaárea.

Havia, por exemplo, a fortaleza da famíliaMontlhéry, que controlava a rota entre asduaspartesmaisimportantesdodomíniodosCapeto,asáreasemvoltadePariseOrléans.Em1015, o reiRoberto—umCapeto—doara essa terra a umde seus servidores, ouoficiais, o “grand forestier”, com permissão de nela construir um castelo. A partir docastelo, o neto do “grand forestier” já controlava a área circundante, na qualidade desenhorindependente.Esseexemploétípicodosmovimentoscentrífugosqueocorriamportodaaparteduranteoperíodo.75Apósduraslutas,opaideLuísVIconseguiufinalmentechegaraumaespéciedeacordocomosMontlhéry:dariaemcasamentoumfilhobastardoseu,dedezanosdeidade,àherdeiradosMontlhérye,dessamaneira,colocariaocastelosob controlede suaCasa.Pouco antesdemorrer, disse ele a seuprimogênito,LuísVI:Guardabemaquela torredeMontlhéryque,causando-me tantos tormentos,envelheceu-me precocemente, e por causa da qual jamais desfrutei paz duradoura ou verdadeirorepouso… ela era o centro de gente pérfida, de perto e de longe, e as desordens sóocorriam através dela ou com ajuda dela… porque… estandoMontlhéry situada entreCorbeil, por um lado, e Châteaufort, por outro, cada vez que surgia um conflito, Parisficava isoladae as comunicações entreParis eOrléans tornavam-se impossíveis, excetocomempregodeforçaarmada.76

Problemasde comunicaçãodo tipoquehoje causamdificuldadesnãopequenas entreEstados,nãoerammenosperturbadores,emboraemescaladiferente,naquelesprimórdiosdodesenvolvimentosocial:nasrelaçõesentreumsenhorfeudaleoutro—usasseeleounãoacoroa—enotocanteàdistânciarelativamentemicroscópicaentrePariseOrléans,umavezqueMontlhéryficaaapenas24kmdeParis.

BoapartedoreinadodeLuísVIseconsumiunalutaparaconquistaressafortaleza,oqueelefinalmenteconseguiu,acrescentandoMontlhéryaosdomíniosdosCapeto.Comoacontecia em todos esses casos, a conquista implicou o fortalecimento militar e oenriquecimentodaCasavitoriosa.AterradosMontlhérytrouxeaoreiumarendaextrade200libras—umabelasomanaquelestempos—,alémde13feudosdiretose20indiretosdeladependentes,77cujosrendeirospassaramaengrossaropodermilitardosCapeto.

NãoforammenosdemoradasedifíceisoutrasbatalhasqueLuísVIseviuobrigadoatravar.Precisoude trêsexpedições,em1111,1112e1118,paraquebraropoderdeumaúnica família de cavaleiros em Orléans,78 e levou 20 anos para subjugar as Casas de

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Rochefort, Ferté-Alais e Puiset e lhes acrescentar as terras às de sua família. Por essaépoca,contudo,odomíniodosCapetoera tãograndeebem-consolidadoque,graçasàsvantagens econômicas e militares conferidas por propriedades tão vastas, seusproprietárioshaviamsuperado todosos seus rivaisnaFrância, ondepassarama exercerumaespéciedemonopólio.

Quatrooucincoséculosdepois,omonarcasetransformaranocontroladormonopolistadeenormesmeiosmilitarese financeiros,geradospor todaaáreado reino.Campanhascomo as empreendidas porLuísVI contra outros senhores feudais, dentro de umúnicoterritório, representaram os primeiros passos para a posterior consolidação da posiçãomonopolistadamonarquia.Noinício,aCasadosreisnominaispoucoseavantajavadasCasasfeudaisemvolta,emtermosdepropriedadedeterrasepodermilitareeconômico.A diferença em propriedades entre os guerreiros era relativamente pequena e, porconseguinte, também em importância social, pouco importando os títulos com que seadornavam.Mais tarde, atravésde casamentos, compraouconquista, umadessasCasasacumulavacadavezmaisterraseobtinhapreponderânciasobreosvizinhos.OfatodetersidoavelhaCasaRealqueconseguiuaprimaziaemFrânciatalvezestivesseligado—àparte as propriedades nunca irrisórias que tornaram possível seu novo começo — àsqualidades pessoais de seus representantes, ao apoio da Igreja, e a certo prestígiotradicional.Masamesmadiferenciaçãonotocanteàpropriedadeentreguerreirosestavaocorrendo na mesma ocasião, conforme já mencionado, também em outros territórios.Aconteciaamesmamudançadocentrodegravidadedasociedadeguerreira,beneficiandoalgumasgrandesfamíliasdecavaleiros,emdetrimentodemuitasoutrasdeportemédioepequeno, conforme já vimos. Em todos os territórios, cedo ou tarde uma famíliaconseguia, acumulando terras, alcançar uma hegemonia. O fato de a coroa ter feito amesma coisa, sob Luís, o Gordo, parece uma ab-rogação da função real. Dada adistribuição de poder social que então prevalecia, porém, ele não tinha alternativa. Naestruturasocial,apropriedadefamiliareocontroledaestreitaáreahereditáriaconstituíamabasemilitarefinanceiramaisimportanteatémesmoparaopoderdorei.ConcentrandosuasforçasnapequenaáreadeFrância,estabelecendohegemonianoespaçorestritodeumterritório,LuísVIlançouosalicercesparaasubseqüenteexpansãodesuaCasa.CriouumcentropotencialparaacristalizaçãodaáreamaiordaFrança,emborapossamosdizercomsegurançaqueelenãotevequalquervisãoproféticadetalfuturo.Agiusobacompulsãodireta da situação concreta emque se encontrava.Tinha que conquistarMontlhéryparanãoperderocontroledascomunicaçõesentrepartesdeseupróprioterritório.Tinhaquesubjugar as famíliasmais poderosas deOrléans, para que não sumisse seu poder nessaregião.SeosCapetonãohouvessemconseguidoapreponderância emFrância, cedooutarde—talcomoaconteciacomoutrasprovínciasnaFrança—,elateriapassadoaoutraCasa.

Omecanismoquegerouahegemoniafoisempreomesmo.Demaneirasemelhante—atravésdaacumulaçãodepropriedades—,emtemposmaisrecentesumpequenonúmerodeempresaseconômicassuperaseusrivaiseconcorreentresiatéque,finalmente,umaouduasdelascontrolamoudominamumdadoramodaeconomia,sobaformademonopólio.Analogamente — acumulando terra e, dessa maneira, ampliando potencial militar efinanceiro—,Estados,emtemposrecentes, lutampelapreponderâncianumadadapartedomundo.Mas,senasociedademoderna,comadivisãomaisextensadefunçõesquese

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observa, esse processo ocorre de forma relativamente complexa, distinguindo-se osaspectoseconômicos,militaresepolíticosdahegemonia,nasociedadedeLuísVI,dadaaeconomiapredominantementedetrocadaépoca,taisaspectospermaneceramunificados.A Casa que dominava politicamente o território era também a mais rica no mesmo,detentoradamais extensa áreade terra, e seupoderpolíticodiminuía casoo seupodermilitar,quetinhaorigemnovolumedereceitaproduzidapelodomínioenúmerodeservoseagregados,nãoexcedesseodetodasasdemaisfamíliasdeguerreirosdaárea.

Uma vez estivesse razoavelmente segura a preponderância de uma única Casa napequena região, a lutapelahegemonianumaáreamaior subiaparaprimeiroplano—alutaentreospoucosmaioressenhoresdeterritóriopelapredominânciadentrodoreino.Efoiessaa tarefaqueosdescendentesdeLuísVIenfrentaram,asgeraçõesseguintesdosCapeto.

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II

DigressãosobreAlgumasDiferençasnasTrajetóriasdeDesenvolvimentodaInglaterra,FrançaeGermânia1.Atarefaimplicadanalutapeladominação,istoé,pela

centralizaçãoepelocontroledogoverno,diferiu,porumarazãomuitosimples,naInglaterraeFrançadaqueocorreu

noImpérioRomano-Germânico.Nãosóestaúltimaformaçãopolíticaerabemmaioremterritórioqueasduas

outras,comotambémerammuitomaioresassuasdivergênciassociaisegeográficasinternas.Essefatodavaàsforçaslocais,centrífugas,umaenergiabastantesuperior,e

tornavaincomparavelmentemaisdifícilatarefadeconquistarahegemoniaeimplantaracentralização.ACasagovernanteterianecessitadodeumaáreaterritorialepodermaisextensosdoquenaFrançaouInglaterraparadominar

asforçascentrífugasatuantesnoImpérioRomano-Germânicoeforjá-lassobaformadeumtododuradouro.Háboasrazõesparasuporque,dadosoníveldedivisãodo

trabalhoeintegraçãoedastécnicasmilitares,administrativasedetransportedaépoca,eraprovavelmente

insolúveloproblemademanterpermanentementesobcontroleastendênciascentrífugasnumaáreatãovasta.

2. A escala em que ocorrem os processos sociais não é um elemento banal em suaestrutura.Ao indagarmos por que a centralização e a integração da França e Inglaterraforam realizadasmais cedo, e de formamais completa, doquenas regiões germânicas,não devemos esquecer esse ponto. Neste particular, variaram muito as tendências dodesenvolvimentonastrêsregiões.

QuandoacoroadaregiãofrancadoOcidentecaiunasmãosdosCapeto,aáreasobodomíniodopoderrealestendia-sedeParisaSenlisnonorteeaOrléansnosul.Vinteecincoanosantes,OtoIforacoroadoimperadorromano,emRoma.Implacavelmente,eleesmagaraa resistênciadeoutroschefesgermânicos,contando,no início,principalmentecomaajudadosexperientesguerreirosdesuaprópriaáreatribal.Nessaépoca,oimpériodeOttoestendia-seaproximadamentedeAntuérpiaaCambraiaoeste,pelomenos(istoé,

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semosmargraviatosquesesituavamalestedoElba)atéesserio,emaisalémdeBrunneOlmutznadireçãosudeste;prolongava-seatéoSchleswig,aonorte,eatéVeronaeIstria,aosul;alémdisso,incluíaboapartedaItáliae,durantecertotempo,aBorgonha.Oquehavia,porconseguinte,eraumaformaçãopolíticaemescalainteiramentediferentee,emconseqüência, fértil em tensões e conflitos de interesses muito superiores aos da áreafranca do Ocidente mesmo que nela incluamos a colônia normando-inglesa adquiridaposteriormente. O problema que os duques de Frância e Normandia, ou do territórioangevino,enfrentavamcomoreis,na lutapelahegemonianessa região,era inteiramentedistinto daquele que se impunha aos governantes do Império Romano-Germânico. Nosprimeiros,acentralizaçãoouintegração,adespeitodenumerosasguinadasparaumladoeoutro, tomaraumcursoemlinhasgeraiscontínuo.Nasegundaárea, incomparavelmentemaisextensa,umafamíliadegovernantesterritoriaisapósoutratentou,emvão,implantar,cingindoacoroaimperial,umahegemoniarealmenteestávelsobretodooImpério.UmaCasaapósoutrausaraatéaexaustãonessalutainfrutíferaoque,adespeitodetudoomais,continuavaaserafonteprincipaldesuarendaepoder—suaspossessõeshereditáriasoude raiz. Após cada tentativa frustrada de uma nova Casa, a descentralização e aconsolidaçãodastendênciascentrífugasdavammaisumpassoàfrente.

Poucoantesdeamonarquia francesacomeçar a recuperargradualmente sua forçanapessoa de Luís VI, o poder do imperador romano-germânico Henrique IV entrara emcolapso ante os ataques combinados dos grandes senhores territoriais germânicos, daIgreja,dascidadesdonortedaItália,edeseufilhomaisvelho—istoé,diantedeforçascentrífugas da natureza amais variada.Esses fatos nos fornecemmeios de comparaçãocom os primeiros tempos da monarquia francesa. Mais tarde, quando o rei francêsFrancisco I exercia controle tão completo do reino que não precisava mais convocarassembléiasdosestados,epodiaaumentarosimpostossemanuênciadoscontribuintes,oimperadorCarlosVeseugovernoeramobrigadosanegociaratémesmoemsuas terrashereditárias com enorme número de assembléias locais, antes de poderem arrecadar ostributosdequenecessitavamparapagarasdespesasdacorte,doexércitoedogovernodoImpério.Etudoisso,incluindoarendadecolôniasultramarinas,nãoerasequersuficientepara custear as despesas de administração do Império. Ao abdicar Carlos V, aadministração imperial estava à beira da falência. Ele, também, estava exausto epessoalmentearruinadopor tentargovernarum impérioenorme,dilaceradopormaciçasforças centrífugas. E constitui uma indicação de como se transformou a sociedade emgeral,ea funçãorealemparticular,que,aindaassim,osHabsburgo tenhamconseguidomanter-senopoder.

3.MostramosacimaquenaáreaeuropéiaomecanismodaformaçãodoEstado—nosentido moderno da palavra Estado— foi basicamente o mesmo, na época em que asociedade evoluía da economia de troca para a economia monetária. Esse fato seráilustradocommaisdetalhesno tocanteàFrança.Sempredescortinamos,pelomenosnahistóriadosgrandesEstadoseuropeus,umafase inicialnaqualunidadesdotamanhodeumterritóriodesempenhamumpapeldecisivonaáreaquemaistardesetransformaráemEstado. Trata-se de domínios pequenos, frouxamente estruturados, como outros quesurgiram em muitas partes do mundo onde a divisão do trabalho e a integração eramsuperficiais,correspondendoseutamanhoaoslimitesimpostosàorganizaçãodogovernopela predominância das relaçõesde trocana economia.Temos exemplosdesse tiponos

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domíniosterritoriaisfeudaispresentesnoImpérioRomano-Germânicoque,comoavançodaeconomiamonetária,foramseconsolidarsobaformadepequenosreinos,ducadosoucondados, ou em áreas como o principado deGales ou o reino da Escócia, atualmentefundidoscomaInglaterranoReinoUnidodaGrã-BretanhaeIrlandadoNorte;eainda,comoexemplofinal,citemosoducadodeFrância,cujatransformaçãoemdomíniofeudalmaiscoesofoidiscutidaacima.

Nesse quadro esquemático, o processo que ocorreu entre os domínios territoriaisvizinhos assumiu um curso muito parecido com o seguido antes, dentro de territóriosfirmemente consolidados, entre senhores ou cavaleiros individuais, até um delesconquistar a predominância e um domínio territorialmais sólido se formar. Damesmaforma que, numa época, certo número de Estados que competiam entre si sentiram anecessidade de se expandirem para não serem subjugados por outros vizinhos que seexpandiam,naépocaseguinteumgrupodeunidadesumtantomaiores,p.ex.ducadosoucondados,enfrentaramamesmadificuldade.

Jádemonstramosantescomalgunsdetalhesque,nessasociedade,acompetiçãointernapela terra se intensificava devido ao crescimento da população, à consolidação dapropriedadeeàsdificuldadesdeexpansãointerna.Mostramostambémqueesseanseioporterrasmanifestava-senoscavaleirospobrescomoosimplesdesejodeummododevidaapropriado a seu status e, nos mais importantes e ricos, como um acicate para querer“mais” terra. Issoporque,numasociedadeemqueatuavamessaspressõescompetitivas,quem não ganhava “mais” automaticamente ficava com “menos”. Neste particular,observamos,maisumavez,apressãoquesefaziasentirdecimaabaixonessasociedade:lançava os governantes territoriais uns contra os outros e, dessa maneira, punha emmovimento o mecanismo do monopólio. Inicialmente, as diferenças em poder eramcontidas, mesmo nessa fase, dentro de um contexto que permitia que um númeroconsideráveldedomínios territoriais feudaispermanecessenaarenade luta.Mais tarde,apósmuitasvitóriasederrotas,algunssetornavammaisfortespelaacumulaçãodosmeiosdo poder, enquanto outros eram obrigados a desistir da luta. Os poucos vitoriososcontinuavamalutareoprocessodeeliminaçãoserepetiaatéque,finalmente,adecisãoficava apenas entre dois domínios territoriais reforçados pela derrota e incorporação deoutros. Todos os demais— tivessem ou não se envolvido na luta, ou permanecessemneutros—eramreduzidospelocrescimentodessesdoisàcondiçãodefigurasdesegundaouterceiraclasse,emboraaindaconservassemcertaimportânciasocial.Osdoisúltimos,porém, aproximavam-se de uma posição monopolista; haviam superado os demais; adecisãoficavaentreeles.

Nessas“lutasdeeliminação”,oprocessode seleção social, asqualidadespessoaisdecertosindivíduoseoutrosfatores“acidentais”,comoamortetardiadeumdelesouafaltadeherdeirosdosexomasculinoemumaCasareinantesemdúvidavieramadesempenharum papel decisivo em certas ocasiões, determinando que território aumentaria deimportância,cresceriaemesmotriunfaria.

O processo social em si, contudo— o fato de que uma sociedade com numerosasunidades de poder e de propriedade de dimensão relativamente igual tende, sob fortespressões competitivas, para a ampliaçãodeumaspoucasunidades e, finalmente, para omonopólio —, é de modo geral independente de tais acidentes. Eles podem, é bem

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verdade, acelerar ou retardar no processo. Mas, pouco importando quem seja omonopolista,háaltograudeprobabilidadedeque,cedooutarde,ummonopólioseforme,pelomenosnasestruturassociaisqueatéagoraconhecemos.Nalinguagemdasciênciasexatas,estaobservaçãoseria,talvez,chamadade“lei”.Mas,emtermosrigorosos,oquetemoséaformulaçãorelativamenteprecisadeummecanismosocialmuitosimplesque,uma vez posto em movimento, funciona com a regularidade de um relógio. Umaconfiguraçãohumanaemqueumnúmerorelativamentegrandedeunidades,emvirtudedopoderdequedispõem,concorrementre si, tendeadesviar-sedesseestadodeequilíbrio(muitosequilibradospormuitos,concorrênciarelativamentelivre)eaaproximar-sedeumdiferenteestado,noqualumnúmerocadavezmenordeunidadespodecompetirentresi.Emoutraspalavras,acerca-sedeumasituaçãoemqueapenasumaúnicaunidadesocialconsegue,atravésdaacumulação,omonopóliodasdisputadasprobabilidadesdepoder.

4.Ocarátergeraldomecanismomonopolistaserádiscutidocommaisdetalhesadiante.Mas é necessário afirmar já a esta altura que ummecanismodesse tipo tambémesteveenvolvido na formação dos Estados, da mesma forma que antes ocorrera no caso deunidades menores, os territórios ou, mais tarde, em outras ainda maiores. Somenteconservando em mente esse mecanismo é que poderemos compreender que fatores nahistória dos diferentes países o modificam ou podem, mesmo, neutralizá-lo. Só assimentenderemosclaramenteporqueatarefaqueosuseranodoImpérioRomano-Germânicoenfrentou foi incomparavelmente mais difícil do que aquela com que teve que lidar opotencialgovernantedaregiãofrancadoOcidente.NoImpério,também,atravésdelutasde eliminação e de uma acumulação constante de territórios nasmãos dos vencedores,precisariaemergirumdomínioterritorialsuficientementeforteparaabsorveroueliminartodososdemais.ApenasdessamaneirapoderiaumImpériotãodiversificadoconseguirsecentralizar.Enãofaltaramlutasnessadireção,nãosóentreosWelfbeosHohenstaufen,mas também entre o Imperador e o Papa, com suas complicações específicas. Masnenhumadelasproduziuosresultadosnecessários.Numaáreatãograndeevariadacomoessa,aprobabilidadedequeemergisseumpoderclaramentedominanteerabemmenordoqueemáreasmaisrestritas,especialmenteporque,nessafase,aintegraçãoeconômicaeramenore,asdistâncias,muitasvezes,maioresdoquemaistarde.Dequalquermodo,lutasdeeliminaçãonumaárea tãograndeprecisariamdemuitomais tempodoquenasáreasvizinhas,menores.

Ébemconhecidaamaneiracomo,apesardetudoomais,finalmentesurgiramEstadosnointeriordoImpérioRomano-Germânico.Entreosdomíniosterritoriaisgermânicos—ignorando aqui o processo análogo que ocorria na Itália— surgiu umaCasaReal que,acima de tudo se expandindo pela região colonial germânica ou semigermânica,lentamenteingressounalutacomopodermaisantigodosHabsburgo:osHohenzollern.cSeguiu-seumcombatepelasupremacia,culminandonavitóriadosHohenzollernenasuaformação de uma primazia inequívoca entre os governantes territoriais germânicos e,finalmente,passoapasso,naunificaçãodosterritóriossobumúnicoaparelhodegoverno.EssalutapelasupremaciaentreosdoiscomponentesmaispoderososdoImpério,porém,emboraresultasseemmaiorintegração,naformaçãodeEstadosemseuinterior,implicoutambémmaisumpassonadesintegraçãodovelhoImpério.Comaderrota,as terrasdosHabsburgo deixaram a união. Esta foi, na verdade, uma das últimas fases da lenta econtínua decadência do Império. No correr dos séculos, mais e mais partes se haviam

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separado, transformando-se emdomínios independentes.O Império, comoum todo, eragrandeediversificadodemaisparaseroutracoisaquenãoumobstáculoà formaçãodeEstados.

RefletirsobreomotivoporqueaformaçãodeEstadosnoImpérioRomano-Germânicofoitãomaistrabalhosaedemoradadoqueemseusvizinhosocidentaiscertamenteajuda-nosacompreendermelhoroséculoXX.AexperiênciamodernasobreadiferençaentreosEstadosdoOcidentemaisantigos,equilibradosequetiveramexpansãomaiscompleta,eos Estados de estabelecimento recente, descendentes do velho Império, Estados que seexpandiramrelativamentemais tarde,confereaessaquestãouma importânciaatual.Dopontodevistaestrutural,nãoparecedifícilresponderaela,pelomenosnãomaisdoqueàquestãocomplementar,quedificilmente temimportânciamenorparaacompreensãodasestruturas históricas — a questão do motivo por que esse colosso, a despeito de suaestrutura desfavorável e da força inevitável das forças centrífugas que nele atuavam,resistiuportantotempo,porqueoImpérionãosedesintegroumaiscedo.

5.Comoum todo, ele realmentedesmoronou tarde.Durante séculos, porém, as áreaslindeirasdoImpério—emparticularaoesteesul—vinhamseseparandoetomandoseucaminhopróprio,mas a colonização e a incessante expansãodas colônias germânicas alestecompensava,atécertoponto,asperdasnoOcidente,emboraapenasatécertoponto.Até fins da IdadeMédia, e emcertamedidamesmomais tarde, o Império espraiava-separaooesteatéoMaaseoRódano.Seignorarmosasirregularidadeselevarmosemcontaapenas a tendência geral desse movimento, formamos uma impressão dos atritos e daredução constante do Império, acompanhados por uma lenta mudança na direção daexpansão, e do deslizamento do centro de gravidade, do oeste para leste. Resta aindademonstraressatendênciacommaisexatidãodoquepodemosfazeraqui.Mas,emtermosexclusivamente de área, a tendência ainda é visível nas mudanças mais recentes noterritóriogermânicopropriamentedito:ConfederaçãoGermânicaantesde1866 630.098km2

Alemanhaapós1870 540.484km2

Alemanhaapós1918 471.000km2

Na Inglaterra, e também na França, a tendência se desenvolvia em sentido quaseinverso.Emprimeirolugar,asinstituiçõestradicionaisevoluíramemáreasrelativamenterestritas e só mais tarde estenderam seu alcance. O destino da instituição central, aestruturaeodesenvolvimentodetodaamáquinadegovernonessespaísesnãopodemsercompreendidos,nemseexplicarasdiferençasentreeleseasformaçõescorrespondentesnosEstadosquedescenderamdovelhoImpério,amenosqueseleveemcontaessefatorsimples,olentocrescimentodepequenoparamaior.

Comparado com o Império Romano-Germânico, o território insular que o duquenormandoGuilherme,oConquistador, tomouem1066eradedimensõesbemreduzidas.Ele nos lembra mais ou menos a Prússia sob os primeiros reis. Compreendia, à partepequenasáreasnafronteiranortecomaEscócia,aatualInglaterra,umaáreademaisoumenos131.764km2.GalesestavaapenasparcialmenteunificadacomaInglaterra,emfinsdoséculoXIII(aInglaterraeGales,juntas,têm151.130km2).AuniãocomaEscóciasóserealizou em 1603. Esses fatos nos lembram que a formação da nação inglesa, e, maistarde,britânica,ocorreunumcontextoque,comparadoaodasgrandesnaçõesdaEuropa

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Continental,dificilmenteexcedia,emsuafasedecisiva,adeumdomínioterritorial.OqueGuilherme,oConquistador,e seus sucessores imediatosconsolidaramnadamais foi,naverdade,doqueumgrandeterritóriodoImpérioFrancodoOcidente,nãomuitodiferentedos que, na mesma época, existiam na Frância, Aquitânia ou Anjou. A tarefa que osgovernantes territoriais dessa área enfrentaram na luta pela supremacia— determinadapela pura necessidade de expandir-se a fim de evitar a dominação por outros—, essatarefademodoalgumpodiasercomparadacomaqueosuseranodoImpériocontinentaltevequearrostar.Issoéverdademesmonaprimeirafase,naqualoterritórioinsularerauma espécie de colônia franca, quando seus governantes normandos ou angevinoscontrolavamtambémconsideráveisterritóriosnocontinentee,porconseguinte,todoselesaindalutavampelasupremacianaáreafrancadoOcidente.Masissoéverdade,acimadetudo, da fase em que foram repelidos do continente, voltaram à ilha e tiveram que seunificarsobumúnicogovernonabaseapenasdaInglaterra.Eseafunçãoreal,talcomoarelaçãoentreoreieosestados,assumiunaInglaterraumaformadiferentedaquevigorouno Império continental, um dos fatores que influiu nesse particular, embora certamentenãotenhasidooúnico,foiarelativapequenezetambém,claro,aposiçãoisoladadaáreaaserunificada.Erabemmenoraprobabilidadedeumagrandediferenciaçãoregional,emaissimplesalutapelasupremaciaentredoisgovernantesrivaisdoqueentreasmuitasfacçõesdoImpério.Oparlamentoinglês,noqueinteressavaaseumododeformaçãoe,porconseguinte,asuaestrutura,demaneiraalgumasepodiacompararàDietaImperialGermânica,masapenasaosestadosregionais.Quaseamesmacoisaseaplicaatodasasdemaisinstituições.Elascresceram,talcomoaprópriaInglaterra,dedimensõesmenorespara maiores. Já as instituições dos territórios feudais evoluíram continuamente e setransformaramnasdoEstadoedoImpério.

Igualmente no Império Britânico, contudo, forças centrífugas começaramimediatamenteaatuar,tãologooterritóriofoiunificadoalémdecertoponto.Mesmocoma integraçãoe comunicaçõesdopresente, esse Império está se revelandoperigosamenteextenso. Émantido coeso, com grande dificuldade, apenas pela existência de governosexperienteseflexíveis.Adespeitodasprecondiçõesmuitodiferentesdasqueprevaleciamno velho Império Germânico, ele também mostra que um império muito extenso,plasmado pela conquista e a colonização, tende finalmente a desintegrar-se em certonúmerodeunidadesmaisoumenosindependentes,oupelomenosasetransformarnumaespéciede“EstadoFederal”.Vistoassimdeperto,omecanismoparecedeumaevidênciaquasepalmar.

6.AregiãonativadosCapeto,oducadodeFrância,eramenordoqueoterritórioinglêscontrolado pelos duques normandos. Tinha aproximadamente o mesmo tamanho doEleitorado de Brandenburgo ao tempo dos Hohenstaufen. Mas nela, que se inseria naestrutura do império, foram precisos cinco ou seis séculos para que a pequena áreacolonialsetornassecapazdeenfrentarosvelhosetradicionaisterritóriosdoImpério.Nocontextomaislimitadodaáreafrancaocidental,opoderdesseterritório,juntamentecomaajudamaterialeespiritualdadapelaIgrejaaosCapeto,foisuficienteparapermitiràCasareinante iniciar a lutapela supremacia sobre largasáreasdaFrança jánumestágiobemanterior.

A área remanescente do Império Franco do Ocidente, a base do que seria a futuraFrança, ocupava aproximadamente uma posição intermediária, no que dizia respeito à

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extensão,entreoquesetransformarianaInglaterraeoImpérioRomano-Germânico.Asdivergênciasregionais,e,conseqüentemente,asforçascentrífugas,erammenoresneladoquenoImpériovizinho;foi,porconseguinte,menosárduaatarefadopotencialsuserano.Asdivergênciaseforçascentrífugasforam,porém,maioresdoquenailhabritânica.79NaInglaterra,aprópriaexigüidadedoterritóriofacilitou,emcertascircunstâncias,aaliançados diferentes estados e, acima de tudo, dos guerreiros de todo o território contra osuserano. Além disso, a distribuição de terras feita por Guilherme, o Conquistador,facilitou os contactos e promoveu interesses que eram comuns a toda a classe dona deterraspela inteiraInglaterra,pelomenosnoqueinteressavaàsrelaçõescomosuserano.Restademonstrarcomoumcertograudefragmentaçãoeseparaçãonumdomínio,nãoosuficienteparapermitiradesintegração,masobastanteparatornardifíceisaliançasdiretasdosestadosnopaíscomoumtodo,fortaleceaposiçãodosuserano.

Aspossibilidades,portanto,oferecidaspelaantigaregiãofrancaocidentalemtermosdetamanhonãoforamdesfavoráveisaoaparecimentodeumsuseranoeàformaçãodopodermonopolista.

Queda ainda por mostrar em detalhes como os Capeto tiraram vantagens dessasoportunidades e, demodogeral, através dequemecanismosogovernomonopolista foiestabelecidonesseterritório.

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III

SobreoMecanismoMonopolista1.Asociedadedoquehojedenominamoseramodernacaracteriza-se,acimadetudono

Ocidente,porcertoníveldemonopolização.Olivreempregodearmasmilitaresévedadoaoindivíduoereservadoaumaautoridadecentral,qualquerquesejaseutipo,80edeigualmodo a tributação da propriedade ou renda de pessoas concentra-se nas suasmãos.Osmeiosfinanceirosarrecadadospelaautoridadesustentam-lheomonopóliodaforçamilitar,o que, por seu lado, mantém o monopólio da tributação. Nenhum dos dois tem, emqualquersentido,precedênciasobreooutro,poissãodoisladosdomesmomonopólio.Seumdesaparece, ooutro segue-o automaticamente, emboraogovernomonopolistapossaser,àsvezes,abaladomaisfortementenumladodoquenooutro.

Precursoresdessecontrolemonopolistadatributaçãoedoexércitoexistiramantes,emterritóriosrelativamentegrandes,emsociedadesemqueeramenosavançadaadivisãodefunções,principalmentecomoresultadodeconquistamilitar.Éprecisohaverumadivisãosocial muito avançada de funções antes que possa surgir uma máquina duradoura,especializada, para administração domonopólio. E só depois que surge esse complexoaparelho é que o controle sobre o exército e a tributação assumem seu pleno carátermonopolista.Sónessaocasiãoestáfirmementeestabelecidoocontrolemilitarefiscal.Apartir desse momento, os conflitos sociais não dizem mais respeito à eliminação dogovernomonopolista,masapenasàquestãodequemdevecontrolá-lo,emquemeioseusquadros devem ser recrutados e como devem ser distribuídos os ônus e benefícios domonopólio.Apenasquandosurgeessemonopóliopermanentedaautoridadecentral,eoaparelho especializado para administração, é que esses domínios assumem o caráter de“Estados”.

Neles,certonúmerodeoutrosmonopólioscristalizam-seemtornodosjámencionados.Masessesdoissãoecontinuamaserosmonopóliosdecisivos.Seentramemdecadência,omesmoacontececomtodoorestoe,comeles,o“Estado”.

2.Aquestãoemdebateécomoeporquesurgeessaestruturamonopolista.

NasociedadedosséculosIX,XeXI,eladefinitivamentenãoexistia.ApartirdoséculoXI—noterritóriodoantigoImpérioFrancodoOcidente—vemosqueelalentamentesecristaliza. No início, cada guerreiro que controla uma gleba de terra exerce todas asfunçõesdegoverno.Mais tarde,elassãogradualmentemonopolizadasporumsuserano,cujo poder é administrado por especialistas. Quando bem entende, inicia guerras paraconquistar novas terras ou defender as suas. A aquisição de terras e as funçõesgovernamentaisquelheacompanhamapossepertencem,comotambémadefesamilitar,à“iniciativaprivada”,parausaralinguagemdeumaépocaposterior.Eumavezque,comoaumentodapopulação, a fomede terras se torna extremamente forte, a competiçãoporelassetornaacirradaemtodoopaís.Nessacompetição,sãoutilizadosmeiosmilitareseeconômicos,emcontrastecomoqueacontecerianoséculoXIX,porexemplo,épocaemque, dado o monopólio estatal da violência física, o conflito só é realizado por meios

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econômicos.

Um lembrete sobre as lutas competitivas e a monopolização que vemos sucederemdiretamente a nossos olhos não deixa de ter algum valor para a compreensão dosmecanismosmonopolizadoresquefuncionaramemfasesmaisantigasdasociedade.Alémdisso, o estudo do antigo, em conjunto com o novo, ajuda-nos a observar odesenvolvimento social como um todo. A parte posterior do movimento pressupõe aanterioreocentrodeambaséaacumulaçãodosprincipaismeiosdeproduçãodaépoca,ou,pelomenos,ocontroledosmesmosnumnúmerocadavezmenordemãos—antesaacumulaçãodeterrase,maistarde,demoeda,dinheiro.

Omecanismo da formação demonopólios já foi, aliás, sumariamente discutido:81 se,numagrandeunidadesocial—comoessemecanismopodesermaisoumenosdescrito—,umgrandenúmerodeunidadessociaismenoresque,atravésdesuainterdependência,constituemamaior,sãodepodersocialaproximadamente iguale,portanto,capazesdecompetir livremente—nãoestandoprejudicadaspormonopóliospreexistentes—pelosmeiosdopodersocial, istoé,principalmentepelosmeiosdesubsistênciaeprodução,éalta a probabilidade de que algumas sejam vitoriosas e outras derrotadas e de que,gradualmente, como resultado, um número sempre menor de indivíduos controle umnúmero sempremaior de oportunidades, e unidades em número cada vez maior sejameliminadas da competição, tornando-se, direta ou indiretamente, dependentes de umnúmero cada vez menor. A configuração humana capturada nesse movimento, porconseguinte,aproximar-se-á,amenosquemedidascompensatóriassejamtomadas,deumEstado em que todas as oportunidades são controladas por uma única autoridade: umsistemadeoportunidadesabertastransforma-senumdeoportunidadesfechadas.82

Émuitosimplesomodelogeralseguidopelaseqüência:hánaáreasocialcertonúmerode pessoas, e um certo número de oportunidades que são escassas ou insuficientes emrelaçãoàsnecessidadesdaquelas.Se supomos,para começar,quecadapessoa luta comoutrapelasoportunidadesdisponíveis,éextremamentepequenaaprobabilidadedequesemantenhaindefinidamenteesseestadodeequilíbrioedequenenhumdosparceirostriunfeemqualquerumdessespares,seestaforrealmenteumacompetiçãolivrenãoinfluenciadapor qualquer podermonopolista— emuito alta a possibilidade de que, cedo ou tarde,alguns participantes vençam seus adversários. Mas se alguns dos participantes saemvitoriosos, suas oportunidades se multiplicam; as dos derrotados diminuem. Maioresoportunidades se acumulamnasmãosdeumgrupodos rivais iniciais, sendoosdemaiseliminados de competição direta com eles. Supondo que, nessemomento, cada umdosvitoriosos lute com os outros, o processo se repete: mais uma vez, um grupo alcançavitória e obtém controle das oportunidades de poder dos vencidos; um número aindamenordepessoascontrolaumnúmeromaiordepossibilidadesdepoder;umnúmeroaindamaior de pessoas é eliminado da livre competição; o processo se repete até que,finalmente,nocasoextremo,umúnicoindivíduocontrolatodasaspossibilidadesdepoderetodososdemaispassamadependerdele.

Na realidade histórica, certamente não são sempre indivíduos isolados que praticamessemecanismo.Comfreqüência,entramemjogograndesassociaçõesdepessoas,como,porexemplo,territóriosouEstados.Ocursodosfatos,narealidade,éemgeralbemmaiscomplicado do que nesse modelo esquemático, comportando inúmeras variações.

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Acontecefreqüentemente,porexemplo,decertonúmerodepartesmaisfracascombinar-se para derrubar um indivíduo que acumulou possibilidades demais e se tornouinsuportavelmenteforte.Casotenhamsucessoeassumamaspossibilidadesdessaparte,oualgum volume das mesmas, elas depois lutam entre si para obter a predominância. Oefeito,amudançanosequilíbriosdepoder,ésempreomesmo.Nestecaso,também,umnúmero sempremaior de possibilidades de poder tende a acumular-se nasmãos de umnúmerosempremenordepessoas,atravésdeumasériedeprovaseliminatórias.

Ocursoeritmodessamudançaemfavordospoucoseaexpensasdosmuitosdependeemaltograudarelaçãoentreaofertaeademandadeoportunidades.Sesupomosqueonível da demanda e o número de oportunidades permaneceram no todo inalterados nocursodomovimento,ademandadeoportunidadesaumentacomamudançanasrelaçõesdepoder;onúmerodedependenteseograudedependênciaaumentarãoemudarãoemespécie. Se funções sociais relativamente independentes são cada vezmais substituídaspor outras, dependentes, na sociedade — como, por exemplo, cavaleiros livres porcavaleiros cortesãos e, finalmente, apenas por cortesãos, ou mercadores relativamenteindependentespormercadoresouempregadosdependentes—amodelagemdosafetos,aestruturadaspulsõeseconsciência,emsuma,todaaestruturasocialdapersonalidadeeasatitudes sociais das pessoas mudam necessariamente ao mesmo tempo. E isso não seaplicamenosàquelesqueseaproximamdaobtençãodeumaposiçãomonopolistadoqueàqueles que perderam a possibilidade de competir e caíram em dependência direta ouindireta.

3.Essasituaçãonãodeveabsolutamenteserentendidaapenascomoumprocessopeloqualumnúmerocadavezmenordepessoassetorna“livre”,emaisemaissetorna“não-livre”,embora,emalgumasfases,pareçacorresponderaessadescrição.Seomovimentoéconsideradocomoumtodo,podemosreconhecersemdificuldadeque—pelomenosemsociedadesaltamentediferenciadas—emcertoestágiodoprocessoadependênciapassaporumamudançaqualitativapeculiar.Quantomaispessoassãotornadasdependentespelomecanismomonopolista, maior se torna o poder do dependente, não apenas individualmas tambémcoletivamente,emrelaçãoaumoumaismonopólios. Issoacontecenãosóporcausadopequenonúmerodosquegalgamaposiçãomonopolista,masdevidoasuaprópria dependência de cada vez mais dependentes, para preservarem e explorarem opotencial de poder que monopolizaram. Seja uma questão de terra, de soldados ou dedinheiro, sob qualquer forma, quanto mais é acumulado por um indivíduo, menosfacilmente pode ele supervisioná-los e mais dependente se torna de seus dependentes.Essas mudanças nas relações de poder e dependência precisam, com freqüência, deséculosparasetornaremperceptíveis,edemaisséculosaindaparaencontraremexpressãoem instituições duradouras. Características estruturais particulares da sociedade podemlevantarobstáculosinfindáveisnocorrerdoprocesso,mas,aindaassim,seumecanismoetendênciasão inequívocos.Quantomaisabrangenteopotencialdepodermonopolizado,maiorarededefuncionáriosqueoadministraemaioradivisãodotrabalhoentreeles;emsuma,quantomaioronúmerodepessoasdecujotrabalhooufunçãoomonopóliodependedequalquermaneira,maisfortementeessecampocontroladopelomonopolistafazvalerseuprópriopesoesuasregularidadesinternas.Ogovernantemonopolistapodereconheceresse fato e impor a si mesmo restrições que sua função de autoridade central de umaformação social tão poderosa exige, ou satisfazer suas próprias inclinações e dar a elas

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precedência sobre todas as demais. No último caso, o complexo aparato social que sedesenvolveu juntamente com a acumulação privada de possibilidades de poder cedo outarde entrará emdesordeme fará comque sua resistência, sua estrutura autônoma, sejaainda mais fortemente sentida. Em outras palavras, quanto mais abrangente se torna aposiçãomonopolista e mais altamente desenvolvida sua divisão de trabalho, commaisclarezaecertezaelasemoveráparaumpontoemqueogovernantemonopolista(sejaeleumsóouumgrupo)setornaráofuncionáriocentraldeumamáquinacompostadefunçõesdiferenciadas, mais poderosa do que outras, talvez, mas pouco menos dependente eagrilhoada.Essamudançapodeocorrerquaseimperceptivelmente,empequenospassoselutas, ou quando grupos inteiros fazem valer, pela força, seu poder social sobre osgovernantes monopolistas. De uma forma ou de outra, o poder inicialmente adquiridoatravés da acumulação de oportunidades em lutas privadas tende, a partir de um pontoassinalado pelo tamanho ótimo das posses, a escorregar das mãos dos governantesmonopolistasparaasmãosdosdependentescomoumtodo,ou,paracomeçar,paragruposde dependentes, tais como a administração monopolista. O monopólio privadamentepossuídoporumúnicoindivíduooufamíliacaisobocontroledeumestratosocialmaisamploesetransforma,comoórgãocentraldoEstado,emmonopóliopúblico.

O desenvolvimento do que hoje chamaríamos de “economia nacional” constitui umbom exemplo do processo.A economia nacional desenvolveu-se a partir da “economiaprivada” das Casas feudais governantes. Ou mais exatamente, não havia no princípiodistinção entre o que mais tarde foi separado como rendas e despesas “públicas” e“privadas”. A renda dos suseranos originava-se principalmente da produção daspossessõesdesuafamíliaoudodomínio;asdespesasdacorte,taiscomocaçadas,roupasoupresentes,eramcusteadasporessarenda,exatamentedamesmamaneiraqueocustorelativamente baixo com a pequena administração que então havia, com soldadosmercenários,senecessários,oucomaconstruçãodecastelos.Àmedidaquemaisemaisterras caíam nas mãos de uma única Casa reinante, o gerenciamento da renda e dasdespesas,daadministraçãoedefesadaspropriedades,tornaram-secadavezmaisdifíceispara um único indivíduo.Mas, ainda à época em que as propriedades diretas da Casareinante,deseusdomínios,játinhamdeixadodeserafonteprincipaldesuarenda,mesmoquando,comoaumentodocomércio,tributosdetodaaregiãofluíamparaas“câmaras”do suserano e quando, com o monopólio da força, o monopólio da terra se tornarasimultaneamenteodostributos,ouimpostos,mesmonessaocasião,eleaindacontinuouacontrolarareceitacomoseelafosserendapessoaldesuafamília.Eleaindapodiadecidirquantodelaseriagastoemcastelos,presentes,cozinhaecorteequantonamanutençãodastropasepagamentodaadministração.Eraprerrogativasuaadistribuiçãodarendageradapelosrecursosmonopolizados.Examinandodepertooassunto,porém,descobrimosquealiberdade de decisão do monopolista era cada vez mais restringida pela imensa teiahumanaemquegradualmente se transformaramsuaspropriedades.Suadependênciadopessoaladministrativoaumentou,ecomelaainfluênciadesteúltimo;oscustosfixosdamáquina monopolista subiam constantemente; e, no fim desse desenvolvimento, ogovernante absoluto, com seu poder aparentemente ilimitado, era, num grauextraordinário, governado, sendo funcionalmente dependente da sociedade a quegovernava. Sua soberania absoluta não era simples conseqüência do controlemonopolizadodeoportunidades,masfunçãodecertapeculiaridadeestruturaldasociedadenessafase,assuntosobreoqualteremosmaisadizeradiante.Mas,comoquerquefosse,o

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orçamento do absolutismo francês não continha ainda uma distinção entre as despesas“públicas”e“privadas”dorei.

É fato conhecido como a sua transformação em monopólio público encontrou,finalmente,expressãonoorçamento.Oindivíduoqueexerceopodercentral,aqualquertítuloquefosse,écontempladocomumaverbanoorçamento,exatamenteigualaqualqueroutrofuncionário;comela,osuserano,reioupresidente,atendeàsdespesasdesuafamíliaoucorte;asdespesasnecessáriasàorganizaçãogovernamentaldopaíssãorigorosamenteseparadas das que são usadas pelo indivíduo para fins privados. O poder monopolistaprivado transforma-se emmonopólio público,mesmo quando se encontra nasmãos deindivíduosqueagemcomofuncionáriosdasociedade.

Omesmoquadro emerge se estudamos a formação damáquina governamental comoum todo. Ela surgiu a partir do que poderíamos chamar de corte “privada”, e deadministraçãodosdomíniosdereisoupríncipes.PraticamentetodososórgãosdogovernodoEstadoresultaramdadiferenciaçãodasfunçõesdaFamíliaReal,ocasionalmentecomaincorporação de órgãos autônomos de administração local. Quando essa máquinagovernamentalfinalmentese transformounoconjuntodeassuntospúblicosdoEstado,afamíliadosuseranopassouaser,nomáximo,umórgãoentreoutrose,nofim,quasenemmesmoisso.

Teríamosquefazerumadigressãolongademaisparamostraroquerealmentetemosemmente quando dizemos que o poder “privado” de indivíduos sobre recursosmonopolizadossetransformouempoder“público”,do“Estado”,ou“coletivo”.Conformedissemosantes,essasexpressõesassumemseusignificadoplenoapenasquandoaplicadasasociedadesdotadasdeextensadivisãode funções; sónelasasatividadese funçõesdecada indivíduodependemdiretaou indiretamentedasdemuitosoutros; sónelasopesodessas muitas ações e interesses entrelaçados adquire tanta importância que mesmo ospoucos que exercem controlemonopolista sobre possibilidades imensas não conseguemescapardesuapressão.

Processos sociais que utilizam mecanismos de monopólio são encontrados emnumerosas sociedades, mesmo em algumas com divisão de funções e integraçãorelativamentebaixas.Nelas,também,todososmonopóliostendem,apartirdecertograudeacumulação, a escapardo controledeumúnico indivíduoepassarparaodegrupossociaiscompletos,começandofreqüentementecomosantigosfuncionáriosdogoverno,osprimeirosservidoresdosmonopolistas.Oprocessodefeudalizaçãoéumexemplodisso.Mostramosantesque,nocursodesseprocesso,ocontrolesobrepropriedadesterritoriaisrelativamente grandes e o podermilitar escaparam em sucessivas ondas ao governantemonopolista,inicialmentepassandoaseusantigosfuncionáriosouseusherdeiros,edepoisàclassedeguerreiroscomoumtodo,comsuaprópriahierarquiainterna.Emsociedadesemque émenor o grau de interdependência entre funções sociais, esse afastamento docontrole monopolista privado resulta ou numa espécie de “anarquia”, uma decadênciamaisoumenoscompletadomonopólio,ouemsuatomadaporumaoligarquia,emvezdeumaúnicadinastia individual.Mais tarde,essasmudanças,embenefíciodemuitos,nãoculmina emdesintegraçãodomonopólio,mas apenasnuma formadiferentede controlesobreomesmo.Sónocursodeumacrescenteinterdependênciasocialdetodasasfunçõeséque se tornapossível arrancar osmonopóliosda exploração arbitrária por unspoucos

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semfazercomquesedesintegrem.Emtodososcasosemqueéaltaecrescenteadivisãodefunções,ospoucosque,emondassucessivas,reivindicamopodermonopolista,cedoou tarde acabam enfrentando uma situação desvantajosa diante dos muitos, porqueprecisamdeseusserviçose,assim,seestabelecesuadependência,funcionaldosmesmos.Ateiahumanacomoumtodo,dadasuadivisãodefunçõessempremaior,manifestaumatendência inerenteaseoporcomveemênciacrescentea todamonopolizaçãoprivadaderecursos.Atendênciadosmonopólios,como,porexemplo,daforçaoudatributação,asetransformarem demonopólios “privados” em “públicos”, ou “estatais”, nadamais é doqueumafunçãodainterdependênciasocial.Ateiahumana,comsuaelevadaecrescentedivisãodefunções,éimpelidaporseuprópriopesocoletivoparaumestadodeequilíbrioem que se torna impossível a distribuição das vantagens e renda das oportunidadesmonopolizadasemfavordeunspoucos.Sehojepareceevidentequecertosmonopólios,acimadetudoomonopóliodecisivodogoverno,são“públicos”,controladospeloEstado,embora este não fosse absolutamente o caso antes, observa-se um passo na mesmadireção. É inteiramente possível que obstruções sejam repetidamente colocadas nocaminho desse processo por condições particulares da sociedade. Um exemplocaracterísticodessasobstruçõesfoimencionadoantes,notocanteaodesenvolvimentodovelhoImpérioRomano-Germânico.Eemtodososcasosemquearedesocialexcedecertotamanho ótimo para essa formação monopolista particular, decomposições semelhantesocorrem.Permaneceperceptível,porém,oimpulsodessateiahumananadireçãodeumaestruturabem-definida,naqualosmonopóliossãoadministradosembenefíciodetodaaconfiguração humana, pouco importando que fatores possam repetidamente interferir,como mecanismos compensatórios, para deter o processo, em situações repetidas deconflito.

Consideradoemtermosgerais,porconseguinte,oprocessodeformaçãodomonopóliopossui uma estrutura muito clara. Nela, a livre competição tem um lugar exatamentedefinível e uma função positiva: é uma luta entre muitos por recursos ainda nãomonopolizados por qualquer indivíduo ou pequeno grupo. Todo monopólio social éprecedidoporessetipodeprovaeliminatória,ecadaumadelastendeparaomonopólio.

Emcontrastecomesseestágiodelivrecompetição,aformaçãodomonopóliosignifica,porumlado,ofechamentodoacessodiretoacertosrecursosparanúmeroscrescentesdepessoase,poroutro,aprogressivacentralizaçãodocontrolesobreessesrecursos.Dadaacentralização, os recursos são postos fora da concorrência direta dosmuitos.Nos casosextremos, são controlados por uma única entidade social. Esta última, o monopolista,jamaischegaàposiçãodeusarapenasparasimesmaoslucrosdomonopólio,emespecialemsociedadesemquevigoraumaelevadadivisãodefunções.Sedispõedepodersocialsuficiente, pode, no início, reivindicar para si quase todos os lucros derivados domonopólio e remunerar os serviços alheios com o estritamente necessário para a merasobrevivência.Mas é obrigado, exatamente porque depende dos serviços e funções dosdemais,aalocaraoutraspessoasgrandepartedosrecursosquecontrola—eumapartecrescentemente maior, quanto mais vastas se tornem suas propriedades acumuladas emaior sua dependência dos demais. Uma nova luta sobre a destinação desses recursos,portanto,surgeentreosquedelesdependem.Masse,nafaseprecedente,acompetiçãoera“livre”,istoé,seuresultadodependiaexclusivamentedequemsemostrassemaisforteoumaisfraconumdadomomento,agoraeladependedafunçãooufinalidadeparaasquaiso

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monopolistaprecisadoindivíduoparasupervisionaroseudomínio.Alivrecompetiçãoésubstituída por outra, controlada, ou pelo menos controlável, por agentes humanossituados numa posição central; e as qualidades que auguram sucesso nessa competiçãorestrita,aseleçãoqueelapromove,ostiposhumanosqueproduz,diferemprofundamentedoquehavianafaseprecedente,delivrecompetição.

Temos exemplo disso na diferença entre a situação da nobreza feudal livre e a danobrezadecorte.Noprimeirocaso,opodersocialdaCasaisolada,queerafunçãodesuacapacidade econômica emilitar e da força física e perícia do indivíduo, determinava aalocação dos recursos: nessa livre competição tornava-se indispensável o uso direto daforça.Naúltima,adestinaçãoderecursosé,emúltimaanálise,decididapelohomemcujaCasaoucujospredecessoresemergiram,pelaviolência,vitoriososda luta,demodoqueele,nessemomento,exerceomonopóliodaforça.Devidoaessemonopólio,oempregodireto da força se vê excluído de quase toda a competição, entremembros da nobreza,pelas oportunidades de que o príncipe dispõe para distribuir. Os meios de luta foramrefinadosousublimados.Aumentouarestriçãoaosafetos, impostaaoindivíduoporsuasubordinação ao governante monopolista. E os indivíduos assim oscilam entre aresistênciaàcompulsãoàqualestãosubmetidos,oódioàdependênciaemquevivemeàfaltadeliberdade,anostalgiadalivrerivalidadeentrecavaleiros,porumlado,eoorgulhopeloautocontrolequeadquiriramouasatisfaçãoanteasnovaspossibilidadesdeprazerdequedesfrutam,poroutro.Emsuma,umnovoestímuloéaplicadoaoprocessocivilizador.

Opassoseguinteocorrequandoaburguesiaconquistaosmonopóliosdaforçafísicaeda tributação, juntamente com todososdemaismonopóliosgovernamentais quenele sebaseiam. A burguesia, nessa fase, é uma classe que, como um todo, controla certasoportunidadeseconômicasàmaneiradeummonopólioorganizado.Masasoportunidadessão ainda tão uniformemente espalhadas entre seus membros que um númerorelativamentegrandedelesaindapodecompetirlivremente.Oqueessaclassedisputacomos príncipes, e finalmente consegue, não é a destruição do governo monopolista. Aburguesianãoaspiraarealocaressesmonopóliosfiscal,militarepolicialaseusmembrosindividuais, que aliás não querem se tornar proprietários de terras, cada um delescontrolandosuasprópriasforçasmilitaresereceitaprovenientedeimpostos.Aexistênciadeumacoletade impostosmonopolizadaedeummonopólionaaplicaçãodaviolênciafísicaconstituiabasedesuaprópriaexistênciasocial:éaprecondiçãopararestringir-sealivrecompetiçãoameioseconômicos,não-violentos,concorrendoelesentresiporcertasoportunidadeseconômicas.

Oqueosburguesesprocuramalcançarnalutapelogovernomonopolista,efinalmenteconseguem,nãoéadivisãodosmonopóliosexistentes,masumanovadistribuiçãodeseusônus e benefícios.Dá-se um passo nessa direção quando o controle dessesmonopóliospassaadependerdeumaclasseinteira,enãodeumpríncipeabsoluto.Ocorreumavançoquandoasoportunidadesproporcionadaspelomonopóliopassama serdistribuídascadavez menos segundo o favor pessoal e no interesse de indivíduos, e cada vez mais deconformidadecomumplanomais impessoaleexato,no interessedemuitosassociadosinterdependentes e, finalmente, no interesse de toda uma configuração humanainterdependente.

Emoutraspalavras,graçasàcentralizaçãoeàmonopolização,oportunidadesqueantes

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tinhamqueserconquistadasporindivíduoscomempregodeforçamilitaroueconômicatornam-sepassíveisdeplanejamento.Apartirdecertopontododesenvolvimento,alutapelosmonopóliosnãovisamais à suadestruição.Éuma luta pelo controledoque elesproduzem, por um plano de acordo com o qual seus ônus e benefícios sejam maisdivididos,numapalavra,pelaschavesparaadistribuição.Adistribuiçãoemsi,atarefadogovernantemonopolista e da administração, passa, assim, de uma função relativamenteprivada para pública. Sua dependência de todas as demais funções da rede humanainterdependente emerge cadavezmais claramentenuma formaorganizacional.Em todaessaestrutura,osfuncionáriosmaisimportantessão,comotodososdemais,dependentes.Instituiçõespermanentesparacontrolá-lossãoformadaspormaioroumenorproporçãodepessoasdependentesdamáquinamonopolista.Ocontroledomonopólio,opreenchimentodesuasposiçõesdecisivas,nãoémaisdecididopelasvicissitudesda“livre”competição,masporprovasdeeliminaçãoqueserepetem,semusodearmas,equesãoreguladaspelamáquina e, assim, pela competição “não-livre”. Em outras palavras, forma-se o queestamosacostumadosa chamarde“regimedemocrático”.Esse tipode regimenãoé—comoomeroexamedecertosprocessosdemonopólioeconômicoemnossaépocapoderialevar-nos a pensar— incompatível commonopólios, como tais, nem depende para suaexistênciadacompetiçãoamaislivrepossível.Muitoaocontrário:pressupõemonopóliosaltamente organizados e só pode surgir ou sobreviver em certas circunstâncias, numaestruturasocialmuitoespecíficaenumestágiobemavançadodeformaçãodemonopólios.

Tantoquantopodemosatéomomentojulgar,duasfasesprincipaispodemsedistinguirna dinâmica do mecanismo do monopólio. Em primeiro lugar, o estágio da livrecompetição ou de provas eliminatórias, tendendo os recursos a se acumularem numnúmero cada vez menor de mãos e, finalmente, em apenas duas mãos, ou a fase daformação do monopólio; em segundo, a etapa em que o controle dos recursoscentralizados e monopolizados tende a passar de um indivíduo para números sempremaioresaté,finalmente,tornar-sefunçãodaredehumanainterdependentecomoumtodo.Éestaafaseemqueomonopóliorelativamente“privado”torna-se“público”.

Sinais da segunda fase são observados até mesmo em sociedades em que érelativamentebaixaadivisãodefunções.Mas,evidentemente,elasópodeatingirplenodesenvolvimento naquelas com uma divisão de funções elevada e em permanenteexpansão.

Omovimento global pode, portanto, ser reduzido a uma fórmulamuito simples. Seuponto de partida é uma situação em que uma classe inteira controla oportunidades demonopólio desorganizadas e em que, conseqüentemente, a distribuição dessasoportunidadesentreosmembrosdaclasseédecididapela livrecompetiçãoepela forçabruta;eelerumaparaumasituaçãoemqueocontroledasoportunidadesdosmonopólios,edequemdelesdepende,porumaclasseéorganizadoapartirdeumcentroegarantidoporinstituições;agoraadistribuiçãodosprodutosdomonopóliosegueumplanoquenãoéexclusivamentedeterminadopelosinteressesdeindivíduosisoladosougrupos,masestáorientadopela teiageralde interdependênciasquearticula todososgrupose indivíduosentresi,paraumseufuncionamentoótimo.Istoporque,alongoprazo,asubordinaçãodabusca do funcionamento ótimo da rede global de interdependências à otimização deinteressesparticularesinvariavelmentedestróiseupróprioobjetivo.

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Basta,noqueinteressaaomecanismogeraldacompetiçãoeàformaçãodomonopólio.Essageneralizaçãoesquemáticaassumesuaplenaimportânciaapenasemassociaçãocomfatosconcretos;atravésdeles,elatemqueprovarseuvalor.

Quandofalamosem“livrecompetição”e“formaçãodemonopólio”,emgeraltemosemmentefatoscorrentes:pensamos,emprimeirolugar,na“competiçãolivre”porvantagens“econômicas”, da qual participam pessoas ou grupos, dentro de um dado conjunto deregras, empregando-se o poder econômico, e no curso da qual alguns aumentamgradualmente seu controle sobre as vantagens econômicas, simultaneamente destruindo,submetendoourestringindoaexistênciaeconômicadosdemais.

Aslutaseconômicasdenossosdias,porém,nãosóculminam,diantedenossosolhos,numa restrição constante à competição realmente “livre de monopólios” e na lentaformação de estruturas monopolistas. Conforme já indicamos, tais lutas pressupõem aexistência assegurada de certos monopólios muito desenvolvidos. Sem a organizaçãomonopolista da violência física e da tributação, limitada no presente às fronteirasnacionais, a restrição dessa luta por vantagens “econômicas” ao emprego de poder“econômico”, bem como a observância de suas regras básicas, seriam impossíveis emqualquerépoca,mesmoemEstadosisolados.Emoutraspalavras,aslutaseconômicaseosmonopóliosdostemposmodernosocupamseulugardentrodeumcontextohistóricomaisamplo.Esóemrelaçãoaessecontextomaisamploéquenossasobservaçõesgenéricassobreomecanismodacompetiçãoedomonopóliopodemassumirtodooseusignificado.Só se levarmos em conta a sociogênese dessas instituições monopolistas firmementeenraizadasdo“Estado”—queduranteumafasedeexpansãoediferenciaçãoemgrandeescalaabriua“esferaeconômica”àcompetiçãoindividual irrestrita,eassimàformaçãode novosmonopólios privados—, só então poderemos distinguir mais claramente, emmeio ao grande número de fatos históricos particulares, a interação dos mecanismossociais,aestruturaorganizadadaformaçãodessesmonopólios.

Dequemodovieramasercriadasessasorganizaçõesmonopolistasdo“Estado”?Foramgeradasporquetiposdelutas?

Devesersuficiente,paraoquenosinteressa,estudaressesprocessosnahistóriadopaísonde tomaramumcursomaispersistente e que, parcialmentedevido a isso, foi durantelongos períodos a principal potência da Europa, dando exemplo às demais: a França.Assim procedendo, não deveremos evitar os detalhes, porque, de outra maneira, nossomodelogeralnuncaacumulariaariquezadeexperiênciaeseconservariaoco—talcomoariquezadeexperiênciapermanececaóticaparaquemnãoconseguedivisarnelaaordemeasestruturas.

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IV

PrimeirasLutasnoContextodoReino1.No antigo território franco doOcidente eramuito elevada a probabilidade de que,

cedoou tarde,umadasCasasguerreiras rivaisobtivesseapredominânciaedepoisumaposição monopolista, de modo que muitos dos territórios feudais menores fossemenfeixadosnumaunidademaisampla.

O fato de uma determinada Casa, a dos Capeto, emergir vitoriosa das lutaseliminatórias,tornando-seelaaagentedomecanismomonopolizador,contavaporsuavezcom probabilidades bem menores, mesmo que certo fatores em seu favor possam serfacilmentediscernidos.CabemesmodizerquefoiapenasocursotomadopelaGuerradosCemAnosqueresolveu,deumavezportodas,seosdescendentesdosCapetooudeoutraCasasetornariamosmonopolistas,oususeranos,doEstadoqueemergia.

É importante levar emconta adiferençaentre essasduasordensdequestões, entreoproblemageral domonopólio e da formaçãodoEstado, e a questãomais específica domotivo por que uma Casa particular conquistou e conservou a hegemonia. Estivemosestudando a primeira questão, e não a segunda, e é ela que continuará a nos interessaraqui.

Aprimeiramudançanadireçãodomonopólioapósonivelamentogeraldasrelaçõesdepropriedade que se prolongou pelo século X, e mesmo pelo XI, já foi sumariamentedescritaanteriormente.Elasignificavaaformaçãodeummonopóliodentrodoslimitesdeumterritório.Nessapequenaárea,foramtravadasasprimeirasbatalhaseliminatórias,comofieldabalançasemovendoinicialmenteemfavordeunspoucose,finalmente,deumúnicodosparticipantes.UmaCasa—poisaCasaouafamíliaésempreaunidadesocialquesefirmaefazvalerseusdireitos,enãoumindivíduo—acumulavatantaterraqueasoutras não podiammais rivalizar com ela em termosmilitares e econômicos.Enquantohouvessepossibilidadedecompetircomela,a relaçãoentre senhor feudalevassaloeramaisoumenosnominal.Comamudançanopodersocial,talrelaçãoassumiuumanovarealidade.Estabeleceu-seadependênciademuitasCasasfaceaumaúnica,aindaque,nafalta de uma máquina central altamente desenvolvida, ela carecesse da continuidade esolidezquemaistardeveioaassumirnocontextodoregimeabsolutista.

Eracaracterísticodaforçacomqueoperavaessemecanismomonopolistaqueprocessosanálogos ocorressem, aproximadamente na mesma época, em praticamente todos osterritóriosda região francaocidental.LuísVI,duquedeFrância,enominalmente reidetodaaregião,erabastanterepresentativodesseestágiodeformaçãodomonopólio.

2.SeexaminamosummapadaFrançaem1032,formamosumaclaraimpressãodesuafragmentação política, em bomnúmero de territóriosmais emenos poderosos.83 O quetemos diante de nós certamente ainda não é a França que conhecemos. Essa Françaemergente, a antiga região franca do Ocidente, estava limitada a sudeste pelo Ródano;ArleseLyonficavamdefora,noreinodaBorgonha;foratambém,aonorte,estendia-searegiãodasatuaisToul,BarleDuceVerdun,quepertenciam,comoasáreasemvoltade

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Aachen, deAntuérpia e,mais ao norte, aHolanda, ao reino deLorena.As tradicionaisfronteiras oriental e setentrional da antiga região franca doOcidente estavambemparadentrodaFrança atual.Masnemessa fronteirado impérionominaldosCapetonemasfronteirasdasunidadespolíticasmenoresnelecontidastinham,naépoca,amesmafunçãoou fixidez das atuais fronteiras internacionais. Divisões geográficas, vales de rios ecadeias de montanhas, bem como diferenças lingüísticas e tradições locais, davam, éverdade, certa estabilidadeàs fronteiras.Masumavezque todas as regiões, grandesoupequenas,constituíampropriedadedeumafamíliadeguerreiros,oquefundamentalmentedecidiaacomposiçãodaunidadeterritorialeramasvitóriasederrotas,oscasamentos,ascompras e vendas feitas por essa família. E em cada região eram muito grandes asmudançasdehegemonia.

Indodosulparaonortevemos,emprimeirolugar,aonortedocondadodeBarcelona,isto é, ao norte dos Pireneus, o ducado da Gasconha, que se estende até a região deBordeauxeaocondadodeToulouse.Emseguida,eparamencionarapenasasunidadesmaiores, temosoducadodeGuyenne, istoé,aAquitânia,ocondadodeAnjou,sededasegundaCasaRealfranco-inglesa,oscondadosdeMaineeBlois,oducadodeNormandia,sededaprimeiraCasaRealfranco-inglesa,oscondadosdeTroyes,VermandoiseFlandrese,finalmente,emmeioaosdomíniosnormandos—oscondadosdeBlois,Troyeseoutros—opequenodomíniodosCapeto,oducadodeFrância.Jáenfatizamosqueessepequenodomínio dosCapeto não constituía,mais do que qualquer outro território, umaunidadecompletanossentidosgeopolíticooumilitardapalavra.Eraconstituídodeduasou trêsregiõescontíguasrazoavelmentegrandes,aîle-de-France,BerryeOrléans,bemcomodepropriedadesmenoresespalhadaspeloPoitou,nosul,epelaspartesasmaisdiversasdaFrança,queporummeioououtrohaviampassadoàpossedosCapeto.84

3. Na maioria desses territórios, à época de Luíz VI, uma dada Casa já obtiverapredominânciasobreasdemais,medianteumaacumulaçãodeterras.ConflitosentreessasCasas principescas e a pequena nobreza que vivia no seu domínio estavam sempreeclodindo,edurantemuitotempocontinuaramperceptíveisastensõesentreelas.

Nãoerammuitoanimadoras,porém,aspossibilidadesderesistênciabem-sucedidaporparte das Casas feudais menores. A dependência delas face ao senhor feudal ou aogovernante territorial vai se tornando mais evidente no curso do século XI. A posiçãomonopolistadasCasasprincipescasemseusterritóriosagorararamenteéabalada.Oquepassaacaracterizar,cadavezmais,asociedadeéalutaentreasCasasdepríncipes,pelapredominânciaemáreasmaisextensas.Aspessoaseramenvolvidasnessesconflitospelasmesmas compulsões presentes na fase anterior: quando um vizinho se expandia e,portanto,tornava-semaisforte,ooutrocorriaoriscodeseresmagadoporeleedetornar-se seu dependente. Ele tinha que vencer, a fim de não ser subjugado. E embora, paracomeçar,asCruzadaseguerrasdeconquistareduzissematécertopontoapressãointerna,elasetornoumaisfortetãologodiminuíramaspossibilidadesdeexpansãopeloexterior.Omecanismodalivrecompetiçãooperavanessemomentoemumcírculomaislimitado,istoé,entreasfamíliasdeguerreirosquesehaviamtornadoasCasasprincipaisdeseusterritórios.

4. A conquista da Inglaterra pelo duque normando foi uma das campanhasexpansionistas características dessa época— uma entre muitas. Confirmava também a

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fome geral de terras que afligia a população crescente, particularmente de guerreiros,fossemelesricosoupobres.

O enriquecimento do duque normando, a ampliação de seus meios militares efinanceiros,porém,constituíramgraveperturbaçãoparaoequilíbrioanteriorvigenteentreosgovernantes territoriaisdaFrança.Aplenaextensãodamudançanão foi evidentedeimediato,umavezqueoconquistadorprecisoude tempoparaorganizaropoderdentrodos novos domínios e, mesmo quando isso aconteceu, a ameaça decorrente desseengrandecimento,emrelaçãoaosoutrosgovernantes territoriais, só se fezsentir,dadaabaixaintegraçãodosterritóriosfrancosdoOcidente,navizinhançadiretadaNormandia,istoé,nonortedaFrança,enãoaosul.Foisentida,porém,emaisdiretamentepelaCasacom reivindicação tradicional à predominância na área a leste vizinha daNormandia, aCasadosduquesdeFrância,osCapeto.NãoéimprovávelqueaameaçarepresentadaporessevizinhomaisforteconstituísseumfatoraimpelirLuísVInadireçãoqueeleseguiutãotenazeenergicamentedurantetodaavida,oanseiodeconsolidaropoderederrotarqualquerrivalpossíveldentrodeseuterritório.

O fato de ele, o rei nominal e senhor feudal da região franca do Ocidente, ser naverdade,peladimensãodeseusdomínios,bemmaisfracoqueseuvassaloevizinho,quenessemomentocomogovernantedaInglaterratambémportavaumacoroa,evidenciou-seemtodososconflitosquetravaram.

Guilherme, o Conquistador, uma vez que conquistara recentemente seu territórioinsular, teve a oportunidade de criar o que constituía para a época uma organizaçãogovernamental muito bem-centralizada. Distribuiu a terra de uma maneira que visava,tanto quanto possível, a impedir a formação de Casas e famílias tão ricas e poderosascomoasua,equepudessemrivalizarcomesta.Ogovernodosuseranoinglêsfoiomaismodernodeseutempo;atéparaareceitamonetária,elecriouumorganismoespecial.

O exército com que conquistara a ilha consistia apenas em parte de seus vassalosfeudais, sendo o restante constituído de cavaleiros mercenários, movidos pelo mesmodesejodepossuirterras.Sónessemomento,encerradaaconquista,tornou-seotesourodogovernantenormandosuficientementericoparacontratarsoldados,e,independentementeda importânciadeseusvassalos feudais, isso lheconferiusuperioridademilitarsobreosvizinhosdaEuropacontinental.Luís,oGordo,daFrança,nãopodia,comonãopuderamseuspredecessores,fazeromesmo.Acusaram-nodeganancioso,deprocurar,portodososmeiosàsuadisposição,apropriar-sededinheiro.Naverdade,foiexatamentenessaépoca,como aliás em muitos períodos em que a moeda é relativamente escassa e se senteagudamenteadesproporçãoentreaqueexisteeaqueénecessária,queavontadeoua“cobiça” de dinheiro mais se destacou. Luís VI, porém, encontrava-se em situaçãoparticularmente difícil, se comparado com seu vizinho mais próspero. Nesse aspecto,como no da organização, centralização e eliminação de possíveis rivais internos, oterritórioinsulardeuumexemploqueosgovernantesdaEuropacontinentaltiveramqueseguir,paranãosucumbirnalutapelasupremacia.

NoiníciodoséculoXII,portanto,aCasadosCapetoeravisivelmentemaisfracadoquea rival, que controlava terras e gentes do outro lado domar. LuísVI foi derrotado empraticamente todas as batalhas que travou com o rival inglês, embora este último nãoconseguissepenetrarnoterritóriodaprópriaFrância.Nessasituação,osenhordeFrância

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limitou-se a ampliar sua base de poder, as propriedades de sua família, e a esmagar aresistênciadossenhoresfeudaismenoresnointeriorounosinterstíciosdeseusterritórios.Aoassimproceder,preparavasuaCasaparaaquelagrande luta,paraaquelesséculosdeconflitopelasupremacianaantigaregiãofrancadoOcidente,nocursodaqualumnúmerocadavezmaiordeterritóriosfoisefundirnumúnicobloco,emmãosdeumaúnicaCasa,enaqualseenvolveramdiretaouindiretamentetodososterritóriosdaregião—alutapelacoroadaFrança,entreossoberanosdaÎle-de-Franceeossoberanosdailhainglesa.

5. A Casa que retomou a luta contra os Capeto quando se extinguiu a família deGuilherme, o Conquistador, foi a dos Plantageneta. Essa família tinha por domínio oAnjou85,umaregiãotambémvizinhadaFrância.Começousuaascensãomaisoumenosnamesma época que osCapeto e quase que damesmamaneira.Damesma forma que naFrânciasobFelipeI,navizinhaAnjousobFoulque,orealpoderdoscondesemrelaçãoaseusvassalos tornara-sebastantedébil.Talcomoo filhodeFelipe,LuísVI,oGordo,ofilhodeFoulque,Foulque,oMoço,eofilhodeste,GodofredoPlantageneta,gradualmentesubjugouossenhoresfeudaisedeportemédiodeseudomínio,assimlançandoasbasesparaaexpansãofutura.

Naprópria Inglaterra,ocorreu, inicialmenteoprocesso inversoexibindo,peloavesso,osmecanismos quemoviam essa sociedade de guerreiros.QuandoHenrique I, neto deGuilherme,oConquistador,faleceusemdeixarherdeiros,EstêvãodeBlois,filhodeumadas filhas de Guilherme, reivindicou o trono. Obteve o reconhecimento dos senhoresfeudaissecularesedaIgreja,maselemesmonãopassavadeumsenhorfeudalnormandode porte médio. Sua riqueza pessoal e o poder de sua família, dos quais tinha quedepender, eram limitados. Por isso mesmo, tornou-se quase inerme diante de outrosguerreirosetambémdoclerolocais.Comsuaascensãoaotrono,começouimediatamenteadesintegraçãodopodergovernamentalnailha.Ossenhoresfeudaisconstruíamcasteloapós castelo, cunhavammoeda própria, cobravam impostos em suas regiões, em suma,assumiam todos os poderes que até então, dada a força superior que possuíam, haviamsidomonopóliodossoberanosnormandos.Alémdomais,EstêvãodeBloiscometeuumasérie de erros graves, dos quais o principal foi perder o apoio da Igreja, o que umgovernantemaisfortepoderia,talvez,tersidocapazdesuperar,masnãoumhomemquedependiadoauxílioalheio.Taisfatosfavoreceramseusrivais.

EssesrivaiseramoscondesdeAnjou.GodofredoPlantagenetasecasaracomafilhadoúltimoreianglo-normando.Edispunhadepodernecessárioparasustentarareivindicaçãoque fez com base no casamento. Lentamente, construiu uma cabeça-de-ponte naNormandia.Seufilho,HenriquePlantageneta,unificouoMaine,oAnjou,aTouraineeaNormandia sob seu domínio. Armado desse poder, pôde empreender a reconquista dosdomíniosinglesesdeseuavô,exatamentecomooduquenormandofizeraantesdele.Em1153,cruzouoCanaldaMancha.Em1154,à idadede22anos,coroou-serei,eumreique,emvirtudedeseupodermilitarefinanceiro,energiapessoaletalento,tornou-seumapoderosaforçacentralizadora.Doisanosantes,alémdomais,tornara-se,pelocasamentocomaherdeiradaAquitânia,senhordessaregiãonosuldaFrança.Combinavaassim,comsuas terras inglesas, um território naEuropaContinental, frente ao qual o domínio dosCapetoparecia realmente insignificante.Aquestão seos territórios francosdoOcidentedeviamserintegradosemvoltadaÎle-de-FranceoudeAnjoupermaneciainteiramenteemaberto. A própria Inglaterra era território conquistado e mais um objeto do que

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propriamente um tema no jogo político.86 Era — se queremos — uma provínciasemicolonialnafrouxafederaçãodeterritóriosfrancosdoOcidente.

Adistribuiçãodepoder naquela épocaguardavaumadistante semelhança comaqueatualmente existe no Extremo Oriente. Um pequeno território insular e um domíniocontinentalmuitasvezesmaiorencontravam-sesobomesmogoverno.Todaapartesuldoantigo reino dos Capeto a ele pertencia. A principal área ao sul que não pertencia aosdomínios dos Plantageneta era o condado de Barcelona. Seus soberanos estavamempenhadosnumanálogomovimentoexpansionista e se tornaram reisdeAragão,maisumavezsobrebasesmatrimoniais.Lentamente,semquenoiníciomalsepercebesse,elesabandonaramauniãodosterritóriosfrancosdoOcidente.

Além disso, excluído do domínio meridional anglo-angevino — salvo um territóriomenor pertencente à Igreja —, havia o condado de Toulouse. Seus soberanos, comosenhoresfeudaismenoresaonortedaregiãodeAquitânia,começaram,anteaameaçadoreino angevino, a se inclinar para o centro de poder rival, formado pelos Capeto. Osequilíbriosdepoderqueencontramosemconfiguraçõescomoessastendemadeterminar,sempredamesmamaneira,acondutadaspessoas.Naesferamenordafederaçãoterritorialfranca, o seu modo operante pouco diferiu do que vemos na política dos Estados naEuropamoderna, por exemplo, e mesmo, incipientemente, em todo o globo. Enquantonenhum poder absolutamente dominante surgir — um poder que tenha superadoinequivocamente toda concorrência e assumido posição de monopólio—, unidades desegundaclasseprocuramformarblocoscontraaqueleque,aounificarnumerosasregiões,chegoumaispertodasupremacia.Aformaçãodeumblocoprovocaacriaçãodeoutroe,emborapormuitotempooprocessopossaoscilardeumladoparaoutro,osistemacomoumtodotendeaconsolidarregiõescadavezmaioresemtornodeumcentro,aconcentraro poder de decisão real num número sempremenor demãos e, finalmente, num únicocentro.

A expansão do duque normando gerou um bloco que deslocou em seu benefício oequilíbrio, começando pela região norte da França. A expansão da casa de Anjouaproveitou esse fato e deu um passo adiante. O bloco do reino angevino ameaçou oequilíbrio de toda a região franca do Ocidente. Pormenos organização que esse blocodemonstrasse,pormaisrudimentaresfossemseugovernoesuacentralização,aindaassimo movimento através do qual, sob pressão da fome geral de terras, uma Casaincessantementeimpeliaoutraaunir-seaelaeaobter“mais”terras,manifestou-secomclarezasuficientenessas formaçõespolíticas.Àparteosul,uma larga faixaabrangendotodaaregiãoocidentaldaFrançapertencia,então,aosPlantageneta.Tradicionalmente,oreidaInglaterraeravassalodosreisCapetonotocanteaessaáreadaEuropacontinental.O “Direito”, contudo, de pouco vale quando não se apóia num poder socialcorrespondente.

Quando,em1177,osucessordeLuísVI,LuísVIIdeFrância,agoraumhomemvelhoecansado, se encontrou com o representante da Casa rival, Henrique II, o jovem rei daInglaterra, disse a este último: Real Senhor, desde o começo de vosso reinado, e antesmesmo, tendescometidoofensasamim,calcandoaospésa lealdadequemedeveiseavassalagem queme prestastes; e de todas essas ofensas, amais grave e flagrante foi ainjusta usurpação daAuvergne, que conservais em prejuízo da coroa francesa. Para ser

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franco, a velhice me aflige e rouba-me a força necessária para recuperar essa terra eoutras, mas perante Deus, perante esses Barões do Reino e nossos leais súditos,publicamente protesto e defendo os direitos de minha Coroa, acima de tudo sobre aAuvergne,oBerry,Chateauroux,GisorseoVexinnormando,implorandoaoReidosReis,quemedeuumherdeiro,quelheconcedaoqueamimnegou.87

O Vexin — uma espécie de Alsácia-Lorena normanda — era uma terra fronteiriçacontestadaentreodomíniodosCapetoeodomínionormandodosPlantageneta.Maisaosul, a fronteira entre os domínios dos Capeto e o angevino corria pelo Berry. OsPlantageneta já se sentiam suficientemente fortes para ocupar partes do domínio dosCapeto. A luta pela supremacia, entre os Capeto e os Plantageneta, estava em plenodesenvolvimentoeosoberanoangevinoera,alémdomais,muitomaisfortedoqueseucolegadaFrância.

Porissomesmo,asexigênciasqueoCapetofazaseuadversáriosãonaverdademuitomodestas: quer que lhe devolva algumas terras que considera pertencerem a seusdomínios.Poralgumtempo,nãopodeaspiraranadamais.Compreendeperfeitamenteaglóriadodomínioangevinoeainsignificânciadasua.“Nosfranceses”,disseelecertavez,comparando-seaorival,“nadamaistemosdoquepão,vinhoecontentamento.”

6.Essamaneiradegovernar,porém,aindanãoserevestiadegrandeestabilidade.Era,naverdade,uma“empresaprivada”e,comotal,estavasujeitaàdinâmicasocialinerenteauma luta entre unidades que competiam livremente entre si; eramuitomais fortementeinfluenciadapelascapacidadesdosconcorrentes—suaidade,sucessãoefatorespessoaisanálogos—doqueasformaçõespolíticasdefasesposteriores,quandonãosóapessoadequem controla omonopólio,mas uma certa divisão de funções, umamultiplicidade deinteresses organizados e umamáquinagovernamentalmais estável sãooquemantêmacoesãodeunidadesmaisamplas.

Em 1189, umCapeto,mais uma vez, se chocou com um Plantageneta. Entrementes,quasetodasasáreascontestadashaviamvoltadoaodomíniodosCapeto.Nessemomento,o Plantageneta é um velho e, o Capeto, mais moço, o filho de Luís VII, Felipe II,apelidadodeAugusto.Aidade,conformejánotamos,significamuitonumasociedadeemqueohomemqueexerceopoderaindanãopodedelegaraliderançamilitar,ondemuitodepende de sua iniciativa pessoal e onde ele temque atacar ou defender-se empessoa.Henrique II, da Inglaterra, pessoalmente um soberano forte que ainda controlavafirmementeseusgrandesdomínios,nessadataéafligido,alémdaidade,pelasrebeliõesemesmo pelo ódio de seu filhomais velho, Ricardo, conhecido comoCoração de Leão,que,àsvezes,atéfazcausacomumcomosinimigosCapetodeseupai.

Explorandoafraquezadoadversário,FelipeAugustoretomaaAuvergneeaspartesdoBerrymencionadasporseupai.Ummêsdepois,enfrentam-seambosemTours.HenriqueIIfaleceaos56anos.

Em 1193 — Ricardo, o Coração de Leão, está na prisão —, Felipe conquista alongamentecontestadaVexin,tendocomoaliadoJoão,oirmãomaismoçodoprisioneiro.

Em1199,faleceRicardo.Ele,talcomoseuirmãoesucessor,João,queseriachamadodeJoãoSemTerra,dilapidougrandepartedeseupoder,aspossesdefamíliaeostesourosdopai.EnfrentandoJoãocomorival,contudo,háumhomemquesentiuatéosossostoda

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a humilhação e asfixia do poder dos Capeto, causadas pelo crescimento dos anglo-angevinos, e cuja energia, despertada por essa experiência, era canalizada numa únicadireção:maisterrasemaispoder.Maisemais.Ele—talcomooprimeiroPlantagenetaantes dele—é obcecado por esse anseio.Quando JoãoSemTerra lhe pergunta se nãopoderiaterdevoltacomopagamentoalgumasterrasqueperderaparaele,Feliperespondeperguntando-lhe se ele não conhece alguém que deseje vender terras: pois também elegostariadecomprarmais.Nessaocasião,Felipejáéumhomemricoemterraepoder.

Evidentemente,nãoocorriaaindaumalutaentreEstadosounações.Todaahistóriadaformação de organizações monopolistas posteriores, de nações-Estados, permaneceráincompreensívelatéqueseentendaocaráterespecialdessaoutrafasesocial,bemanterior,de“iniciativaprivada”.Travava-seumalutaentreCasasReaisconcorrentesourivaisque,acompanhandoaevoluçãogeraldessasociedade,impeliatodasasunidades,inicialmentepequenaseemseguidacadavezmaiores,aseexpandiremealutarempormaisposses.

AbatalhadeBouvines,em1214,decidiuprovisoriamenteaquestão.JoãodaInglaterrae seus aliados foram derrotados por Felipe Augusto. E como acontecia com tantafreqüêncianasociedadebelicosafeudal,aderrotaembatalhaexternaimplicavatambémumdebilitamentointerno.Voltandoparacasa,Joãoencontraosbarõeseocleroemclimaderevolta,aexigiraMagnaCarta.Inversamente,nocasodeFelipeAugusto,aderrotanaguerraexternafortalece-lheopoderemseusdomínios.

Naqualidadedeherdeirodopai,FelipeAugustorecebeubasicamentearegiãodePariseOrléans,juntamentecompartesdeBerry.Acrescentouaeles—paramencionarapenassuas grandes aquisições — a Normandia, na ocasião um dos maiores e mais ricosterritóriosdetodooreino;oAnjou,oMaineeaTouraine;partesimportantesdoPoitouedeSaintonge;oArtois,oValois,oVermandois;aregiãodeAmienseboapartedaregiãoem volta de Beauvais. “O senhor de Paris e Orléans converteu-se no maior senhorterritorial do norte da França”.88 Tornou a “Casa dos Capeto a família mais rica daFrança”.89Seusdomínioshaviamobtidosaídasparaomar.Emoutrosterritóriosdonorteda França, na Flandres, Champagne, Borgonha e Bretanha, crescia sua influência naproporçãodopoderquepossuía.Emesmonosuljácontrolavaumaáreaconsiderável.

O domínio dos Capeto, contudo, podia ser tudo mas não era ainda um territóriointegrado.EntreoAnjouearegiãodeOrléansestendia-seodomíniodocondedeBlois.Aosul,osdistritoscosteirosemvoltadeSaintese,maisparaleste,Auvergne,quasenãotinham ligações com as regiões setentrionais. Estas últimas, porém, o velho domíniofamiliar,juntamentecomaNormandiaeáreasrecém-conquistadasqueseestendiamparaalém de Arras no norte, constituíam, em termos puramente geográficos, um bloco namaiorparteauto-suficiente.

NemmesmoFelipeAugustotinhaaindaemvistaa“França”emnossosentido,eseusdomínios reais não eram essa França. O que almejava acima de tudo era a expansãoterritorial, militar e econômica do poder de sua família e a subjugação de seusconcorrentesmaisperigosos,osPlantageneta.Emambososobjetivos, tevesucesso.Porocasião de sua morte, os domínios dos Capeto eram aproximadamente quatro vezesmaioresdoquequandosubiraaotrono.OsPlantageneta,aocontrário,quetinhamvividoatéentãomaisnaEuropacontinentaldoquena ilha—ecujaadministraçãonaprópriaInglaterra era constituída tanto de normandos europeus e indivíduos de seus outros

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domínios no continente quanto de nativos da ilha— controlavam nesse momento, nocontinente, apenas uma parte da antiga Aquitânia, a área ao norte da região central eocidentaldosPireneus,aolongodacosta,chegandoatéoestuáriodoGirondasobonomededucadodeGuyenne.Àparte isso,algumas ilhasnoarquipélagonormando.Ofieldabalançamudaracontraeles.Reduzira-seopoderqueexerciam.Mas,graçasaodomínionailha,essepodernãofoiquebrado.Apóscertotempo,oequilíbrionocontinentevoltouabeneficiá-los. Durante muito tempo, permaneceu indeciso o resultado dessa luta pelahegemonia na antiga área franca do Ocidente. Parece que Felipe Augusto consideravacomoseusprincipaisrivais,emseguidaaosPlantageneta,oscondesdeFlandres,eofatodequeumnovocentrodepoderrealmentesurgiranessaregiãoédemonstradoportodaahistória subseqüentedaFrança.Conta-sequeFelipedissecertavezqueouaFrância setornariaflamengaouFlandressetornariafrancesa.Elecertamentenãoperdiadevistaque,em todos esses conflitos entre Casas territoriais menores, o que estava em jogo era asupremaciaouaperdadaindependência.MasaindapodiaimaginartantoaFlandrescomoaFrânciadominandotodaaárea.

7.No início, os sucessoresdeFelipeAugusto seguiramcom firmezao cursoque eletraçara:procuraramconsolidareestenderaindamaisodomínioampliado.TãologoFelipeAugustofaleceu,osbarõesdoPoitouvoltaram-separaosPlantageneta.LuísVIII,filhodeFelipeAugusto, reconquistou a região e incluiu-a em seus domínios, omesmo fazendocom Saintonge, Aunis e Languedoc, parte da Picardia e o condado de Perche.Parcialmentesobaformadeumaguerrareligiosa,alutacontraosheréticosalbigenses,aCasa dosCapeto começou a avançar para o sul e a penetrar na esfera do único grandesenhorterritorialquepodia,alémdosPlantageneta,rivalizarcomelaempoder,ocondedeToulouse.

OCapeto seguinte, Luís IX, SãoLuís, tevemais uma vez que defender suas posses,apressadamente unificadas, contra todos os tipos de ataque interno e externo.Simultaneamente, continuou a reforçar seu poder, anexando partes do Languedoc anordeste dos Pireneus, os condados de Mâcon, Clermont e Mortain, e algumas áreasmenores, às propriedades de sua família. Felipe III, oAudaz, conquistou o condado deGuines, entre Calais e Saint-Omer, mas apenas para perdê-lo 12 anos depois para osherdeiros do conde. Através de compra ou proteção, adquiriu todas as propriedadesmenoresnasvizinhançasqueestivessemoferecidasàvenda,epreparouaincorporaçãodaChampagneedograndeterritóriodeToulouseaosdomíniosdesuaCasa.

Nessemomento,praticamentenãohaviaemtodaaáreafrancadoOcidenteumúnicosoberano territorialquepudesse, semaliados, fazer frenteaosCapeto,comexceçãodosPlantagenetas.Estesúltimos,parasermosexatos,nãoestavammenospreocupadosqueosCapetoemexpandirsuaesferadepoder.NaEuropacontinental,suasoberaniamaisumavez se estendera para além do ducado de Guyenne. Do outro lado do mar, haviamsubmetidoGales e procediamà conquista daEscócia.E ainda tinhampossibilidadesdeexpansão que não os levariam a um choque direto com os Capeto. Estes últimos,igualmente, tinham espaço para se expandir em outras direções. Simultaneamente, sobFelipe,oBelo, seusdomíniosestavamseestendendoàs fronteirasdo ImpérioRomano-Germânico, por um lado, até o rioMaas, que nessa época era considerado a fronteiranatural e tradicional—emhomenagemàpartilhado ImpérioCarolíngio em843—daárea francadoOcidente;eporoutro—maisaosul—prolongava-seatéoRódanoeo

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Saône, isto é, até a Provença, o Delfinado e o condado de Borgonha, que, de igualmaneira, não pertenciam à confederação tradicional dos territórios francos doOcidente.Pelo casamento, Felipe adquiriu aChampagne eBrie, com suasmuitas áreas anexadas,algumasdelasnoterritóriodopróprioImpérioRomano-Germânico.DocondedeFlandresobteveosdomíniosdeLille,DouaieBéthune,etomoudoscondesdeBloisocondadodeChartreseapropriedadeBeaugency.Alémdisso,adicionouàssuasterrasoscondadosdeMarcheeAngoulême,aspropriedadeseclesiásticasdeCahors,MendeePuye,maisaosul,ocondadodeBigorreeoviscondadodeSoule.

Seustrêsfilhos,LuísX,FelipeVeCarlosIVfaleceramumapósooutrosemdeixaremherdeirodosexomasculino.AspropriedadesdafamíliaeacoroadosCapetopassaramaodescendente do filho mais moço da Casa, que possuía como apanágio o condado deValois.

Atéessemomento,atravésdegerações,umesforçocontínuoforafeitomaisoumenosnamesma direção: acumular terras. No que nos interessa, deve ser suficiente sumariaraquiosresultadosdessetrabalho.Mesmoassim,mesmoemsumário,ameraenumeraçãodas muitas terras que gradualmente anexaram dá-nos uma idéia da luta incessante,declaradaoudisfarçada,naqualseempenharamasváriasCasasprincipescas,enaqual,umaapósoutra,derrotadasporalguémmaispoderoso,desapareciam.Compreendamosounãoplenamenteosignificadodessesnomes,elesnossãoumaimagemdaforçadoimpulsoque tinha origem na situação social dos Capeto, um impulso que continuou a se fazersentirnamesmadireçãoatravésdeindivíduostãodiferentes.

ComamortedeCarlos IV,oúltimoda linhagema subir ao tronomediante sucessãodireta,osgrandesdomíniosdosCapeto—istoé,ocomplexoagrupadodiretamenteemtorno do ducado de Frância— estendiam-se daNormandia a oeste até Champagne nolesteeCanchenonorte;aregiãodeArtois,contíguaaesta,foradadacomoapanágioaummembrodafamília.Umpoucoaosul—separadapelaregiãodeAnjou,tambémdadaemapanágio —, o condado de Poitiers fazia parte da área controlada diretamente pelospríncipesdeParis;aindamaisaosul,ocondadodeToulouselhespertencia,alémdepartesdoantigoducadodeAquitânia.Emboratudoissojáconstituísseumpoderosocomplexode terras,nãoeraaindaumregiãocoesa.Conservavaaaparência típicadeumdomínioterritorialdefamília,cujaspartesseparadaserammantidasjuntasmenospordependênciarecíproca,oupordivisãodefunções,doquepelapessoadodono,atravésdeuma“uniãopessoal” e de um centro administrativo comum. Ainda se sentia profundamente aidentidadedistintadecadaregiãoeos interessesecaráterespecíficosdecada território.Ainda assim, a união dos mesmos sob uma única Casa e, em parte, sob uma sóadministração removia toda uma série de obstáculos a uma integração mais completa.Respondiaàtendênciadeampliaçãodasrelaçõesdecomércio,àintensificaçãodeligaçõesparaalémdonívellocal,jádiscerníveisempequenaspartesdapopulaçãourbana,mesmoque essa tendência não desempenhasse nem remotamente o mesmo papel como forçapropulsoranauniãoouexpansãodasCasasprincipescasqueviriaaternoséculoXIX,porexemplo,numestágio inteiramentediferentedodesenvolvimentodosestratosburguesesurbanos.NosséculosXI,XIIeXIII,alutapelaterra,arivalidadeentreumnúmerocadavez menor de famílias de guerreiros, era o principal impulso por trás da formação deterritóriosmaiores.A iniciativa coube às poucas famílias deguerreiros emascensão, àsCasasprincipescas,sobcujaproteçãofloresceramascidadeseocomércio.Esteslucravam

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comaconcentraçãodepoderecontribuíramparaela,conformeserádiscutidoadiante.E,com todaacerteza, tão logoque regiõesmaisextensas foramunificadassobumaúnicasoberania, os estratos urbanosdesempenharamumpapel importante na consolidaçãodaunião territorial, jánaquelaépoca.Semaajudados recursoshumanose financeirosquefluíamdosestratosurbanosparaospríncipes,edacrescentecomercialização,nãoseriamconcebíveis a expansão e a organização governamental desses séculos. Mas era aindasobretudoindiretaaimportânciadascidadesedoavançodocomércioparaaintegraçãodeáreas maiores, na medida em que constituíam instrumentos ou órgãos das Casasprincipescas.A integração significou, antes e acima de tudo, a derrota de umaCasa deguerreirosporoutra,istoé,aabsorçãodeumaporoutraou,pelomenos,suasujeição,suasubordinaçãoaovitorioso.

Seaáreaéconsideradadessepontodevista,talcomoaparecenoiníciodoséculoXIVaoseextinguir a linhagemdiretadosCapeto,pode-seperceberclaramenteadireçãodamudança.A luta deCasasmenores e deportemédiopela terra certamentenão cessara,masessasrixasnemremotamentedesempenhavamomesmopapelquenotempodeLuísVI,paranadadizerdeseuspredecessores.Naqueletempo,asterraseramdistribuídasdemaneiramais oumenos uniforme entre muitos; é verdade que entre elas as diferençaspodemterparecidobastantegrandesparaoshomensdaépoca.Masatémesmoaspossesepoder das Casas ditas principescas eram tão pequenos que bom número de famílias decavaleirosnasvizinhançaspodiadesafiá-lasquantoàterraouaopoder.Cabiaà“iniciativaprivada”detodasessasCasasdecidiratéquepontoparticipavamdessalutageral.Nessemomento, no século XIV, essas muitas Casas de guerreiros não constituíam mais, emseparado, forças a levar em conta; no máximo, coletivamente, como classe, possuíamainda certa importância social.Mas a real iniciativa nesse tempo cabia a umas poucasCasas que haviam emergido como vencedoras na época dos conflitos precedentes,acumulando tanta terra que as demais não podiam desafiá-las, tendo de se tornar suasdependentes.Paraessasoutras,ouamaioriadosguerreiros,apossibilidadedeobternovasterras por iniciativa própria numa livre competição estava praticamente fechada e, comela, a possibilidade de uma ascensão independente na sociedade. Todas as Casas deguerreiros teriam, no máximo, de permanecer no degrau da escada social que haviamgalgado, amenosque algumde seusmembros conseguisse alçar-semais altograças aofavordeumdosgrandessenhores—ouseja,colocando-seemsuadependência.

Diminuíra o número dos que ainda podiam competir independentemente, na regiãofrancadoOcidente,porterraepoder.NãomaisexistemumduqueouCasaindependentedaNormandia,nemdaAquitânia:aassimilaçãoousupressãohaviameliminado—paramencionarapenasosmaisimportantes—oscondadosdeChampagne,AnjoueToulouse.Nessaregião,alémdaCasadeFrância,apenasquatrocasas importavam:osducadosdeBorgonha e Bretanha, o condado de Flandres e, mais poderoso de todos, o rei daInglaterra, duque de Guyenne e senhor de várias áreas menores. Uma sociedade deguerreiros,emcompetiçãorelativamentelivre,transformara-senumasociedadeemqueacompetiçãoerarestringidaàmaneiradeummonopólio.EmesmoentreascincograndesCasas que ainda possuíam algum grau de poder competitivo e preservavam certaindependênciacorrespondente,duassedestacavamcomoasmaispoderosas,adosCapetoeseussucessores,reisdeFrança,eosPlantageneta,reisdaInglaterra.Oconfrontoentreelesteriaquedecidirquem,finalmente,controlariaopodermonopolistanaregiãofranca

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doOcidenteeondeficariamocentroeasfronteirasdomonopólio.

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V

ORessurgimentodasTendênciasCentrífugas:AConfiguraçãodosPríncipesRivais

8.Nãoobstante, a formaçãodomonopóliodogovernonãose realizoupormeios tãodiretos quanto pareceria considerando-se apenas a acumulação de terras. Quanto maisaumentavaaáreagradualmenteunificadaecentralizadapelosCapeto,maissefaziasentiro movimento em sentido oposto e cresciam as tendências à descentralização. Essastendências eram representadas, antes e acima de tudo, pelos parentes mais próximos evassalos do governantemonopolista, como aliás fora o caso na fase anterior, em que aeconomia de troca estivera mais intacta, e também no período carolíngio. Mudaraconsideravelmente, porém, o modo de ação das forças sociais descentralizadoras. Amoeda, os ofícios e o comércio desempenhavam agora um papel bem maior do quenaquela época e os grupos que nisso tinham sua principal ocupação, a classe burguesa,haviam conquistado importância social própria.Desenvolvera-se o transporte.Assim seofereciamàorganizaçãogovernantedograndeterritóriooportunidadesantesinexistentes.Os servidores que o governante central enviava ao interior para administrar esupervisionarsuaspossesnãoachavammaistãofácilsetornaremindependentes.Alémdomais, uma proporção crescente dos servidores já procedia dos estratos urbano. Eraincomparavelmentemenoroperigodequeessesburguesesse transformassememrivaisdogovernante,comosucediaquandoesteeraforçadoaescolheralgunsdeseusauxiliaresna classe dos guerreiros, e quando os próprios servos a quem ele favorecesse podiamrapidamenteadquirir,graçasàsterrascomquelhesrecompensavaosserviços,opoderecategoriasocialdeguerreiroounobre.

Entretanto, uma categoria especial de pessoas ainda constituía autêntica ameaça àcoesão de domínios maiores sob um governo único, mesmo que seu poder se tivessereduzido, mudando seu modo de ação. Nas novas circunstâncias sociais, os principaisdefensoresdadescentralização foramosparentesmaispróximosdogovernante—seustios,irmãos,filhos,oumesmo,emboramenos,irmãsefilhas.

O domínio e o monopólio do governo não pertenciam nessa época a um únicoindivíduo,masaumafamília,aumaCasadeguerreiros.TodososparentespróximosdaCasa tinham e reclamavam direitos a pelo menos parte das propriedades. E era umareclamação que o chefe da Casa, durante muito tempo, mostrou-se menos disposto oucapaz de recusar, à medida que cresciam as posses da família. Não se tratava de um“direitolegal”nosentidomodernodapalavra.Nessasociedadedificilmentehaveriamaisdoquerudimentosdeum“Direito”geral,abrangente,aoqualatéosgrandesgovernantesguerreirosestivessemsujeitos.EissoporqueaindanãohaviaumpodergeralquepudessefazercumprirtalDireito.Sócomaformaçãodemonopóliosdegoverno,centralizando-seasfunçõesdeadministração,équeumcódigocomumfoipromulgadoparagrandesáreas.Prover o sustento dos filhos era uma obrigação social que freqüentemente encontramosnos“Costumes”d. Indubitavelmente,sóasfamíliasmaisaquinhoadaspodiamseguiressecostume.Por issomesmo,elepossuíacertoprestígio.DequemodoaCasamaisricada

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terra,aCasaReal,poderiaescaparaessaobrigaçãoprestigiosa?

AspropriedadesterritoriaisdasCasascontinuaramaser,aindaqueemsentidocadavezmaisrestrito,oquechamaríamosdepropriedadeprivada.OchefedaCasacontrolava-assobtãopoucasrestrições,etalvezcomliberdadeaindamaiordoqueograndelatifundiáriohoje tem sobre suas terras, ou o chefe de uma grande firma familiar sobre seu capital,renda ou filiais. Da mesma maneira que o latifundiário pode dividir uma de suaspropriedadesparadá-laaumfilhomaisjovemoucomodoteaumafilha,semperguntaraosrendeirosseonovosenhorlhesagrada;ouqueodonodafirmapodesacarcapitalparaodotedafilhaounomearofilhodiretordeumasubsidiária,semdeveraosempregadosamenor explicação: damesmamaneira os príncipes daquela fase dispunhamdas aldeias,cidades,propriedadeseterritóriosdeseureino.Eoimpulsoquelevavaodonodegrandespropriedades a prover seus filhos e filhas eramais oumenos omesmo em todos essescasos. Independentemente da eventual preferência do soberano por um dos filhosmaisjovens,dotá-losdemaneiraapropriadaeranecessárioparaapreservaçãoeostentaçãodostatus da Casa; e — pelo menos aparentemente, pelo menos a curto prazo — issoaumentavaasprobabilidadesdaCasadeobterpoderepermanência.O fatodequeessefracionamentodepossesefunçõesemfavordosparentespusesseemrisco,comgrandefreqüência, precisamenteopoder e permanência daCasa,muitas vezes sópenetravanaconsciênciadospríncipesapóslongasedolorosasexperiências.NaFrança,LuísXIVfoirealmente o primeiro a tirar uma conclusão completa e cabal dessa experiência. Comimplacávelseveridademantevetodososparentes—atéoherdeirodotrono,tantoquantoisso foipossível— longede todas as funçõesgovernantes eposições independentesdepoder.

9. No início dessa linha de desenvolvimento, naquela fase inicial em que as possesfamiliares dos Capeto eram poucomaiores do que as de numerosas outras famílias deguerreiros, fora imediatamente óbvio o perigo inerente a qualquer fragmentação daspropriedades.Aameaçadiretadasfamíliasfeudaisvizinhasraramentedesaparecia.Essefato fazia que cadaCasamantivesse unidas tanto a família como as propriedades. Semdúvidahaviarixas,brigas,dentrodafamília,comoemtodaparte.Mas,aomesmotempo,todaoupelomenospartedafamíliatrabalhavaconstantementeparadefenderouexpandiraspossesdetodos.AspropriedadesrelativamentepequenasdaFamíliaRealeram,comoas de todas as famílias de guerreiros, essencialmente autárquicas, careciamde qualquerimportância social mais extensa e, na verdade, tinham praticamente o caráter de umaempresadepequenafamília.Osirmãosefilhos,emesmoasmãeseesposasdoschefesdafamíliatinhamvoznaadministraçãodapropriedade,variandoconformesuasqualidadesecircunstâncias pessoais.Mas dificilmente ocorreria a quem quer que fosse separar umaparteimportantedaspossesdafamíliaeentregá-laaumdeseusmembros.Osfilhosmaisjovenspodiamreceberumapequenapropriedadeaquieali,oucasar-secomalgumadamaqueapossuísse,massabemostambémdaexistênciadeumououtrofilhomaismoçodeFamíliaRealquelevouumavidadequasepobreza.

TudomudouquandoaCasaRealenriqueceu.LogoqueosCapetosetornaramafamíliamais ricade todoo territórioe,naverdade,dopaís,era impossíveldeixarqueos filhosmais jovens da Casa vivessem como modestos cavaleiros. A reputação da Casa Realexigiaquetodososseusmembros,atéosfilhosefilhasmaisjovensdorei,recebessemumdoteapropriado,oqueimplicavadizerumaáreaconsiderávelquepudessemgovernareda

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qual tirarseusustento.Alémdomais,nessemomentoemqueosCapetosuperavam,delonge,amaioriadasdemaisfamíliasdopaísempropriedadeseriqueza,jánãosesentiatãoagudamenteoperigodedivisãodesuaspropriedades.Dessamaneira,aampliaçãododomínio dosCapeto fez-se acompanhar pela ampliação das áreas que, como apanágios,eramdadasaosfilhosmaisjovensdorei.Adesintegraçãoiniciava-seapartirdeumanovabase.

LuísVI,oGordo,deuaofilhoRobertoocondado,nãomuitogrande,deDreux.FelipeAugusto,responsávelpelaprimeiragrandeascensãodafamília,apartirdecircunstânciasmuito difíceis, conservou com firmeza as posses que conquistara a tão duras penas. Aúnica coisa a que renunciou foi uma pequena propriedade, St. Riquier, que concedeu àirmãcomodote.

Luís VIII, contudo, deixou consignado em testamento que os condados de Artois,Poitiers,AnjoueMaine,istoé,partesconsideráveisdaspropriedadesdafamília,emboranuncaseucentro,deviamtornar-seapanágiosdeseusfilhos.

LuísIXdeuAlençon,PercheeClermontemapanágioaosfilhos;FelipeIIIdoouaumfilhomaismoçoocondadodeValois.Poitiers,AlençonePerche,porém,voltaramaosreisCapetoquandoseuspríncipesfaleceramsemdeixarherdeirosdosexomasculino.

Em 1285, cinco condados — Dreux, Artois, Anjou, Clermont e Valois — foramtornadosapanágios;comamortedeCarlos,oBelo,em1328,onúmerosubiuparanove.

QuandoFelipedeValoisherdouaspropriedadeseacoroadosCapeto,osapanágiosdesuacasa,Valois,AnjoueMaine,foramreunificadoscomaspropriedadesmaisvastasdafamília reinante.OcondadodeChartresvoltouàcoroacomamortedeoutroValois.Opróprio Felipe obteve alguns novos pequenos domínios, entre eles Montpellier, quecomprou ao rei deMaiorca.Durante seu reinado, porém, omais importante território acairnasmãosdosCapetofoioDelfinado.Comessaaquisição,aexpansãodosCapetodeuumgrandepassonorumoleste,paraalémdasfronteirastradicionaisdoImpérioFrancodoOcidente, penetrando na antiga região lotaríngia— expansão essa que Felipe, o Belo,começara coma aquisiçãodo arcebispadodeLyon e comumaassociaçãomais estreitacomosbisposdeTouleVerdun.

A maneira como o Delfinado passou aos príncipes de Paris, porém, é menoscaracterísticadarelaçãoentreasforçascentralizadorasedescentralizadorasdesseperíododo que da importância dos apanágios. O Delfinado pertencia ao reino arlesiano ouborguinhão que havia surgido, em seguida ao interregno lotaríngio, a leste dos riosRódanoedoSaône.Seuúltimosoberano,HumbertoII,doouou,maisexatamente,vendeuseusdomíniosaoherdeiroCapeto,apósamortedeseuúnicofilho,deacordocomcertonúmerodecondições. Incluíamelasopagamentodesuasenormesdívidase, também,aestipulação de que o segundo filho de Felipe, e não o primogênito, é que receberia oDelfinado. Evidentemente, o Delfim Humberto queria entregar suas terras a alguémsuficientementericoparapagarassomasdequenecessitava.Aodoá-lasemtestamentoaosoberanodaFrância, evitava que se tornassempomode discórdia entre outros vizinhosapóssuamorte.EessenãofoioúnicoexemplodaatraçãoqueoimensopoderdosCapetodespertavanosvizinhosmaisfracos.Anecessidadedeproteçãodosmenosforteseraumdos fatores que promoviam o processo de centralização e monopolização tão logo ele

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atingiacertonível.

MasaomesmotempoovelhoDelfim,cujoherdeirofalecera,evidentementedesejavaimpedir que sua terra perdesse por completo a independência ao passar ao domíniofrancês.Esseomotivoporqueexigiuqueodomíniofossedadoemapanágioaosegundofilhodorei. Isso implicavaaexpectativadequea regiãose tornasseumaCasareinantepordireitopróprio,dessaformapreservandosuaexistênciaindependente.Nessaépoca,osapanágioscomeçavamatomarcadavezmaisclaramenteesserumo.

FelipedeValois, contudo,nãocumpriuoacordo.DeuoDelfinadonãoao filhomaisjovem,masaoprimogênito,João,herdeirodotrono,“emreconhecimento”dofato,comodizia o documento de doação, “de que o Delfinado se situa na fronteira, de que umgovernobomefortenoDelfinadoénecessárioparaadefesaesegurançadoReino,edequeseagíssemosdeoutramaneiragrandeperigoparaofuturodoReinopoderiasurgir.”90Operigoqueacompanhavaodesmembramentodoterritórioembenefíciodefilhosmaisjovens já era, portanto, claramente percebido, o que se confirmapor grande número depronunciamentos.Persistiu,porém,anecessidadedoreidedotarconvenientementeofilhomaisjovem.Negou-lheoDelfinadoporrazõesdesegurança,mas,emseulugar,deu-lhearegiãodeOrléanscomoducadoetambémcertonúmerodecondados.

10. João,oBom, subiu aopoder em1350.Sob seupredecessor, irrompera a longa elatentetensãoentreasduasmaiorespotênciaseasduasmaispoderosasCasasguerreirasdaregiãofrancadoOcidente.Em1337,iniciou-seasériedeconflitosmilitaresconhecidacomo “A Guerra dos Cem Anos”. Para os Plantageneta, soberanos da ilha, estavabloqueada toda expansão ulterior pela Europa Continental, e mesmo os domínios quetinhamnesta viveriam sob constante ameaça até que destruíssemo poder dosCapeto eimpedissema formaçãode outra grande potência no continente.De idênticamaneira, aexpansão ulterior dos soberanos de Paris estava limitada, e sua posição viveria sobpermanente ameaça atéqueos insulares fossemsubjugadosoupelomenos expulsosdoterritóriocontinental.Efoiacompulsãoirresistíveldessagenuínacompetiçãoquelançouas duas Casas e seus dependentes ao conflito e que — porquanto, por muito tempo,nenhumdosantagonistastevecondiçõesdederrotarinapelavelmenteooutro—tornoualutatãodemorada.

Paracomeçar,contudo,osreisdeParis,porumagrandevariedadederazões,estavamemdesvantagem.João,oBom,foicapturadopeloherdeiroinglês,oPríncipedeGales,naBatalha de Poitiers, em 1356, e enviado para a Inglaterra. Imediatamente, as tensõeslatentesemseuterritório,nessemomentogovernado,comoregente,peloDelfimCarlos,que não tinha ainda 20 anos de idade, explodiram: revolução em Paris, revoltas decamponeses,cavaleirospilhandoocampo.Astropasinglesas,aliadasaoutrodescendenteda Casa dos Capeto e senhor de regiões anteriormente dadas em apanágio, o rei deNavarra,ocuparamvastaextensãodooestedaFrança,chegandomesmoàsvizinhançasdeParis. João, o Bom, para libertar-se, concluiu um tratado com os Plantageneta e seusaliados, entregando-lhes todaaárea interioranaqueRicardo,oCoraçãodeLeão, foraoúltimo a controlar, no início do séculoXII.OsEstadosGerais dos domínios franceses,porém, convocados em 1356 pelo Delfim, declararam que o tratado não devia seraprovado nem executado, e que a única resposta conveniente seria uma guerra bem-conduzida.Efoiestaumaclaramanifestaçãodecomoainterdependênciasetornaraforte

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nograndedomíniodosherdeirosCapeto, comaautonomiaeos interessesprópriosdosgovernadostendendoaprivaramonarquiadeseucaráterdeummonopólioprivado.Nesseestágio, porém, a tendência apenas começava. Voltaram as hostilidades e o Tratado deBrétigny, que as encerrou provisoriamente em 1359, foi um pouco mais favorável aosValois do que o primeiro, negociado pelo próprio João na Inglaterra. Não obstante,aproximadamente um quarto do que Felipe, o Belo, possuíra teve que ser cedido aosPlantageneta,acimadetudoPoitou,Saintonge,Aunis,oLimousin,oPérigord,QuercyeBigorre,aosuldoLoire, juntamentecomalgunsoutrosdistritosqueconstituíam,comapossessãoinglesamaisantigadeGuyenne,oreinodeAquitânia;emaisaonorte,Calais,oscondadosdeGuines,PonthieueMontreuil-sur-Mer;alémdetudoisso,trêsmilhõesdecoroasdeouro,emvezdosquatromilhõesexigidospelotratadodeLondrescomoresgatepelo rei.Este último, porém, umhomemdigno e fidalgo, voltouda prisão inteiramenteinconsciente da extensão de sua derrota.A conduta que adotou nessa situaçãomostrouclaramenteatéquepontoeleeraaindaaúnicaautoridadenocontroledoterritórioquelherestara, que um dia se tornaria a “França”, um Estado e nação. Achava ele que, nessemomento, suaCasadeviaaindamaisostentosamentedemonstrar suaglória.Osensodeinferioridade resultante da derrota levou-o a enfatizar em excesso o próprio prestígio.Pensava o rei que a dignidade e a glória de sua Casa não podiam encontrar melhorexpressão do que transformando todos os filhos em duques quando da ratificação dotratado de paz.Um de seus primeiros atos após a volta da prisão foi, por issomesmo,transformaremducadospartesdeseudomínioedá-loscomoapanágiosaosfilhos.Ofilhomais velho já era duque da Normandia e Delfim; do segundo, fez duque de Anjou eMaine; ao terceiro, João, deu o Berry e a Auvergne; e aomais jovem, Felipe, doou aTouraine.Tudoissonoanode1360.

Umanodepois,em1361,faleceuojovemduquedeBorgonha,aos15anosdeidade.Doisanosantes,elesecasaracomMargarida,filhaeúnicaherdeiradocondedeFlandres,mas faleceu sem deixar filhos.Uma grande região ficava assim sem governante com ainesperada morte do jovem duque. Compreendia ela não só o ducado da Borgonhapropriamentedito,mastambémoscondadosdeBoulogneeAuvergne,juntamentecomocondado da Borgonha, o Franco-Condado e outras áreas situadas além das fronteirastradicionais do Império Franco do Ocidente. Alegando relações de família algocomplexas, João, o Bom, reivindicou para si toda a região. Não houve ninguém acontestar-lheapretensãoe,em1363,doou-aaofilhomaisjovem,Felipe,aquemdedicavaespecial amor. Felipe lutara com grande bravura a seu lado na Batalha de Poitiers e oacompanhara na prisão. Este seria seu apanágio, em lugar da Touraine, “sabendo nós”,disseorei,“quesomosdeterminadospelanaturezaadaranossosfilhososuficienteparapermitir-lheshonraraglóriadesuasorigensequetemosdeserespecialmentegenerososcomaquelesqueparticularmenteamereceram”.91

Aexistência desses apanágios e suamotivação demonstram inequivocamente até quepontoopoderterritorialfrancêsaindaconservavaocaráterdepossessõesdefamília,mastambém como isso promovia a sua fragmentação. Sem dúvida, fortes tendências jáoperavamemdireçãocontrária,tendênciasquerestringiamocaráterprivadooudominialdo governo. Os grupos que representavam essas tendências opostas na corte serãodiscutidos a seguir. O caráter pessoal e a fortuna e infortúnios de João, o Bom,desempenharamumpapelemsuapropensãodedotarricamentetodososfilhos,tendoem

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vista o prestígio da família. Essa tendência, porém, claramente não devia menos aoaguçamento da competição, que encontrou expressão naGuerra dosCemAnos, e que,apósaderrotadosCapeto,deuorigemaumademonstraçãoinsistentedariquezadeseusherdeiros.Dequalquermodo,sobJoão,a tendênciaespecíficadasgrandespropriedadesfamiliares foi simplesmente reforçada, uma tendência à qual, além de certo ponto decrescimento,nenhumdosrepresentantesprecedentesdaCasadosCapetopôderesistir.Esuasconseqüênciasforamclaras.

Ao falecer João, o Bom, a existência e ocupação da função central, a despeito dadebilitação e da derrota, não estavam de maneira nenhuma em dúvida. Havia aí umaindicação da firmeza com que o poder do soberano central já se assentava em outrasfunçõessociaisquenãoadechefedoexército.ODelfim,homemfisicamentefraco,mashábileexperiente,dadasastribulaçõesporquepassaranajuventude,assumiuopodersobonomedeCarlosV.EraotitulardetodasaspossessõesdeixadasaosCapetopeloTratadodeBrétigny,incluindoasqueseencontravamsobregimedeapanágio.Mas,examinandoatentamente a distribuição de poder, podemos ver que, sob o véu da soberania do rei,tendênciascentrífugashaviamganhonovasforças.Maisumavez,emergiramnodomíniodosCapetoalgumas formações territoriaisqueaspiravammaisoumenosabertamente àautonomia, rivaisentresi.Masoquedeuà rivalidadena região francadoOcidenteseucaráter especial foi o fato de quase todos os envolvidos serem descendentes da própriaCasa dos Capeto. Com poucas exceções, eram homens beneficiados com apanágios ouseus filhos que se enfrentavam como competidores potenciais. Havia outros grandessenhoresterritoriaisquenãoerammembrosdaCasaReal,oupelomenosnãodiretamente.Mas,nalutapelasupremacia,nãoerammaisprotagonistasdeprimeiraclasse.

Oprimeirodeles,àépocadeJoão,oBom,foiCarlos,oMau,reideNavarra.Seupai,FelipedeEvreux,eranetodeFelipeIII,sobrinhodeFelipe,oBeloedeCarlosdeValois;suamãeerafilhadeLuísXenetadeFelipe,oBelo.Alémdisso,elemesmoeragenrodeJoão,oBom.Aelepertenciam,alémdoterritóriodeNavarra,nosPireneus,certonúmerodeantigosapanágiosdosCapetodestacando-seocondadodeEvreuxepartesdoducadodaNormandia.Suaspossessõesestendiam-seperigosamenteatépertodaprópriaParis.

Carlos,oMau,deNavarra foiumdosprimeirospartícipesdessa luta,entrepríncipesdosCapetocontempladoscomapanágios,pelasupremacianaregiãofrancadoOcidentee,emúltimaanálise,pelacoroa.NaprimeirafasedaGuerradosCemAnos,foioprincipalaliado dos Plantageneta no continente. Durante essa guerra, exerceu por algum tempo(1358)ocomandomilitardeParis.Atémesmoosburguesesdacidade,atémesmoÉtienneMarcel, ficaram por um tempo a seu lado. Seu sonho, de arrebatar a coroa ao outroherdeiroCapeto,pareceuprestesarealizar-se.Naperseguiçãodesseobjetivo,acondiçãodemembrodafamíliarealdava-lheestímulo,poderesedireitosdequeoutroscareciam.

OPlantageneta a quem se aliou,Eduardo III, era também, embora apenas através dalinhafeminina,parentepróximodosCapeto.TambémeranetodeFelipeIIIesobrinhodeFelipe, oBelo, e deCarlos deValois; suamãe era filha deFelipe, oBelo, sobrinha deCarlos deValois e assim tinha ele umvínculo comosCapeto pelomenos tão próximocomoodoreifrancêsaquemenfrentava,João,oBom,netodeCarlosdeValois.

ContíguasaoterritóriodosPlantageneta,aonorte,ficavamasregiõesqueJoão,oBom,deraaosfilhosmaisjovens,osterritóriosdeLuís,duquedeAnjou,João,duquedeBerry,

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e Felipe, o Intrépido, duque deBorgonha, juntamente com as terras de Luís, duque deBourbon.EstedescendiadosCapetoatravésdeumirmãodeFelipeIII,Roberto,condedeClermont,quesecasaracomBeatriz,herdeiradosBourbon;suamãeeraumaValois;suairmã fora esposa deCarlosV; ele era portanto, pelo lado damãe, tio deCarlosVI, damesmaformaqueosduquesdeAnjou,BorgonhaeBerryoerampeloladopaterno.EssesforamosprincipaisatoresaocuparopalconaslutasdoperíododeJoão,oBom,CarlosVeCarlosVI.ÀparteosPlantagenetaeosBourbon,todoseleseramsenhoresdeapanágiosqueprovinhamdopatrimônioCapeto,agoralutandoaoseuladoparaaumentaropoderdafamíliae,depois,conquistarasupremacia.

Nesseclimadetensões,ofieldabalançainclinou-seinicialmente,sobCarlosV,paraoValoisreinante.Aofalecerele,seufilhoesucessorcontavacomapenas12anosdeidade.Neste caso, como sempre, as circunstâncias— acidentes, do ponto de vista de toda aevoluçãodosacontecimentos—estimularamcertastendênciasjáinerentesàestruturadasociedade.AjuventudeeafranquezadoValoisreinantefortaleceramasforçascentrífugasquehámuitotemposevinhamacumulandoeliberarampressõesencobertas.

Carlos V absorvera definitivamente o Delfinado nas possessões de sua família;recuperara os territórios normandos do rei deNavarra, alémde certo número de outrosapanágios,comooducadodeOrléanseocondadodeAuxerre.Aofalecer,porém,jáhaviana terra sete grandes senhores feudais, descendentes de São Luís e, portanto, da CasaCapeto. Eram denominados de “princes des fleurs de lis”e; e nesse momento havia—afora alguns senhores menores e de porte médio, que desde muito tinham deixado derepresentarpapelpróprionas lutaspelopoder92—apenas duas grandesCasas, alémdados Plantageneta, cujos membros não se incluíam na linha direta de descendênciamasculinadaCasadosCapeto,osduquesdaBretanhaeoscondesdeFlandres.Naépoca,porém, o conde de Flandres só tinha uma herdeira, uma filha. Pelamão damoça e dofuturo domínio sobre a Flandres surgiu, após amorte do jovem duque de Borgonha, aquem ela fora originariamente prometida, um inevitável conflito entre os herdeiros dosPlantagenetaedosCapeto.Depoisdemuitavacilação,amãodaherdeiradaFlandresfoidada finalmente, com a ajuda do chefe da famíliaValois, CarlosV, ao seu irmãomaismoço, Felipe, que através da intervenção do pai já se tornara duque da Borgonha. Oscasamentos dos grandes senhores feudais eram combinados por um ponto de vista quehojechamaríamosdepuramente“comercial”, tendoemvistaaexpansãoeosucessonacompetiçãoporterritório.Felipe,oAudaz,portanto,unificou,apósamortedocondedeFlandres,asterrasdestecomasdeBorgonha.DasoutrasgrandeseantigasCasasfeudaisnocontinenterestavaapenasoducadodaBretanha.Esseestratomaisantigo,noentanto,forasubstituídoporumcírculomenordesenhoresterritoriais,quetinhamsuaorigemnaCasa dos Capeto e que eram lançados no conflito pelo mecanismo da competição porterritórios. As compulsões que — devido ao baixo grau de integração ou divisão defunções presente em qualquer sociedade de economia de troca e, sobretudo, nassociedades de guerreiros— ameaçavam o monopólio de poder e posse sobre grandesregiões, voltaram novamente a primeiro plano. Mais uma vez, ocorreu uma dessasmudançasrumoàdesintegraçãocomoaque,séculosantes,resultaranadesagregaçãodosdomínios carolíngios e, posteriormente, formara a ordem social feudal do século XII.Novamente, indivíduos a quem o governante supremo distribuíra terras de suas largasposses tenderam a se tornar independentes e rivais da debilitada Casa central. A

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possibilidade de entrarem na competição, no entanto, estava limitada a algunsdescendentesdaCasareinanteoriginal,numaclaraindicaçãodamedidaemquemudaraaestruturadasrelaçõeshumanasnasociedade,damedidaemqueateiahumanasetornara,pelomenosnosetoragrário,umsistemadeoportunidadesfechadas.

11. A rivalidade entre os mais poderosos “princes des fleurs de lis” irrompeuimediatamente após amorte deCarlosV, na luta pela regência e tutela do herdeiro dotrono,queaindaeramenordeidade.CarlosVnomeararegenteseuirmãoLuís,duquedeAnjou,eoutroirmão,Felipe,duquedeBorgonha,eseucunhadoLuís,duquedeBourbon,comotutoresdofilho.Foraevidentementeaúnicacoisaquepuderafazerparaevitarqueopodercaísseinteiramentenasmãosdeumúnicohomem.Maseraexatamenteopodertotalo que Luís de Anjou e Felipe realmente pretendiam. Desejavam unificar a tutela e aregência.OsconflitosentreosmembrosrivaisdaCasaReal tomaramtodooreinadodeCarlosVI,quepossuíapoucopoderdedecisãoefinalmentesucumbiuaumaespéciedeloucura.

Detemposemtempos,mudavamasprincipaisfigurasnalutapelasupremaciaentreosparentesdorei.OlugardeLuísdeAnjou,comomaisforterivaldoduqueborguinhão,porexemplo,foiocupadoemcertoestágiodalutapeloirmãomaismoçodeCarlosVI,Luís,quedetinhaoducadodeOrléansemapanágio.Mascomoquerquemudassemaspessoas,subsistiaumamesmaarededecompulsõesqueasimpeliam:repetidamente,duasoutrêspessoasdentrodessecírculopequenodecompetidoresenfrentavam-se,emboranenhumadelasestivessedispostaoupudesse—soboriscodeaniquilação—deixarquequalquerumadasoutrassetornassemaisfortedoqueelamesma.Essesconflitosentreosparentesdorei,contudo,necessariamenteseemaranharamnoconflitomaisimportantedaépocaequeaindaestavabemlongedesedecidir—lutacomosPlantageneta,cujosdescendentestambém se envolveram em rivalidades semelhantes devido à ação de mecanismosanálogos.

ÉprecisoentenderbemasituaçãodessesmembrosdaCasaReal:durantetodaavida,elesestiveramnosegundoouterceirolugares.Seussentimentosdiziamacadaumdeles,comfreqüência,quepoderiamsermonarcasmelhoresemaisfortesdoqueohomemque,porumacaso,eraoherdeirolegítimodacoroaedasprincipaisterras.Entreeleseametahavia,usualmente,umaúnicapessoa,muitasvezes,apenasduasoutrês.Nahistórianãofaltamexemplosdepessoasnessascondições,quefalecemrapidamenteumaapósaoutra,abrindo o caminho do poder para o seguinte na linha de sucessão.Mas,mesmo nessescasos, ocorriamduras lutas comos rivais.Nessa situação, omenospoderoso raramentesubiaaotronosepertencesseaumalinhagemsecundáriadafamília,aindaquefossetitulardosmelhores direitos.Semprehavia outros que lhe contestavamesses direitos.Os seuspoderiamsermaisduvidosos,masvenceriamsefossemmaisfortes.Portudoisso,osqueestavampróximosna linhadeascendênciaao trono, eque jágovernavamapanágiosdevariados tamanhos, preocupavam-se em constituir e ampliar uma base de apoio,aumentando suas posses, rendas e poder. Se não tinham acesso direto ao trono, seugoverno não seria menos rico, poderoso e ostentoso do que o dos rivais, se possívelsuperandomesmo o do rei que, afinal de contas, nadamais era do que omaior dentretodososrivaisoucompetidores.

TaiseramasituaçãoeatitudesdosparentesmaispróximosdofracoCarlosVI,seustios

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— não todos, mas alguns — e também seu irmão. Com certas mudanças, compossibilidades cada vez menores para o segundo e terceiro na linha, essa atitude, essasituação,essastensõesemvoltadotronoforamlevadasadianteatravésdeindivíduosdostalentososmaisdiversos,atéaépocaemque,comHenriquedeNavarra,umgovernanteterritorial relativamente pequeno tornou-se, pela última vez, rei de França. E, comodissemosacima,vestígiosdessastendênciassãoencontradosatéoreinadodeLuísXIV.

Ocompetidormaisforteentreos“princesdesfleursdelis”eraFelipe,oAudaz,filhomaismoçodeJoão,oBom.Nocomeço,elepossuíacomoapanágioapenasoducadodaBorgonha.Maistarde,anexouaseuducado—principalmenteatravésdecasamento—ocondadosdeFlandres, a regiãodeArtois,ocondadodeNeverseobaronatodeDoncy.Seu segundo filho, Antônio, duque de Brabante e senhor de Antuérpia, tornou-se, porcasamento,duquedeLuxemburgo,casandoaindaofilhocomaherdeiradeHainaut.Essesforamos primeiros passos dos senhores deBorgonha para uma expansão por iniciativaprópria, voltada à fundação de um reino seguro, situado, pelomenos em parte, fora daesferadeinfluênciadosreisdeParis,noterritóriodaatualHolanda.

CursosemelhantedeaçãofoiadotadopeloirmãodeCarlosVI,Luís,omaisforterivaldeFelipe, oAudaz,na lutapela supremacianaFrança.Ambosexploraramcomgrandepresteza e determinação o poder da própria família. Luís recebeu inicialmente comoapanágioo ducadodeOrléans, que sobCarlosV, após amorte de seu tio, FelipeVdeOrléans,retornaraaopatrimôniodacoroa.

Depois, obteve três ou quatro condados e grandes propriedades na Champagne.Adquiriu ainda por compra — graças ao grande dote trazido pela esposa, ValentinaVisconti—váriosoutroscondados, incluindoodeBlois.Porúltimo,atravésdaesposa,passouasersenhordocondadodeAsti,emterritórioitalianoe,pordireitodereversãoderesíduosdeherança,deváriosoutrosterritóriosnaItália.OsborguinhõesseexpandiramnadireçãodaHolanda e osOrléanspela Itália.No antigo território francodoOcidentepropriamente dito, as relações de domínio estavam consolidadas: a maior parte dessaregiãopertenciaaosreisdeLondresouParis;e,nestecontexto,nemmesmoum“princedes fleurs de lis” poderia firmar seus direitos, ou competir pela supremacia, se nãoconseguisseconstituiralgumpoderprópriodeescalasignificativa.Damesmaformaqueas velhas lutas eliminatórias no regime feudal pós-carolíngio, nesse momento tensõesanálogas impeliam os membros do círculo bem mais fechado dos grandes senhoresterritoriaisCapetoaexpandirsuasterras,alutarincessantementepormaisposses.Comomeiosdeexpansão,porém,ocasamento,aherançaeacompradesempenhavamagoraumpapel pelo menos tão importante como a guerra e as rixas. Não foram apenas osHabsburgoquesecasaramcomagrandeza.Umavezqueconjuntosrelativamentegrandesde propriedades, compotencialmilitar correspondentemente elevado, existiam então nasociedade, indivíduos e Casas de guerreiros que queriam ascender só podiam ter aesperançadesobreviveraumconfrontomilitarcasojátivessemalcançadocontrolesobreterritóriosqueostornassemmilitarmentecompetitivos.Eessefatodemonstrava,também,comohaviamdiminuídoverticalmentenessafaseaspossibilidadesdecompetirnaesferadagrandepossedeterritórios,ecomoaestruturadetensõesinterpessoaisnecessariamentegeravamonopóliosdegovernoemterritóriosacimadeumacertadimensão.

A área franco-inglesa ainda constituía um sistema territorial interdependente. Toda

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mudançaempodersocial,paravantagemoudesvantagemdeumadasCasasrivais,cedoou tarde afetava todas as outras e, assim, o equilíbrio de todo o sistema. Em qualquermomentodado,poderíamosidentificar,comconsiderávelprecisão,ondesefaziamsentiras maiores e as menores tensões. O balanço de poder, sua dinâmica e curva dedesenvolvimentopodemseracompanhadoscomrazoávelexatidão.Portudoisso,aGuerrados CemAnos deve ser considerada não apenas como uma série de choquesmilitaresentrecertonúmerodepríncipesambiciosos—emborafosseisso,também—mascomoumadasdescargasinevitáveisemumasociedadeinçadadetensões,numasociedadequese compunha de posses territoriais de certo tamanho, como uma seqüência de lutascompetitivas entre Casas rivais e num sistema interdependente de domínios no qualprevaleciaumequilíbriobastanteinstável.AsCasasdePariseLondres,quegradualmentevieramaserrepresentadasporfamíliasoriundasdeCasasReaismaisantigas,aValoiseaLancaster, tornaram-se, graças ao tamanho de suas propriedades e potencial militar, osdois principais rivais. Às vezes, as aspirações dos soberanos de Londres — e,ocasionalmente, dos de Paris— chegaram ao ponto de desejarem unificar toda a áreafrancadoOcidente,os territóriosdocontinenteeoextenso reino insular, sobumúnicogoverno. Só no curso dessas lutas é que se tornou inequivocamente claro como eramconsideráveis,nesseestágiododesenvolvimentosocial,asresistênciasàconquistamilitare,acimadetudo,àsubseqüentecoesãointernadeumterritóriotãograndeediversificadosobummesmosoberanoe amesmamáquinagovernamental.Pode-se indagar se,nesseestágio do desenvolvimento social, a criação de um monopólio central e a integraçãopermanente dos territórios continental e insular sob a supremacia deLondres teria sidopossível,casoosValoistivessemsidocompletamentederrotadospelosreisdailhaeseusaliados.Comoquerquefosse,eramasCasasdePariseLondresasprincipaisacompetirpela supremacia.Todasasdemais tensõescompetitivasnaárea, e acimade tudoasqueexistiamentreosdiferentesramosdaCasadeParis,cristalizaram-seemtornodatensãoprincipal de todo o sistema territorial. Por isso mesmo, nessa guerra os Valoisborguinhões,porexemplo,oratomavamumpartido,oraoutro.

Oavançodadivisãodefunçõesedainterdependênciaparaalémdonívellocalnãoselimitou, porém, a aproximar as diferentes unidades da sociedade territorial franca doOcidente ampliada, como amigas ou inimigas. De modo menos claro, mas igualmenteinequívoco, a interdependência e as mudanças no equilíbrio territorial começaram, poressaépoca,asetornarvisíveisnaáreamaisvastadaEuropaocidentalcomoumtodo.Asociedade territorial franco-inglesa tornou-se gradualmente, no curso de sua crescenteintegração,umsistemaparcialdentrodomaisabrangentesistemaeuropeu.NaGuerradosCemAnos,acrescenteinterdependênciadeáreasmaiores,quesemdúvidanuncadeixarainteiramentedeexistir,manifestou-secomtodaaclareza.Príncipesgermânicoseitalianosjáempenhavamseus interessesepoderna lutaanglo-francesa,emboradesempenhassemumpapel aindaperiférico.Surgiaaíoprimeiro sinaldaquiloqueemergiria comnitidezmaior,algunsséculosdepois,naGuerradosTrintaAnos.Ocontinenteeuropeucomoumtodo começava a tornar-se um sistema interdependente de países, com um equilíbriodinâmicopróprio,noqualtodamudançadepoderenvolviadiretaouindiretamentetodasas unidades, todos os países. Passados mais alguns séculos, na guerra de 1914-18, aprimeira“GuerraMundial”comofoichamada,pudemosverosprimeirossinaisdecomotensões e mudanças de equilíbrio, no mesmo processo sempre maior de integração,afetavamunidadesnumaáreabemmaisampla,paísesempartesdistantesdomundo.A

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natureza e os estágios da monopolização, para a qual evoluem as tensões desseentrelaçamentomundial, talcomoseupossível resultado, istoé,asunidadesmaioresdegovernoquetalvezsurjamdessaslutas—tudoissonosapareceapenasvagamente,comose mal tivesse despontado acima do horizonte de nossa consciência. Mas isso mostrapoucadiferençafaceàsCasasterritoriaiseaosgruposhumanosenvolvidosnaGuerradosCem Anos. Neste caso, também, cada unidade sentia apenas a ameaça direta que otamanho ou o aumento das outras implicava, porquanto as unidades maiores quelentamente nasceramdessas lutas, a França e a Inglaterra, como as denominamos hoje,dificilmente estariam mais presentes na consciência dos que as construíram do que a“Europa”,paranós,comounidadepolítica.

AmaneiracomotensõesisoladasentregruposeCasasrivaisforamresolvidas,comooequilíbrioentreosprincipaisprotagonistas,osLancasteringleses,osValoisfranceses,eoValois de Borgonha, inclinou-se ora nesta ora naquela direção, como os inglesesconquistaram uma parte ainda maior da terra e mesmo da realeza francesas, e como,finalmente,graçasaoaparecimentodeJoanad’Arc,todasasforçasqueapoiavamoValoisfrancêsseuniramnumabem-sucedidaresistênciaerestauraramofracorei,primeiroparacoroá-loemRheimsedepoisparagovernaremParis—relatosde tudo issopodemserencontradosfacilmentenoslivrosdehistória.

AquestãoqueassimsedecidiaeraseLondresea ilhaanglo-normanda,ouPariseodomíniodossoberanosdaFrância,setransformariamnocentrodacristalizaçãodaantigaregião franca do Ocidente. A pendência se decidiu em favor de Paris, e o governo deLondres ficou reduzidoà ilha.AGuerradosCemAnosaceleroue tornou irreversívelorompimentoentreo território continental, que sónessemomento se tornou“laFrance”,istoé,odomíniodossoberanosdaFrância,earegiãodealém-marque,antes,nãopassavade uma colônia dos governantes do continente.A primeira conseqüência da guerra foi,portanto,adesintegração.Os ilhéus,descendentesdosconquistadorescontinentaisedosnativos, tornaram-se uma sociedade separada, tomando caminho próprio, criando suaspróprias instituições específicas de governo e transformando sua língua mista numaentidadedenovotipo.Nenhumdosrivaisconseguiraobteremanterocontroledetodaaárea. Os reis franceses e seu povo perderam finalmente o direito ao reino da ilha; atentativa dos reis ingleses de derrotar seus rivais de Paris e recolonizar o continentefracassou.Seopovodailhaprecisavadenovasterras,novasáreasparacolonizar,novosmercados, teria, a partir desse momento, que procurá-los mais longe. Os reis ingleseshaviam sido eliminados das lutas no continente pela coroa francesa.Numprocesso nãomuito diferente, séculos depois, na comunidade dos Estados territoriais germânicos, oresultadofoiavitóriadaPrússiasobreaÁustria.Emambososcasos,comoconseqüênciadadesintegração,aintegraçãoficoulimitadaaáreasmenorese,dessamaneira,tornou-sebemmaisfácil.

Com a expulsão dos ingleses do continente e a eliminação de seus reis da luta pelasupremacia, alteraram-se as tensões e equilíbriona área.Enquantoos reisdeLondres eParisseapoiavamumnooutrocomdificuldadeseenquantoalutaentreambosconstituíao eixo principal das tensões, as rivalidades entre os vários governantes territoriais nocontinentetinhamimportânciaapenassecundária.Podiamexercerconsiderávelinfluêncianadecisão,sealutaprincipalsedecidiaemfavordeLondresouParis,masnãopodiamdiretamentefazerquequalquerumdoscompetidoresalcançasseasupremacia.

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Nessemomento,comapartidadosingleses,acompetiçãoentreosváriosgovernantesterritoriais,e,acimade tudo,a rivalidadeentreosdiferentes ramosdaprópriaCasadosCapeto, passou a ser a tensão dominante. O resultado da Guerra dos Cem Anos nãodecidiu,oupelomenosnãodeumavezportodas,atravésdequaldessesramosedentrode que fronteiras a integração dos territórios continentais do antigo Império Franco doOcidenteseriarealizada.Nessadireção,portanto,continuoualuta.

NosúltimosanosdeCarlosVII,havia,alémdaCasadeParis,pelomenosoitooutrasgrandesCasasquepodiamlançarseupesonaslutasdecisivaspelasupremacia.Eramelasas Casas de Anjou, Alençon, Armagnac, Bourbon, Borgonha, Bretanha, Dreux e Foix.Todas elas já eram representadas por vários ramos. A mais poderosa era a Casa deBorgonhaque,tendonaBorgonhaeemFrandresonúcleodeseupoder,trabalhavacomtenacidade e um só propósito para criar um grande domínio, no espaço da antigaLotaríngia,entreo ImpérioeaFrança.ArivalidadeentreaBorgonhaeos reisdeParisformavaentãooprincipaleixodosistemadeterritóriosfeudaisdoqual,comavitóriadaúltima,a“França”finalmenteemergiria.Mas,nocomeço,ascasasdeBourboneBretanhaeramtambémcentrosdepoderdegrandeimportância.

Com exceção da última, a Casa ducal da Bretanha, todos os membros das famíliasmencionadas eramdescendentesouparentesdepessoasquehaviam recebidoapanágiosdos Capeto e, por conseqüência, prolongamentos seus. O feudalismo senhorial pós-carolíngio “encolhera”, como disse um autor, e se transformara em feudalismo“principesco”, Capeto.93 Dos conflitos entre as muitas grandes e pequenas Casas deguerreirosdaregiãofrancadoOcidente,emergiravitoriosaumaúnicaCasa.AregiãosetornaraummonopóliodosdescendentesdosCapeto.

No correr das gerações, porém, a família e as posses territoriais por ela acumuladashaviam se dispersado mais uma vez, e nessa época ramos diferentes lutavam pelasupremacia.A formaçãodomonopólionãoocorreuem linha reta, comopodeparecer àprimeiravista.Oquetemosanteosolhos—noperíodoqueseseguiuàGuerradosCemAnos—nãoéaindaaconcentraçãooucentralizaçãocompletasdepodernumúnicolugarenumpardemãos,masumestágionocaminhoparaamonarquiaabsoluta.

Tinha-seestabelecidoumestadodecompetiçãoaltamenterestrita.Nocasodosquenãopertenciam a uma família particular, as possibilidades de alguém adquirir e possuir umgrandedomínio,ouampliaroque jásepossuía,eassimtomarpartenasulteriores lutaseliminatórias,haviamsetornadoextremamentepequenas.

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VI

AsÚltimasFasesdaLutaCompetitivaLivreeaPosiçãoMonopolistaFinaldoVencedor

12.Oquedáaoprocessomonopolizadorseucaráterespecial—equeosobservadoresrecentes,emespecialnoséculoXX,claro,devemlevaremcontaaoestudaresseperíodo—éofatodequefunçõessociaisquesesepararamemtemposmaismodernosaindaeramum tanto indiferenciadas nessa fase. Já salientamos, aliás, que o papel social dograndesenhoroupríncipefeudal,afunçãodehomemmaisricoedetentordosprincipaismeiosdeprodução,aprincípionãosedistinguiaemabsolutodopodermilitareda jurisdição.Funçõeshojeexercidaspordiferentespessoasegruposligadospeladivisãodotrabalho,istoé,asfunçõesdegrandelatifundiárioedechefedegoverno,constituíam,nessaépocaemqueestavaminseparavelmenteligadas,umaespéciedepropriedadeprivada.Asituaçãoseexplicaempartepelo fatodequenessa sociedade,que aindapossuía uma economiabaseada na troca, embora já em declínio, a terra constituía omais importantemeio deprodução,atéque,emsociedadesposteriores,fossesuplantadanessepapelpelamoeda.Ese explica igualmente pelo fato de que, na fase posterior, a chave de todo o podermonopolista,omonopóliodaviolênciafísica,militar,éumainstituiçãosocialfirmementeestabelecida que se estende por extensa área, enquanto, no estágio precedente, eladesenvolveu-seapenaslentamenteaolongodeséculosdeluta,sobretudosobaformademonopólioprivado,familiar.

Estamos acostumados a separar as duas esferas, a “econômica” e a “política”, e doistiposdefunçãosocial,a“econômica”ea“política”.Por“econômica”entendemostodaacadeiadeatividadeseinstituiçõesqueservemàcriaçãoeaquisiçãodemeiosdeconsumoeprodução.Masdamosporcertotambém,aopensarem“economia”,queaproduçãoe,acimadetudo,aaquisiçãodessesmeios,normalmenteocorresemameaçaouempregodeviolênciafísicaoumilitar.Nadaémenosevidente.Emtodasassociedadesdeguerreirosque possuem uma economia de troca — e não apenas no caso delas —, a espada éinstrumentofreqüenteeindispensávelparaadquirirosmeiosdeproduçãoe,aviolência,meioindispensáveldeprodução.Sóquandoadivisãodefunçõesestámuitoadiantada,sóentão, como resultado de longas lutas, forma-se um monopólio especializado deadministração,queexerceasfunçõesdegovernocomosuapropriedadesocial.Sóquandoummonopóliocentralizadoepúblicodeforçaexistenumagrandeáreaéqueacompetiçãopelosmeios de consumo e produção se desenvolve demodo geral sem intervenção daviolência física; só então existem, de fato, o tipo de economia e de luta que estamosacostumados a designar pelos termos “economia” e “competição” em sentido maisespecífico.

Arelaçãocompetitivapropriamenteditaéumfatosocialbemmaisgeraleabrangentedoqueparecequandooconceitode“competição”élimitadoaestruturaseconômicas94—geralmenteasdosséculosXIXeXX.Surgecompetiçãoemtodososcasosemquecertonúmerodepessoasseesforçaparadesfrutarasmesmasoportunidades,quandoademandaexcedeaspossibilidadesdeatendimento,estejamounãoessaspossibilidadescontroladas

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pormonopolistas.Otipoespecíficodecompetiçãoquevimosdiscutindoaqui,achamada“livrecompetição”,caracteriza-sepelofatodequeademandasevoltaparaoportunidadesainda não controladas por alguém que, pessoalmente, não pertence ao círculo decompetidores. Essa fase de “livre competição” ocorre na história de numerosassociedades, se não em todas. A “luta competitiva livre” surge também, por exemplo,quando a terra e as oportunidades militares são distribuídas entre várias partesindependentesdemodotãouniformequenenhumadelastemaprimazia,apredominâncianasociedade.Ocorre,porconseguinte,naquelafasedarelaçãoentreasCasasfeudaisdeguerreiros ou entre Estados em que nenhuma parte venceu claramente a rivalidade dasdemaiseaindanãoexisteummonopóliocentralizado,organizado.De idênticamaneira,há “luta competitiva livre” quando as oportunidades financeiras de numerosas pessoasinterdependentes estão relativamente bem-distribuídas. Em ambos os casos, a luta éintensificadapelocrescimentodapopulaçãoedademanda,amenosqueasoportunidadescresçamàmesmataxa.

Alémdomais,ocursotomadoporessaslutascompetitivaslivresérelativamentepoucoafetadopelofatodeque,numcaso,elassejamprovocadaspelaameaçaeusodeviolênciafísica e, no outro, apenas pela ameaça de decadência social, perda de independênciaeconômica,ruínafinanceiraoutribulaçõesmateriais.NaslutasdasCasasfeudais,asduasformasdeviolênciaquedistinguimoscomofísica/militare forçaeconômicaagiammaisoumenoscomosefossemumaúnica.Essesconflitosfeudaistêm,nasociedademoderna,uma analogia funcional tantona competição econômica livre—,por exemplonas lutasentrecertonúmerodefirmaspelasupremacianomesmocampoeconômico—,comonaslutas entre Estados pela predominância num sistema territorial dado, uma espécie deconflitosquesãoresolvidospelaviolênciafísica.

Emtodosessescasos,oquenaesferaaindanãomonopolizadasemanifestacomolutaéapenasumníveldacompetiçãocontínua,geral,poroportunidadeslimitadas,quesedáemtodaasociedade.Asoportunidadesabertasaquemestáempenhadonalivrecompetição,isto é, na competição sem monopólio, constituem por sua vez um monopóliodesorganizado, do qual está excluído todo aquele que é incapaz de competir por contarapenascomrecursosescassos.Estesúltimos,portanto,diretaouindiretamentedependemdos competidores “livres” e travam entre si uma competição não-livre por suasoportunidades limitadas. A pressão exercida no interior da esfera relativamenteindependentemantémamaisestreita relação funcionalcomaqueexercem,de todososlados,aquelesquejádependemdeoportunidadesmonopolizadas.

Tantonostemposfeudaiscomonosmodernos,alivrecompetiçãopelasoportunidadesainda não centralmente organizadas ou monopolizadas tende, através de todas suasramificações, a subjugar e eliminar um número sempre crescente de rivais, que sãodestruídoscomounidadessociaisoureduzidosàdependência;aacumularoportunidadesnasmãos de um número sempremenor de rivais; tende à dominação e, finalmente, aomonopólio.Alémdomais,oeventosocialdamonopolizaçãonãoselimitaaosprocessosem que pensamos normalmente quando se fala em “monopólios”. A acumulação depossibilidadesquepossamserconvertidasemsomasdedinheiro,oupelomenosexpressasdessamaneira, foi apenasumamudançahistórica entremuitasoutrasqueocorreramnoprocessodemonopolização.Processosfuncionalmentesemelhantes,istoé,quetendemaformarumaestruturaglobalderelaçõeshumanas,naqualindivíduosougrupospossam,

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pela ameaça direta ou indireta de violência, restringir e controlar o acesso de outros acertas possibilidades contestadas— tais processos ocorreram, sob grande variedade deformas,empontosmuitodistintosdahistóriahumana.

Nas lutas travadas em ambos esses períodos, correu risco a existência social dospróprios participantes. E é esta a compulsão por trás das lutas. É isso o que torna taiscombates, e seus resultados, inescapáveis desde que surge a situação básica da livrecompetição. Tão logo a sociedade inicia um movimento desse tipo, todas as unidadessociais existentes na esfera ainda não monopolizada — quer se trate de famílias decavaleiros feudais, empresas econômicas, territórios ou Estados— enfrentam sempre amesmaopção.

Elaspodemser ouderrotadas— resolvasounão lutar—,oquenos casos extremossignificaprisão,morteviolenta,dificuldadesmateriais,talvezafome,ou,noscasosmaisbenignos,adecadênciasociale,portanto,adestruiçãodoquelhesdásignificado,valorecontinuidade à vida,mesmo que, a seus contemporâneos, ou aos pósteros, essas coisaspareçam contrárias a seu próprio significado, existência social e “continuidade” e,portanto,adestruiçãoqueocorreurecebaoassentimentodessepúblico.

Ouelaspodemrepelirevencerosrivaismaispróximos.Nestecaso,suavida,existênciasocial,esforços,secoroamdeêxito,conquistando-seasoportunidadesemdisputa.Amerapreservação da existência social exige, na livre competição, uma expansão constante.Quemnão sobe, cai.Avitória,por conseguinte, significa, emprimeiro lugar—sejaounãoessaaintenção—,domíniosobreosrivaismaispróximosesuareduçãoaoestadodedependência.Oganhodeumnestecasoénecessariamenteaperdadeoutro,quesedêemtermosde terra,capacidademilitar,dinheiroouqualqueroutramanifestaçãoconcretadepoder social.Mas, alémdesse ponto, a vitória significará, cedo ou tarde, o confronto econflitocomumrivaldetamanhocomparávelaoseu;maisumavez,asituaçãoimpeleàexpansãodeumeàabsorção,subjugação,humilhaçãooudestruiçãodooutro.Amudançanasrelaçõesdepoder,comoestabelecimentodadominação,podetersidoconseguidaporuma ação militar ostensiva ou pela força econômica, ou até mesmo por um acordopacífico, mas, como quer que seja, todas essas rivalidades são tangidas, lenta ourapidamente, através de uma série de quedas e ascensões, de avanços e perdas, designificadosrealizadosoudestruídos,nadireçãodeumanovaordemsocial,umaordemmonopolistaquenenhumdosparticipantesrealmentequisoupreviuequesubstituialivrecompetição pela competição sujeita ao monopólio. E é apenas a formação de taismonopóliosquefinalmente tornapossívelregulamentaradistribuiçãodasoportunidades—e,porconseguinte,osprópriosconflitos—nointeressedacolaboraçãosematritos,àqualaspessoasestarãopresasparaomelhoreparaopior.

Alternativas desse tipo eram enfrentadas já pelas famílias de guerreiros na sociedademedieval. A resistência dos grandes senhores feudais, e finalmente do feudalismo dosCapeto,ouprincipesco,aoaumentodopoderreal,precisaserentendidanessesentido.OreideParisera,tantodefatocomonaopiniãodeoutrossenhoresterritoriais,umdelesenadamais.Eraumrivale,apartirdecertaépoca,omaispoderosoeameaçador.Seeleganhasse, a existência social desses senhores, se é que também não a física, seriadestruída;seperdessem,aquiloqueaseusolhoslhesdavaàvidasignificadoeesplendor—aindependência,ocontroledaspossesdafamília,ahonra,aposiçãosocial,ostatus—

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seria, na pior das hipóteses, aniquilado e, na melhor, reduzido. Se vencessem, acentralização,adominação,omonopólio,oEstadoseriambloqueadosporalgumtempo.ABorgonha,oAnjou,aBretanhaeoutrosterritóriospermaneceramdurantealgumtempocomo domínios mais ou menos independentes. Isso podia soar absurdo a muitoscontemporâneos,emespecialaosservidoresreaise,emretrospecto,atémesmoparanós,umavezque,emvirtudedenossodiferenteestágiodeintegraçãosocial,nãocostumamosnosidentificarcomunidadesgeograficamentelimitadas.Masparaeles,paraossoberanosda Borgonha ou Bretanha e grande número de seus dependentes, era especialmenteimportanteimpediraformaçãoemParisdeumgovernocentralcadavezmaispoderoso,quelhesimplicariaaquedacomounidadessociaisindependentes.

Sevencessem,porém,cedoou tardeosvencedores sedefrontariamcomo rivais, eastensõeseconflitosdecorrentesnãopoderiamterminaratéque,maisumavez,emergisseumpoderclaramentesuperior.Damesmamaneiraque,nasociedadecapitalistadoséculoXIXe,acimadetudo,doséculoXX,atendênciageralparaamonopolizaçãoeconômicarevela-se claramente, pouco importando qual competidor particular triunfe e supere osoutros;damesmamaneiraqueumatendênciaanálogaparaadominaçãomaisclara,queprecedecadacasodemonopolização,cadacasodeintegração,estásetornandocadavezmais visível na competição entre os “Estados”, acima de tudo na Europa, da mesmamaneira,ainda,aslutasentreasCasasmedievaise,maistarde,entreosgrandessenhoresfeudais e territoriais, demonstravam uma clara tendência para a formação demonopólios.Aúnicadiferençaeraque,nessecaso,oprocessoocorrianumaesferaemqueapropriedadedaterraeogovernoformavamumaunidadeinseparável,aopassoquemaistarde— com o uso cada vez maior da moeda— ela assumiu a forma combinada decentralização dos impostos e de controle de todos os instrumentos que serviam àsubjugaçãofísica.

13. É num período intermediário entre esses dois estágios— a segunda metade doséculo XV, após a morte de Carlos VII— que a rivalidade entre o ramo francês dosValois,oramoborguinhão—aliadoaoquerestavadossenhoresfeudaisCapeto—,eoúltimo representante dos grandes senhores anteriores aosCapeto, o duque daBretanha,atingiu seu ponto culminante. Mais uma vez, forças centrífugas se reuniram para umataque concentrado contra o Valois de Paris, Luís XI, cuja riqueza e poder eramsumamente perigosos para todos eles, uma vez eliminado aquele que fora o maioradversáriodoreidaFrança,oreidaInglaterra.Evendoocentrodegravidadeseinclinar,ameaçador, para o complexo reinante francês, o duque Valois de Borgonha, Carlos, oTemerário,veioadizercomgrandeclarezaoqueamaiorpartedosrivaisdoreideviatersentidoedesejadodiantedesseperigoparasuaprópriaexistênciasocial:“Emvezdeumúnicorei,gostariaquetivéssemosseis!”95

Noinício,opróprioLuísXInãolevoumuitoasérioamissãoreal.Muitoaocontrário,comopríncipeherdeiro,agiupraticamentedamesmaformaenomesmoespíritodeoutrosgrandes senhores feudais Capeto que trabalhavam pela desintegração do complexoterritorial francês. E residiu durante algum tempo na corte do mais ferrenho rival damonarquiadeParis, oduquedeBorgonha. Isso certamente tinha relaçãocom fatosquepodemserconsideradosdenaturezapessoal,acimadetudooódioprofundoquelavravaentreLuíseopai.MaseratambémoutraprovadaindividualizaçãocaracterísticadaCasamaisricadopaís,queporseuturnoestavaligada,porapanágiosconcedidos,a todosos

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príncipes.FossemquaisfossemascausasmaisantigasdoódiodoDelfimLuísaopai,ocontroledeumterritórioapenasseuorientava-lheossentimentoseaçõesparaumafrentecomumcomosoutrosrivaisdopai.Mesmodepoisdesubiraotrono,pensouinicialmenteemvingar-sedaquelesqueohaviamhostilizadocomopríncipeherdeiro,inclusivemuitosleais servidores damonarquia, e recompensar os que lhe haviamdemonstrado amizade,incluindonumerososadversáriosdesuaCasa.Opoderaindaera,emgrauconsiderável,propriedade privada, dependendo das inclinações pessoais do governante. Mas jádemonstrava, assim como todas as grandes possessões, uma regularidade própriamuitorigorosa, que seu titular não poderia contrariar sem destruí-lo. Em pouco tempo, osinimigosdamonarquiatornaram-seinimigosdeLuíse,osqueaapoiavam,seusamigoseserviçais. Suas ambições pessoais identificaram-se com as ambições tradicionais dosuseranodeParis,esuasqualidadespessoais—acuriosidade,odesejoquasepatológicodedesvendar todosossegredosemvolta,aesperteza,aviolência invariáveldosódioseafeições,atémesmoareligiosidadeingênuaeintensa,queolevavaacortejarossantos,eespecialmente os santos padroeiros dos inimigos, oferecendo-lhes presentes, como sefossemelesvenais sereshumanos—, tudo isso rumavanadireçãoparaaqualLuíseraimpelidopelasuaposiçãodegovernantedosdomíniosterritoriaisfranceses.Alutacontraasforçascentrífugas,contraossenhoresfeudaisrivais,tornou-sesuamissãodecisiva,e,aCasadeBorgonha,deseusamigosdaépocadepríncipeherdeiro,passouaser—comoexigiaalógicaimanentedasfunçõesreaisqueexercia—suaprincipaladversária.

Alutaqueenfrentavanãoeranadafácil.Àsvezes,ogovernodeParispareciaàsbeirasda ruína. Mas ao fim do reinado — em parte devido ao poder que suas grandespropriedadespunham-lhe àdisposição, até certopontopor causadaperícia comque seserviadetalpoder,eparcialmentegraçasacertonúmerodeacidentesqueoauxiliaram—seus rivais foram praticamente esmagados. Em 1476, Carlos, o Temerário, duque deBorgonhafoiderrotado,emGransoneMurten,pelossuíçosqueLuísincitaracontraele.Em 1477, Carlos perdeu a vida, quando tentava conquistar Nancy. Dessa maneira, oprincipal inimigodosValoisfrancesesentreosherdeirosCapetoseusconcorrentes—e,apósa exclusãodo rei inglês, seumais forte rival—foi tambémeliminadodoconflitoentreossenhoresterritoriaisfrancos.Carlosdeixouapenasumafilha,Maria,pelamãoeherança da qual Luís concorreu com a potência que então emergia lentamente comoprincipal rival da monarquia parisiense no contexto europeu, a Casa de Habsburgo.Aproximando-se do fim as lutas eliminatórias na área franca do Ocidente com apredominância e monopólio de uma única Casa, a rivalidade entre esta, vitoriosa, epotências de magnitude semelhante fora do país passou para o primeiro plano. NacompetiçãopelaBorgonha,osHabsburgoobtiveramsuaprimeiravitória comamãodeMaria,eMaximilianoapropriou-sedegrandepartedaherançaborguinhã.Essefatorcriouumasituaçãoqueduroumaisdedoisséculos,aforterivalidadeentreosHabsburgoeosreis de Paris. Não obstante, o ducado da Borgonha propriamente dito e mais duasanexações diretas de suas terras voltaram ao patrimônio régio dosValois.As partes dopatrimôniodaBorgonhaque eramespecialmentenecessáriaspara completaro territóriofrancêsforamincorporadasaeste.

HaviaagoraapenasquatroCasas,naregiãofrancadoOcidente,controlandoterritóriosde alguma importância. A mais poderosa ou, para sermos exatos, a mais importante etradicionalmenteamaisindependente,eraacasadaBretanha.Masnenhumadelaspodia

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maisrivalizarcomopodersocialdeParis.Odomíniodoreifrancêscresceraapontodedeixá-loforadoalcancedaconcorrênciaporpartedegovernantesvizinhosseus.Emmeioaestes,eleocupavaumaposiçãomonopolista.Cedoou tarde,porefeitode tratados,deviolênciaoudeacidentes,todoselessetornaramseusdependentes,perdendoaautonomia.

Constituiupuroacidente—seassimquisermospensar—que,emfinsdoséculoXV,oduque deBretanha deixasse apenas uma filha ao falecer, como antes acontecera comoduquedeBorgonha.Oconflitoqueesseacidenteprovocoumostracomgrandeclarezaaconstelaçãodeforçasdominante.Entretodososgovernantesterritoriaisquerestavamdavelha área franca, nenhum era forte o bastante para contestar ao soberano de Paris aherançabretã.ComonocasodaherançadeBorgonha,oúnicoaconcorrercomeleveiodefora.Nestecaso,igualmente,aquestãoeraseumHabsburgoouumValoisincorporariaaBretanhapelocasamento, seCarlosVIII,o jovemfilhodeLuísXI,ouMaximilianodeHabsburgo, o Sacro Imperador Romano e senhor da Borgonha, cuja mão se tornaranovamente livre com a morte da herdeira borguinhã. Como no primeiro caso, oHabsburgo,maisumavez,venceuesecasoucomajovemAnadaBretanha,pelomenosprovisoriamente.Mas, depois demuita litigação— finalmente decidida por julgamentodos Estados Gerais bretões— a mão da herdeira coube, afinal de contas, a Carlos deFrança.OsHabsburgoprotestaram,houveguerraentreosrivaise,finalmente,chegou-seaumasoluçãoconciliatória:oFranco-Condado,quesesituavaforado território francêsenão pertencia ao complexo tradicional franco de terras, foi cedido aos Habsburgo; emtroca, Maximiliano reconheceu a incorporação da Bretanha por Carlos VIII. QuandoCarlosVIIIfaleceusemdeixarfilhos,seusucessor,LuísXII,umValoisdoramoOrléans,imediatamente conseguiuque seu casamento fosse anuladopeloPapa e casou-se comaviúvade28anosdeseupredecessor,afimdeconservar-lheaBretanhanopatrimôniodesuacoroa.Gerandoseucasamentoapenasfilhas,oreicasouamaisvelha,quereceberiaaBretanha como herdeira da mãe, com o herdeiro presuntivo do trono, o mais próximodescendente vivo da família, o conde Francisco de Angoulême. O perigo de que esseimportanteterritóriopudessecairnasmãosdeumrival,acimadetudodeumHabsburgo,resultava sempre no mesmo curso de ação. E assim, sob pressão do mecanismocompetitivo,oúltimoterritóriodaregiãofrancadoOcidenteapreservaraautonomianocursodetodasaslutaseliminatórias,acabouseintegrandonosdomíniosdoreideParis.Aprincípio, quando o herdeiro do apanágio de Angoulême se tornou rei sob o nome deFranciscoI,aBretanhaconservoucertaautonomia.AtradiçãodeindependênciadeseusEstadosGeraisconservou-sevivaz,masopodermilitardeumúnicoterritóriosetornarainsignificantepara enfrentarograndedomínioque jáo cercavapor todosos lados.Em1532,foi institucionalmenteconfirmadaaincorporaçãodaBretanhaaodomíniofrancês.Apenas o ducado de Alençon, os condados de Nevers e Vendôme, e os domínios deBourboneAlbret96 continuavamcomo territórios independentesnaantiga região franca,istoé,áreasquenãopertenciamaosreisdeParisnem—comoaFlandreseoArtois—aosHabsburgo.Emboraalgunsdeseusgovernantes,comoosenhordeAlbretouaCasade Bourbon ainda procurassem fazer tudo o que podiam para ampliar seus domínios emesmoasonharcomacoroaderei,97suasregiõesnadamaiseramdoqueenclavesdentrodos domínios dos reis franceses. Quem cingisse a coroa ficava inteiramente acima daconcorrência desses senhores territoriais.AsCasas queoutrora existiramnessas regiõestinhamdesaparecidoouestavamreduzidasaumestadodedependência.Naantigaregiãofranca,osreisdeParisnãotinhammaisrivais;daíemdiante,suaposiçãoassumiucada

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vez mais claramente o caráter de monopólio absoluto. Fora da região franca, porém,processos semelhantes haviam se desenvolvido, embora em parte alguma o processomonopolizadoreaslutaseliminatóriasavançassematéopontoaquechegaramnaFrança.Aindaassim,osHabsburgohaviamreunidopossesfamiliaresque,empotencialmilitarefinanceiro,ultrapassavamdelongeamaiorpartedosoutrosdomíniosexistentesnaEuropacontinental.AsituaçãoqueserevelaraatravésdassucessõesdaBorgonhaedaBretanhaapresentou, a partir de começos do século XVI, uma nitidez notável: a Casa dosimperadoresHabsburgoeaCasadosreisfranceses,representadasnesseestágioporCarlosV e Francisco I, se enfrentavam como rivais numa nova escala. Ambas exerciam, emgraus ligeiramente variáveis, o monopólio do poder numa vasta área; competiam poroportunidades e supremacia numa esfera mais ampla que, até então, não tinha umsoberanomonopolistaeportantoviviaaindaumasituaçãode“livrecompetição”.Eassima sua rivalidade tornou-se, e por um longo período se conservou, o eixo principal dosistemamaisamplodetensõesquetomavaformanaEuropa.

14. Em tamanho, o domínio francês era bem menor do que o dos Habsburgo. Mastambémmuitomais centralizado e, acima de tudo, auto-suficiente,mais bem-protegidomilitarmentepor“fronteirasnaturais”.Tinhaporfronteiras,aoeste,oCanaldaManchaeoAtlântico;todaaáreacosteiraatéNavarraseencontravanessemomentonasmãosdosreis franceses.Comofronteira sul,oMediterrâneoe,nessazona, todaacosta—comaexceção de Roussillon e da Cerdagne— pertencia aos soberanos franceses. A leste, oRódanoformavaafronteiracomocondadodeNiceeoducadodeSavóia.Nessaépoca,afronteiraprojetava-sealémdoRódanoechegavaaosAlpesnoDelfinadoenaProvença.Aonortedessazona,emfrenteaoFranco-Condado,oRódanoeoSaônecontinuavamaformarafronteiradoreino,aspartesmédiaebaixadoSaôneumpoucoultrapassadas.Nonorte e nordeste, a fronteira ficava mais para baixo da França atual. Só tomando osarcebispadosdeMetz,Toul eVerdunéqueo reino se aproximariadoReno,masnessetempo eles eram enclaves, postos avançados dentro do ImpérioGermânico.A fronteiracomoImpériocorrialigeiramenteaoestedeVerdune,maisaonorte,aproximadamentena região de Sedan. Tal como o Franco-Condado, os condados de Flandres e ArtoispertenciamaosHabsburgo.Umadasprimeirasquestõesadecidirnalutapelasupremaciaera até que ponto a fronteira avançaria nessa área. Durante muito tempo, o domíniofrancêsficoucontidodentrodesseslimites.Sónosanosentre1610e1659équearegiãodeArtois, juntamente com a área entre a França e os três arcebispados e— um novoenclavedentrodoImpério—aaltaebaixaAlsácia,foramassimiladas;sóentãoaFrançase aproximou do Reno.98 Grande parte do território que hoje constitui a França estavareunido sob um único governo. A única questão em dúvida era a medida da possívelextensão dessa unidade, a questão se e onde ela encontraria finalmente suas fronteiras“naturais”,istoé,facilmentedefensáveis,nosistemaeuropeudetensões.

AlguémquepensasseretrospectivamenteapartirdeumEstado,deumasociedadecommonopólioestávelecentralizadodeviolênciafísica,umfrancêsquevivessenaFrançaouumalemãonaAlemanha,provavelmenteacharianaturalaexistênciadessemonopóliodeviolência, a unificaçãode áreas desse tamanho e tipo.Haveria de considerar isso certo,útil, emesmoo resultadodeumplanejamento consciente.Emconseqüência, tenderia aobservar e avaliar as ações específicas que culminaram nesse ponto em termos de suautilidade para uma ordem que lhe pareceria evidente por si mesma e autojustificável.

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Inclinar-se-ia a preocupar-semenos com os dilemas e necessidades reais, baseados nosquais grupos e pessoas agiram no passado, menos com seus planos diretos, desejos einteresses,doquecomaquestãose istoouaquiloerabomoumauparaasituaçãocomqueseidentificava.Eexatamentecomoseosatoresdopassadojátivessemanteosolhosuma antevisão profética daquele futuro que para ele é tão evidente e, talvez, tão bemconsolidado,louvariaoucondenariaessesatores,concederlhes-ianotasnamedidaemqueseusatoslevassemounãoaoresultadoalmejado.

Atravésdessascensuras,demanifestaçõesdesatisfaçãopessoal,deopiniõessubjetivasou partidárias sobre o passado, porém, geralmente bloqueamos nosso acesso àsregularidadesemecanismosformativoselementares,àcrônicaestruturaleàsociogênesereais das formações históricas. Essas formações sempre se desenvolveramna luta entreinteresses opostos ou, mais exatamente, na solução de interesses ambivalentes. O quenessesconflitosfinalmentechegouaseufimousefundiuemnovasformações,àmedidaque os principados se moldavam em reinos e depois o poder real se transformava noEstadoburguês,não foimenos indispensáveldoqueovitoriosoparagestaressasnovasformações.Semaçõesviolentas,semasforçaspropulsorasdalivrecompetição,nãoteriahavido monopólio de força e, destarte, nenhuma pacificação, nenhuma supressão econtroledaviolênciaemgrandesáreas.

Asramificaçõesdomovimentoqueculminouintegrandoregiõescadavezmaioresemvolta do ducado de Frância, como seu centro da cristalização, mostram bem que aintegração final da antiga área franca do Ocidente decorreu de uma série de provaseliminatórias, num processo irresistível de entrelaçamentos, e que disso muito poucoresultoudeumavisãoproféticaoudeumplanorigorosoaoqualaderissemtodasaspartesindividuais.

“Indubitavelmente”, disse certa vez Henri Hauser,99 “há sempre algo ligeiramenteartificial quandoo indivíduo, de sua posiçãoaposteriori, olha a história de trás para afrente, como se a monarquia administrativa e a França centralizada de Henrique IItivessem sido destinadas, desde o começo dos tempos, a nascer e a viver dentro dedeterminadoslimites…”

Só se nos transportarmos, por um momento, para a paisagem do passado epresenciarmosaslutasentreasmuitasCasasguerreiras,conheceremossuasnecessidadesvitais,seusobjetivosimediatos;apenasse,numaúnicapalavra,tivermosaosolhostodaaprecariedade de suas lutas e existência social, é que poderemos compreender como eraprovávelaformaçãodeummonopólionessaárea,mastambémcomoseriamincertosseucentroefronteiras.

Atécertopontoéverdade,noqueinteressavaaosreisfranceseseaseusrepresentantes,oquesedissecertavezsobreopioneiroamericano:“Elenãoqueriatodaaterra.Queriasimplesmenteaterraqueficavajuntoàsua.”100

Essa formulação simples e precisa expressa muito bem como, a partir doentrelaçamento de incontáveis interesses e intenções individuais — quer tendessem àmesmadireçãoouadireçõesdivergentesehostis—, surgiualgoquenão foiplanejadonem foi intenção de qualquer um desses indivíduos, mas emergiu a despeito de suasintenções e ações.E realmente aí se encontra todoo segredodas configurações sociais,

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suadinâmicairresistível,suasregularidadesestruturais,ocaráterdeseuprocessoedeseudesenvolvimento,eéesseosegredodasociogêneseedadinâmicadasrelações.

Osrepresentantesdamonarquiafrancesatinhamsemdúvida,emvirtudedesuaposiçãomaiscentralnasúltimas fasesdomovimento, intençõese raiosdeaçãomaisamplosnoprocesso de integração do que os pioneiros americanos isolados. Mas também eles sópercebiam com clareza os poucos passos imediatamente a seguir e o pedaço de terracontíguo,quetinhamdeobterparaevitarquecaíssenasmãosdeoutros,impedindoassimqueumvizinhoourivalincômodosetornassemaisfortedoqueeles.Esealgunsdentreeles de fato concebiam a imagem de um reino maior, essa imagem foi, durante muitotempo,maisasombradosmonopóliospassados,umreflexodasmonarquiascarolíngiaefranca do Ocidente, mais um produto da memória do que da profecia ou de um novoconceito do futuro. Neste particular, como sempre, do emaranhado de inumeráveisinteresses,planoseaçõesindividuais,emergiuumúnicofenômeno,umaregularidadequepautouatotalidadedessaspessoasemaranhadasequenãofoiintençãodenenhuma,dandoorigemaumaformaçãoquenenhumdosatoresrealmenteplanejara:umEstado,aFrança.Por issomesmo,acompreensãodeumaformaçãodesse tiporequerumaponteparaumnível ainda pouco conhecido da realidade: o nível das regularidades imanentes aosrelacionamentossociais,ocampodadinâmicadasrelações.

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VII

DistribuiçãodasTaxasdePodernoInteriordaUnidadedeGoverno:SuaImportânciaparaaAutoridadeCentral:A

Formaçãodo“MecanismoRégio”15.Distinguimos,acima,duasfasesprincipaisnodesenvolvimentodosmonopólios:a

fasedalivrecompetição,tendendoparaaformaçãodemonopóliosprivados,eagradualtransformaçãodessesmonopólios“privados”em“públicos”.Umestudomaisatentodessemovimento, porém, mostra-nos que ele não consistiu numa simples sucessão detendências. Embora a “abertura” dosmonopólios no curso dessamudança só alcance aplenitudeesetorneumfenômenodominantenumestágioposterior,asestruturasquenelaculminaramjáestavampresenteseativasnafaseemque,emmeioanumerosaslutas,omonopóliodepoderlentamentefoiemergindosobaformadeumaposseprivada.

Indubitavelmente,aRevoluçãoFrancesa,porexemplo,constituiuumgrandepassoparaa abertura do monopólio da tributação e da força física na França. Nesse caso, osmonopólios passaram, de fato, para o poder ou, pelo menos, para o controleinstitucionalmentegarantidodeamplasclassessociais.Odirigentecentral,qualquerquefosseotítuloqueostentasse,etodosaquelesqueexerciampodermonopolista,tornaram-se,maisinequivocamentedoqueantes,unsfuncionáriosentreoutros,nacomplexateiadeuma sociedade baseada na divisão de funções. A dependência funcional deles face aosrepresentantes de outras funções sociais tornara-se tão grande que se manifestavaclaramente na organização da sociedade. Contudo, essa dependência funcional dosmonopóliosedeseusdiretoresfaceaoutrasfunçõesdasociedadejáestavapresentenasfases anteriores. Simplesmente era menos desenvolvida e, por essa razão, não seexpressava de modo direto e inequívoco na organização e estrutura institucional dasociedade.Porisso,opoderdogovernantemonopolistateve,noinício,maisoumenosocaráterde“posseprivada”.

16. Conforme já notamos, manifestam-se tendências a algum tipo de “abertura” domonopóliodeumaúnicafamíliadesdequesereúnamcertascondições—asaber,quandoaáreacontroladaousuaspossescomeçamacrescermuito—mesmoemsociedadesemquevigoraaeconomiade troca.Oquedenominamos“feudalismo”,oquedescrevemosacima como a ação de forças centrífugas, nadamais foi do que uma expressão de taistendências. Indicava que a dependência funcional do senhor face a seus servidores ousúditos, isto é, face a um estrato mais largo, estava aumentando. Culminou ela aotransferir-se o controle da terra e do poder militar, das mãos de uma única família deguerreiros e de seu chefe, em primeiro lugar para a hierarquia de seus servidoresmaischegados e parentes e depois, em alguns casos, para toda a sociedade de guerreiros. Jáobservamosquenasociedadefeudal,a“abertura”,comoresultadodaspeculiaridadesdaposse da terra e dos instrumentos de violência, implicou a dissolução do monopóliocentralizado — mesmo que apenas frouxamente centralizado — e assim levou àtransformação de uma única grande posse monopolista em grande número de outrasmenores e, assim, a uma forma descentralizada e menos organizada de monopólio.Enquanto a posse da terra se conservasse a forma dominante de propriedade, novas

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mudanças nesta ou naquela direção podiam ocorrer: o estabelecimento de supremaciadentro da livre competição, a reunião de grandes áreas emassas de guerreiros sob umúnicosenhorsupremo;tendênciasàdescentralizaçãosobseussucessores,novaslutasemdistintosestratosdeseusservidores,desuasrelaçõesoudeseussúditos,novastentativasdeconquistarasupremacia.Todoessefluxoerefluxodecentralizaçãoedescentralizaçãopodiaàsvezes—dependendodefatoresgeográficosouclimáticos,deformaseconômicasparticulares,dos tiposdeanimaiseplantasdequesealimentavamaspessoas,esempreemconjuntocomaestruturatradicionaldareligiãoorganizada—,tudoissopodialevaraumacomplexamescladesedimentaçõesproduzidaspelasváriasmudanças.Ahistóriadeoutrassociedadesfeudaisnão-européias,emtodaaparte,segueaesserespeitoomesmomodelo.Pormaisqueessetipodefluxoerefluxosepossadetectar,nahistóriadaFrança,porém,aquiestemovimento,emcomparaçãocomamaioriadasoutrassociedades,seguiuumatrajetóriarelativamentereta.

Oritmoquerepetidamenteameaçouprovocaradissoluçãodosgrandesmonopóliosdepoder e terras foimodificado e acabou se rompendo apenas namedida em que, com acrescentedivisãodefunçõesnasociedade,amoeda,enãomaisaterra,tornou-seaformadominantedepropriedade.Sóentãoéqueograndemonopóliocentralizado,aopassardasmãos de um único soberano ou de um pequeno círculo para o controle de um círculomaior,emvezdesefragmentaremgrandenúmerodeáreasmenores,comoocorreuacadaavançodafeudalização,sofreuumalentatransformação,convertendo-se,centralizadoqueera, em instrumento da sociedade funcionalmente dividida como um todo e, acima detudo,noórgãocentraldoquechamamosdeEstado.

Oaumentodousodamoedaeda troca, juntamentecomas formaçõessociaisqueasempregavam, manteve uma relação recíproca permanente com a forma e odesenvolvimentodopodermonopolistadentrodeumaáreaparticular.Essasduassériesdefenômenos,ementrelaçamentoconstante,impeliram-semutuamenteparacima.Aformaeodesenvolvimentodosmonopóliosdepoderforaminfluenciadosdetodosos ladospeladiferenciaçãodasociedade,oaumentodoempregodamoedaeaformaçãodeclassesquea ganhavam e possuíam. Por outro lado, o sucesso da própria divisão do trabalho, aproteçãoderotasdecomércioemercadosemgrandesáreas,apadronizaçãodacunhagemedetodoosistemamonetário,agarantiadaproduçãopacíficacontraaviolênciafísicaeumaabundânciadeoutrasmedidasdecoordenaçãoeregulação,dependiamfortementedaformação de grandes instituições monopolistas centralizadas. Quanto mais, em outraspalavras, os processos de trabalho e a totalidade de funções na sociedade se tornavamdiferenciados,maislongasemaiscomplexasseestendiamascadeiasdeaçõesindividuaisque teriamque se interligar para que cada ação preenchesse sua finalidade social,maisclaramente emergia uma característica específica do órgão central: seu papel comocoordenador e regulador supremo das configurações funcionalmente diferenciadas emgeral. A partir de certo grau de diferenciação funcional, a complexa teia de atividadeshumanas inter-relacionadas simplesmente não podia continuar a crescer, ou sequerfuncionar, sem órgãos de coordenação em um nível correspondentemente alto deorganização. Note-se que esse papel não faltou de todo nas instituições centrais desociedades de organizaçãomais simples emenos diferenciadas.Atémesmo sociedadesfrouxamente organizadas, como em muitos Estados autárquicos dos séculos IX e X,precisaram,emcertascondições,deumcoordenador supremo.Seum inimigopoderoso

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ameaçava de fora, tornando necessária a guerra, era preciso que houvesse alguém paraasseguraracolaboraçãodosmuitoscavaleiros,paralhescoordenarasatividadesetomaras decisões finais. Nessa situação, emergia com mais clareza a interdependência dosmuitosgovernantesdispersos.Todososindivíduosficariamameaçadosseoexércitonãoconseguisse agir em comum. E uma vez que, nessa situação, aumentavaconsideravelmenteadependênciadetodosfaceaumgovernantecentral,orei,omesmoaconteciacomsua importânciaepodersocial—contantoqueelecumprissesuafunçãosocial,contantoquenãofossederrotado.Mas,quandodesapareciaaameaçaexternaouapossibilidadedeexpansão,tornava-serelativamentetênueadependênciadeindivíduosegruposfaceaumcentrocoordenadorereguladorsupremo.Essafunçãosomentesetornouo trabalho permanente, especializado, do órgão central quando a sociedade, como umtodo, se mostrou mais e mais diferenciada, quando sua estrutura celular, lenta masincessantemente, formounovas funções, novos grupos profissionais e novas classes. Sóentãoosórgãos centrais reguladores e coordenadoresnecessáriospara amanutençãodetodaa teia social se tornaram tão indispensáveisque, embora alteraçõesna estruturadepoder pudessem substituir seus ocupantes emesmo suas organizações, elas nãopodiamdissolvê-las,comoantesacontecera,nocursodafeudalização.

17.A formação de órgãos centrais de forte estabilidade e especialização em grandesregiões constituiu umdos aspectosmais notáveis da história ocidental.Conforme antesdissemos, houve órgãos centrais de algum tipo em todas as sociedades. Mas como adiferenciação e a especialização de funções sociais atingiram um nível mais alto noOcidentedoqueemqualqueroutrasociedadenaTerra—ecomoemoutrasregiõeselassó começaram a atingir esse nível através do impulso dado pelo Ocidente —, foi noOcidentequeosórgãoscentraisespecializadosatingiramumgrauatéentãodesconhecidode estabilidade. Não obstante, os órgãos centrais e seus funcionários não obtiveramnecessariamente o poder social correspondente à sua crescente importância comocoordenadoresereguladoressociaissupremos.Caberiasuporque,comacentralizaçãoemmarchaeocontroleesupervisãomaisrigorososdetodooprocessosocialporautoridadesestáveis,sealargasseafendaentregovernantesegovernados.Ocursodahistória,porém,mostraumquadrodiferente.AhistóriadoOcidentecertamentenãocarecedefasesemqueos poderes da autoridade central foram tão grandes e amplos que podemos falar, comalguma justiça, em hegemonia de governantes centrais isolados. Mas exatamente nahistória mais recente de muitas sociedades ocidentais houve também fases em que, adespeito da centralização, o controle das próprias instituições centralizadas era tãodispersoquesetornavadifícildistinguirclaramentequemeramosgovernantesequemosgovernados. Variava a liberdade de decisão investida nas funções centrais. Às vezes,aumentava; assim, as pessoas que exerciam essas funções adquiriam o aspecto de“governante”.Ocasionalmente,diminuía,semcentralização,ouaimportânciadosórgãoscentrais,comocentrosmaiselevadosdecoordenaçãoeregulação,erareduzida.Emoutraspalavras,nocasodosórgãoscentrais,comoaliásnotocanteatodasasdemaisformaçõessociais, duas características precisam ser distinguidas: a função na rede humana a quepertencemeopodersocialinerenteaessafunção.Oquechamamosde“governo”nadamaisé,nasociedadealtamentediferenciada,doqueopodersocialespecíficocomoqualcertasfunções,acimadetudoasfunçõesbásicas,investemseusocupantesemrelaçãoaosrepresentantes de outras funções. O poder social, contudo, é determinado, no caso dasmaiselevadas funçõescentraisdeumasociedadealtamentediferenciada,exatamenteda

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mesma maneira que todos os mais: ele corresponde — se essas funções não estãovinculadasaumcontrolepermanentedeumpodermonopolistahereditárioindividual—exclusivamente ao grau de dependência das várias funções interdependentes entre si.Ocrescimentodo“poder”defuncionárioscentraisconstitui,emsociedadescomaltadivisãode funções, uma manifestação do fato de que, nessa sociedade, está aumentando adependência de outros grupos e classes face a um órgão supremo de coordenação eregulação. Uma queda no último aparece-nos como uma limitação do primeiro. Nãoapenas os primeiros estágios da formação de Estados, que são fundamentais para opresenteestudo,mas tambémparaahistóriacontemporâneadaconfiguraçãodeEstadosno Ocidente, oferecem exemplos suficientes de tais mudanças no poder social dosfuncionários centrais. Todos eles constituem indicações bastante seguras de mudançasespecíficasnosistemadetensõesnasociedadeemgeral.Nesteparticular,maisumavez,por baixo de todas as diferenças entre as estruturas sociais, encontramos certosmecanismosdeentrelaçamentosocialque—pelomenosnassociedadesmaiscomplexas— tendem de modo muito geral para a redução ou o aumento do poder social dasautoridades centrais. Seja a nobreza e a burguesia, ou a burguesia e o proletariado, ousejam,emconjuntocomessasdivisõesmaiores,umcírculogovernantemenor,comoascoteries rivais na corte do príncipe ou no aparelho partidário ou militar supremo, queformam os dois pólos do eixo de tensões decisivo na sociedade numa dada época, ésempre um conjunto muito bem-definido de relações de poder social que fortalece aposiçãodaautoridadenocentro,eumconjuntodiferentequeadebilita.

Aqui se faz necessário estudar, brevemente, a dinâmica da configuração humana quedeterminaopoderdaautoridadecentral.OprocessodecentralizaçãosocialnoOcidente,particularmente na fase em que estavam sendo formados os “Estados”, permaneceráincompreensível, tal como o próprio processo civilizador, enquanto as regularidadeselementaresdadinâmicadasconfiguraçõesforemignoradascomomeiosdeorientaçãoecomoguiasparaopensamentoeasobservações.Nasseçõesprecedentes,mostramosessa“centralização”,ouformaçãodeEstados,dopontodevistadalutapelopoderentreváriasCasas e domínios de príncipes, isto é, do ponto de vista do que hoje chamaríamos de“assuntos externos” desses domínios. Neste momento, coloca-se o problemacomplementar: temos a tarefa de estudar os processos constitutivos da configuraçãohumanadentrodeumadasunidadesqueconferemàautoridadecentral—emcomparaçãocomafaseprecedente—umpoderedurabilidadeespeciaise,dessaforma,dotamtodaasociedade com a forma de “Estado absolutista”. Na realidade histórica, esses doisprocessos — mudanças de poder entre classes dentro de uma mesma unidade, edeslocamentos no sistema de tensões entre unidades diferentes — constantemente seentrelaçam.

Nocursodalutaentrediferentesdomíniosterritoriais,umaúnicaCasaprincipesca—conforme mostramos acima— supera, lentamente, todas as demais. Assume, assim, afunçãodereguladorasupremadeumaunidademaior,masnãocriaessafunção.Apropria-se dela em virtude do tamanho de suas posses, acumuladas no curso das lutas, e docontrolemonopolistaqueexercesobreoexércitoea tributação.A funçãopropriamenteditaderiva sua formaepoderdacrescentediferenciaçãode funçõesna sociedadecomoumtodo.Desseaspectoparece,àprimeiravista, inteiramenteparadoxalqueosuserano,nessa fase primitiva da formação doEstado, venha a conquistar um poder social assim

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enorme.Issoporque,desdeosfinsdaIdadeMédia,comorápidoaumentodadivisãodefunções,amonarquiatornou-secadavezmaisdependentedeoutrasfunções.Precisamentenessaépoca,ascadeiasdeaçãobaseadasnadivisãodefunçõescomeçaramaassumirumalcanceeumadurabilidadequenãocessarammaisdecrescer.Aautonomiadosprocessossociais,acaracterizaçãodequemdetémaautoridadecentralcomoumfuncionário,oqueveio a receber expressão institucional mais clara após a Revolução Francesa, são bemmais importantes nessa época do que na Idade Média. A dependência dos senhorescentraisfaceàreceitageradaporseusdomíniosconstituiuumaclaraindicaçãodessefato.LuísXIVestavaincomparavelmentemaispresoaessavastaeautônomarededecadeiasdeaçõesdoque,por exemplo,CarlosMagno.Como, então,ogovernante central nessafase teve uma tal liberdade de decisão e um tal poder social que nos acostumamos achamá-lodegovernante“absoluto”?

Nãoeraapenasocontrolemonopolistadopodermilitardopríncipequemantinhaemseus lugares as demais classes no território e, especialmente, os poderosos gruposdirigentes. Devido a uma constelação social peculiar, nessa fase a dependência dessesgruposfaceaumcoordenadorereguladorsupremodaestrutura—edesuastensões—eratãograndeque,querendoounão,elesrenunciaramdurantemuitotempoalutarpelocontroleeaparticipardasdecisõesmaisimportantes.

Essaconstelaçãopeculiarnãopodesercompreendidaamenosque levemosemcontauma característica especial dos relacionamentos humanos que estavam surgindo com acrescentedivisãodefunçõesnasociedade:suaambivalência,declaradaou latente.Nasrelações entre indivíduos, e também entre diferentes estratos funcionais,manifestava-semais fortemente uma dualidade ou mesmo multiplicidade de interesses específicos, namesmamedidaemqueseampliavaeadensavaainterdependênciasocial.Nessasituação,todas as pessoas, todos os grupos estados ou classes eram, de alguma maneira,dependentesunsdosoutros.Eramamigos,aliadosouparceirosempotencial;e,aomesmotempo, adversários, concorrentes ou inimigos em potencial. Em sociedades sujeitas àeconomia de troca, observam-se ocasionalmente inequívocos relacionamentos negativosdeinimizadepuraetotal.Quandonômadesinvademumterritóriocolonizado,nãoprecisahaveremsuas relaçõescomoscolonosomenor traçodedependência funcionalmútua.Entreessesgrupos,existeumainimizadepuraatéamorte.Muitomaiornessassociedades,também, é a possibilidade de relacionamentos de dependência mútua, clara e semcomplicações,amizadessemreservas,alianças, relacionamentosdeamorouserviço.Nacoloração peculiar (em preto-e-branco) de numerosos livros medievais, que comfreqüência em nada mais falam do que em bons amigos ou vilões, manifesta-se semmatizesamaiorsusceptibilidadedasociedademedievalfacearelacionamentosdessetipo.Semdúvida,nesseestágio,ascadeiasde interdependência funcionaleramrelativamentecurtas—porissoasrápidasmudançasdeumextremoaoutro,eafáciltransformaçãodeamizade firme em inimizade violenta, ocorriam commaior freqüência. Tornando-se osinteresses e funções sociais cada vezmais complexos e contraditórios, encontramos nocomportamentoesentimentosdaspessoasumacisãopeculiar,acoexistênciadeelementospositivosenegativos,umamisturadeafetoeantipatiamútuosemproporçõesenuançasvariáveis.Aspossibilidadesdeinimizadepura,inequívoca,diminuem;eseevidenciamaisemaisoquantoos atos cometidos contraumadversário ameaçam tambéma existênciasocialdequemosperpetra,perturbandoassimomecanismointeirodascadeiasdeatos,

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dasquaistodossãopartes.Serianecessáriofazerumadigressãomuitograndeparaestudaremdetalhes essaambivalênciade interesses, que é fundamental, suas conseqüências navidapolíticaounaconstituiçãopsicológicadoindivíduo,bemcomosuasociogêneseemrelaçãoàdivisãodefunçõesemprogresso.Masopoucoquejásedisseacimamostraqueela foi uma das características estruturais mais importantes das sociedades altamentedesenvolvidas,eumfatordealtarelevâncianamodelaçãodeumacondutacivilizada.

Cada vez mais ambivalentes, com a crescente divisão de funções, tornaram-se asrelações entre as diferentes unidades de poder. As relações entre os Estados de nossaprópria época, acima de tudo na Europa, oferecem um claro exemplo nesse particular.Mesmoqueaintegraçãoedivisãodefunçõesentreelesnãotenhamaindaavançadotantoquantoadivisãodefunçõesdentrodeles,aindaassim,qualquerchoquemilitarameaçadetal modo essa rede altamente diferenciada de nações como um todo que, no fim, ovencedorseencontrariaemumaposiçãoseriamenteabalada.Elenãopodemais—nemquer—despovoaredevastaropaís inimigoo suficienteparanele instalarpartede suaprópriapopulação.Éobrigado,nointeressedavitória,adestruirtantoquantopossívelopoderioindustrialdoinimigoe,aomesmotempo,nointeressedesuaprópriapaz,atentar,dentrodecertoslimites,preservaroureconstruiresseaparatoindustrial.Podeconquistarpossessões coloniais, proceder à revisão de fronteiras, obter mercados de exportação evantagens econômicas ou militares, em suma, pode promover o aumento geral de seupoder.Mas, exatamenteporquenas lutasde sociedadesbastante complexascada rival eadversárioé,aomesmotempo,umparceironalinhadeproduçãodamesmamaquinaria,todamudançasúbitaeradicalnumsetordessaredeinevitavelmenteprovocaperturbaçãoemudançasemoutro.Parasermosexatos,nãodeixadeoperar,poressarazão,omecanismoda competição e do monopólio. Mas os conflitos inevitáveis tornam-se cada vez maisarriscadospara todooprecário sistemadenações.Ainda assim, atravésdessasprópriastensões e suas descargas, a configuração lentamente se move para uma forma maisinequívocadehegemoniaeparaumaintegração—talvez,noinício,dotipofederativo—deunidadesmaioresemtornodecentroshegemônicosespecíficos.

Damesmamaneira,as relaçõesentrediferentesclassessociaisdentrodeumdomíniotornam-se, com o avanço da divisão de funções, cada vez mais ambivalentes. Nestasituação, também,numespaçomaisrestrito,gruposcujaexistênciasocialémutuamentedependente, através da divisão de funções, lutam por certas oportunidades. Eles são,simultaneamente,adversárioseparceiros.Hásituaçõesextremasemqueaorganizaçãodasociedadefuncionatãomal,eas tensõesnelase tornamtãofortes,quegrandepartedaspessoaseclassesquenelavivem“nãoseimportamais”.Nessasituação,oladonegativodas relações ambivalentes, a oposição de interesses, pode dominar a tal ponto o ladopositivo,ouseja,acomunidadede interessesquesurgeda interdependênciade funções,que ocorrem violentas descargas de tensões, bruscasmudanças no centro de gravidadesocialeareorganizaçãodasociedadenumabasesocialmodificada.Atéquechegueessasituaçãorevolucionária,asclassesligadasentresipeladivisãodefunçõessãolançadasdeum lado para o outro, por seus interesses diferentes e contraditórios. Oscilam entre odesejo de obter grandes vantagens sobre seus adversários sociais e omedo de arruinartodo o aparato da sociedade, de cujo funcionamento depende sua existência social. E éessaaconstelação,aformaderelacionamentos,queforneceachaveparaacompreensãodasmudançasnopodersocialdosfuncionárioscentrais.Seacooperaçãoentrepoderosas

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classes funcionaisnãoprovocadificuldades especiais, se seus conflitosde interessenãosãosuficientementefortes,paraesconderdelassuadependênciamútuaeparaameaçarofuncionamento de toda a máquina social, o raio de ação da autoridade central se vêrestringido. Mas ele tende a aumentar quando cresce a tensão entre certos gruposdirigentesdasociedade.Atingeonívelótimoquandoamaioriadasclassesfuncionaisestáainda tão interessada em preservar sua existência social na forma tradicional que temequalquerperturbaçãomaiornoaparatocomoumtodoeaconcomitantedesorganizaçãodesuaprópriaexistência,enquanto,aomesmotempo,oconflitoestruturaldeinteressesentregrupospoderososétãofortequeumasoluçãoconciliatóriavoluntariamenteorganizadasemostra difícil de se alcançar, e escaramuças sociais irritantes, sem nenhum resultadodecisivo,tornam-seumaspectopermanentedavidasocial.Issoacontecedeformaamaisaguda nas fases em que distintos grupos ou classes conseguiram aproximadamente omesmopoderesemantêmemequilíbriorecíproco,aindaque,comonocasodanobrezaeda burguesia, ou da burguesia e do proletariado, possam estar institucionalmente emposição muito desigual. Aquele que, nessa constelação, numa sociedade cansada eperturbada por lutas inconclusivas, está em condições de obter poder sobre os órgãossupremosderegulaçãoecontrole, tempossibilidadede imporumasoluçãoconciliatóriaentreos interessesdivididos,afimdepreservararepartiçãosocialdepodervigente.Osvariadosgruposde interessenãopodemcaminhar juntosnemseparados,oqueos tornadependentesdocoordenadorcentralsupremo,paracontinuaremaexistirsocialmente,numgraumuitodiferentedoquenasituaçãoemqueosinteressesinterdependentessãomenosdivergenteseémais fácilobteracordosdiretosentreeles.Quandoasituaçãodogrossodasváriasclassesfuncionais,oupelomenosdeseusgruposdirigentesativos,nãoéaindatãomáqueelassedisponhamapôremriscosuaexistênciasocial,eaindasesentemtãoameaçadasumapelaoutraevêemopoder tãouniformementedistribuídoentreelasquecadaumatemeamenorvantagemdooutrolado,elasseatammutuamenteasmãos:istoconfereàautoridadecentralmelhorespossibilidadesdoquequalqueroutraconfiguraçãoda sociedade. Confere aos investidos de autoridade, sejam quem forem, o raio de açãoótimoparadecisão.Narealidadehistórica,sãomuitasasvariaçõesdessaconfiguração.Ofatodequeapenassurjabemdelineadaemsociedadesaltamentediferenciadas,enquantoemsociedadesmenos interdependentes,commenordivisãodefunções,sejamosucessomilitar e o poder que formam a base de uma forte autoridade central sobre vastosterritórios—istojáfoibemexplicadoacima.Mesmoemsociedadesmaiscomplexas,osucessonaguerraouemconflitoscomoutraspotênciasindubitavelmentedesempenhaumpapel decisivo para as autoridades centrais fortes.Mas, se por ummomento ignoramosessas relações externas da sociedade e sua influência sobre o equilíbrio interno, eperguntamos como é possível haver uma forte autoridade central numa sociedadealtamentediferenciada,adespeitodeumainterdependênciadetodasasfunçõeselevadaeuniformemente distribuída, sempre nos encontramos defronte daquela constelaçãoespecíficaque,nestemomento,podeserenunciadacomoumprincípiogeral:Ahoradaforteautoridadecentralnasociedadealtamentediferenciadasoaquandoaambivalênciadeinteressesdosmaisimportantesgruposfuncionaissetornatãogrande,eopoderétãouniformementedistribuídoentreeles,quenãopodehavernemumasoluçãoconciliatóriadecisivanemumconflitodecisivoentreeles.

É a uma configuração desse tipo que se aplica a expressão “mecanismo régio”. Naverdade,aautoridadecentralalcançaopodersocialótimodamonarquia“absoluta”aose

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conjugar com essa constelação de forças sociais. Mas esse mecanismo equilibradorseguramente não é a única força motriz sociogenética da monarquia mais poderosa.Encontramo-laemsociedadesmaiscomplexas,comoofundamentoparaogovernomuitofortedeumúnicohomem,qualquerquepossaseroseutítulo.Ohomemouhomensqueocupam o centro sempremantêm o equilíbrio entre gruposmaiores oumenores que secontrabalançamcomoantagonistasinterdependentes,simultaneamentecomoadversárioseparceiros.Essetipodeconfiguraçãopode,àprimeiravista,parecerextremamentefrágil.Arealidadehistórica, porém, demonstra comquepoder irresistível e inescapável ela podemanter em servidão os indivíduos que a constituem— até que, finalmente, a contínuamudança de seu centro de gravidade, que lhe acompanha a reprodução através degerações, torna viáveis mudanças mais ou menos violentas nos laços mútuos entrepessoas,dandoassimorigemanovasformasdeintegração.

18.Asregularidadesdadinâmicasocialcolocamogovernantecentraleamáquinadeadministraçãonumasituaçãocuriosa,eaindamaisnamedidaemqueelaeseusórgãossetornammaisespecializados.Ogovernantecentraleseusauxiliarespodemteralcançadootopodaadministraçãocentral comopropronentesdeuma formação socialparticular, oupodem ter sido recrutadosprincipalmente emdeterminada classeda sociedade.Mas tãologoalguématingeumaposiçãonamáquinacentraleaocupaporalgumtempo,elalheimpõe suas próprias regularidades. Em graus variáveis, distancia-o de todos os demaisgruposeclassesdasociedade,mesmodaquelesqueolevaramaopoderenosquais temsua origem. A função específica cria para o governante central de uma sociedadediferenciadainteressestambémespecíficos.Constituifunçãosuasuperintenderacoesãoesegurançadotododasociedadetalcomoelaexisteeporissomesmo,preocupa-omanteroequilíbriodeinteressesdosdemaisgruposfuncionais.Essatarefa,queelesimplesmenteenfrenta na experiência diária e que lhe condiciona toda a visão da sociedade— essatarefa,repetimos,bastaparaafastá-lodetodososoutrosgruposdefuncionários.Maseletambém tem, como qualquer pessoa, de preocupar-se com sua própria sobrevivênciasocial. Precisa trabalhar para que seu poder social não seja reduzido, e, se possível,aumente.Nestesentido,eletambémépartenojogodasforçassociais.Namedidaemqueseus interesses, pela peculiaridade de sua função, estão vinculados à segurança e aofuncionamentosuavede todaaestruturasocial,ele temquefavoreceralguns indivíduosnaestrutura,vencerbatalhasenegociaralianças,afimdefortalecersuaposiçãopessoal.Mas, nesta situação, os interesses do governante central jamais se tornam inteiramenteidênticosaosdequalqueroutraclasseougrupo.Podem,éverdade,convergirparaosdeumgrupoououtro,masseeleseidentificardemaiscomumdeles,seadistânciaentreeleequalquergrupodiminuirdemais,suaprópriaposiçãosocialcedooutardeseráameaçada.Istoporquesuaforçadepende,conformenotamosantes,porumladodapreservaçãodeumcertoequilíbrioentreosdiferentesgruposedeumcertograudecooperaçãoecoesãoentreosdiferentes interessesdasociedade,mas também,poroutro lado,dapersistênciaentreelesdetensõeseconflitosnítidosepermanentesdeinteresses.Ogovernantecentralsolapasuaprópriaposiçãoaousaropoderecapacidadededarapoio,dequedispõe,paratornarumgrupoclaramentesuperioraoutros.Adependênciadeumcoordenadorsupremoe,portanto,suaprópriadominaçãofuncional,necessariamentediminuiquandoumúnicogrupoouclassedasociedadeprevaleceinequivocamentesobretodososoutros,amenosque esse próprio grupo esteja dilacerado internamente.Aposiçãodogovernante centraltambémédebilitadaesolapadaseas tensõesentreosprincipaisgruposdasociedadese

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reduzirem a tal ponto que eles possam resolver entre si suas diferenças, e unir-se paraempreenderaçõesemcomum.Issoéverdadepelomenosemtemposderelativapaz.Emtempodeguerra,quandoo inimigoexternode todaasociedade,oupelomenosdeseusgruposmais importantes, temque ser repelido, a redução das tensões internas pode serinócuaemesmoútilparaogovernantecentral.

Ou,dizendoomesmoempoucaspalavras,ogovernantecentralesuamáquinaformamna sociedade um centro de interesses próprios. A posição que ocupam freqüentementeaconselhaumaaliançacomosegundogrupomaispoderoso,enãoumaidentificaçãocomoprincipal;eseusinteressesexigemtantoumacertacooperaçãoquantoumacertatensãoentreaspartesdasociedade.Suaposição,portanto,nãodependesódanaturezaeforçadaambivalência entre as diferentes formações que constituem a sociedade; seu própriorelacionamentocomcadaumadessasformaçõesé,já,ambivalente.

Émuitosimplesomodelobásicodesociedadequesurgedessamaneira.Ogovernanteúnico, o rei, é sempre um indivíduo incomparavelmente mais fraco do que toda asociedade, da qual é o governante ou primeiro servidor. Se essa sociedade inteira, oumesmoparteconsideráveldela, levantar-secontraele, ele ficará impotente, como ficaráqualquer pessoa ante a pressão de uma cadeia inteira de pessoas interdependentes. Aposiçãoexcepcional,aabundânciadepoderinerenteaumaúnicapessoanaqualidadedegovernante central, pode explicar-se, conforme dissemos antes, pelo fato de que osinteressesdaspessoasnasociedadesãoparcialmenteiguaiseparcialmenteopostos,dequeseus atos são simultaneamente ajustados e contrários às necessidades de cada um, etambém pela ambivalência fundamental das relações sociais nas sociedades complexas.Hácondiçõesemqueoladopositivodessasrelaçõestorna-sedominanteou,pelomenos,nãoéreprimidopelonegativo.Masnocaminhoparaadominaçãopeloladonegativoháfasesdetransição,nasquaisosantagonismoseconflitosdeinteressestornam-setãofortesque a interdependência contínuade ações e interesses éobscurecidana consciênciadosparticipantes,massemquepercaminteiramentesuaimportância.Aconstelaçãoquesurgedessaformajáfoidescrita:distintaspartesdasociedadesemantêmaproximadamenteemequilíbrio, em termos de poder social; as tensões entre elas encontram expressão numasérie de escaramuçasmaiores oumenores; nenhum dos lados pode vencer e destruir ooutro;nãopodemsolucionarsuasdivergênciasporquequalquerfortalecimentodeumladoameaçará a existência social do outro; e não podem separar-se por inteiro, porque aexistênciasocialdeamboséinterdependente.Eéessaasituaçãoquedáaorei,aohomemno topo, aogovernante central, opoderótimo.Eque lhemostra inequivocamenteondeestãoseusinteressesespecíficos.Atravésdessainteraçãodeinterdependênciasfortesedepoderosos antagonismos, surge um aparelho social que poderia ser considerado umainvenção perigosa, simultaneamente importante e cruel, se fosse obra de um únicoengenheirosocial.Talcomotodasasformaçõessociaisnessasfasesdahistória,contudo,esse “mecanismo régio”, que atribui a um único homem um poder extraordinário naqualidade de coordenador supremo, surge muito devagar e sem constituir intenção deninguémnocursodosprocessossociais.

Esse mecanismo pode ser trazido à mente da forma a mais vívida e simples seimaginarmosumcabo-de-guerra.Gruposeforçassociais,quesemantêmreciprocamentecontrolados,puxamacorda.Umladoempregatodaaforçacontraooutro,ambospuxamincessantemente,masnenhumconseguedeslocarmuitoooutrodesuaposição.Senessa

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situaçãodetensãomáximaentregruposquepuxamamesmacordaemdireçõesopostas,masaindaassimestãoligadosporela,surgeumhomemquenãopertençainteiramenteaqualquerdosgruposcontendores,quetenhaapossibilidadedelançarsuaforçapessoaloradeumlado,oradeoutro,aomesmotempotomandograndecuidadoparanãopermitirqueatensãosereduzaouquequalquerdosladosobtenhaumaclaravantagem,—entãoeleéa pessoa que realmente controla toda essa tensão.Opodermínimo à disposição de umúnico homem, que sozinho não poderia pôr nenhumdos grupos emmovimento e, comcerteza,nuncaosdois juntos, é suficiente,mediante esse arranjode forças sociais, paramovero todo.E é clara a razãoporque é suficiente.Nessemecanismoequilibrado, háforçasenormes,mascontroladas.Semalguémqueas liberte, elasnãopoderãoproduzirqualquerefeito.Aotoquedeumdedo,oindivíduoliberaasforçasdeumlado,une-seàsforças latentes que operam emuma direção, demodo que elas obtenhamuma pequenavantagem. Essa ação permite que elas se manifestem. Esse tipo de organização socialseria,porassimdizer,umausinadeforçaqueautomaticamentemultiplicaomenoresforçodapessoaqueacontrola.Maséprecisoumamanipulaçãoextremamentecautelosadessamáquina para que ela funcione durante qualquer período de tempo sem enguiçar. Ohomemnocontroleestásujeitoàssuasregularidadesecompulsõesexatamentenomesmograuquetodososdemais.Sualiberdadededecidirémaiorqueadeles,maseledependefortementedaestruturadamáquina,eseupoderétudo,menosabsoluto.

Oqueacimasedissenadamaisédoqueumesboçoesquemáticodoarranjodeforçassociais que confere poder ótimo ao governante central. Este croqui, porém, tambémmostra claramente a estrutura fundamental de sua posição social. Não por acaso, nãoquando nasce uma forte personalidade governante, mas apenas quando uma estruturasocialespecíficacriaaoportunidadeéqueoórgãocentralconsegueaqueleoptimumdepoderqueemgeralencontraexpressãonas fortesautocracias.A liberdaderelativamenteampladetomardecisões,abertadessamaneiraaodirigentecentraldesociedadesgrandesecomplexas,surgepelofatodeeleestarnomeiodofogocruzadodastensõessociais,desercapazdejogarcominteresseseambiçõesquesemovememdireçõesdiferenteseseenfrentamemseudomínio.

Evidentemente, este esboço simplifica até certo ponto o estado real de coisas. Oequilíbrionocampodetensões,queconstituitodasassociedades,surgesempreemredeshumanasdiferenciadas,atravésdacolaboraçãoedascolisõesdegrandenúmerodegruposeclasses.Aimportânciadatensãomultipolarparaaposiçãodogovernantecentral,porém,nãoédiferentedaqueladatensãobipolaracimadelineada.

Osantagonismosentrediferentespartesdasociedadecertamentenãoassumemapenasaforma de um conflito consciente. Planos e metas conscientemente adotados são muitomenos decisivos para produzir tensões do que a dinâmica anônima das configurações.Dandoumexemplo,foimuitomaisoavançodamonetarizaçãoecomercialização,doqueos ataques deliberados promovidos pelos círculos urbanos e burgueses, que causou odeclíniodossenhoresfeudaisaofimdaIdadeMédia.Mascomoquerqueosantagonismosquenascemcomoavançodacadeiamonetáriasepossamexpressarnosplanosemetasdepessoasougrupos,comeles tambémcrescea tensãoentreasclassesurbanas,queestãoganhando força, e os senhores da terra, que estão decaindo funcionalmente. Com aampliaçãodessacadeiaedessa tensão, contudo,aumenta tambémoespaçodemanobradaqueles que, tendo ganho a luta entre unidades competitivas inicialmente livres,

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transformaram-se em governantes centrais do todo — os reis —, até que finalmente,equilibrados entre a burguesia e a nobreza, elas atingem sua força ótima na formadamonarquiaabsoluta.

19. Perguntamos acima como é possível que uma autoridade central, com poderabsoluto,surjaesobrevivanumasociedadediferenciada,adespeitodofatodequeelanãoé menos dependente do funcionamento de todo o mecanismo do que os ocupantes deoutrasposições.Omodelodomecanismorégiofornecearesposta.Nãosãomaisapenasopodermilitarouotamanhodaspropriedadesereceitaquepodemexplicaropodersocialdo suserano nessa fase, mesmo que nenhum deles possa funcionar sem esses doiscomponentes. Isso porque, para que os suseranos de sociedades complexas atinjam opoder máximo que tiveram na era do absolutismo, é também necessário ocorrer umadistribuiçãoespecialdeforçasnasociedade.

Naverdade,ainstituiçãosocialdamonarquiachegaaseumaiorpodernafasehistóricaemqueumanobrezaemdecadênciajáestáobrigadaacompetirdemuitasmaneirascomgrupos burgueses em ascensão, sem que qualquer um dos lados possa derrotarinapelavelmenteooutro.AaceleraçãodamonetarizaçãoedacomercializaçãonoséculoXVIdeuaosgruposburguesesumestímuloaindamaioreempurroufortementeparatrásogrosso da classe guerreira, a velha nobreza. Ao fim das lutas sociais nas quais essaviolenta transformação da sociedade encontrou expressão, crescera consideravelmente ainterdependênciaentrepartesdanobrezaedaburguesia.Anobreza,cujafunçãoeformasocialemsiestavampassandoporumatransformaçãodecisiva,tinhanessemomentoqueenfrentarumterceiroestado,cujosmembroshaviamse tornado,emparte,mais fortesemais socialmente ambiciosos do que até então. Numerosas famílias da velha nobrezaguerreira se extinguiram, muitas famílias burguesas assumiram caráter aristocrático e,dentro de algumas gerações, seus próprios descendentes defendiam os interesses danobreza transformada contra os da burguesia, interesses que, nessa ocasião,acompanhandoaintegraçãomaisestreita,erammaisinescapavelmenteopostosentresi.

Oobjetivodessaclasseburguesa,oupelomenosdeseusprincipaisgrupos,nãoera—como o de partes substanciais da burguesia em 1789 — eliminar a nobreza comoinstituição social.Omais alto objetivo do burguês enquanto indivíduo era, conforme jádissemosacima,obterparasiesuafamíliaumtítuloaristocrático,comosprivilégiosqueo acompanhavam. Os grupos representativos dirigentes da burguesia como um todopartiram para conquistar os privilégios e o prestígio da nobreza militar. Não queriamacabarcomanobrezacomotal,mas,nomáximo,assumir-lheolugarcomonovanobreza,suplantandooumeramentesuplementandoaantiga.Incessantemente,essegrupodirigentedo terceiro estado, anoblessede robe, insistiu no séculoXVII, emais ainda no séculoXVIII, que sua nobreza era exatamente tão boa, importante e autêntica como aconquistada pela espada. A rivalidade assim expressada certamente não semanifestavaapenas em palavras e ideologias. Por trás dela, travava-se uma luta mais ou menosdisfarçadae semdecisãoporposiçõesdepoder evantagensentreos representantesdosdoisestados.

Perde-seacompreensãodaconstelaçãosocialquandosepartedopressupostodequeaburguesia dessa fase seria aproximadamente amesma formação social de hoje ou pelomenosdeontem—se,emoutraspalavras,seconsideraro“mercadorindependente”como

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o representante típico e socialmente mais importante da burguesia. O exemplo maisrepresentativo e socialmente influente da burguesia nos séculosXVII eXVIII foi, pelomenosnosmaiorespaíseseuropeus,oservidor,declassemédia,dospríncipesoureis,istoé, um homem cujos antepassados próximos ou distantes foram realmente artesãos oumercadores, mas que, nessemomento, ocupava um cargo quase oficial namáquina dogoverno.Antesque as classes comerciais formassemosprincipais gruposdaburguesia,havia,notopodoterceiroestado—parautilizaralinguagemdehoje—,osburocratas.

Aestruturaecaráterdoscargosoficiaisvariavamprofundamentesegundoospaíses.Navelha França, o representante mais importante era uma mistura peculiar de rentier eservidor, um homem que comprara um cargo no serviço do Estado como propriedadepessoal e, por assim dizer, privada ou, o que equivalia, o herdara do pai.Graças a seucargooficial,desfrutavadecertonúmerodeprivilégiosbemespecíficos,—porexemplo,muitos desses cargos estavam isentos do pagamento de impostos e o capital investidorendiajurossobaformadeemolumentos,salárioououtrotipoderendadecorrentedeseuexercício.

Foram homens desse tipo, homens da “robe” que, durante o ancien régimerepresentaramaburguesianasassembléiasdosestados,equeemgeral,mesmoforadasassembléias, eram seus porta-vozes, os expoentes de seus interesses perante os outrosestadoseosreis.Opodersocialqueoterceiroestadoacasodesfrutasseseexpressavanasexigênciasetáticaspolíticasdessegrupodirigente.Indubitavelmente,osinteressesdessaclasse superior burguesa nem sempre eram idênticos aos de outros grupos burgueses.Comumatodoseles,porém,haviauminteressesuperioratodososdemais:apreservaçãode seus vários privilégios. Isto porque não era só a existência social do nobre ou doservidor que os distinguia com direitos e privilégios especiais: o mercador da épocadependia igualmente deles e também as guildas de ofícios. O que quer que essesprivilégiosfossememcasosparticulares,aburguesia,namedidaemquepossuíaalgumaimportância social, foi até a segunda metade do século XVIII uma formação socialcaracterizadaemantidapordireitosespeciais,damesmamaneiraqueapróprianobreza.E,porissomesmo,chegamosaquiaumaspectoparticulardamaquinaria,emvirtudedoqual essa burguesia nunca pôde desfechar um golpe decisivo contra seu antagonista, anobreza. Poderia contestar este ou aquele privilégio especial da nobreza, mas nuncapoderia eliminar a instituição social do privilégio como tal, que tornava a nobreza umaclasse àparte, e tudo istoporque suaprópria existência social, preservar aqual era seuprincipalinteresse,eradeidênticamaneiramantidaeprotegidaporprivilégios.Sóquandoformasburguesasdeexistêncianãomaisbaseadasemprivilégiosdeclasseemergiramemnúmerocadavezmaiornotecidodasociedade,quando,comoresultado,umsetorsempremaiordasociedadereconheceuessesdireitosespeciaisgarantidosoucriadospelogovernocomoumsérioimpedimentoatodaaredefuncionalmentedivididadeprocessos,sóentãosurgiramforçassociaisquepuderamopor-sedecisivamenteànobrezaequeseesforçarampor eliminar não apenas privilégios particulares dos nobres, mas a própria instituiçãosocialdosprivilégiosaelesconcedidos.

Mas os novos grupos burgueses que agora se opunham aos privilégios como tais,puseramasmãos,sabendodissoounão,nosalicercesdasvelhasformaçõesburguesas,oestamentoburguês.Seusprivilégios,todaasuaorganizaçãocomoumdosestados,tinhamfunçãosocialapenasenquantoexistisseumanobrezaprivilegiadaemoposiçãoaela.Os

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estados eramparentes hostis ou,mais precisamente, células interdependentes damesmaordemsocial.Seumaeradestruídacomoinstituição,aoutracaíaautomaticamentee,comela,todaaordemsocial.

Naverdade,aRevoluçãode1789nãofoisimplesmenteumalutadaburguesiacontraanobreza.Atravésdela,oestadodaclassemédia—emespecialodarobe,osservidoresprivilegiados do terceiro estado e também os das velhas guildas de ofícios — é tãodestruído quanto a própria nobreza. Esse fim comum iluminou de uma só vez todo oemaranhamentosocial,aconstelaçãoespecíficadeforçasdafaseprecedente.Eservedeexemplo do que antes dissemos, em termos gerais, sobre a interdependência eambivalênciadosinteressesdecertasclassessociais,sobreomecanismoequilibradorquesurge com ela, e sobre o poder social da autoridade central. As partes politicamenterelevantesdaburguesiaquenãoconstituíamumestadoeemergiramcommuita lentidãodasmaisantigas,dessesgruposburguesesmaisantigos,estavamligadasinteiramente,emseusinteresses,açõesepensamento,àexistênciaeaoequilíbrioespecíficodeumaordembaseadanosestados.Poressarazão,emtodosessesconflitoscomanobrezae, também,claro,comoprimeiroestado,oclero,elessemprecaíam,talcomooúltimo,naarmadilhade seus interesses ambivalentes. Nunca ousaram avançar demais em sua luta com anobreza, pois isso implicava cortar a própria carne; qualquer golpe decisivo contra ela,comoinstituição,abalariatodooEstadoeaestruturasocialeporissomesmoderrubaria,comonumjogodeboliche,aexistênciasocialdaburguesiaprivilegiada.Todasasclassesprivilegiadasestavaminteressadasemnão levar longedemaisa lutaentresi,poisoqueelas mais temiam era uma sublevação profunda e umamudança de poder na estruturasocialcomoumtodo.

Mas,aomesmotempo,nãopodiamevitarinteiramenteoconflitoentresi,umavezqueseusinteresses,paralelosnumadireção,eramdiametralmenteopostosemmuitasoutras.Opoder social estava distribuído de tal maneira entre elas e tão grandes eram suasrivalidadesqueumladosesentiaameaçadopelamenorvantagemdooutroeforqualquercoisaquelhepudessedaramínimasuperioridadequefosseempoder.Emconseqüência,não havia, por um lado, falta de cortesia e mesmo de relacionamentos cordiais entremembros dos diferentes grupos, mas, por outro, suas relações, principalmente entre osprincipais grupos, permaneceram extremamente tensas durante todo o ancien régime.Todos se temiam mutuamente, todos observavam os passos dos demais com umadesconfiançaconstante,aindaquedisfarçada.Alémdomais,esseeixoprincipaldetensãoentre nobreza e burguesia estava enraizado em grande número de outros não menosambivalentes. A hierarquia oficial da máquina secular de governo mantinha umacompetiçãofrancaoulatenteporpodereprestígiocomahierarquiaclerical.Osreligiosos,por sua vez, sempre estavam, por uma razão ou outra, colidindo com este ou aquelecírculo da nobreza. Demodo que esse sistemamultipolar de equilíbrio constantementegerava pequenas explosões e escaramuças, provas sociais de força em vários disfarcesideológicosepelasrazõesasmaisdiversase,comfreqüência,inteiramenteincidentais.

Orei,ouseusrepresentantes,contudo,dirigiaecontrolavatodoomecanismo,lançandoseupesooranumadireção,oraemoutra.Eseupoder socialera tãograndeexatamenteporqueatensãoestruturalentreosprincipaisgruposnacadeiasocialerafortedemaisparapermitir que eles chegassem a um entendimento direto em seus assuntos e, assim,assumissemumaposiçãocomumedeterminadacontraeleoueles.

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Como todos sabemos, só num país, nesse período, grupos burgueses e nobresassumiramcomsucessoumatalposiçãocontraorei:naInglaterra.Fossemquaisfossemascaracterísticasestruturaisdasociedadeinglesaquepermitiramrelaxar-seatensãoentreos estados e estabelecerem-se contactos estáveis entre eles—a constelação social que,após grandes tribulações, resultou, na Inglaterra, em restrições ao poder do governantecentral,deixaclaro,maisumavez,emqueconsistemasdiferentesconstelaçõesbásicasque,emoutrospaíses,mantiveramopodersocialeoabsolutismodaautoridadecentral.

DuranteoséculoXVI,emesmoemprincípiosdoséculoXVII,tampoucofaltaram,naFrança,tentativasdeindivíduosdasorigenssociaisasmaisdiferentesparaseconcertaremcontraoaumentoameaçadordopoderreal.Todaselasfracassaram.Essasguerrasciviserevoltasrevelaramemtodaanudezcomo,mesmonaFrança,eraforteodesejodosváriosestadosderestringirospoderesdosreisedeseusrepresentantes.Masmostraramtambém,com igual clareza, como eram fortes as rivalidades e conflitos de interesses entre essesgrupos,oqueosimpediudeperseguiremcomumomesmoobjetivo.Todoselesgostariamdelimitaramonarquiaemseubenefíciopróprio,etodoseramsuficientementefortesparaimpedirqueosoutrosassimagissem.Todossemantinhamreciprocamentesobcontrolee,nofim,todosseresignaramàdependênciacomumdeumreiforte.

Emoutraspalavras,nasgrandestransformaçõessociaisquetornamosgruposburguesesfuncionalmentemaisforteseosaristocráticosmaisfracos,ocorreumafaseemqueunseoutros—adespeitodetodasastensõesentresieterceiros,enointeriordecadagrupo—se equilibram no poder social de que dispõem. Dessa maneira se estabeleceu, por umperíodomaioroumenor,aquelamáquinaquedescrevemoscomo“omecanismorégio”:aantítese entre os dois gruposprincipais era demasiadograndepara tornar provável umasolução conciliatória decisiva entre eles; e a distribuição de poder, juntamente com aestreitainterdependênciadeambos,impediaalutafinalouaclarapredominânciadeumsobreooutro.Assim,incapazesdeseunirem,incapazesdelutaremcomtodasuaforçaede vencerem, tiveram todos que deixar ao suserano as decisões que eles mesmos nãopodiamtomar.

Essemecanismo é formado demaneira cega, não planejada, no curso dos processossociais.O fato de sermais bem oumaismal controlado dependemuito da pessoa queexerce a função central. A menção de alguns fatos históricos particulares deve sersuficienteparamostrarcomooaparelhofoiformadoeexemplificaroquesedisseacimaemtermosgeraissobreomecanismorealabsolutista.

20.NasociedadedosséculosIXeX,haviaduasclassesdehomenslivres,osreligiosose os guerreiros. Abaixo delas, ficava a massa dos mais ou menos sem liberdade, quegeralmenteeramproibidosdeportararmas,nãodesempenhandoumpapelativonavidasocial,emboraaexistênciadasociedadedependessedesuasatividades.Dissemosque,nascondiçõesespeciaisdaáreafranca,asubordinaçãodosguerreiros,queemseusterritórioserampraticamentesenhoresautárquicos,àatividadecoordenadoradogovernantecentraltinhapoucaimportância.Porrazõesasmaisdiversas,eramuitomaioradependênciadosreligiososemrelaçãoaorei.AIgreja,naáreafranca,nuncaconseguiuumgrandepodersecular, como o que teve no Império.Nela, os arcebispos não se tornavam duques.Ospares eclesiásticos costumavampermanecer fora do circuito de senhores territoriais quecompetiam entre si. Por issomesmo, não erammuito fortes seus interesses centrífugos

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voltados para a debilitação do suserano. As propriedades dos religiosos espalhavam-seentre os domínios dos senhores seculares, estando eles constantemente expostos a seusataqueseusurpações.AIgreja,porconseguinte,desejavaumsuserano,umrei,quefosseforte o suficiente para protegê-la contra a violência secular. As rixas, as grandes oupequenas guerras que explodiam incessantemente por toda a região via de regra erammuitomal recebidaspelos religiososemongesque, emboramaiscompetentesnoplanomilitar emesmomais belicososdoquemais tarde se tornariam, dequalquermodonãoviviamdaguerraouparaaguerra.E,repetidamente,emtodoopaís,sacerdoteseabadesmaltratados,lesados,esbulhadosdeseusdireitos,apelavamaoreicomojuiz.

Aligaçãoforte,eapenasocasionalmenteperturbada,entreosprimeirosreisCapetoeaIgreja não foi fortuita, nem sua causa residiu exclusivamente na profunda fé pessoaldesses primeiros soberanos. Expressava também uma óbvia conjunção de interesses. Adignidade da monarquia nessa época, o que quer mais que ela pudesse ser, sempreconstituiu uma arma dos sacerdotes em seus conflitos com a classe dos guerreiros. Aconsagração, unção e coroação do rei eram influenciadas cada vezmais pelo poder dainvestiduraedocerimonialmontadospela Igreja.Amonarquiaassumiaumaespéciedecarátersagrado,tornava-se,emcertosentido,umafunçãoeclesiástica.Ofatodequeesseelo, ao contrário do que aconteceu em outras sociedades, não fosse além dos merosprimórdios da fusão de uma autoridade central mundana e eclesiástica, e logo depoisviesseaserquebrado,resultouemboamedidadaprópriaestruturadaIgrejaCristã.EssaIgrejaeramaisantigaesuaorganizaçãoestavamaisfirmementeassentadadoqueamaiorpartedosdomíniossecularesdaépoca.Possuíachefepróprio,queaspiravacadavezmaisclaramentea combinar suapreeminênciaespiritual comumasupremaciamundana,umaautoridadecentralquetranscenderiatodasasoutras.Cedooutarde,porconseguinte,umasituaçãocompetitivasurgiria,umalutapelaprimaziaentreoPapaeosenhorcentralleigodeumadadaárea.Essaluta,emtodaparte,terminoucomoPapasendorepelidoparaumaposição de predominância apenas espiritual, como caráter temporal do imperador e reiressurgindocommaisclareza,diminuindoassim,emboranãodesaparecesseporcompleto,aassimilaçãopelosmonarcasdahierarquiaeritualdaIgreja.Masofatodeterhavidoatémesmooscomeçosdeumaassimilaçãodessetipojáédignodenota—especialmentenacomparação de estruturas históricas e na explicação das diferenças entre os processossociaisemváriaspartesdomundo.

Os reis francos do Ocidente colaboraram, no início, estreitamente com a Igreja, deacordo com a fidelidade estrutural que lhes governava a função. Buscavam apoio nosegundo grupo mais forte, em seus conflitos com outro mais forte e perigoso.Nominalmente,eramossuseranosdetodososguerreiros.Mas,nosdomíniosdosoutrosgrandes senhores, eram praticamente impotentes, e mesmo em seu próprio território opoderqueexerciamsofriagrandeslimitações.AestreitaassociaçãoentreaCasaRealeaIgreja transformou embastiões damonarquia osmosteiros, abadias e bispados situadosnas terras de outros senhores territoriais, o que deixava à sua disposição parte dainfluência espiritualda Igreja em todaa região.Os reis, alémdisso, tiravamnumerosasvantagens da habilidade do clero na escrita, da experiência política e organizacional daburocraciadaIgrejaenãomenosemmatériadefinanças.Constituiumaquestãoabertaseos reisCapetodosprimeirosperíodos recebiam,alémda receitageradapor seupróprioterritório, qualquer “renda régia” efetiva, isto é, tributos de todo o reino franco. Se a

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recebiam, provavelmente não era muita coisa além do que arrecadavam em suaspropriedades. Mas uma coisa é certa: recebiam tributos de instituições da Igreja emregiões situadas fora de seus próprios domínios, como, por exemplo, a renda de umadiocese desocupada ou subsídios ocasionais em situações extraordinárias. E se algumacoisa deu à Casa Real tradicional vantagem em poder sobre as Casas concorrentes, sealgumacoisacontribuiuparaofatodeque,nessasprimeiraslutaseliminatórias,iniciadasemseupróprioterritório,osCapetofossemosprimeirosareconstruirseupoder,essafoiaaliançaentreossuseranosnominaiseaIgreja.Acimadetudo,apartirdessaaliança,emuma fase de poderosas tendências centrífugas, brotaram aquelas forças sociais queatuaram,independentementedetalouqualrei,pelacontinuidadedamonarquiaenorumoda centralização. A importância do clero como forçamotriz da centralização diminuiu,contudo, sem desaparecer inteiramente, à medida que se tornava mais importante oterceiroestado.Mas,mesmonessa fase, jáeravisívelqueas tensõesentreosdiferentesgrupos sociais, começando com a que separava a classe sacerdotal da classe guerreira,beneficiavamosuserano.Maseraclarotambémqueeleestavacontidoporessastensões,prisioneirodelas.OexcessivopoderdemuitossenhoresmilitaresaproximavareieIgreja,mesmo que não faltassem pequenos conflitos entre eles.A primeira grande divergênciaentrereieIgreja,porém,ocorreuapenasàépocaemquerecursoshumanosefinanceirosmaisabundantescomeçaramafluirparaotesouroreal,procedentesdocampoburguês,noperíododeFelipeAugusto.

21.Coma formaçãodo terceiroestado,a redede tensões tornou-semaiscomplexaeseu eixo moveu-se dentro da sociedade. Da mesma maneira que, em sistemasinterdependentes de países ou territórios concorrentes, determinadas tensões tornam-sepredominantes em épocas diferentes, ficando subordinados a elas todos os demaisantagonismosatéqueumdosprincipaiscentrosdepoderassumaposiçãopreponderante,analogamentehouve,emcadadomínio,certastensõesbásicas,emtornodasquaismuitasdasmenoressecristalizavamequegradualmentependiamparaumladoououtro.Seessastensõesincluíam,atéosséculosXIeXII,umrelacionamentoambivalenteentreguerreiroseclero,apartirdeentãooantagonismoentreosguerreiroseosgruposurbano-burguesespassou,lentamasininterruptamente,paraoprimeiroplano.Comesseantagonismo,ecoma extensa diferenciação na sociedade que ele expressava, o suserano adquiriu novaimportância: cresceu a dependência de todas as camadas da sociedade face a umcoordenadorsupremo.Osreisque,nocursodaslutaspelapredominância,sedistanciavamcada vez mais do resto da classe dos guerreiros, à medida que se expandiam seusdomínios,sedistanciaramtambémdelesnaposiçãoqueadotaramfrenteàstensõesentreosguerreiroseasclassesurbanas.Nãosealiaramaosguerreiros,acujaclassepertenciampororigem.Emvezdisso,emprestavamseupesooraaumlado,oraaoutro.

Oprimeiromarcodessaépoca foiaconquistadedireitoscomunaispelascidades.Osreisdessafase,acimadetudoLuísVIeLuísVII,assimcomoseusrepresentantesetodososdemaissenhoresfeudais,olhavamcomdesconfiançaparaascomunasnascentese,paradizeromínimo,com“parcialhostilidade”,101particularmenteemseusprópriosdomínios.Sóaospoucososreiscompreenderamosusosquepodiamdaraessasestranhasformaçõessociais.Comosempre,precisaramdealgumtempoparaperceberqueosurgimentodeumterceiroestadono tecidoda sociedade implicavaumaenormeampliaçãode seupróprioraio de ação. Daí em diante, porém, promoveram os interesses do terceiro estado com

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invariável persistência, enquanto eles concordavam com os seus. Acima de tudo,fomentaramopoderfinanceiro,tributável,daburguesia.Masseopuseramenfaticamente,emtodososcasosemquedispunhamdepoderparaassimagir,àreivindicaçãodefunçõesgovernamentaispelosmeiosurbanos,reclamosestesquenãopodiamdeixardesurgircomo crescente poder econômico e social das cidades. A ascensão da monarquia e a daburguesia estiveram ligadas na mais estreita interdependência funcional. Em partedeliberadamente e, até certo ponto, inconscientemente, essas duas posições sociaisajudaram a ascensão uma da outra, embora suas relações nunca deixassem de serambivalentes.Não faltaram animosidade e conflitos entre elas, nem ocasiões em que anobrezaeaburguesiasejuntaramparatentarrestringiropodersoberanodosreis.DurantetodaaIdadeMédia,reisseviramemsituaçõesemquetinhamquebuscaraaprovaçãodosrepresentantesreunidosemCortesouEstadosGeraisparacertasmedidas.Ocursoseguidoporessasassembléias,tantoasmenores,regionais,quantoasmaiores,querepresentavamgrandes áreas do reino, mostrava claramente como, a despeito de todas oscilações, aestruturadas tensõesna sociedadeaindanão seconfundiacomaqueexistiudepois,noperíodoabsolutista.102OsParlamentosdosestados—parausaronomeinglês—podemfuncionar, de modo não muito diferente dos parlamentos partidários da sociedadeburguesa industrial, enquanto for possível um acordo direto entre os representantes dediferentesclassessobredeterminadosobjetivos;masfuncionamcommenoreficiênciaaosetornaremmaisdifíceisosacordosdiretoseaoaumentaremastensõesnasociedade.Nomesmograu,aumentavaopoderpotencialdosuserano.Dadoobaixograudeintegraçãomonetária e comercial presente no mundomedieval, no início nem a interdependêncianem os antagonismos entre a classe guerreira possuidora de terras e a classe urbanaburguesa foramde tal ordemqueprecisassementregar ao suserano a regulaçãode suasrelações.Ambososestados,oscavaleiroseosburgueses,talcomoocleroenãoobstanteos contatos quemantinham, viviammuitomais dentro de seus próprios limites do quedepois viria a ocorrer. Os diferentes estados não competiam ainda tão freqüente ediretamente pelas mesmas oportunidades sociais, e os principais grupos burguesesestavamainda longedealcançarpodersuficienteparadesafiarapreeminênciasocialdanobreza, dos guerreiros. Só numa esfera da sociedade é que os elementos burguesesascendentes,comaajudadamonarquia,substituíramaospoucososcavaleiroseoclero:namáquinagovernamental,comoservidores.

22.Adependênciafuncionaldamonarquiafrenteatudooqueacontecianasociedademanifestou-se com grande clareza no desenvolvimento da máquina de governo, nodesmembramentodeinstituiçõesque,inicialmente,poucomaishaviamsidodoquepartesda administração doméstica e territorial real.Ao tempo emque a sociedade de homenslivres consistia basicamente apenas de cavaleiros e do clero, a máquina do governo,também,eraconstituídaacimadetudodesseselementos.Ossacerdotes,comoservidores,oquealiásjáfoimencionado,eramemgeralfuncionáriosleaisedefensoresdosinteressesreais, ao passo que os senhores feudais, mesmo na corte e na administração civil,freqüentementeseposicionavamcomorivaisdorei,maisinteressadosemfortalecersuasprópriassituaçõesdoqueemconsolidaradele.Depois,àmedidaqueaclasseguerreiradefora da máquina governamental se tornava mais complexa, e, no curso das lutas deeliminação, os grandes e pequenos senhores feudais ficavam mais nitidamentediferenciados, essa constelação se espelhou na estrutura da crescente máquinagovernamental: sacerdotes e membros das menores Casas de guerreiros formavam o

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grosso do pessoal administrativo, enquanto os grandes senhores se viam limitados apouquíssimasposições,como,porexemplo,asdemembrosdagrandeassembléia,oudeumconselhomaisrestrito.

Mesmonessafase,porém,nãohaviafaltanaadministraçãorealdeindivíduosdoestratoinferior aos dos guerreiros e sacerdotes, embora elementos de origem subordinada nãodesempenhassem, no desenvolvimento da máquina central governamental francesa, omesmopapelquenagermânica.Talvez isso tenhaorigemno fatodeque,naFrança,ascomunidades urbanas e, portanto, o terceiro estado de homens livres, conseguiramumaimportância independentemais cedodoquenaGermânia.NaFrança, aparticipaçãodegruposurbanosnaadministraçãorealcresceucomodesenvolvimentodascidadese,jáemépocatãoremotacomoaIdadeMédia,membrosdessesgruposcomeçaramgradualmenteaseinfiltrarnamáquinagovernamental,numaextensãoquenamaiorpartedosterritóriosgermânicossófoialcançadabemmaistarde,emplenoperíodomoderno.

Eles ingressaram na máquina do governo através de dois caminhos principais:103inicialmente,graçasasuacrescenteparticipaçãoemcargosseculares,istoé,emposiçõesantes ocupadas por nobres e, depois, devido a sua participação em postos anteseclesiásticos, isto é, como amanuenses.O termo clerc começou amudar lentamente designificadoapartirdefinsdoséculoXII,recuandoparaumplanoinferiorsuaconotaçãoeclesiásticaeaplicando-semaisemaisaindivíduosquehaviamestudado,quepodiamlere escrever latim, embora possa ser verdade que os primeiros estágios de uma carreiraeclesiástica fossem, por algum tempo, precondição para isso. Em seguida, em paralelocom a ampliação da máquina administrativa, o termo clerc e certos tipos de estudosuniversitários foram cada vez mais secularizados. As pessoas não aprendiam latimexclusivamente para se tornarem membros do clero, mas também para ingressar nacarreira de servidores públicos. Para sermos exatos, também havia burgueses quepassavamaintegraroconselhodoreisimplesmentedevidoasuacompetênciacomercialou organizacional. A maioria dos burgueses, porém, chegava aos altos escalões dogovernoatravésdoestudo,doconhecimentodoscânonesedoDireitoRomano.Oestudotornou-se um meio normal de progresso social para os filhos dos principais estratosurbanos. Lentamente, elementos burgueses suplantaram os elementos nobres eeclesiásticosnogoverno.Aclassedeservidoresreais,ou“funcionários”,tornou-se—,emcontraste com a situação vigente nos territórios germânicos — uma formação socialexclusivamenteburguesa.

DesdeaeradeFelipeAugusto,senãoantes…surgemosadvogados,osverdadeiros“cavaleirosdalei”(chevaliersèslois);elesassumiriamatarefadeamalgamara leifeudalcomoscânoneseoDireitoRomano,afimdecriaroDireitoMonárquico…Formandoumpequenoexércitodetrintaescribasem1316,104ou105em1359,cercade60em1361, esses amanuenses da chancelaria obtiveramnumerosas vantagens graças ao constante aumento de suasfileirasnasproximidadesdorei.Ogrossodeveriaformaraclassedetabeliõesprivilegiados;aelite(trêssobFelipe,o Belo, 12 já antes de 1388, 16 em 1406, oito em 1413) daria origem aos escrivães privados ou secretáriosfinanceiros… O futuro lhes pertencia. Ao contrário dos grandes servidores de um palatinado, eles não tinhamancestrais,elesmesmoseramosancestrais.104

Com o crescimento das posses reais, formou-se uma classe de especialistas, cujaposiçãosocialdependiaemprimeirolugare,acimadetudo,doscargosqueocupavamnoserviçorealecujoprestígioeinteresseseram,namaiorparte,idênticosaosdamonarquiaedamáquinadegoverno.Tal comoa Igreja fizera antes, e ainda fazia até certoponto,membros do terceiro estado defendiam nessemomento os interesses da função central.

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Assimagiamnascapacidadesasmaisdiversas,comoescribaseconselheirosdorei,comocoletoresdeimpostos,comomembrosdosmaisaltostribunais.Eforamelestambémqueseesforçaramparagarantiracontinuidadedapolíticarealalémdavidadeumdadoreie,não raro, contra as inclinações pessoais que ele demonstrasse. Neste caso, também, asclassesburguesaspromoveramamonarquiaeestaretribuiunamesmamoeda.

23. Excluindo-se quase por completo a nobreza damáquina de governo, a burguesiaconquistou,comopassardotempo,umaposiçãoqueteveamaisaltaimportânciaparaoequilíbriogeraldepodernasociedade.NaFrança,atéofimdoancienrégime,nãoforamosricosmercadoresouasguildasquerepresentaramdiretamenteaburguesianosconflitoscom a nobreza, mas sim a burocracia, sob suas várias formas. A debilitação social danobrezaeofortalecimentodaburguesiaficaramdemonstradoscomamaiorclarezapelofatodequeaaltacamadadestaúltimareivindicasse,pelomenosdesdeiníciosdoséculoXVII,umstatussocialigualaodanobreza.Nessaocasião,oentrelaçamentodeinteressesetensõesentrenobrezaeburguesiaalcançou,defato,umnívelqueassegurouumpoderexcepcionalaogovernocentral.

Essa infiltração dos filhos da burguesia urbana na máquina central era uma dasvertentesdeumprocessoqueindicavabastantebemaestreitainterdependênciafuncionalentre a ascensão damonarquia e a da burguesia.O estratomais alto da burguesia, quegradualmente brotou da classe dos “servidores reais” mais altamente colocados,conseguiu,nosséculosXVIeXVII,umtalaumentodepodersocialqueosuseranoteriaficadoàsuamercê,nãofossemoscontrapesosdanobrezaedoclero,cujaresistêncialhesneutralizava a força; não é difícil observar como certos reis, acima de todos LuísXIV,constantemente manipularam esse sistema de tensões. Na fase precedente, contudo,nobrezaeclero—adespeitodetodaaambivalênciainerenteaseusrelacionamentos—aindaeramadversáriosmuitomaisfortesdaautoridadecentraldoqueaburguesiaurbana.Exatamenteporessarazão,burguesesansiososparaobterascensãosocialeramauxiliarestãobem-vindosquantobem-dispostosdorei.Osreispermitiramqueamáquinacentralsetornassemonopóliodemembrosdoterceiroestadoporqueesteaindaerasocialmentemaisfracodoqueoprimeiroeosegundo.

Ainterdependênciaentreocrescimentodopoderdoreiedaburguesia,eadebilitaçãodanobreza e do clero, pode ser vista de umaspecto diferente se levarmos emconta asconexões financeiras entre a existência social das várias partes. Já enfatizamos que amudança, em detrimento da nobreza, só em pequena medida se pode atribuir a açõesdeliberadasesistemáticasdoscírculosburgueses.Elafoi,porumlado,conseqüênciadaação do mecanismo competitivo, implicando que o grosso da nobreza caísse nadependênciadeumaúnicaCasanobre,aCasaReal,eassim,emcertosentido,descessepara o mesmo nível que a burguesia. Por outro, resultou do aumento da integraçãomonetária. Paralelamente ao crescimento do volume de moeda, ocorreu uma constantedesvalorização da mesma. Esse aumento e desvalorização se aceleraram, em grauextraordinário, no séculoXVI.A nobreza, que vivia da renda de suas propriedades, asquais não podia aumentar para acompanhar a desvalorização, por isso mesmoempobreceu.

As guerras religiosas — para mencionar apenas esse fato final — tiveram idênticaimportâncianoenfraquecimentodanobreza,como,comtantafreqüência,ocorrecomas

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classes declinantes nas guerras civis: ocultaram para elas, durante algum tempo, ainevitabilidadedeseudestino.Acomoçãoeainquietação,aconfirmaçãodovalorpróprionaluta,apossibilidadedepilhagemeafacilidadedeganho,tudoissoestimulouanobrezaa acreditar que podia manter sua posição social, embora ameaçada, e salvar-se dadecadênciaedoempobrecimento.Arespeitodastempestadeseconômicasqueosjogavamde um lado para outro, os que nelas estavam envolvidos mal formavam uma idéia.Notavam que o volume de moeda estava aumentando, os preços, subindo, mas nadaentendiam.Brantôme,umdosguerreiroscortesãosdoperíodo,captoubemesseestadodeespírito:

…muitolongedeterempobrecidoaFrança,estaguerracivilrealmenteaenriqueceu,namedidaemquedesvendouepôsàvistadetodosumainfinidadedetesourosanteriormenteescondidossobaterra,ondenãoserviamafinalidadealguma…Colocou-ostãobemaosol,etransformou-osemtalquantidadedeboamoeda,quehouvemaismilhõesemourotinindonaFrançadoquehouveramilhõesemlibrasdeprataantes,eapareceramtambémmaismoedasnovasdeprata,dequalidademelhor,forjadascomessesfinostesourosescondidos,doquehouveracobreantes…Eissonão foi tudo: os ricos mercadores, agiotas, banqueiros e outros sovinas, descendo até os padres, mantinham asmoedas encerradas em seus cofres e não as desfrutavam pessoalmente nem as emprestavam, exceto a jurosextorsivosecomexcessivausura,ouparaadquirirahipotecadeterras,bensoucasasporpreçovil;demodoqueosnobresquehaviamsidoarruinadosduranteasguerrasestrangeiras,equehaviamempenhadoouvendidoseusbens,estavamsemsaberoquefazer,atémesmosemlenhaparaseaquecerem,porqueessesbandosdebiltreseagiotashaviamembolsadotudo—essaboaguerracivilrecolocou-osnoslugaresque,pordireito,lhespertencia.Eumesmovicavalheirosdealtonascimentoque,antesdaguerracivil,viajavamcomapenasdoiscavaloseumlacaio,equedepoisserecuperaramatalpontoduranteeapósaguerraquepodiamservistosviajandopelopaíscomseisousetebonscavalos…EfoiassimqueahonestanobrezadaFrançaserecuperoupelagraçaou,poderíamosdizer,pelagraxadestaboaguerracivil.105

Na realidade, a maior parte da nobreza francesa, ao voltar dessa “boa” guerra civil,descobriu que estava atolada em dívidas e,mais uma vez, arruinada.A vida se tornaramaiscara.Credores,juntamentecomricosmercadores,agiotasebanqueirose,acimadetudo, os altos servidores, os homens da toga, clamavam pelo resgate do dinheiro quehaviam emprestado. Em todos os casos em que podiam, apossavam-se de propriedadesnobresetambém,comgrandefreqüência,dostítulos.

Osnobresqueseapegavamàssuaspropriedadeslogodepoisdescobriamquearendaqueelasproduziamnãoeramaissuficienteparalhescobriroaumentodocustodevida.

Ossenhoresquehaviamcedidoterrasaseuscamponeses,contraopagamentodetributosemdinheiro,continuavamareceberamesmareceita,massemomesmovalor.OquecustavacincosousnopassadocustavavintenaépocadeHenriqueIII.Osnobresempobreceramsemsedarcontadisso.106

24.Oquadrodadistribuiçãodepoder socialqueaqui seapresentaémeridianamenteclaro.Amudançanaestruturasocial,quedurantemuitotempoestiveratrabalhandocontraanobrezaguerreiraeembenefíciodasclassesburguesas,acelerou-senoséculoXVI.Osúltimosganharamem importância social, enquantoos primeiros perdiam.Cresceramosantagonismos na sociedade. A nobreza guerreira não entendeu esse processo que aexpulsava de posições hereditárias, mas via-o corporificado nos indivíduos do terceiroestado com quem agora tinha de concorrer diretamente pelas mesmas oportunidades,acima de tudo por dinheiro, mas também, através do dinheiro, por sua própria terra emesmo preeminência social. Dessa maneira, estabelecia-se um equilíbrio que concediapoderótimoaumúnicohomem,osuserano.

Nas lutas dos séculos XVI e XVII, deparamos com organizações burguesas que sehaviamtornadoricas,numerosasepoderosasesuficienteparacontestaremcomfirmeza

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os direitos da nobreza guerreira à dominação e ao poder,mas ainda não eram fortes obastanteparatornarosguerreiros,aclassemilitar,diretamentedependentedelas.Vemosumanobrezaainda forteebeligeranteo suficientepara representarameaçaconstanteàsclassesburguesasemascensão,masjáfracademais,sobretudonoplanoeconômico,paracontrolardiretamenteosmoradoresdascidadeseseustributos.Ofatode,nessaépoca,anobreza já ter perdido por completo as funções de administração e judicatura, que seencontravamnasmãosdecorporaçõesburguesas,contribuiuemnãopequenamedidaparasua fraqueza. Ainda assim, parte alguma da sociedade era ainda capaz de conquistar emanterumapreponderânciadecisivasobreosdemais.Nessasituação,orei,maisumavez,apareciaacadaclasseoucorporaçãocomoseualiadocontraasameaçasdegruposqueelesnãoconseguiamdominarsozinhos.

Evidentemente, anobreza e aburguesia consistiamemváriosgrupos e estratos cujosinteressesnemsemprecorriamnamesmadireção.Nastensõesprimáriasentreessasduasclasses,entrelaçavam-senumerosasoutras,fossedentrodosgrupos,ouentreumeoutroeo clero. Mas, simultaneamente, todos esses grupos e estratos eram, para subsistirem,dependentesunsdosoutros,nenhumforteosuficientenessafaseparaderrubaraordemvigente, como um todo. Os grupos dirigentes, os únicos que podiam exercer certainfluência política no contexto das instituições existentes, eram os menos dispostos apropormudanças radicais.Essamultiplicidade de tensões fortalecia aindamais o poderpotencialdosreis.

Claroquetodosessesgruposprincipais,osnobresdemaisaltalinhagem,os“grandes”dacorte,comotambémosdaburguesia,osparlamentos,gostariamderestringir,emseuprópriobenefício,opoderreal.Esforçosoupelomenosidéiasnessadireçãoforamfeitosouventiladosdurantetodooancienrégime.Masgrupossociaiscominteressesedesejosopostosdivergiamtambémemsuaatitudeemrelaçãoàmonarquia.Nãofaltaramocasiõesem que isso se tornou claro e foi negociado, mesmo, um certo número de aliançastemporáriasentregruposnobreseurbanosburgueses,acimadetudocomosparlamentos,contra os representantes da monarquia. Mas se alguma coisa mostra a dificuldadeenfrentadaporessareconciliaçãodireta,eaforçadastensõeserivalidadesentreaspartes,estafoiodestinodessasaliançasocasionais.

Vejamos, por exemplo, a Fronda. Luís XIV era ainda menor de idade e Mazarinogovernava.Maisumavez,epelaúltimavezdurantemuitotempo,osgrupossociaismaisdísparesuniram-separaatacaraonipotênciareal,representadapeloministro.Parlamentose a nobreza emgeral, corporações urbanas e indivíduos demais alto nascimento, todoseles tentaram explorar o momento de fraqueza da monarquia, a regência da rainha,exercidapelocardeal.Oquadroconfiguradoporesselevante,porém,mostraclaramentecomo eram tensas as relações entre esses grupos. A Fronda foi uma espécie deexperimento social. Pôs às claras, mais uma vez, a estrutura de tensões que dava àautoridade central sua força, mas que permanecia disfarçada enquanto estivessefirmementeestabelecidaessaautoridade.Tãologoumdosaliadospareciaobteramenorvantagem, todos os demais se sentiam ameaçados, desertavamda aliança, faziam causacomumcomMazarinocontra seuantigoaliadoe,depois,parcialmente retornavamparaseu lado. Todas essas pessoas e grupos queriam limitar o poder real, mas cada umpretendiafazê-loemproveitopróprio.Todostemiamqueopoderdooutropudessecrescerao mesmo tempo. Finalmente— e não pouco graças à habilidade com que Mazarino

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explorouessemecanismodetensões—oantigoequilíbriofoirestabelecidoembenefíciodaCasaReal.LuísXIV jamaisesqueceuas liçõesdessesdias.Muitomaisdeliberadaecuidadosamente que todos seus predecessores, fomentou esse equilíbrio e manteve asdivergênciasetensõesexistentes.

25.DuranteboapartedaIdadeMédia,asclassesurbanas,devidoàposiçãosocialqueocupavam, foram invariavelmentemais fracasdoqueanobrezaguerreira.Nessaépoca,foi considerável a comunhão de interesses entre o rei e a parte burguesa da sociedade,aindaquenãotãograndequefaltassemporcompletoatritos,emesmoconflitos,entreascidadeseogovernantecentral.Umadasconseqüênciasmaisvisíveisdessaconvergênciadeinteressesfoiaexclusãodanobrezadaorganizaçãomonárquica,esuainfiltraçãoporgentedeorigemburguesa.

Em seguida, à medida que diminuía o poder social relativo da nobreza, emconseqüênciadoaumentodaintegraçãomonetáriaemonopolização,osreis transferirampartedeseupesodevoltaparaosnobres.Assimgarantiramaexistênciadanobrezacomoclasseprivilegiadacontraoataqueburguês,massónograunecessárioparapreservarasdiferençassociaisentrenobrezaeburguesiae,dessaforma,oequilíbriodetensõesdentrodoreino.Asseguravamaogrossodanobreza,porexemplo, isençõesde impostos,queaburguesiagostariaquefossemabolidasoupelomenosdiminuídas.Masessesfavoresnãoforam suficientes para dar aos senhores de terra economicamente fracos uma basesuficientesobreaqualassentarareivindicaçãodeseraclassesuperior,esatisfazer-lheanecessidadedecultivarumestilodevidavisivelmentepróspero.Adespeitodasisençõesfiscais, amassa da nobreza fundiária levou, através de todooancienrégime, umavidamuito modesta. Dificilmente podia concorrer em prosperidade material com o estratosuperiordaburguesia.Frenteàsautoridades,e,acimadetudo,àcorte,aposiçãodelaeralonge de favorável, porquanto os cargos nesta última eram ocupados por indivíduos deorigem burguesa. Demais disso, os reis, apoiados por parte da opinião aristocrática,defendiam o princípio de que o nobre que participava diretamente do comércio deviarenunciaraotítuloeatodososprivilégiosdesuaclasse,pelomenosenquantodurassetalatividade.Anormaemcausaserviaparamanterasdiferençasexistentesentreburguesiaenobreza, que os reis, não menos que os nobres, faziam questão de preservar. Mas, aomesmo tempo, bloqueava o único acesso direto da nobreza à maior prosperidade. Sóindiretamente,atravésdocasamento,podiaonobrebeneficiar-sedariquezageradapelocomércioepeloscargosoficiais.Anobrezanadateriadoesplendoreprestígiosocialqueaindadesfrutava nos séculosXVII eXVIII, infalivelmente teria sucumbido à burguesiacadavezmaisprósperaetalvezànovanobrezaburguesa,senãotivesseobtido—oupelomenosumapartedela—,comajudadorei,umanovaposiçãomonopolistanacorte.Essabenesse lhe permitiu um estilo de vida adequado à posição social e preservou-a deenvolvimentoematividadesburguesas.Oscargosnacorte,asmuitasevariadasposiçõesoficiaisnaCasaReal,foramreservadosàaristocracia.Dessamaneira,centenase,nofim,milhares de nobres, conseguiram cargos relativamente bem pagos. O favor real,confirmado por donativos ou doações adicionais, era adicionado a isso. Demais, aproximidadeemrelaçãoaoreidavaaessescargosaltoprestígio.Dessaforma,daamplamassadaaristocracia fundiárianasceuumestratodenobresquepodiamcontrabalançar,emriquezaeinfluência,aaltaburguesia:anobrezacortesã.Damesmaformaqueantes,quando a burguesia foramais fraca que a aristocracia, os cargos na administração real

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haviamse tornadomonopóliodaburguesiacomajudado rei,nessemomentoemqueanobreza se debilitava, os cargos na corte, novamente com ajuda real, tornaram-seprivilégiodosnobres.

Opreenchimento exclusivodesses cargospornobresnãoocorreudeum sógolpeoumediante o plano de um único rei, como aliás não acontecera, antes, com a reserva detodososoutrospostosàburguesia.

SobHenriqueIV,eaindasobLuísXIII,oscargosnacorte,comotambémamaioriadasnomeações para postos militares e, ainda mais, para os cargos administrativos ejudiciários,podiamseradquiridoseconstituíam,portanto,propriedadedeseusocupantes.Isso se aplicava atémesmo ao cargo de gouverneur, ou comandantemilitar, em certasregiõesdopaís.Parasermosexatos,ocasionalmente,osocupantesdessepostosópodiamexercê-lo com aprovação do rei e, naturalmente, acontecia também que este ou aquelecargosófossempreenchidosgraçasaofavorreal.Masdemodogeral,acompradecargospreponderava nessa época sobre a nomeação por favor.Uma vez que amaior parte danobrezanãocompetia comaaltaburguesia em termosde riqueza,o terceiro estado,oupelomenosfamíliasdessaorigemesórecentementecontempladascomtítulosdenobreza,vagarosamas iniludivelmente assumiu também postosmilitares e na corte. As grandesfamíliasnobreseramasúnicasquepossuíamaindarendasuficiente,empartedevidoaotamanhodesuasterraseatécertopontopelorecebimentodepensõesquelheserampagaspelorei,paraconservarcargosdessetipodiantedetalconcorrência.

Nãoobstante,adisposiçãodeajudarànobrezanessasituaçãofoiinequívocaporpartedeHenriqueIV,comotambémdeLuísXIIIeRichelieu.Nenhumdelesesqueceu,sequerporummomento,quetambémeraaristocrata.Alémdomais,HenriqueIVsubiraaotronoàtestadeumexércitodenobres.Mas,àparteofatodequemesmoeleseram,omaisdasvezes, impotentes face a processos econômicos que os sitiavam, a função real tinhanecessidadesprópriaseporissoeraambivalentesuarelaçãocomanobreza.HenriqueIV,Richelieue todosseussucessores,a fimdemantersuasprópriasposições, tudofizeramparaconservaranobreza,tantoquantopossível,afastadadecargosdeinfluênciapolítica.Mas,aomesmotempo,eramobrigadosapreservá-lacomoumfatorsocialindependentenoequilíbriointernodeforças.

Aduplafacedacorteabsolutistacorrespondiaexatamenteaessarelaçãodivididaentrerei enobreza.Acorte era aumsó tempo instrumentoparacontrolá-la emantê-la, e foinessadireçãoqueelagradualmenteevoluiu.

OpróprioHenriqueIVdavaporcertoqueoreiviviadentrodeumcírculoaristocrático.Masnãoeraaindapolíticarígidasuaexigirresidênciapermanentenacortedosmembrosdanobrezaquequisessemcontinuaramerecerosfavoresreais.Semdúvida,eletambémcarecia de meios para financiar uma corte tão numerosa e distribuir cargos, favores epensões prodigamente, como Luís XIV pôde fazer mais tarde. Além do mais, em suaépoca, a sociedade continuava ainda em estado de extrema fluidez. Famílias nobresdeclinavam e a burguesia subia. Os estados sobreviviam, embora drasticamentetransformadoseuregimedeocupação.Omuroquedividiaosestadospareciaumapeneira,tantoseramosfuros.Qualidadespessoais,ouafaltadelas,aboaoumásortedoindivíduo,desempenhavamfreqüentementeumpapeltãograndenodestinodeumafamíliacomoseunascimentoneste ounaquele estado.Atémesmoosportões para a corte, e seus cargos,

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aindaseencontravambemabertosparaindivíduosdeorigemburguesa.

Etudoissoanobrezadeplorava.Eraelaquedesejavaequepropôsqueoscargoslhefossemreservados.Enãosóeles.Desejavasuaparteemmuitosoutros,queriarecuperarposiçõesperdidasnamáquinadegoverno.Em1627,sobotítulo“SolicitaçõeseArtigosparaaRestauraçãodaNobreza”,eladirigiuaLuísXIIIumapetiçãocontendoexatamentepropostasnessesentido.107

Apetiçãocomeçavadizendoque,depoisdaajudadivinaedaespadadeHenriqueIV,era à nobreza que se devia agradecer pela preservação da coroa numa época em que amaioriadasoutrasclasses fora incitadaà insurreição.Aindaassim,anobrezaachava-se“no estadomais lamentável que jamais conhecera… esmagada pela pobreza… tornadacruelpelaindolência…reduzidapelaopressãoatéquaseodesespero”.

Em poucas palavras, assim se traçava um quadro da classe em declínio. E quecorrespondiafielmenteàrealidade.Amaioriadasgrandespropriedadesruraisvergavaaopeso das dívidas. Muitas famílias nobres haviam perdido todas as posses. Não haviaesperança para a juventude aristocrata; a inquietação e as pressões sociais geradas poressaspessoasdeslocadaseramsentidas em todaapartenavidada sociedade.Oque sedeveriafazer?

Entreasrazõesdesseestadodecoisas,eraexpressamentemencionadaadesconfiançaquecertonúmerodenobresdespertaranoreicomsuaarrogânciaeambição.Essesfatoshaviamfinalmentelevadoosreisaacreditaremnanecessidadedereduziropoderdessesnobres, excluindo-os de cargos oficiais que haviam talvez usadomal, e promovendo oterceiro estado; assim, os nobres haviam sido destituídos de seus deveres judiciários efiscais,eexpulsosdosconselhosdorei.

Finalmente, em22 artigos, a nobreza exigia, entre outras coisas, o seguinte: alémdocomandomilitardosváriosgouvernementsdo reino,queas funçõescivisemilitaresdaCasaReal—istoé,oesqueletodoquemais tarde tornariaacorteumasinecuraparaanobreza—deixassemdeserobjetodevendaeficassemreservadasànobreza.

Demaisdisso,anobrezaexigiacertainfluênciasobreaadministraçãodasprovínciaseacesso,paracertonúmerodearistocratasparticularmentecredenciados,àsaltascortesdejustiça, aos parlamentos, pelo menos em capacidade consultiva e sem remuneração e,finalmente, que um terço da participação nos conselhos financeiros emilitares e outraspartesdogovernorealproviessedeseusquadros.

Entre todasessasexigências, se ignoramosalgumaspequenasconcessões, sóuma foiatendida:oscargosnacorte,queforamvedadosàburguesiaereservadosànobreza.Todasasdemais,namedidaemqueimplicavamparticipaçãodanobreza,aindaquemodesta,nogovernoouadministração,tiveramindeferimento.

Em numerosos territórios germânicos, nobres pleitearam e receberam cargosadministrativose judiciários,alémdosmilitares,epelomenosdesdeaReformapodiamserencontradostambémnasuniversidades.108AmaioriadoscargosmaisaltosdoEstadopermaneceu um virtual monopólio da nobreza; nos demais níveis, nobres e burgueseshabitualmente se equilibravam em numerosos cargos públicos, de acordo com umafórmulaexatadedistribuição.

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Nogoverno central francês, porém, as tensões e lutas constantes, abertas ou latentes,entreosdoisestadosmanifestavam-senofatodeque todaaadministraçãocontinuavaasermonopóliodaburguesia,enquantotodaacorte,nosentidomaisestreito,quesempreforanamaiorpartepreenchidapornobres,masquepassaraasofreraameaçadecairemmãosburguesasenquantodurouavenalidadedoscargos,tornava-se,deumavezportodasnoséculoXVII,monopóliodosnobres.

Richelieu,emseu testamento, recomendaraqueacorte fosse fechadaa todosaquelesque“nãopossuíssemaboasortedeumaorigemnobre”.109LuísXIVreduziuaomínimooacesso dos burgueses aos cargos da corte, mas nem mesmo ele conseguiu excluí-losinteiramente.Assim, apósnumerososmovimentospreparatórios, nosquaisos interessessociaisdanobrezaedamonarquiaforam,porassimdizer,sondadosmutuamente,àcortefoiatribuídooclaropapeldeasilodanobreza,porumlado,edemeioparacontrolaredomaravelhaclasseguerreira,poroutro.Avidacavaleirosasemrédeasnemlimiteseracoisadopassado.

Para a maior parte da nobreza, não apenas sua situação econômica se tornou maisdifícil, como também estreitaram-se seus horizontes e liberdade de ação. Dada suamedíocre renda, ela se via limitada a suas fazendas, no interior do país. Nem ascampanhas militares lhe permitiam, quase nunca, escapar desse bloqueio. Mesmo naguerra,osnobresnãolutavammaisnaqualidadedecavaleiroslivres,mascomooficiais,numaorganização estrita.E sorte especial e relações eramnecessárias para o indivíduoescaparpermanentementedanobrezafundiáriaeobteracessoaoshorizontesmaisamploseaomaiorprestígiodocírculonobredacorte.

Essapartemenordanobrezaencontrounacorte,emPariseàsuavolta,umnovoemaisprecário lar. Até o tempo de Henrique IV e Luís XIII, não era difícil a um nobrepertencente ao círculo da corte passar algum tempo em sua propriedade rural ou na deoutro nobre.Havia, para sermos exatos, umanobreza de corte distinta da nobrezamaisamplado interior,masasociedadecontinuavaainda relativamentedescentralizada.LuísXIV,tendoaprendidobemcedoaliçãodaFronda,explorouaomáximoadependênciadanobrezafaceasuapessoa.Elequeria“colocardiretamenteanteseusolhostodosaquelesque fossem possíveis chefes de levantes e cujos castelos pudessem servir como pontosfocaisderebelião…”.110

A construção de Versalhes correspondeu perfeitamente a ambas as tendênciasentrelaçadas da monarquia: sustentar e promover da maneira mais visível certossegmentos da nobreza e, aomesmo tempo, controlá-la e domá-la. O rei concedia comliberalidade, em especial a seus favoritos. Mas exigia obediência, mantinha os nobressemprecientesdadependênciaemqueviviam,dodinheiroedeoutrasoportunidadesquetinhaparadistribuir.

ORei(registraSaint-SimonemsuasMémoires111nãoexigiaapenasqueaaltanobrezaestivessepresentenacorte,mas também requeria o mesmo dos nobres de menor categoria. Nas cerimônias de seu levantar e deitar, nasrefeições,nosjardinsemVersalhes,olhavasempreemvolta,notandoapresençaouaausênciadetodos.Levavaamal se os nobres mais ilustres não residiam permanentemente na corte, e se outros a ela compareciam apenasraramente,eadesgraçatotalesperavaaquelesquemalapareciamoununcaofaziam.Seumdestestinhaumpedido,o rei respondia orgulhosamente: “Não o conheço.” E seu julgamento era irrevogável. Não se importava se umapessoa gostava demorar no campo,mas ela tinha que demonstrarmoderação nisso e tomar precauções antes delongas ausências. Certa vez, emminhamocidade, quando fui a Rouen tratar de alguns assuntos jurídicos, o reiordenouaumministroqueescrevesse,indagandodeminhasrazões.

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A vigilância sobre tudo o que acontecia era muito característica da estrutura dessamonarquia.Demonstravaclaramentecomoeramfortesastensõesbásicasqueoreitinhaqueobservarecontrolar,afimdemanterseudomínionãosónasociedadeimediataqueocercava mas também fora dela. “A arte de governar não é absolutamente difícil oudesagradável”, disse certa vez Luís XIV em instruções ao herdeiro. “ConsistesimplesmenteemconhecerosverdadeirospensamentosdetodosospríncipesdaEuropa,em saber tudo o que as pessoas tentam ocultar-nos, seus segredos, e emmantê-las sobrigorosavigilância.”112

Acuriosidadedoreiemsaberdetudoqueaconteciaaseuredor(escreveuSaint-Simonemoutrotrecho)113tornou-secada vez mais intensa. Encarregou seu primeiro valete e o governador de Versalhes de recrutarem uma guardapessoal. Os membros dessa guarda receberam a libré real, prestavam contas apenas àqueles que acabamos demencionar, e tinham a missão clandestina de vaguear pelos corredores, dia e noite, observando secretamente eseguindopessoas,verificandoaondeiamequandovoltavam,entreouvindo-lhesasconversaseinformandotudocomexatidão.

Dificilmente alguma coisa seria tão característica da estrutura peculiar de umasociedadeque tornapossívelumaforteautocracia,comoanecessidadedesupervisionardetalhadamente tudo o que acontecia dentro do reino. Essa necessidade demonstra, porigual, as imensas tensões e a precariedade da máquina social, sem a qual a funçãocoordenadora não daria ao governante central uma taxa de poder tão alta.As tensões eequilíbrioentreosváriosgrupossociais,eaatitudealtamenteambivalentedetodoselespara com o próprio governante central, certamente não foram criados por nenhum rei.Mas, uma vez estabelecida essa constelação, tornava-se de vital importância para ogovernantepreservá-lacomtodasuaprecariedade.Atarefaexigiaumavigilânciarigorosasobretodosossúditos.

Por boas razões,LuísXIVmantinha sob umolho especialmente vigilante as pessoasmaispróximasàsuapessoaemposiçãosocial.Adivisãodotrabalhoeainterdependênciade todos, incluindo a dependência do governante central em relação às massas, nãoestavamaindatãoavançadasqueapressãodopovocomumconstituísseamaiorameaçaao rei, embora a inquietação popular, sobretudo emParis, não deixasse de implicar umcertoperigo,etenhasidoumadasrazõesparasetransferiracorteparaVersalhes.Masemtodos os casos, sob os predecessores de Luís, em que a insatisfação entre as massasculminou em insurreições, forammembros da Família Real ou da alta nobreza que secolocaram à frente delas, usando as facções e o descontentamento para promover suaspróprias ambições. Era nos círculos mais próximos a sua pessoa que os rivais maisperigososdomonarcaaindapodiamserencontrados.

Mostramos acima que, no curso damonopolização, o círculo de pessoas capazes decompetir pela oportunidadede governar gradualmente se reduziu aosmembros daCasaReal.LuíxXIderrotoufinalmenteessespríncipesfeudaisereintegrou-lhesosterritóriosna coroa. Nas guerras religiosas, porém, os diferentes contendores continuaram a serliderados por ramos da Família Real. Com Henrique IV, após a extinção da linhagemprincipal,mais umavez subiu ao tronoummembrode uma linhagem secundária.E ospríncipes de sangue, os “grandes”, os duques e pares de França, continuaram a exercerpoderconsiderável.Abasedessepodereramuitoclara.Decorriaprincipalmentedeseuscargos de gouverneurs, comandantes militares de províncias e de suas fortalezas.Lentamente, com a consolidação do governomonopolista, esses possíveis rivais do reiassumiram o caráter de funcionários de uma poderosa máquina governamental. Mas

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resistiramàmudança.OirmãoilegítimodeLuísXIII,oduquedeVendôme,filhobastardode Henrique IV, levantou-se contra a autoridade central à frente de uma facção.GovernadordaBretanha,acreditavaque tinhadireitohereditárioàprovínciapormotivodecasamento.Depois, foiogovernadordaProvençaquem lideroua resistência, emaistardeogovernadordoLanguedoc,oduquedeMontmorency.Eatémesmoatentativaderesistênciadanobrezahuguenoteteveporbaseumaposiçãodepoderanáloga.Oexércitonão estava ainda inteiramente centralizado e os comandantes de fortalezas e de fortinsgozavam de alto grau de independência. Os governadores de províncias consideravamseus cargos, comprados e assalariados, comopropriedade sua. Por tudo isso, ocorreramsucessivas explosões de tendências centrífugas. Sob Luís XIII, elas ainda eramperceptíveis. Seu próprio irmão, Gastão, duque de Orléans, levantou-se, como muitosoutrosirmãosreaisantesdele,contraorei.Renunciouformalmenteàsuaamizadecomocardeal, depois de assumir a liderança da facção que lhe era hostil, e dirigiu-se paraOrléansafimdeiniciaralutacontraRichelieueoreiapartirdeumaforteposiçãomilitar.

Richelieu,nofim,venceutodasessasbatalhas,principalmentecomajudadaburguesiae dos superiores recursos financeiros que ela lhe forneceu. Os grandes senhores queresistiamforamvencidosedesapareceram,terminandoalgunsnaprisão,outrosnoexílio,quandonãocaíamembatalha.Richelieudeixouatémesmoqueamãedoreimorressenoestrangeiro.

Era equivocada a crença de que, como filhos ou irmãos do rei, ou príncipes de seu sangue, eles poderiam, comimpunidade, perturbar o reino. Era muito mais sensato consolidar o reino e a monarquia do que respeitar aimpunidadeasseguradapelaposiçãosocial.

Assim escreveuoministro em suasmemórias.LuísXIV colheuos benefícios dessasvitórias,masosensodeameaçaporpartedanobreza,principalmentedaaltanobrezamaispróximaà suapessoa, eraparaeleumasegundanatureza.Àpequenanobrezaperdoavauma ocasional ausência da corte, se boas razões fossem apresentadas. No tocante aos“grandes”,mostrava-se implacável.E o papel da corte como local de detenção emergiacomparticularclarezacomrelaçãoaeles.“OlugarmaisseguroparaumfilhodeFrançaéo coração do Rei”, respondeu ele quando o irmão lhe pediu uma governadoria e umafortaleza,umplacedesûretê.Consideravacomomaiordesagradoofatodeseufilhomaisvelho manter uma corte separada em Meudon. Ao falecer o herdeiro do trono, o rei,apressadamente, mandou vender o mobiliário de seu castelo, tendo em vista apossibilidadedequeoneto,queherdariaMeudon, lhedesseomesmousoe,maisumavez,“dividisseacorte”.114

Essereceio,dizSaint-Simon,nãotinhaomenorfundamento,umavezquenenhumdosnetos do rei teria ousado desagradá-lo.Mas quando a questão eramanter o prestígio eassegurarogovernopessoal,aseveridadedoreinãoestabeleciadistinçãoentreparenteseoutraspessoas.

O governo monopolista, fundamentado nos monopólios da tributação e da violênciafísica, atingira, assim, nesse estágio particular, como monopólio pessoal de um únicoindivíduo,suaformaconsumada.Eraprotegidoporumaorganizaçãodevigilânciamuitoeficiente. O rei latifundiário, que distribuía terras ou dízimos, tornara-se o reiendinheirado, que distribuía salários, e este fato dava à centralização um poder e umasolidez nunca alcançados antes. O poder das forças centrífugas havia sido finalmentequebrado.Todosospossíveisrivaisdogovernantemonopolistaviram-sereduzidosauma

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dependência institucionalmentefortedesuapessoa.Nãomaisemlivrecompetição,masapenasnumacompetiçãocontroladapelomonopólio,apenasumsegmentodanobreza,osegmento cortesão, concorria pelas oportunidades dispensadas pelo governantemonopolista, e ela vivia ao mesmo tempo sob a constante pressão de um exército dereserva formado pela aristocracia do interior do país e por elementos em ascensão daburguesia.Acorteeraaformaorganizacionaldessacompetiçãorestrita.

Masmesmoquenessafaseocontrolepessoalexercidopeloreisobreasoportunidadesmonopolizadasfossemuitogrande,podiasergrandemasnãoilimitado.Naestruturadessemonopólio relativamente privado já havia elementos inconfundíveis que, finalmente,transformaram o controle pessoal em controle público por camadas cada vez maisextensasdasociedade.NocasodeLuísXIV,adeclaração“L’Etatc’estmoi”—“oEstadosou eu” — tinha um certo elemento de verdade, tenha ou não ele pronunciado essaspalavras. Institucionalmente, a organização monopolista conservava ainda em grauconsiderávelocaráterdepropriedadepessoal.Funcionalmente,contudo,adependênciadogovernante monopolista face a outros estratos, a toda uma rede de funções sociaisdiferenciadas, já era muito grande e aumentava constantemente com o avanço daintegração comercial e monetária da sociedade. Só a situação especial da sociedade, opeculiar equilíbrio de tensões entre a burguesia em ascensão e a aristocracia emdecadênciae,maistarde,entreosgrandesepequenosgruposemtodaaterra,davamaogovernantecentralseusimensospoderesdecontroleedecisão.Aindependênciacomqueantigos reis governavam seus domínios, o que era também uma manifestação deinterdependência socialmaisbaixa,desaparecera.A imensa redehumanaqueLuísXIVgovernavatinhaummomentumpróprioeumcentrodegravidadetambémpróprio,queeleera obrigado a respeitar.Custava-lhe umesforço colossal e umautocontrole nãomenorpreservaroequilíbrioentrepessoasegrupose,manipulandoastensões,dirigirotodo.

Acapacidadedofuncionáriocentraldegovernartodaaredehumana,sobretudoemseuinteressepessoal,sófoiseriamenterestringidaquandoabalançasobreaqualsecolocavase inclinouradicalmenteemfavordaburguesiaeumnovoequilíbriosocial,comnovoseixos de tensão, se estabeleceu. Só nessa ocasião, os monopólios pessoais passaram atornar-se monopólios públicos no sentido institucional. Numa longa série de provaseliminatórias, na gradual centralização dos meios de violência física e tributação, emcombinação com a divisão de trabalho em aumento crescente e a ascensão das classesburguesasprofissionais,asociedadefrancesafoiorganizada,passoapasso,sobaformadeEstado.

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VIII

SobreaSociogênesedoMonopóliodeTributação26.Certoaspectodessamonopolizaçãoe,destarte,detodooprocessodaformaçãodo

Estado,escapafacilmenteaoobservadorretrospectivoporque,demodogeral,eleformaumaidéiamaisclaradosestágiosposteriores,dosresultadosdoprocesso,doquedefatosocorridos em passado distante. Dificilmente pode ele conceber que essa monarquiaabsolutistaeseugovernocentralizadotenhamsurgidodeformamuitogradualdomundomedieval, como algo novo e extraordinário aos olhos de seus contemporâneos. Nãoobstante,sósefizermosumatentativadereconstruiresseaspectoteremosapossibilidadedecompreenderoquerealmenteaconteceu.

Sãoclarososprincipaislineamentosdatransformação.Deumpontocentralespecífico,ela pode ser descrita em poucas palavras: a propriedade territorial de uma família deguerreiros, o controle que ela exercia sobre certas terras e seu direito a dízimos ou aserviços de vários tipos prestados por indivíduos que viviam nessas terras, foramtransformados,comoaumentodadivisãodefunçõesenocursodenumerosaslutas,nocontrolecentralizadodopodermilitaredostributoseimpostosregularessobreumaáreamuitomais ampla. Nessa área, ninguém podia mais usar armas, erigir fortificações ourecorreràviolênciafísicadequalquertiposempermissãodogovernocentral.Tratava-sede algo muito novo numa sociedade em que, originariamente, uma classe inteira depessoaspodiausararmaseempregarviolênciafísicasegundoseusmeioseinclinações.Etodos aqueles a quem o suserano solicitasse estavam agora obrigados a pagar-lhe certapartedesuarendaouriqueza.Essasituaçãoeraaindamaisnova,secomparadacomoquefora costume na sociedade medieval. Na economia de troca daquela época, quando amoedaerarelativamenterara,aexigênciadepagamentosmonetáriosporpríncipesereis—deixandodeladocertasocasiõesestabelecidaspelatradição—eraconsideradacomoalgo inteiramente sem precedentes, e julgada como se fosse uma pilhagem ou olançamentodetributossobreumaterraconquistada.

“Constituti sunt reditus terrarum, ut ex illis viventes a spoliatione subditorumabstineant”115, as receitasda terradestinavam-se a impedir que aquelesquenelaviviamsaqueassemseussúditos,disseSãoTomásdeAquino.Comessaspalavras,elecertamentenão expressava só a opinião dos círculos eclesiásticos, embora as instituições da Igrejaestivessembastanteexpostasaessasmedidas,pormotivodesuariqueza.Osprópriosreisnãopensavamdemodomuitodiferente,mesmoque,dadaaescassezgeraldemoeda,elesnão pudessem se refrear de exigir repetidamente esses tributos compulsórios. FelipeAugusto,porexemplo,provocoutantainquietaçãoeoposiçãocomumasériedeimpostos,em especial a contribuição para asCruzadas em1188, a famosadîmesaladine (dízimosaladino),que,em1189,proclamouquenenhumoutrodomesmotipojamaisvoltariaaserlançado.Paraque,diziaodecretoreal,nemelenemseussucessoresjamaisincidissemnomesmo erro, proibia, com sua autoridade real e toda a autoridade de todas as igrejas ebarõesdoreino,essaafrontamaldita.Sealguém,fosseeleoreiouqualqueroutrapessoa,tentasse“poraudaciosatemeridade”revogaroédito,queriaquefossedesobedecido.116Ébempossívelque,naediçãodessedecreto,suapenativessesidoguiadapornotáveisdo

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reino insatisfeitos.MasàépocaemquesepreparavaparaaCruzada,em1190,ordenouexpressamente que, na eventualidade de sua morte na expedição, parte do tesouro deguerra fosse distribuído entre aqueles que haviam sido arruinados pelos impostos. Ostributosexigidospelosreisnaquelasociedade,comsuaescassezrelativademoeda,eramdiferentes dos impostos cobrados em sociedades mais comercializadas. Ninguém osaceitavacomoinstituiçõespermanentes;astransaçõesdemercadoetodooníveldepreçosnãocontavamemabsolutocomeles;demodoqueosimpostoscaíamcomoumraiodoscéus, arruinando grande número de pessoas. Os reis ou seus representantes, comopudemos ver, às vezes tinham consciência desse fato.Mas, dada a receita limitada quearrecadavam em seus domínios de raiz, eles enfrentavam constantemente a opção deutilizar todas as ameaças e força que tinhamà disposição para levantar rendamedianteimpostosousucumbirapotênciasrivais.Aindaassim,aagitaçãoprovocadapelo“dízimosaladino”eaoposiçãoquedespertouparecemtersidolembradasdurantelongotempo.Sódaía79anoséqueumreivoltoualançarumimpostoespecial,umaaideféodaleparasuacruzada.

A convicção generalizada entre os próprios reis era de que os governantes de umterritório e seu governo deviam sustentar-se com a renda de suas posses dominiais, nosentidomais limitado, isto é, com a renda de seus próprios bens de raiz. Para sermosexatos, no curso damonopolização, os reis e certo número de outros grandes senhoresfeudaisjáhaviamgalgadoumaposiçãoconsideravelmentemaiselevadaqueamassadosdemais senhores, e, em retrospecto, podemos observar que novas funções estavamsurgindo nessa época. As novas funções, porém, só de desenvolviam lentamente, emconstanteconflitocomos representantesdeoutras funções,edemoravammuitopara setransformarememinstituiçõessólidas.Naépoca,oreieraumgrandeguerreiro,emmeioamuitosoutrosguerreirosmaioresoumenores.Talcomoeles,viviadaproduçãodesuasterras, mas, ainda como eles, tinha o direito tradicional de lançar impostos entre oshabitantes de sua região, em certas ocasiões extraordinárias. Todos os senhores feudaisexigiamerecebiamcertostributosquandocasavamumafilha,quandoofilhoeraarmadocavaleiro,eaindaa títuloderesgate,sefosseosenhorfeitoprisioneirodeguerra.Estaseram asaides féodales originais, e os reis as exigiam como todos os demais senhoresfeudais.Outrasexigênciasdedinheironão tinhambasenoscostumeseerapor issoquepartilhavamdareputaçãosemelhanteàdosautoresdepilhagemeextorsões.

Posteriormente, nos séculos XII e XIII, uma nova forma de receita dos príncipescomeçouasurgir.NoséculoXII,ascidadescomeçaramacrescerlentamente.Deacordocomoantigocostumefeudal,sóhomensdaclasseguerreira,osnobres,tinhamodireitodeportararmas.Nessemomento,porém,burguesesjáhaviamlutado,deespadanamão,porliberdadescívicasouestavamprestesafazê-lo.PorvoltadaépocadeLuísVI,tornou-se costumeiro convocar os moradores das cidades, os “burgueses”, para serviço emguerras. Pouco depois, contudo, os moradores das cidades acharam melhor oferecerdinheiro aos senhores territoriais, emvezde serviços, paraque elespudessemcontratarguerreiros.Comercializaramoserviçodeguerrae,paraosreiseoutrosgrandessenhoresfeudais,asoluçãofoisatisfatória.Aofertadeserviçosdeguerraporguerreirosindigenteserageralmentemaiordoqueopoderaquisitivodossenhoresfeudaisrivais.Demodoqueesses pagamentos por isenções de serviçomilitar rapidamente se tornaram costume ouinstituição tradicionais.Os representantes do rei exigiam de cada cidade tal número de

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homensouopagamentodeumasomacorrespondenteparadeterminadacampanha,eascidadesconcordavamounegociavamuma redução.Masmesmoessecostumeeraaindaconsiderado apenas como outra forma de aides feudais, em casos extraordinários.Denominavam-nosdeaidedel’osteeramarrecadadosjuntossobadesignaçãode“ajudasnosquatrocasos”.

Seria necessária uma digressão extensa demais para mostrar como as própriascomunidades urbanas começaram, aos poucos, a estabelecer uma espécie de sistema detributação interna para os vários serviços comunais. Seja suficiente dizer aqui que asexigências dos reis serviram para desenvolver o sistema, da mesma maneira que,reciprocamente,as instituições fiscaisurbanasquecomeçavamaconsolidar-seporvoltade fins do século XII tiveram uma importância que não deve ser subestimada para aorganizaçãodatributaçãoreal.Nestecaso,também,aburguesiaeaCasaReal—emgeralacontragosto—seimpulsionaramreciprocamente.Mascomissonãoqueremosdizerqueos burgueses, ou qualquer outra classe social, pagassem de bom grado e sem oferecerresistência.Damesmaformaquesucederiamaistardecomatributaçãoregular,ninguémpagavaessestributosadicionaisamenosquesesentissediretaouindiretamenteforçadoatanto. Ambos os casos indicam exatamente a natureza da dependência de grupos nasociedadenumestágiodado,eosequilíbriosdepoderpredominantes.

Osreisnãodesejavamnemtinhamcondiçõesdeprovocarexcessivaoposição,umavezqueopodersocialdafunçãorealevidentementeaindanãoeraforteosuficienteparatal.Por outro lado, precisavam, para desempenhar suas funções, para sua auto-afirmação e,acimadetudo,parafinanciaraslutasconstantescomosrivais,deconstantesecadavezmaioressomasemdinheiroquesópodiamobtercomtaisaides.Mudaramasmedidasquetomavam nesse particular. Sob pressão, os representantes reais tenteavam à procura deumasoluçãoapósoutra,oramudavamoprincipalônusparaestaouaquelaclasseurbana.Mas,aindaassim,comtodasessasreviravoltas,opodersocialdamonarquiaaumentavaconstantemente e, com o crescimento, cada um fortalecendo o outro, os impostosgradualmenteassumiramnovocaráter.

Em 1292, o rei exigiu o tributo de um denário por libra sobre todas asmercadoriasvendidas,sendoaditasomaderesponsabilidadetantodocompradorquantodovendedor.“Umaextorsãodetipoatéentãodesconhecidonoreinofrancês”—comoaconsiderouumcronistadaépoca.EmRouen,acasadecontasdoscoletoresreaisfoisaqueada.RoueneParis,asduascidadesmaisimportantesdoreino,finalmentecompraramsualiberdadeporumasomafixa.117O imposto,noentanto,permaneceudurantemuito temponamemóriapopularsoboagourentonomedemal-tôte.Eaoposiçãoqueprovocoupersistiutambémlongamentenasrecordaçõesdosfuncionáriosreais.Emconseqüência,noanoseguinte,orei tentou obter empréstimos compulsórios dos burgueses ricos. Ao provocar essapretensãotambémviolentaresistência,elevoltouem1295àaideemsuaformaoriginal:otributo era exigido de todos os estados, e não apenas do terceiro.Deveria ser pago umcentésimodovalorde todasasmercadorias.Mas,evidentemente,a soma levantadanãoera suficiente. No ano seguinte, o tributo foi elevado para um cinqüenta avos. Nessemomento,claro,ossenhoresfeudais,tambématingidospeloimposto,ficaramfuriosos.Orei,emvistadisso,declarou-sedispostoadevolveràIgrejaeaossenhoresfeudaispartedasomaquelevantaranosdomíniosdosmesmos.Dava-lhes,porassimdizer,umapartenobutim.Masessegestonãoconseguiatranqüilizá-los.Acimadetudo,ossenhoresfeudais

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seculares, os guerreiros, sentiam-se cada vez mais ameaçados em seus direitostradicionais,nasuacapacidadedegovernarindependentementee,talvez,emsuaprópriaexistência social, pela máquina do governo central. Os homens do rei estavam seintrometendoemtudoeapropriavam-sededireitosetributosqueanteseramprerrogativaexclusiva do senhor feudal. E neste particular, como com tanta freqüência acontecia,foramos tributos emdinheiro que constituíram a últimagota.Quando em1314, poucoantesdamortedeFelipe,oBelo,altosimpostosparacustearumacampanhanaFlandresforam novamente lançados, a inquietação e o descontentamento, reforçados pela máconduçãodaguerra, transformaram-seemresistênciadeclarada.“Nãopodemostoleraracobrança dessas ‘aides”’, disse um dos afetados,118 “não podemos suportá-las comconsciênciatranqüila,poisissonoscustariaahonra,osdireitosealiberdade.”“Umnovotipo de extorsão injustificável, uma forma indecorosa de levantamento de receitadesconhecidanaFrançaeespecificamenteemParis”,deixouregistradooutrohomemdaépoca, “foramusados para custear as despesas.Dizia-se que se destinavamà guerra naFlandres. Os servis conselheiros e ministros do Rei queriam que compradores evendedores pagassem seis denários por libra no preço de venda. Nobres e plebeus…juraramunir-separaconservarsualiberdadeeadesuapátria.”

A inquietação tornou-se realmente tão ampla e difundida que as cidades e senhoresfeudais formaram uma aliança contra o rei. Foi um desses experimentos históricos nosquaispodemosverograudedivergênciadeinteresseseaforçadastensõesinternas.Sobaameaça das exigências fiscais dos representantes do rei, e a grande irritação que elasprovocavam em todos os lados, uma aliança entre a burguesia e a nobreza ainda erapossível.Duraria,seriaeficiente?Jáobservamosacimaque,emoutrospaíses,sobretudonaInglaterraetendoporbaseumaestruturasocialdiferente,umaaproximaçãoeumaaçãoconcertadaentrecertasclassesurbanaseruraisocorreramgradualmente—adespeitodetodasastensõesehostilidadesentreelas—,oquefinalmentecontribuiudeformanotávelparalimitaropoderreal.OdestinodetaisaliançasnaFrança,comonessecasosepoderiaveremformaembrionáriaecommuitomaisclarezadepois,seriabemdiferente,dadaacrescente interdependência dos estados. A unanimidade entre eles não sobreviveu pormuitotempoeoimpactodasaçõescombinadasfoiquebradopeladesconfiançamútua.“Araivaeodescontentamentoosaproximavam,masseusinteressesnãoadmitiamunidade.119

Ilsontlignéedeslignée

Contrefaiteetmalalignéef

diziaumacançãodaépocasobreosaliados.Aindaassim,essareaçãoviolentaaimpostosvoluntariosamente lançados produziu uma forte impressão, inclusive nos funcionáriosreais.Taisrevoltasdentrododomínionãodeixavamdeserevestirdeperigosparaalutacontra rivais externos.Aposição socialdo suseranonãoera ainda suficientemente fortepara que ele se limitasse a ordenar a cobrança e a fixar o nível dos impostos.O poderaindaeradistribuídodetalmaneiraqueeletinhaquenegociar,emcadaocasião,comosestadosque tributavaeconquistar-lhesaaprovação.E,nessaépoca, asaides nadamaiseram do que pagamentos ocasionais e extraordinários para ajudar o governo numafinalidadeconcretaespecífica.Essasituaçãomudouapenas,egradualmente,nocursodaGuerradosCemAnos.Tornando-seelapermanente,omesmoaconteceucomosimpostosdequeosuseranonecessitavaparalevá-laacabo.

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27.“Alutaenfrentadapelamonarquiaaoprocurarestabeleceredesenvolverseupoderfiscalsópodesercompreendidase levarmosemcontaasforçase interessessociaisqueela combatia como obstáculos a seus propósitos”.120 Essa afirmação indica, de fato, oaspecto básico da sociogênese do monopólio da tributação. Para sermos exatos, osprópriosreisnãopodiamprever,nemseusadversáriosnessa luta,anovainstituiçãoquegerariam.Na verdade, não tinham amenor intenção de “aumentar seu poder fiscal”.Aprincípio,elese seus representantesqueriamsimplesmenteextrair tantodinheiroquantopossíveldeseudomínio,numaocasiãoapósoutra,eastarefasedespesasquetornavamnecessárias essas medidas eram sempre bem específicas e imediatas. Nenhum homemisolado criou impostos ou o monopólio de tributação. Nenhum indivíduo, ou série deindivíduos,durantetodooséculoemqueessainstituiçãolentamenteseformou,trabalhouparaalcançaresseobjetivoseguindoumplanodeliberado.Atributação,comoaliástodasasdemais instituições,constituiuprodutodoentrelaçamentosocial.Surgiu—comoquedeumparalelogramadeforças—dosconflitosdeváriosgruposeinteressessociais,atéque,cedooutarde,oinstrumentoqueforadesenvolvidonasconstantesprovasdeforçasetornou bem conhecido das partes interessadas e foi transformado, deliberadamente, emorganizaçãoouinstituição.Dessamaneira,emcombinaçãocomagradualtransformaçãoda sociedade e a mudança nas relações de poder dentro dela, as ajudas ocasionais asenhoresdeEstadosouterritórios,cobradasparacustearcampanhasespecíficas,resgate,dotes a filhas ou dotação aos filhos, acabaram por assumir o caráter de pagamentoshabituais. Expandindo-se lentamente os setores monetário e comercial da economia, àmedidaqueumadadaCasadesenhoresfeudaissetornavaaCasadorei,comjurisdiçãosobre uma área sempre maior, as aide aux quatre cas feudais transformaram-se emtributação.

De1328emdiante,emaisfortementeapartirde1337,acelerou-seatransformaçãodaajuda extraordinária em tributos regulares. Em 1328, um imposto direto para custear aguerracomaFlandrestornouaserlançadoemcertaspartesdoreino;em1335,cobrou-seemalgumascidadesdooesteumimpostoindireto,umaalíquotasobrecadavenda,afimde equipar a Marinha de Guerra; em 1338, todos os funcionários reais tiveram umadeduçãoemseussalários;em1340,oimpostosobreavendademercadoriasvoltouàbailaeassumiucarátergeral;em1341,instituiu-seumimpostoadicionalsobreavendadesal,agabelledusel.Em1344,1345e1346,essesimpostosindiretostornaramasercobrados.ApósabatalhadeCrécy,osfuncionáriosreaistentaramreintroduzirumimpostopessoaldireto;em1347e1348,voltaramàformaindireta,comoimpostosobrevendas.Tudoissoera, até certo ponto, experimental, considerando-se todos os impostos como uma ajudatemporáriadasociedadeparaqueoreiconduzisseaguerra;eramlesaidessurlefaitdelaguerre. Repetidamente, o rei e seus servidores declararam que a exigência de maisdinheiro terminaria com o fim da guerra.121 E em todos os casos em que tinham umaoportunidade,os representantesdosestados frisavamesseponto, tentandoverificar seodinheirogeradopelasaidesestavasendorealmenteusadoparafinsmilitares.Osprópriosreis, contudo, pelo menos desde Carlos V, nunca cumpriram com muito rigor essaexigência.Controlavamosfundoslevantadospelasaidesecontinuavam,quandoachavamnecessário,acustearasdespesasdesuaCasaoupremiarfavoritoscomessedinheiro.Essefenômenoemsi,essaentradadedinheironotesourodorei,bemcomoacriaçãodeumaforça militar por ele custeada, lenta mas inexoravelmente levou a um extraordináriofortalecimentodafunçãocentral.Ostrêsestados,anobrezaacimadetodos,opunham-se

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tanto quanto podiam a aumentar o poder da autoridade central. Mas, também nesteparticular,adivergênciadeinteressesdebilitava-lhesaresistência.Haviamsidoafetadosdemaispelaguerra,estavaminteressadosdemaisnaexpulsãodosinglesesparapoderemrecusardinheiroaorei.Alémdisso,aforçadosantagonismosentreeles,juntamentecomdivergênciaslocais,nãoapenassolapavaqualquerfrentecomumparalimitarasexigênciasfinanceiras ou supervisionar o uso que o rei desse a essa receita, mas impedia aorganização direta da guerra pelos estados. A ameaça externa tornava as gentes dessasociedade, na qual ainda era relativamente fraca a unidade e a interdependência,muitodependentesdoreienquantocoordenadorsupremoedesuamáquinagovernamental.Demodo que tiveram que tolerar, ano após ano, a cobrança em nome do rei de “ajudasextraordinárias”paracustearumaguerraquenãoterminava.

Finalmente,depoisdetersidoaprisionadooreiJoãonabatalhadePoitiers,eafimdepagaroenormeresgateexigidopelosingleses,pelaprimeiravezumimpostofoilançadonão por um, mas por seis anos. Nesse caso, como acontece com tanta freqüência, umevento importantemas fortuitomeramenteaceleroualgoqueestavahámuito tempoempreparação na estrutura da sociedade. Na realidade, esse imposto foi arrecadadoininterruptamente não por seis, mas durante 20 anos, e podemos supor que, por essaépoca, certa adaptação domercado a tais pagamentos estava ocorrendo. Demais disso,além desse imposto sobre as compras, com o objetivo de custear o resgate do rei,numerosos outros foram lançados para outros fins: em 1363, um imposto direto paracobriroscustosimediatosdaguerra;em1367,outro,paraimpediraspilhagenspraticadaspela soldadesca; em 1369, no reinício da guerra, novos impostos diretos e indiretos,incluindoum—especialmenteodiado—sobreacasademoradia,ofouage.

“Todos eles ainda são ‘aides’ feudais, mas generalizadas, tornadas uniformes earrecadadas não só no domínio do rei,mas em todo o reino, sob a supervisão de umamáquina administrativa centralizada, especial.”122Na verdade, nessa fase daGuerra dosCemAnos,quandoasaideslentamentesetornavampermanentes,aospoucosfoisurgindouma série de funções oficiais especializadas, com a finalidade de coletar e legalmentefazer cumprir esses “pagamentos extraordinários”, como ainda eram chamados.Inicialmente,eramrepresentadosapenasporalgunsgénérauxsurlefaitdesfinances,quesupervisionavamoexércitodosresponsáveispelacobrançadasaidesnopaísinteiro.Em1370, já havia dois administradores supremos, umdos quais especializado emquestõesjurídicas e ooutro em financeiras, que surgiramemdecorrênciada cobrançadasaides.Configurava-se aí a forma inicial do que mais tarde, durante todo o ancien régime,constituiuumdosórgãosmais importantesdaadministração fiscal, aChambreouCourdesAides.Nosanosde1370a1380,porém,essainstituiçãoestavaaindaemprocessodeformação,careciadeformadefinida,eramaisumatentativanaguerrasurdaoudeclaradanaqualosdiferentescentrosdepoderestavamconstantementesubmetendoatesteaforçadosoutros.Esuapresença,comofreqüentementeacontececominstituiçõessolidamenteestabelecidas, não obliterava a recordação dos conflitos sociais dos quais resultara. Emtodasasocasiõesemqueamonarquia,encontrandoresistênciaemdiferentessegmentosda população, se viu obrigada a limitar suas exigências fiscais, essas funções oficiaisigualmenterecuavamparaosegundoplano.Seunívelecurvadecrescimentoconstituíamum indicador razoavelmente exato da força social da função central e da máquina degoverno,emrelaçãoànobreza,aocleroeàsclassesurbanas.

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SobCarlosV,conformejámencionado,asaidessurlefaitdelaguerretornaram-setãopermanentescomoaprópriaguerra.Foramumpesosobreumpovoquejáestavasendoarruinado pela devastação, o fogo, os problemas de comércio e ainda por constantesassaltos de tropas que queriam ser alimentadas e se alimentavam pela força. Cada vezmaisopressivos se tornavamos impostos exigidospelo rei e, cadavezmais, julgava-sequeofatodesetornaremaregra,enãoaexceção,constituíaumaviolaçãodastradições.Enquanto CarlosV viveu, nada disso teve expressão visível. As tribulações cresceram,ignoradas,ecomelasodescontentamento.Parece,noentanto,queoreipercebiaatécertopontoessatensãocrescentenopaís,ossentimentosreprimidos,particularmentecontraosimpostos.Ele,comtodaaprobabilidade,compreendiaoperigoqueesseestadodeespíritopoderia provocar se, em seu lugar, em lugar de um rei velho e experimentado, umacriança,seufilho,queaindaeramenor,subisseaotronosobatuteladeparentesrivais.Etalvez esse receio do futuro se combinasse com dores de consciência. Certamente osimpostos que o governo arrecadara ano após ano pareciam-lhe inevitáveis eindispensáveis.Masmesmoparaele,obeneficiário,osimpostosaindatinhamclaramenteumamarcadeinjustiça.Dequalquermodo,algumashorasantesdesuamorte,em16desetembrode1380,assinouumdecretorevogandooimpostomaisopressivoeimpopular,aquelesobreacasademoradia,quepesavaigualmentesobrericosepobres.Oquantoesseeditofoiapropriadoparaasituaçãocriadapelamortedoreinãodemorouaseevidenciar.A função central debilitou-se e irromperam as tensões reprimidas no país. Os parentesconcorrentes do rei morto, acima de todos Luís, de Anjou, e Felipe, o Audaz, daBorgonha, contestaram a predominância umdo outro, bem como o controle do tesouroreal.Ascidadescomeçaramase revoltarcontraos impostos,opovopondoemfugaoscoletoresdorei.Noinício,aagitaçãodosestratosmaisbaixosdacidadeatéqueagradouàburguesia mais rica. Os desejos de ambos os grupos corriam paralelos. Os notáveisurbanosque,emnovembrode1380, reuniram-secomrepresentantesdosoutrosestadosem Paris, exigiram a abolição dos impostos reais. Provavelmente, o duque de Anjou,chancelerdorei,sobumatalpressãodireta,teráprometidoatenderàexigência.Nodia16denovembrode1380,baixouumedito,emnomedorei,peloqual“deagoraemdianteepara sempre, todas as imposições de ‘fouage’, os impostos sobre o sal e as quartas eoitavas,atravésdosquaisnossossúditosforamtãoafrontados,todasasajudasesubsídiosdetodosostiposqueforamimpostospormotivodasditasguerras…”seviramabolidos.

“Todoosistemafinanceirodosdezúltimosanos,todasasconquistasfeitasnosanosde1358/59e1367/68foramsacrificadas.Amonarquiafoiarremessadapara trás,paraumasituação de quase um século antes. E acabou quase nomesmo ponto que no início daGuerradosCemAnos.”123

Talcomoumsistemadeforçasqueaindanãoalcançouoequilíbrio,asociedadeosciloude um lado para o outro nessa luta pelo poder.Diz bemdo poder social já detido pelogovernocentral epela função realnessaépocaqueeles tenhamconseguido recuperaroterreno perdido com extraordinária rapidez, embora o novo rei fosse uma criança,inteiramente dependente dos administradores e servidores damonarquia.Aquilo que semanifestou uma vezmais, sob Carlos VIII, com especial clareza, emergiu bem visívelmesmonessaépoca:asoportunidadesabertasàfunçãorealnessaestruturadasociedadefrancesaenessasituação jáeramtãograndesqueamonarquiapôdeexpandirseupodersocial mesmo numa ocasião em que o rei era pessoalmente fraco e insignificante. A

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dependência dos grupos e classes na sociedade, face a um coordenador supremo quemantinha a cooperação entre os vários distritos e funções sociais, cresceu com ainterdependênciadosmesmoseaindamaissobapressãodoperigomilitar.E,querendoounão,rapidamenteelesrestituíramosmeiosnecessáriosparafazeraguerraaoshomensquelhes representavam os interesses comuns, acima de tudo nos conflitos com inimigosexternos:oreieseusrepresentantes.Mas,aofazê-lo,deramtambémàmonarquiameiosparacontrolá-los.Em1382/83,amonarquia,istoé,oreietodosseusparentes,conselhose servidores, que, de algumamaneira, pertenciamàmáquina de governo, encontrava-semais uma vez em posição de impor às cidades, os principais centros de resistência, osimpostosqueconsideravanecessários.

Aquestãodos impostos constituiuoprincipalmotivodos levantes urbanos em1382.Masna lutaporcausadas taxas,edadistribuiçãodeseuônuspelamáquinacentral, foitambémsubmetidaatesteedecididaaquestãodetodaadistribuiçãodepoder.Oobjetivodetervoznolançamentoedistribuiçãodosimpostos,istoé,desupervisionar,apartirdeumaposiçãocentral,ofuncionamentodamáquinadegoverno,foiperseguidodamaneiraa mais deliberada possível pelos notáveis urbanos da época, e não só por eles. Nasassembléias,representantesdosoutrosestadospressionavamàsvezesnamesmadireção.Os horizontes das classes baixa emédia urbanas eram em geral mais limitados: o quequeriam, acima de tudo, era a suspensão de seus fardos opressivos, nada mais. Mas,mesmo nessa direção, nem sempre coincidiam os objetivos dos vários grupos urbanos,ainda que—na relação quemantinham com amáquina central do país—não fossemnecessariamentehostisentresi.Nocírculomenordasprópriascidades,osassuntoserammuito diferentes. Neste caso, os interesses dos diferentes estratos, a despeito de seuentrelaçamento e, de fato, precisamente por esse motivo, divergiam não rarodiametralmente.

Ascomunidadesurbanasdessaépocajáeramformaçõessociaisaltamentecomplexas.Havia nelas um estrato superior privilegiado, os burgueses propriamente ditos, cujaposiçãomonopolistasemanifestavanocontrolequeexerciamdoscargospúblicose,porconseguinte, das finanças. Sobravam um estrato médio, uma espécie de pequenaburguesia, formada pelos artesãos emercadoresmenos ricos, e, finalmente, amassa dejornaleiros e trabalhadores, o “povo”. Neste ponto, também, os impostos formavam oponto focal em que a interdependência e as antíteses surgiam com grande clareza. Seexigências bem-formuladas foram por acaso feitas, os grupos médio e baixo queriamimpostosdiretos,progressivos,quecadaumpagassedeacordocomseusmeios,enquantooestratourbanosuperiorpreferiaosindiretosoudetaxaúnica.Comoaconteciacomtantafreqüência,aagitaçãodopovoporcausadosimpostoseaprimeiraondadeinquietaçãoforam, no início, até bem recebidas pelo estrato urbano superior. E este apoiou omovimento enquanto ele reforçou sua própria oposição à monarquia ou mesmo aossenhores feudais locais. Mas, com muita rapidez, a insurreição voltou-se contra osprópriosmoradoresricosdascidades.Transformou-se,emparte,numalutapelogovernourbanoentreopatriciadoburguêsgovernanteeosestratosmédioeinferior,queexigiamseuquinhãonoscargospúblicos,damesmamaneiraqueosnotáveisurbanosexigiamoseu na esfera mais ampla do governo do país. O estrato urbano superior fugia ou sedefendiaedemodogeralerasalvo,nesseestágiodaluta,pelachegadadastropasreais.

Precisaríamosfazerumdesviograndedemaisparaacompanharemdetalhesessaslutas

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e levantes em diferentes cidades.O fato é que terminaram commais umamudança depoder em favor da máquina central e da monarquia. Os cabecilhos da revolta,especialmenteosquesehaviamrecusadoapagarimpostos,forampunidoscomamorte,outroscompesadasmultas.Àscidadescomoumtodoforamimpostospesados tributos.Em Paris, os castelos reais fortificados, ou bastilhas, receberam reforços e outroscomeçaram a ser construídos, guarnecidos por soldados reais, os gens d’armes.Restringiram-seasliberdadesurbanas.Apartirdesseinstante,aadministraçãodascidadespassou cada vezmais a funcionários reais, até elas se tornarem basicamente órgãos damáquina real de governo. Dessamaneira, a hierarquia damáquina do governo central,constituída dos principais burgueses, ampliou-se, dos postos ministeriais e mais altoscargosjudiciários,paraasposiçõesdeprefeitoechefedeguilda.Aquestãodosimpostos,comoumtodo,tevedecisãoidêntica.Passaramaserfixadospelaorganizaçãocentral.

Seexaminarmosasrazõesporqueessaprovadeforçafoidecididacomtalrapidezemfavordafunçãocentral,maisumavezdeparamoscomofato jámencionadoaqui tantasvezes: era o antagonismo entre os vários grupos da sociedade que dava força à funçãocentral.Aclassealtaburguesamantinhaumrelacionamentotensonãosócomossenhoresfeudaisseculareseoclero,mastambémcomosestratosurbanosmaisbaixos.Nestecaso,eraadesuniãoentreasprópriasclassesurbanasoquemaisbeneficiavaosuserano.Nãomenosimportanteeraofatodeque,atéentão,praticamentenãohaviaqualquerassociaçãoestreitaentreasdiversascidadesdoreino.Observava-se,éverdade,algumatendência—aindaquefraca—paracolaboraçãoentreasváriascidades;masaintegraçãonãoeranemdelongeestreitaosuficienteparapermitiraçãoconcertada.Asdiferentescidadesaindaseenfrentavam,atécertoponto,comosefossempotênciasestrangeiraseentreelas,também,havia uma competiçãomais oumenos intensa. Por issomesmo, os representantes reaisnegociaram, emprimeiro lugar, uma trégua comParis, a fimde conseguir liberdade deaçãocontraascidadesdaFlandres.Assimgarantidos,esmagaramaresistênciaurbananaFlandres, depois em Rouen, e finalmente em Paris. Uma a uma, derrotaram todas ascidades.Nãosóafragmentaçãosocial,mastambémaregional—dentrodecertoslimitesenãoexcluindoalgumgraudeinterdependência—beneficiavaafunçãocentral.Dianteda oposição combinada de todas as partes da população, a monarquia necessariamenteteria sido derrotada.Mas enfrentando cada classe ou região separada, a função central,baseandoseupoderemtodoopaís,eraamaisforte.

Nãoobstante,segmentosdasociedadecontinuaramatentarlimitarouquebraropodercrescentedafunçãocentral.Acadavez,deconformidadecomasmesmasregularidadesestruturais, o equilíbrio perturbado era restabelecido, após certo tempo, em favor damonarquia, que em cada uma dessas provas de força, mais aumentava seu poder. Osimpostos pagos ao rei eram suspensos de vez em quando ou reduzidos, mas nuncadeixavamdeserreintroduzidos,acurtoprazo.Exatamentedamesmamaneira,cargosdeadministraçãoe coletade impostosdesapareciame reapareciam.AhistóriadaChambredes Aides, por exemplo, abunda nessas revoluções e inesperadas mudanças de rumos.Passou ela por várias e sucessivas ressurreições entre 1370 e 1390.Mais uma vez, em1413, 1418, 1425, 1462, 1464 e 1474, experimentou, segundo escreveu um historiador“excessos de vida e morte, ressurreições imprevisíveis,”124 até que finalmente setransformounumasólida instituiçãodamáquina realdegoverno.Emuitoemboraessasflutuações, claro, não refletissemapenas as grandes provas de força, elas proporcionam

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umacertaidéiadasociogênesedafunçãoreal,docrescimentodaorganizaçãomonopolistaemgeral.Deixam claro o quão pouco essas funções e formações sociais resultavamdeplanosdeliberados,alongoprazo,deindivíduos,eoquantonasceramdepassoscurtosetenteantes de um grande número de esforços e atividades humanas entrelaçados econflitantes.

28.Osprópriosreis,nodesdobramentodeseupoderpessoal,dependiamporcompletodasituaçãoemqueencontraramafunçãoreal.EessefatoraramentesemostroucomtantaclarezacomonocasodeCarlosVII.Comopessoa,elecertamentenãoeramuitoforte,enadatevedegrandeoupoderoso.Aindaassim,depoisdeseremexpulsososinglesesdeseuterritório,amonarquiasetornoumaisforte.Oreidestacava-senessemomentodiantedo povo como um vitorioso comandante de exército, por menos que pudesse sentir-seinclinadoparaessepapelporpredisposiçãopessoal.Duranteaguerra, todosos recursosfinanceiros e humanosdopaís haviam sido reunidosnasmãosda autoridade central.Acentralizaçãodoexército,ocontrolemonopolistadatributaçãotinhampercorridoumaboadistância.Oinimigoexternoforarechaçado,masoexército,oupelomenosboapartedele,continuava presente e dava ao rei tal preponderância interna que a resistência a seusdesejos por parte dos estados era praticamente inútil, emparticular porque a populaçãoexaustaqueriaumaúnicacoisaacimadetodasasdemais:paz.Nessasituação,em1436,oreideclarouqueanaçãoaprovaraasaidesporperíodo ilimitadoeque forasolicitadoanãoconvocar,nofuturo,osestadosparadecidirsobreimpostos.Oscustosdaviagemparaasassembléiasdosestados,disse,impunhamumfardopesadodemaisaopovo.

Essajustificação,claro,eradestituídadetodasubstância.Amedidaemsi,asuspensãodas assembléias dos estados, foi simplesmente uma manifestação do poder social damonarquia.Essepoder se tornara tãograndequeasaides,queduranteaguerrahaviamsido mais ou menos contínuas, podiam ser agora proclamadas como uma instituiçãopermanente.Eessepoderjáeratãoinquestionávelqueoreinãojulgavamaisnecessáriocombinarovolumeetipodeimpostoscomaquelesquedeveriampagá-los.Conformejámencionamos,os estados tentaram resistir.A supressãodosEstadosgerais eospoderesditatoriaisdoreinãoseconsolidaramsemumasériedeprovasdeforça.Mastodaselasmostraram repetidamente, e com uma clareza sempre maior, com que inexorabilidade,nessafasedediferenciaçãoeintegraçãoemprogresso,cresciaafunçãocentral.Umavezapós outra, era o poder militar concentrado nas mãos da autoridade central que lhegarantiaeaumentavaocontroledosimpostos,efoiessecontroleconcentradodosmesmosquetornoupossívelamonopolizaçãocadavezmaisfortedopoderfísicoemilitar.Passoapasso,essesdoisseimpeliram,umaooutro,paracimaatéque,emcertoponto,acompletasuperioridadeobtidapela funçãocentralnesseprocesso se revelouem todaa suanudezaosatônitoseamarguradoscontemporâneos.Aqui,umavozdaqueletempovalemaisdoque qualquer descrição para transmitir-nos amaneira como tudo isso se abateu sobre opovocomoalgonovo,semqueelesoubessecomoouporquê.

Quando, sob Carlos VII, o governo central começou abertamente a anunciar e aarrecadar impostos em caráter permanente, sem a anuência dos estados, Juvenal desUrsines,arcebispodeRheims,escreveuumacartaaorei.Incluíaela,emtraduçãolivre,oseguinte:125

Quando os predecessores de Vossa Alteza tencionavam ir à guerra, costumavam convocar os três estados;convidavam representantes da Igreja, danobreza e dosplebeuspara reunirem-se comeles em suasboas cidades.

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Vinhameexplicavamoestadodascoisas,diziamoqueeranecessáriopararesistiraoinimigo,esolicitavamqueosrepresentantesreunidosseconsultassemsobreamaneiracomoaguerradeviaserconduzida,afimdeajudaremoreicom impostosdecididosnessadiscussão.VossaAltezasempreobservouesseprocedimento,atéquecompreendeuqueDeuseaFortuna—queémutável—aajudaramdetal formaquetaisdiscussõesestãoagoraabaixodesuadignidade.VossaAlteza impõe agora as “aides” e outros tributos e permite que sejam cobradas como se fossemtributosdeseuprópriodomínio,semanuênciadeseustrêsestados.

Antes…oreinopodia,comjustiça,serdenominado“RoyaumeFrance”,poiscostumavaserlivre[franc]egozavade todasas liberdades [franchiseset libertés].Hojeopovonadamaisédoqueescravo, arbitrariamente tributado[taillablesàvoulenté].Seexaminamosapopulaçãodoreino,descobrimosapenasumdécimodosqueantigamenteneleviviam.NãodesejoreduziropoderdeVossaAlteza,mas,sim,aumentá-lotantoquantoestiverdentrodeminhasforças.Nãohádúvidadequeumpríncipe,eemespecialVossaAlteza,podeemcertoscasostirar[tailler]algumacoisadevossossúditosecobraras“aides”,sobretudoparadefenderoreinoeacoisapública[chosepublique].Mastemqueconcordaremfazerissodeformarazoável.Atarefadelenãoéaminha.ÉpossívelqueVossaAltezasejasoberananasquestõesdejustiça,equeestasejasuaautoridade.Mas,noqueinteressaàsreceitasdeseusdomínios,oreitemseudomínioecadaparticulartambémpossuioseu[N.B.:emoutraspalavras,oreidevesustentar-secomareceita de suas propriedades e domínios, sem usurpar o controle da receita de todo país]. Hoje, os súditos têmtosquiadanãosóasualã,mastambémapele,acarneeosangue,atéosossos.

Emoutrotrecho,oarcebispodálivrerédeaàsuaindignação:“Mereceserdestituídodogoverno aquele que o usa voluntariosamente e nem na metade em proveito de seussúditos…Cuidado,portanto,paraqueoexcessodemoedaquefluiparasuasmãosatravésdas ‘aides’, que Vossa Alteza extrai do corpo, não lhe destrua a alma. Vossa Alteza étambémacabeçadessecorpo.Nãoseriaumagrandetiraniaseacabeçadeumacriaturahumana destruísse o coração, asmãos e os pés? [N.B.: provavelmente, simbolizando oclero,osguerreiroseaspessoascomuns].”

Apartirdessemomentoeporumlongoperíodo,sãoossúditosquechamamaatençãoparaocaráterpúblicodafunçãoreal.Expressõescomo“coisapública”,“pátria”emesmo“Estado”sãousadaspelaprimeiravez,geralmenteemoposiçãoapríncipesereis.Nessafase,ossuseranoscontrolamasoportunidadesmonopolizadas,acimadetudoareceitadeseusdomínios—conformedizJuvenaldesUrsines—comosefossepropriedadeprivadasua. E é nesse sentido, também, como resposta ao emprego pela oposição de palavrascomo pátria e Estado, que devemos compreender a frase atribuída ao rei: “Eu sou oEstado.”Oespantoanteessesdesdobramentos,contudo,nãoselimitaàFrança.Oregimequenelaestáemergindo,aforçaesolidezdamáquinaefunçãocentrais,quemaiscedooumais tarde hão de aparecer na base de estruturas análogas emquase todos os países daEuropa,eramnoséculoXValgosurpreendenteenovoparaosobservadoresde foradaFrança. Precisamos apenas ler os relatórios do enviado veneziano dessa época paraperceber comoumobservador estrangeiro,que indubitavelmente tinha largaexperiênciadessesassuntos,descobriunaFrançaumaformadesconhecidadegoverno.

Em1492,VenezadespachadoisenviadosparaParis,oficialmenteparacongratular-secom Carlos VIII pelo seu casamento com Ana da Bretanha, mas, na realidade, paradescobrircomoeondeaFrançatencionausarseupodernaItáliae,demodogeral,comoandamascoisasnopaís,qualéasituaçãofinanceira,quetipodepessoassãooreieseusministros,queprodutossãoimportadoseexportados,quefunçõesexistem;emsuma,osenviadostêmquedescobrirtudooquevalhaapena,afimdepermitiraVenezatomarasmedidaspolíticascorretas.Essasembaixadas,quegradualmentemudamdenatureza,deinstituições ocasionais para permanentes, constituem um sinal de como a Europalentamentesetornavacadavezmaisinterdependente.

Em conseqüência, encontramos nesses relatórios, entre outras coisas, uma descrição

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exata das finanças francesas e dos procedimentos financeiros empregados no país. Oenviadoestimaarendadoreiemaproximadamente3.600.000francosaoano—incluindo“1.400.000franchidaalcuneimposizionichesesolevanometterestraordinarie…lequalisisomocontinuatepertalmodochealpresentesonofatteordinarie”’(1.400.000francosgerados por imposições que costumavam ser extraordinárias, mas que se tornaramordinárias). O embaixador estimava as despesas do rei em 6.600.000 ou 7.300.000francos.Odéficiteracobertodaseguintemaneira:Todososanos,emjaneiro,osdiretoresdaadministraçãofinanceiradecadaregião—istoé,asdodomíniorealpropriamentedito,Delfinado, Languedoc, Bretanha e Borgonha — reúnem-se para calcular a receita edespesaseatenderàsnecessidadesdoanoseguinte.Ecomeçamexaminandoasdespesas[primamettonotuttalaspesa]eparacobrirodéficitentreasdespesaseareceitaesperadaestabelecemumimpostogeralpara todasasprovínciasdoReino.Desses impostos,nempreladosnemnobrespagamcoisaalguma,masapenasopovo.Destamaneira, a receitaordináriaeesseimpostolevantamosuficienteparacobrirasdespesasdoanoseguinte.Se,durante o ano, irromper uma guerra ou houver qualquer outra causa inesperada dedespesas,tornandoasestimativasinsuficientes,outroimpostoouestipêndioélançado,demodoque,emtodasascircunstâncias,asomanecessáriasejaobtida.126

Até agora, discorremos — longamente — sobre a formação do monopólio detributação.Norelatóriodosenviadosvenezianos, temosumadescriçãobastanteclaradesuaformaefuncionamentonesseestágiodedesenvolvimento.Descobrimostambémumdos mais importantes aspectos estruturais do absolutismo e — até certo ponto — do“Estado” emgeral: a primazia das despesas sobre a receita.Para os indivíduosque sãomembros da sociedade, em especial da sociedade burguesa, torna-se cada vez maishabitual e necessário fixar rigorosamente as despesas de acordo com a receita. Naeconomiadeumtodosocial,emcontraste,asdespesassãoopontofixo;areceita,istoé,assomasexigidasdemembrosindividuaisdasociedadeatravésdomonopóliotributário,torna-sedependentedelas.Temosaquimaisumexemplodecomoatotalidaderesultanteda interdependência de indivíduos possui características estruturais e está sujeita aregularidadesdistintasdasqueseaplicama indivíduos,enãodevemsercompreendidasdo ponto de vista destes. O único limite estabelecido às necessidades financeiras daagênciacentralnessaépocaeraacapacidade tributáveldasociedadecomoum todoeopoder social de cada grupo isoladamente considerado, em relação aos controladores domonopóliofiscal.Maistarde,quandoaadministraçãomonopolistacaiusobocontroledeestratosburguesesmaisvastos,aeconomiadasociedadecomoumtodofoirigorosamenteseparada da economia de pessoas isoladas que administravam o monopólio central. Asociedadecomoumtodo,oEstado,podiaedeviacontinuarafazerosimpostoseareceitaserem basicamente dependentes das despesas socialmente necessárias. Mas os reis, osgovernantes centrais, teriam que se comportar como todos os demais indivíduos.Receberiamumestipêndiofixoedentrodesselimiteteriamqueadministrarsuasdespesas.

Aqui,naprimeirafasedomonopóliocompleto,ascoisaseramdiferentes.Aseconomiasrealepúblicanãoestavamaindaseparadas.Osreisfixavamosimpostosdeacordocomasdespesasqueconsideravamnecessárias,fossemelasparacustearguerras,castelosoudarpresentesaosfavoritos.Masoque,denossopontodevista,eraapenasoprimeiroestágiono caminho para a formação de monopólios societários ou públicos, parecia a essesobservadores venezianos por volta de 1500 uma novidade, que eles examinavam com

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curiosidade,comoprovavelmentefaríamosaoestudarmaneirasecostumesdesconhecidosdepovosestranhos.Nolugardeondevinham,ascoisaserammuitodiferentes.Opoderdasautoridadesvenezianassupremas,comoodospríncipesmedievais,erarestringidoemaltograupelosgovernos locaisdasdiferentes regiõeseEstados.Veneza, também,eraocentrodeumimportantedomínio.Outrasmunicipalidadescolocavam-se,voluntariamenteou não, sob seu governo.Mas,mesmo no caso das comunas subjugadas pela força, ascondições em que eram incorporadas ao domínio veneziano quase sempre incluíam acláusula de “que nenhum imposto pode ser lançado sem a concordância damaioria doconselho.”127

Nos relatórios serenos dos imparciais enviados venezianos, a transformação queocorreranaFrançatalvezestejamaisvivamentedescritadoquenaspalavrasindignadasdoarcebispodeRheims.

Em1535,orelatóriodosenviadosvenezianoscontémotrechoseguinte:Àparteofatodesermilitarmentepoderoso,oreiobtémdinheirodevidoàobediênciadopovo.DigoqueSuaMajestade,emgeral,contacomumarendadedoismilhõesemeio.Digo“emgeral”porque, se desejar, o rei pode aumentar os impostos cobrados ao povo. Quaisquer quesejamos fardos que lhe impõe, o povo paga, sem reclamar.Mas tenho que dizer nesteparticular que o segmento da população que carrega amaior parte desse fardo émuitopobre,demodoquequalqueraumentonofardo,mesmopequeno,seriainsuportável.

Finalmente, em 1546, o embaixador veneziano,MarinoCavalli, redige um preciso edetalhadorelatóriosobreaFrança,noqualaspeculiaridadesdogoverno,daformacomoaparecemaumcontemporâneoimparcial,emergemcomespecialclareza:

MuitosreinossãomaisférteisericosdoqueaFrança,como,porexemplo,aHungriaeaItália;outrossãomaioresemaispoderosos,como,porexemplo,aGermâniaeaEspanha.Masnenhumétãounidoeobediente.Nãoacreditoqueseuprestígiotenhaqualqueroutracausaqueessasduas:uniãoeobediência[unioneeobbedienza].Parasermosexatos,aliberdadeéadádivamaisapreciadanomundo,masnemtodosamerecem.Poressarazão,algumaspessoasnascememgeralparaobedecer,outrasparamandar.Nocasooposto,podemosterumasituaçãocomoadaGermânianopresente,ouantesnaEspanha.Osfranceses,contudo,talvezsejulgandoincompatíveiscomela,entregaramsualiberdadeevontadeinteiramenteaorei.Demodoque,paraele,ésuficientedizer:queroistoeaquilo,aprovoistoeaquilo,decidoistoeaquilo,etudoissoéimediatamenteexecutadocomosetodoselesotivessemdecidido.Ascoisaschegaram a tal ponto que um deles, que temmais humor do que os outros, disse:Antes os reis chamavam a simesmosde“regesFrancorum”ehojepodemchamar-sede“regesservorum”.gDemodoquenãosópagamaoreitudooqueeleexige,mastodoocapitalrestanteestádeigualmaneiraàsuadisposição.

CarlosVIIaumentouaobediênciadopovodepoisdelibertaropaísdojugoinglês;e,apósele,LuísXIeCarlosVIII,queconquistouNápoles,fizeramamesmacoisa.LuísXIIdeusuaprópriacontribuição.Oatualrei(FranciscoI),porém,podegabar-sedehaversuperadoamplamenteseuspredecessores:obrigouseussúditosapagaremsomasextraordinárias, tanto quanto quis; uniu novas possessões aos Estados daCoroa sem dar nada em troca. E se dáalgumacoisa,issosóvalepelotempodevidadele,quedeu,edaquelequerecebeu.Eseumououtrovivedemais,opresenteéretirado,comoalgodevidoàCoroa.Éverdadequealgunssãodepoistornadospermanentes.Eapráticaéamesmanotocanteaoschefeseàsváriasgraduaçõesmilitares.Demodoquesealguémentrarparavossoserviçoedisser que recebeu tais recompensas, títulos e propriedades dos franceses, Vossa Serenidade saberá que tipo depropriedades,títulosepresentessãoesses.Muitosnuncaosobtêm,ouapenasissoaconteceemumaúnicaocasiãodesua vida, enquanto outros passam dois, três anos, sem receber qualquer recompensa. Vossa Serenidade, que doacoisasbem-definidas,masatécertopontohereditárias,certamentenãodeveserinfluenciadapeloexemplodoqueéfeito em outros lugares. Naminha opinião, o costume de dar apenas pela duração da vida do contemplado… éexcelente.Elesempredáaoreiaoportunidadedepremiarosquesãomerecedoresesempresobraalgumacoisaparadar.Seosdonsfossemhereditários,teríamosagoraumaFrânciaempobrecidaeosatuaisreisnadamaisteriamparadistribuir. Desta maneira, são servidos por pessoas de mais mérito do que pelos herdeiros de alguém antescontemplado. Vossa Serenidade poderia meditar, se a França age dessa maneira, o que deveriam fazer outrospríncipes, que não governam um país tão grande? Se não pensarmos com cuidado aonde levam esses donativos

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hereditários—àpreservaçãodafamília,segundodizem—aconteceráquenãorestarãorecompensassuficientesparaosindivíduosrealmentemerecedores,ounovosfardosterãoqueserimpostosaopovo.Ambasascoisassãomuitoinjustas e danosas. Se os donativos são feitos apenas pelo tempo de vida, então só os que merecem é que sãorecompensados. As propriedades circulam e, após algum tempo, voltam à origem…Nos últimos 80 anos novosacordosforamfreqüentementefirmadoscomaCoroa,semquenadasejadesperdiçado,graçasaoconfisco,reversão,herançaoucompra.Destamaneira,aCoroaabsorveutudo,atalpontoquenãoháumúnicopríncipenoreinoquetenhaumarendade20.000scudi.Alémdisso,osquepossuemrendaeterrasnãosãoproprietárioscomuns,umavezqueoreiconservaodomíniosupremoatravésdeapelos,impostos,guarniçõesmilitaresetodososoutrosnovoseextraordinários fardos lançados sobreopovo.ACoroa torna-se cadavezmais rica e unificada, consegue imensoprestígioeessesfatosaprotegemdequalquerguerracivil.Istoporque,comonãohápríncipesquenãosejampobres,elesnãotêmrazãonempossibilidadedeiniciaraçãocontraorei,assimcomoosduquesdaBretanha,Normandia,BorgonhaemuitosoutrosgrandessenhoresdaGasconhafizeramnopassado.Esealguémtentaalgumacoisamal-avisadaebuscaprovocaralgumamudança,talcomoosBourbons,issosimplesmentedáaoreioportunidadedeseenriqueceratravésdaruínadessehomem.128

No trecho acima temos uma visão compacta, que sintetiza os aspectos estruturaisdecisivosdoabsolutismoemergente.Umúnicosenhorfeudalobtevepredominânciasobretodososconcorrentesereina,supremo,sobretodaaterra.Eessecontroledaterraécadavezmaiscomercializadooumonetarizado.Amudançamanifesta-se,porumlado,nofatodequeoreiexerceomonopóliodacoletaefixaçãodeimpostosemtodoopaíse,assim,controlaamaisaltadetodasasrendas.Umreiquepossuíaedistribuíaterraia-setornandoumsoberanoquepossuíaedistribuíarenda.Exatamentefoiissoquelhepermitiuquebrarocírculoviciosoqueaprisionavaosgovernantesdepaísesemquevigiaaeconomiadetroca.Elenãopagavamais,pelosserviçosdequenecessitava,fossemmilitares,cortesãosouadministrativos,desfazendo-sedepartesdesuaspropriedades,quese transformavamempropriedadeshereditáriasdeseusservidores,comoainda,evidentemente,aconteciaemVeneza.Nomáximo, concedia terras ou um salário enquanto vivesse o contemplado, edepoisosretirava,demodoanãoreduziraspossesdacoroa;numnúmerocrescentedecasos, recompensava os serviços meramente com dons em dinheiro ou com salários.Centralizavaatributaçãoemtodoopaísedistribuíacomoqueriaodinheiroqueentravaenointeressedeseugoverno,demodoqueumnúmeroenormeesempremaiordepessoasem todo o país passava a depender direta ou indiretamente dos seus favores, e depagamentosefetuadospelaadministraçãofinanceirareal.Sãoosinteressesmaisoumenosprivadosdosreisedeseusservidoresmaispróximosqueseconcentramnaexploraçãodeoportunidadessociaisnessadireção,masoquesurgedosconflitosdeinteressesentreasvárias funções sociais é a forma de organização social que chamamos de “Estado”. Omonopóliodetributação,juntamentecomomonopóliodaforçafísica,formamaespinhadorsaldaorganização.Nãopoderemosentenderagênesenemaexistênciade“Estados”senãosoubermos—aindaquebaseadosnoexemplodeumúnicopaís—comoumadessasinstituiçõesfundamentaisdo“Estado”desenvolveu-sepassoapasso,segundoadinâmicadasrelações,emresultadodeumaregularidademuitoespecífica,queporsuavezdecorriada estrutura de interesses e ações interligados.Mesmo nessa fase— como vimos pelorelatório do embaixador veneziano — o órgão central da sociedade assumia umaestabilidade e solidez até então desconhecidas porque seu governante, graças àmonetarização da sociedade, não precisava mais pagar serviços desfazendo-se de suaspropriedades,semasquaisaexpansão,cedooutarde,seesgotaria,maspodiafazê-locomsomas de dinheiro produzido pela arrecadação regular da tributação. Finalmente, apeculiaridadedamoedaisentava-odanecessidade,quederivavadoantigoprocedimentode recompensar as pessoas com terras, de pagar serviços com propriedades que seriamconservadasportodaavidadobeneficiárioeporseusherdeiros.Amoedatornoupossível

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premiaroserviçooucertonúmerodeserviçoscomumúnicopagamento,umhonorárioousalário.Asconseqüênciasnumerosasedelongoalcancedessamudançanãopoderãoseranalisadas aqui. O espanto do enviado veneziano é suficiente para mostrar que essecostume,hojecomumeaceitocomonatural,eravistoporelecomoalgonovo.Orelatóriomostrapor que só amonetarizaçãoda sociedade tornoupossível a existênciadeórgãoscentrais estáveis: os pagamentos monetários mantinham todos os contemplados numapermanente dependência da autoridade central. Só nesse momento é que as tendênciascentrífugaspuderamserdefinitivamentederrotadas.

Eétambémcombasenessecontextomaisamploqueteremosquecompreenderoquevinha acontecendo com a nobreza da época.No período precedente, quando o resto danobrezaeramaisforte,oreiexerceraseupodercomosuserano,dentrodecertoslimites,em favor da burguesia. A máquina de governo transformara-se, assim, no bastião daburguesia. Mas no momento em que, como resultado da integração monetária ecentralizaçãomilitar,osguerreiros,osdonosdeterras,anobreza,declinavammaisemais,oreicomeçouavoltarparaoladodanobrezaoseupesoeasoportunidadesquetinhaadistribuir. Deu a uma fração dela a possibilidade de continuar a existir como estratoelevado, acima da burguesia. Gradualmente, após a última resistência infrutífera deelementosdosestadosnasguerrasreligiosase,maistarde,naFronda,oscargosdacortetornaram-se um privilégio e bastião da nobreza. Dessa maneira, os reis protegiam apreeminênciadanobreza,distribuindoosfavoreseodinheiroquecontrolavamdemaneiraa preservar o equilíbrio posto em risco pelo seu declínio.Mas, por essa via, a nobrezaguerreira relativamente livre do passado transformou-se em nobreza em perpétuadependência e a serviço do suserano. Os cavaleiros tornaram-se cortesãos. E se somosperguntados que funções sociais esses cortesãos realmente exerciam, a resposta seencontra aqui. Estamos acostumados a nos referir à nobreza cortesã do ancien régimecomoumaclasse“semfunção”.E,defato,essanobrezanãotinhafunçãoemtermosdedivisãodetrabalhoe,portanto,nenhuma,segundooentendimentodasnaçõesdosséculosXIX e XX. Mas a configuração das funções no ancien régime era diferente. E eradeterminada principalmente pelo fato de que o governante central continuava a ser, emgrau considerável, o proprietário pessoal do monopólio de poder, e não havia aindanenhumadivisãoentreogovernantecentralcomoindivíduoprivadoecomofuncionárioda sociedade.Anobrezade cortenão exercia funçãodiretanadivisãode trabalho,mastinha uma função para o rei. Era uma das fundações indispensáveis de seu governo.Permitia-lhe distanciar-se da burguesia, exatamente como a burguesia lhe permitiadistanciar-se da nobreza. Na sociedade, ela era o contrapeso da burguesia. Essa, semexcluir algumas outras, era sua funçãomais importante para o rei. Sem a tensão entrenobrezaeburguesia,semessaacentuadadiferençaentreosestados,oreiperderiaamaiorpartedeseupoder.Aexistênciadaaristocraciacortesãerarealmenteumaamostradeatéondeforaogovernomonopolistacomopropriedadepessoaldogovernantecentral,eatéque ponto a renda dopaís podia ainda ser distribuída no interesse específico da funçãocentral. A possibilidade de uma espécie de distribuição planejada da renda nacional jásurgiracomamonopolização,mas,aqui,essapossibilidadedeplanejamentoéusadaparaprotegerestratosoufunçõesemdecadência.

De tudo isso emerge uma clara imagem da estrutura da sociedade absolutista. Asociedade secular do ancien régime francês consistia, mais acentuadamente do que no

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séculoXIX,dedoissetores:umsetoragráriomaisamploeoutrourbanoburguês,menor,mas que ininterruptamente crescia em poder econômico. Em ambos havia um estratoinferior,noúltimoospobresurbanos,amassadosjornaleirosetrabalhadorescomuns,e,noprimeiro,oscamponeses.Emamboshaviaaindaumestratomédiobaixo,noúltimo,ospequenos artesãos e, provavelmente, os funcionários de graduação mais baixa, e, noprimeiro, a pequena fidalguia possuidora de algumas terras em cantos de província; etambémemambosumestratomédiosuperior,noúltimoconstituídodericosmercadores,altos funcionários e mesmo, nas províncias, dos mais altos servidores judiciários eadministrativos,e,noprimeiro,aaristocraciamaisabastadadointerioredasprovíncias.Emambosossetores,finalmente,existiaumestratoprincipal,queseestendiapelacorte,noúltimo,aaltaburocracia,anoblessederobe;eanobrezacortesã,aelitedanoblessed’épéenoprimeiro.hEmmeioàs tensõesdentrodessessetoreseentreeles,complicadaspelastensõesealiançasdeamboscomumcleroestruturadoemhierarquiasemelhante,orei,comtodoocuidado,mantinhaoequilíbrio.Garantiaosprivilégioseprestígiosocialdosnobrescontraopodereconômicocrescentedosgruposburgueses.Eusavapartedoproduto social de que dispunha em virtude do controle que exercia do monopóliofinanceiro,afimdesustentaramaisaltanobreza.Quando,nãomuitoantesdaRevolução,depois de terem fracassado todas as tentativas de reforma, a exigência de abolição dosprivilégiosdosnobressubiuparaoprimeiroplanoentreoslemasdosgruposburguesesdeoposição,issoimplicouaexigênciadeumaadministraçãodiferentedomonopóliofiscaledareceitatributária.Aaboliçãodosprivilégiosdosnobressignificava,porumlado,ofimda isenção de impostos de que gozava a nobreza e, portanto, a redistribuição do ônusfiscal;e,poroutro,aeliminaçãooureduçãodenumerososcargosnacorte,aaniquilaçãodoqueconstituía—aosolhosdanovaburguesia—umanobrezainútilesemfunçãoe,portanto,umadistribuiçãodiferentedareceitatributária,nãomaisnointeressedorei,masda sociedade em geral, ou pelo menos, para começar, da alta burguesia. Finalmente,contudo, a eliminação dos privilégios dos nobres significou a destruição da posição dosuserano, como fiel da balança quemantinha os dois estados na ordem de precedênciavigente.Osgovernantesdoperíodosubseqüenteequilibraram-senumaredediferentedetensões. Eles e suas funções, por isso mesmo, mudaram de caráter. Só uma coisapermaneceuigual:mesmonessanovaestruturadetensões,opoderdaautoridadecentralerarelativamentelimitadoenquantoastensõespermaneciamrelativamentebaixas,quandoumacordodiretoerapossívelentreosrepresentantesdepólosopostos,ecrescianasfasesem que as tensões aumentavam, quando nenhum dos grupos concorrentes conseguiaalcançarsupremaciadecisiva.______________

a “Condes do rei”, ou “condes do reino”. (RJR) b Ou guelfos, na forma latinizada. (RJR) c Governantes doBrandemburgo,emaistardedaPrússia.(RJR)dCoutumes,nooriginal:costumes,práticas,direitoconsuetudinário,quena época têm força superior à lei promulgada, porque esta parece depender da vontade humana e de seu arbítrio,enquantoatradiçãoeoimemorialsãoconsideradosrepresentaremavontadeeaordenaçãodeDeus.(RJR)e“Príncipesdaflordelis”,nomedevidoaoemblemadaCasaRealfrancesa.(RJR)f“Elessãolinhadesalinhada/malfeitaemalalinhada”.(RJR)g“RegesFrancorum”,reisdosfrancos,noduplosentidodapalavra:1)opovogermânicoancestraldosatuaisfranceses;2)livres.“Regesservorum”,reisdeservos.(RJR)hNoblessederobe,nobrezadetoga:osjuízes,quegeralmentedescendiamdeburguesesquehaviamcompradocargosqueconferiamacondiçãonobre.Noblessed’épée,nobrezadeespada:aqueexerciafunçõesmilitares,asmaisconformesaoidealaristocrático,eque,omaisdasvezes,remontaatétemposmaisantigos.(RJR)

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parteII:sinopse

SUGESTÕESPARAUMATEORIADEPROCESSOSCIVILIZADORES

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I

DoControleSocialaoAutocontroleO que tem a organização da sociedade sob a forma de “Estados”, o que têm a

monopolizaçãoeacentralizaçãodeimpostosedaforçafísicanumvastoterritório,avercoma“civilização”?

O estudioso do processo civilizador enfrenta um enorme emaranhado de problemas.Paramencionar alguns dosmais importantes, temos, emprimeiro lugar, a questãomaisgeral.Vimos—eascitaçõesnoprimeirovolumeservirampara ilustrarestepontocomexemplosespecíficos—queoprocessocivilizadorconstituiumamudançanacondutaesentimentoshumanosrumoaumadireçãomuitoespecífica.Mas,evidentemente,pessoasisoladas no passado não planejaram essa mudança, essa “civilização”, pretendendoefetivá-la gradualmente através de medidas conscientes, “racionais”, deliberadas. Claroque “civilização” não é, nemo é a racionalização, umproduto da “ratio” humanaou oresultado de um planejamento calculado a longo prazo. Como seria concebível que a“racionalização” gradual pudesse fundamentar-se num comportamento e planejamento“racionais” que a ela preexistissem desde vários séculos? Podemos realmente imaginarqueoprocessocivilizadortenhasidopostoemmovimentoporpessoasdotadasdeumatalperspectivaalongoprazo,deumtalcontroleespecíficodetodososafetosdecurtoprazo,jáqueessaperspectivaalongoprazoeesseautodomíniopressupõemumlongoprocessocivilizador?

Na verdade, nada na história indica que essa mudança tenha sido realizada“racionalmente”, através de qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou degrupos.Acoisaaconteceu,demaneirageral,semplanejamentoalgum,masnemporissosem um tipo específico de ordem. Mostramos como o controle efetuado através deterceiras pessoas é convertido, de vários aspectos, em autocontrole, que as atividadeshumanasmais animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida comunal einvestidasdesentimentosdevergonha,quearegulaçãodetodaavidainstintivaeafetivaporumfirmeautocontrolese tornacadavezmaisestável,uniformeegeneralizada. Issotudo certamente não resulta de uma idéia central concebida há séculos por pessoasisoladas, e depois implantada em sucessivas gerações como a finalidade da ação e doestadodesejados,atéseconcretizarporinteironos“séculosdeprogresso”.Aindaassim,embora não fosse planejada e intencional, essa transformação não constitui uma meraseqüênciademudançascaóticasenão-estruturadas.

Oqueaquisecolocanotocanteaoprocessocivilizadornadamaisédoqueoproblemageraldamudançahistórica.Tomadacomoumtodo,essamudançanãofoi“racionalmente”planejada, mas tampouco se reduziu ao aparecimento e desaparecimento aleatórios demodelosdesordenados.Comoteriasidoissopossível?Comopodeacontecerquesurjamnomundohumanoformaçõessociaisquenenhumserisoladoplanejoueque,aindaassim,sãotudomenosformaçõesdenuvens,semestabilidadeouestrutura?

Oestudoprecedente,emespecialaspartesdedicadasaosproblemasdadinâmicasocial,

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tentoudarumarespostaaessasperguntas.Eelaémuitosimples:planoseações,impulsosemocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modoamistosoouhostil.Essetecidobásico,resultantedemuitosplanoseaçõesisolados,podedarorigemamudançasemodelosquenenhumapessoaisoladaplanejououcriou.Dessainterdependênciadepessoassurgeumaordemsuigeneris,umaordemmaisirresistívelemais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem129. É essaordemde impulsos e anelos humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina ocursodamudançahistórica,equesubjazaoprocessocivilizador.

Essa ordem nem é “racional” — se por “racional” entendemos que ela resultariaintencionalmentedadeliberaçãoedopropósitodepessoasisoladas—,nem“irracional”—sepor“irracional”queremosdizerquetenhasurgidodemaneiraincompreensível.Elaàsvezesfoiidentificadacomaordemda“Natureza”;Hegelealgunsoutrosinterpretaram-na como um tipo de “Espírito” supra-individual, e o conceito hegeliano de “astúcia darazão”mostraoquantoofilósofosepreocupavacomofatodequeoplanejamentoeaçõeshumanas dão origem a numerosas coisas que ninguém realmente pretendeu.Os hábitosmentaisquetendemanosprenderaparesdeopostos,como“racional”e“irracional”ou“espírito” e “natureza”, aqui se mostram inadequados. Neste particular, também, arealidade não é construída exatamente como o aparato conceitual de um dado padrãogostariaqueacreditássemos,quaisquerquetenhamsidoosserviçosvaliososqueemseutempo nos tenha prestado como bússola a nos orientar em meio a um mundodesconhecido.Asregularidadesimanentesàsconfiguraçõessociaisnãosãoidênticasàsregularidades da “mente”, do raciocínio individual, nem às regularidades do quechamamosde“natureza”,mesmoque, funcionalmente, todasessasdiferentesdimensõesda realidade estejam indissoluvelmente ligadas entre si. Em si mesma, contudo, essaafirmaçãogenéricasobreaautonomiarelativadasconfiguraçõessociaispoucocontribuipara compreendê-las;permanecevazia e ambígua, amenosqueadinâmica concreta doentrelaçamentosocialsejadiretamenteilustradacomreferênciaamudançasespecíficaseempiricamentedemonstráveis.Estafoiprecisamenteumadastarefasaquenosdedicamosna Parte Um deste volume. Tentamos nela demonstrar que tipo de interligação, dedependência mútua entre pessoas, põe em movimento, por exemplo, processos defeudalização.Mostramosqueacompulsãodesituaçõescompetitivaslevoucertonúmerode senhores feudais aoconflito,queocírculodecompetidores foi lentamente reduzido,quetalfatolevouaomonopóliodeumdeles,efinalmente—emcombinaçãocomoutrosmecanismos de integração, como os processos cada vezmais intensos de formação decapital e diferenciação funcional— culminou na formação doEstado absolutista. Todaessareorganizaçãodosrelacionamentoshumanosse fezacompanhardecorrespondentesmudanças nas maneiras, na estrutura da personalidade do homem, cujo resultadoprovisórioénossaformadecondutaedesentimentos“civilizados”.Aconexãoentreessasmudanças específicas na estrutura das relações humanas e as modificaçõescorrespondentes na estrutura da personalidade tornará a ser discutida adiante.O estudodessesmecanismosdeintegração,porém,tambémérelevante,demodomaisgeral,paraacompreensãodoprocesso civilizador.Só se percebermos a força irresistível comaqualumaestruturasocialdeterminada,umaformaparticulardeentrelaçamentosocial,orienta-se,impelidaporsuastensões,paraumamudançaespecíficae,assim,paraoutrasformasde entrelaçamento130, é que poderemos compreender como essas mudanças surgem namentalidade humana, na modelação do maleável aparato psicológico, como se pode

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observarrepetidasvezesnahistóriahumana,desdeostemposmaisremotosatéopresente.E só então, por conseguinte, poderemos entender que a mudança psicológica que acivilização implica esteja sujeita a uma ordem e direçãomuito específicas, embora nãotivessem estas sido planejadas por pessoas isoladas, nem produzidas por medidas“razoáveis”,propositais.Acivilizaçãonãoé“razoável”,nem“racional”,131comotambémnão é “irracional”. É posta em movimento cegamente e mantida em movimento peladinâmica autônoma de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas namaneira como as pessoas se vêem obrigadas a conviver. Mas não é absolutamenteimpossível que possamos extrair dela alguma coisamais “razoável”, alguma coisa quefuncionemelhoremtermosdenossasnecessidadeseobjetivos.Porqueéprecisamenteemcombinação com o processo civilizador que a dinâmica cega dos homens,entremisturando-seemseusatoseobjetivos,gradualmentelevaaumcampodeaçãomaisvastoparaa intervençãoplanejadanasestruturas sociale individual—intervençãoestabaseadanumconhecimentocadavezmaiordadinâmicanão-planejadadessasestruturas.

Masquemudançasespecíficasnamaneiracomoaspessoasseprendemumasàsoutraslhesmodelam a personalidade de umamaneira “civilizadora”?A respostamais geral aessapergunta,umarespostabaseadanoqueantesdissemossobreasmudançasocorridasna sociedade ocidental, é bastante simples. Do período mais remoto da história doOcidenteatéosnossosdias,as funçõessociais, sobpressãodacompetição, tornaram-secadavezmaisdiferenciadas.Quantomaisdiferenciadaselassetornavam,maiscresciaonúmerode funções e, assim,depessoasdasquaiso indivíduoconstantementedependiaemtodassuasações,desdeassimplesecomunsatéascomplexaseraras.Àmedidaquemais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, a teia de ações teria que seorganizar de forma sempremais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individualdesempenhasse uma função social. O indivíduo era compelido a regular a conduta demaneiramaisdiferenciada,uniformeeestável.Ofatodeque issonãoexijaapenasumaregulação consciente já foi salientado. O fato seguinte foi característico das mudançaspsicológicas ocorridas no curso da civilização: o controle mais complexo e estável daconduta passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde seus primeiros anos,comoumaespéciedeautomatismo,umaauto-compulsãoàqualelenãopoderia resistir,mesmo que desejasse. A teia de ações tornou-se tão complexa e extensa, o esforçonecessário para comportar-se “corretamente” dentro dela ficou tão grande que, alémdoautocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foifirmemente estabelecido. Esse mecanismo visava a prevenir transgressões docomportamento socialmente aceitável mediante uma muralha de medos profundamentearraigados, mas, precisamente porque operava cegamente e pelo hábito, ele, comfreqüência,indiretamenteproduziacolisõescomarealidadesocial.Masfosseconscienteou inconscientemente, a direção dessa transformação da conduta, sob a forma de umaregulação crescentemente diferenciada de impulsos, era determinada pela direção doprocessodediferenciaçãosocial,pelaprogressivadivisãodefunçõesepelocrescimentodecadeiasdeinterdependêncianasquais,diretaouindiretamente,cadaimpulso,cadaaçãodoindivíduotornavam-seintegrados.

Umamaneirasimplesdedescreveradiferençaentreaintegraçãodoindivíduoemumasociedadecomplexaeemoutramenoscomplexaconsisteempensaremseusdiferentessistemas rodoviários. Estes, em certo sentido, constituem funções espaciais de uma

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integração social que, em sua totalidade, não se pode expressar simplesmente emconceitosderivadosdocontinuumquadrimensional.Pensemosnasestradasinterioranasdeuma sociedade simples de guerreiros, com uma economia de troca, sem calçamento,expostasaoventoeàchuva.Comrarasexceções,hápoucotráfego;oprincipalperigoéumataquedesoldadosousalteadores.Quandoaspessoasolhamemvolta,paraasárvores,morros ou a própria estrada, fazem isso principalmente porque precisam estar semprepreparadas para um ataque armado, e apenas secundariamente porque têm que evitarcolisões.A vida nas estradas principais dessa sociedade exige uma prontidão constanteparaaluta,edálivrerédeaàsemoções,emdefesadavidaoudaspossescontraoataquefísico. Jáo tráfegonas ruasprincipaisdeumagrandecidadena sociedadecomplexadenosso tempo exige uma modelação inteiramente diferente do mecanismo psicológico.Neste caso, émínimoo perigo de ataque físico.Carros correm em todas as direções, epedestres e ciclistas tentam costurar seu caminho através da mêlée de veículos; nosprincipais cruzamentos, guardas tentamdirigir o tráfego, comvariável grau de sucesso.Esse controle externo, porém, baseia-se na suposição de que todos os indivíduos estãoregulandoseucomportamentocomamaiorexatidão,deacordocomasnecessidadesdessarede.Oprincipalperigoqueumapessoarepresentaparaaoutranessaagitaçãotodaéodeperder o autocontrole. Uma regulação constante e altamente diferenciada do própriocomportamentoénecessáriaparaoindivíduoseguirseucaminhopelotráfego.Seatensãodesse autocontrole constante torna-se grande demais para ele, isso é suficiente paracolocarosdemaisemperigomortal.

Trata-se,éclaro,apenasdeumaimagem.Otecidodecadeiadeaçõesemqueseincluicada ato individual nessa complexa sociedade é muito mais complicado, e bem maisintricado o autocontrole ao qual ele está acostumado desde a infância, do que apareceneste exemplo.Masestedápelomenosuma idéiade comoagrandepressão formativasobre a constituição do homem “civilizado”, seu autocontrole constante e diferenciado,vincula-seàcrescentediferenciaçãoeestabilizaçãodasfunçõessociaiseàmultiplicidadeevariedadecadavezmaioresdeatividadesqueininterruptamentetêmquesesincronizar.

Omodelode autocontrole, o gabarito peloqual sãomoldadas as paixões, certamentevariamuitodeacordocomafunçãoeaposiçãodoindivíduonessacadeia,ehámesmohoje,emdiferentessetoresdomundoocidental,variaçõesdeintensidadeeestabilidadenoaparelhodeautocontrolequeparecem,àprimeiravista,muitograndes.Nesteponto,surgeumbomnúmerodeperguntasespecíficas,eométodosociogenéticopodenosdaracessoàssuasrespostas.Masquandocomparadascomaconstituiçãopsicológicadepessoasemsociedadesmenoscomplexas,essasdiferençasegradaçõespresentesnassociedadesmaiscomplexas tornam-semenos importantes, e a principal linha de transformação, que é oprincipal interesse deste estudo, emerge com nitidez: tornando-se o tecido social maisintricado, o aparato sociogênico de autocontrole individual torna-se também maisdiferenciado,complexoeestável.

Adiferenciaçãoemmarchadasfunçõessociais,porém,éapenasaprimeiraemaisgeraldentre as transformações que observamos ao estudar a mudança na constituiçãopsicológica conhecida como “civilização”. Lado a lado com a divisão de funções emandamento,ocorreatotalreorganizaçãodotecidosocial.Mostramosantesemdetalheporque, quando a divisão de funções é baixa, os órgãos centrais de sociedades de certotamanho são relativamente instáveis epropensos àdesintegração.Emostramos também

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como, através de pressões específicas de configurações humanas, as tendênciascentrífugas,osmecanismosdafeudalizaçãolentamentevãosendoneutralizadose,passoapasso, uma organização central mais estável, uma monopolização mais firme da forçafísica, são estabelecidos.A estabilidade peculiar do aparato de autocontrolemental queemerge como traço decisivo, embutido nos hábitos de todo ser humano “civilizado”,mantémarelaçãomaisestreitapossívelcomamonopolizaçãodaforçafísicaeacrescenteestabilidadedosórgãoscentraisdasociedade.Sócomaformaçãodessetiporelativamenteestáveldemonopólioséqueas sociedadesadquiremrealmenteessascaracterísticas,emdecorrênciadasquaisosindivíduosqueascompõemsintonizam-se,desdeainfância,comumpadrãoaltamentereguladoediferenciadodeautocontrole;sóemcombinaçãocomtaismonopólios é que esse tipo de auto-limitação requer um grau mais elevado deautomatismo,esetorna,porassimdizer,uma“segundanatureza”.

Ao se formar um monopólio de força, criam-se espaços sociais pacificados, quenormalmente estão livres de atos de violência.As pressões que atuam sobre as pessoasnessesespaçossãodiferentesdasqueexistiamantes.Formasdeviolêncianão-físicaquesempreexistiram,masqueatéentãosempreestiverammisturadasoufundidascomaforçafísica, são agora separadas destas últimas. Persistem, mas de forma modificada, nassociedadesmaispacificadas.Sãomaisvisíveis,noqueinteressaaopensamentopadrãodenossotempo,comotiposdeviolênciaeconômica.Narealidade,contudo,háumconjuntointeirodemeioscujamonopolizaçãopermiteaohomem,comogrupoouindivíduo,imporsua vontade aos demais. A monopolização dos meios de produção, dos meios“econômicos”,éumadaspoucasquesedestacamquandoosmeiosdeviolênciafísicasetornam monopolizados, quando, em outras palavras, na sociedade mais pacificada doEstado,olivreusodaforçafísicaporaquelesquesãofisicamentemaisfortesdeixadeserpermitido.

Demodogeral,adireçãoemqueocomportamentoeaconstituiçãoafetivadaspessoasmudam, quando a estrutura dos relacionamentos humanos é transformada da maneiraacimadescrita,éaseguinte:associedadessemummonopólioestáveldaforçasãosempreaquelasemqueadivisãode funçõesé relativamentepequena,e relativamentecurtasascadeias de ações que ligam os indivíduos entre si. Reciprocamente, as sociedades commonopóliosmaisestáveisdaforça,quesemprecomeçamencarnadasnumagrandecortede príncipes ou reis, são aquelas em que a divisão de funções está mais ou menosavançada,nasquaisascadeiasdeaçõesqueligamosindivíduossãomaislongasemaioradependência funcional entre as pessoas. Nelas o indivíduo é protegido principalmentecontraataquessúbitos,contraairrupçãodeviolênciafísicaemsuavida.Mas,aomesmotempo, é forçado a reprimir em si mesmo qualquer impulso emocional para atacarfisicamente outra pessoa. As demais formas de compulsão que, nesse momento,prevalecemnos espaços sociais pacificadosmodelamnamesmadireção a conduta e osimpulsosafetivosdoindivíduo.Quantomaisapertadasetornaateiadeinterdependênciaemqueoindivíduoestáemaranhado,comoaumentodadivisãodefunções,maioressãoosespaçossociaisporondeseestendeessarede,integrando-seemunidadesfuncionaisouinstitucionais—maisameaçadasetornaaexistênciasocialdoindivíduoquedáexpressãoa impulsos e emoções espontâneas, e maior a vantagem social daqueles capazes demoderarsuaspaixões;maisfortementeécadaindivíduocontrolado,desdeatenraidade,paralevaremcontaosefeitosdesuasprópriasaçõesoudeoutraspessoassobreumasérie

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inteira de elos na cadeia social.Amoderação das emoções espontâneas, o controle dossentimentos,aampliaçãodoespaçomentalalémdomomentopresente,levandoemcontaopassadoeofuturo,ohábitodeligarosfatosemcadeiasdecausaeefeito—todosestessão distintos aspectos damesma transformaçãode conduta, que necessariamente ocorrecom a monopolização da violência física e a extensão das cadeias da ação einterdependênciasocial.Ocorreumamudança“civilizadora”docomportamento.

Atransformaçãodanobreza,deumaclassedecavaleirosemumadecortesãos,constituiumexemplodisso.Naesfera anterior, naqual aviolência eraum fato inescapável e deocorrênciadiária,eascadeiasdedependênciadoindivíduotinhampequenaextensão,atémesmoporqueelesubsistiaprincipalmentedaproduçãodesuaprópria terra,a intensaeconstantemoderaçãodaspulsõeseafetosnãoeranecessária,possívelnemútil.Avidadosprópriosguerreiros,mastambémadeoutrosqueviviamemumasociedadequepossuíaumaclassesuperiorguerreira,eracontínuaediretamenteameaçadaporatosdeviolênciafísica. Comparada com a vida em zonasmais pacificadas, ela oscilava entre extremos:permitiaaoguerreiroextraordinárialiberdadeparadarformaconcretaaseussentimentosepaixões,àalegriaselvagem,aumasatisfaçãosemlimitesdoprazeràcustadasmulheresquedesejasse,ouaoódionadestruiçãooutorturadetodososquelhefossemhostis.Mas,ao mesmo tempo, ela ameaçava o guerreiro, se fosse derrotado, com um grauextraordinário de exposição à violência e às paixões dos demais, com uma subjugaçãototal,comformasextremasde tormento físicoquemais tarde,quandoa tortura física,aprisão e a humilhação total do indivíduo se convertem em monopólio da autoridade,dificilmente se encontram na vida normal. Com talmonopolização, a ameaça física aoindivíduo lentamentesedespersonaliza.Elanãodependemais tãodiretamentedeafetosmomentâneos, gradualmente se submete a regras e leis cada vez mais rigorosas e,finalmente,dentrodecertoslimitesecomcertasflutuações,aameaçafísicaquandoasleissãoinfringidastorna-semenossevera.

A maior espontaneidade das pulsões e o grau mais alto de ameaça física que seencontram em todas as situações em que ainda inexiste um monopólio central forte eestávelsão,conformepôdeservisto,fenômenoscomplementares.Nessaestruturasocial,o vitorioso tem maior possibilidade de dar livre rédea a suas pulsões e sentimentos,embora também sejamaior a ameaça direta a umhomempor parte dos sentimentos deoutro,emaispresenteapossibilidadedeilimitadasubjugaçãoehumilhaçãoseumcairempoderdeoutro. Isso seaplicavanãosomenteà relaçãoentreumguerreiroeoutro,paraquem,nocursodamonetarizaçãoelimitaçãodalivrecompetição,umcódigodecondutamoderando as paixões já estava sendo lentamente formado. Na sociedade em geral, omenorgrauderestriçãoimpostoaossenhoresfeudaisconfiguravaumcontrastemaiordoquemais tarde, entre sua liberdade e a existência confinada de suasmulheres e a totalexposição a seus caprichos a que estavam sujeitos naquela sociedade os dependentes,derrotadoseservos.

À estrutura dessa sociedade, com sua polarização extrema, suas incertezas contínuas,correspondeaestruturadosindivíduosqueaformameomodocomosecomportam.Damesma forma que nas relações inter-humanas o perigo surge mais bruscamente e apossibilidadedevitóriaouliberaçãoémaisrepentinaeincalculável,oindivíduotambémsedebatemaisfreqüenteediretamenteentreoprazereador.Afunçãosocialdoguerreirolivredificilmenteéconstruídademodoqueosperigospossamserprevistoscomgrande

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antecipação,queosefeitosdedeterminadasaçõespossamserexaminadostrêsouquatropassosàfrente,emboraasuafunçãoestivessetomandoesserumoàmedidaque,naIdadeMédia, se centralizavam os exércitos. Mas, por enquanto, era o presente imediato queforneciao impulso.Mudandoa situaçãodomomento,mudava tambémaexpressãodossentimentos:seelatraziaprazer,esteerasaboreadosemressalvas,semcálculooureflexãosobre suas possíveis conseqüências no futuro. Se trazia perigo, prisão, derrota, estestambémdeviamsersuportadosplenamente.Ainquietaçãoincurável,aproximidadeeternadoperigo,todaaatmosferadessavidaimprevisíveleinsegura,naqualhavianomáximopequenas e transitórias pausas de existência mais protegida, freqüentemente geravam,mesmo sem causas externas, mudanças súbitas do prazer mais exuberante para a maisprofunda desolação e remorso. A personalidade, se podemos dizer isso, estavaincomparavelmentemaisprontaeacostumadaasaltarcomintensidadesemlimitesdeumextremoparaooutro;asmais leves impressões,asassociaçõesde idéias incontroláveis,comfreqüênciabastavamparainduziressasenormesoscilações.132

Àmedidaquemudavaaestruturadasrelaçõeshumanas,asorganizaçõesmonopolistasde força física se desenvolviam e o indivíduo se resguardava do impacto das rixas eguerras constantes e passava a sofrer as compulsões mais permanentes de funçõespacíficasbaseadasna aquisiçãodedinheiroouprestígio, amanifestaçãode sentimentostambém foi gravitando, aos poucos, para uma linha intermediária. As oscilações nocomportamento e nos sentimentos não desapareceram, mas se abrandaram. Os picos evalessetornarammenores,emenosabruptasasmudanças.

Podemos ver com mais clareza o que está mudando de que seu oposto. Graças àformação demonopólios de força, a ameaça que um homem representa para outro ficasujeitaacontrolemais rigorosoe tornou-semaiscalculável.Avidadiária torna-semaislivredereviravoltassúbitasdasorte.Aviolênciafísicaéconfinadaaosquartéis,deondeirrompeapenas emcasos extremos, em temposdeguerraou sublevação, penetrandonavidadoindivíduo.Comomonopóliodecertosgruposdeespecialistas,elaéhabitualmenteexcluída da vida dos demais. Esses especialistas, que constituem toda a organizaçãomonopolistadaforça,agoramontamguardaapenasàmargemdavidasocial,namedidaemquecontrolamacondutadoindivíduo.

Mesmo sob essa forma, como organização de controle, porém, a violência física e aameaçaquedelaemanaexercemumainfluênciadecisivasobreosindivíduos,saibamelesdisso ou não. Não é mais, contudo, a insegurança perpétua que ela trazia à vida doindivíduo,masumaformapeculiardesegurança.Nãomaisolançanasfortunasmutáveisdabatalha,comovencedorouderrotado,emmeioaterríveisexplosõesdeprazerouterror.Umapressão contínua, uniforme, se exerce sobre avida individualpelaviolência físicaarmazenada por trás das cenas da vida diária, uma pressão muito conhecida e quasedespercebida, tendo a conduta e a paixões se ajustado desde tenra mocidade a essaestruturasocial.Naverdade,foitodoomoldesocial,ocódigodeconduta,quemudarame,deacordocomasmudanças,nãoapenasestaouaquela formaespecíficadeconduta,mas todo o padrão, toda a estrutura da maneira como indivíduos pautam sua vida. Aorganização monopolista da violência física geralmente não controla o indivíduo porameaça direta. Uma compulsão ou pressão altamente previsíveis, exercidas de grandevariedade de maneiras, são constantemente aplicadas sobre o indivíduo. Em grauconsiderável,elasoperamtendopormeioasreflexõesdelepróprio.Essacompulsão,em

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geral,estápresenteapenaspotencialmentenasociedade,comoumaagênciadecontrole.Acompulsão real é a que o indivíduo exerce sobre si mesmo, seja como resultado doconhecimento das possíveis conseqüências de seus atos no jogo de atividadesentrelaçadas,sejacomoresultadodegestoscorrespondentesdeadultosquecontribuírampara lhemodelar o comportamento em criança.Amonopolização da violência física, aconcentraçãodearmasehomensarmadossobumaúnicaautoridade,tornamaisoumenoscalculáveloseuempregoeforçaoshomensdesarmados,nosespaçossociaispacificados,acontrolaremsuaprópriaviolênciamedianteprecauçãooureflexão.Emoutraspalavras,issoimpõeàspessoasummaioroumenorgraudeautocontrole.

Não queremos com isso dizer que todas as formas de autocontrole estivesseminteiramenteausentesdasociedadeguerreiramedievalouemoutrasquenãodispunhamde um monopólio complexo e estável de violência física. A agência do autocontroleindividual, o superego, a consciência, ou o que quer que a chamemos, era instilada,imposta e mantida nessas sociedades guerreiras apenas em relação direta a atos deviolência física, correspondendo sua forma a essa vida em seus maiores contrastes etransiçõesmaisabruptas.Comparadacomaagênciadoautocontroleemsociedadesmaispacificadas, ela era difusa, instável, uma mera barreira delgada a separar explosõesemocionaisdeviolência.Osmedosqueasseguravamacondutasocialmente“correta”nãohaviam sido ainda banidos, na mesma extensão, da consciência do indivíduo para suachamada “vida interior”. Uma vez que o perigo decisivo não provinha do fracasso ourelaxaçãodoautocontrole,masdadiretaameaçafísicaexterna,omedohabitualassumiapredominantementeaformademedodeforçasexteriores.Eumavezqueessemedoeramenosestável,omecanismodecontroletambémeramenosabrangente,maisunilateralouparcial.Nessa sociedade, poderia ser instilado um autocontrole extremopara suportar ador, mas ele seria complementado pelo que, medido por um padrão diferente, parececonstituir uma forma de dar livre rédea às paixões na tortura de outras pessoas.Analogamente,emcertossetoresdasociedademedieval,encontramosformasextremasdemisticismo,auto-disciplinaerenúncia,contrastandocomumaentreganãomenosextremaao prazer em outras pessoas; com grande freqüência, assistimos amudanças súbitas deuma atitude para outra, na vida do mesmo indivíduo. A restrição que nesse caso oindivíduo impunha a simesmo, a luta contra a própria carne, não eramenos intensa eunilateral, nemmenos radical e apaixonada, do que sua contrapartida, a luta contra osdemaiseomáximodesfrutedeprazeres.

O que se estabelece com a monopolização da violência física nos espaços sociaispacificadoséumdiferentetipodeautocontroleouauto-limitação.Umautocontrolemaisdesapaixonado. A agência controladora que se forma como parte da estrutura dapersonalidadedoindivíduocorrespondeàagênciacontroladoraqueseformanasociedadeem geral. A primeira, como a segunda, tende a impor uma regulação altamentediferenciada a todos os impulsos emocionais, à conduta do homem na sua totalidade.Ambas — cada uma delas mediada em grande parte pela outra — exercem pressãoconstante,uniforme,parainibirexplosõesemocionais.Abrandamasflutuaçõesextremasnocomportamentoenasemoções.Assimcomoamonopolizaçãodaforçafísicareduzomedo e o pavor que um homem sente de outro, mas, ao mesmo tempo, limita apossibilidade de causar terror, medo ou tormento em outros e, portanto, certaspossibilidades de descarga emocional agradável, o constante autocontrole ao qual o

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indivíduoagoraestácadavezmaisacostumadoprocurareduziroscontrastesemudançassúbitasdecondutaeacargaafetivadetodaauto-expressão.Aspressõesqueatuamsobreoindivíduotendemaproduzirumatransformaçãodetodaaeconomiadaspaixõeseafetosrumoaumaregulaçãomaiscontínua,estáveleuniformedosmesmos,emtodasasáreasdeconduta,emtodosossetoresdesuavida.

Eéexatamentenamesmadireçãoqueoperamascompulsõesdesarmadas,asrestriçõessemviolência físicadireta, àsquaiso indivíduoestáexpostonosespaçospacificados, edas quais as limitações econômicas constituem um exemplo. Elas, também, sãomenoscarregadasde emoções,maismoderadas, estáveis emenos erráticasdoque as impostasporumapessoaaoutranasociedadeguerreiraantesdesurgiromonopólio.Elas,também,corporificadasemtodooespectrodasfunçõesabertasaoindivíduonasociedade,induzemaumaincessantevisãoretroativaeprospectivaquetranscendeomomentoecorrespondeàs cadeias mais longas e complexas em que cada ato se vê automaticamente incluído.Exigem que o indivíduo controle incessantemente seus impulsos emocionaismomentâneos, tendo em vista os efeitos a longo prazo do comportamento. Emcomparação com o outro padrão, instilam um autocontrole mais uniforme, envolvendotodaaconduta,comosefosseumanelapertadoeumaregulaçãomaisfirmedaspaixões,deacordocomasnormassociais.Alémdisso,comosempre,nãosãoapenasasfunçõesadultas que produzem imediatamente esse abrandamento de paixões e sentimentos. Emparte automaticamente, e até certo ponto através da conduta e dos hábitos, os adultosinduzemmodelos de comportamento correspondentes nas crianças.Desde o começo damocidade,oindivíduoétreinadonoautocontroleenoespíritodeprevisãodosresultadosde seus atos, de que precisará para desempenhar funções adultas. Esse autocontrole éinstilado tão profundamente desde essa tenra idade que, como se fosse uma estação deretransmissãodepadrõessociais,desenvolve-seneleumaauto-supervisãoautomáticadepaixões,um“superego”maisdiferenciadoeestável,eumapartedosimpulsosemocionaiseinclinaçõesafetivassaiporcompletodoalcancediretodoníveldeconsciência.

Anteriormente,nasociedadeguerreira,oindivíduopodiaempregarviolênciafísica,sefosse forte e poderoso o suficiente; podia satisfazer abertamente suas inclinações emmuitasdireçõesque,maistarde,foramfechadasporproibiçõessociais.Maspagava,poressamaioroportunidadedeprazerdireto,comumapossibilidademaiordemedodiretoeclaro.As concepçõesmedievais do inferno, aliás, dão-nos uma idéia de como era forteessemedoqueumhomeminspiravaemoutro.Alegriaedoreramliberadasmaisabertaelivremente.Maso indivíduo tornava-sesuapresa, jogadodeumladoparaooutro tantopor seus sentimentos quanto pelas forças da natureza. Tinha menos controle de suaspaixões.Eramaiscontroladoporelas.

Maistarde,quandoascorreiastransmissorasquecorriamporsuaexistênciasetornarammais longas e complexas, ele aprendeu a controlar-se firmemente e se tornou menosprisioneiro que antes de suas paixões. Mas como agora ele estava mais limitado peladependênciafuncionaldasatividadesdeumnúmerosempremaiordepessoas,tornou-setambém mais restringido na conduta, nas possibilidades de satisfazer diretamente seusanseios e paixões. A vida torna-se menos perigosa, mas tambémmenos emocional ouagradável,pelomenosnoquedizrespeitoàsatisfaçãodiretadoprazer.Para tudooquefaltavanavidadiáriaumsubstitutofoicriadonossonhos,noslivros,napintura.Demodoque, evoluindo para se tornar cortesã, a nobreza leu novelas de cavalaria; os burgueses

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assistememfilmesàviolênciaeàpaixãoerótica.Oschoquesfísicos,asguerraseasrixasdiminuírametudooqueaslembrava,atémesmootrinchamentodeanimaismortoseousodefacaàmesa,foibanidodavistaoupelomenossubmetidoaregrassociaiscadavezmais exatas. Mas, ao mesmo tempo, o campo de batalha foi, em certo sentido,transportado para dentro do indivíduo. Parte das tensões e paixões que antes eramliberadas diretamente na luta de umhomemcomoutro terá agora que ser elaborada nointeriordoserhumano.Aslimitaçõesmaispacíficasaeleimpostasporsuasrelaçõescomoutros homens espelham-se dentro dele; um padrão individualizado de hábitos semi-automáticosseestabeleceueconsolidounele,um“superego”específicoqueseesforçaporcontrolar,transformarousuprimir-lheasemoçõesdeconformidadecomaestruturasocial.Mas os impulsos, os sentimentos apaixonados que não podem mais manifestar-sediretamentenas relaçõesentrepessoas freqüentemente lutam,nãomenosviolentamente,dentro delas contra essa parte supervisora de si mesma. Essa luta semi-automática dapessoa consigo mesma nem sempre tem uma solução feliz, nem sempre aautotransformação requerida pela vida em sociedade leva a um novo equilíbrio entresatisfação e controle de emoções. Freqüentemente, fica sujeita a grandes ou pequenasperturbações —, à revolta de uma parte da pessoa contra a outra, ou a uma atrofiapermanente— que torna o desempenho das funções sociais ainda mais difícil, se nãoimpossível.Asoscilaçõesverticais,ossaltosdomedoàalegria,doprazeraoremorso,sereduzem,aomesmotempoqueafissurahorizontalquecorredeladoaoutrodapessoa,atensãoentreo“superego”eo“inconsciente”—osanelosedesejosquenãopodemserlembrados—aumentam.

Nesteparticular, também,ascaracterísticasbásicasdessespadrõesdeentrelaçamento,se lhesestudamosnãosóasestruturasestáticasmas tambémasociogênese,mostram-serelativamente simples. Através da interdependência de gruposmaiores de pessoas e daexclusão da violência física em seus contatos, é estabelecido ummecanismo social, noqualaslimitaçõesentreelassãotransformadasduradouramenteemauto-limitações.Essasauto-limitações,quesãofunçãodavisãoretrospectivaeprospectivainstiladanoindivíduodesde a infância, em conformidade com sua integração em extensas cadeias de ação,assumem emparte a forma de um autocontrole consciente e, em parte, a de umhábitoautomatizado.Tendemaumamoderaçãomaisuniforme,aumalimitaçãomaiscontínua,aum controle mais exato das paixões e sentimentos, de acordo com o padrão maisdiferenciadodeentrelaçamentosocial.Mas,dependendodapressãointerna,dascondiçõesdasociedadeedaposiçãoquenelaocupeoindivíduo,essaslimitaçõesproduzemtambémtensõeseperturbaçõespeculiaresnaeconomiadacondutaedaspaixões.Emalgunscasos,levamaumainquietaçãoeinsatisfaçãoperpétuas,exatamenteporqueapessoaafetadasópodesatisfazerumapartedesuasinclinaçõeseimpulsosemformamodificada,como,porexemplo, na fantasia, na qualidade de espectadora ou ouvinte, nos devaneios ou nossonhos.Àsvezes,oindivíduosehabituaatalpontoainibirsuasemoções(ossentimentosconstantesdetédioousolidãoconstituembonsexemplosdisso)quenãoémaiscapazdequalquerformadeexpressãosemmedodassuasemoçõesmodificadas,oudesatisfaçãodireta de suas pulsões reprimidas. Ramos particulares dessas pulsões são como queanestesiados, nesses casos, pela estrutura específica do contexto social emque cresce acriança. Sob a pressão dos perigos que sua manifestação provoca no espaço social dacriança,elaspassamasecercardemedosautomatizados,atalpontoqueoindivíduopodepermanecer surdoe insensível avida toda.Emoutroscasos, certos ramosdos impulsos

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podem ser desviados de tal modo por sérios conflitos que a natureza bruta, afetiva eapaixonadaqueopequenoserhumanoinevitavelmenteencontranoseucaminhoparasemoldarcomoser“civilizado”,quesuasenergiassópodemterumaliberaçãoindesejada,através de rodeios, em ações compulsivas e outros sintomas de perturbação.Emoutroscasos,também,essasenergiassãotransformadasdetalmaneiraquefluemparaapegoserepulsõesexcêntricos,empredileçõesporestaouaquelafantasiapeculiar.Emtodosessescasos,umapermanenteinquietaçãointerior,queparecenãoterfundamento,mostraquantaenergiaemocionalérepresadanumaformaquenãopermitesatisfaçãoreal.

Atéessemomento,oprocessocivilizadorindividual,talcomoosocial,segueemgeralcegamenteoseucurso.Sobodisfarcedoqueosadultospensameplanejam,asrelaçõesque se formam entre eles e os jovens criam funções e efeitos na personalidade destesúltimos que eles não pretendem e a quemal conhecem.Não planejados, nesse sentido,surgem aqueles resultados damodelagem social de indivíduos aos quais habitualmentechamamosde“anormais”.Asanormalidadespsicológicasquenãodecorremdamodelaçãosocial, mas são causadas por traços hereditários inalteráveis, não precisam serconsideradasaqui.Masaconstituiçãopsicológicaquesemantémdentrodanormasocialeésubjetivamentemaissatisfatóriaocorredemaneiraigualmentenãoplanejada.Domesmomolde social emergemsereshumanosmaisoumenosbem-estruturados, tantoos “bem-ajustados” como os “desajustados”, num espectro muito amplo de variedades. Asansiedades automaticamente reproduzidas que, no caso de cada processo civilizadorindividual e em conexão com os conflitos que formam parte integral desse processo,ligam-se a pulsões específicas e afetam seus impulsos, levam às vezes a uma paralisiapermanente e total desses impulsos e, em outras ocasiões, apenas a uma regulaçãomoderada, dando espaço suficiente para sua plena satisfação. Nas atuais condições, dopontodevistadoindivíduointeressado,umresultadoououtroémaisumaquestãodeboaoumásortedoquedequalquerplanejamento.Emqualquerdoscasos,éateiaderelaçõessociais em que vive o indivíduo durante a fase mais impressionável, a infância ejuventude,queseimprimeemsuapersonalidadeemformação,tendosuacontrapartidanarelaçãoentresuasinstânciascontroladoras,osuperegoeoego,eosimpulsosdalibido.Oequilíbrioresultanteentreessasinstânciascontroladoraseaspulsões,emgrandevariedadede níveis, determina como a pessoa se orienta em suas relações com outras, em suma,determinaaquiloquechamamos,segundoogosto,dehábitos,complexosouestruturadapersonalidade. Não obstante, não há fim ao entrelaçamento, porque embora aautodeterminação da pessoa, maleável durante o início da infância, se solidifique eendureçaàmedidaquecresce,elanuncadeixainteiramentedeserafetadapelasrelaçõesmutáveiscomoutrasdurantetodaavida.Aaprendizagemdosautocontroles,chame-seaeles de “razão”, “consciência”, “ego” ou “superego”, e a conseqüente moderação dosimpulsos e emoções mais animalescas, em suma, a civilização do ser humano jovem,jamais é um processo inteiramente indolor, e sempre deixa cicatrizes. Se a pessoa temsorte—umavezqueninguém,nemospais,nemomédico,nemumconselheiropodem,nopresente,dirigiresseprocessonacriançadeacordocomumconhecimentoclarodoqueémelhorpara seu futuro, porque tudo é aindanamaiorparteumaquestãode sorte—,saramasferidasdosconflitoscivilizadoresincorridasnainfânciaeascicatrizesdeixadasporelesnãosãomuitoprofundas.Noscasosmenosfavoráveis,osconflitosinerentesaoprocessodecivilizarjovenssereshumanos—conflitoscomoutroseconflitosdentrodesimesmos—permanecemsemsoluçãoou,maisexatamente,emborasejamsepultadospor

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algum tempo, retornam em situações que lembram as da infância. O sofrimento,transformado em forma adulta, volta repetidamente e os conflitos não-solucionados dapessoa na infância nunca deixam de perturbar seus relacionamentos adultos. Dessamaneira,osconflitosinterpessoaisdeprincípiosdajuventude,quemodelaramaestruturada personalidade, continuam a perturbar ou mesmo a destruir os relacionamentos deadultos com outras pessoas. As tensões resultantes podem assumir a forma ou decontradições entre diferentes automatismos de autocontrole, traços enterrados derecordaçõesdeantigasdependênciasenecessidades,oudeconflitosrecorrentesentreasinstânciascontroladoraseosimpulsosdalibido.Noscasosmaisfelizes,poroutrolado,ascontradiçõesentrediferentesseçõesecamadasdasagênciascontroladoras,especialmentedaestruturadosuperego,vãosendolentamentereconciliadas,controlando-seosconflitosmaisdisruptivosentreessaestruturaeosimpulsosdalibido.Elesnãosódesaparecemdaconsciênciadevigília,massão tão integralmenteassimiladosque,semumcustopesadodemais em satisfação subjetiva, não mais se intrometem involuntariamente emrelacionamentos interpessoaisposteriores.Noprimeirocaso,oautocontroleconscienteeinconscientepermanecesempredifusoemcertassituações,estandosensívelàeclosãodeformas socialmente improdutivas de energia pulsional; no outro, esse autocontrole que,mesmo hoje, nas fases juvenis, parece-semais com uma confusão de banquisas que sesuperpõemdoquecomumlisoefirmelençoldegelo,lentamentesetornamaisunificadoeestável,numacorrespondênciapositivacomaestruturadasociedade.Masumavezqueessa estrutura, exatamente em nossa época, é altamente mutável, ela exige umaflexibilidadedehábitosecondutaque,namaiorpartedoscasos,temqueserpagacomaperdadeestabilidade.

Teoricamente,porconseguinte,nãoédifícildizerqualadiferençaentreumprocessocivilizador individual considerado bem-sucedido e outro julgado malsucedido. Noprimeiro caso, depois de todas as dores e conflitos do processo, são finalmenteestabelecidos um padrão de conduta bem-adaptado ao contexto das funções sociaisadultas,umconjuntodehábitosdefuncionamentosatisfatórioesimultaneamente—oquenão é um resultado inevitável das duas primeiras condições—umbalanço positivo deprazer.Nosegundo,ouoautocontrolesocialmentenecessárioérepetidamentecompradoaumaltocustodesatisfaçãopessoal,porumgrandeesforçoparasuperarenergiasopostasda libido,ouo controledessas energias, a renúncia à sua satisfação,não se alcança emabsoluto.Comgrandefreqüência,nenhumbalançopositivodeprazer,dequalquertipo,éfinalmentepossívelporqueoscomandoseproibiçõessociaissãorepresentadosnãosóporoutraspessoas,mas tambémpeloeuabalado,umavezqueumaparteproíbeecastigaoqueaoutradeseja.

Narealidade,oresultadodoprocessocivilizadorindividualéclaramentefavoráveloudesfavorável apenas em relativamente poucos casos, em cada extremidade da escala.Amaioria das pessoas civilizadas vive um meio-termo entre os dois extremos. Aspectossocialmente positivos e negativos, tendências pessoalmente gratificantes e frustradoras,misturam-senelasemproporçõesvariáveis.

ÉmuitodifícilamodelaçãosocialdeindivíduosdeacordocomaestruturadoprocessocivilizadorquehojechamamosdeOcidente.A fimde ser razoavelmentebem-sucedida,ela requer, dada a estrutura da sociedade ocidental, uma diferenciaçãomuito alta, umaregulaçãomuitointensaeestáveldepaixõesesentimentos,detodasaspulsõeshumanas

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mais elementares. Por issomesmo geralmente exigemais tempo, sobretudo nas classesmédiaealta,doqueamodelagemsocialdeindivíduosemsociedadesmenoscomplexas.Aresistênciaàadaptaçãoaospadrõesqueprevalecemnacivilização,oesforçoqueessaadaptação, essa transformação profunda de toda a personalidade custa ao indivíduo, ésempre considerável. E só mais tarde, por conseguinte, do que em sociedades menoscomplexas é que o indivíduo no Mundo Ocidental adquire, com sua função social deadulto,aconstituiçãopsicológicadoadulto,aemergênciadaqualassinala,viaderegra,aconclusãodoprocessocivilizadorindividual.

Mas, mesmo que nas sociedades mais diferenciadas do Ocidente a modelação domecanismo de auto-direção individual seja bastante extensa e intensa, processos quetendemnamesmadireção, processos civilizadores sociais e individuais, certamentenãoocorrem apenas nela. Eles são encontrados em todos os casos em que, sob o efeito depressõescompetitivas,adivisãodefunçõestornagrandenúmerodepessoasdependentesumas das outras, em todos os casos em que amonopolização da força física permite eimpõe uma cooperação menos carregada de emoção, em todos os casos em que seestabelecem funções que exigem constante visão retrospectiva e prospectiva nainterpretaçãodasaçõeseintençõesdeoutraspessoas.Oquedeterminaanaturezaegraudessessurtoscivilizadoresésempreaextensãodasinterdependências,oníveldadivisãodefunçõeseaestruturainternadasprópriasfunções.

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II

DifusãodaPressãopelaPrevidênciaeAutocontroleOqueemprestaaoprocessocivilizadornoOcidenteseucaráterespecialeexcepcionalé

o fato de que, aqui, a divisão de funções atingiu um nível, os monopólios da força etributação uma solidez, e a interdependência e a competição uma extensão, tanto emtermosdeespaçofísicoquantodonúmerodepessoasenvolvidas,quenãotiveramiguaisnahistóriamundial.

Até então, redes extensas de moeda ou comércio, com monopólios razoavelmenteestáveisdeforçafísicaemseuscentros,haviamsedesenvolvidoquaseexclusivamenteaolongodeviasnavegáveis,istoé,acimadetudonasmargensderiosecostasdeoceanos.Asgrandesáreasdointeriorpermaneciammaisoumenosnoníveldaeconomiadetroca,istoé,aspessoascontinuavamnamaiorparteautárquicaseeramcurtassuascadeiasdeinterdependência, mesmo quando algumas artérias de comércio cruzavam as áreas eexistiamalguns grandesmercados.Tendo a sociedadeocidental comoponto de partida,desenvolveu-se uma teia de interdependência que não só abrange os oceanos emmaiorextensão do que em qualquer tempo no passado,mas se estende às terras aráveismaisdistantes do interior remoto. Correspondendo a tudo isso, surgiram a necessidade desincronização da conduta humana em territórios mais amplos e a de um espírito deprevisãonotocanteacadeiasmaislongasdeaçõescomojamaishaviamexistido.Ocorreuaindaofortalecimentodoautocontroleeapermanênciadascompulsões—ainibiçãodepaixõeseo controledepulsões— impostaspelavidanocentrodessas redes.Umadascaracterísticasquetornammuitoclaraessaconexãoentreotamanhoeapressãointernaàrede de interdependência, por um lado, e à constituição psicológica do indivíduo, poroutro,éoquechamamosde“ritmo”133denossotempo.Esse“ritmo”nadamaiséqueumamanifestaçãodograndenúmerodecadeiasentrelaçadasdeinterdependência,abrangendotodasasfunçõessociaisqueosindivíduostêmquedesempenhar,edapressãocompetitivaque satura essa rededensamentepovoada eque afeta, direta ou indiretamente, cada atoisoladodapessoa.Esseritmopoderevelar-se,nocasodofuncionárioouempresário,naprofusão de seus encontros marcados e reuniões e, no do operário, na sincronização eduração exatas de cada um de seus movimentos. Em ambos os casos, o ritmo é umaexpressão do enorme número de ações interdependentes, da extensão e densidade dascadeias compostas de ações individuais, e da intensidade das lutas que mantêm emmovimento toda essa rede interdependente.Emambosos casos, uma função situadanajunçãodetantascadeiasdeaçãoexigeumaalocaçãoexatadetempo,acostumaaspessoasa subordinarem suas inclinações momentâneas às necessidades superiores dainterdependência,treina-asparaeliminaremtodasasirregularidadesdocomportamentoeconseguiremumpermanenteautocontrole.Éesseomotivoporque,noindivíduo,vemossurgirem tantas revoltas contrao tempo social representadopor seupróprio superego, eporquetantaspessoasentramemconflitoconsigomesmasquandodesejamserpontuais.Combasenodesenvolvimentodeinstrumentosdemediçãodotempo,edeconsciênciadotempo—etambémdamoedaedeoutrosinstrumentosdeintegraçãosocial—,épossível

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observar, com grande precisão, como avança a divisão de funções, e com ela oautocontroleimpostoaoindivíduo.

Arazãoporque,dentrodessarede,padrõesdecontroledasemoçõesvariamemalgunsaspectos,—porque,porexemplo,asexualidadeécercadaderestriçõesmaisfortesemumpaísdoquenooutro,—éumaquestãoàparte.Mascomoquerqueessasdiferençaspossamsurgiremcasosespeciais,adireçãogeraldamudançanaconduta,a“tendência”domovimentodacivilizaçãoéemtodaaparteamesma.Elaseorientasempreparaumautocontrole mais ou menos automatizado, para a subordinação de impulsos de curtoprazo aos comandos de uma enraizada visão a longo prazo, para a formação de umainstância,o“superego”,maiscomplexaesegura.Edemaneirageralétambémassimqueessa necessidade de subordinar emoções momentâneas a objetivos mais distantes sedifunde.Emtodaaparte,nasociedadeocidental,pequenosgruposdirigentessãoafetadosprimeiroe,depois,estratoscadavezmaisamplos.

Adiferençaémuitograndesealguémvivenummundoquepossuidensos,extensosefortes laços de dependência, como um mero objeto passivo dessas interdependências,sendoafetadoporeventosdistantessemsercapazdeinfluenciá-losoumesmopercebê-los— ou se tem uma função na sociedade que exige, para seu desempenho, um esforçopermanente de previdência e um controle firme da conduta. Para começar, nodesenvolvimentodoOcidenteforamcertasfunçõesdasclassesaltaemédiaqueexigiramdeseusresponsáveisessaauto-disciplinaativaeconstante,voltadaparainteressesalongoprazo: funções de corte nos centros políticos de sociedades importantes, funçõescomerciaisnoscentrosdarededecomérciodelongadistância,queseencontravamsobaproteção de um monopólio de força razoavelmente estável. Mas constituiu uma daspeculiaridades dos processos sociais no Ocidente que, com a ampliação dainterdependência,anecessidadedepensamentoa longoprazoeasincronizaçãoativadacondutaindividualcomalgumaentidademaisvasta,remotanotempoenoespaço,tenhamse difundido por segmentos cada vezmaiores da sociedade.Atémesmo as funções e asituação social dos estratos sociaismais baixos foram tornando a um tempo possível enecessário um certo espírito de previsão e nessamesmamedida forçaram amoderar-setodas as inclinações que prometiam satisfação muito imediata ou a curto prazo. Nopassado,as funçõesdosestratosmaisbaixosde trabalhadoresmanuaisgeralmenteeramincluídasnarededeinterdependênciaapenasnamedidaemqueseusmembrossentissemoefeitodeaçõesremotase—seelasfossemdesagradáveis—reagissemcominquietaçãoe rebelião, com descargas emocionais de curto prazo. Mas suas funções não eramestruturadas de tal modo que, dentro de si mesmos, as limitações “estranhas” fossemconstantemente convertidas em limitações do “ser”. Suas tarefas diárias tornavam-nospouco capazes de restringir desejos e emoções imediatos em troca de algo que não eratangível aqui e agora. E por issomesmo essas explosões quase nunca tiveram sucessoduradouro.

Nesteparticular,certonúmerodenexosimportantesseinterligam.Emtodasasgrandesredes humanas há alguns setores mais importantes do que outros. As funções dessessetoresfundamentais,como,porexemplo,asfunçõescoordenadorasmaisaltas, impõemumautocontrolemaisregulareestritonãosóporcausadesuaposiçãocentraledograndenúmero de cadeias de ação que convergem para eles, mas porque, devido ao grandenúmerodeaçõesquedependemdeseusresponsáveis,revestem-sedegrandepodersocial.

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Oquedáaodesenvolvimentoocidentalseucaráterespecialéofatodequeadependênciarecíprocade todosse tornoumaisuniformementeequilibrada.Emgrausempremaior,ofuncionamento complexo das sociedades do Ocidente, com sua elevada divisão dotrabalho, depende de os estratos agrários e urbanos inferiores controlarem sua conduta,cada vezmais, àmedida que captammelhor suas conexões amais longo prazo emaisremotas.Omecanismosocialaltamentediferenciadotorna-setãocomplexoe,emalgunsaspectos,tãovulnerável,queperturbaçõesnumsópontodascadeiasdeinterdependência,que articulam todas as posições sociais, inevitavelmente afetam muitas outras, destamaneiraameaçandotodootecidosocial.Osgruposestabelecidosquecompetementresisão, assim, compelidos a levar em consideração as exigências da grande massa deoutsiders.Mas como dessamaneira as funções sociais e o poder dasmassas assumemmaior importância, tais funções exigem e permitemmaior espírito de previsão em seudesempenho.Geralmentesobumafortepressãosocial,membrosdosestratosmaisbaixosacostumam-se a controlar suas emoçõesmomentâneas e a disciplinar sua conduta combasenumacompreensãomaisprofundadasociedadetotaledesuaposiçãonela.Porissomesmo,seucomportamentoéimpelidocadavezmaisnadireçãoinicialmentelimitadaaosestratos superiores. Aumenta seu poder social em relação a este último, mas,simultaneamente,seusmembrossãotreinadosaassumirumavisãodelongoprazo,poucoimportando por quem ou de acordo com quais modelos tal treinamento se dê. Eles,também, são cada vez mais submetidos ao tipo de compulsões externas que setransformam em autocontrole individual; neles, também, aumenta a tensão horizontalentre a agência de controle do ser, o “superego”, e as energias da libido que agora sãotransformadas,controladasoureprimidas,commaioroumenorsucesso.Dessamaneira,asestruturascivilizadorasestãoseexpandindoconstantementenasociedadeocidental.Ascamadassuperioreinferiortendematornar-seumaespéciedeestratosuperior,eocentrodarededeinterdependênciasestende-sepormaisemaisáreas,povoadasenãopovoadasdorestodomundo.Sóestavisãodeummovimentoabrangente,emprogressivaexpansão,nãoraroemarrancoserecuosfortes,decertasfunçõesepadrõesdecondutanorumodeum número crescente de grupos e regiões externos — só esta visão, repetimos, e acompreensão de que nós mesmos nos encontramos no meio desses altos e baixos doprocesso civilizador e suas crises, e não no seu fim, coloca na devida perspectiva oproblema da “civilização”. Se recuamos do presente para o passado, que padrões, queestruturadescobrimosnassucessivasondasdessemovimento,seasolhamosnãodenósparaelas,masdelasparanós?

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III

DiminuiçãodosContrastes,AumentodaVariedadeOprocesso civilizador prossegue segundo uma longa seqüência de arrancos e recuos

fortes.Repetidamente,umestratomarginalemascensãoouumaunidadedesobrevivênciaem crescimento como um todo, uma tribo ou nação-estado, assume as funções ecaracterísticas de um sistema em relação a outros estratos marginais ou unidades desobrevivência que, por sua parte, pressionam a partir de baixo, de sua posição demarginais oprimidos, contra o sistema corrente. E mais uma vez, à medida que ogrupamentodepessoasquesubiuese firmouéseguidoporumgrupamentoaindamaisamploenumerosoque tentaemancipar-sedaopressão,descobrimosqueesteúltimo, sebem-sucedido,éforçadoaassumiraposiçãodoopressortradicional.Podemuitobemvirumtempoemqueosantigosgruposoprimidos,libertadosdaopressão,nãosetornem,porsuavez,opressores:masistoaindanãoestáàvista.

Há, naturalmente, muitos problemas não-resolvidos que são colocados por estainterpretação.Nopresentecontexto,talvezsejasuficientechamaraatençãoparaofatodeque,demodogeral,osestratosinferiores,osgruposmarginaisemaispobres,numdadoestágiodedesenvolvimento, tendema seguir suaspaixões e sentimentosde formamaisdiretaeespontânea,regulando-sesuacondutamenosrigorosamentequeadosrespectivosestratos superiores. As compulsões que operam nos estratos inferiores sãopredominantementedenaturezadireta,física,—aameaçadedorfísicaouaaniquilaçãopela espada, pobreza, ou fome. Esse tipo de pressão, contudo, não induz umatransformaçãoestáveldaslimitações,delimitaçõesquevêmdeforaatravésdooutro,emlimitações assumidas de dentro ou “auto-limitações”. O camponês medieval que passasemcarneporqueépobredemais,porqueacarneéreservadaparaamesadosenhor,istoé, que está exclusivamente sob uma limitação física, procurará satisfazer seu desejo decomercarneemtodososcasosemqueopudersemcorrerumperigoexterno,aocontráriodos fundadores de ordens religiosas dos estratos superiores, que se negam o prazer decomer carne emconsideraçãopelo alémeporum senso, que assumiram,deque isso épecado.O indivíduomiserávelque trabalhaparaoutros sobameaçaconstantedepassarfome,ouquecumpreumapenadeprisãocomtrabalhosforçados,deixarádetrabalhartãologo cesse a ameaça da força externa, ao contrário do mercador rico que continua atrabalhar, embora tenha provavelmentemais do que o suficiente para viver no ócio. Écompelidoa fazê-lonãopor simplesnecessidade,maspressionadopela competiçãoporpoder e prestígio, porque sua profissão, seu status elevado, fornecem o significado e ajustificação de sua vida. No seu caso, o constante autocontrole tornou o trabalho umhábito tão forte que o equilíbrio de sua personalidade estará ameaçado se deixar detrabalhar.

Constitui uma das peculiaridades da sociedade ocidental que, no curso de seudesenvolvimento, tenha-se reduzidomuito esse contraste entre a situação e o códigodeconduta dos estratos mais altos e mais baixos. As características das classes baixasdifundem-se por todas as outras. Temos um sintoma disso no fato de que a sociedade

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ocidental como um todo gradualmente se tornou uma sociedade em que se espera quetodas as pessoas capazes ganhem a vida através de um tipo altamente regulado detrabalho.Antes,o trabalhoeraumacaracterísticadasclassesmaisbaixas.E, aomesmotempo,oquecostumaserpeculiaràsclassessuperiorestambémsedifundepelasociedadecomoumtodo.Aconversãode restriçõessociais impostas“de fora”emauto-restrições,numaauto-regulaçãoindividualquesetornaumhábitoouumautomatismonotocanteàspaixõesesentimentos—possivelmenteapenasparapessoasnormalmenteprotegidasdaameaçafísica,externa,daespadaoudafome—tambémestáocorrendoentreasgrandesmassasnoOcidente.

Vistasdeperto,ondeapenasumpequenosegmentodessemovimentoéperceptível,asdiferençasnaestruturadapersonalidadesocialentreasclassesaltasebaixasnoMundoOcidental de hoje podem parecer ainda consideráveis. Mas se for focalizada toda aamplidão domovimento ao longo dos séculos, podemos notar que estão diminuindo osgrandescontrastesdecomportamentoentreosdiferentesgrupossociais—assimcomooscontrastesemudançassúbitasnocomportamentodoindivíduo.Amodelaçãodaspulsõesesentimentos,asformasdeconduta,todaaconstituiçãopsicológicadasclassesbaixasnassociedades civilizadas, comsua crescente importância em toda a redede funções, estãocadavezmaisseaproximandodasdeoutrosgrupos,começandopelaclassemédia.Issoacontecemesmoquepartedasauto-limitaçõesetabusoperantesnestaúltima,quesurgemdo anseio de “se distinguir”, do desejo demaior prestígio, talvez falte inicialmente nasclasses baixas, emesmo que o tipo de dependência social que as caracteriza ainda nãonecessite, ou permita, omesmograu de controle de emoções e umespírito de previsãomaisregularquenasclassesaltasdomesmoperíodo.

Essa redução dos contrastes na sociedade e nos indivíduos, essamistura peculiar depadrões de conduta que derivam de níveis sociais inicialmente muito diferentes, sãoaltamentecaracterísticosdasociedadeocidental.Econstituiumadaspeculiaridadesmaisimportantesdo“processocivilizador”.Essemovimentodasociedadeecivilização,porém,certamentenãosegueumalinhareta.Nomovimentoglobalobservam-serepetidasvezescontramovimentos maiores ou menores, nos quais os contrastes na sociedade e aflutuaçõesnacondutadeindivíduos,suasexplosõesafetivas,tornamaaumentar.

O que acontece ante nossos olhos, o que costumamos chamar de “difusão dacivilização” no sentido mais estreito, isto é, a disseminação de nossas instituições epadrões de conduta além do Ocidente, constitui a última onda, até agora, de ummovimento que ocorre há vários séculos no Ocidente e cujas tendências e padrõescaracterísticos, incluindo a ciência, a tecnologia e outras manifestações de um tipoespecíficode auto-limitação, estabeleceram-se aquimuito antesde existir o conceitode“civilização”.Apartirdasociedadeocidental—comoseelafosseumaespéciedeclassealta—padrõesdecondutaocidentais“civilizados”hojeestãosedisseminandoporvastasáreas fora do Ocidente, seja através do assentamento de ocidentais ou através daassimilaçãopelosestratosmaisaltosdeoutrasnações,damesmaformaquemodelosdeconduta antes se espalharam no interior do próprio Ocidente a partir deste ou daqueleestratomais alto, de certos centros cortesãosoucomerciais.Ocursoassumidopor todaessaexpansãofoideterminadoapenasligeiramentepelosplanosoudesejosdaquelescujospadrões de conduta foram assimilados.As classes que forneceramosmodelos não são,sequerhoje,criadoresouoriginadoresabsolutamentelivresdetalexpansão.Essadifusão

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dosmesmospadrõesdecondutaapartirde“mães-pátriasdohomembranco”seguiu-seàincorporaçãode outros territórios à rede de interdependências políticas e econômicas, àesfera das lutas eliminatórias entre nações doOcidente e dentro de cada uma delas. A“tecnologia” não é a causa dessa mudança de comportamento. O que chamamos de“tecnologia”é apenasum dos símbolos,umadasúltimasmanifestaçõesdesse constanteespíritodeprevisãoimpostopelaformaçãodecadeiasdeaçõesedecompetiçãocadavezmais longas.Asformas“civilizadas”decondutadisseminaram-seporessasoutrasáreasemrazãoenamedidaquenelas,atravésdesuaincorporaçãoàredecujocentroaindaéoOcidente, a estrutura de suas sociedades e de relacionamentos humanos também estámudando.A tecnologia e a educação são facetas domesmodesenvolvimento total.Nasáreas por onde se expandiu o Ocidente, as funções sociais a que o indivíduo devesubmeter-se estãomudandocadavezmais, demaneira a induzir osmesmos espíritodeprevisão e controle de emoções como no próprio Ocidente. Nesse caso, também, atransformaçãodaexistênciasocialcomoumtodoéacondiçãobásicaparacivilizar-seaconduta. Por essemotivo, encontramos nas relações doOcidente com outras partes domundoosprimórdiosdareduçãodecontrastesqueépeculiaratodasasgrandesondasdomovimentocivilizador.

Essafusãorepetidadepadrõesdecondutadasclassesfuncionalmentesuperiorescomosdasclassesemascensãonãodeixadetercertaimportância,considerando-seaatitudecuriosamente ambivalente das primeiras nesse processo. A habituação ao espírito deprevisãoeocontrolemaisrigorosodacondutaedasemoções,paraosquaisseinclinamasclasses superiores por motivo de sua situação e funções, constituem importanteinstrumentodesuapredominância,comonocasodocolonialismoeuropeu,porexemplo.Servemcomomarcasdedistinçãoeprestígio.Exatamenteporessemotivo,talsociedadeconsideracomotransgressãodomodelodominantedecontroledaspaixõesesentimentostodo e qualquer “afrouxamento” de seus membros. A desaprovação acentua-se quandoaumentaopodersocialeotamanhodogrupomaisbaixo,emascensão,eassimtorna-semaisintensaacompetiçãopelasmesmasoportunidadesentreosgrupossuperioreinferior.Oesforço eo espíritodeprevisãonecessáriosparamanter a posição da classe superiormanifestam-se nos contactos internos de seusmembros entre si, no grau de supervisãorecíprocaquepraticam,naestigmatizaçãoseveraenaspenalidadesqueimpõemaosseusmembros que infringem o código comum que os distingue. O medo provocado pelasituaçãodetodoogrupo,pelasualutaparapreservaraidolatradaeameaçadaposição,agediretamentecomoumaforçaparamanterocódigodeconduta,ocultivodosuperegoemseusmembros.Elaéconvertidaemansiedadepessoal,nomedodoindivíduodedegradar-seousimplesmenteperderprestígionasociedadeemquevive.Eéessemedodeperdadeprestígioaosolhosdosdemais,instiladosobaformadeauto-compulsão,sejanaformadevergonha seja no senso de honra, que garante a reprodução habitual da condutacaracterística,ecomosuacondiçãoumrigorosocontroledepulsõesemcadapessoa.

Masembora,porumlado,essasclassessuperiores—eemalgunsaspectosasnaçõesocidentaiscomoumtodo,nafunçãodeclassesuperior—fossemcompelidasamanter,atodocusto,oseucontroledaspulsõescomoumamarcadedistinção,poroutroladoasuasituação,juntamentecomaestruturadomovimentogeralemqueseinscrevem,obriga-asnolongoprazoareduziressasdiferençasempadrõesdecomportamento.Aexpansãodacivilizaçãoocidentalmostracomgrandeclarezataltendência.Estacivilização,aliás,éa

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característicaqueconferedistinçãoesuperioridadeaosocidentais.Mas,aomesmotempo,os povos doOcidente, sob pressão de suas próprias lutas competitivas, provocaram emvastas partes do mundo uma mudança nos relacionamentos e funções humanas,aproximando-os de seus próprios padrões. Tornaram grandes regiões do mundodependentes e, aomesmo tempo, segundo uma regularidade da diferenciação funcionalquejáfoirepetidamenteobservada,tornaram-setambémsuasdependentes.Porumlado,construíram, através de instituições e mediante uma estrita regulação de seu própriocomportamento, ummuro entre eles e os grupos que colonizaram e que consideravaminferiores.Poroutro,comsuasformassociais,disseminaramporesseslugaresseupróprioestilo de conduta e instituições. O mais das vezes sem uma intenção deliberada,trabalharamnuma direção que, cedo ou tarde, levou à redução das diferenças de podersocialecondutaentrecolonizadoresecolonizados.Mesmoemnossosdias,oscontrastesvisivelmente estão se tornando menores. De acordo com a forma de colonização e aposiçãodaáreanagrandeteiadefunçõesdiferenciadas,etambémcomaprópriahistóriaeestrutura da região, estão começando a ocorrer processos de fusão emáreas específicasfora do Ocidente, semelhantes àqueles descritos antes no exemplo que demos sobre aconduta cortesã e burguesa em diferentes países do próprio Ocidente. Nas regiõescoloniais, igualmente, tendo em vista a posição e força sociais dos vários grupos, ospadrõesocidentaisestãosedisseminandoparabaixoe,ocasionalmente,mesmoparacimaapartirdebaixo,sepodemosusaressaimagemespacial,efundindo-separaformarnovasentidades,diferentes,novasvariedadesdecondutacivilizada.Oscontrastes emcondutaentre os grupos superior e inferior são reduzidos comadisseminaçãoda civilização, eaumentamasvariedades,ounuanças,dacondutacivilizada.Essaincorporaçãoincipientedos povos orientais e africanos aos padrões ocidentais representa a última onda docontínuomovimentocivilizadorquevimosobservando.Mas,damesmamaneiraqueessaondasobe,sinaisdenovasondasformando-senamesmadireçãojápodemservistos,umavezque,atéagora,osgruposqueseaproximamdaclassealtaocidentalnasáreascoloniaissãoconstituídos,principalmente,dasclassesaltasdessasnações.

Recuandoumpassonahistória,podemosobservarnopróprioOcidenteummovimentosemelhante: aadoçãopelasclasses inferioresurbanaeagráriadepadrõescivilizadosdeconduta, a crescente habituação desses grupos à previsão do futuro, a uma limitação econtrolemais estritos damanifestação de emoções e, também, a um graumais alto deautocontrole individual. Neste caso, também, de acordo com a estrutura da história decadapaís,variedadesmuitodiferentesdecontroledasemoçõesemergemnocontextodacondutacivilizada.NaInglaterra,nacondutadosoperáriosaindapodemosvertraçosdasmaneirasdaaristocracia fundiáriaedemercadoresemumaampla teiadeofícios,assimcomo na França, os ares dos cortesãos e de uma burguesia elevada ao poder pelaRevolução. Nos trabalhadores, igualmente, encontramos uma regulação mais estrita daconduta, um tipo de cortesia mais calcado na tradição das nações colonizadoras, quedurante longo período exerceram a função de classe superior dentro de uma larga redeinterdependente,eumcontrolemenos refinadodasemoçõesemnaçõesquesó tardeoununca conseguiram expandir-se colonialmente, isto porque os monopólios de força etributação e a centralização do poder nacional — que constituem precondições paraqualquerexpansãocolonialduradoura—sósedesenvolverammaistardenelasdoqueemsuasconcorrentes.

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Recuandoaindamais, encontramosnos séculosXVII,XVIII eXIX—mais cedooumais tarde, segundo a estrutura de cada nação— o mesmo padrão num círculo aindamenor: a interpenetraçãodospadrõesde condutadanobreza edaburguesia.Deacordocomarelaçãodepoderexistente,oprodutodainterpenetraçãofoidominadoinicialmentepormodelosderivadosdasituaçãodaclassesuperior,emseguidapelopadrãodecondutade classesmais baixas, e em ascensão, até que finalmente emergiu um amálgama, umnovo estilo de caráter, excepcional. Neste particular, também, é visível na posição daclasse superior o mesmo dualismo que pode ser observado hoje na vanguarda da“civilização”.Anobrezadecorte,avanguardada“civilité”,foigradualmentecompelidaaexercer um rigoroso controle das emoções e uma precisa modelação de sua conduta,atravésdesuacrescenteintegraçãonarededeinterdependências,representadanestecasopela pinça formada pela monarquia e burguesia, na qual estava aprisionada a nobreza.Igualmenteparaanobrezadecorte,oautocontroleaelaimpostoporsuafunçãoesituaçãoserviuaomesmotempocomovalordeprestígio,comomeiodedistinguir-sedosgruposinferiores que a fustigavam e ela tudo fez para impedir que essas diferenças fossemapagadas.Sóomembro iniciadodeviaconheceros segredosdaboaconduta, sónaboasociedade podiam eles ser aprendidos. Baltasar Gracián escreveu deliberadamente seutratado sobre “savoir-vivre”, o famosoOráculoManual, em estilo obscuro, como certavez explicou uma princesa da corte 134, para que esse conhecimento não pudesse sercomprado por todos ao preço de alguns tostões. Courtin tampouco esqueceu, naintroduçãodeseutratadosobreaCivilité,defrisarqueseutrabalhoforarealmenteescritoparausoprivadodealgunsamigoseque,mesmoimpresso,destinava-seapenasapessoasde boa sociedade. Mas, mesmo nesse contexto, revela-se a ambivalência da situação.Devido à forma peculiar de interdependência em que vivia, a aristocracia de corte nãopodia impedir — através de seus contatos com o estrato burguês rico, do qual elanecessitava por uma razão ou outra— a difusão de suasmaneiras, costumes, gostos elinguagemporoutrasclasses.InicialmentenoséculoXVII,essasmaneirasforamadotadasporpequenosgruposdirigentesdaburguesia—aDigressãosobreaModelaçãodaFalanaCorteconstituiumexemplovívido135—e,emseguida,noséculoXVIIIporestratosburguesesmaisamplos.Amassadelivrossobreacivilitépublicadosnessaépocamostraclaramenteesse fato.Nestecaso, também,a forçadacorrentedeentrelaçamentoscomoumtodo,astensõesecompetiçãoqueaimpeliamparaumacomplexidadeediferenciaçãofuncionalaindamaisextensas,adependênciadoindivíduofaceaumnúmerocrescentedeoutros, a ascensão de classes sempre mais numerosas, revelaram-se mais fortes que abarricadaqueanobrezatentouerigiremvoltadesimesma.

Oespíritodeprevisão,umaauto-disciplinamaiscomplexa,aformaçãomaisestáveldosuperego, fortalecida pela interdependência crescente, tornaram-se visíveis primeiro nospequenos centros funcionais. Depois, mais e mais círculos funcionais no Ocidente sevoltaramparaamesmadireção.Finalmente,emcombinaçãocomformaspreexistentesdecivilização,amesmatransformaçãodasfunçõessociaise,destarte,dacondutaedetodaapersonalidade,começouaocorrerempaísesforadaEuropa.Esseéoquadroqueemergesetentamosexaminarglobalmenteocursoseguidoatéagorapelomovimentocivilizadorocidentalnoespaçosocial.

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IV

ATransformaçãodeGuerreirosemCortesãosAsociedadedecortedosséculosXVIIeXVIIIe,acimadetudoanobrezacortesãda

Françaquelheformavaonúcleo,ocuparamumaposiçãoespecíficanessemovimentopeloqualpadrõesdeconduta foramse interpenetrandoemcírculoscadavezmais largos.Oscortesãos não criaram nem inventaram a moderação das emoções e a regulação maisuniforme da conduta. Eles, como todos os demais nesse movimento, curvavam-se alimitações impostas pela interdependência que não havia sido planejada por qualquerindivíduoisoladoougrupodepessoas.Masfoinessasociedadedecortequeseformouoelencobásicodemodelosdecondutaque,depois,fundidoscomoutrosemodificadosdeacordocomaposiçãodosgruposqueosadotavam,difundiu-se,juntocomacompulsãoautilizar o espírito de previsão, por círculos de funções constantemente maiores. Umasituação especial transformouosmembros da sociedadede corte, emgraumais alto doque qualquer outro grupo ocidental afetado por esse movimento, em especialistas naelaboração e modelação da conduta social. Isto porque, ao contrário dos grupos quesucederamaoscortesãosnaposiçãodeumaclassesuperiorconsolidada,elestinhamumafunção,masnãoumaprofissãosocial.

Não só no processo civilizador ocidental, mas também em outros, como no daÁsiaOriental, a modelação que o comportamento recebe nas grandes cortes, nos centrosadministrativosdosmonopóliosdecisivosdetributaçãoeforçafísica,reveste-sedeigualimportância. Foi nelas inicialmente, na sede ou capital do governantemonopolista, quetodososfiosdeumagrandeteiadeinterdependênciasejuntaram;nelas,nessenexosocialparticular, cruzaram-secadeiasdeaçãomais longasdoqueemqualqueroutropontodateia.Nemmesmolaçoscomerciaisdelongadistância,comosquaisseentrelaçamaquieali centros urbanos comerciais, permanecem duradouros e estáveis a menos que sejamprotegidos durante longo período de tempo por autoridades centrais fortes.Correspondentemente, a visãoprevidente a longoprazo, o controle rigorosoda condutaque esse órgão central exige de seus funcionários, do próprio príncipe ou de seusrepresentanteseservidores,sãomaioresdoqueemqualqueroutrolugar.Acerimôniaeaetiqueta dão clara expressão a essa situação. Tantas coisas pressionam direta eindiretamenteosuseranoeseusauxiliaresmaispróximosdetodoodomínio—cadaumde seus passos, cada um de seus gestos, pode ser de tal momentosa e fundamentalimportância,exatamenteporqueosmonopóliosaindapossuemcaráterfortementeprivadoe pessoal— que, sem essa sincronização exata, essas formas complexas de reserva edistância, o tenso equilíbrio da sociedade, sobre o qual repousa a operação pacífica daadministração do monopólio, rapidamente cairiam na desordem. E, se nem semprediretamente,entãopelomenosatravésdaspessoasdosuseranoedeseusministros,todomovimentoouperturbação importantesqueocorramnodomínio reagemsobreogrossodoscortesãosesobretodaaentouragemaispróximaoumaisampladopríncipe.Diretaouindiretamente,oentrelaçamentodetodasasatividades,quetodosnacorteinevitavelmenteenfrentam, obriga-os a manter vigilância constante e a submeter tudo o que dizem ou

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fazemaumdetalhadoexame.

Aformaçãodosmonopóliosdetributaçãoeforçafísica,edasgrandescortesemvoltadosmesmos, certamente não foimais do que umde vários processos interdependentes,dosquaisoprocessocivilizadorconstituiumaparte.Massemdúvidaalgumaaquitemosumadaschavesquenosfacultaacessoàsforçaspropulsorasdessesprocessos.Agrandecorte real permanece durante certo período no centro da teia social que estabelece emantém em movimento a civilização da conduta. Ao estudar a sociogênese da corte,encontramo-nosnocentrodeumatransformaçãocivilizadoraespecialmentepronunciadaequeéprecondiçãoindispensávelparatodosossubseqüentesarrancoserecuosdoprocessocivilizador.Vemoscomo,passoapasso,anobrezabelicosaésubstituídaporumanobrezadomada,comemoçõesabrandadas,umanobrezadecorte.Nãosónoprocessocivilizadorocidental, mas tanto quanto podemos compreender, em todos os grandes processoscivilizadores, uma das transições mais decisivas é a de guerreiros para cortesãos.Dispensadizerqueháestágiosegrausosmaisdiversosdessatransição,dessapacificaçãointernadasociedade.NoOcidente,atransformaçãodosguerreirosiniciou-seeprosseguiucomgrande lentidãonoséculoXIouXIIatéque,devagar,chegouà suaconclusãonosséculosXVIIeXVIII.

Amaneiracomoissoaconteceujáfoidescritaemdetalhes:emprimeirolugar,agrandepaisagem,comseusmuitoscastelosepropriedadesrurais;ébaixoograudeintegração;adependência cotidiana e, assim, os horizontes do grosso dos guerreiros, como acontecetambém com os camponeses, restringem-se ao distrito imediato onde residem: “Olocalismo predominava em toda a Europa nos princípios da Idade Média. No iníciodominava o localismo da tribo e da propriedade rural, transformando-semais tarde nasunidades feudais e senhoriais sobre as quais repousou a sociedademedieval. Política esocialmente,essasunidadeseramquase independentes; reduzia-seaomínimoa trocadeprodutoseidéias.”136

Emseguida,daprofusãodecastelosepropriedadesemtodasasregiões,surgiramCasasindividuais,cujosgovernanteshaviamgalgado,emmuitasbatalhasecomoaumentodesuas posses e podermilitar, uma posição de predominância sobre outros guerreiros emuma área mais extensa. Suas residências transformaram-se, como resultado da maiorconfluência de bens que a elas chegavam, em lar de ummaior número de pessoas, em“cortes”, num novo sentido da palavra. As pessoas que lá iam ter em busca deoportunidades, incluindo sempre certo número de guerreiros pobres, não erammais tãoindependentes como os guerreiros livres isolados em suas propriedadesmais oumenosauto-suficientes; todas elas passavam a tomar parte numa espécie de competiçãomonopolisticamentecontrolada.Masmesmoneste contexto,numcírculoaindapequenoem comparação com as futuras cortes absolutistas, a coexistência de certo número depessoascujasaçõesconstantementeseentrelaçavam,compeliamesmoosguerreiros,quedescobriamestarnumasituaçãodeinterdependênciamaisforte,aobservaralgumgraudeconsideraçãoeespíritodeprevisão,umcontrolemaisrigorosodacondutae—acimadetudo, no tocante à senhora da casa, de quem dependiam — um maior domínio dasemoções,umatransformaçãonaeconomiadaspulsões.Ocódigocourtoisdecondutadáumaidéiadaregulaçãodasmaneirase,aMinnesang137,umaimagemdocontrolepulsionalque se tornou necessário e normal nessas maiores ou menores cortes territoriais.Documentam ambos um primeiro arranco na direção que, finalmente, culminou na

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completatransformaçãodanobrezanumcorpodecortesãos,enadefinitiva“civilização”desuaconduta.Ateiadeinterdependênciaemqueentravaoguerreiro,porém,nãoeranoiníciomuito extensa e cerrada. Se tinha que adotar certa reserva na corte, havia aindainumeráveispessoascomasquais,esituaçõesnasquais,nãotinhaqueobservarqualquermoderação.Podiaescapardosenhoredasenhoradeumacorte,naesperançadeencontrarabrigoemoutra.Asestradasdointeriorabundavamemencontros,procuradosounão,quenãoexigiamgrandecontroledosimpulsos.Nacorte,napresençadasenhora,tinhaqueserefrearde atosviolentos e explosões emocionais,mas atémesmoocavaleiro cortês eraanteseacimadetudoumguerreiro,esuavidaconstituíaumacadeiaquaseininterruptadeguerras, rixas e violência. As limitações mais pacíficas do entrelaçamento social quetendiama imporumaprofunda transformaçãoàspulsõesnãopesavamaindademaneiraconstante e uniforme em suavida: intrometiam-se nesta apenas ocasionalmente, e eramfreqüentemente repelidas por uma beligerância que não tolerava nem requeria omenorcontrole de emoções. O autocontrole que os cavaleiros corteses observavam na corte,portanto, era formado apenas de hábitos semiconscientes, muito diferentes do padrãocaracterísticoquaseautomatizadodeumestágioposterior.Ospreceitoscortesesvisavam,noaugedasociedadecavaleirosacortesã,tantoaadultoscomoacrianças:suaobservânciapelos adultos nunca era tão certa que se pudesse deixar demencioná-los. Os impulsosopostosnuncadesapareciamdaconsciência.Aestruturadoautocontrole,especialmenteo“superego”,nãoeraaindamuitoforteouuniformementedesenvolvida.

Alémdisso,continuavaaindaausenteumadasprincipaisforçaspropulsorasquemaistarde,nasociedadeabsolutistadecorte,consolidouprofundamenteasmaneiraspolidasnoindivíduo e refinou-as continuamente. A ascensão dos estratos urbanos burgueses emrelação à nobreza era ainda relativamentemodesta, como também, por issomesmo, semostrava a tensão competitiva entre os dois estados. Para sermos exatos, nas própriascortes territoriais, os guerreiros e os citadinos competiam às vezes pelas mesmasoportunidades.HaviaMinnesängertantonobrescomoburgueses.Nesteaspecto,também,acortecourtoise revelava incipientementeasmesmasregularidadesestruturaisquemaistarde apareceriam, plenamente desenvolvidas, na corte absolutista: punha pessoas deorigemnobreeburguesaemcontactoconstante.Maistarde,porém,naeradosmonopóliosdegovernoplenamentedesenvolvidos, a integração funcionaldenobrezaeburguesia e,porconseguinte,apossibilidadenãosódecontactosconstantesmas tambémde tensõespermanentes, já se encontrava muito desenvolvida, mesmo fora da corte. Os contactosentreburgueseseguerreiros,comoosqueocorriamnascortescortesesporém,aindaeramrelativamenteraros.Demodogeral,oentrelaçamentodedependênciasentreburguesiaenobreza ainda era superficial em comparação como período posterior.As cidades e ossenhores feudais na vizinhança imediata ou mais distante ainda se opunham uns aosoutros, como unidades políticas e sociais distintas. O quão pouco se desenvolvera adivisãodefunçõeseoquantoeragrandeaindependênciarelativadosdiferentesestadossãoclaramentedemonstradospelofatodequeadifusãodecostumesedeidéiasdecidadeacidade,decorteacorte,demosteiroamosteiro,—istoé,osrelacionamentosdentrodomesmo estrato social—, eram, mesmo em longas distâncias, mais efetivos do que oscontactosentrecasteloe cidadesnamesma região138.Era essa a estrutura social que—para servir de contraste — temos que conservar em mente a fim de compreender aestruturaeosprocessossociaisdistintosnosquais,gradualmente,emergiuumacrescente“civilização”damaneiracomooindivíduoorientavasuavida.

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Nestecontexto,comoaliásemtodasassociedadesquepossuemeconomiadeescambo,astrocase,portanto,adependênciamútuaeaintegraçãoentreasdiferentesclassesaindaeram pequenas em comparação com as fases seguintes. O estilo de vida da sociedadecomo um todo, por conseguinte, era menos uniforme. Poder militar e propriedademantinham vínculos muito mais íntimos, e estavam diretamente aparentados. Por issomesmo, o camponês desarmado vivia numa situação abjeta. Estava à mercê do senhorarmado num grau que ninguém sentiu no cotidiano das fases posteriores, quando já sehaviam desenvolvido os monopólios público ou estatal de força. O suserano e senhorfeudal,poroutro lado,dependiamfuncionalmente tãopoucodeseus inferiores(embora,claro, não fossem independentes deles) que, graças à ameaça física irresistível quenormalmenteemanavadesuapessoa,nãoconheciamlimitesnoquelhespodiaminfligir,isto num grau que superava de longe o excedente relativo de poder de qualquer classesuperior em relação às inferiores em estágios posteriores do desenvolvimento social.Omesmoacontecianotocanteaopadrãodevida:ocontrasteentreasclassesaltasebaixasdessa sociedade era extremamente grande, em especial na fase em que um númerodecrescente de senhores muito poderosos e ricos emergia da massa de guerreiros.EncontramoshojecontrastessemelhantesemáreasemqueaestruturasocialseaproximamaisdaquehavianasociedademedievaldoOcidentedoquenadoOcidentehoje,como,porexemplo,noPeruounaArábiaSaudita.Membrosdeumapequenaeliteauferiamumarenda imensa, da qual uma parte maior do que acontece hoje com as altas rendas noOcidenteerausadaparaconsumopessoaldeseudono,noluxodesua“vidaprivada”,emfestaseoutrosprazeres.Osmembrosdaclassemaisbaixa,oscamponeses,emcontraste,viviammiseravelmente,sobaconstanteameaçadasmáscolheitasedafome.Mesmoemcircunstâncias normais, o produto de seu trabalho mal dava para lhes garantir asubsistência,eopadrãodevidaque tinhameramuitomaisbaixodoqueodequalquerclassenassociedades“civilizadas”.Sóquandoessescontrastesforamreduzidos,quando,soboefeitodapressãocompetitivaqueafetavadecimaabaixoessasociedade,adivisãode funçõesea interdependênciaemvastos territóriosaumentougradualmente,quandoadependênciafuncionaldasclassessuperiorescresceu,enquantosubiaopodersocialeospadrõesdevidadasclasses inferiores, sóentão identificamosoespíritodeprevisãoeoautocontrole nas classes superiores, o contínuo movimento ascendente das inferiores etodasasdemaismudançasquepodemosobservaremtodososarrancoscivilizadoresqueabrangemestratosmaisamplos.

Paracomeçar—nopontodepartidadessemovimento,porassimdizer—guerreirosviviam sua vida, e os burgueses e camponeses a sua. Mesmo havendo proximidadeespacial, era profundo o abismo entre os estados: costumes, gestos, vestuários edivertimentos eram diferentes,mesmo que não estivessem de todo ausentes influênciasmútuas.Emtodososladosocontrastesocial—ou,comonummundomaisuniformesepreferedizer,avariedadedevida—eramaisacentuado.Aclassealta,anobreza,aindanãosentiaqualquerpressãosocialapreciávelvindadebaixo;osprópriosburguesesquasenunca lhe contestavam a função e o prestígio.Ela não precisava aindamanter-se alertaparaconservarsuaposiçãocomoclassesuperior.Tinhasuasterrasesuaespada:operigoprincipalparacadaguerreiroeraoutroguerreiro.Assim,eramenorocontrolemútuoqueosnobresimpunhamàprópriacondutacomomeiodedistinçãodeclasse,demodoque,tambémdesselado,ocavaleiroindividualestavasujeitoaumgraumenordeautocontrole.Ocupava sua posição social commuito mais segurança e naturalidade que o nobre de

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corte. Não precisava banir da vida a grosseria e a vulgaridade. A preocupação com asclassesbaixasnuncaoperturbava.Nãosofriapermanentementedeansiedadee,portanto,não havia na vida da classe superior nada que lembrasse as classesmais baixas, comoaconteceu mais tarde. Nenhuma repugnância ou embaraço lhe despertava a vista dasclasses mais baixas e seu comportamento, exceto um sentimento de desprezo, que eraexpresso abertamente, sem qualquer ressalva, sem inibições e que não tinha que sersublimado. As Cenas da Vida de um Cavaleiro, mencionadas antes neste estudo139,transmitem-nosalguma idéiadessa atitude, embora adocumentação sejadeumperíodoposterior,jácortesão,davidacavaleirosa.

Já descrevemos em detalhe e de vários ângulos como os guerreiros foram atraídos,passoapasso,paraumainterdependênciacadavezmaisacentuadarelativamenteaoutrasclassesegrupos,comoumnúmerocrescentedentreelescaiunadependênciafuncionale,finalmente, institucional de outrem. Foram processos que se desenvolveram na mesmadireção durante séculos: a perda da auto-suficiência militar e econômica por todos osguerreiroseaconversãodepartedelesemcortesãos.

Podemos identificaro funcionamentodessas forçasde integraçãoemdata tão remotacomo os séculos XI e XII, quando domínios territoriais foram consolidados e certonúmerodeindivíduos,especialmentecavaleirosmenosbeneficiados,seviramobrigadosaprocurarcortesmaisoumenosimportantesàprocuradeserviço.

Lentamente,aspoucasgrandescortesdafeudalidadeprincipescasedestacaramsobreasdemais,esóosmembrosdeCasasReaisseviramemcondiçõesdecompetirlivrementeentresi.Eacimadetodas,amaisricaebrilhantecortedesseperíododepríncipesfeudaisconcorrentes, a de Borgonha, dá uma idéia de como progredia, lentamente, atransformaçãodeguerreirosemcortesãos.

Finalmente,noséculoXVe,principalmente,noséculoXVI,acelerou-seomovimentosubjacente a essa transformação, — a diferenciação de funções, a crescenteinterdependênciaeaintegraçãodeáreaseclassescadavezmaiores.Essesfatossenotamcom especial clareza na evolução de um instrumento social cujo emprego e mudançasindicam commáxima exatidão o grau da divisão de funções, bem como a extensão enatureza de interdependência social: o avanço da moeda. O volume de moeda cresceumais rapidamente e, na mesma medida, caiu seu valor, ou poder aquisitivo. Essemovimento, também, isto é, a desvalorização do metal cunhado, começou, tal como atransformaçãodeguerreirosemcortesãos,logonoiníciodaIdadeMédia.Anovidadenatransição dos temposmedievais para osmodernos não foi amonetarização, a queda dopoderaquisitivodometalcunhadocomotal,masoritmoeextensãodomovimento.Comotão freqüentemente acontece, o que de início parecia ser uma mudança meramentequantitativa,vistomaisdeperto revelou-seumamanifestaçãodemudançasqualitativas,detransformaçõesnaestruturadasrelaçõeshumanasnasociedade.

Certamente, a aceleração da desvalorização da moeda não foi causa das mudançassociais que se foram manifestando nessa época, mas fazia parte de um processo maisamplo, era uma alavanca num sistemamais complexo de tendências entrelaçadas. Sobpressãodaslutascompetitivasdeumestágioeestruturaespeciais,aumentounessaépocaaprocura demoeda.A fimde satisfazê-la, novosmeios forambuscados e achados.Mas,conformeobservamosantes140,essemovimentotevesignificaçãomuitodiferenteparaos

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diferentes setores da sociedade, o que mostrava precisamente como se tornara forte ainterdependência funcional dos diferentes estratos sociais. O movimento favoreceu osgruposcujas funções lhespermitiamcompensaropoderaquisitivodeclinantedamoedaadquirindomaismoeda, isto é, acima de tudo, os grupos burgueses e o controlador domonopóliofiscal,orei.Emdesvantagemficaramosgruposdeguerreirosounobrescujarenda permaneceu nominalmente a mesma, mas que caiu em poder aquisitivo com adesvalorização,queseacelerava,damoeda.Aforçadessemovimento,nosséculosXVIeXVII,atraiucadavezmaisguerreirosparaacorte,tornando-osdependentesdiretosdorei,enquanto, reciprocamente, a receita fiscaldo soberanocrescia a tal pontoque elepodiamanternacorteumnúmerosempremaiordepessoas.

Secontemplamosopassadocomose fosseumaespéciedeálbum ilustrado, senossoolhar se dirige principalmente para as mudanças de “estilos”, podemos facilmenteimaginar que, de tempos em tempos, os gostos e a mente das pessoas mudassembruscamente, como que por efeito de uma mutação interior: num momento temos“personalidades góticas”, noutro “homens da Renascença” e, depois, “tipos barrocos”.Mas, se tentarmos conceber a estruturade toda a redede relacionamentosnaqual cadapessoa de uma certa época estava emaranhada, se procurarmos seguir asmudanças nasinstituiçõessobasquaisviviam,ouasfunçõesdasquaisdependiasuavidasocial,nossaimpressãodeque,emalgummomento,amesmamutaçãorepentinaeinexplicáveltenhaocorrido em muitas mentes separadas, vai perdendo substância. Todas essas mudançasocorreramcomgrandelentidão,numperíododetempoconsiderávele,emboaparte,semseremouvidas por aqueles capazesdeperceber apenasos grandes eventos que ressoamportodaaparte.Asexplosõesgraçasàsquaisaexistênciaeatitudesdepessoasisoladasmudarambruscamenteepuderam,porissomesmo,serpercebidascomclareza,nadamaisforamdoquedeterminadoseventosaolongodemudançassociaisbastantelentase,comfreqüência,quaseimperceptíveis,cujosefeitossãocompreendidosapenascomparando-sediferentesgerações, colocando-se ladoa ladoosdestinos sociaisdepais, filhosenetos.Tal foio casoda transformaçãodeguerreiros emcortesãos,damudançapelaqualumaclasse superior de cavaleiros livres foi substituída por outra de cortesãos. Mesmo nasúltimasfasesdesseprocesso,inúmerosindivíduospoderiamaindaprojetararealizaçãodesuaexistência,deseusdesejos,sentimentosetalentos,navidadocavaleirolivre;masjáse tornava impossível pôr em prática esses talentos e sentimentos, devido à gradualtransformaçãodosrelacionamentoshumanos:asfunçõesquelhesdavamcampodeaçãoestavam desaparecendo do tecido da sociedade. E, finalmente, o caso não diferia naprópriacorteabsolutista.Ela,também,nãofoiconcebidaecriadasubitamente,emalgummomento, por indivíduos,mas formada aos poucos, tendo por base uma transformaçãoespecífica das relações de poder social. Todos os indivíduos foram tangidos, por umadependênciaespecíficadeoutros,paraessa formaparticularde relacionamento.Atravésdesuainterdependênciamútua,elesseprendiamunsaosoutrosnacorte;estanãosófoigerada por esse entrelaçamento de dependências, como criou uma forma derelacionamentos humanos que sobrevivia aos indivíduos, como uma instituição deprofundasraízes,enquantoesse tipoparticulardedependênciamútuaeracontinuamenterenovado,combasenumaestruturaespecíficadasociedadeemgeral.Damesmamaneiraque, por exemplo, a instituição social de uma fábrica é incompreensível a menos quetentemos explicar por que toda a estrutura social continuamente gera fábricas, por quenelas as pessoas são obrigadas a prestar serviços como empregados ou operários a um

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empregador,eporqueoempregador,porseulado,dependedessesserviços,ainstituiçãosocial da corte absolutista é igualmente incompreensível, a menos que conheçamos afórmula das necessidades, a natureza e grau da dependência mútua, através das quaispessoasdediferentestiposeramcolocadasjuntasdessamaneira.Sóassimacorteaparecediante de nossos olhos como realmente era; só assim ela perde o aspecto de umagrupamento fortuita ou arbitrariamente criado, sobre o qual não é possível nemnecessárioperguntarasrazõesparasuaexistência;sóassimelaassumesignificadocomouma teia de relacionamentos humanos que, durante um período, reproduziu-secontinuamentedessamaneiraporqueofereciaamuitaspessoasisoladasaoportunidadedesatisfazercertasnecessidadesreiteradamentegeradaspelasociedadeemqueviviam.

A constelação de necessidades com as quais a “corte” se reproduziu constantementecomoinstituiçãoaolongodegeraçõesfoidescritaacima:anobreza,oupelomenospartesdela,precisavadoreiporque,comamonopolizaçãoemandamento,afunçãodeguerreirolivreestavadesaparecendodasociedade;eporque,comacrescenteintegraçãomonetária,aproduçãodesuaspropriedades—comparadacomospadrõesdaburguesiaemascensão—nãolhespermitiamaisdoqueumavidamedíocree,muitasvezes,nemmesmoisso,ecertamente não uma existência social que pudessemanter o prestígio da nobreza comoclassesuperiorcontraaforçasempremaiordaburguesia.Sobessapressão,ingressounacorteumapartedanobreza—quemquerquepudesse ter aesperançadeencontrarumlugarpertodopríncipe—,caindo,portanto,nadependênciadiretado rei.Sóavidanacorte abria a cada nobre o acesso às oportunidades econômicas e ao prestígio quepoderiamjustificarsuasreivindicaçõesaumaexistênciaprovadamentedeclassesuperior.Tivessem os nobres estado exclusiva ou mesmo principalmente interessados emoportunidades econômicas, não precisariam ingressar na corte. Muitos deles poderiamadquirirriquezacommaissucessoatravésdeatividadecomercial—oudeumcasamentorico.Mas,paraobteremriquezapelocomércio,elesteriamquerenunciaràsuacategoriadenobres,degradando-sea seusprópriosolhose aosdosoutrosnobres.Era justamenteessadistânciadaburguesia,o seucaráter comonobres, a suaqualidadedemembrosdaclasse superior do país, que davam significado e direção às suas vidas. O desejo depreservaroprestígiodaclasse,dese“distinguirem”,motivava-lhesmuitomaisasaçõesdo que o desejo de acumular fortuna. Não basta dizer, por conseguinte, que elespermaneceram na corte porque dependiam do rei: acrescente-se que permaneceramdependentesdoreiporquesóavidanasociedadecortesãpoderiamanteradistânciaaquese sentiam dos demais e o prestígio, dos quais dependiam sua salvação, sua existênciacomo membros da classe superior, o sistema, ou a “sociedade” do país. Sem dúvidaalguma,pelomenosumapartedanobrezadecortenãopoderiatervividonacorte,seestanãooferecessetambémmuitostiposdeoportunidadeseconômicas.Masoqueoscortesãosbuscavamnãoerampossibilidadeseconômicascomotais—quepodiamserobtidasemoutras esferas —, mas possibilidades de existência que fossem compatíveis com amanutençãodoprestígioqueosdistinguia,comseucaráterdemembrosdeumanobreza.Essaduplavinculaçãoatravésdanecessidadededinheiroeprestígio,constituiemgrausvariáveis,umacaracterísticadetodasasclassessuperiores,nãoapenasdosungidospela“civilité” mas também pela “civilização”. A compulsão que a filiação a uma classesuperior e o desejo de conservá-la exerciam sobre o indivíduo não era menos forte eformativa do que aquela que nasce da simples necessidade de subsistência econômica.Motivosde ambosos tipos entreteciam-se comoumadupla e invisível cadeia em torno

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dosindivíduosmembrosdessasclasses,eoprimeirolaço,oanseioporprestígioeomedode suaperda, a luta contra aobliteraçãodadistinção,não sepodeexplicar apenaspelosegundo,comoumdesejodisfarçadodemaisdinheiroevantagenseconômicas,damesmaformaque jamais seráencontradosobumaformaduradouraemclassesou famíliasquevivam sob uma forte pressão externa, nas fronteiras da fome e da miséria. O desejocompulsivodeprestígiosocialsomenteseencontra,comomotivoprincipaldaação,entremembrosdeclasses cuja renda, emcircunstânciasnormais, é substancial e talvezestejamesmo crescendo e que, de qualquermaneira, vivam bem acima do patamar da fome.Nessasclasses,oimpulsoparaempenhar-senasatividadeseconômicasnãoémaisameranecessidade dematar a fome,mas o desejo de preservar um certo padrão de vida e deprestígioelevadoesocialmenteesperado.Issoexplicaporque,nessasclassessuperiores,ocontroledeemoçõeseaauto-disciplinacostumavamsermaisaltamentedesenvolvidosdoquenas classesmais baixas: omedoda perda ou reduçãodoprestígio social constituíauma da mais poderosas forças motrizes para transformar as limitações impostas pelosoutros em auto-limitação. Neste particular, também, como em muitos outros casos, ascaracterísticas de classe superior da “boa sociedade” estavam muito desenvolvidas naaristocracia cortesã dos séculos XVII e XVIII exatamente porque, nesse contexto, odinheiro era indispensável e, a riqueza, desejável como um meio de vida, masseguramente não constituía, ao contrário domundo burguês, também o fundamento doprestígio.Afiliaçãoàsociedadedecortesignificavaparaosqueaelapertenciammaisdoque riqueza; exatamente por essa razão, eles estavam tão completa e inescapavelmenteligadosàcorte,eeratãoforteapressãodavidacortesãquelhesmodelavaaconduta.Nãohaviaoutrolugarondepudessemviversemperdadestatus;eraporissoquedependiamtantodorei.

O rei, por suavez, dependiada aristocraciaporumbomnúmerode razões.Para seupróprioconvívio,precisavadeumasociedadecujasmaneiras fossemas suas.O fatodequeaspessoasqueoserviamàmesa,quandoiadormirouquandocaçava,pertencessemàmais alta nobreza da terra servia à sua necessidade de distinguir-se de todos os outrosgrupos do país. Mas, acima de tudo, precisava da nobreza como contrapeso para aburguesia,damesmamaneiraquenecessitavadaburguesiacomocontrapesodanobreza,para que sua capacidade de manipular os principais monopólios não fosse reduzida. Eeram as regularidades inerentes ao “mecanismo real” que colocavam o governanteabsolutista na dependência da nobreza.Manter a nobreza com classe distinta e, assim,preservar o equilíbrio e a tensão entre nobreza e burguesia e não permitir que nenhumestadose tornasse forteou fracodemais, taiseramosaspectos fundamentaisdapolíticareal.

Anobreza—eaburguesia,também—nãodependiaapenasdorei,masoreidependiadaexistênciadanobreza.Mas, semdúvidanenhuma,adependênciado indivíduonobrefaceaoreieraincomparavelmentemaiordoqueadoreifaceaqualquerumdeles,eessefatoeraclaramentedestacadonorelacionamentomantido,nacorte,entreoreieanobreza.

O rei não era apenas o opressor da nobreza, como uma fração da nobreza de cortepensava,nemapenasseupreservador,comoacreditavamgrandessegmentosdaburguesia,— era ambas as coisas. E a corte, por issomesmo, também era ambas as coisas: umainstituiçãoparadomarepreservaranobreza.“Seumnobre”,escreveuLaBruyèrenumapassagemsobrea corte, “viveemcasanaprovíncia, ele é livre,mas semsegurança; se

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vivenaCorte,éprotegido,masescravo.”Emmuitosaspectos,essarelaçãolembraaqueexisteentreumpequenoempresárioindependenteeumaltofuncionáriodeumapoderosafirmafamiliar.Nacorte,partedanobrezaencontraapossibilidadedeviverdeacordocomseu status, porém os indivíduos nobres não são mais o que foram os cavaleiros,protagonistas de uma livre competição militar entre si, mas participantes numacompetição, controlada pelo monopólio, pelas oportunidades que o dirigente tem paradistribuir. E vivem não só sob a pressão do suserano, estão sujeitos não só à pressãocompetitiva que elesmesmos,membros do exército de reserva da aristocracia do país,exercemunssobreosoutros,massofrem,acimadetudo,apressãodosestratosburguesesascendentes. Com o crescente poder social destes últimos, os cortesãos têm que lutarconstantemente, pois vivem principalmente dos tributos e impostos pagos pelo terceiroestado. A interdependência e integração das diferentes funções sociais, acima de tudoentrenobrezaeburguesia,sãomuitomaisfortesdoquenasfasesprecedentes.Aindamaisonipresentes, por isso mesmo, são as tensões entre eles. E da mesma maneira que aestruturaderelacionamentoshumanoséassimmudada,namesmamedidaoindivíduoestáemaranhadonateiahumanadeumaformamuitodiferentedadeanteseémodeladoporseusváriostiposdedependência;mudatambémaestruturadaconsciênciaesentimentosindividuais,dainteraçãoentrepaixõesecontroledepaixões,entreosníveisconscienteeinconsciente da personalidade. A interdependência mais estreita de todos os lados, apressãomais forte vinda de todas as direções, exigem e instilam um autocontrolemaisuniforme, um superego mais estável e novas formas de conduta entre as pessoas: osguerreirostornam-secortesãos.

Emtodososcasosemqueencontramosprocessoscivilizadoresdequalquerextensão,encontramostambémsimilaridadesestruturaisnocontextosócio-históricomaisamplo,noqual ocorreram essas mudanças de mentalidade. Elas podem acontecer mais oumenosrapidamente, podem avançar, como neste caso, num único ou em vários arrancos, comfortes recuos, mas, tanto quanto podemos perceber hoje, uma transformação mais oumenosdecisivadeguerreirosemcortesãos,sejapermanenteoutransitória,constituiumadasprecondiçõessociaismaiselementaresdetodososgrandesmovimentosdecivilização.Epormenortenhasidoaimportânciadequeaformaçãosocialdacortepossa,àprimeiravista,ter-serevestidoparanossavidaatual,umacertacompreensãodaestruturadacorteéindispensável para entendermos os processos civilizadores. Algumas de suascaracterísticasestruturaispodemtambémlançarluzsobreavidanoscentrosdepoderemgeral.

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V

OAbrandamentodasPulsões:PsicologizaçãoeRacionalização“Avidanacorte”,escreveuLaBruyère141,“éumjogosério,melancólico,quenosexigeorganizaraspeçasebaterias,elaborarumplano,segui-lo,contrariaroplanodenossoadversário,assumirocasionalmenteriscosejogaratendendoaumpalpite.E,depoisdetodasasjogadasereflexão,descobrimosqueestamosemxeque,àsvezesem

xeque-mate.”Nacorte,eacimadetudonagrandecorteabsolutista,formou-se,pelaprimeiravez,um

tipodesociedadeederelacionamentoshumanoscomcaracterísticasestruturaisquedesdeentão, durante um longo período da história do Ocidente e em meio a numerosasvariações, várias vezes cumpriramumpapel decisivo.Numvasto e populoso território,quedemodogeralestavalivredaviolênciafísica,surgiua“boasociedade”.Masmesmoqueoempregodaviolênciafísicadiminuíssenoconvíviohumano,mesmoqueosduelosestivessem proibidos, as pessoas, sob uma grande variedade de maneiras, exerciampressãoe forçaumas sobreasoutras.Avidanessecírculonãoera,demaneiraalguma,pacífica. Um número muito grande de pessoas dependia continuamente de outras. Eraintensa a competição por prestígio e pelo favor real. “Affaires”, disputas sobre aprecedência e o favor, jamais cessavam. Se não mais desempenhavam papel tãoimportantecomomeiodedecisão,aespadaforasubstituídapelaintrigaeporconflitosnosquaisascarreiraseosucessosocialeramperseguidospormeiodepalavras.Estasexigiameproduziamqualidadesdiferentesdasqueeramnecessáriasnaslutasarmadas,quetinhamde ser resolvidas com armas namão.A reflexão contínua, a capacidade de previsão, ocálculo, o autocontrole, a regulação precisa e organizada das próprias emoções, oconhecimento do terreno, humano e não-humano, onde agia o indivíduo, tornaram-seprecondiçõescadavezmaisindispensáveisparaosucessosocial.

Todos os indivíduos pertenciam a uma coterie, a um círculo social que, quandonecessário,oapoiava.Masessesgrupamentosmudavam.Entravamemalianças,sempreque possível, compessoas altamente graduadas na corte.Mas a posição na corte podiamudar com grande rapidez. Tinham rivais, inimigos declarados e ocultos. E a táticaempregadanessaslutas,comotambémnasalianças,exigiamcuidadosoexame.Ograudedistanciamentoefamiliaridadetinhaquesercuidadosamentemedido:cadacumprimento,cadaconversarevestia-sedeumaimportânciamuitosuperiordoqueerarealmenteditooufeito,porque indicavaa situaçãodapessoaecontribuíaparaacorte formar suaopiniãosobreela.

“Queumfavoritovigieatentamentesuaconduta,porque,senãomeconservaremsuaantecâmaraàesperaportantotempoquantoohabitual,seseurostoformaisaberto,seele

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fizermenoscarranca,semeescutarcommaiorboavontadeemeacompanharumpoucomaislongequandoeumedirigiràportadesaída,pensareiqueeleestácomeçandoacairemdesgraça—etereirazão.”142

A corte é uma espécie de bolsa de valores e, como em toda “boa sociedade”, umaestimativado“valor”decadaindivíduoestácontinuamentesendofeita.Mas,nestecaso,ovalortemseufundamentorealnãonariquezaoumesmonasrealizaçõesoucapacidadedoindivíduo, porém na estima que o rei tem por ele, na influência de que goza junto aospoderosos,nasuaimportâncianojogodascoteriesdacorte.Tudoisso,estima,influência,importância,todoessejogocomplexoesérionoqualestãoproibidasaviolênciafísicaeas explosões emocionais diretas, e a ameaça à existência exige de cada jogador umaconstantecapacidadedeprevisãoeumconhecimentoexatodecadaum,desuaposiçãoevalorna rededeopiniõesdacorte, tudo issoexigeumafinamentoprecisodacondutaaesse valor. Qualquer erro, qualquer descuido reduz o valor do indivíduo na opinião dacorteepodepôremxequeasuaposição.

“Ohomemqueconheceacorteésenhordeseusgestos,deseusolhoseexpressão.Éum homem profundo, impenetrável. Dissimula asmás ações que comete, sorri para osinimigos, reprime omau-humor, disfarça as paixões, rejeita o que quer o coração, agecontraossentimentos.”143

Éinequívocaa transformaçãodanobrezano rumodocomportamento“civilizado”.Acondutanãoéaindatão“civilizada”comomaistardeseránasociedadeburguesa,porquesóemrelaçãoaseuspareséqueocortesãoeadamadacorteprecisamsesujeitaraessaslimitações,queelesobservambemmenosfaceaseusinferiores.Mas,aforaofatodequeopadrãodecontroledepaixõesesentimentosnacortesedistinguedaquelequevigoranasociedadeburguesa,é tambémmais intensaepercepçãodequeessecontroleéexercidopor razões sociais. Inclinações opostas não desapareceram ainda por completo daconsciênciadevigília,oautocontrolenãosetornouaindainteiramenteummecanismodehábitosqueoperaquaseautomaticamenteeincluitodososrelacionamentoshumanos.Masjáémuitoclaroqueossereshumanosestãosetornandomaiscomplexoseinternamentedivididosdeumamaneiramuitoespecífica.Todohomem,porassimdizer,enfrentaa simesmo. Ele “disfarça as paixões”, “rejeita o que quer o coração” e “age contra seussentimentos”. O prazer ou a inclinação do momento são contidos pela previsão deconseqüências desagradáveis, se forem atendidos. E é este, na verdade, o mesmomecanismoatravésdoqualosadultos—sejamelesospaisououtraspessoas—instilamum“superego”estávelnascrianças.Apaixãomomentâneaeosimpulsosafetivossão,porassim dizer, reprimidos e dominados pela previsão de aborrecimentos posteriores, pelomedodeumadorfutura,atéque,pelaforçadohábito,essemedofinalmentecontenhaocomportamento e as inclinações proibidos, mesmo que nenhuma outra pessoa estejafisicamentepresente,eaenergiadessasinclinaçõessejacanalizadanumadireçãoinócua,semoriscodequalqueraborrecimento.

De conformidade com a transformação da sociedade, são também reconstruídas asrelaçõesinterpessoais,aconstituiçãoafetivadoindivíduo:àmedidaqueaumentamasériedeaçõeseonúmerodepessoasdequemdependemoindivíduoeseusatos,torna-semaisfirme o hábito de prever conseqüências a longo prazo. E namesma proporção em quemudamocomportamentoeaestruturadapersonalidadedoindivíduo,mudatambémsua

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maneiradeencararosdemais.Aimagemqueeleformadosoutrostorna-semaisricaemnuanças,maisisentadeemoçõesespontâneas,—elaé,numapalavra,“psicologizada”.

Noscasos emqueas funções sociaispermitemao indivíduomaior liberdadede açãosoba influênciadeimpulsosmomentâneosdoqueacontecenascortes,nãoénecessárionem possível estudar em grande profundidade a consciência e os sentimentos de outrapessoa,ouquemotivosocultospodemseracausadeseucomportamento.Se,nacorte,ocálculoenreda-secomocálculo,nassociedadesmaissimplesossentimentosseenredamdiretamente com os sentimentos. Essa força dos sentimentos mais imediatos, contudo,prendeoindivíduoaumnúmeromenordeopçõesdecomportamento:apessoaéamigaouinimiga,boaoumá;dependendodecomovêooutroemtermosdessespadrõesafetivosempreto e branco, o indivíduo se comporta.Tudoparece estar diretamente relacionadocomosentimento.Ofatodebrilharosolourelampejaroraio,dealguémriroucontrairassobrancelhas,tudoissoatingemaisdiretamenteossentimentosdoobservador.Eàmedidaque isso o excita aqui e agora, demaneira amistosa ou hostil, ele acredita que tudo ovisavadiretamente.Nãolheentranacabeçaquetudoisso,orelâmpagoqueacompanhaoraio que quase o atingiu, o rosto que o ofende, possam ser explicados por conexõesremotasquenadatenhamaverdiretamentecomsuapessoa.Elesódesenvolveumavisãoamais longo prazo da natureza e dos outros indivíduos namedida em que a crescentedivisãodefunçõeseseuenvolvimentodiárioemlongascadeiashumanasoacostumaremaessavisãoeaummaiorcontroledaafetividade.Sóentão,lentamente,seremoveovéuqueaspaixõescolocavamemfrenteaseusolhos,eumnovomundoemerge—ummundocujocursoéamistosoouhostilparacomapessoa,semqueissodecorradeumaintenção,uma cadeia de eventos que precisam ser considerados imparcialmente durante longosperíodosdetempo,casosepretendadescobrirsuasconexõesa.

Talcomoacondutaemgeral,amaneiradeverascoisaseaspessoastambémsetornamaisneutranaesferaafetiva,comoprocessocivilizador.A“imagemdomundo”vaisetornandomenosdiretamentedeterminadapelosdesejosereceioshumanos,eseorientandoparaoquechamamosde“experiência”oupara“oempírico”,paraseqüênciasdotadasderegularidades imanentes.Damesma forma que hoje, em outro arranco nessa direção, ocurso da história e da sociedade gradualmente emerge da névoa dos sentimentos e doenvolvimentopessoais,donevoeirodeanelose receioscoletivos,ecomeçaaexibirumnexorelativamenteautônomodeeventos,omesmoacontececomanaturezae—dentrode espaçosmenores—comos seres humanos.E é exatamente nos círculos da vida nacortequesedesenvolveoquehojechamaríamosdeumavisão“psicológica”dohomem,aobservaçãomaisexatadosdemaisedesimesmoemtermosdeumasériemaislongademotivos e conexões causais, porque é lá que o autocontrole vigilante e a ininterruptaobservação do próximo figuram entre os pré-requisitos elementares para se preservar aposiçãosocialdecadaum.Masissoéapenasumexemplodecomoaquiloquechamamosde “orientação para a experiência”, a observação dos eventos num nexo deinterdependência que se alonga e alarga, começa vagarosamente a desenvolver-se noponto exato em que a estrutura da sociedade compele o indivíduo a controlar suasemoçõespassageirasetransformaraindamaisfortementeasenergiasdalibido.

Saint-Simon refere-se, numa passagem, a uma pessoa com a qual suas relações sãoincertas.Assimdescreveoseucomportamentonessasituação:“Logonoteiqueeleestavaficandomais frio.Estudei-lheatentamenteacondutaem relaçãoamim,a fimdeevitar

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confusão entre o que poderia ser acidental numhomem sobrecarregado comproblemasespinhosos, e aquilo de que suspeitava.Minhas suspeitas foram confirmadas, o quemelevouaafastar-meinteiramentedele,semdaramínimaindicaçãodisso.”144

Essa arte cortesã de observação do ser humano — ao contrário do que hojechamaríamosde“psicologia”—jamaisseinteressavapeloindivíduonoisolamento,comose os aspectos essenciais de seu comportamento fossem independentes de suas relaçõescom os outros, como se ele se relacionasse com os outros, por assim dizer, apenasretrospectivamente.Oenfoqueaquiseaproximamuitomaisdarealidade,nosentidoemqueoindivíduoésemprevistoemseucontextosocial,comoumserhumanoemrelaçãocomoutros,comoumindivíduonumasituaçãosocial.

Dissemos acima que os preceitos do século XVI sobre o comportamento diferiamdaquelesde séculosprecedentesmenos em termosde conteúdodoquede tom,deumaatmosfera afetiva que se modificara.145 As introvisões psicológicas, as observaçõespessoais,começavamadesempenharumpapelmais importante.AcomparaçãoentreospreceitosdeErasmooudeDellaCasaeasregrasmedievaiscorrespondentesmostraissocomgrande clareza.O estudo dasmudanças sociais nessa época, da transformação dosrelacionamentos humanos que ocorreu, fornece uma explicação. Essa “psicologização”dasregrasdeconduta,ou,maisexatamente,suamaiorimpregnaçãopelaobservaçãoeaexperiência, constituiu umamanifestação da acelerada transformação da classe alta emclassecortesã,edaintegraçãomaisestreitadetodasaspartesdasociedadenesseperíodo.Sinais de mudança nesse rumo certamente não se encontram apenas nos livros quetrataram do padrão de “boa conduta” da época; encontramo-los, também, em obrasdedicadas aos entretenimentos dessa classe. A observação do ser humano, exigida pelavidanocírculodacorte,encontrousuaexpressãoliterárianaartedoretrato.

O aumento da demanda de livros numa sociedade constitui bom sinal de um avançopronunciadonoprocessocivilizador,porquesempresãoconsideráveisatransformaçãoeregulaçãodepaixõesnecessáriatantoparaescrevê-losquantoparalê-los.Nasociedadedecorte,porém,olivroaindanãodesempenhaomesmopapelquenaburguesa.Naprimeira,o convívio social, omercadodevalores deprestígio, formamo centroda existência decadapessoa.Oslivrossãousadosmenosparaaleituranogabineteouemhorassolitáriasdeócio,retiradasdohorárioprofissionaldecadaum,doquecomoassuntodeconversanoconvíviosocial,fazendoparteedandocontinuidadeàconversaçãoeaosjogossociaisou,tal comoamaioria dememórias que têma corte comoobjeto, servindode substituto àconversa,formandodiálogosemque,porumarazãoououtra,faltaointerlocutor.Afinaartedosretratosnasmemóriasdascortes,nascartaseaforismosdá-nos,assim,umaboaimagemdacomplexaobservaçãodesereseaçõeshumanasinstiladapelavidacortesã.Eneste aspecto, como emmuitos outros, a sociedadeburguesa daFrança levou adiante aherança da corte com uma curiosa continuidade. A persistência da “boa sociedade”parisiense, como beneficiária e aprimoradora dos instrumentos de prestígio criados nasociedade de corte, para muito além da Revolução e até o presente dia, pode tercontribuídopara isso.Dequalquermodo,podemosdizerquedosretratosquesaíramdapena de Saint-Simon e seus contemporâneos até as descrições da “alta sociedade” doséculoXIX,deautoriadeProust—passandoporBalzac,Flaubert,Maupassantemuitosoutros—e, finalmente, a representaçãodavidade classesmais amplasquedevemosaescritoresdocalibredeJulesRomainsouAndréMalraux,ouaumbomnúmerodefilmes

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franceses, perpassa uma linha direta de tradição, caracterizada precisamente por essalucidez de observação, essa capacidade de ver a pessoa em todo seu contexto social ecompreendê-laatravésdele.Afiguraindividualjamaiséartificialmenteisoladadotecidode sua existência social, de sua dependência simples dos demais. Por isso mesmo, aatmosferaeaplasticidadedaexperiênciarealnuncaseperdemnasdescrições.

Emuito do que se pode dizer a respeito dessa “psicologização” aplica-se também à“racionalização”,quelentamentevaisetornandoperceptível,apartirdoséculoXVI,nosaspectos oumais variados da sociedade. Este tampouco é um fato isolado,mas apenasumamanifestação damudança em toda a personalidade, que emerge nessa época, e dacrescentecapacidadedeprevisãoqueapartirdesseperíodoétambémexigidaeinstiladaporumnúmerocrescentedefunçõessociais.

Nesteexemplo,comoemmuitosoutros,acompreensãodosfatossócio-históricosexigea suspensão dos hábitos de pensar com que crescemos. Essa racionalização histórica,freqüentementenotada,nãoéalgoquetenhasurgidoporquenumerosaspessoasisoladas,sem relações entre si, simultaneamente desenvolvessem “dentro de si”, como que poralgumaharmoniapreestabelecida,umnovoórgãoousubstância,uma“compreensão”ou“razão” que não existissem até então.O quemudou foi amaneira como as pessoas seligavamumasàsoutras.Porisso,mudouocomportamento;porisso,tambémmudaramaconsciência e a economia das paixões, e a própria estrutura como um todo.“Circunstâncias” quemudam não são algo que vem ter, aos homens, de “fora”: são osrelacionamentosentreasprópriaspessoas.

Ohomeméumserextraordinariamentemaleávelevariável.Asmudançasqueocorremnas atitudes humanas aqui discutidas constituem exemplo dessa maleabilidade. Ela, demodo algum, se limita ao que em geral diferenciamos como o “psicológico” e o“fisiológico”.O“físico”,também,estáindissoluvelmenteligadoaoquedenominamosde“psíquico”,modelando-sedeformavariadanocursodahistóriadeacordocomcadeiasdedependênciasqueseestendemao longode todaavidahumana.Poderíamospensar,porexemplo, namodelaçãodosmúsculos faciais e, portanto, da expressão facial, durante avidadapessoa,ounaformaçãodoscentrosde leituraeescritanocérebro.Omesmoseaplicaàquiloaquenosreferimoscomtermostãoreificadorescomo“raciocínio”,“razão”ou“compreensão”.Nadadissoexiste—emboranossousodaspalavrassugiraocontrário— relativamente imune à mudança sócio-histórica, da maneira como, por exemplo,existemocoraçãoouoestômago.Emvezdisso,essestermosexpressamumamodelaçãoespecíficadetodaapersonalidade.Sãoaspectosdemodelaçãoqueocorrembemdevagar,avançandoerecuandoumsem-númerodevezes,equeemergemmaisfortementequantomais clara e totalmente os impulsos espontâneos do indivíduo ameaçam provocar, porefeitodaestruturadedependênciashumanas,perdadeprazer,declínio,ou inferioridadeemrelaçãoaoutraspessoas,oumesmoameaçamarruinaraprópriaexistênciasocial.Sãoaspectosdaquelamodelaçãomedianteaqualocentrodalibidoeocentrodoegosãomaisou menos fortemente diferenciados, até que finalmente se forma uma agência deautocontrole abrangente, estável e altamente diferenciada.Não há de fato uma “razão”,haverá,nomáximo,“racionalização”.

Nossos hábitos de pensar inclinam-nos a procurar “começos”.Mas não há em partealguma,nodesenvolvimentodapessoa,um“ponto”antesdoqualpoderíamosdizer:até

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aqui não havia “razão” e agora ela “surgiu”; até aqui não havia compulsões do ser enenhum“superego”eagora,nesteounaqueleséculo,elesubitamentesurgiu.Nãoháumponto zerode todos esses dados.Mas tampouco faz justiça aos fatos dizer: tudo estevesemprelá,comoagora.Oshábitosdeautocontrole,aconstituiçãoconscienteeafetivadepessoas “civilizadas” diferem claramente em sua totalidade das dos chamados“primitivos”, mas ambos são, em sua estrutura, modelações diferentes, e ainda assimclaramenteexplicáveis,demodelaçõesdasmesmasfunçõesnaturais.

Os hábitos tradicionais de pensar confrontam-nos ininterruptamente com alternativasestáticas. São formados, em certo sentido, de acordo com modelos eleáticosb: apenasconseguimosconceberpontosisolados,mudançasabruptaseseparadas,ouabsolutamentenenhumamudança.Eevidentementeaindatemosmuitadificuldadeemnosimaginarmoscomo parte de um processo gradual de mudança, contínuo, dotado de estrutura e deregularidade específicas— uma mudança que se perde na escuridão do passado maisremoto—, e como parte de ummovimento que, tanto quanto possível, deve ser vistocomoumtodo,talcomoovôodeumaflechaouofluirdeumrio,enãocomoarepetiçãodamesmacoisaempontosdiferentes,oucomoalgoquesaltadeumpontoparaoutro.Oquemudanocursodoprocessoquedenominamosdehistóriasãoasrelaçõesmútuas,asconfigurações de pessoas e a modelação que o indivíduo sofre através delas. Mas, noexato momento em que essa historicidade fundamental do homem é vista claramente,percebemos também a regularidade, as características estruturais da existência humana,quepermanecemconstantes.Cadaaspectoisoladodavidasocialapenasécompreensívelnocontextodessemovimentoperpétuo.Nenhumdetalhepodeserisoladodele.Forma-senesse contexto móvel — que pode parecer lento, como no caso de muitos povosprimitivos, ou rápido, como no nosso— e ele deve ser apreendido, como parte de umestágio ou onda específicos. Os controles e restrições às pulsões nunca estão ausentesentreaspessoas,nemumacertacapacidadedeprevisão;masessasqualidadesassumemuma forma e grau diferentes entre simples pastores ou numa classe guerreira, do queocorreentrecortesãos, funcionáriosdoEstadooumembrosdeumexércitomecanizado.Tornam-semais poderosas e complexas àmedida que aumenta a divisão de funções e,pois,onúmerodepessoascomasquaisoindivíduotemquesincronizarsuasações.Deigualmaneira, a natureza da “compreensão” ou do “raciocínio” à qual o indivíduo estáacostumado se aproximaou se afastadadeoutraspessoasna sua sociedade,namesmamedida emque sua própria situação e função social, e a de seus pais ou das principaisinfluênciasqueomoldaram,seaproximamouafastamdasdosdemais.Acapacidadedeprevisãodo impressoroudomontadordiferedadoguarda-livro,adoengenheirodadodiretor de vendas, a doministro da fazendada do comandante do exército,mesmoquetodas essas distintas modelações superficiais sejam igualadas, até certo ponto, pelainterdependênciadefunções.Emnívelmaisprofundo,aracionalidadeeamodelaçãodesentimentosdealguémquecresceunumafamíliadeclasseoperáriasãodiferentesdaquelequecresceunumambienteseguroeabastado.E,finalmente,aracionalidadeeospadrõesdesentimentos,aauto-imagemeaeconomiapulsionaldosalemães,ingleses,franceseseitalianossediferenciam,deacordocomsuasdiferenteshistóriasdeinterdependência,eamodelaçãosocialdapessoanoOcidente,comoumtodo,diferedadosorientais.Mastodasessas diferenças são compreensíveis exatamente porque têm, subjacentes, as mesmasregularidades humanas e sociais. As diferenças individuais dentro desses grupos, taiscomo as de “inteligência”, são meramente nuanças num contexto de formas históricas

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muito específicas, diferenciações às quais a sociedade oferece maior ou menoroportunidadedeexpressão,dependendodesuaestrutura.Dessamaneira,porexemplo,aaventuraqueéopensamentoindependentealtamenteindividualizado,aposturaatravésdaqualapessoaprovaqueéuma“inteligênciacriativa”,nãotemcomoprecondiçãoapenasum“talentonatural”individualmuitoparticular.Elasóépossíveldentrodeumaestruturaespecífica de equilíbrios de poder; sua precondição é uma estrutura social bastanteespecífica.Edepende,alémdisso,doacessoqueoindivíduotem,numasociedadeassimestruturada, ao tipodeaprendizagemeaopequenonúmerode funções sociaisque, elasapenas,permitemdesenvolver-sesuacapacidadeindependentedereflexão.

Portudoisso,acapacidadedeprevisão,ou“raciocínio”,docavaleiroédiferentedadocortesão. Uma cena relatada por Ranke146 dá-nos boa idéia de como a estrutura depersonalidade típica dos cavaleiros estava condenada pela crescente monopolização daforça. Em termos mais gerais, fornece-nos um exemplo de como uma mudança naestrutura das funções sociais obriga a uma mudança de conduta. O duque deMontmorency, filhodeumaristocrataquedesempenharapapeldamaisalta importânciana vitória de Henrique IV, rebela-se. Era um homem cavaleiroso, nobre, generoso ebrilhante,bravoeambicioso.Eserviaaorei.MasqueessepodereodireitodegovernardevessemestarsubordinadosaLuísXIIIou,maisprecisamente,aRichelieu,eracoisaqueelenãocompreendianemaprovava.Assim,comseusseguidores,começouacombateroreiassimcomo,nosvelhostempos,cavaleirosesenhoresfeudaisfreqüentementefaziamentresi.Houveumconfronto.Ogeneraldorei,Schomberg,encontrava-senumaposiçãotaticamentedébil.Isso,contudo,dizRanke

era uma vantagem à qualMontmorency deu pouca atenção. Vendo o exército inimigo,sugeriu a seus amigos que atacassem, sem demora. Isto porque compreendia a guerraprincipalmente como uma valente carga de cavalaria. Um companheiro experiente, ocondeRieux,suplicou-lhequeesperasseatéquealgunscanhões,queestavamchegando,abalassemaposiçãodo inimigo.Montmorency,porém, jáestavapossuídopelaagitaçãobelicosa. Não haviamais tempo a perder, disse, e seu conselheiro, embora antevisse odesastre, não ousou contrariar a vontade clara do cavaleiroso chefe. “Senhor”, gritou,“morrereiavossospés”.

Montmorency se reconhecia pelo corcel que montava, esplendidamente adornado depenas azuis e pardas. Só um pequeno grupo de seus homens saltou com ele sobre atrincheira.Abateramtodososqueencontraramàsuafrenteeforamabrindocaminhoatéchegarem diante da posição principal do inimigo, onde foram recebidos por nutrido erápidofogodemosquetes.Cavalosehomenstombaramferidosemortos.OcondeRieuxeamaioriadosoutrosmorreram;oduquedeMontmorency,ferido,caiudocavalo,tambématingido,efoifeitoprisioneiro.

Richelieumandousubmetê-loajulgamento,certodoresultado,elogodepoisoúltimoMontmorencyfoidecapitadonopátiodaprefeituradeToulouse.

Ceder imediatamente a seus impulsos e não pensar nas conseqüências era, nas fasesprecedentesemqueosguerreirospodiamcompetirmaislivrementeentresi,ummododecondutaque—mesmoquelevasseàquedadoindivíduo—estavaadequadoàestruturasocial como um todo e, por conseguinte, à “realidade”. O fervor marcial era umaprecondição necessária para o sucesso e o prestígio do membro da nobreza. Com a

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monopolizaçãoecentralizaçãoemandamento,tudoissomudou.

A estrutura diferente da sociedade punia agora, com ruína inapelável, as explosões eações emocionais destituídas de um apropriado espírito de previsão. E todos os quediscordassemdoestadodecoisasvigente,daonipotênciado rei, teriamquemudarseuscostumes.VejamosoqueSaint-Simondisseaesserespeito.Ele,também,poucomaisdeuma geração apósMontmorency, era e se conservou durante toda a vida um duque deoposição.Mas tudo o que conseguiu foi criar na corte uma espécie de facção; se fossehábil,poderiateraesperançadeconquistarparasuasidéiasosucessordorei,oDelfim.Mas isso era um jogo perigoso na corte de Luís XIV e que exigia amaior cautela. Opríncipe tinha, em primeiro lugar, de ser cuidadosamente sondado e, só depois,gradualmenteorientadonadireçãodesejada:Minhaprincipal intenção(dizSaint-Simon,descrevendoatáticaqueadotounumaconversacomoDelfim)erasondar-lheaopiniãoarespeito de tudo o que interessava à nossa dignidade. Tomei, em conseqüência, todo ocuidadopara interromperqualquerdiscussãoquenosafastassede talobjetivo, trazerdevoltaaconversaeconduzi-laatravésdetodososdiferentescapítulos…oDelfim,muitoatento,aprecioutodososmeusargumentos…animou-se…egemeuanteaignorânciaeafaltadeponderaçãodoRei.Eupoucomaisfizdoquealudiracadaumdessesdiferentesassuntos ao apresentá-los, sucessivamente, ao Delfim, e depois me limitei a ouvi-lo,deixando-lheoprazerdefalar,demostrar-mecomoeraeducado.Deixeiqueelemesmoseconvencesse, se animasse, se zangasse, enquanto eu lhe observava os sentimentos, amaneira como ele pensava, a fim de formar impressões das quais eu pudesse tirarproveito…Preocupei-memenoseminsistiremmeusargumentoseexplicaçõesdoque…em suave, mas firmemente, instilar nele meus sentimentos e opiniões sobre cada umdessesassuntos…147

Esse curto esboço da atitude de dois homens, os duques de Montmorency e Saint-Simon,quandodavamexpressãoàsuaoposiçãoàonipotênciadorei,ajudaacompletarnosso quadro. O primeiro, um dos últimos cavaleiros, procura alcançar sua meta numcombatefísico;osegundo,ocortesão,naconversa.Oprimeiroageapartirdeimpulsos,pouco pensando nos outros; o segundo ajusta ininterruptamente o comportamento aointerlocutor.Ambos,nãosóMontmorency,mastambémSaint-Simon,estãonumasituaçãoaltamente perigosa. ODelfim pode a qualquermomento romper as regras da conversacortesã, interromper, se quiser, a conversa e o relacionamento por qualquer razão queescolha,enissoperderámuitopouco.SeSaint-Simonnãoformuitocauteloso,oherdeirodo trono poderá adivinhar os pensamentos sediciosos do duque e informar o rei.Montmorencymal se apercebe do perigo; está inteiramente condicionado pela condutadireta que sua paixão determina. Procura superar o perigo exatamente comempregodafúriadesuapaixão.Saint-Simonpercebeaexataextensãodoperigoecomeçaatrabalharcom o máximo autocontrole e espírito de previsão. Não tenta obter coisa alguma pelaforça,trabalhamotivadoporumavisãoaprazomaislongo.Contém-seafimde“instilar”nooutro,imperceptívelmasduradouramente,seussentimentos.

O que temos nessa historieta autobiográfica é um exemplo muito revelador daquelaracionalidade cortesã — embora este fato não seja em geral compreendido — quedesempenhou umpapel nãomenos importante, e a princípio aindamais importante, nodesenvolvimentodoquechamamosde“Iluminismo”,doqueacapacidadedeprevisãoeracionalidadeurbano-comerciais instiladaspelas funçõesocupadasna rededecomércio.

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Mas, com certeza, essas duas formas de capacidade de previsão, a racionalização e apsicologização—na nobreza de corte e nos principais grupos de classemédia—, pormaisdiferentesfossememseuspadrões,desenvolveram-seemestreitacombinaçãoentresi. Indicam um crescente entrelaçamento entre nobreza e burguesia e surgem de umatransformaçãonos relacionamentos humanos que ocorria por toda a sociedade: estavamvinculados da maneira a mais íntima possível com a mudança que levara os estadosfrouxamente ligados da sociedade medieval a se tornarem, gradualmente, formaçõessociaissubordinadasnasociedadecentralizadadoEstadoabsolutista.

Oprocessohistóricode racionalizaçãoconstituiumexemplodeprimeiraáguadeumprocessoqueatéagoraopensamentosistemáticomaltemcompreendido.Elepertence—se observarmos omodelo tradicional das disciplinas acadêmicas— a uma ciência queainda não existe, a psicologia histórica. Na atual estrutura da pesquisa histórica, umanítida linha divisória costuma ser traçada entre o trabalho dos historiadores e o dospsicólogos. Só os ocidentais de nossos dias parecem necessitar ou ser acessíveis àinvestigaçãopsicológicaou,nomáximo, tambémospovoschamadosdeprimitivosqueaindasobrevivem.Permaneceobscuroocaminhoqueleva,naprópriahistóriaocidental,da estrutura mais simples, primitiva, para a mais diferenciada. Exatamente porque opsicólogopensanão-historicamente,porqueabordaasestruturaspsicológicasdoshomensde nossos dias como se fossem algo sem evolução oumudança, os resultados de suasinvestigaçõesdepoucoservemaohistoriador.Eporque,preocupadocomoquechamadefatos,evitaproblemaspsicológicos,ohistoriadorpoucotemadizeraopsicólogo.

A situação é pouco melhor no caso da sociologia. Na medida em que chegue a seinteressarporproblemashistóricos,elaaceitasemreservasalinhadivisóriatraçadapelohistoriador entre a estrutura aparentemente imutável do homem e suas diferentesmanifestações sob a forma de artes, idéias, ou o que quer que seja. Permanece semreconhecimentoofatodequeumapsicologiasocialhistórica,umestudosimultaneamentepsicogenético e sociogenético, é necessária para traçar as conexões entre todas essasdiferentes manifestações dos seres humanos. Os que se interessam pela história dasociedade,comoosqueestudamahistóriadamente,encarama“sociedade”eomundodas “idéias” como duas formações diferentes que pode haver sentido em separar.Aparentemente,ambosacreditamqueháouumasociedadeforadasidéiasepensamentos,ou idéias fora da sociedade. E simplesmente discutem qual desses dois reinos é mais“importante”,dizendounsquesãoas idéias,semasociedade,quepõemestaúltimaemmovimento,eoutrosqueéumasociedadesemidéiasquedeflagraas“idéias”.

O processo civilizador e, dentro dele, suas tendências como a psicologização e aracionalização,nãoseajustamaesse tipodeesquema.Mesmonopensamento,elasnãopodem ser simplesmente cindidas da mudança histórica que ocorreu na estrutura dosrelacionamentos interpessoais. É inteiramente sem propósito perguntar se a transiçãogradual de modos menos para mais racionais de pensamento e conduta mudou asociedade, porquanto esse processo de racionalização, tal como o processo civilizadormaisabrangente, jáconstituiumeventopsicológicoe social.Mas tampouco fazsentidoexplicar o processo civilizador como uma “superestrutura” ou “ideologia”, isto é,exclusivamenteapartirdesuafunçãocomoarmanalutaentregruposeinteressessociaisespecíficos.

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A gradual racionalização e, mais, todo o processo civilizador, ocorrem sem dúvidaalguma em constante ligação com as lutas de diferentes estratos sociais e outrosgrupamentos.Atotalidadedasociedadeeuropéia,osubstratodoqueé,atéagora,oúltimoemaisfortesurtocivilizador,demodoalgumpodeserconsideradaaunidadepacíficaque,àsvezes,pareceseremedifíciosharmonísticosdepensamento.Elanãocomeçousendoum todo harmonioso, no qual se introduziram conflitos, como que pela má vontade eincompreensãodedeterminadaspessoas.Emvezdisso,tensõeselutas—tantoquantoasdependênciasmútuasdepessoas—constituíramparteintegraldasuaestrutura,afetandodecisivamenteadireçãoemqueelamudou.Semdúvida,ummovimentocivilizadorpodeassumirgrandeimportânciacomoarmanessaslutas.Istoporqueahabituaçãoaumgraumais elevado de previdência e a umamaior contenção de emoções transitórias— paralembrar apenas essas duas facetas — pode conferir a um grupo uma vantagemsignificativasobreoutro.Omaisaltograuderacionalidadeeinibiçãodepaixões,porém,pode também, em certas situações, exercer um efeito debilitador e prejudicial. A“civilização”podeserumafacadedoisgumes.Equaisquerquepossamserseusefeitosemcasosparticulares,dequalquermodoosarrancosdoprocessocivilizadorocorrem,demodogeral,independentementedeseremagradáveisouúteisparaosgruposenvolvidos.Nascem da poderosa dinâmica de atividades coletivas que se entrelaçam, cuja direçãogeralqualquergrupoisoladodificilmentepodemudar.Nãosãoacessíveisàmanipulaçãoconscienteou semiconscienteouà conversãodeliberadaemarmasna luta social,muitomenos, na verdade, do que as idéias, por exemplo.Damesma formaque ocorre comaestruturadepersonalidadecaracterísticadeumdadoestágiododesenvolvimento social,traçosespecíficosdacondutacivilizadasãosimultaneamenteumprodutoeumaalavancanodesenvolvimentodoprocessosocialmaisamplo,noqualseformamesetransformamclasses e interesses distintos. A civilização e, por conseguinte, a racionalização, porexemplo, não constituem um processo numa esfera isolada só de “idéias” ou“pensamento”.Elanãoenvolveapenasmudançasno“conhecimento”,transformaçõesde“ideologias”,emsuma,alteraçõesnoconteúdodaconsciência,masmudançasemtodaaconstituiçãohumana,naqualas idéiaseoshábitosdepensamentosãoapenasumsetor.Estamos interessadosaquiemmudançasem todaapersonalidade,atravésde todas suaszonas,daorientaçãodoindivíduoporsimesmononívelmaisflexíveldaconsciênciaedareflexãoatéonívelmaisautomáticoerígidodaspaixõesesentimentos.Paracompreendermudanças desse tipo, o modelo de pensamento trazido à mente por conceitos de“superestrutura”ou“ideologia”nãoésuficiente.

A idéia de que a “psique” humana consiste em zonas diferentes, que funcionamindependentementeumasdasoutrasepodemserestudadasemseparado,enraizou-sehámuitotempoeprofundamentenaconsciênciahumana.Écomum,aosepensarnaestruturamaisdiferenciadadapersonalidade,separarumdeseusníveisfuncionaisdeoutro,comoseessefosserealmenteofator“essencial”àmaneiracomoohomempautaacondutaemseus contactos com os semelhantes e com a natureza não-humana. Por issomesmo, ashumanidades e a sociologia do conhecimento frisam, acima de tudo, os aspectos doconhecimentoedopensamento.Pensamentose idéiasaparecemnessesestudoscomosefossemo aspectomais importante e poderosodamaneira comooshomensdirigem suavida.Osimpulsosinconscientes,todoocampodaspulsõeseestruturasdossentimentos,permanecemmaisoumenosnaescuridão.

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Ora, todas as investigações que consideram apenas a consciência do homem, sua“razão” ou “idéias”, ignorando aomesmo tempo a estrutura das pulsões, a direção e aformade emoções e impulsos humanos, só podem ter, por princípio, umvalor bastantelimitado.Umaparte enormedoqueé indispensávelpara compreenderohomemescapadesseenfoque.Aracionalizaçãodaatividadeintelectual,bemcomodetodasasmudançasestruturaisnas funçõesdoegoedo superego,de todosessesníveis interdependentesdapersonalidade do homem, serão muito pouco acessíveis ao pensamento, enquanto asindagações se limitarem amudanças nos aspectos intelectuais, amudanças de idéias, epouca atenção se der ao equilíbrio e padrão mutáveis das relações entre pulsões esentimentos, por um lado, e o controle dosmesmos, por outro.Uma real compreensão,mesmo demudanças de idéias e formas de cognição, só será possível se levarmos emconta,também,asmudançasdainterdependênciahumanaemconjuntocomaestruturadaconduta e, na verdade, todo o tecido da personalidade do homemnumdado estágio dodesenvolvimentosocial.

Odestaqueinverso,comalimitaçãocorrespondente,seencontracomgrandefreqüêncianapesquisapsicanalíticamoderna.Elafreqüentementetende,aoestudarsereshumanos,aextrair algo “inconsciente”, concebido como um “id” sem história, como o dado maisimportanteemtodaaestruturapsicológica.Embora,recentemente,essaimagempossatersofridocorreçõesnapráticaterapêutica,elaaindanãolevouaumrefinamentoteóricodosdados fornecidos pela clínica e à sua transformação em instrumentos conceituais maisadequados.Nonívelteórico,aindaparecequeadireçãodavidadoindivíduoporimpulsosda libido, inconscientes, possui uma forma e estrutura próprias, independentemente dodestinodapessoa,dobomoumauresultadodeseusrelacionamentoscomossemelhantesdurantetodaavida,esemligação,também,comomodeloeestruturadeoutrasfunçõesorientadorasdesuapersonalidade,conscienteeinconsciente.Nenhumadistinçãoétraçadaentreamatériabrutanaturaldaspulsões,que,naverdade,talvezpoucomudedurantetodaahistóriadahumanidade,easestruturascadavezmaistrabalhadasdecontrolee,poraí,asviaspelasquaisasenergiaselementares,básicas,sãocanalizadasemcadapessoa,emsuasrelaçõescomasoutras,desdeonascimento.Masemdimensãoalguma,excetotalveznocasodosloucos,oshomens,emseusencontrosentresi,descobrem-sefaceafacecomfunções psicológicas em seu estado puro, num estado de natureza que não tenha sidomodeladopeloaprendizadosocial,pelaexperiênciadapessoacomoutrasquesatisfazemoufrustramsuasnecessidades,deacordocomoambientesocialespecífico.Asenergiasdalibido que encontramos em todos os seres humanos já foram socialmente processadas,foram,emoutraspalavras,transformadassociogeneticamenteemsuafunçãoeestruturae,de maneira alguma, podem ser separadas das correspondentes estruturas do ego e dosuperego.Osníveismaisanimaiseautomáticosdapersonalidadedohomemnãosãonemmais nem menos importantes para a compreensão da conduta humana do que seuscontroles.Oqueimporta,oquedeterminaaconduta,sãoosequilíbrioseconflitosentreaspulsõesmaleáveiseoscontrolesconstruídossobreaspulsões.

Decisivosparaapessoa,comoelasenosapresenta,nãosãonemo“id”sozinhonemo“ego” ou o “superego” apenas, mas sempre a relação entre esses vários conjuntos defunçõespsicológicas,parcialmenteconflitanteseempartecooperativos,namaneiracomooindivíduodirigesuaconduta.Sãoelas,essasrelaçõesdentrodohomementreaspaixõesesentimentoscontroladoseasagênciascontroladorasconstruídas,cujaestruturamudano

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cursodeumprocessocivilizador,deacordocomaestruturamutáveldosrelacionamentosentre seres humanos individuais na sociedade emgeral, que têm importância.No cursodesse processo, para dizer isto em breves palavras e de modo até simplificador, a“consciência” torna-se menos permeável às pulsões e as pulsões menos permeáveis à“consciência”. Em sociedades mais simples, impulsos básicos, como quer que sejamtransformados, têm acesso mais fácil à reflexão do homem. No curso de um processocivilizador,acompartimentaçãodessasfunçõesdedireçãodesimesmo,emborademodonenhumabsoluta,torna-semaispronunciada.

Deacordocomanormabásicasociogenética(verVolumeI,p.15),podemosobservardiretamente, em todas as crianças,processosnamesmadireção.Podemosnotarque,nocurso da história humana e, repetidamente, na de cada processo civilizador distinto, adireçãodesimesmosobaformadefunçõesdoegoesuperego,porumlado,eatravésdepulsões, por outro, vai se diferenciando cada vezmais. Por issomesmo, apenas com aformaçãodefunçõesconscientesmenosacessíveisàspaixõeséqueoautomatismodelasassumeaquelecaráterespecíficoquehojediagnosticamoscomumentecomo“a-histórico”,como uma peculiaridade do homem através das eras, e que é inteiramente natural eindependente da condição de desenvolvimento de sociedades humanas.Não obstante, apeculiaridadedohomem,descobertaporFreudemnossaprópriaépocaeconceitualizadapor ele como uma rigorosa divisão entre funções mentais inconscientes e conscientes,muito longe de ser parte da natureza imutável do homem, é resultado de um longoprocessocivilizador,duranteoqualsetornoumaisduraeimpenetrávelomuroqueseparaaspulsõesdalibidoda“consciência”,ou“reflexão”.c

Nocursodamesmatransformação,asfunçõesmentaisconscientesdesenvolvem-senorumodoqueéchamadocadavezmaisde“racionalização”:sócomadiferenciaçãomaisnítidaefirmedapersonalidadeéqueasfunçõespsicológicasdirigidasparaforaassumemo caráter de uma consciência que funciona mais racionalmente, menos tisnada porimpulsosemocionaisefantasiasafetivas.Dessamaneira,aformaeaestruturadasfunçõespsicológicasdedireçãodesimesmomaisconscienteseinconscientesjamaispoderãosercompreendidas se forem imaginadas como alguma coisa que exista ou funcione, emqualquer sentido, isoladamente do resto. Ambas são igualmente fundamentais para aexistência do ser humano e juntas formam um único grande continuum funcional. Sópodemsercompreendidasemconexãocomaestruturadosrelacionamentosentrepessoasecomasmudançasalongoprazonessaestrutura.

Por conseguinte, a fim de compreender e explicar os processos civilizadores,precisamosinvestigar—comosetemtentadofazeraqui—atransformaçãodaestruturadapersonalidadeetodaaestruturasocial.Essetrabalhoexige,dentrodeumraiomenor,investigações psicogenéticas com o objetivo de apreender todo o campo das energiaspsicológicasindividuais,aestruturaeaformatantodasfunçõesmaiselementaresquantoas mais orientadoras da conduta do indivíduo. Num raio mais amplo, o estudo dosprocessos civilizadores requer uma perspectiva de longo prazo, investigaçõessociogenéticas da estrutura total, não só de um único Estado-sociedademas do camposocial formado por um grupo específico de sociedades interdependentes, e da ordemseqüencialdesuaevolução.

Mas,paraumestudoadequadodetaisprocessossociais,énecessáriaumacorreçãode

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hábitos tradicionais de pensamento, semelhante à que antes se revelou necessária paraobtermos uma base conveniente para a indagação psicogenética. A fim de entenderestruturas e processos sociais, nunca é suficiente estudar umúnico estrato funcional nocamposocial.Para seremrealmenteentendidas,essasestruturaseprocessosexigemumestudodasrelaçõesentreosdiferentesestratosfuncionaisqueconvivemjuntosnocamposocialeque,comamaisrápidaoumaislentamudançanasrelaçõesdepoderprovocadaporumaestruturaespecíficadessecampo,sãonocursodotemporeproduzidassucessivasvezes.Damesmaformaqueemtodoestudopsicogenéticoénecessáriolevaremcontanãosó as funções “inconscientes” e “conscientes”, mas a contínua circulação de impulsosentreumaseoutras, igualmenteé importante,emtodososestudossociogenéticos, levaremcontadesdeoprincípio todaaconfiguração do campo social, que émaisoumenosdiferenciadoecarregadodetensões.Esóépossívelfazerissoporqueotecidosocialesuamudança histórica não são caóticos, mas possuem, mesmo numa fase de agitação edesordem, um claro padrão e estrutura. Investigar a totalidade do campo social nãosignificaanalisarcadaumdeseusprocessosindividuais.Implica,acimadetudo,descobriras estruturasbásicas, quedão a todososprocessos individuais agindonesse campo suadireção e marca específica. Envolve perguntar em que direção os eixos de tensão, ascadeiasdefunçõeseinstituiçõesdasociedadenoséculoXVdiferemdaquelasdosséculosXVIouXVII,eporqueasprimeirasmudaramnadireçãodasúltimas.Afimderesponderaessasperguntas,evidentementeénecessáriodispordeumariquezadefatosespecíficos.Mas,passadoumcertopontonaacumulaçãodefatosmateriais,ahistoriografiaentranafase em que não deve satisfazer-se com a coleta de mais fatos particulares e com adescrição dos já reunidos, mas precisa interessar-se pelos problemas que facilitem apenetração nas regularidades subjacentes, através das quais as pessoas em certassociedades são obrigadas a reproduzir uma vez após outra determinados padrões decondutaecadeiasfuncionaisespecíficas,como,porexemplo,cavaleiroseservosdagleba,reis e funcionários do Estado, burgueses e nobres, e através das quais essas relações einstituiçõesmudamnumadireçãomuitoespecífica.Alémdecertopontodeconhecimentofactual, um contextomais sólido, umnexo estrutural, podem ser percebidos emgrandenúmero de fatos históricos específicos. Todos os demais fatos que talvez venham a serdescobertospoderão—àparteoenriquecimentodopanoramahistóricoque,quemsabe,nosofereçam—serviroupararevisarasintrovisõesjáobtidasdessasestruturasouparaampliá-laseaprofundá-las.Aafirmaçãodequetodoestudosociogenéticodevevoltar-separaatotalidadedocamposocialnãosignificaquedevadirigir-separaasomadetodososfatos específicos, mas para sua estrutura, na inteireza de suas interdependências. Emúltima instância, as fronteiras de tal estudo são determinadas pelas fronteiras dainterdependência,oupelomenospelaarticulaçãoimanentedasmesmas.

Éaessaluzquesedevecompreenderoquedissemosacimasobrearacionalização.Agradual transição para uma conduta e pensamento mais “racionais”, para um tipo deautocontrole mais diferenciado, mais abrangente, hoje se costuma associar apenas àsfunções burguesas. Freqüentemente, encontramos impregnada na mente de nossoscontemporâneos a idéia de que a burguesia foi a “originadora” ou a “inventora” dopensamento mais racional. Nestas páginas, para fins de contraste, descrevemos certosprocessosderacionalizaçãoobservadosnocampoaristocrático.Masnãodevemosdeduzirdisso que a aristocracia cortesã tenha sido a “originadora” social desse surto deracionalização.Damesmamaneiraque,naeradaindustrialização,nemaaristocraciade

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corte nem a burguesia tiveram “originadores” em qualquer outra classe social, essaracionalização igualmente careceudeumoriginador.Aprópria transformaçãode toda aestruturasocial,nocursodaqualsurgiramessasconfiguraçõesdeburguesesenobres,é,consideradadeumcertoaspecto,uma racionalização.Oque se tornamais racionalnãosãoapenasoqueoshomensproduzem,nemmeramenteossistemasdepensamentopostosem livros. O mais importante a racionalizar-se foram os modos de conduta de certosgrupos de pessoas. A “racionalização” não passa — pensemos, por exemplo, natransformação de guerreiros em cortesãos— de umamanifestação do rumo em que amodelação de pessoas em configurações sociais específicas mudou neste período.Mudançasdessetipo,porém,nãose“originam”numaclasseououtra,massurgem,sim,emconjuntocomastensõesentrediferentesgruposfuncionaisnocamposocialeentreaspessoasquecompetemdentrodeles.Sobapressãodetensõesdessetipo,quesaturamtodootecidodasociedade,todaaestruturadestaúltimamuda,numafasedada,nadireçãodeumacrescentecentralizaçãodedomíniosespecíficos,deumamaiorespecialização,edeuma integração mais estreita dos indivíduos isolados no seu interior. Com essatransformaçãodetodoocamposocial,aestruturadasfunçõessociaisepsicológicasmudatambém—inicialmenteemsetorespequenose,maistarde,cadavezmaiores—norumodaracionalização.

A lenta desfuncionalização do primeiro estado e a correspondente diminuição de seupotencial de poder, a pacificação do segundo e a gradual ascensão do terceiro, nenhumdesses fenômenospode ser compreendido independentementedosoutros, nãomais, porexemplo, que o desenvolvimento do comércio nesse período pode ser compreendidoindependentemente da formação de poderosos monopólios de força física e daconsolidação de poderosas cortes. Todos eles são alavancas no processo abrangente decrescentediferenciaçãoeampliaçãodetodasascadeiasdeação,quedesempenhoupapeltãodecisivoemtodoocursodahistóriaocidental.Nesseprocesso—comosemostrouàvistadeaspectosespecíficos—,asfunçõesdanobrezaforamtransformadase,comelas,as funções da burguesia e a formados órgãos centrais.Lado a lado comessamudançagradual na totalidade das funções e instituições sociais ocorreu uma transformação daauto-orientação individual — inicialmente nos principais grupos da nobreza e daburguesia—nadireçãodeummaiorespíritodeprevisãoedeumaregulaçãomaisestritadosimpulsosdalibido.

Estudando as descrições tradicionais do desenvolvimento intelectual do Ocidente,freqüentementeformamosaidéiadequeseusautorespressupõem—vagamente—quearacionalizaçãodaconsciência,amudançadepensamentodasformasmágicastradicionaispara as racionais, tiveram sua causano surgimentodeumcertonúmerodegênios e dehomensnotáveis.Essesindivíduosiluminados,parecemsugeriressasanálises,ensinaramaoocidentalcomofazerumusocorretodesuarazãoinata.

Nestas páginas, delineamos um quadro diferente. Foi realmente considerável o querealizaramos grandes pensadores doOcidente. Eles deram expressão e exemplo àquiloque seus contemporâneos experimentavam em seus atos diários, sem serem capazes detraduzi-loclaramenteempensamento.Tentaramorganizarasformasmaisorientadasparaarealidade,ou,emsuapróprialinguagem,maisracionaisdepensamento,quesehaviamdesenvolvido gradualmente com as mudanças globais na estrutura da interdependênciasocial, e utilizá-las para esclarecer os problemas da existência humana.Deram a outras

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pessoasumentendimentomaisclarodomundoedesimesmas.Dessamaneira,atuaramtambémcomoalavancasnamáquinamaisampladasociedade.Foramemmaioroumenorgrau,dependendodeseustalentosesituaçãopessoal,intérpreteseporta-vozesdeumcorosocial.Masnãoforam,sozinhos,osoriginadoresdotipodepensamentoqueprevalecianasociedadedeseutempo.Nemcriaramoquechamamosde“pensamentoracional.”d

Essaexpressãoéevidentementeestáticademaise insuficientementediferenciadaparaaquilo que tenciona transmitir. Estática demais, porque a estrutura das funçõespsicológicas muda no mesmo ritmo que a das funções sociais. Insuficientementediferenciada,porqueopadrãoderacionalização,aestruturadoshábitosmaisracionaisdepensamento,foieémuitodiferenteemdiferentesclassessociais—como,porexemplo,nanobrezadecorteounosprincipaisestratosburgueses—,deconformidadecomsuasdiferentesfunçõessociaisesuasituaçãohistóricaglobal.E,finalmente,omesmoseaplicaàracionalização,conformeditoacima,dasmudançasdeconsciênciaemgeral:nelasósemanifesta um único lado de uma mudança mais abrangente em toda a personalidadesocial. E ela é acompanhada por uma transformação correspondente das estruturaspulsionais.É,emsuma,umaúnicamanifestaçãodecivilização,entreoutras.

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VI

VergonhaeRepugnânciaNãomenoscaracterísticodeumprocessocivilizadorquea“racionalização”éapeculiar

modelação da economia das pulsões que conhecemos pelos nomes de “vergonha” e“repugnância”ou“embaraço”.Ofortearrancodaracionalizaçãoeonãomenos(durantealgum tempo) forte avanço do patamar da vergonha e repugnância que se tornou, emtermosgerais,cadavezmaisperceptívelnaconstituiçãodohomemocidentalapartirdoséculoXVI,foramdoisladosdeumamesmatransformaçãonaestruturadapersonalidadesocial.Osentimentodevergonhaéumaexaltaçãoespecífica,umaespéciedeansiedadeque automaticamente se reproduz na pessoa em certas ocasiões, por força do hábito.Considerado superficialmente, é um medo de degradação social ou, em termos maisgerais,degestosdesuperioridadedeoutraspessoas.Maséumaformadedesagradooumedoquesurgecaracteristicamentenasocasiõesemqueapessoaquereceiacairemumasituaçãode inferioridadenãopodeevitaresseperigonempormeios físicosdiretosnemporqualquerformadeataque.Essaimpotênciaanteasuperioridadedosoutros,essatotalfragilidadediantedeles,nãosurgemdiretamentedaameaçadesuperioridadefísicaqueosdemais realmente representem — embora, sem dúvida, tenha suas origens numacompulsão física, na inferioridade corporal da criança frente aos pais ou mestres. Nosadultos,porém,aimpotênciaresultadofatodequeaspessoascujasuperioridadesetemeestão de acordo com o próprio superego da pessoa, com a agência de auto-limitaçãoimplantada no indivíduo por outros de quem ele foi dependente, que exerciam poder epossuíam superioridade sobre ele. De conformidade com isso, a ansiedade quedenominamos de “vergonha” é profundamente velada à vista dos outros. Por forte queseja,nuncaéexpressadaemgestosviolentos.Avergonhatirasuacoloraçãoespecíficadofatodequeapessoaqueasentefezouestáprestesafazeralgumacoisaqueafazentraremchoquecompessoasaquemestáligadadeumaformaoudeoutra,econsigomesma,com o setor de sua consciência mediante o qual controla a si mesma. O conflitoexpressadonoparvergonha-medonãoéapenasumchoquedo indivíduocomaopiniãosocialprevalecente:seuprópriocomportamentocolocou-oemconflitocomapartedesimesmoque representa essaopinião.Éumconflitodentrode suaprópriapersonalidade.Elemesmosereconhececomoinferior.Temeperderoamorerespeitodosdemais,aquematribuiouatribuiuvalor.Aatitudedessaspessoasprecipitouneleumaatitudedentrodesique ele automaticamente adota em relação a si mesmo. E é isso o que o torna tãoimpotente diante de gestos de superioridade de outras pessoas que, de algumamaneira,deflagramneleesseautomatismo.

Issotambémexplicaporqueomedodetransgredirasproibiçõessociaisassumemaisclaramenteocaráterdevergonhaquantomaisperfeitamenteasrestriçõesexternasforamtransformadas,pelaestruturadasociedade,emauto-restrições,equantomaisabrangenteediferenciadosetornouocírculodeauto-restriçõesondesemanifestaacondutadapessoa.A tensão interna, a agitação que surge em todos os casos em que a pessoa se sentecompelidaaescapardesseespaçofechado,ouquandojáfezisso,variaemforçadeacordo

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comagravidadedaproibiçãosocialeograudeautocontrole.Navidacomum,chamamosessa agitação de vergonha apenas em certos contextos e, acima de tudo, quando ela sereveste de um certo grau de força, embora, em termos de sua estrutura, seja sempre, adespeito de suas muitas nuanças e graus, o mesmo evento. Tal como todas as auto-restrições,encontra-seemformamenosregular,menosuniformeemenosgeralemníveismais simples de desenvolvimento social. Tal como essas restrições, as tensões emedosdessetipoemergemmaisclaramenteacadaarrancodoprocessocivilizadore,finalmente,predominamsobreoutrastensõesemedos—principalmente,sobreomedofísicoaoutraspessoas. Dominammais namedida em que são pacificadas áreasmaiores e aumenta aimportância,namodelaçãodapessoa,daslimitaçõesmaiscomunsquesobemaprimeiroplano na sociedade quando os representantes do monopólio da força física passam aexercerregularmenteseucontrolecomoseestivessemnosbastidores—namedida,numapalavra, emqueprogride a civilizaçãoda conduta.Damesmamaneiraque sópodemosfalar em “razão” conjugando-a com progressos na racionalização e na formação defunções que exigem espírito de previsão e moderação, só podemos falar em vergonhaconjugando-a com sua sociogênese, com os arrancos nos quais avança o patamar davergonha,oupelomenoselesemove,eaestruturaeopadrãodeauto-limitaçõesmudamemdeterminadadireção,reproduzindo-sedaíemdiantedamesmaformanumperíododetempo maior ou menor. A racionalização e o avanço dos patamares da vergonha e darepugnância expressam uma diminuição do medo físico direto a outras pessoas e umaconsolidação das ansiedades interiores automatizadas, das compulsões que o indivíduoagora exerce sobre simesmo.Emambas, são igualmentemanifestadas a capacidadedeprevisãomaioremaisdiferenciadaeavisãoa longoprazoquese tornamnecessáriasafim de que grupos de pessoas cada vezmaiores possampreservar sua existência socialnumasociedadecrescentementediferenciada.Nãoédifícilexplicarcomoseligamessasmudanças psicológicas aparentemente tão diferentes. Ambas, tanto a intensificação davergonhacomooaumentoda racionalização, constituemdistintosaspectosdacrescentecisão que ocorre na personalidade do indivíduo com o aumento da divisão de funções,distintosaspectosdadiferenciaçãosempremaiorentrepulsõesecontroledepulsões,entreasfunçõesdo“id”,“ego”ou“superego”.Quantomaisavançaessadiferenciaçãonaauto-orientação do indivíduo, mais claramente assume uma função dupla aquele setor dasfunções controladoras que, em sentido amplo, é chamado de “ego” e, em sentidomaisestreito, “superego”. Por um lado, esse setor forma o centro a partir do qual a pessoaregulasuasrelaçõescomoutrosseres,vivosounão,e,poroutro,formaocentroapartirdaqualela,emparteconscientementeeatécertopontoautomáticaeinconscientemente,controlasua“vidainterior”,seusprópriossentimentoseimpulsos.Acamadadefunçõespsicológicasque,nocursodatransformaçãosocialqueacimadescrevemos,gradualmentesediferenciadaspulsões,as funçõesdoegoousuperego, têm,emoutraspalavras,umaduplatarefaacumprirnapersonalidadedoindivíduo:implementamaomesmotempoumapolítica internaeumapolíticaexterna—asquais, alémde tudo,nemsempreestãoemharmonia e freqüentemente se chocam. Isso explica o fato de que, no mesmo períodosócio-histórico no qual a racionalização faz visíveis progressos, também se observa umavanço no patamar da vergonha e repugnância. E também que, neste particular, comosempre— de acordo com a regra sociogenética básica— um processo correspondentepossaserobservadomesmohojenavidadecadacriança:aracionalizaçãodacondutaéumaexpressãodapolíticaexternadamesmaformaçãodesuperegocujapolíticainternase

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expressanoavançodopatamardavergonha.

A partir deste ponto, muitas e grandes cadeias de pensamento se ramificam emdiferentes direções. Resta demonstrar como esse aumento de diferenciação napersonalidade se manifesta na transformação de determinadas pulsões. Acima de tudo,precisa ser demonstrado como leva a uma transformação dos impulsos sexuais e aoaumento dos sentimentos de vergonha nas relações entre os dois sexos. e Terá que sersuficienteindicaraquialgumasdasprincipaisligaçõesentreosprocessossociaisdescritosacimaeesseavançodafronteiradavergonhaedarepugnância.

Mesmona históriamais recente doOcidente, os sentimentos de vergonha não foramsempre instilados da mesma maneira na personalidade. Para mencionar apenas umadiferença, não foi da mesma maneira que foram inculcados na sociedade hierárquicaconstituídadeestadosenaordemindustrializadaburguesaqueasubstituiu.

Os exemplos citados antes, e acima de tudo os que mostram diferenças nodesenvolvimentodo sentimentodevergonhano tocante à exposiçãode certas partes docorpo,148dão-noscerta idéiadessasmudanças.Nasociedadedecorte,avergonhacomaexposiçãodecertaspartesera,emconformidadecomaestruturadessasociedade,aindalargamenterestritadentrodelimitesdoestadoouhierárquicos.Aexposiçãodocorponapresença de inferiores, como, por exemplo, do rei na frente de umministro, ainda nãoestavasujeitaaumaproibiçãosocialmuitorigorosa,nem,numafaseanterior,aexposiçãodohomemdiantedeumamulher socialmentemais fracaedeclasse inferior.Dadaessamínimadependênciafuncionalfaceapessoasdecategoriamaisbaixa,aexposiçãoaindanão despertava sentimentos de inferioridade ou vergonha, e podia até ser considerada,como declara Della Casa, como um sinal de benevolência para com o inferior. Aexposição por alguém de categoria inferior diante de um superior, por outro lado, oumesmodiante de pessoas de igual categoria, foi sendobanida da vida social, comoumsinal de falta de respeito. Profligada como transgressão, passou a provocar medo. Sóquandoosmurosentreosestadosruíram,quandoadependênciafuncionaldetodosfaceatodosaumentouetodososmembrosdasociedadesetornaramváriosgrausmaisiguais,éque essa exposição, excetuados certos enclaves mais estreitos, passou a ser umatransgressãonapresençadequalqueroutrapessoa.Sóentãoessecomportamentoficoutãoprofundamente associado ao medo no indivíduo, desde uma tenra idade, que o carátersocial da proibição desapareceu inteiramente de sua consciência, surgindo a vergonhacomoumcomandopartidodedentrodesimesmo.

E o mesmo se aplica no tocante ao embaraço, que é contrapartida inseparável davergonha.Damesmamaneiraqueestaúltimasurgequandoalguéminfringeproibiçõesdeseupróprioseredasociedade,aprimeiraocorrequandoalgumacoisaforadoindivíduoinvadesuazonadeperigo,constituídadeformasdecomportamento,objetos,inclinações,que forampreviamente investidos demedo pelo ambiente, até que essemedo— sob aforma de reflexo condicionado— se reproduz automaticamente em certas ocasiões. Oembaraçoéodesagradoouaansiedadequesurgemquandooutrapessoaameaçaignorar,ouignora,proibiçõesdasociedaderepresentadaspeloprópriosuperegodapessoa.Eessessentimentos,também,tornam-secadavezmaisdiversificadoseabrangentesquantomaisextensaesutilmentediferenciadaforazonadeperigopelaqualacondutadoindivíduoéreguladaemoldada,emaisavançaracivilizaçãodaconduta.

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Mostramos já, através de uma série de exemplos, que, a partir do século XVI, afronteiradavergonhaedoembaraçocomeçouaestender-semaisrapidamente.Nestecaso,também,ascadeiasdepensamentocomeçaramlentamenteaconfluir.Oavançocoincidiucomaaceleradatransformaçãodaclassealtaemclassedecortesãos.Foiaépocaemqueas cadeias de dependência que se cruzavam no indivíduo se tornaram mais densas elongas,emqueaspessoasforamseligandocadavezmaisumasàsoutraseaumentouacompulsão para o autocontrole. Com a dependência mútua, as pessoas passaram a seobservar mais, as sensibilidades e as proibições tornaram-se mais diferenciadas e,igualmente, tornaram-se mais sutis e diversificadas as razões para a vergonha e oembaraçoprovocadaspelacondutadeoutraspessoas.

Observamos anteriormente que, com o aumento da divisão de funções e a maiorintegração das pessoas, diminuíram os grandes contrastes entre as diferentes classes epaíses, enquanto se multiplicavam as nuanças, as variedades, de sua modelação nocontexto da civilização. Neste particular, encontramos uma tendência análoga nodesenvolvimento da conduta e dos sentimentos do indivíduo. À medida que seabrandavam os contrastes na conduta individual, e que as flutuaçõesmais violentas doprazeroudesagradoeramcontidas,moderadasemudadaspeloautocontrole,aumentavamasensibilidadeeasgradaçõesounuançasdaconduta,maisfinamentesesintonizavamaspessoasacadapequenogestoeforma,emaiscomplexasetornavasuaexperiênciadesimesmas e do mundo em que viviam em níveis que antes haviam sido ocultados daconsciênciapelovéudeemoçõesfortes.

Esclarecendo este ponto com um exemplo óbvio: os povos “primitivos” sentem osacontecimentoshumanosenaturais—dentrodocírculo relativamenteestreitoqueparaeles se reveste da importância vital (estreito, porque suas cadeias de dependência sãorelativamente curtas) — de uma maneira que, sob alguns aspectos, é muito maisdiferenciada do que a de “povos” civilizados. A diferenciação varia, dependendo deestarmos lidandocomagricultores,caçadoresoupastores,porexemplo.Mascomoquerqueseja,podemosdizer,emtermosgerais,que,namedidaemqueédevitalimportânciaparaogrupo,acapacidadedosprimitivosparadistinguirascoisasnaflorestaenocampo,seja uma árvore, sons, cheiros ou movimentos, é mais desenvolvida do que nos“civilizados”.Mas,entreosmaisprimitivos,aesferanaturaléaindaumazonadeperigo,repleta de medos que os mais civilizados já não sentem. Isso tem uma importânciadecisivaparaoquedeixaounãodeserpercebido.Amaneiracomosesentiaa“natureza”foiafetadademodofundamental,aindadevagarnosfinsdaIdadeMédiaecadavezmaisdepressaapartirdoséculoXVI,pelacrescentepacificaçãodasáreashabitadas.Sóentãoasflorestas,campinasemontanhasforamdeixandodeserzonasaltamenteperigosas,ondea ansiedade e o medo estavam constantemente presentes na vida do indivíduo. Ao seadensarem a rede de estradas, bem como a interdependência social emgeral, os barõessalteadoreseosanimaisdepresavãodesaparecendo;asflorestaseocampodeixamdesero cenário de paixões desenfreadas, de perseguição selvagem entre homem e animal, dealegriasemedoalucinantes;moldando-sepeloentrelaçamentodeatividadespacíficas—como a produção de bens, o comércio e o transporte—, a homens pacificados apareceumanaturezaigualmenteapaziguada,queelespodemenxergardeumanovamaneira.Elase torna—dada a crescente importânciaqueoolho adquire comomediadordoprazer,anteagradativamoderaçãodasemoções—,emaltograu,objetodeprazervisual.Além

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disso,aspessoas—maisexatamente,oscitadinos,paraquemaflorestaeocamponãosãooambientedavidadiária,mas locaisderelaxamento—tornam-semaissensíveisecomeçamaverocampoabertodeformamaisdiferenciada,numnívelqueanteslheseravedadopeloperigoepeloentrechoquedepaixõesimoderadas.Sentemprazernaharmoniadecorese linhas, tornam-sesensíveisàbelezadanatureza, têmossentimentosafetadospelosmatizeseformasmutáveisdasnuvenseojogodeluzesnasfolhasdeumaárvore.

Naesteiradapacificação,mudoutambémasensibilidadedaspessoasàcondutasocial.Osmedosinteriorescrescemnamesmamedidaquediminuemosexteriores—osmedosde um setor da personalidade no lugar dos de outro. Como resultado dessas tensõesinternas, as pessoas começaram a sentir experiências umas das outras que haviam sidovedadasenquantoenfrentavamconstantemente sérias e inescapáveis ameaçasdeorigemexterna.Assim,grandepartedastensõesqueantesseliberavamdiretamentenocombatedeumhomemcomoutrotinhamqueseresolver,convertidasemtensãointerior,nalutadoindivíduoconsigomesmo.Avidasocialdeixoudeserumazonadeperigo—naqualosregabofes, as danças e os prazeres ruidosos, súbita e freqüentemente, se transformavamemfúria,pancadariaeassassinato—etornou-seumtipodiferentedezonadeperigo,seoindivíduonãoconseguiaconter-seosuficiente,setocavapontossensíveis,taiscomosuaprópriafronteiradevergonhaouopatamardeembaraçodeoutrem.Emcertosentido,azonadeperigoagorapassavadentrodoselfdecadaindivíduo.Porissomesmo,aspessoasficaram sensíveis a distinções que antes mal penetravam na consciência. Da mesmamaneiraqueanaturezapassaraaser,maisdoqueantes,umafontedeprazermediadapeloolho, as pessoas tornaram-se fonte de prazer visual, ou de um desagrado visualmentedespertado.Omedodiretoinspiradonohomempelohomemdiminuiu,eomedointernomediadopeloolhoepelosuperegocrescianamesmamedida.

Aotempoemqueoempregodearmasemcombateeraumaexperiênciadavidadiária,o pequeno gesto de passar a alguémuma faca namesa (para ficar com apenas umdosexemplos que jámencionamos) não tinhamaior importância. Restringindo-se cada vezmaisousodelas,àmedidaqueaspressõesexternaseinternastornavamasmanifestaçõesde raiva através do ataque físico cada vez mais difíceis, as pessoas gradualmenteadquirirammaior sensibilidade a tudo o que lembrasse um ataque. O simples gesto deataquetocavaazonadeperigo:tornou-seconstrangedoralguémpassarumafacaaoutrapessoacomapontaviradaparaela.149Apartirdopequenocírculoaltamentesensíveldaaltasociedadedecorte,paraoqualessasensibilidadetambémserevestiadeumvalordeprestígio,eexatamenteporessarazãoconstituíaummeiodedistinguir-secultivado,essaproibição gradualmente se disseminou por toda a sociedade civilizada. Dessa maneira,associações agressivas, impregnadas por outras originárias da camada de impulsoselementares, combinaram-se, para despertar a ansiedade, com tensões despertadas pelostatus.

Amaneiracomoousodafacadepoisserestringiugradualmente,comozonadeperigo,porummurodeproibições,jáfoimostradacomváriosexemplos.Constituiquestãoabertaatéqueponto,naaristocraciadecorte,arenúnciaàviolênciafísicacontinuousedevendoa uma compulsão externa, e em que medida já se convertera em limitação interna. Adespeitodetodasasrestrições,ousodafacademesa,comoodaadaga,aindaeramuitocomum. Da mesma maneira que a caça e a morte de animais ainda constituíam umdivertimento permitido e comum para os senhores da terra, o trinchamento de animais

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mortos à mesa continuava dentro da zona das coisas autorizadas e não causavarepugnância. Depois, com a lenta ascensão das classes burguesas, para as quais pelapróprianaturezadesuasfunçõessociais,apacificaçãoeageraçãodelimitaçõesinternaserammuitomaiscomplexasecompulsórias,otrinchamentodeanimaisfoisendorepelidodascenasdavidasocial (aindaqueemcertospaíses,especialmentenaInglaterra,comoacontececomtantafreqüência,algunsdoscostumesantigossobrevivamincorporadosaosnovos)eousodafaca,naverdadeosimplesfatodesegurá-la,passouaserevitadoemtodososcasosemquenãofosseinteiramenteindispensável.Cresciaasensibilidadenessadireção.

Oexemploacimaéapenasumdentreosmuitosaspectosespecíficosdatransformaçãoestruturaldasociedadequedenotamospeladeusapalavra“civilização”.Empartealgumadasociedadehumanaháumpontozerodemedodepotênciasexternasoudeansiedadesinternas automatizadas. Embora estes dois medos possam ser sentidos como muitodiferentes,são,nofim,inseparáveis.Oqueacontecenocursodoprocessocivilizadornãoé o desaparecimento de um e o aparecimento de outro. O quemuda é simplesmente aproporçãoentreosmedosdeorigemexternaeosquesãogeradosdentrodapessoa,eaestruturaqueosarticula.Otemordepotênciasexternasdiminui,semjamaisdesaparecer.Asansiedades jamaisausentes, latentesoureais,provocadaspela tensãoentrepaixõesefunçõesdecontroledaspaixões,tornam-serelativamentemaisfortes,geraisecontínuas.Adocumentaçãosobreoavançodasfronteirasdavergonhaedoembaraçoencontradanoprimeirovolumedesteestudoconsiste,naverdade,apenasdeexemplosclarosesimplesdadireçãoeestruturadeumamudançanapersonalidadehumanaquetambémpoderiaserdemonstrada no tocante amuitos outros aspectos.Uma estruturamuito semelhante, porexemplo, é exibida pela transição da formação do superego católico medieval para oprotestante.Essefato,também,mostraumafortemudançanorumodainternalizaçãodosmedos.Emtudoisso,umacoisacertamentenãosedeveignorar:ofatodequehoje,comoantigamente, todasasformasdeansiedadesinternasnoadultoestãovinculadasaomedoqueacriançasentiadeoutraspessoas,depotênciasexternas.

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VII

RestriçõesCrescentesàClasseAlta:PressõesCrescentesaPartirdeBaixoObservamosantesque,emcertas

representaçõesgráficas150atribuídasàclassealtacavaleirosacortesãdosfinsdaIdadeMédia,aretrataçãodeindivíduosdaclasseinferioredeseusgestosaindanãoseconsideravaalgoespecialmenterepugnante,aopassoqueaseleçãomaisrigorosacorrespondenteàestruturaderepugnânciada

classealtadacorteabsolutistasópermitiaqueseexpressassemnaartegestosnobres,calmos,refinados,

enquantotudoomaisquelembrasseasclassesinferiores,tudodecarátervulgar,eramantidoàdistância.

Esseascodovulgar,essacrescentesensibilidadeatudooquecorrespondesseaomenorrefinamentodasclassesmaisbaixassaturavatodasasesferasdacondutasocialnaclassealta de corte. Mostramos com detalhes151 como isso se manifestava, por exemplo, namaneiracomoacortemodelavaafala.Ninguémdizia,explicavaumadamadacorte,“unmien ami” ou “le pauvre deffunct”:f isso “cheirava a burguesia”. E se o burguêsprotestava, se respondiaque, afinal de contas,muitaspessoasdaboa sociedadeusavamessas expressões, podia ouvir o seguinte: “É bem possível que haja certo número depessoasdecentesquenãopossuemsuficientecapacidadedeapreciaçãoparaadelicadezadenossalíngua.Essa‘delicadeza’…éconfiadaapenasaunspoucos”.

Essaspalavras são categóricas, comoaliás aspróprias exigênciasdessa sensibilidade.Aspessoasqueescolhem,dessamaneira,omododefalar,nãopodemnemsequertentamjustificar por que, num dado caso, esta forma de palavra é agradável e aquela édesagradável. Sua sensibilidade específica está profundamente ligada à regulação etransformação mais intensas dos impulsos da libido, impostas a elas por sua situaçãosocial específica.A certeza comquepodemdizer “Esta combinaçãodepalavras pareceboa,essascoresforammalescolhidas”,asegurançadeseubomgosto,enfim,têmorigemmais numa instância de auto-regulação que operamais oumenos inconscientemente doquenumareflexãoconsciente.Masaquitambéméclaroqueforamprimeiroospequenoscírculosdasociedadedecorteosqueescutaramcomumanovasensibilidadeasnuançasde ritmo, tom e significação da palavra falada e escrita, e que essa sensibilidade, esse“bomgosto”,tinhamtambémvalordeprestígioparaessescírculos.Tudooquefereseupatamardeembaraçocheiraaburguesia,ésocialmenteinferiore,damesmaforma,tudooqueéburguêsafetaseupatamardeembaraço.Éanecessidadededistinguir-sedetudoqueé burguês que aguça essa sensibilidade. É a estrutura específica da vida na corte —segundoaqualnãoéacompetênciaprofissional,nemmesmoapossededinheiro,masa

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condutasocialpolida,queconstituioprincipalinstrumentonacompetiçãoporprestígioefavor—queforneceocasiãoparaorefinamentodogosto.

Nocursodesteestudo,indicamos,atravésdecertonúmerodeexemplos,que,apartirdoséculoXVI,opadrãodecondutasocialfoicolhidoporummovimentomaisrápido,assimpermanecendonosséculosXVIIeXVIII,eque,nocorrerdosséculosXVIIIeXIX,elesedifundiu, transformado em alguns aspectos, por toda a sociedade do Ocidente. Esseaumento das restrições e das transformações da libido começou com a conversão danobreza cavaleirosa em nobreza de corte.Manteve estreita relação com a mudança, jádiscutida,nasrelaçõesentreaclassealtaeoutrosgruposfuncionais.Asociedademarcialcortêsnãopassounemremotamentepelamesmapressãoqueaaristocraciadecorte,nãoviveu nada parecido com a mesma interdependência face aos estratos burgueses. Essaclasse superior cortesã foi uma forma social numa cadeia muito mais densa deinterdependências.Estavapresanumapinçaquecompreendia,porumlado,osuserano,decujo favor dependia e, por outro, os principais grupos burgueses, com suas vantagenseconômicas,gruposestesqueestavampressionandodebaixoparacimaecontestandoaposiçãodaaristocracia.As tensõesentreaaristocraciadecorteeoscírculosburgueses,porém, não aumentaram apenas em fins do século XVIII ou começos do século XIX.Desdeoinício,aexistênciadessaaristocraciafoiforteeconstantementeameaçadapelasambiciosas classes burguesas. Na verdade, a transformação da nobreza guerreira emcortesã ocorreu apenas em combinação como aumento da pressão de baixo para cima,aplicadapelosestratosburgueses.Aexistênciadealtograudeinterdependênciaetensãoentre nobres e burgueses foi um elemento constituinte básico do caráter cortesão dosprincipaisgruposdanobreza.

Nãodevemosnosdeixarenganarpelofatodequeforamprecisosséculosparaqueesseincessantecabo-de-guerraentrenobreseburguesessedecidisseemfavordealgunsdosúltimos.Nemdevemosserinduzidosaoerropelofatodequeasrestriçõesàclassealta,ainterdependência funcional e a tensão latente entre diferentes estratos na sociedadeabsolutistafossemmenoresdoqueemváriasoutrassociedadesnacionaisdosséculosXIXeXX.Emcomparaçãocomaslimitaçõesfuncionaisànobrezaguerreiramedieval,jáerammuitograndes as sofridaspela aristocraciade corte.As tensões sociais, sobretudoentrenobreza e burguesia, assumiram um caráter distinto com o aumento da pacificação dasociedade.

Atéaépocaemqueocontroledosinstrumentosdeviolênciafísica—armasetropas—passouaseraltamentecentralizado,astensõessociaisexplodiamrepetidamenteemaçõesbelicosas.Determinadosgrupossociais,comunidadesdeartesãoseseussenhoresfeudais,cidades e cavaleiros, enfrentavam-se como centros de poder que— o que só Estadosfariammais tarde— teriamque sempre estar dispostos a resolver pela forçadas armassuasdivergênciasdeinteresses.Ostemoresdespertadosnessaestruturadetensõessociaisainda podiam ser liberados fácil e freqüentemente pela açãomilitar e pela força físicadireta. Com a gradual consolidação dos monopólios de poder e a crescenteinterdependência funcional entre nobreza e burguesia, tudo isso mudou. As tensões seabrandaram.Sóemrarasocasiõeseramresolvidaspelaviolênciafísica.Porissomesmo,manifestavam-sesegundoumapressãoconstante,quecadamembroindividualdanobrezateria que absorver pessoalmente. Com essa transformação nos relacionamentos, ostemores sociais deixaram de parecer chamas que rebentam de repente, ardem com

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intensidade e logo se extinguem, mas apenas para ressurgirem com a mesma rapidez,tornando-se,emvezdisso,umaespéciedefogodemonturo,cujaschamasnãosevêemeraramenteirrompemàvistadetodos.

Dessepontodevista, igualmente, a aristocraciade corte constituiuum tipode classealta diferente da classe dos guerreiros livres da IdadeMédia.Constituiu a primeira dasclassessuperioresmaislimitadas,aqueseseguiriam,nostemposmodernos,outrasaindamaisagrilhoadas.Estavaameaçada,maisdiretaefortementedoqueosguerreiroslivres,pelasclassesburguesas,nabasemesmadesuaexistênciasocial,osprivilégios.Jáemdatatão remota como os séculos XVI e XVII na França, observava-se, entre alguns dosprincipaisgruposburgueses, sobretudonas altas cortes judiciárias e administrativas, umintensodesejodeseestabeleceremno lugardanobrezadaespada,oupelomenosaseulado, como classe superior do país. A política desses estratos burgueses visavaprincipalmenteaaumentarseusprópriosprivilégiosaexpensasdavelhanobreza,emboracontinuassem— o que dava ao relacionamento entre ambas um caráter peculiarmenteambivalente — ligados à velha nobreza por certo número de frentes sociais comuns.Exatamente por essa razão, os temores que essas tensões incessantes traziam consigoexpressavam-se, nesses estratos burgueses, apenas de forma disfarçada, controlada porfortesimpulsosdosuperego.Eissoseaplicavaaindamaisànobrezaautêntica,queestavanadefensivaenaqualochoquedaderrotaedaperda,quesofreracomapacificaçãoesuatransformaçãoemelitedecorte,hámuitotempomostravaseusefeitos.Osaristocratasdecorte, igualmente, tinhamque conter commaioroumenor êxitodentrode simesmos aagitaçãoprovocadapeloconstantecabo-de-guerraquetravavamcomosgruposburgueses.Dada essa estrutura de interdependências, a tensão social produzia uma forte tensãointerna nos membros da classe alta ameaçada. Esses receios mergulhavam em parte,emboranuncainteiramente,naszonasinconscientesdapersonalidade,delasreemergindoapenas em forma modificada, como automatismos específicos de autocontrole.Mostravam-se,porexemplo,naparticularsensibilidadedaaristocraciadecortea tudooque,mesmo remotamente, ameaçasse os privilégios hereditários emque se baseava suaexistência.Manifestavam-senosgestoscarregadosdeascodiantedetudooque“cheirasseaburguesia”.EeramemparteresponsáveispelofatodequeaaristocraciadecorteeratãomaissensívelaosgestosdasclassesmaisbaixasdoqueanobrezamarcialdaIdadeMédiaque, rigorosa e enfaticamente, excluía de sua esfera de vida tudo o que fosse “vulgar”.Finalmente, essemedo social que ardiapermanentemente em fogo lento constituiuumadasmais poderosas forçasmotrizes do controle social que todos osmembros da classesuperior exerciam sobre simesmos e sobre outrosmembros do círculo emque viviam.Expressava-se na intensa vigilância com que observavam e poliam tudo o que osdistinguiadaspessoasdecategoriamaisbaixa;nãoapenasnossinaisexternosdestatus,mastambémnafala,nosgestos,nasdistraçõesemaneiras.Apressãoconstanteexercidaapartirdebaixoeomedoqueinduziaemcimaforam,emumapalavra,algumasdasmaisfortes forças propulsoras— embora não as únicas— do refinamento especificamentecivilizadoquedistinguiuosmembrosdessaclassesuperiordasoutrase,finalmente,paraelessetornoucomoqueumasegundanatureza.

Istoporqueaprincipalfunçãodaaristocraciadecorte—afunçãoquedesempenhavapara o poderoso suserano — era exatamente distinguir-se, conservar-se como umaformaçãosocialàparte,umcontrapesoàburguesia.Tinhainteiraliberdadeparagastaro

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tempo refinando a conduta social distintiva, das boas maneiras e do bom gosto. Já osestratosburguesesemaçãodispunhamdemenostempoparaaprimorarcondutaegosto,porquanto eram classes profissionais. Não obstante, tiveram também inicialmente poridealvivercomoaaristocracia,exclusivamentedepensões,eganharacessoaocírculodacorte, que continuava a ser o modelo para grande parte da burguesia ambiciosa. Seusmembros se transformaram em “gentis-homens burgueses”. Macaqueavam a nobreza esuasmaneiras.Mas era exatamente isso o que tornava inúteis osmodismos de condutacontinuamenteaprimoradosnoscírculosdacortecomomeiosdedistinguir-seoindivíduodosdemais,—eporissoosgruposnobreseramforçadosarefinaraindamaisaconduta.Repetidamente, costumes antes considerados “refinados” tornavam-se “vulgares”. Asmaneiraserampolidasincessantementeeopatamardoembaraçoavançavasemcessar,atéque finalmente, com a queda da sociedade de cortesã absolutista com a RevoluçãoFrancesa,essemovimentoemespiralchegouaofimou,pelomenos,perdeuforça.Aforçamotrizquenafasecorteimpeliaatransformaçãocivilizadoradanobreza—ecomelaafronteiradavergonhaedarepugnância,comomostraramosexemplosnoprimeirovolume—eraacionadapelamaiorcompetiçãopelosfavoresdoindivíduomaispoderosodentrodo próprio estrato da corte e pela constante pressão que vinha de baixo. Nessa fase, acirculaçãodemodelosocorreu,comoresultadodamaiorinterdependênciae,portanto,decontactos mais estreitos e mais constante tensão entre as diferentes classes, com umarapidezmuitomaiordoquenaIdadeMédia.As“boassociedades”quevieramapósafasede corte entrelaçaram-se, todas elas, direta ou indiretamente, com a rede de ocupaçõesprofissionais e, mesmo que uma orientação “cortesã” nunca estivesse inteiramenteausente,esta,nemdelonge,exerceumaisamesmainfluência.Apartirdessemomento,asprofissões e o dinheiro passaram a ser as principais fontes de prestígio, e a arte, orefinamentodacondutasocial,deixoudeterparaareputaçãoeosucessodoindivíduoaimportânciadecisivaquepossuíranasociedadedecorte.

Em todosos estratos sociais, a áreade condutaque tinha importânciavital para seusmembros era a mais cuidadosa e intensamente trabalhada. A exatidão com que, nasociedadedecorte,cadamovimentodasmãosàmesa,cadadetalhedeetiquetaemesmomodismos de fala eram refinados, correspondia à importância que todas essas funçõespossuíam para osmembros da corte tanto comomeios para distingui-los dos inferioresquanto como instrumentos de competição pelo favor real. O fino arranjo da casa ouparque,aornamentaçãoostentosaouintimista—dependendodamoda—dosquartosdedormir,amaneiraespirituosadelevarumaconversaoumesmoumcasoamoroso, todoseleseram,nafasedecorte,maisqueprazeresprivadosdoindivíduo,genuínasexigênciasvitais da posição social. Eramprecondições para o respeito dos demais, para o sucessosocial que, nessa esfera, desempenhava o mesmo papel que, na sociedade burguesa, osucessoprofissional.

No século XIX, com a gradual ascendência dos estratos econômicos, comerciais eindustriaisburgueses,eapressãocadavezmaiorqueelesexerciamdevidoaoacessoàsmais altas posições de poder noEstado, todas essas aptidões deixaramde ocupar lugarfundamentalnaexistênciasocialdaspessoas:nãoerammaisdeimportânciadecisivaparaosucessoouofracassonaslutasporstatusepoder.Outrasaptidõeslhestomaramolugarcomoaquelasdasquaisdependiamosucessoouo fracassonavida—aptidõescomoaproficiência ocupacional, perícia na luta competitiva por oportunidades econômicas, na

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aquisição ou controle da riqueza sob a forma de capital, ou as qualidades altamenteespecializadasnecessáriasparaoprogressopolíticonaslutaspartidáriasferozes,emborareguladas, que caracterizam uma era de crescente democratização funcional. Muitoembora a estrutura de personalidade dos cortesãos fosse, em grande parte, determinadapela necessidade de competir pelas oportunidades de obter status e poder dentro dosúnicosmecanismosdegovernodoperíodo,aestruturadapersonalidadesocialdosestratosascendentes da burguesia eramotivada pela competição pormaior parcela da crescenteriqueza, sob a formade capital, ou por cargos e posições que dessem a seus ocupantesmaiores oportunidades políticas ou administrativas de obter poder. Estas lutascompetitivas, e outras correlatas tornaram-se os principais fatores de limitações quedeixaram suamarca sobre a personalidade do indivíduo.Mesmo que certos estratos danovaburguesiaeconômicaepolíticarepetidamentecriassem“boassociedades”própriaseemvirtudedissodesenvolvessem,ouabsorvessem,algumasdasaptidõesmaisaltamentecultivadas nas sociedades aristocráticas, o padrão de limitações sociais que pautava osmembrosdessaburguesiaera,numaspectodecisivo,diferentedosquevigoravamparaoscortesãoseoscavalheiros.Aexistênciasocialdestesúltimosnãosefundamentavaapenasde facto numa rendanão-produzidapelo trabalho:viverdesta e, portanto, semqualquerocupaçãotinha,nessescírculos,umaltovalor.Comaascensãodaburguesiaeconômicaepolítica,mudouesseethosaristocrático.Esperava-sequeseusmembros,pelomenososdosexo masculino, trabalhassem para ganhar a vida, mesmo que formassem “boassociedades” próprias. Formas de sociabilidade, a ornamentação da casa, a etiqueta nasvisitaseoritualàmesaforam,nessemomento,relegadosàesferadavidaprivada.Estesfatorespreservaramsuafunçãovitaldeformamaisatuantenasociedadenacionalemque,a despeito da ascensão burguesa, as formações sociais aristocráticas permaneceram pormais tempo e mais vigorosamente vivas: na Inglaterra. Mas mesmo com o amálgamapeculiar que se desenvolveu na Inglaterra com a interpenetração ao longo dos séculosentreosmodelosaristocráticoeburguêsdeconduta,traçosdeclassemédiagradualmentepassaramparaoprimeiroplano.Demodogeral,emtodasassociedadesdoOcidente,comodeclíniodaaristocraciamaispura,quandoquerecomoquerqueissotenhaacontecido,osmodosdecondutaeformasdeafetividadequesedesenvolveramforamosnecessáriosaodesempenhodefunçõesprodutorasderendaeàexecuçãodeumtrabalhoprecisamenteregulado.Esse omotivopor que a sociedadeburguesa profissional assumiu, em tudooquediziarespeitoàcondutasocial,oritualdasociedadedecorte,massemdesenvolvê-locom a mesma intensidade. E foi também o motivo por que o modelo de controle dasemoções avançou nessa esfera apenas lentamente com a ascensão da burguesiaprofissional.Nasociedadedecorte,eempartenainglesa,também,nãoexistiadivisãodavida humana em esferas profissional e privada.Ao se generalizar essa cisão, iniciou-seumanovafasenoprocessocivilizador.Omodelodecontroledeemoçõesnecessárioaotrabalho profissional diferia em muitos aspectos do que era imposto pela função decortesãoepelojogodavidanacorte.Oesforçorequeridoparaamanutençãodaexistênciasocial burguesa, a estabilidade das funções do superego, a intensidade do controle dasemoçõesedesuatransformação,exigidospelasfunçõesprofissionaisecomerciais,foram,em suma, muito maiores, a despeito de um certo relaxamento na esfera das maneirassociais,doqueacorrespondenteestruturadapersonalidadesocialrequeridapelavidadoaristocratadecorte.Maisóbviaainda foi adiferençana regulaçãodas relações sexuais.Nãoobstante,amodelaçãoaristocráticadecorte sobreapersonalidadepassou,destaou

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daquela forma, para a burguesia profissional, e foi ainda mais difundida por esta.Descobrimosessaimpregnaçãodeestratosmaisamplosporformasdecomportamentoecontroledepaixões,quetinhamorigemnasociedadecortesã,principalmenteemregiõesem que as cortes eram numerosas e ricas e, correspondentemente, forte sua influênciacomo formadoras de estilo de vida. Paris e Viena constituíram exemplos disso. Foramsedesdasduasgrandes cortes absolutistas rivais do séculoXVIII.Umecode tudo issopode ser ouvido ainda hoje não só na reputação de que gozam como centros de “bomgosto” ou de indústrias de luxo, cujos produtos se destinam especialmente ao uso de“mulheresfinas”,masmesmonocultivoderelacionamentossexuais,nocarátereróticodapopulação, mesmo que a realidade neste particular talvez não seja a mesma que areputaçãotãofreqüentementeexploradapelaindústriacinematográfica.

Sobumaformaououtra,contudo,osmodelosdecondutadabonnecompagniecortesãaristocráticapenetraramnasociedadeindustrializadaemgeral,mesmonoscasosemqueas cortes eram menos ricas, poderosas ou influentes. O fato de a conduta dos gruposocidentaisdominantes,ograuetipodeseucontroledepaixõesdemonstraremaltograudeuniformidade,adespeitodetodasasvariaçõesnacionais,foi,emtermosgerais,resultadoda existência de cadeias de dependência muito entrelaçadas e longas, que ligavam asvárias sociedades nacionais do Ocidente. Nesse contexto geral, porém, a fase demonopólios de poder semi-privados e de uma sociedade aristocrática de corte, com suaaltainterdependênciaemtodaaEuropa,desempenhouumpapelespecialnamodelaçãodacondutacivilizadanoOcidente.Essasociedadedecorteexerceupelaprimeiravez,eemforma particularmente pura, uma função que depois se transmitiu em graus variáveis ecomnumerosasmodificaçõesaestratoscadavezmaisamplosdasociedadeocidental,afunção de uma “boa sociedade”, uma classe superior sob pressão demuitos lados, dosmonopóliosdetributaçãoeforçafísica,porumlado,epelasclassesinferioremédiaemascensão,poroutro.Asociedadedecortefoirealmenteaprimeirarepresentantedeumaforma específica de classe superior que emergiu com mais clareza quanto maisestreitamente, com o aumento da divisão de funções, as diferentes classes sociais setornaram mutuamente dependentes e maior se tornou o número de pessoas e de áreasgeográficascolocadasemtalinterdependência.Precisamenteessaformadeclassesuperiorpredominou, desse momento em diante, nas regiões do Ocidente. E os modelos deautocontrole,desenvolvidosinicialmentenasociedadearistocráticadecorteparaaesferada sociabilidade, foram transmitidosdeumaclasseaoutra, ajustadosemodificados, talcomoaprópriafunçãodeclassesuperior.Aherançadasociedadearistocráticatevemaioroumenorimportância,conformeseucarátercomo“boasociedade”tenhadesempenhadoumpapelmaioroumenorparaaclasseounação.Comodissemos,issoaconteceuemgrauvariávelnotocanteaclassescadavezmaiorese,finalmente,naçõesinteirasdoOcidente,sobretudoaquelasnaçõesque, tendocriadofortes instituiçõescentrais, logose tornarampotências coloniais. Nelas houve um aumento — sob pressão da integração socialcorporificadanaintensidadedaconcorrênciadentrodaprópriaclassealtaenanecessidadedepreservarseualtopadrãodevidaeprestígioperanteosestratosmaisbaixos—deumtipodecontrolesocialespecífico,desensibilidadeaocomportamentodeoutrosmembrosdaprópriaclasse,deautocontrole individualede forçado“superego” individual.Dessamaneira,modosdecondutadaclassesuperioraristocráticadecorte fundiram-secomosdosváriosestratosburgueses,àmedidaqueestes subiamparaaposiçãodaprimeira.Acivilitéfoiincorporadaeperpetuada—comcertasmodificações,dependendodasituação

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deseunovohospedeiro—noque,nessemomento,erachamadode“civilização”,oumaisprecisamente, de “conduta civilizada”. Assim, a partir do século XIX, essas formascivilizadas de conduta se disseminaram pelas classes mais baixas, em ascensão, dasociedade do Ocidente e pelas diferentes classes nas colônias, amalgamando-se compadrõesnativosdeconduta.Todavezque issoacontecia,acondutadaclassesuperioredosgruposemascensão se interpenetrava.Opadrãodecondutadaclasseemascensão,seustiposdecomandoeproibições,refletiamemsuaestruturaahistóriadaelevaçãodessaclasse. Assim aconteceu que o “padrão típico de controle de paixões e conduta” dasdiferentes nações-estado industrializadas, seu “caráter nacional”, ainda representam anaturezadasanterioresrelaçõesdepoderentrenobrezaeburguesiaeocursodelutasentreelas, que duraram séculos, das quais um tipo específico de grupos de classe médiafinalmenteemergiu,durantealgumtempo,comoosistemadominante.Dandoumúnicodemuitosexemplos,ocódigonacionaldecondutaecontroledepaixõesvigentenosEstadosUnidosapresentamaiorgraudecaracterísticasdeclassemédiadoque—adespeitodenumerosas similaridades — o correspondente código inglês. Na elaboração do códigoinglês,aspectosdeorigemaristocráticafundiram-secomosprovenientesdaclassemédia— e isto é compreensível, uma vez que, no desenvolvimento da sociedade inglesa,podemos observar um processo contínuo de assimilação, no correr do qualmodelos daclasse superior (especialmente o código de boas maneiras) foram adotados em formamodificadaporelementosdaclassemédia,enquantoaspectosdesta(como,porexemplo,elementosdocódigodemoral)eramaceitosporelementosdaclassealta.Porissomesmo,quando,no séculoXIX, aboliu-se amaioriadosprivilégios aristocráticos e a Inglaterra,comoaparecimentodaclasseoperária industrial, tornou-seumanação-estado,ocódigonacionaldecondutadopaíseocontroledaspaixõesmostraram,comgrandeclareza,ocaráter gradual da solução dos conflitos entre as classes alta emédia sob a forma, emcurtaspalavras,deumafusãopeculiarentreumcódigodeboasmaneiraseoutrodemoral.Processos análogos forammostrados no Capítulo Um, doVolume 1 deste estudo, comexemplosdasdiferençasentreoscaracteresnacionaisalemãoefrancês.Nãoseriadifícilcitaroutrosarespeitodocaráternacionaldeoutrasnaçõeseuropéias.

Emambososcasos,asondasdeexpansãodospadrõesdecondutacivilizadaparaumanovaclassefizeram-seacompanhardoaumentodopodersocialdamesmaedaelevaçãodoseupadrãodevidaaodaqueestavaacima,oupelomenosnessadireção.Classesquevivem permanentemente em perigo de morrer de fome ou de serem exterminadas porinimigos dificilmente podem desenvolver-se ou manter essa auto-disciplina estável,característica dos tipos mais civilizados de conduta. Para isso é necessário instilar emanterumaagênciadesuperegomaisestável,umpadrãodevidarelativamentealtoeumgraubemelevadodesegurança.

Por mais complexa que possa parecer, à primeira vista, a influência dos processosentrelaçados, dentro dos quais a civilização da conduta e da experiência ocorreu nassociedadeseuropéias,asconexõesbásicassãomuitoclaras.Todasasdistintastendênciasmencionadas até agora, como, por exemplo, a lenta elevação dos padrões de vida degrandessegmentosdapopulação,amaiordependênciafuncionaldaclassesuperior,ouacrescente estabilidade instaurada pelos monopólios centrais, todas elas foram parte econseqüênciadeumadivisãodefunçõesqueprogrediuoramaisoramenosrapidamente.Comadivisãodefunções,aumentouaprodutividadedotrabalho.Amaiorprodutividade

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eraprecondiçãoparaaelevaçãodospadrõesdevidadeclassesquecresciamemnúmero;com a divisão de funções, acentuou-se a dependência das classes superiores; e só numestágiomuitoadiantadodessadivisãodefunçõeséque,finalmente,tornou-sepossívelaformação de monopólios mais estáveis de força física e tributação, dotados deadministrações altamente especializadas, isto é, a formação de Estados no sentidoocidental da palavra, através dos quais a vida do indivíduo ganhou, aos poucos,maior“segurança”.Oaumentodadivisãodefunções,porém,colocoutambémmaiornúmerodepessoas, e áreas habitadas sempremaiores, em dependência recíproca, exigiu e instiloumaior contenção no indivíduo, controle mais rigoroso de suas paixões e conduta, edeterminouumaregulaçãomaisestritadasemoçõese—apartirdedeterminadoestágio—umautocontroleaindamaior.Esseéopreço,sepodemoschamá-loassim,quetemosquepagarpornossamaiorsegurançaevantagenscorrelatas.

Alémdisso—eistofoideimportânciadecisivaparaopadrãodecivilizaçãodenossosdias—o comedimento e o autocontrole característicos de todas as fases de civilizaçãoresultaram até agora não apenas da necessidade de cada indivíduo cooperarincessantemente com muitos outros, mas também, em não menor grau, da divisão dasociedade em classes superiores e inferiores. O tipo de comedimento e modelação depaixões gerado em membros das classes superiores recebeu sua marca especialprincipalmentedastensõesqueperpassavamasociedade.Aformaçãodoegoesuperegodessas pessoas refletiu simultaneamente a competição dentro de sua própria classe e aspressões constantes que vinham de baixo, produzidas, em forma sempre mutável, peladivisãodefunções,queavançava.Aforçadasrestriçõessociaiseasmuitascontradiçõesnelasexistentes,àsquaisestavasujeitoocomportamentodecadamembro individualdaclasse alta do Sistema, e que eram representados por seu próprio “superego”, não foideterminada exclusivamente pelo fato de se tratar de um controle exercido porcompetidores,algunsdelesatémesmoemlivrecompetição,mas,acimadetudo,pelofatodequeosmembrosconcorrentesdosgrupostradicionaistinhamquefazercausacomumemseusesforçosparapreservaroprestígioqueosdistinguiaeseustatuselevadocontraaqueles que pressionavam a partir de baixo — e que eram ainda, mais ou menos,outsiders.Comgrandefreqüência,nessascondições,apreservaçãodostatuselevadoedascaracterísticas de personalidades que os distinguiam dos demais exigia uma forma deespíritodeprevisão,autocontroleeprudênciainçadosdeansiedades.

Se acompanhamos os delineamentos desses processos ao longo dos séculos,percebemos uma clara tendência para igualar padrões de vida e conduta e nivelarcontrastes.Emtodasasondasdeexpansãoqueocorreramquandoomododecondutadeum pequeno círculo se difundiu por classes mais numerosas em ascensão, duas fasespodiamserclaramentedistinguidas:uma fasedecolonização,ouassimilação,naqualaclassemaisbaixaenumerosaeraaindaclaramenteinferioreestavapautadapeloexemplodo grupo superior tradicional que, intencionalmente ou não, saturou-a com seu própriopadrão de conduta, e uma segunda fase, de repulsão, diferenciação ou emancipação, naqualosgruposemascensãoaumentamperceptivelmenteseupodersocialeautoconfiança,enquantoogruposuperioré forçadoaumamaiormoderaçãoe isolamento,e tornam-semaioresoscontrastesetensõesnasociedade.

Neste caso, como sempre, ambas as tendências, igualação e diferenciação, atração erepulsão,estãopresentesnasduasfases,eessasrelações,também,sãofundamentalmente

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ambivalentes. Na primeira fase, porém, que em geral é aquela em que indivíduosascendem da classe mais baixa para a superior, a tendência desta última a colonizar aprimeiraedaprimeiraacopiarasegundaémaispronunciada.Nasegundafase,emqueopodersocialdogrupoinferiorestáaumentando,enquantodeclinaodogruposuperior,aautoconsciência de ambos aumenta com a rivalidade, com a tendência de enfatizardiferençase—noqueinteressaàclassesuperior—consolidá-las.Oscontrastesentreasclassesaumentameficamaisaltoomuroasepará-las.

Emfasesdoprimeirotipo,fasesdeassimilação,numerososmembrosdaclasseinferioremascensão,aindaquecomgranderelutância,tornam-sedependentesdaclassesuperiornãosóemsuaexistênciasocialmastambémemconduta,idéiaseideais.Freqüentemente,emboranemsempre,sãoaindabisonhosemmuitasáreasnasquaisosmembrosdaclassesuperior apresentam-se muito desenvolvidos, e ficam tão impressionados, em suainferioridadesocial,comocontroledepaixõeseocódigodecondutadaclassealtaquetentamcontrolarsuasemoçõesdeacordocomomesmopadrão.Nestecaso,encontramosumadascaracterísticasmaisnotáveisdoprocessocivilizador:osmembrosdaclasseemascensão desenvolvem em si mesmos um “superego” modelado na classe superior,colonizadora.Mas,examinando-semaisatentamenteoassunto,nota-sequeessesuperegoé, emmuitos aspectos, diferente domodelo. Émenos equilibrado e, em conseqüência,muitomais rigoroso.Freqüentemente, revelaoesforço imensoqueaascensãosocialdoindivíduoexigeemostra igualmenteaconstanteameaçavindatantodebaixoquantodecima,ofogocruzadoqueprocededetodasasdireções,aqueoindivíduoficaexpostoemsua progressão social. A assimilação total a um grupo mais alto só em casos muitoexcepcionais se dá numa única geração.Namaioria das pessoas originárias dos gruposinferiores que aspiram a ascender, o esforço inevitavelmente redunda em deformaçõesespecíficasdeconsciênciaeatitude.ElassãoconhecidasnoOrienteenascolôniascomo“Levantinismo” e, nos círculos pequeno-burgueses da sociedade ocidental, podem serencontradoscomfreqüênciasobaformade“meiaeducação”,apretensãodoindivíduodeseroquenãoé,ainsegurançanogostoenaconduta,a“vulgaridade”nãosónomobiliáriodacasaenas roupas,mas tambémnamente, tudo issoexpressandoumasituaçãosocialquedáorigemaum intenso anseiode imitarmodelos deumgrupo socialmais alto.Atentativafracassa.Continuaclaramenteaconstituirumaimitaçãodemodelosimportados.Aeducação,ospadrõesdevidaeostemoresdosgruposemascensãoedaclassealtasão,nessa fase, ainda tão diferentes que a tentativa dos primeiros de alcançar o aplomb dasegunda resulta, na maioria dos casos, numa peculiar contrafação e incongruidade decomportamentoque,aindaassim,ocultamumaautênticadesolação,odesejodeescapardapressão de cima e do senso de inferioridade.A construção do superego de acordo commodelosdaclassesuperiorgeratambém,naclasseemascensão,umaformaespecíficadevergonhaeembaraço,masqueémuitodiferentedassensibilidadesdegrupos inferioresquenãotêmprobabilidadedeascensãoindividual.Ocomportamentodelespodesermaistosco, mas é também mais uniforme e de certa maneira mais inteiriço. Vivem maisvigorosamenteemseuprópriomundo,semqualquerreivindicaçãoaoprestígiodaclassesuperiore,porconseguinte,commaior liberdadeparaliberarpaixões.Vivem,emsuma,mais plenamente, de acordo com suas própriasmaneiras e costumes. Sua inferioridadeperante a classe superior, seus gestos de subordinação e resistência, são claros erelativamentepúblicos,comotambémsuaspaixões,expressadasatravésdeformasclaras,definidas. Em sua consciência, eles e as outras classes têm, para o que der e vier,

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claramentedefinidassuasposições.

Em contraste, os sentimentos e gestos de inferioridade de pessoas que sobemsocialmente como indivíduos tomam sua coloração específica do fato de que elas seidentificam,atécertoponto,comaclassesuperior.Apresentamamesmaestruturaquefoidescritaantesnocasodossentimentosdevergonha:pessoasnessasituaçãoaceitamnumapartedesuaconsciênciaasnormasemaneirasdaclassesuperiorcomocompulsóriasparasimesmas,semseremcapazesdeadotá-lascomamesmafacilidadeenaturalidade.Eéessapeculiarcontradiçãoentreaclassealtaqueexistedentrodesimesmos,representadapelo próprio superego, e a incapacidade de cumprir-lhe as exigências, é essa constantetensãointeriorquelhesdáàvidaafetivaecondutaocaráterespecífico.

Aomesmotempo,atribulaçãoemquevivemmostra,deumnovoângulo,aimportânciaqueumcódigodemaneirasrigorosotemparaaclassesuperior.Eleéuminstrumentodeprestígio,mastambém—emcertafase—uminstrumentodepoder.Nãoédasmenorescaracterísticas da estrutura da sociedade ocidental que o lema de seu movimentocolonizador seja “civilização”. Para osmembros de uma sociedade em que é grande adivisãodefunçõesnãobastasimplesmentegovernarindivíduosepaísessubjugadospelaforça das armas, como se formassem uma casta guerreira, embora os velhos e simplesobjetivos da maioria dos antigos movimentos expansionistas — a expulsão de outrospovos de suas terras, a aquisição de novos solos para cultivo e assentamento —indubitavelmente tenham desempenhado um papel nada pequeno na expansão doOcidente.Masanecessidadenãoésódeterras,mastambémdepessoas.Elastêmqueserintegradas,sejacomotrabalhadoressejacomoconsumidores,nateiadopaíshegemônico,declassesuperior,comsuadiferenciaçãoaltamentedesenvolvidadefunções.Isto,porseuturno,exigecertaelevaçãodospadrõesdevidaeocultivodoautocontroleedasfunçõesdo superego nos povos submetidos, de acordo com os modelos ocidentais: exige, emsuma, “civilizar” os colonizados. Da mesma forma que não foi possível no próprioOcidente, a partir de certo estágio de interdependência, governar as pessoasexclusivamentepelaforçaeameaçasfísicas,assimtornou-senecessário,paramanterumimpério que ultrapassou o estágio da mera plantação, governar as pessoas, em parte,através de si mesmas, através da modelação de seu superego. Nas relações nativos-estrangeirosgdessetipopodemosobservarcaracterísticassemelhantes,embora,claro,não-idênticas, àquelas que se encontram entre classes sociais num estágio comparável dedesenvolvimento.Podemosnotar,porexemplo,característicasdeumaformaprimitivadeascensão,nãoaindadogruponativocomoumtodo,masdealgunsdeseusmembros.Elesabsorvem o código dos grupos superiores e passam, assim, por um processo deassimilação. Seu controle de paixões, sua conduta, obedecem às regras dos grupossuperiores. Parcialmente, identificam-se com eles e mesmo que a identificação possarevelarfortesambivalências,aindaassimsuaprópriaconsciência,ainstânciadosuperego,segue mais ou menos o modelo dos grupos superiores. Pessoas nessa situação tentamreconciliarefundiressepadrão,opadrãodassociedadescivilizadasdoOcidente,comoshábitosetradiçõesdesuaprópriasociedade,commaioroumenorgraudesucesso.h

A fimde observar esses processos, porém, não precisamos irmuito longe.Uma fasebemparecidaseencontranaascensãodaprópriaburguesiaocidental:afasecortesã.Nestecaso, também, inicialmente a mais alta aspiração de muitos membros dos gruposprincipaisdaburguesiaeracomportar-seevivercomonobres.Noíntimo,reconheciama

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superioridadedacondutaaristocráticadecorte.Procuravammoldarecontrolarsuavidadeacordocomessemodelo.Odiálogosobreafalacorretadoburguêsnumcírculocortesão,aquenosreferimos,constituibomexemplodisso.Nahistóriadalínguaalemã,essafasecortesã da burguesia é claramente assinalada pela conhecida tendência dos oradores eescritores a inserir uma palavra francesa a cada três ou quatro alemãs, se é que nãopreferiam usar diretamente o francês, a língua das cortes da Europa.Nobres, emesmoburgueses que eram membros dos círculos cortesãos, freqüentemente faziam troça deoutrosburguesesquetentavam,semsucesso,agirdeforma“refinada”oucortesã.

Àmedidaquecresciaopoderdaburguesia,desapareciatambémazombaria.Cedooutarde, todas as características da segunda fase da elevação social passaram a primeiroplano. Grupos burgueses enfatizavam cada vez mais sua auto-imagem especificamenteburguesa: opunham, com autoconfiança crescente, seus códigos de maneiras aos daaristocracia de corte. Dependendo da situação específica de cada um, contrastavam otrabalhocomaindolênciaaristocrática,a“natureza”comaetiqueta,ocultivodaculturaeda moral com o das boas maneiras e da boa conversa, para nada dizer da exigênciaburguesaespecialdecontroledosprincipaismonopólioscentrais,deumanovaestruturapara administração da tributação e do exército. Acima de tudo, contrapunham sua“virtude” à “frivolidade da corte”. A regulação das relações sexuais, as restrições queenvolviamaesferasexualdavidadalibido,erammuitomaisrigorosasnasclassesmédiaeascendentesburguesas,deconformidadecomsuaposiçãoprofissional,doquenaclassesuperiordaaristocraciadecortee,maistarde,maisfortesnaquelasdoquenosgruposdealtaburguesiaquetivessemassumidoacondiçãodeclassealta.Maspormaisviolentaqueessa oposição possa ter sido durante a fase da luta social, por maior que fosse aemancipação das burguesia dos modelos e da predominância da nobreza, o código decondutaqueosprincipaisgruposburguesesformularamquando,finalmente,assumiramasfunçõesdeclassesuperiorfoi,devidoàfaseprecedentedeassimilação,oprodutodeumamálgamadecódigosdavelhaedanovaclassessuperiores.

Alinhaprincipalseguidaporessemovimentodecivilização—asascensõessucessivasdegruposcadavezmaiores—foiamesmaemtodosospaísesdoOcidenteecomeçaasê-lo em partes cada vez maiores em outros quadrantes. E semelhante, também, foi aregularidadeestruturalsubjacenteàmesma,acrescentedivisãodefunçõessobpressãodacompetição,atendênciaaumamaiordependênciarecíprocadetodos,que,alongoprazo,não permitiu a grupo algum obter maior poder social do que outros e acabou com osprivilégios hereditários. Os processos de livre competição seguiram também um cursosemelhante: inclinaram-se para a formação de monopólios controlados por poucos e,finalmente,culminaramnapassagemdocontroleparaasmãosdeclassesmaisnumerosas.Nesse estágio da luta da burguesia contra os privilégios dos nobres, isso emergiu comgrandeclarezana“nacionalização”dosmonopóliosdatributaçãoedaforça,previamenteadministradosnointeressedecírculosmuitopequenos.Tudoissoseguiuomesmocurso,cedo ou tarde, tomando um caminho ou outro, em todos os países interdependentes doOcidente.Nessecontextocomumdesimilaridadesbásicas,porém,cadapaísdesenvolveucaracterísticas estruturais próprias. Correspondendo a estruturas sociais diferentes,surgirampadrõesespecíficosderegulaçãodeemoções,deestruturaçãodaeconomiadaspaixõesedesuperegoquefinalmenteemergiramnasváriasnações.

NaInglaterra,porexemplo,ondea faseabsolutistadecorte foi relativamentecurta,e

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ocorrerammaiscedooscontactosealiançasentrecírculosurbanosburgueseseanobrezafundiária, o amálgama dos padrões de comportamento das classes alta e média se deugradualmente,duranteumperíodo longo.AAlemanha,poroutro lado—que,devidoàfaltadecentralizaçãoeàGuerradosCemAnosquedelaresultou,continuourelativamentepobre, com um baixo padrão de vida, por muito mais tempo do que seus vizinhos—passou por uma fase extraordinariamente longa de absolutismo, comgrande número decortespequenasquemalsepoderiamdizerluxuosase,tambémporfaltadecentralização,só chegou à fase de expansão externa, colonial, relativamente tarde e de maneiraincompleta.Por todas essas razões, as tensões internas, o isolamentoda aristocracia emrelação à burguesia, foram nela muito mais fortes e duradouros e difícil o acesso dosgrupos burgueses aos monopólios centrais. Na Idade Média, seus grupos urbanosburgueses foram, durante algum tempo, política e economicamente mais poderosos,independenteseautoconfiantesdoqueemqualqueroutropaísdaEuropa.Ochoquedeseudeclínio político e econômico foi, por isso mesmo, mais pesado. Ainda que tradiçõesespecificamenteburguesassetivessemdesenvolvidomaiscedo,emformaespecialmentepuraemmuitasregiõesgermânicas,dadoqueasformaçõessociaisurbanasanteshaviamsido tão ricas e independentes, nesse momento elas persistiam como tradiçõesespecificamente burguesas porque seus representantes eram pobres e socialmenteimpotentes. E, em conseqüência, só bem tarde os círculos burgueses e nobres seinterpenetraram e foram fundidos seus modos de conduta. Durante longo período, oscódigos de ambas as classes persistiram sem ligações entre si, justapostos. E porque,durantetodoesseperíodo,asposições-chaveforammonopóliodanobreza,ahabituaçãoaumaautoridadeestatalexternaforteimpregnouprofundamenteaburguesia.EnquantonaInglaterra,devidoàsuasituaçãodeilha152,durantelongoperíodonemexércitonemforçapolicialcentralizadadesempenharamqualquergrandepapelnamodelaçãodapopulação,embora aMarinha deGuerra o fizesse até certo ponto, naPrússia/Alemanha, com suaslongasevulneráveisfronteirasterrestres,oexército,comandadopelanobreza,porclassesprivilegiadas,foi,comotambémaforçapolicialpoderosa,damaisaltaimportânciaparaaestrutura da personalidade social do povo. Essa estrutura demonopólio de força física,contudo,nãocompeliupessoasisoladasaadotaremomesmotipodeautocontrolequenaInglaterra.Nãoforçouosindivíduosaseintegrarememrelaçõesde“trabalhodeequipe”,baseadasemaltograudeautocontroleindividualesincronizaçãocomoutraspessoas.Emvezdisso,habituouoshomens,desdeainfância,numgraumuitomaisalto,aumaordemrigorosa de superioridade e inferioridade, a uma ordem de obediência e comando emvários níveis. Compreensivelmente, esse tipo de controle estatal e o emprego nele domonopólio de força física foram menos capazes de transformar os controles exercidosatravés de terceiras pessoas (ou controles externos) em autocontrole. Faltou tambémnaAlemanha, por muito tempo, uma função específica que em alguns outros países,sobretudo na Inglaterra, realçou nas classes nobre e burguesa um espírito de previsãocomum e um padrão análogo de autocontrole bastante desenvolvido: a função central,como classe superior de um império colonial, numa rede muito extensa deinterdependências. Na Alemanha, esse controle das paixões no indivíduo se conservoumuito dependente de um forte poder estatal e externo. O equilíbrio emocional, oautocontroledo indivíduo, erampostos em risco se faltava essepoder externo.Geraçãoapós geração, reproduziu-se nas massas burguesas um superego que estava disposto arenunciar,emfavordeumcírculosocial separadoemaiselevado,ao tipoespecíficode

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capacidade de previsão exigido pelo governo e organização da sociedade em geral.Mostramosnoiníciodesteestudoqueessasituaçãolevou,logonocomeçodaascensãodaburguesia,aumtipomuitoespecíficodeauto-imagem,aumaabstenção153detudooquetinhaavercomaadministraçãodosmonopóliosdepoder,eaumcultivodavidainterioreuma exaltação das realizações espirituais e culturais a um lugar especial na tábua devalores.

Mostramos tambémqueomovimentocorrespondente tomourumodiversonaFrança.Aqui,deformamaiscontínuadoqueemqualqueroutropaísdaEuropa,desdeoscomeçosdaIdadeMédia,círculoscortesãosforamseformando,inicialmenteporgruposcourtoisemaistardeporcortescadavezmaiores,atéquefinalmenteacompetiçãoentreosmuitossenhores feudaisculminounaformaçãodeumacorte realúnica,poderosae rica,paraaqual fluíam impostos de todo o território. Em conseqüência, muito cedo uma políticaeconômica centralmente controlada se adotou. Embora ela servisse primariamente aosinteresses do suseranomonopolista e a seu desejo demaximizar a receita fiscal, aindaassim ela promoveu o desenvolvimento do comércio e o surgimento de ricas classesburguesas.Dessamaneira, já em tempos remotoshouve contactos entre aburguesia emascensão e os aristocratas da corte, com sua constante necessidade de dinheiro. Aocontrário de muitos domínios absolutistas relativamente pequenos e mediocrementedotados, o regime rico, centralizado, do absolutismo francês fomentou a transformaçãogeral de restrições externas em auto-restrições e a fusão de padrões de condutaaristocráticos de corte com os burgueses. E quando, ao fim dessa fase, se completou aascensão a partir de baixo, e com ela a nivelação e igualação dos padrões sociaiscaracterísticos de toda essa fase do processo civilizador, quando a nobreza perdeu seusdireitos hereditários e status como classe superior separada, e os grupos burgueses lheassumiram as funções, estes mantiveram, como resultado da longa interpenetraçãoprecedente,osmodelos,ospadrõesdecontroledeemoçõeseasformasdecondutadafasecortesã,deumaformamaisconstanteeinvariáveldoquequalqueroutraclasseburguesadaEuropa.

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VIII

ConclusãoSe analisamos em sua totalidade essesmovimentos do passado, o que vemos é uma

mudançaemdireçãobem-definida.Quantomaisprofundamentepenetramosnariquezadefatos particulares a fim de descobrir a estrutura e regularidades do passado, maissolidamente emerge um contexto firme de processos dentro dos quais são reunidos osfatosdispersos.Damesmaformaque,nopassado,quemobservavaanatureza,apósseguirnumerosashipótesesqueemnadaderam,gradualmentecomeçouadistinguirumavisãocoerentedelatomandoformadiantedeseusolhos,hojeosfragmentosdopassadohumanoreunidosemnossamenteeemnossoslivrospelotrabalhodemuitasgerações,começam,aospoucos,a seencaixarnumquadroconsistentedahistóriaedouniversohumanoemgeral.Acontribuiçãoaquidadaaessequadroserábrevementesumariadadeumpontodevistaespecífico,odenossosprópriosdias.Issoporqueoperfildaspassadasmudançasnotecidosocialsetornamaisvisívelquandovistocontraoseventosdenossaprópriaépoca.Neste caso, também, como tão freqüentemente acontece, o presente ilumina acompreensão do passado e a imersão neste ilumina o presente. Emmuitos aspectos, adinâmica do entrelaçamento observada em nossos dias, com seus numerosos altos ebaixos,representaacontinuação,nomesmorumo,demovimentosecontramovimentosdemudançasantigasnaestruturadassociedadesdoOcidente.

No ponto da desintegração máxima do sistema feudal no Ocidente, conformemostramos,154entrouemaçãoumacertadinâmicadeentrelaçamentosocialquetendeuaintegrarunidadescadavezmaiores.Daconcorrênciadepequenosdomínios,deterritórios,estesmesmos formados nas lutas entre unidades de sobrevivência aindamenores, umaspoucas, e finalmente uma única, lentamente despontou como vitoriosa. O vencedorplasmouocentroemtornodoqualnovosemaioresdomíniosforamintegrados.Formouocentromonopolistadeumaorganizaçãoestatal,nocontextodaqualmuitasdasregiõesegruposquecompetiamlivrementegradualmenteseaglutinaramnumasociedademaisoumenosunificadaeequilibrada,deumaordemmaisaltademagnitude.

Atualmente,essesEstados,porseulado,formamequilíbriosdepoderentreasunidadessobreviventes,quecompetemlivrementeentresi.EssesEstados, também,sobapressãodas tensõesdacompetição,quemantêm todaanossa sociedadenoeterno fermentodosconflitos e crises, agora se vêm, por sua vez, forçados a entrar mais claramente emoposição mútua. Mais uma vez, numerosos domínios rivais estão tão estreitamenteentrelaçadosqueaquelequepermanecerimóvel,quenãosetornarmaisforte,correoriscodeseenfraqueceretornar-sedependentedeoutrosEstados.Comoemtodosossistemasde equilíbrio com competição crescente e sem um monopólio central, os poderososEstadosqueformamosprincipaiseixosdetensãonosistemapressionam-semutuamentenumaespiralincessante,afimdeampliarefortalecerseupoder.Alutapelasupremaciae,destarte,sabendo-sedissoounão,paraaformaçãodemonopóliossobreáreasaindamaisvastas,jáestáemplenoandamento.Esenopresenteoqueestáemjogoéasupremaciasobre continentes, já se notam sinais claros, concomitantes com a interdependência de

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áreas cadavezmaiores, de lutaspela supremacianumsistemaque envolve toda a terrahabitada.

No presente como no passado, a dinâmica da interdependência, mencionada tantasvezes nestas indagações, mantém o homem em movimento e pressiona na direção demudançasemsuasinstituiçõese,naverdade,naestruturaglobaldesuasconfigurações.Aexperiênciadenossosdiasrefutatambémaidéiaquedominouopensamentodohomemdurantemaisdeumséculo,a idéiadequeumsistemaequilibradodeunidadesemlivrecompetição— Estados, empresas, artesãos, o que quer que seja— possa ser mantidoindefinidamentenessasituaçãodeequilíbrioprecário.Hojecomoantes,essasituaçãodecompetição isentademonopólioestá sendoempurradaparaa formaçãodosmesmos.Arazão por que esse equilíbrio é tão instável, e tão alta a probabilidade de seudesmoronamento, foimostrada na análise da dinâmica da competição emonopolizaçãofeitaacima.155

Hoje, tanto quanto antes, não são apenas as metas e pressões “econômicas”, nemtampoucoapenasosmotivospolíticos,queconstituemasprincipais forçasmotrizesdasmudanças.Nemaaquisiçãode“mais”dinheiroou“mais”podereconômicoéametarealda rivalidade entre Estados ou da ampliação do âmbito do Estado, nem a aquisição demaiorpoderpolíticoemilitarconstituisimplesmenteumamáscara,ummeioparaatingirametaeconômica.Osmonopóliosdeviolênciafísicaedosmeioseconômicosdeconsumoeprodução,sejamcoordenadosounão,estãoinseparavelmenteinterligados,semqueumdelesjamaissejaabaserealeooutromeramenteuma“superestrutura”.Juntos,elesgeramtensõesespecíficasempontosparticularesnodesenvolvimentodaestruturasocial,tensõesquepressionamno sentidode sua transformação.Juntos, formamo cadeadoque ligaacorrente que agrilhas homens entre si. Em ambas as esferas de aglutinação humana, apolíticaeaeconômica,estãoemfuncionamentoosmesmosmecanismos,empermanenteinterdependência.Damesmamaneira que a tendência do grande comerciante a ampliarsua empresa tem origem, em última análise, em tensões que semanifestam em toda aconstelação humana da qual faz parte, e acima de tudo no perigo demenor controle eperda de independência, se uma firma rival crescermais do que a sua, os Estados emcompetiçãoseempurramcadavezmaisparaoaltonaespiralcompetitiva,sobapressãode tensões imanentesa todaaestruturaque formam.Numerosaspessoaspodemdesejarpôr fim a essemovimento em espiral, ao rompimento do equilíbrio entre competidores“livres” e às lutas emudanças que esse desmoronamento acarreta.No cursoda históriahumanaatéagora,aslimitaçõesimpostaspelaaglutinaçãodesereshumanosalongoprazosempre forammais fortes do que esses desejos.Atualmente, as relações internacionais,aindanãoreguladasporummonopólioabrangentedeforça,estãosendoempurradas,maisumavez, na direção dessesmonopólios e, assim, para a formaçãode domínios de umanovaordemdemagnitude.

Precursores dessas unidades hegemônicas, comoEstados aliados, impérios e ligas denaçõescertamente jáexistem.E todoselessãorelativamente instáveis.Comoantes,nosséculos de lutas entre domínios territoriais, hoje ainda não se resolveu, na luta entre osEstados, nem é possível resolver, por ora, onde ficarão os centros e as fronteiras dasunidadeshegemônicasmaisamplasdofuturo.Comoantes,éimpossívelpredizerquantotempo será necessário para que essa luta, com seus muitos avanços e recuos, tenhafinalmente sua conclusão. E como os membros das unidades menores, cujas lutas

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lentamentegeraramosEstados,nós, também,poucomais temosqueuma idéiavagadaestrutura,organizaçãoeinstituiçõesdasunidadesmaioresparaasquaistendemasações,saibam-no ou não os atores.156 Só uma coisa é certa: a direção para a qual tende aintegraçãodomundomoderno.AtensãocompetitivaentreosEstados,dadasaspressõesquenossaestruturasocialencerra,sópodeserresolvidaapósumalongasériedeprovasdeforça, violentas ou não-violentas, ter estabelecido monopólios de força e organizaçõescentraisemdomíniosmaisvastos,dentrodosquaismuitosmenores,os“Estados”,possamcrescer juntos numa unidade mais equilibrada. Neste particular, na verdade, as forçasirresistíveis do entrelaçamento social conduziram à transformação da sociedade doOcidentenumaúnicaemesmadireçãodesdeaépocadamáximadesintegraçãofeudalatéopresente.

O caso é muito parecido no tocante a numerosos outros movimentos do “presente”.Todos eles sãovistos sobumanova luz, quando considerados comomomentosnaquelacorrente que ora chamamos de “passado” ora, de “história”. Até mesmo dentro dasunidades hegemônicas de hoje vemos certo número de lutas competitivas isentas demonopólio.Mas,emmuitoslugares,essalivrecompetiçãoestáchegandoàfasefinal.Emtoda parte, nessas lutas travadas com armas econômicas, organizações monopolistasprivadas já estão sendo formadas. E como antes, na formação dos monopólios datributaçãoedaforçafísicanasmãosdedinastiasisoladas,jáeramdiscerníveisasforçasirresistíveis que finalmente levaram à ampliação do controle, fosse subordinando oexecutivo do monopólio a um legislador eleito ou através de qualquer outra forma de“nacionalização”,emnossosdiasjáentrevemosadinâmicaconfiguracionalimanenteemação, reduzindo a possibilidade de controle privado dos monopólios “econômicos”recenteseaproximandomaissuaestruturadasantigas,demodoqueéprovávelqueelesfinalmenteseinclinemparaaintegraçãodeambos.

Omesmo se pode dizer a respeito das demais tensões que provocammudanças nasdiferentes unidades hegemônicas, as tensões entre pessoas que controlam diretamentecertosinstrumentosdomonopóliocomopropriedadeshereditáriaseaquelasexcluídasdetal controle e que participam de competição sem liberdade, dependendo todos dasoportunidadesdistribuídaspeloscontroladoresdomonopólio.Aqui,encontramo-nosmaisumavezemmeioaumarrancohistóricoque,comoumagrandeondadeumamaréqueavança, absorve as ondasmenores que a precederam e as levammais longe namesmadireção. Na análise domecanismo domonopólio, mostramos em termosmais gerais157comoeporque,natensãoentreosqueoscontrolameosqueoservem,oequilíbrio,emcertograudapressãototal,tendeasermaisoumenosrapidamenteperturbado.Mostramosque movimentos rápidos nessa direção ocorriam já num período antigo da sociedadeocidental. Encontramo-los, por exemplo, no processo de feudalização, mesmo que esteenvolvesseapenasumamudançadentrodaprópriaclassealta.Essamudança,alémdisso,em favor demuitos a expensas de poucos, provocou, como resultado do baixo grau dedivisãodefunções,adesintegraçãodocontrolesobreasoportunidadesmonopolizadaseadecadênciadoscentrosmonopolistas.

Aumentandoadivisãodefunções,ecomelaa interdependênciamútuadetodas,essetipodemudançanoequilíbriodepodernãoseexpressoumaispelatendênciadedispersaroportunidades monopolizadas entre numerosos indivíduos, mas pela tendência decontrolar os centros monopolistas e as oportunidades que eles distribuíam de maneira

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diferente.Aprimeiragrandefasedetransiçãodessetipo,alutadasclassesburguesaspelocontrole dos velhos centros monopolistas, controlados pelos reis e, em parte, pelaaristocracia como propriedade hereditária — os primeiros monopólios completos dostemposmodernos—mostraissocomgrandeclareza.Pormuitasrazões,émaiscomplexoemnossosdiasomodelodeclassesemascensão.Umadas razõeséquehojese tornounecessáriolutarnãosópelosvelhoscentrosmonopolistasdetributaçãoeviolênciafísica,ou apenas pelosmonopólios econômicos recentes ainda emprocesso de formação,maspelocontrolesimultâneodeambos.Otipoelementardeforçasemaçãonesteparticular,porém,émuito simples,mesmonestecaso: todaoportunidadedecriaçãodemonopóliolimitadapelahereditariedadeacertasfamíliasgeratensõesedesproporçõesespecíficasnasociedade interessada.Tensões desse tipo tendempara umamudança de relações e, porisso, de instituições em todas as sociedades, embora, quando a diferenciação é baixa e,especialmente, quando a classe superior consiste de guerreiros, elas freqüentementepermaneçam sem solução. Sociedades com uma divisão de funções altamentedesenvolvida são muito mais sensíveis às desproporções e disfunções ocasionadas poressastensões,cujosefeitossãopermanentementesentidosemtodaasociedade.Embora,nessas sociedades, possa havermais de umamaneira pelas quais as tensões podem serconciliadaseremovidas,adireçãoaquetendemparasetranscenderemépredeterminadapelomodocomovieramasurgir,porsuagênese.Astensões,desproporçõesedisfunçõesresultantesdocontrolemonopolistadeoportunidades,no interessede alguns, sópodemserresolvidaspeladestruiçãodessecontrole.Oquenãosepodesaberdeantemão,porém,équantotempovaiduraralutaqueseseguirá.

Alguma coisa muito parecida, finalmente, está acontecendo em nosso tempo com acondutadaspessoasecomtodaaestruturadesuapersonalidade.Nocursodesteestudo,tentamosdemonstraremdetalheessesfatosecomoaestruturadasfunçõespsicológicas,omodelo específico de controle do comportamento num período dado, vincula-se àestrutura das funções sociais e à mudança nos relacionamentos entre as pessoas.Acompanhar detalhadamente essas conexões emnossa época é uma tarefa ainda por serealizar. Mas os pontos mais gerais podem ser rapidamente esclarecidos. As forçasestruturaisqueatuamtãovisivelmentehojeparaumamudançamaisoumenosrápidadasinstituiçõesedosrelacionamentosinterpessoaislevamcomnãomenorclarezaamudançascorrespondentesna estrutura da personalidade.Neste caso, também, obtemos uma idéiamaisclaradoqueestáacontecendocomparando-o,comoumarranconumadireçãodada,com os movimentos passados dos quais é continuação. Nas dores de parto de outrasgrandesmudançassociais,opadrãodominantedecondutadasclassessuperioresterminousofrendo um maior ou menor afrouxamento. Um período de incerteza precedeu aconsolidaçãodeumnovopadrão.Padrõesdecomportamentoforamtransmitidosnãosódecimaparabaixo,mas,emconformidadecomamudançanocentrodegravidadesocial,debaixoparacima.Assim,nocursodaascensãodaburguesia,porexemplo,ocódigodeconduta aristocrático de corte perdeu parte de sua força.As formas sociais tornaram-semaisrelaxadase,dealgumamaneira,maisrudes.Osrigorosostabusobservadosemcertasesferasnaclassemédia,acimadetudoosrelativosaodinheiroeàsexualidade,saturaramcírculosmais amplos em graus variáveis até que, finalmente, quando desapareceu esseequilíbrio específico de tensões, em ondas alternadas de relaxamento e renovadaseveridade, elementos dos padrões de conduta de ambas as classes fundiram-se numcódigonovoemaisestável.

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As grandes mudanças que atualmente vivemos diferem em estrutura de todas asprecedentes, pormais que possam prossegui-las e basear-se nelas.Não obstante, certassemelhançasestruturaiscomamudançaqueacabamosdedescreversãoencontradasemnosso próprio tempo. Neste caso, também encontramos um relaxamento dos padrõestradicionaisdecomportamento,aascensão,apartirdebaixo,decertosmodosdeconduta,e uma crescente interpenetração dos padrões de classes diferentes. Notamos maiorseveridadeemalgumasesferasecertavulgaridadeemoutras.

Períodoscomoeste,períodosdetransição,proporcionamumaoportunidadeespecialàreflexão:ospadrõesmaisantigosforamcontestados,masosnovosaindanãosurgiram.Aspessoas se tornam mais incertas em matéria de conduta. A própria situação socialtransforma a “conduta” em problema agudo. Nessas fases— e talvez apenas nelas—ficam abertas à discussão na conduta muitas coisas que as gerações anterioresconsideravamcomocertasenaturais.Os filhoscomeçamapensarapartirdopontoemqueospaispararamsuasreflexões,começamaperguntarporrazõesemcasosemqueospaisnãoviramrazãopara indagar:porquedeve“apessoa”comportar-sedestamaneiraaquiedaquelaoutraali?Porqueistoéproibidoeaquilopermitido?Qualéopropósitodestepreceitosobreasmaneirasedaquele,sobreamoral?Convençõesqueforamaceitasdurante gerações passam a ser problematizadas. Além disso, como resultado da maiormobilidade e de encontros mais freqüentes com tipos humanos diferentes, as pessoasaprendemaseenxergardeumadistânciamaior:porqueocódigodecondutanaAlemanhaédiferentedodaInglaterra,porqueoinglêsdiferedoamericanoeporqueacondutadetodos esses países é diferente da que se observa no Oriente e em sociedades maisprimitivas?

As investigaçõesprecedentes tentaram levar algumasdessasquestõesparamaispertodeumasolução.Naverdade,apenascolocaramproblemasque“estãonoar”.Procuraram,tantoquantoopermitemosconhecimentosdeumaúnicapessoa,esclarecerasquestõesepreparar um caminho que, no fogo cruzado da discussão, possa levar à indagação, emconjunto com outros pesquisadores.Os padrões de comportamento de nossa sociedade,gravadosnoindivíduodesdeamaistenrainfânciacomoumaespéciedesegundanaturezae mantidos em estado de alerta por um controle social poderoso e cada vez maisrigorosamente organizado, precisam ser explicados, não em termos de finalidadeshumanas gerais, a-históricas, mas como algo que evoluiu da totalidade da história doOcidente, das formas específicas de comportamento que se desenvolveram durante seucurso e de forças de integração que as transformaram e propagaram.Esses padrões, talcomo todo o controle de nosso comportamento, como a estrutura de nossas funçõespsicológicasemgeral,possuemmuitascamadas:emsuaformaçãoereprodução,impulsosemocionaisdesempenharamumpapelnãomenosimportantequeosracionais,aspulsõesesentimentos nãomenos que as funções do ego.Hámuito tempo se costuma explicar ocontrole ao qual o comportamento individual está sujeito em nossa sociedade comoalguma coisa essencialmente racional, fundamentada exclusivamente em consideraçõeslógicas.Nestaspáginas,eleéconsideradodeoutramaneira.

Mostramosquearacionalização,ecomelaamodelaçãoeaexplicaçãomaisracionaldetabussociais,158éapenasumladodeumatransformaçãoqueafetoutodaapersonalidade,afetando as pulsões e sentimentos no mesmo grau que a consciência e a reflexão.Demonstramosaindaqueaforçamotrizdessamudançadeauto-orientaçãoindividualfoi

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fornecida por pressões surgidas do entrelaçamento em muitas esferas de atividadeshumanas,pressõesqueatuaramnumadireçãodada,ocasionandomudançasnaformadosrelacionamentoseemtodootecidosocial.Essaracionalizaçãofoiacompanhadadeumaenorme diferenciação nas cadeias funcionais e de uma correspondente mudança naorganizaçãodaforçafísica.Suaprecondiçãofoiaelevaçãodopadrãodevidaedonívelde segurança, ou, em outras palavras, uma maior proteção contra os ataques ou adestruiçãofísicae,assim,contraosmedos incontroláveisqueafetavamcommuitomaisforçaosindivíduosqueerammembrosdesociedadescommonopóliosmenosestáveisdeforça e divisãomenos acentuada das funções.No presente, estamos tão acostumados àexistência desses monopólios mais estáveis de força e da maior previsibilidade daviolênciadelesresultante,quemalnosdamoscontadesuaimportânciaparaaestruturadenossacondutaepersonalidade.Malcompreendemoscomquerapidezoquedenominamosde nossa “razão”, este direcionamento relativamente previdente e diferenciado de nossaconduta,comseualtograudecontroledeemoções,desmoronariaouentrariaemcolapsoseas tensõesqueinduzemansiedadeemnóseemvoltadenósmudassem,seosmedosquenosafetamavidaderepentesetornassemmuitomaisfortesoufracosou,comoemmuitas sociedadesmais simples, as duas coisas sucedessemaomesmo tempo, oramaisfortes,oramaisfracos.

Sóquandodeslindamosessasconexõeséqueganhamosacessoaoproblemadacondutaedeseucontrolepelocódigosocialvigenteemdeterminadaépoca.Ograudeansiedade,talcomotodaaeconomiadoprazer,difereemtodasassociedades,emtodasasclassesefases históricas.A fim de compreender o controle da conduta que a sociedade impõe aseus membros, não basta conhecer as metas racionais que podem ser referidas paraexplicar seus comandoseproibições.Temosque explorar até suaorigemosmedosqueinduzemosmembrosdessasociedade,eacimadetudo,osguardiãesdeseuspreceitos,acontrolaracondutadessamaneira.Sóobtemosumamelhorcompreensãodasmudançasde conduta e sentimentos numa direção civilizadora, portanto, se nos tornarmosconscientesdasmudançasnaestruturadosmedosconstruídos,aqueelesestãoligados.Adireção de tal mudança foi esboçada antes159: o medo direto que uma pessoa sente deoutrasdiminui;osmedosindiretosouinternalizadosaumentamnamesmaproporção;osdois tipos tornam-semais uniformes; as ondasde ansiedadenão sobemmais com tantafreqüência ou altura, apenas para desmoronarem com igual rapidez; com algumasoscilações, leves em comparação com o que aconteceu em fase anterior, permanecemnormalmentenonívelmédio.Quandoissoacontece,conformevimos,acondutaassume—atravésdegrauseestágios—umcarátermais“civilizado”.Nestecontextocomoemtodos os outros, a estrutura dos medos e ansiedades nada mais é que a contrapartidapsicológica das restrições que pessoas exercem umas sobre as outras através doentrelaçamento de suas atividades. Os medos formam um dos canais — e dos maisimportantes — através dos quais a estrutura da sociedade é transmitida às funçõespsicológicas individuais. A força propulsora subjacente à mudança na economia daspaixões, na estrutura dos medos e ansiedades, é uma mudança muito específica nasrestrições sociais que atuam sobre o indivíduo, uma transformação específica de toda ateiaderelacionamentose,acimadetudo,daorganizaçãodaforça.

Comgrandefreqüência,pareceàspessoasqueoscódigosquelhesregulamacondutaemrelaçãoaosoutrose,assim,tambémosmedosqueasmotivam,sãoalgumacoisade

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foradaesferahumana.Quantomaisprofundamenteimergimosnosprocessoshistóricos,no curso dos quais as proibições, bem como os medos e ansiedades, foram criados etransformados,mais aumentauma introvisãoque temsua importânciaparanossos atos,bemcomoparanossacompreensãodenósmesmos:damo-noscontadograuemqueosmedoseansiedadesquemotivamaspessoassãoobradohomem.Parasermosexatos,apossibilidade de sentir medo, exatamente como a de sentir alegria, constitui parteinalteráveldanaturezahumana.Masaforça,tipoeestruturadosmedoseansiedadesqueardem em fogo lento ou fulguram em chamas no indivíduo nunca dependemexclusivamente de sua própria “natureza” nem, pelo menos em sociedades maiscomplexas,da“natureza”nomeiodaqualelevive.Sãosempredeterminados,emúltimaanálise,pelahistóriaeestruturarealdesuasrelaçõescomoutraspessoas,pelaestruturadasociedade;emudamcomela.

Temos aqui, na verdade, uma das chaves indispensáveis para compreender todos osproblemascolocadospelaorientaçãodacondutahumanaepeloscódigosdemandamentose “tabus”. A criança e o adolescente jamais aprenderiam a controlar o própriocomportamentosemomedoinstiladoporoutraspessoas.Semainfluênciadessesmedoscriadospelohomem,ojovemanimalhumanonuncasetornariaumadultomerecedordonomedeserhumano,talcomoahumanidadedeninguémamadureceriaplenamenteseavida lhenegasse suficientesalegriaseprazeres.Osmedosqueosadultosconscienteouinconscientementeinculcamnacriançasofremnelaumaprecipitaçãoe,daíemdiante,sereproduzemmaisoumenosautomaticamente.Apersonalidademaleáveldacriançaétãomodelada pormedos que ela aprende a agir de acordo com o padrão predominante decomportamento,sejamessesmedosgeradospelaforçafísicadiretaoupelaprivação,pelarestriçãodealimentooudeprazeres.Osmedoseansiedadescriadospelohomem,sejamelesmedosaoquevemdeforaouaoqueestádentrodenós,finalmentemantêmemseupoderatémesmooadulto.Avergonha,omedodaguerraeomedodeDeus,omedoqueohomemsentedesimesmo,deserdominadopelosseusprópriosimpulsosafetivos,todoselessãodiretaou indiretamente induzidosneleporoutraspessoas.Suaforça, formaeopapel que desempenham na personalidade do indivíduo dependem da estrutura dasociedadeedeseudestinonela.

Nenhumasociedadepodesobreviversemcanalizaraspulsõeseemoçõesdoindivíduo,semumcontrolemuitoespecíficodeseucomportamento.Nenhumcontroledessetipoépossívelsemqueaspessoasanteponhamlimitaçõesumasàsoutras,etodasaslimitaçõessão convertidas, na pessoa a quem são impostas, em medo de um ou outro tipo. Nãodevemos nos enganar: as constantes produção e reprodução de medos pela pessoa sãoinevitáveiseindispensáveisondequerquesereshumanosvivamemsociedade,emtodosos casos em que os desejos e atos de certo número de indivíduos se influenciemmutuamente,sejanotrabalho,noócioounoatodoamor.Masnãodevemosacreditarnemtentar convencer-nos de que os comandos e medos que hoje imprimem sua marca naconduta humana tenham como “objetivo” simples, e fundamental, essas necessidadesbásicasdecoexistênciahumana,equeestejamlimitadosemnossomundoàsrestriçõesemedosnecessáriosaumequilíbrioestávelentreosdesejosdemuitoseàmanutençãodacooperação social. Nossos códigos de conduta estão tão cheios de contradições e dedesproporçõescomoas formasdevidasocial,comoaliás, também,aestruturadenossasociedade. As restrições às quais o indivíduo está submetido hoje, e os medos

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correspondentesaelas,sãoemseucaráter,forçaeestruturadecisivamentedeterminadospelas forças específicas geradas pela estrutura de nossa sociedade, que acabamos dediscutir:peloseupodereoutrosdiferenciais,easimensastensõesquecriam.

Deixamosclaroemquecaoseperigosvivemos,etivemosoportunidadedediscutirasforçasestruturaisque lhesdeterminamadireção.Sãoessas forças,muitomaisdoquealimitaçãosimplesdetrabalharemgrupo,sãoastensõeseentrelaçamentosdessetipoqueexpõematualmenteoindivíduoaomedoeàansiedade.AstensõesentreEstados,criadaspeladinâmicairresistíveldesuaslutaspelasupremaciasobredomínioscadavezmaiores,encontram expressão na constituição psicológica da pessoa, em frustrações e restriçõesespecíficas. Impõem a esses indivíduos uma pressão de trabalho e uma insegurançaprofunda que nunca cessam. Tudo isso, as frustrações, a inquietação, a pressão dotrabalho, nãomenos que a ameaça que nunca termina à vida inerente às tensões entreEstados,geraansiedadesemedos.Omesmoseaplicaàstensõesdentrodecadasociedadee Estado. A competição incontrolável, isenta de monopólio, entre pessoas da mesmaclasse,porumlado,eastensõesentrediferentesclassesegrupos,poroutro,dãoorigemtambém, no caso do indivíduo, a uma contínua ansiedade e a proibições ou restriçõesespecíficas.Elas,também,produzemseusprópriosmedosespecíficos:medosdeperdadoemprego,deumavulnerabilidadeimprevisívelaosqueexercempoder,decairabaixodonível de subsistência, que prevalecemnas classesmais baixas; bem como osmedos dedegradaçãosocial,dereduçãodaspossesouindependência,deperdadeprestígioestatus,que desempenham papel tão importante na vida das classes média e alta. E foramprecisamentemedoseansiedadesdessetipo,medosdeperderoprestígiohereditárioquedistinguia a pessoa, conformemencionamos160, que desempenharam até hoje um papeldecisivo namodelação do código vigente de conduta. Exatamente esses medos, vimostambém,tendemmuitoà internalização;eles,muitomaisdoqueomedodapobreza,dafomeoudoperigofísicodireto,enraizaram-seemcadamembrodessasclasses,atravésdacriação e educação, sob a forma de ansiedades internas que o prendem quaseautomaticamente a um código aprendido, sob a pressão de um forte superego, mesmoindependentemente de qualquer controle exercido por outras pessoas. A preocupaçãoconstantedospaiscomofatodeosfilhossepautaremounãopelopadrãodecondutadesua classe ouda classemais alta, semanterãoou aumentarãoo prestígio da família, sedefenderão sua posição na competição dentro de sua própria classe, medos desse tipocercama criança desde os primeiros anos, e isso acontecemuitomais na classemédia,entreaquelescomambiçãodesubirnavida,doquenaclassesuperior.Medosdessetipodesempenhamumpapelconsiderávelnocontroleaoqualacriançaésubmetidadesdeocomeço,nasproibiçõesquelhesãoimpostas.Talvezapenasemparteconscientesnospaiseatécertopontojáautomatizadas,elassãotransmitidasàcriançatantoporgestosquantoporpalavras.Continuamentejogamcombustívelnocírculoígneodasansiedadesinternas,que mantém o comportamento e os sentimentos da criança em crescimentopermanentementedentrode limitesdefinidos,prendendo-aacertopadrãodevergonhaeembaraço, a um sotaque específico, a maneiras peculiares, deseje ela isso ou não. Atémesmoasnormasimpostasàvidasexual,easansiedadesautomáticasquehojeacercamemumgrautãoalto,surgemnãosódanecessidadeelementardecontrolareequilibrarosdesejosdosmuitosquevivemjuntos,mastambémtêmorigem,emgrauconsiderável,naspressõesetensõesemquevivemaclassealtae,especialmente,aclassemédiaemnossasociedade. Elas, também, estão estreitamente relacionadas com o medo de perder

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oportunidades, posses e prestígio, de degradação social, de possibilidades reduzidas nadura luta da vida, inculcado desde cedo na criança pelo comportamento de pais eeducadores.Emesmoqueessaslimitaçõeseansiedadespaternaspossam,algumasvezes,provocar exatamente o que devem prevenir, mesmo que a criança possa ser tornadaincapaz, por essas ansiedades automática e cegamente instiladas, de vencer na vida econseguir prestígio social— qualquer que seja o resultado, são sempre as tensões dasociedade onde vivemque são projetadas pelos gestos, proibições emedos dos pais nacriança. O caráter hereditário das oportunidades monopolizadas e do prestígio socialencontraexpressãodiretanaatitudedospaisparacomofilho;dessamaneira,acriançaélevadaasentirosperigosqueameaçamessasoportunidadeseesseprestígio,asentirtodasastensõesdasociedade,antesmesmodesaberqualquercoisaarespeitodelas.

Essaligaçãoentreosmedosexternosdospais,diretamentecondicionadospelaposiçãosocial dosmesmos, e as ansiedades internas, automáticas, da criança emcrescimento, éindubitavelmenteumfatodeimportânciamuitomaisgeraldoquepodeserdemonstradoaqui. Só obteremos uma compreensão mais profunda da estrutura da personalidade doindivíduo,edasmudançashistóricasemsuamodelaçãoaolongodesucessivasgerações,quandoformosmaiscapazesdeobservareanalisar longascadeiasdegeraçõesdoqueépossívelhoje.Masumacoisajásetornoumuitoclaraemnossosdias:aprofundidadecomqueaestratificação,aspressõesetensõesdenossaprópriaépocapenetramnaestruturadapersonalidadedoindivíduo.

Nãopodemosesperardepessoasquevivememmeioaessastensões,quesãolevadas,semculpaalguma,aincorreremculpaemcimadeculpaemrelaçãoumasàsoutras,quese comportem reciprocamente de uma maneira que represente— como parece que seacredita hoje com tanta freqüência — a culminância final da conduta “civilizada”. Oentrelaçamentocontínuodeatividadeshumanasatuoucomoumaalavancaque,aolongodos séculos, produziu mudanças de conduta na direção de nosso padrão. As mesmaspressões evidentemente operam em nossa sociedade na mesma direção, no sentido deproduzir mudanças que transcendam os atuais padrões de conduta e sentimentos —embora, hoje como no passado, essas tendências, a qualquer tempo, possam entrar emmarchaaré.Damesmaformaqueacontececomaestruturasocial,nossotipodeconduta,nossonível de limitações, proibições e ansiedadesnão é algodefinitivo, e aindamenosumaculminância.

Paracomeçar,pairasobrenósaameaçaconstantedeguerra.Repetindooargumentoemforma diferente, guerra não é o oposto de paz. Por uma necessidade, cujas razões setornaram claras, as guerras entre unidades menores foram, no curso da história até opresente, estágios e instrumentos inevitáveis no apaziguamento das unidades maiores.Certamente a vulnerabilidade da estrutura social e, em conseqüência, os riscos econvulsõessociaisdesencadeadossobretodososinteressadospelaviolênciaexplosivadasguerrasaumentamnamesmaproporçãoemqueprogrideadivisãodefunções,equantomaiorforadependênciamútuadosadversários.Porissomesmo,sentimosemnossaépocauma crescente disposição a resolver futuros conflitos entre Estados através de meiosmenosperigosos.Mas émuito claroque emnossosdias, damesma formaque antes, adinâmica da crescente interdependência está impelindo à configuração de Estadosdimensionadospara esses conflitos, à formaçãodemonopólios de força física emáreascadavezmaioresdaTerrae,assim,atravésde todosos terrorese lutas,concorreparaa

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pacificação das mesmas. Conforme mencionado anteriormente, para além das tensõesentreoscontinentese jáempartedespontandonelas, começamaemergiras tensõesdafaseseguinte.Podemosverosprimeiros lineamentosdeumsistemamundialde tensõescompostodealiançaseunidadessupranacionaisdevários tipos,oprelúdiode lutasqueabracem todo o globo e que são as precondições para ummonopóliomundial de forçafísica,paraumaúnicainstituiçãopolíticacentrale,assim,paraapacificaçãodaTerra.

O caso é o mesmo no tocante às lutas econômicas. A livre competição econômica,igualmente, não é, conforme vimos, apenas o oposto da ordem monopolista. Ela estáconstantemente se inclinandoparaalémde simesmanadireçãooposta.Destepontodevista, também, nossa época é tudo menos um ponto final ou culminância, poucoimportandoquantasderrocadasparciais, comoemperíodosde transiçãoestruturalmentesemelhantes, possam ocorrer. Neste aspecto, também, ela abunda em tensões não-superadas, emprocessos inconclusos de integração, cuja duração e curso exato não sãoprevisíveisecujadireçãoapenaséclara:umatendênciadealivrecompetiçãoou,oquesignifica a mesma coisa, a propriedade desorganizada dos monopólios, ser reduzida eabolida, e uma mudança nas relações humanas, através da qual o controle dasoportunidadescessagradualmentedeseroprivilégiohereditárioeprivadodeumaclassealta tradicional e torna-se uma função sob controle social e público. E neste particular,também, por baixo do véu das atuais tensões, as da próxima fase estão se tornandovisíveis, as tensões entre os funcionários de nível superior e médio da administraçãomonopolista,entrea“burocracia”,porumlado,eorestodasociedade,poroutro.

SóquandoessastensõesentreedentrodeEstadosforemdominadaséquepoderemosesperartornar-nosmaisrealmentecivilizados.Nopresente,muitasdasregrasdecondutaesentimentos implantados em nós como parte integral da consciência, do superegoindividual,sãoresquíciodeaspiraçõesaopodereaostatusdegrupostradicionaisenãotêmoutrafunçãoqueadereforçarsuaschancesdeobterpoderemanterasuperioridadedestatus.Elas ajudammembrosdesses grupos a se distinguiremnão apenas atravésdesuasprópriasrealizaçõespessoais—que,commoderação,sãojustificadas—masatravésda apropriação monopolista das oportunidades de obter poder, o acesso ao qual ébloqueado a outros grupos interdependentes. Só quando as tensões entre e dentro dosEstadosforemdominadaséquehaveráapossibilidadedequearegulaçãodaspaixõeseconduta do homem em suas relações recíprocas seja limitada àquelas instruções eproibições que são necessárias para manter o alto nível de diferenciação einterdependência funcional,semoqualmesmoosatuaisníveisdecondutacivilizadanacoexistência humana não poderiam ser mantidos, e ainda menos superados. Só entãohaveráumapossibilidade,também,dequeopadrãocomumdeautocontroleesperadodohomempossaser limitadoàquelas restriçõesquesãonecessáriasa fimdequeelepossavivercomosdemaiseconsigomesmocomumaaltaprobabilidadedeprazereumabaixaprobabilidade demedo— seja dos outros, seja de simesmo. Só com a eliminação dastensõeseconflitosentreoshomenséqueessesmesmos tensõeseconflitosqueoperamdentro dele podem se tornar mais brandos e menos nocivos às suas probabilidades dedesfrutedavida.Nestecaso,nãoprecisará sermaisa exceção, talvezvenhaa tornar-semesmo a regra que o indivíduo possa alcançar o equilíbrio ótimo entre suas paixõesimperiosas,aexigirsatisfaçãoerealização,eas limitaçõesaele impostas(semasquaiscontinuaria a serumanimal selvagemeumperigo tantopara simesmoquantoparaos

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demais)—enfim,possachegaràquelacondiçãoaquecomtantafreqüêncianosreferimoscompalavrasaltissonantes,como“felicidade”e“liberdade”:umaequilíbriomaisdurável,umasintoniamaisfina,entreasexigênciasgeraisdaexistênciasocialdohomem,porumlado, e suas necessidades e inclinações pessoais, por outro. Se a estrutura dasconfigurações humanas, de sua interdependência, tiver essas características, se acoexistênciadelas,queafinaldecontaséacondiçãodaexistênciaindividualdecadauma,funcionaremde talmaneira que seja possível a todos os assim interligados alcançar talequilíbrio,então,esóentão,poderãoossereshumanosdizerarespeitodesimesmos,comalgumajustiça,quesãocivilizados.Atéentão,estarão,namelhordashipóteses,emmeioaoprocessodesetornaremcivilizados.Atéentãopoderãodizer,quandomuito:oprocessocivilizadorestáemandamento,ou,comoovelhod’Holbach:“lacivilisation…n’estpasencoreterminée.”i

______________

a Ver, neste contexto, Norbert Elias, “Problems of Involvement and Dettachment”, British Journal of Sociology, 7(1956),pp.226-52.(Notadoautoràtraduçãoinglesa.)bReferênciaàEscoladeEléa,queteveporprincipaisexpoentesParmênides eZenão, equeconsideravaamutaçãodas coisas comomeraaparência:por trásdomovimento,haveria,comorealidade,oser.(RJR).

cCompreenderessefatotemimportâncianãosóteórica,mastambémprática.Podemosconstatar,commuitafreqüência,diferençasnamedidaemqueopensamentoéinfluenciadopelaspulsões,quandoconsideramosasrelaçõesentreEstadosquevivememdiferentes fasesdodesenvolvimentosocial.Viaderegra,porém,osprincipaisestadistasdesociedadesaltamente diferenciadas elaboram suas estratégias baseados na suposição de que ummesmo nível de contenção, ummesmocódigodeconduta,estápresentenapolíticaexternade todosospaíses.Semsecompreenderemosdiferentesestágiosdoprocessocivilizador,contudo,apolíticainternacionalnecessariamenteteráqueserumtantoirrealista.Masreconheço que não é nada fácil elaborar uma política externa com base no conhecimento dessas diferenças ememotividade. Será necessário umalto grau de experimentação—e de sabedoria—antes que possa sermantido umdiálogopolíticoeficazeumacooperaçãoentresociedadesqueseencontramemníveisdiferentesdedesenvolvimento.

Omesmoseaplicaaoscasosemque,sobtensão,aemotividadeeocarátercaprichosodapolíticaexternadeumpaísdesenvolvido sobem para um nível mais alto do que o considerado no presente como normal nas relações entre osprincipais Estados industrializados. Não se pode dizer que esses níveis no grau de afetividade sejam inteiramentedependentesdediferenciaisnodesenvolvimentoeconômicoouindustrialdospaíses.NasestratégiaspolíticasdaChina,por exemplo, podemos descobrir um nível de autocontenção pelo menos de mesmo grau que o das naçõesindustrializadasmaisdesenvolvidas.Embora,emtermosdedesenvolvimentoeconômico,aChinacontinueatrasada,seuprocessodeformaçãodoEstadoemtermosdeduraçãoecontinuidadeultrapassaodamaioriadassociedadesexistentesemnossotempo.(Notadoautoràtraduçãoinglesa.)dAdeclinantesupremaciadaIgreja,oequilíbriodepoderentreosgovernantesreligiososeseculares—entresacerdoteseguerreiros—pendendoemfavordestesúltimosabriucaminhoparaoquefoiacondiçãosinequanondasecularizaçãodopensamento,semaqualnãopoderiatersurgidoaquiloquetemosemmentequandofalamosem“racionalização”.Aemergêncianãosódeum,masdeumgrupointeirodegrandesEstados territoriaisaltamenteorganizadosecompetitivos,governadosporpríncipesseculares,queconstituiuumadascaracterísticasmaismarcantesdodesenvolvimentoeuropeu,foiumdeseusfatorese,outro,ocrescimentodegrandesmercadosurbanos,deumcomércioa longadistânciaeaformaçãodocapital indispensávelpara tanto.Umcomplexointeirodealavancassociais—alavancasde“racionalização”—atuounadireçãodo fortalecimentodemodosmenosafetivos,menosorientadosparaafantasia,depensamentoeexperiência.Osgrandespioneirosintelectuaise,acimadetudo, os pioneiros filosóficos do pensamento racional, trabalharam de dentro de um poderoso processo demudançasocialquelhesdeudireção,emboratambémtenhamsidoalavancasativasnessemovimento,enãoapenasseusobjetospassivos.Na verdade, temos que levar em consideração toda a confluência de processos básicos que constituíram onúcleododesenvolvimentoglobaldasociedade—processosbásicoscomoodeformaçãoalongoprazodoEstado,deformação de capital, de diferenciação e integração, de orientação, civilização, e outros (Nota do autor à traduçãoinglesa.)eEsteproblemaparticular,importantecomoseja,teráqueserdeixadodelado,porora.Suaelucidaçãoexigeumadescriçãoeanáliseexatasdasmudançasqueaestruturadafamíliaetodoorelacionamentoentreossexossofreramno curso da história do Ocidente. Exige, além do mais, um estudo das mudanças na educação de crianças edesenvolvimentodeadolescentes.Omaterialcoletadoparaesclareceresseaspectodoprocessocivilizador,easanálisesquetornoupossível,foramvolumososdemaiseameaçaramdeslocaralinhadeindagaçãoprincipaldesteestudo.Masencontrarãoseulugaremoutrovolume.

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Omesmoseaplicaàlinhadeclassemédiadoprocessocivilizador,comasmudançasquegerounasclassesburguesasurbanas e na aristocracia não-cortesã senhora das terras.Muito embora, tambémnessas classes, tal transformaçãodacondutaedaestruturadasfunçõespsicológicasestejaligadaaumareestruturaçãohistóricaespecíficadetodootecidosocialdoOcidente,aindaassim—conformejámencionamosváriasvezes—,alinhadeclassemédianão-cortesãdecivilizaçãosegueumpadrãodiferentedalinhacortesã.Acimadetudo,otratamentodasexualidadenaprimeiranãoéomesmoquenaúltima—empartedevidoaumaestruturafamiliardiferenteeatécertopontoporcausadotipodiferentede espírito de previsão que as funções profissionais de classemédia exigem.Algo parecido surge se investigamos atransformaçãocivilizadoradareligiãonoOcidente.Amudançanossentimentosreligiosos,àqualasociologiadedicouaté agora a suamaior atenção,— o aumento da interiorização e racionalizaçãomanifestado nos váriosmovimentospuritanos e protestantes,— obviamente esteve ligada a certasmudanças na situação e estrutura da classemédia. Amudança correspondente no Catolicismo, como se vê, por exemplo, na forma pela qual os jesuítas adquiriram suaposiçãodepoder, parece ter ocorrido emcontactomais estreito comosórgãos centrais absolutistas, deumamaneirafavorecida pela estrutura hierárquica e centralizadora da Igreja Católica. Esses problemas, igualmente, só serãoresolvidosquandotivermosumquadrogeralmaisprecisodoentrelaçamentodessasduaslinhasdecivilização,anão-cortesã e de classe média e a cortesã, deixando de lado por ora o movimento civilizador nos estratos operário ecamponês,queemergiumais lentamenteemuitomais tarde. (Notadoautorà traduçãoinglesa.)fLiteralmente,“umamigomeu” ou “o pobre defunto”. (RJR) g Literalmente, “established” (como em poder estabelecido, ou vigente) e“outsiders” (estrangeiros, no sentido dos que são de fora de um grupo dominante). (RJR) h Enquanto revisava estatraduçãocommeuamigoJohanGoudsblom, tive, repetidamente,queresistirà tentaçãodemudaro textooriginal,deacordo com o atual estado demeus conhecimentos. A tentação tornou-se especialmente forte quando chegamos aosproblemas de unidades sociais em ascensão, discutidos nestas páginas, e à influência que a ascensão social, oualternativamente, a hegemonia social, exerce sobre o código social das mesmas, especialmente sobre as restriçõesinerentesaeste.Osproblemasdiscutidosacimaformamatualmentepartedeumateoriadenativos-estrangeiros.Nemtodasasformasdeopressãosocialdeumgrupoporoutroassumemaformaderelaçõesdeclasse.Nopresente,tenta-sefreqüentementeutilizaroaparatoconceitualdesenvolvidoapropósitodasrelaçõesdeclassesparacobrirtodasasformasde opressão de grupo ou, alternativamente, de emancipação de grupos.Não obstante, omodelo de classe é limitadodemais. Precisamos de um conceito geralmais amplo para levar em conta as variedades de opressão e ascensão degrupos.Julgueiútilutilizarotermo“relaçãonativos-estrangeiros”comoumconceitomaisabrangente.Comsuaajuda,podemosanalisarmaisclaramenteosaspectoscomunsdadominaçãoesujeiçãodegrupos,bemcomoascaracterísticaspróprias de cada tipo particular. (Nota do autor à tradução inglesa.) i “A civilização… ainda não está completada.”(RJR)

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Notas1.JamesWestfallThompson,EconomicsandSocialHistoryofEuropeintheLatterMiddleAges(1300-1530)(Nova

YorkeLondres,1931),pp.506-7.

2.Estefatoéexemplificadopelasconseqüênciasqueresultaramdaaçãodosestadosoudofiscocarolíngio.Elasnãoforam, talvez, tão extremas como parecem à vista da citação abaixo, mas, sem dúvida alguma, a situação do fiscocarolíngiodesempenhouumpapelnaformaçãodefronteirasnacionais:

O caráter difuso do fisco carolíngio… transformou o fisco numa espécie de imensa rede a envolver o Império. Suadivisãoedispersãoconstituíramumfatormaisimportante,nadissoluçãodoImpérioFranco,doqueaambiçãopolíticalocaldosnobresproprietáriosdeterras…

Ofatohistóricodequeocoraçãodo fisco se situassenaEuropaCentral explicaasdivisõesdaEuropaCentralnoséculoIXetornouessasregiõesocampodebatalhadereisantesquesetornassemumcampodebatalhaentrenações…

AfronteiraqueseparouafuturaFrançadafuturaAlemanhafoitraçadanoséculoIXporqueomaiorblocodofiscosesituavaentreelas…

JamesWestfallThompson,EconomicandSocialHistoryoftheMiddleAges(300-1300)(Nova York e Londres, 1928), pp. 241-2. Cf. do mesmo autor: The Dissolution of theCarolingianFisc(Berkeley:UniversityofCaliforniaPress,1935).

3.ALuchaire,LespremiersCapétiens(Paris,1901),p.180.

4.C.Petit-Dutaillis,LamonarchieféodaleenFranceetenAngleterre(Paris,1933),p.8,commapaanexo.ParadetalhessobreafronteiralestedoImpérioFrancodoOcidenteesuas modificações, cf. Fritz Kern,Die Anfänge der Französischen Ausdehnungspolitik(Tübingen,1910),p.16.

5. Paul Kirn, Das Abendland vom Ausgang der Antike bis zum Zerfall desKarolingischenReiches,Propyläen-Weltgeschichte,vol.3(Berlim,1932),p.118.

6. Brunner, Deutsche Rechtsgeschichte, citado por A. Dopsch, Wirtschaftliche undsozialeGrundlagendereuropäischenKulturentwicklung(Viena,1924),parte2,pp.100-1.

7. A. Dopsch, Wirtschaftliche und soziale Grundlagen der europäischenKulturentwicklung aus der Zeit von Cäsar bis auf Karl denGrossen (Viena, 1918-24),parte2,p.115.

8.Kirn,op.cit.,p.118.

9.A.vonHofmann,PolitischeGeschichtederDeutschen(StuttgarteBerlim,1921-8),vol.1,p.405.

10.ErnstDümmler,GeschichtedesostfränkischenReiches(Berlim,1862-88),vol.3,p.306.

11.PaulKirn,PolitischeGeschichtederdeutschenGrenzen(Leipzig,1934),p.24.

12.F.Lot,LesderniersCarolingiens (Paris, 1891), p. 4; ver tambémJ.Calmette,Lemondeféodale(Paris,1934),p.119.

13.Beaudoin,citadoporJ.Calmette,Lasociétéféodale(Paris,1932),p.27.

14.Luchaire,op.cit.,pp.176-7.UmesboçodadistribuiçãododomíniopolíticoàépocadeHugoCapetoédadoporM.Mignetno“EssaisurlaformationterritorialeetpolitiquedelaFrance”,NoticesetMémoiresHistoriques(Paris,1845),vol.2,pp.154esegs.

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15.ALuchaire,HistoiredesInstitutionsMonarchiquesdelaFrancesouslespremiersCapétiens(987-1180)(Paris,1883),vol.2.NotesetAppendices,p.329.

16.KarlHampe,AbendländischesHochmittelalter, PropyläenWeltegeschichte, vol. 3(Berlim,1932),p.306.

17.Kirn,DasAbendlandvomAusgangderAntikebiszumZerfalldesKarolingischenReiches,p.119.

18. A. Dopsch, Die Wirtschaftsentwicklung der Karolingerzeit, vornehmlich inDeutschland (Weimar, 1912), vol. 1, p. 162; cf. também a descrição geral da mansãofeudal e da aldeia emKnight, Barnes e Flügel,Economic History of Europe (Londres,1930),“TheManor”,pp.163esegs.

19.MarcBloch,Lescaractèresoriginauxdel’histoireruralefrançaise(Oslo,1931),p.23.

20. Dopsch, Wirtschaftlich und soziale Grundlagen der europäischenKulturentwicklungausderZeitvonCäsarbisaufKarldenGrossen,pt.2,p.309:“Quantomaiorsetornavaarealbasedepodereconômicaesocialdessesfuncionários,menospodiaamonarquiapensaremtirardafamíliadotitularocargo,porocasiãodesuamorte.”

21.Calmette,Lasociétéféodale,p.3.

22.Ibid.,pp.4-5.Cf.sobreesseproblemaocontrasteentreosfeudalismoseuropeuejaponêsemW.C.Macleod,TheOriginandHistoryofPolitics(NovaYork,1931),pp.160e segs.Neste caso, reconhecidamente, a explicação da feudalização européia é buscadaantes nas instituições precedentes do fim do período romano do que em forçascontemporâneasde integração: “Numerososautoresparecemacreditarqueo feudalismoeuropeudoOcidentetevesuaorigeminstitucionalnasinstituiçõesteutônicaspré-romanas.Expliquemos,porém,queéfatoqueosinvasoresgermânicossimplesmenteaproveitaraminstituiçõescontratuaisdaúltimafasedoImpérioRomanoque…”(p.162).Oprópriofatode que instituições e relações feudais análogas tenham surgido nas partes as maisdiferentes do mundo só pode ser plenamente compreendido através de uma claraintrovisão da força irresistível das relações concretas e da dinâmica da configuraçãoespecífica,esomenteaanálisedelaspoderáexplicarporqueafeudalizaçãodiferiuumadeoutraemcertasmaneiras.

Outra comparação entre diferentes sociedades feudais é encontrada em O. Hintze,WesenundVerbreitungdesFeudalismus,SitzungsberichtederPreussischenAkademiederWissenschaften,phil.Hist.Klasse (Berlim,1929),pp.321e segs.Oautor, influenciadopelas idéias de Max Weber sobre a metodologia da pesquisa histórica e social, tenta“descreverotipo ideal subjacenteaoconceitodefeudalismo”.Mas,emboraesseestudocomece de fato a transformar o método historiográfico mais antigo em outro maisinteressadoemestruturassociaisreaisetenhaporissomesmodadoorigemaintrovisõesespecialmenteúteis,acomparaçãoque fazdediferentessociedades feudaiséumdentremuitos exemplos para as dificuldades que surgem quando o historiador adota as idéiasmetodológicas orientadoras de MaxWeber e tenta— nas palavras de Otto Hintze—construir “abstrações e tipos visuais”. As semelhanças que o observador de diferentespovos e sociedades encontra não são tipos ideais que têm, em certo sentido, de sermentalmenteconstruídos,masumparentesco real, existente, entreasprópriasestruturas

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sociais. Se falta isso, fracassa todo conceito de tipos do historiador. Se temos quecontrapor outro conceito a esse de “tipo ideal”, escolheríamos o de “tipo real”. Asemelhançaentrediferentessociedadesfeudaisnãoéumprodutoartificialdopensamento,mas, reiterando-o, resulta do fato de que formas semelhantes de aglutinação socialapresentamfortetendênciaasedesenvolveremdeumamaneiraque,defato,enãoapenas“na idéia”, produz padrões correlatos de relacionamento e instituições em distintasocasiõeselocaisdasociedadeglobal.

Umbomnúmerodeexemplos,pelosquaissougratoaRalphBonwit,demonstrouumanotávelsemelhançaentreasforçasdoentrelaçamentosocialqueresultaramnasrelaçõeseinstituiçõesfeudaisdoJapãoeasestruturaseforçasqueatuaramnofeudalismoocidental.Uma análise estrutural comparativa desse tipo seria um método muito mais útil paraexplicaraspeculiaridadesemqueasinstituiçõesfeudaisdoJapãoesuamudançahistóricadiferemdoquesucedeunoOcidente.

Resultados semelhantes foram produzidos por uma investigação preliminar dasociedade guerreira dos tempos de Homero. A fim de explicar a produção de grandesciclosépicos—paramencionarapenasesteaspecto—nasociedadeantigaenasociedadecavaleirosadoOcidente,nãoprecisamosdequalquerhipótesebiológicaespeculativa,daidéiadeuma“juventude”dos “organismos” sociais.Será suficiente examinar as formasespecíficas da vida social que se desenvolveram nas cortes feudais demédio e grandeporteouemcampanhasmilitareseviagens.Osbardosemenestréis,comseusrelatosemverso do destino e façanhas heróicas de grandes guerreiros, transmitidos por via oral,tiveram na vida diária dessas sociedades marciais um lugar e função específicos quediferiam,porexemplo,dosdoscantoresecançõesdetriboscujosmembrosviviammaisintimamenteligados.

Obtemostambém,deumângulodiferente,acessoàsmudançasestruturaisnasantigassociedades marciais examinando mudanças estilísticas nos vasos e suas pinturas, noscomeços da Antiguidade. Quando, por exemplo, na pintura de vasos originários dedeterminadosperíodos,aparecemelementos“barrocos”,comgestosevestuáriosafetadosou — se a expressão for positiva — refinados, devemos, em vez de supor um“envelhecimento” biológico da sociedade em causa, pensar em processos dediferenciação,naemergênciadeCasasmaisricas,distinguindo-sedamassadasociedademarcial, e numa maior ou menor transformação de guerreiros em cortesãos, ou,dependendo das circunstâncias, procurar uma influência colonizadora de cortes maispoderosas. Introvisões das tensões e processos específicos na sociedade feudal que adocumentação mais abundante sobre o antigo período europeu torna possível, podem,numa palavra, aguçar e aperfeiçoar, em alguns aspectos, nossa observação de materialorigináriodaAntiguidade.Mas, claro, suposiçõesdesse tipodevem,em todososcasos,basear-se num rigoroso exame do material relativo à história estrutural da própriasociedadeantiga.

Estudos comparativos de sociogênese ou de história estrutural desse tipo malcomeçaram.Indispensávelaoseusucessoseráumainiciativaqueétornadamuitodifícilpelaexcessivaseparaçãoentreasdisciplinasacadêmicasepelafaltadecolaboraçãoentreelas,quetêmcaracterizadoapesquisaatéagora.Essencialparaacompreensãodasantigassociedadesfeudais,esuaestrutura,porexemplo,seráumprecisoestudocomparativodas

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sociedades feudais vivas, antes que seja tarde demais. O profundo conhecimento dedetalheseconexõesestruturaisnecessárioparaacompreensãodequalquersociedade,queo material originário do passado é fragmentado demais para fornecer, só se tornarádisponívelparaainterpretaçãoseaetnologiabasearsuaspesquisasmenosexclusivamenteemsociedadesmaissimples,em“tribos”,seahistóriaseocuparmenoscomsociedadeseprocessosdopassado,eseambasasdisciplinas, juntas,voltaremaatençãoparaaquelassociedades vivas que, em sua estrutura, mais se assemelham à sociedade medieval doOcidente.Asduas,juntas,deveminvestigaraestrutura,nosentidomaisestritodapalavra,das dependências funcionais através das quais pessoas que nela vivem se aglutinam decertas maneiras, e as forças inerentes ao entrelaçamento que, em certas circunstâncias,provocamamudançadessasdependênciaserelaçõesemdireçãomuitoespecífica.

23.obreestadiscussãoeasubseqüente,cf.A.eE.Kulischer,KriegsundWanderzüge(BerlimeLeipzig,1932),pp.50esegs.

24. J.B. Bury, History of the Eastern Roman Empire (1912), p. 373, citado porKulischer,op.cit.,p.62.

25.HenriPirenne,Lesvillesdumoyenâge(Bruxelas,1927).

26.Kirn,PolitischeGeschichtederdeutschenGrenzen.Paramaioresdetalhessobreasdiferenças em ritmo e estrutura entre as feudalizações alemã e francesa, cf. J. W.Thompson,“GermanFeudalism”,AmericanHistoricalReview, vol. 28, 1923, pp. 440 esegs.“OqueoséculoIXfezpelaFrançaparatransformá-laempaísfeudalnaAlemanhasóaconteceunasguerrascivisdoreinadodeHenriqueIV.”Ibid.,p.444.

Nestecaso,reconhecidamente(e,maistarde,porexemplo,emW.O.Ault,EuropeintheMiddleAges,1932),odeclíniodaáreafrancadoOcidenteseexplicaacimade tudoemtermosdemaiorameaçaexterna:“AGermâniaestavamenosexpostaaataquesexternosepossuía uma constituiçãomais sólida que a da França.O feudalismo germânico não setornouumsistematãorígidoeanquilosadocomoofrancês.A‘Velha’FrançadesmoronounosséculosIXeX;a‘Velha’Alemanha,ancoradaemantigosducados,quepermaneceramintactos,conservousuaintegridade”(Thompson,op.cit.,p.443).Outrofatordecisivonarapidezenograudadesintegraçãofeudalnaáreafranca,porém,foiprecisamenteofatodeque,depoisdeosnormandosteremseassentado,asinvasõesportribosestrangeirase,por conseguinte, a ameaça externa, foram menores do que na área franca oriental. Aquestãoseáreasmaiores,umavezunificadas,decaemmaislentamenteese,aocontrário,uma vez ocorrida a decadência, elas se reintegram com maior dificuldade do que asmenores,esseproblemadedinâmicasocial,enfim,precisaseraindainvestigado.Mas,dequalquermodo,ladoaladocomadebilitaçãogradualdaCasaCarolíngiaprovocada,pelomenosemparte,pelainevitávelreduçãodesuariquezanocorrerdasgerações,pelaperdade parte de suas terras a fimde pagar por serviços oupela sua divisão entre diferentesmembrosdafamília(esteassunto,igualmente,precisaserestudadoemmaioresdetalhes),iniciou-se uma fase de desintegração que se estendeu por todo o domínio carolíngio.ÉpossívelquemesmonoséculoIXessadesintegraçãodaáreafrancadoOcidentetenhaidomaislongedoquemaistardenaregiãogermânica.Masela,comcerteza,sedetevemaisrapidamente nesta última exatamente devido à maior ameaça externa. Durante longoperíodo, essa ameaça proporcionou a chefes tribais individuais a oportunidade de setransformarememfortesgovernantescentrais,graçasasucessosmilitaressobreinimigos

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comuns e, dessa maneira, revigorou mais uma vez e ampliou a organização centralcarolíngia. Durante algum tempo, a possibilidade de expansão colonial, a aquisição denovas terras na fronteira oriental da região germânica, atuaram namesma direção parafortalecer a autoridade central. Na área franca do Ocidente, em contraste, a partir doséculo IX, ambos os fatores foram menos importantes: a ameaça de invasão de tribosestrangeiras e a possibilidade de uma expansão conjunta além-fronteiras.Proporcionalmente menor foi a possibilidade de formação de uma monarquia forte. A“missão real” estava faltando e, assim, a desintegração feudal ocorreu mais rápida ecompletamente.”(Cf.pp.25esegs.e41-2destevolume.)

27.ELevasseur,Lapopulationfrançaise(Paris,1889),vol.1,pp.154-5.

28.Bloch,op.cit.,p.5.

29.W.Cohn,DasZeitalterderNormanneninSicilien(BonneLeipzig,1920).

30.H.See,FranzösischeWirtschaftsgeschichte(Jena,1930),p.7.

31.KurBreysig,KulturgeschichtederNeuzeit (Berlim,1901),vol.2,pp.937esegs.,especialmenteap.948.

Seasaçõesdastrêsmonarquiasforemcomparadas…procurando-seasrazõesdeseussucessosdiferentes,acausafinalnãoseráencontradaemeventosisolados.Amonarquiaanglo-normandabeneficiou-sedeumacircunstânciaquenem estava em seu poder nem no de qualquer sermortal, mas fundamentava-se em toda a estrutura da históriainterna e externa da Inglaterra. Em virtude do fato de que, em 1066, um novo Estado tenha sido fundado naInglaterra a partir dos próprios alicerces, tornou-se possível usar as experiências recolhidas pelas grandesmonarquias,acimadetudo,pelamaispróxima,afrancesa.Afragmentaçãodaaltanobrezaeahereditariedadedoscargosforam,emcertosentido,apenasasconclusõesqueamonarquianormandaretiroudodestinodeseuexemplomaispróximo.

32. Pirenne, Les villes du moyen âge, p. 53. A opinião oposta foi adotada maisrecentementeporD.M.Petrusevki,“StrittigeFragendermittelalterlichenVerfassungsundWirtschaftsgeschichte”,ZeitschriftfürdiegesamteStaatswissenschaft,vol.85(Tübingen,1928),pp.468esegs.Estetrabalhonãodeixadeterinteresseporquanto,justamenteporsemostrarunilateralnadireçãooposta,põenadevidaperspectivacertasobscuridadesnavisãohistóricatradicionalealgumasinadequaçõesdosconceitosemvoga.

Assim,porexemplo,aidéiadequeascidadesdaAntiguidadehaviamdesaparecidoporcompleto nos princípios da IdadeMédia é refutada por outra idéia, embora nãomenosimprecisa.Cf.aversãomaisequilibradadeH.Pirenne,EconomicandSocialHistoryofMedievalEurope(Londres,1936),p.40:“QuandoainvasãoislâmicafechouosportosdomarTirrênio…aatividademunicipalrapidamenteseextinguiu.SalvonosuldaItáliaeemVeneza, onde foi mantida graças ao comércio com Bizâncio, ela desapareceu em todaparte. As cidades continuaram a existir, mas perderam sua população de artesãos emercadores e, com eles, tudo o que sobrevivera da organização municipal do ImpérioRomano.”

À teseestática, segundoaquala“economiade troca”ea“economiamonetária”nãoexpressaram a direção de um processo histórico gradual, mas dois estados físicosseparados, sucessivos e irreconciliáveis da sociedade (cf. p. 34 e pp. 49-50, acima),Petrusevskiopôsatesedequejamaisexistiuessatal“economiadetroca”:“Nãoqueremosdiscutir aqui em detalhes o fato de que, como demonstrouMaxWeber, a economia detrocaconstituiuumadessasutopiaseruditasquenãosónãoexistemenuncaexistiramna

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realidade, mas que, ao contrário de outras… que são também generalizações utopistasdevidoaoseucaráter lógico, jamaispodemterqualqueraplicaçãoà realidadeconcreta”(p.488).Aessaconcepção,podemosoporaversãodePirenne(op.cit.,p.8):Dopontodevistaeconômico,ainstituiçãomaisnotávelecaracterísticadessacivilizaçãofoiograndeEstado.Suaorigem,claro,émuitoantigaeéfácilcomprovar-lheafiliaçãoaumpassadomuito remoto…[p. 9]. O novo foi a maneira como ele funcionou a partir dodesaparecimento do comércio e das cidades. Enquanto o comércio foi capaz detransportar-lhe os produtos e as cidades de fornecer-lhe ummercado, o grande Estadocomandoueconseqüentementelucroucomavendaregularforadesuasfronteiras…masagoracessoudeassimagirporquenãohaviamaismercadoresnemcitadinos…agora,quetodosviviamdesuaprópriaterra,ninguémsedavaaotrabalhodecompraralimentosnoexterior…Assim,cadaEstadosededicouaotipodeeconomiaquetemsidodescrita,comgrande inexatidão, como “economia fechada na grande propriedade” e que foi, narealidade,simplesmenteumaeconomiasemmercados.

Finalmente,Petrusevskiopõe—àtesedequeo“feudalismo”ea“economiadetroca”foramduasdiferentesesferas,oupatamares,deexistênciadasociedade,estaúltimacomainfra-estrutura que produziu ou causou a primeira— sua teoria segundo a qual os doisfenômenos nada têm a ver entre si: “… idéias que se chocam inteiramente com o fatohistórico, tal como a de subordinação do feudalismo à economia de troca ou suaincompatibilidadecomumaorganizaçãoestatalabrangente”(p.488).

Notextoprecedente,tentamosdemonstraroestadorealdascoisas.Aformaespecíficade economia de troca que prevaleceu nos começos da Idade Média, as economiasrelativamente indiferenciadas e sem mercados associadas às grandes cortes, e a formaespecífica da organização política e militar que denominamos feudalismo, nada maisforamdoquedoisdiferentesaspectosdasmesmasformasderelacionamentoshumanos.Podem ser conceitualmente distinguidos como dois diferentes aspectos dos mesmosrelacionamentoshumanos,mas,mesmoconceitualmente,nãopodemserseparados,comoduassubstânciasqueexistissemindependentementeumadaoutra.Asfunçõespolíticasemilitares do senhor feudal e sua função como proprietário de terra e de servos foramprofundamente interdependentes e indissoluvelmente ligadas. E, de igual maneira, asmudançasquegradualmenteocorreramnasituaçãodessessenhoreseemtodaaestruturadessasociedadenãopodemserexplicadasexclusivamenteemtermosdeummovimentoautônomodasrelaçõesefunçõeseconômicasouexclusivamenteemtermosdemudançasdasfunçõespolíticasemilitares,masapenasemtermosdoentrelaçamentodeatividadeshumanasqueabrangemessasduasáreasinseparavelmenteligadasdefunçõeseformasderelacionamento.

33.Cf. a“Introdução”,deautoriadeLouisHalphen,emA.Luchaire,Les communesFrançaisesàl’époquedesCapétiensdirects(Paris,1911),p.viii.

34.Ibid.,p.ix.

35.Ibid.,p.18.

36.HansvonWerveke,“Monnaie,lingotsoumarchandises?Lesinstrumentsd’échangeauXIe etXIIe siècles”,Annualesd’histoireéconomiqueet sociale (setembro, 1932), n.17,p.468.

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37.Ibid.Oprocessocorrespondentenadireçãooposta,orecuonousododinheiroeoavanço dos pagamentos em produtos naturais, começou logo no início da Antiguidademaisrecente:“QuantomaisseadiantavaoséculoIII,maisrápidosetornavaodeclínio.Aúnicamoedaquepermaneciaemcirculaçãoeraoantonianus…”(F.Lot,Lafindumondeantique(Paris,1927),p.63:“Ossaláriosdoexércitotendiamcadavezmaisaserpagosemprodutosdaterra”(p.65)…“Quantoàsconseqüênciasinelutáveisdeumsistemaquepermite que serviços sejam remunerados apenas como pagamento em espécie, adistribuiçãodeterra,elasjásãofacilmentepercebidas:levamaoqueéchamadoderegimefeudalouaumregimeanálogo(p.67).”

38.M.Rostovtsev,The Social andEconomicHistory of theRomanEmpire (Oxford,1926),pp.66-7,p.528enumerososoutrostrechos.Cf.ÍndiceRemissivo:Transporte.

39.LefebvredesNoettes,L’Attelage.Lechevaldeselleàtraverslesâges.Contributionàl’histoiredel’esclavage(Paris,1931).

Os estudos de Lefebvre des Noettes, tanto por causa de seus resultados quanto dasdireções da pesquisa, revestem-se de uma importância que dificilmente pode sersuperestimada.Alémdovalordessesresultados,quesemdúvidaprecisamdeconfirmaçãoemcertospontos,nãotemgrandeimportânciaqueoautorponhadecabeçaparabaixoaconexão causal, vendo no desenvolvimento da tecnologia da tração animal a causa daeliminaçãodaescravidão.

Indicaçõesquantoàscorreçõesnecessáriasseencontramnacríticaaolivro,deautoriadeMarcBloch,“Problèmesd’histoiredestechniques”,Annalesd’histoireeconomiqueetsociale (set.,1932).Emespecial,doisaspectosdo trabalhodeLefebvredesNoettessãoem parte acentuados e até certo ponto retificados: 1.A influência daChina eBizânciosobreasinvençõesdaIdadeMédiaparecemexigirexamemaisacurado.2.Aescravidãodeixara de desempenhar um papel importante na estrutura dos começos do mundomedieval,muitoantesdoaparecimentodosnovosarreios.“Naausênciadequalquerclarasucessão temporal, de quemodo podemos falar em uma relação de causa e efeito? (p.484).”UmrelatoabrangentedosresultadosbásicosdotrabalhodeLefebvredesNoettesna Alemanha é encontrado em L. Löwenthal, “Zugtier und Sklaven”, Zeitschrift fürSozialforschung(Frankfurt/Main,1933),n.2.

40. Lefebvre des Noettes, “La ‘Nuit’ du moyen âge et son inventaire”,Mercure deFrance(1932),vol.235,pp.572esegs.

41.VonWerveke,op.cit.,p.468.

42.A.Zimmern,SolonandCroesus,andotherGreekessays(Oxford,1928),pp.113-14.Cf.tambémA.Zimmern,TheGreekCommonwealth(Oxford,1931).

Háalgumtempovemsendoenfatizado—esemdúvidacorretamente—queemRomatantocidadãoscomoescravosfaziamserviçosmanuais.Acimadetodas,apesquisadeM.Rostovtsev (cf. The Social and Economic History of the Roman Empire), e estudosespecializadoscomoodeR.H.Barrow,Slavery in theRomanEmpire) (Londres,1928),como, por exemplo, as pp. 124 e segs., esclareceram essas relações.Mas o fato de oscidadãos trabalharem, pormaior que se possa estimar a participaçãode seu trabalhonaproduçãototal,demodoalgumdesmenteoqueantesseexpôscomacitaçãodotrabalhodeA.Zimmern—ofatodequeosprocessoseregularidadessociaisnumasociedadeonde

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o trabalhomanual é realizado em extensão considerável por escravos diferemdemodomuito específico daqueles encontrados numa sociedade na qual todo o trabalho nascidades, pelo menos, é realizado exclusivamente por homens livres. Como tendênciasocial,oanseiodoshomenslivresdesedistanciaremdotrabalhorealizadoporescravos,comaresultanteformaçãodeumaclassede“pobresociosos”nasociedadeantiga,comotambém nas modernas que possuem um grande setor de trabalho escravo, é sempreidentificável.Nãoédifícilcompreenderque,sobapressãodapobreza,umcertonúmerodecidadãosaindaassimsevejaobrigadoarealizaromesmotrabalhodosescravos.Masnãoémenosclaroquea situaçãodeles, tal comoados trabalhadoresmanuaisemgeralnessasociedade,édecisivamente influenciadapelaexistênciade trabalhoescravo.Esseshomenslivres,oupelomenospartedeles,sãoobrigadosaaceitarcondiçõessemelhantesàdosescravos.Dependendodonúmerodeescravosdisponíveisnasociedadeedograudeinterdependênciadeseutrabalhocomotrabalhoescravo,oshomenslivresenfrentamummaioroumenorgraudepressãocompetitivadotrabalhoservil.Esta,também,éumadasregularidades estruturaisde todas as sociedades escravistas. (Cf. tambémLot,La fin dumondeantique,pp.69e segs.)43.SegundoA.Zimmern, a sociedadegreganoperíodoclássico não era escravista no sentido típico da palavra: “A sociedade grega não eraescravista;maselatinhaumabasedeescravospararealizarostrabalhosmaisdegradantes,enquantoogrupoprincipaldosassim-chamadosescravosconsistiaemaprendizestrazidosàforçadoexteriorparaajudar,quaseemtermosiguaiscomseussenhores,nacriaçãodabasematerial de uma civilização da qual, daí em diante, iriam participar” (Solon andCroesus,pp.161-2).

44.Pirenne,Lesvillesdumoyenâge,pp.1esegs.

45.Ibid.,pp.10esegs.

46. Ibid., p. 27. Esse “recurso às áreas interioranas” e sua importância para odesenvolvimentodasociedadeocidentalencontramconfirmaçãonofatodequeaevoluçãoda tecnologia do transporte por terra, além do estado a que chegou na Antiguidade,começou,comopodemosperceberhoje,cercadeumséculomaiscedodoqueatecnologianáutica.Aprimeirainiciou-seentre1050e1100e,asegunda,evidentementenãoantesde1200.Cf.LefebvredesNoettes,Delamarineantiqueàlamarinemoderne.Larévolutiondugovernail(Paris,1935),pp.105esegs.Cf.tambémE.H.Byrne,Genoeseshippinginthetwelfthandthirteenthcenturies(Cambridge,Mass.,1930),pp.5-7.

47.ALuchaire,LouisVII,PhilippeAuguste,LouisVIII(Paris,1901),p.80.

48.Calmette,Lasociétéféodale,p.71.Cf.domesmoautor,Lemondeféodale.

49. O Direito é naturalmente, devido à sua fixação por uma máquina judiciáriaindependente e à existência de corpos de especialistas com interesses adquiridos napreservação do status quo, relativamente impermeável ao movimento e à mudança. Aprópria segurança legal, sempre desejada por parte considerável da sociedade, até certopontodependedaresistênciadoDireitoàmudança.Essaimobilidadeé,defato,reforçadapela lei.Quantomaiores as áreas eonúmerodepessoas integradas e interdependentes,mais necessário se torna um Direito uniforme que se estenda por essas áreas — tãonecessário, por exemplo, como uma moeda uniforme. Quanto mais fortemente, porconseguinte,oDireitoeoJudiciário,que,comoamoeda,tornam-seórgãosdeintegração

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egeradoresdeinterdependência,seopõemaqualquermudança,maisgravessetornamasperturbações e deslocamentos de interesses que qualquer mudança traz consigo. Essacaracterísticacontribui tambémparaofatodequeameraameaçadeforçapelosórgãos“legítimos”depoderésuficiente,durantelongosperíodos,parafazercomqueindivíduosegrupossociaisinteirossecurvemdiantedoquefoiantesestabelecidocomonormadaleiedapropriedade,numdeterminadoestágiodasrelaçõessociaisdepoder.Sãotãograndesosinteressesidentificadoscomapreservaçãodasrelaçõesjurídicasedepropriedadeemvigor,eétãoclaramentesentidoopesoqueoDireitorecebedacrescenteintegração,queostestesconstantes,aqueseencontramsubmetidasasrelaçõesdepodernaslutasfísicaspara as quais se inclinam as pessoas em sociedades menos interdependentes, sãosubstituídos por uma disposição duradoura de obedecer à lei em vigor. Só quandosublevações e tensões na sociedade se tornaram extraordinariamente grandes, quando ointeressenapreservaçãodoDireitoemvigorsetornouincertoemgrandessegmentosdasociedade,sóentão,freqüentementeapósintervalosqueduraramséculos,équegruposnasociedade começam a submeter a teste, em lutas físicas, se o Direito tradicionalcorrespondeàsreaisrelaçõesdepoder.

Notempoemqueasociedadepossuíaumaeconomiapredominantementedetrocaeaspessoas erammenos interdependentes e quando, por conseguinte, a rede bem realmasaindanãovisualmenterepresentáveldasociedadeantepunhaaoindivíduosuamaiorforça,o poder social que respaldava cada reclamo legal do indivíduo tinha que estar sempremuitovisível.Todososproprietáriosdeviamestardispostosaprovaremcombate físicoque ainda possuíam poder militar e social suficientes para dar embasamento a seu“reclamo legal”. Correspondendo a um entrelaçamento mais estreito das atividadeshumanasnumafaseposterioreemáreasmaisvastas,cobertaspormeiosdecomunicaçãorazoáveis,contudo,surgiuumDireitoque,namaiorparte,ignoroudiferençaslocaisentreindivíduos,ochamadoDireitoGeral,istoé,umDireitoaplicáveleválidoigualmenteemtodaaárea,eparatodasaspessoasqueahabitavam.

Jáotipodeentrelaçamentoedependênciasocialvigentenasociedadefeudal,comsuaeconomia predominantemente de troca, confiava a pequenos grupos e, muitas vezes, aindivíduos isolados, funções que são hoje exercidas pelo “Estado”. Por isso mesmo, o“Direito”eratambémincomparavelmentemaisindividualizadoelocal.Tratava-sedeumaobrigação e de um laço acertados por este suserano e aquele vassalo, este grupo derendeiroseaquelesenhor,estacorporaçãopúblicaeaquelesenhor,estaabadiaeaqueleduque.Umestudodessas“relações jurídicas”proporcionaumaidéiamuitoclaradoquetemosemmentequandodizemosque,nessafase,aintegraçãosocialeainterdependênciaerammenoresecorrespondentementediferentearelaçãoentreumhomemeoutro.

Devemos ter cuidado (diz Pirenne, por exemplo, em Les villes du moyen âge, pp. 168-9) para não atribuirimportânciaexageradaàsCartasurbanas.NemnaFlandresnememqualqueroutraregiãodaEuropa,elascontêmatotalidadedoDireitourbano.Limitam-se a fixar seus contornosgerais, formulandoalgunsprincípios essenciais eresolvendoalguns conflitosdemaior importância.Omaisdasvezes, foramprodutode circunstâncias especiais elevaramemcontaapenasquestõesqueestavamsendodebatidasnomomentodesuaredação…Seosburguesesasdefenderamséculosa fio,comextraordináriozelo, issoaconteceuporqueelaseramopaladiumde sua liberdade,porquelhespermitiamjustificararevoltasefossemvioladas,masnãoporquecontivessemtodooDireito.Foram,porassimdizer,nãomaisdoqueoseuesqueleto.Emvoltadesuasdisposiçõesproliferouumaricavegetaçãodecostumes,usos,eprivilégiosquenãoerammenosindispensáveispelofatodenãoconstaremporescrito.

IssoétãoverdadeiroqueumbomnúmerodeCartaspreviaereconheciaantecipadamenteodesenvolvimentodoDireito urbano… Em 1127, o conde de Flandres concedeu aos burgueses de Bruges “ut de die in diem

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consuetudinarias leges suas corrigerent”, isto é,permissãopara ampliaremdia adiao âmbitode suasordenaçõesmunicipais.

Aquivemosmaisumavezque,nessediferenteníveldeintegração,formaçõessociaisdedistintaordemdemagnitude,umacidadeeumgrandesenhorfeudal,mantinhamentresiomesmotipoderelaçõesquehojesóprevalecementre“Estados”,equeseusacordosjurídicosdemonstravamomesmopadrãoquehojevigeentreestesúltimos,seguindodemodomuitodiretomudançasdeinteresseepodersocial.

50.almette,Lasociétéféodale,pp.70-1.

51.A.Luchaire,La société française au temps dePhilippeAuguste (Paris, 1909), p.265.

52.C.H.Haskins,TheRenaissanceoftheTwelfthCentury(Cambridge,1927),p.55.

53.Ibid.,p.56.

54.Ibid.

55.EduardWechssler,DasKulturproblemdesMinnesangs(Halle,1909),p.173.

56.Ibid.,p.174.

57.Ibid.,p.143.

58.Ibid.,p.113.

59.HenningBrinkmann,EntstehungsgeschichtedesMinnesangs(Halle,1926),p.86.

60.Wechssler,op.cit.,pp.140-1.

61.Luchaire,LasociétéfrançaiseautempsdePhilippeAuguste,p.374.

62.Ibid.,p.379.

63.Ibid.,p.380.

64. Pierre de Vaissière, Gentilshommes campagnards de l’ancienne France (Paris,1903),p.145.

65.Brinkmann,op.cit.,p.35.

66.Wechssler,op.cit.,p.71.

67. Ibid., p. 74. Analogamente, em Marianne Weber, Ehefrau und Mutter in derRechtsentwicklung(Tübingen,1907),p.265.

68.DeVaissière,op.cit.,p.145.

69.Wechssler,op.cit.,p.214.

70.Brinkmann,op.cit.,pp.45esegs.,61,86esegs.Cf.sobreesteassuntoenoquesesegue,C.S.Lewis,TheAllegoryofLove:aStudyinMedievalTradition(Oxford,1936),p.11.

Anovidadepropriamentedita,eunãopretendoexplicar.Mudançasreaisemsentimentoshumanossãomuitoraras,masacreditoqueocorrem,eestaéumadelas.Nãoestoucertose têm“causas”,seporcausaentendemosalgumacoisa que explicaria inteiramente o novo estado de coisas e, assim, o que parecia constituir sua novidade. Dequalquer modo, é claro que fracassaram até agora os esforços dos eruditos para encontrar uma origem para oconteúdodapoesiaamorosaprovençal.

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71. Na Inglaterra, o termo correspondente é encontrado, em períodos posteriores,restrito, àsvezesexplicitamente, a serviçais.Umexemplodisso se lênamaneiracomo,numa descrição de origem inglesa do que constitui uma boa refeição, a “curtese andhonestieof servantes”é comparadacoma“kyne frendeshypandcompanyof them thatsyttteatthesupper”.G.G.Coulton,SocialLifeinBritain(Cambridge,1919),p.375.

72.F.Zarncke,DerdeutscheCato (Leipzig,1852),p.130,v.71ev.141e segs.Notocanteaoutrosaspectosdessaprimeiraeprincipal fasena transiçãodeguerreirosparacortesãos(aeducaçãoeoscódigosdasordensdecavaleirosemdiferentespaíses),cf.E.Prestage, “Chivalry”; a series of studies to illustrate its historical significance andcivilizinginfluence(Londres,1928),incluindoA.T.Byles,“Medievalcourtesy-booksandtheproseromancesofchivalry(pp.183esegs.).

73. Luchaire,Les premiers Capétiens, p. 285; cf. tambémA. Luchaire, Louis XV leGros(Paris,1890).Introdução.

74. Luchaire,Histoire des InstitutionsMonarchiques de la France sous les premiersCapétiens(987-1180),vol.2,p.258.

75.Cf.pp.26esegs,emespecialaspp.37-8.

76.Suger,ViedeLouisleGros,ed.Moliner,cap.8,pp.18-9.

77.AVuitry,ÉtudessurlerégimefinancierdelaFrance(Paris,1878),p.181.

78.Luchaire,LouisVI.

79.“AterraqueiadeNorthumberlandaoCanaleramaisfácildeseunificardoquedaFlandresaosPireneus.”Petit-Dutaillis,Lamonarchie féodale,p.37.Sobreaquestãodotamanhodoterritório,cf.tambémR.H.Lowie,TheOriginoftheState(NovaYork,1927),“Thesizeofthestate”,pp.17esegs.

MacLeod, em The Origin and History of Politics, observa como foi realmenteespantosoque,dadaasimplicidadedosmeiosdetransporte,domíniostãovastoscomoosImpérios Inca e Chinês tivessem sido tão estáveis. Só uma detalhada análise histórico-estrutural da interação de tendências e interesses centrífugos e centralizadores nessesimpérios poderia, realmente, tornar compreensível para nós a aglomeração de áreas tãovastaseanaturezadesuacoesão.

Aformachinesadecentralização,comparadacomaquesedesenvolveunaEuropa,écertamentemuitoestranha.Nocaso,aclasseguerreirafoierradicadarelativamentecedoedeformamuitoradicalporumaforteautoridadecentral.Aerradicação—comoquerquetenha acontecido— esteve vinculada a duas grandes peculiaridades da estrutura socialchinesa: a transferência de controle da terra para as mãos dos camponeses (o queencontramosnoiníciodoperíodoocidentalapenasemalgunslugares,como,porexemplo,naSuécia)eopreenchimentodecargosnamáquinagovernamentalporumaburocraciasempre recrutada em parte entre os próprios camponeses e, de qualquer modo,inteiramente pacífica. Mediada por essa hierarquia, formas cortesãs de civilizaçãopenetraram profundamente nas classes mais baixas do povo: lançaram raízes,transformadasdemuitasmaneirasnocódigodecondutadaaldeia.Oquefreqüentementesedenominouocaráter“não-belicoso”dopovochinêsnãoconstituiexpressãodealguma“disposiçãonatural”.Resultoudofatodequeaclassequeforneceuaopovomuitodeseus

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modelos, atravésdecontactosconstantes, jádeixaradesde séculosde serumaclassedeguerreiros, uma nobreza, tornando-se um mundo oficial pacífico e erudito. E éprincipalmente a situação e a função dessa classe que semanifesta no fato de que, natradicional escala de valores chinesa — ao contrário da japonesa —, a atividade e abravuramilitar não ocupem lugarmuito alto.Diferente como tenha sido em detalhes osistemadecentralizaçãochinêsdoquehouvenoOcidente,porconseguinte,emambososcasosofundamentodacoesãodedomíniosmaisvastosfoiaeliminaçãodeguerreiroselatifundiáriosquecompetiamlivrementeentresi.

80.Sobrea importânciadomonopóliodaforçafísicanaconstruçãode“Estados”,cf.acimadetudoMaxWeber,EconomyandSociety(NovaYork,1968).

81.Cf.pp.93-4,acima.Nãoconsideramosnecessárioseguiraquiocostumemodernoeoferecer uma expressão matemática para a regularidade do mecanismo do monopólio.Semdúvida,nãoseriaimpossívelformularumadelas.Umavezformulada,seriapossíveldiscutirtambémdesteaspectoumaquestãoque,geralmentefalando,époucoequacionadahoje:adovalorcognitivoda formulaçãomatemática.Oque,porexemplo,seganhaemtermosdecompreensãoedeclarezaaoseterumaformulaçãomatemáticadomecanismodomonopólio?Essaperguntasópodeserrespondidanabasedasimplesexperiência.

Ocerto,contudo,équeparamuitaspessoasaformulaçãodeleisgeraisestáligadaaumvalorque—pelomenosnoqueinteressaàhistóriaeàsociologia—nadatemavercomseu valor cognitivo. Essa avaliação, não comprovada, com grande freqüênciadesencaminhaapesquisa.Muitaspessoasconsideramqueotrabalhomaisfundamentaldapesquisa seria explicar todas as mudanças através de algo imutável. E o respeito pelaformulaçãomatemáticatemorigem,emgrandeparte,nessavalorizaçãodoimutável.Talescaladevalores,porém,temsuasraízesnãonotrabalhocognitivodapesquisaemsi,masnoanelodopesquisadorpelaeternidade.Regularidadesgerais,comoasdomecanismodomonopólioetodosospadrõesgeraisderelações,sejammatematicamenteformuladasounão, não constituem o objetivo final ou o ápice da pesquisa histórica e sociológica. Acompreensãodessasregularidadeséfrutíferacomomeioparaatingirumametadiferente,ummeiodeorientarohomemno tocanteasimesmoeaoseumundo.Seuvalor resideexclusivamenteemsuafunçãodeelucidaramudançahistórica.

82.Sobreesteponto,ver“SobreaSociogênesedoFeudalismo”,especialmenteaspp.58-9.Sobre“podersocial”,ver“NotasobreoConceitodePoderSocial”,pp.62-3,nota.

83.ugusteLongnon,AtlashistoriquedelaFrance(Paris,1885).

84.Luchaire,HistoiredesInstitutionsMonarchiques(1891),vol.1,p.90.

85.Petit-Dutaillis,LamonarchieféodaleenFranceetenAngleterre,pp.109esegs.

86.A.Cartellieri,PhilippIIAugustundderZusammenbruchdesangevinischenReiches(Leipzig,1913),p.1.

87.Cf.A.Longon,Laformationdel’unitéfrançaise(Paris,1922),p.98.

88.Luchaire,LouisVII,PhilippAugustus,LouisVIII,p.204.

89.C.Petit-Dutaillis,ÉtudessurlavieetlerègnedeLouisVIII(Paris,1899),p.220.

90.AVuitry,ÉtudessurlerégimefinancierdelaFrance,nouvellesérie,vol.1(Paris,

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1883),p.345.

91.Ibid.,p.370.

92.Uma compilaçãomais exata dessas Casas feudais é encontrada emLongnon,Laformationdel’unitéfrançaise,pp.224esegs.

93.Vuitry,op.cit.,p.414.

94.Cf.,porexemplo,KarlMannheim,“DieBedeutungderKonkurrenzimGebietedesGeistigen”, Verhandlungen des siebenten deutschen Soziologentages (Tübingen, 1929),pp.35esegs.

95.G.Dupont-Ferrier,Laformationdel’étatfrançaisetl’unitéfrançaise(Paris,1934),p.150.

96.L.Mirot,Manueldegeographiehistoriquede laFrance (Paris, 1929),Mapa19.Essetrabalhocontémtambémmapasrelativosàdiscussãoprecedente.

97.PImbartdelaTour,Lesoriginesdelaréforme(Paris,1909),vol.1,p.4.

98.Mirot,op.cit.,Mapa21.

99. Henri Hauser, revisão de G. Dupont-Ferrier, “La formation de l’état français”,RevueHistorique(1929),vol.161,p.381.

100.W.Fowles,LoomisInstitute,EUA,citadonaNewsReview,n.35.p.32.

101.Luchaire,Lescommunesfrançaisesàl’epoquedesCapétiensdirects,p.276.

102.Porrazõesdeespaço,nãopodeserincluídaadocumentaçãorelativaaesteeaumcertonúmerodeoutrostrechos.Oautoresperaincluí-losnumvolumeseparado.

103.P.Lehugeur,PhilippeleLong(1316-1322).Lemécanismedugovernement(Paris,1931),p.209.

104.Dupont-Ferrier,op.cit.,p.93.

105.Brantôme,Oeuvrescomplètes,publicadasporL.Lalanne,vol.4,pp.328esegs.

106.J.H.Mariéjol,HenriIVetLouisXIII(Paris,1905),p.2.

107.Ibid.,p.390.

108.Cf.AlStölzel,DieEntwicklungdesgelehrtenRichtertumsindeutschenTerritorien(Stuttgart,1872),p.600.

109.Richelieu,TestamentoPolítico,pt.1,cap.3,p.1.

110.E.Lavisse,LouisXIV(Paris,1905),p.128.

111.Saint-Simon,Memoiren,trad.alemãporLotheisen,vol.1,p.167.

112.Cf.Lavisse,op.cit.,p.130.

113.Saint-Simon,op.cit.,vol.1,p.167.

114. Saint-Simon,Mémoires (nova ed. por A. de Boislisle)(Paris, 1910), vol. 22, p.35(1711).

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115.TomásdeAquino,DeregimineJudaeorum,Romaedit.,vol.19,p.622.

116.Vuitry,op.cit.,pp.392esegs.

117.Ibid.,nouvellesérie,vol.1.p.145.Paraoutraformadamonetarizaçãodosdireitossenhoriaisfeudais,sobpressãodacrescentenecessidadequeosreissentiamdedinheiro—alibertação,contrapagamentoemmoeda,deservosdaglebapeloreieseugoverno—,cf.MarcBloch,RoisetSerfs(Paris,1920).

118. PaulViollet,Histoire des institutions politiques et administratives de la France(Paris,1898),vol.2,p.242.

119.Ibid.

120.Vuitry,op.cit.,nouv.Sér.,vol.2,p.48.

121.G.Dupont-Ferrier,“LaChambreouCourdesAidesdeParis”,Revuehistorique,vol.170 (Paris,1932),p.195; cf. sobreeste assuntoeoque se seguedomesmoautor,ÉtudessurlesinstitutionsfinancièresdelaFrance,vol.2(Paris,1932).

122.LéonMirot,Les insurrectionsurbainesaudébutdu règnedeCharlesVI (Paris,1905),p.7.

123.Ibid.,p.37.

124.Dupont-Ferrier, “LaChambreouCour desAides deParis”, p. 202,Cf. tambémPetit-Dutaillis,Charles VII, Louis XI et les premières années deCharles VIII (Lavisse,Hist.deFrance,IV,2)(Paris,1902).

125. Viollet, op. cit., vol. 3 (Paris, 1903), pp. 465-6. Cf. também Thomas Basin,HistoiredesrègnesdeCharlesVIIetdeLouisXI,ed.Quicherat(Paris,1855),vol.1,pp.170 e segs. Detalhes sobre a organização financeira são encontrados emG. Jacqueton,Documentsrelatifsàl’administrationfinancièreenFrancedeCharlesVIIàFrançoisIer(1443-1523)(Paris,1897),emespecialon.XIX,emformadequestõeserespostas,“Levestigedesfinances”.(Ummanualdestinadoafuturosfuncionáriosdefinançasdaépoca.)126.E.Albèri,RelazionidegliAmbasciatoriVenetialSenato,1ªsérie,vol.4 (Florença,1860),pp.16-18(RelazionediFranciadiZaccariaContarini,1492).

127. L. von Ranke, Zur venezianischen Geschichte (Leipzig, 1878), p. 59, e H.Kretschmayr,GeschichtevonVenedig(Stuttgart,1934),pp.159esegs.

128.Albèri,op.cit.,1ªsérie,vol.1(Florença,1839),pp.232-5.

Tem-seobservadofreqüentemente,semdúvidacomcertajustificação,queosprimeirospríncipesabsolutistasdaFrançaaprenderammuitocomseuscolegasdascidades-estadositalianas.Porexemplo,dizG.Hanotauxnoensaio“LepouvoirroyalsousFrançoisIer”,emÉtudeshistoriquessurleXVIeetleXVIIesiècleenFrance(Paris,1886),pp.7esegs:“AcorteemRomaeaChancelariaveneziana teriamsidosuficientesparadisseminarasnovas doutrinas de diplomacia e política. Mas, na realidade, na profusão de pequenosEstadosquedividiamentresiapenínsula,nãohaviaumsóquenãopudesseterfornecidoexemplos…AsmonarquiasdaEuropaforamàescolanascortesdospríncipesetiranosdeNápoles,FlorençaeFerrara.”

Sem dúvida, processos estruturalmente semelhantes ocorreram nesses locais, como

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acontecetãofreqüentemente,emprimeirolugaremregiõesmenoresdoquenasmaiores;eos príncipes das grandes regiões aproveitaram até certo ponto o conhecimento quereuniramsobreaorganizaçãodasmenores.Mas,tambémnestecaso,sóumexameexatoem termos de história estrutural poderá determinar em que medida os processos decentralização e a organização do governo nas cidades-estados italianas lembram os doscomeçosdaFrançaabsolutista,eemquegrau,umavezquediferençasdetamanhosempretrazemconsigodiferençasqualitativasemestrutura,divergemtambémdeles.Dequalquermodo,adescriçãofeitapeloembaixadorvenezianoeotomqueusounãoindicamqueeleconsiderasseasituaçãodepoderespecíficadoreifrancêseaorganizaçãodasfinançasaeleligadacomoalgojáconhecido,desdemuitotempo,naItália.

129.Circulahojeaidéiamuitocomumdequeasformasdevidasocialedeinstituiçõessociaisespecíficasdevemserexplicadasprincipalmentepelafinalidadequeencerramparaas pessoas que por elas são congregadas. Essa idéia dá a impressão de que as pessoas,compreendendoautilidadedasmesmas,tomaramemalgummomentoadecisãodeviverdessamaneira,enãodeoutra.Essaidéia,porém,éumaficção,esenãohouvesseoutrarazão,bastariaestaparadescantá-lacomoumsinstrumentodepesquisaadequado.

Oconsentimentodadopeloindivíduoparaviveremcompanhiadeoutrosnumaformaespecífica,a justificação,combaseemfinalidadesparticulares,parao fatodeeleviver,porexemplo,numEstado,ouestar ligadoaoutroscomocidadão, funcionário,operário,oufazendeiro,enãocomocavaleiro,sacerdote,servodaglebaoucriadornômadedegado— esse consentimento e essa justificação são algo retrospectivo. Nesse assunto, oindivíduo pouca opção tem.Nasce numa ordemque possui instituições de determinadotipoeécondicionado,commaioroumenorsucesso,paraconformar-seaela.Mesmoquepensasse que essa ordem e suas instituições não eram boas nem úteis, não poderiasimplesmente retirar seu assentimento e cair fora. Poderia tentar escapar dela comoaventureiro,vagabundo,artistaouescritor,ou finalmente fugirparauma ilhadeserta—mas, mesmo como refugiado, ele seria produto dela. Desaprová-la e fugir dela não émenorsinaldecondicionamentodoquelouvá-laejustificá-la.

Um dos trabalhos que ainda precisam ser feitos é o de explicar convincentemente acompulsãoatravésdaqualcertas formasdevidacomunal,como,porexemplo,anossa,surgiram,sãopreservadasemudadas.Oacessoàcompreensãodesuagênese,porém,serábloqueadosepensarmosnelascomotendoacontecidodamesmamaneiraqueasobrasefaçanhasdeindivíduosisolados:peloestabelecimentodemetasespecíficasoumesmoporumpensamentoracionaleplanejamento.Aidéiadeque,desdecomeçosdaIdadeMédia,tenham os homens trabalhado num esforço comum e com umameta clara e um planoracional para concretizar a ordem social e as instituições em que vivemos hoje,dificilmente se adapta aos fatos.Amaneira como isso realmente aconteceu só pode serapreendida através de um estudo da evolução histórica dessas formas sociais, compesquisaempíricarigorosamentedocumentada.Talestudodeumsegmentoparticular,deum aspecto da organização do Estado, foi tentado acima. Mas deu origem também aalguma introvisão de importância maior, como, por exemplo, certa compreensão danatureza dos processos sócio-históricos. Pudemos descobrir o quão pouco é realmenteconseguidoaoseexplicareminstituiçõescomoo“Estado”emtermosdemetasracionais.

Asmetas, planos e ações de indivíduos isolados constantemente se entrelaçam umas

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com as outras. Esse entrelaçamento que, além do mais, prossegue sem cessar de umageraçãoaoutra,nãoéemsiplanejado.Nãopodesercompreendidoemtermosdosplanose intenções individuais, nem em termos que, embora não diretamente propositais, sãomodeladosdeacordocommodosteleológicosdepensamento.Estamosinteressadosaquiem processos, compulsões e regularidades de tipo relativamente autônomo. Assim, porexemplo, uma situação em que muitas pessoas estabelecem para si mesmas uma metaidêntica,querendoamesmaglebadeterra,omesmomercadoouamesmaposiçãosocial,dáorigemaalgoquenenhumadelastencionoufazerouplanejou,especificamente,aumdadosocial:umrelacionamentocompetitivocomregularidadespeculiares.Dessamaneira,nãoédeumplanocomumdemuitaspessoas,mascomoalgonão-planejado,emergindodaconvergênciaecolisãodosplanosdemuitasdelas,quesurgeumacrescentedivisãodefunções. O mesmo se aplica à integração de áreas cada vez maiores, sob a forma deEstados,enumerososoutrosprocessossócio-históricos.

Só a conscientização da autonomia relativa dos planos e ações individuais que seentrelaçam,damaneiracomooindivíduoéligadopelavidasocialaoutros,permiteumacompreensãomaisprofundadoprópriofatodaindividualidade.Acoexistênciadepessoas,oemaranhamentodesuasintençõeseplanos,oslaçoscomqueseprendemmutuamente,tudoisso,muitolongededestruiraindividualidade,proporcionaomeionoqualelapodedesenvolver-se.Estabeleceos limitesdo indivíduo,mas,aomesmotempo, lhedámaioroumenorraiodeação.Otecidosocial,nessesentido,formaosubstratoapartirdoqualeparadentrodoqualoindivíduogiraconstantementeetecesuasfinalidadesnavida.Essetecidoeocursorealdesuamudançacomoumtodo,porém,nãosãoobradaintençãonemdoplanejamentodeninguém.

Paramaioresdetalhesdesteassunto,cf.N.Elias,What isSociology?, trad. inglesadeStephenMennelleGraceMorrissey(Londres,1978).

130. Para uma discussão do problema do processo social, cf. Social Problems andSocial Processes. Trabalhos selecionados dos Anais da Sociedade de Sociologia daAmérica(1932),org.porE.S.Bogardus(Chicago,1933).

Paraumacríticadanoçãomaisantigadosprocessos sociaiscomoalgobiológico,cf.W.F.Ogburn,SocialChange(Londres,1923),pp.56esegs.:

ApublicaçãodeAOrigemdasEspécies,propondouma teoriadaevoluçãodasespéciesem termos de seleção natural, hereditariedade e variação, produziu uma profundaimpressãoemantropólogosesociólogos.Aconcepçãodeevoluçãoeratãoprofundaqueas mudanças na sociedade passaram a ser vistas como manifestando uma evolução, ehouveumatentativadeprocurarascausasdessasmudançassociaisemtermosdevariaçãoe seleção…Antes da busca das causas, contudo, esforços se envidaram para provar odesenvolvimento de instituições sociais específicas em estágios sucessivos, em sériesevolutivas, com um estágio necessariamente precedendo outro.A busca de leis levou amuitashipóteses,considerandofatorestaiscomolocalizaçãogeográfica,clima,migrações,conflito de grupos, potencial racial, evolução da capacidade mental e princípios comovariação,seleçãonaturalesobrevivênciadosmaisaptos.Meioséculooumaisdeestudossobretaisteoriaslevaramaalgunsresultados,emboraasrealizaçõesnãotenhamficadoàalturadasaltasexpectativasalimentadasapósapublicaçãodateoriadarwinianadaseleçãonatural.

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Asérieinevitáveldeestágiosnodesenvolvimentodeinstituiçõessociaisnãosónãofoiprovada,comofoirefutada…

Notocanteatendênciasmaisrecentesnadiscussãodoproblemadamudançahistórica,cf.A.Goldenweiser,“SocialEvolution”,naEncyclopediaofSocialSciences(NovaYork,1935),vol.5,pp.656e segs. (comextensabibliografia).Overbeteemquestãoconcluicomasreflexõesseguintes:DesdeaGuerraMundial,estudiososdasciênciassociais,semvisarem à ordenação lógica dos esquemas evolucionários, renovaram sua busca detendênciaseregularidadesrelativamenteestáveisnahistóriaesociedade.Porumlado,acrescente discrepância entre os ideais e o que acontece na história está orientando asciências da sociedade para canais cada vezmais pragmáticos. Se houver uma evoluçãosocial, qualquer que possa ela ser, não será mais aceita como um processo a sercontemplado,mascomoumtrabalhoaserrealizadomedianteesforçohumanodeliberadoeconcertado.

Estenossoestudodoprocessocivilizadordiferedessesesforçospragmáticosnosentidoemque,suspendendotodososdesejoseexigênciasarespeitodoquemoralmentedeveser,tentaestabeleceroquefoieoqueé,eexplicardequemaneira,eporque,tornou-seoquefoieoqueé.Pareceu-nosmaisapropriadofazerotratamentodependerdodiagnósticodoqueodiagnósticodotratamento.

Cf.F.J.Teggart,TheoryofHistory (NewHaven,1925),p.148:“…a investigaçãodecomoascoisasvieramaseroquesão…”

131. Cf. E.C. Parsons, Fear and Conventionality (Nova York, Londres, 1914). EtambémopiniõesdivergentescomoadeW.G.Sumner,Folkways(Boston,1907),p.419:“Nuncaécorretoconsiderarqualquerumdostabuscomoumainvençãoarbitráriaouumfardo imposto sem necessidade pela tradição à sociedade… Eles foram selecionadosdurante séculos pela experiência e os que recebemos e aceitamos foram os que aexperiênciaprovouseremúteis.”

132. Ver a excelente explicação de J. Huizinga no The Waning of the Middle Ages(Londres,1924),cap.1.

Oquesedisseacimaaplica-setambém,porexemplo,asociedadescomumaestruturasemelhantenoOrientemodernoe,emgrausvariáveis,dependendodanaturezaeextensãodaintegração,àschamadassociedades“primitivas”.

À medida que as crianças em nossa sociedade — por mais imbuídas estejam comcaracterísticas de nossa civilização relativamente avançada—ainda exibemvislumbrosdo outro padrão, com suas emoções e sentimentos mais diretos e sua inclinação paramudanças súbitas de estado de espírito, é demonstrada, por exemplo, pela descriçãoseguintedoqueelasgostamnosfilmes(DailyTelegraph,12defevereirode1937):“Ascrianças,especialmenteascriançasdepoucaidade,gostamdeagressão…Preferemação,ação emais ação.Não são contra o derramamento de sangue,mas tem que ser sangueescuro. A virtude triunfante é aplaudida com calor e a vilania é vaiada com grandeentusiasmo.Quandocenasdeumasealternamcomcenasdeoutra,comoemseqüênciasdeperseguição,atransiçãodeaplausoparavaiaocorreemfraçõesdesegundo.”

Intimamente relacionada também com a diferente força de suas exclamaçõesemocionais,suareaçãoextremadaemambasasdireções,medoejúbilo,aversãoeafeição,

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estáaestruturaespecíficadostabusemsociedadesmaissimples.Observamosacima(cf.pp.195esegs,especialmenteaspp.201-2,ecf.tambémovol.1,pp.98esegs.)que,noOcidentemedieval,nãosóasmanifestaçõesdepaixõeseemoçõessobaformadeprazer,mastambémasproibições,astendênciasparaatorturadesimesmoeoascetismoforammais fortes, intensos e, por conseguinte, rigorosos, do que em estágios posteriores doprocessocivilizador.

Cf.tambémR.H.Lowie,“FoodEtiquette”,noArewecivilised?(Londres,1929),p.48:“…as regras de etiqueta dos selvagensnão são apenas rigorosas,mas formidáveis.Nãoobstante,paranós,suasmaneirasàmesasãochocantes”.

133.Cf.C.H.Judd,ThePsychologyofSocialInstitutions(NovaYork,1926),pp.105esegs.Vertambémaspp.32esegs.E77esegs.

134. Introdução à tradução francesa do “OráculoManual”, deGracián, de autoria deAmelotdelaHoussaie,Paris,1684.OOraculoManuale,publicadoem1647,teve,apenasnaFrança,cercade20diferentesediçõesduranteosséculosXVIIeXVIIIsobotítulodeL’HommedeCour.Constituiu,emcertosentido,oprimeiromanualsobreapsicologiadecortedamesmamaneiraqueolivrodeMaquiavelsobreopríncipefoioprimeiromanualclássicosobreapolíticadacorteabsolutista.Maquiavel,noentanto,parecefalarmaisdopontodevistadopríncipedoqueGracián;elejustificamaisoumenosa“razãodeEstado”do absolutismo emergente.Gracián, jesuíta espanhol, despreza, do fundo do coração, arazãodeEstado.Elucidaparasimesmoeparaosdemaisasregrasdograndejogodacortecomoalgoqueoindivíduotemqueaceitarporquenãoháalternativa.

Não deixa de ter importância, contudo, que a despeito dessa diferença, a condutarecomendadaporMaquiaveleGraciánpareçaapessoasdeclassemédiamaisoumenos“imoral”,emboramodosdecondutaesentimentossemelhantescertamentenãofaltemnomundoburguês.Nessacondenaçãodapsicologiaecondutacortesãspelaburguesianão-cortesãmanifesta-seadiferençaespecíficade todaamodelação socialdasduasclasses.Instilam-seregrassociaisnapersonalidadedosestratosnão-cortesãosdaburguesiadeumaformadiferentequenaclassecortesã.Naprimeira,osuperegoémuitomaisrígidoe,emmuitos aspectos, mais rigoroso do que na última. O lado beligerante da vida diáriacertamentenãodesaparece,naprática,domundoburguês,masestámuitomaisbanido,doque na classe cortesã, daquilo que um escritor ou qualquer pessoa pode expressar, emesmodaprópriaconsciência.

Noscírculosaristocráticosdecorte,o“deveis”comgrandefreqüêncianadamaisédoqueumaexpressãodeconveniência,ditadapelasnecessidadespráticasdavidasocial.Atémesmoadultosnessescírculossempreestãocientesdequesetrataderegrasaquedevemobedecerporquevivememsociedadecomoutraspessoas.Nosestratosdeclassemédia,asregras correspondentes com freqüência são enraizadas muito mais profundamente noindivíduoduranteainfância,nãocomoregraspráticasparaacondutaconvenientenavida,mascomoinduzimentossemi-automáticosdaconsciência.Poressarazão,o“deveis”eo“evitareis” do superego estão muito mais constante e profundamente envolvidos naobservação e compreensão da realidade. A fim de dar pelo menos um exemplo dentreinúmerosquepoderiamsercitados,Graciándiz,emseupreceito“Conheceprofundamenteo caráter daquele com quem tratas” (n. 273): “Não esperes praticamente nada de bomdaqueles que têm algum defeito natural congênito, porque eles estão acostumados a se

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vingar daNatureza…”Um dos livros ingleses demaneiras, da classemédia do séculoXVII,quetevedeigualmaneiragrandecirculaçãoedeuorigemàsconhecidasregrasdeGeorgeWashington,oYouth’sBehaviour,deautoriadeFrancisHawkins(1646)dálugardedestaqueao“evitareis”e,dessamaneira,atribuiaocomportamentoeàobservaçãoumadistintaconotaçãomoral,(n.31):“Nãodesprezesnenhumapessoapelasenfermidadesdanatureza,quepornenhumaartepodemser curadas,nem tedeleites emapontá-las,umavezqueisto,muitasvezes,provocaainvejaepromoveamaldadeemesmoavingança.”

Emumapalavra,encontramosemGraciáne,depoisdele,emLaRochefoucauldeLaBruyère,sobaformademáximasgerais,todososmodosdecondutacomquedeparamos,porexemplo,emSaint-Simon,napráticadavidadecorte.Repetidamente,encontramosinjunçõessobreanecessidadedecontrolarasemoções(n.287):“Jamaisajasenquantoaemoçãoperdurar.Seassimfizeres,estragarástudo”.Ou(n.273):“Ohomeminduzidopelapaixãosempreusaumalinguagemdiferentedoqueascoisassão;apaixão,enãoarazão,falaporele.”Encontramosoconselhodeadotaruma“atitudepsicológica”,aobservaçãopermanentedocaráter(n.273):“Estudaexaustivamenteocaráterdaquelecomquemtensnegócios”. Ou o resultado de tal conhecimento, a observação (n. 201): “Todos os queparecemloucossãoloucos,comoétambémmetadedosquenãoparecem.”Anecessidadede observação de si mesmo (n. 225): “Conhece tua falha principal.” A necessidade demeias-verdades (n. 210): “Aprende como jogar com a verdade.”A introvisão de que averdade autêntica está na veracidade e substancialidade de toda a existência de umapessoa,nãoemsuaspalavrasespecíficas (n.175):“Ohomemsubstancial.Sóaverdadepode dar autêntica reputação e só a substância pode ser transformada em proveito.” Anecessidadedeespíritodeprevisão(n.151):“Pensahojenoamanhãenumtempolongomaisalém.”Moderaçãoemtodasascoisas(n.82):“Osábiocondensoutodaasabedorianopreceitoseguinte:‘Nadaemexcesso’.”Aformadeperfeiçãoquemelhorcaracterizaaaristocraciadecorte,opolimentodeumanaturezaanimal,moderadae transformadaemtodosseusaspectos,afrivolidade,oencanto,anovabelezadoanimaltornadohomem(n.127): “Le JE-NE-SAIS-QUOI. Sem ele toda beleza é coisa morta, toda graça édesgraciosa…asdemaisperfeiçõessãoornamentosdaNatureza,o‘je-ne-sais-quoi’éodaperfeição.Eleévisívelmesmonamaneiraderaciocinar…”Ou,deumaspectodiferente,ohomemsemafetação (n. 123): “Ohomemsemafetação.Asqualidadesmais eminentesperdem seu preço se descobrimos nelas a afetação, porque as atribuímos mais a umalimitaçãoartificialdoqueaoverdadeirocaráterdapessoa.”Jáqueguerraentreoshomensé inevitável,queseja travadadecentemente(n.165):“Fazeboaguerra.Vencervilmentenãoévencer,masserderrotado.Tudooquerecendeatraiçãocontaminaobomnomedapessoa”.Repetidamente,nessespreceitos,reapareceoargumentobaseadonaconsideraçãoporoutraspessoas,umargumentobaseadoemnecessidadessociais,mundanas.Areligiãoneles desempenha umpapel diminuto.Deus aparece apenas àmargeme, no fim, comoalgo I desse círculo humano. Todas as boas coisas, igualmente, chegam ao homem departedeoutraspessoas(n.111):“Fazeamigos.Teramigoséumsegundoser…todasasboascoisasquetemosnavidadependemdosdemais.”

É essa justificação das regras e preceitos, não por uma lei moral eterna, mas pornecessidades“externas”,porconsideraçãoaoutraspessoas,que,acimadetudo,fazcomque essas máximas e todo o código cortesão de conduta pareçam “amorais” ou, pelomenos,“dolorosamenterealistas”aoobservadorburguês.Atraição,porexemplo,julgao

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mundo burguês, devia ser proibida não por razões práticas, pela preocupação com aprópria“boareputação”juntoaoutraspessoas,masporumavozinterior,aconsciência,emumapalavra,pelamoral.Amesmamudançanaestruturadoscomandoseproibiçõesque antesvimosno estudodoshábitos àmesa, dahigiene corporal e deoutras funçõeselementares,aquireaparece.Regrasdecondutaque,noscírculosaristocráticos,mesmoosadultos observam principalmente por consideração ou medo de outras pessoas, sãoinculcadas no indivíduo, dentro do mundo burguês, como auto-restrições. Nos adultos,elasnãomaissereproduzemousãopreservadaspelomedodiretoaoutraspessoas,masporumavoz“interior”,ummedoautomaticamentereproduzidopeloprópriosuperegodoindivíduo,emsuma,porumcomandomoralquenãonecessitamaisdejustificação.

135.Cf.OProcessoCivilizador,vol.I,pp.117esegs.

136.C.H.Haskins,“TheSpreadofIdeasintheMiddleAges”,emStudiesinMediaevalCulture(Oxford,1929),pp.92esegs.

137.Cf.p.65,acima.ÀparteoMinnelieder,háumagrande riquezadematerialquemostra esse padrão, em alguns casos ainda mais claramente, como, por exemplo, apequenapeçaemprosadeAndréCapelão,nociclodeMariadeChampagne“DeAmore”,etodaaliteraturadacontrovérsiamedievalsobreasmulheres.

138.Haskins,op.cit.,p.94.

139.OProcessoCivilizador,vol.I,pp.201esegs.

140.Cf.pp.19esegs.acima.

141.LaBruyère,Caractères,“Delacour”(Paris,Hachette,1922),Oeuvres,vol.2,p.237,n.64;cf.tambémp.248,n.99:“Dentrodecemanos,omundoaindaexistiráemtodasuainteireza.Seráomesmoteatro,comamesmadecoração,masnãoosmesmosatores.Terãodesaparecidodopalcotodososqueserejubilamcomumfavorrecebidoouforamlançadosnosofrimentoenodesesperoporumarecusa.Outroshomensjáestarãosubindoaopalcoeelesrepresentarãoosmesmospapéis,namesmapeça.Quefundoparaumpapelcômico!”Comoéfortenessetrechoosensodeimutabilidade,deinelutabilidadedaordemvigente, como é tão mais forte do que na fase posterior, quando o conceito de“civilização”começouasubstituirode“civilité”.

Sobre esse fenômeno, cf. também o trecho de “Des Jugements”: “Nem todos osestrangeirossãobárbarosenemtodosnossoscompatriotassãocivilizados”.

142.LaBruyère,op.cit.,p.247,n.94.

143. Ibid., p. 211, n. 2; cf. também p. 211, n. 10: “A corte é como um edifício demármore.Quero dizer, compõe-se de homens que sãomuito duros,mas tambémmuitopolidos.”Cf.tambémn.134.

144.Saint-Simon,op.cit.,p.63.

145.OProcessoCivilizador,vol.I,pp.82esegs,emespecialaspp.89-90.

146.Ranke,FranzösischeGeschichte,bk.10,cap.3.

147.147.Saint-Simon,op.cit.,vol.22,p.20epp.22esegs(1711).Oqueestáemjogonessas conversas é nadamenosdoqueuma tentativade conquistar o herdeirodo trono

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para uma forma diferente de governo, na qual o equilíbrio na corte entremembros daburguesia dirigente a grupos nobres sejamudado em favor destes últimos.Opoder dos“paresdoreino”—oobjetivodeSaint-Simonedeseusamigos—deveserrestabelecido.Emparticular,oscargosmaisaltosdoEstado,osministérios,devemser transferidosdaburguesiaparaaaltanobreza.UmatentativanessadireçãofoirealmentefeitapeloregenteapósamortedeLuísXIV,comativoenvolvimentodeSaint-Simon.Fracassou.Oqueanobreza inglesa conseguiu, de modo geral com sucesso, ou seja, a estabilização dogovernoaristocrático,medianteaqualváriosgruposecoteriesdanobrezacontestaramaocupação de cargos decisivos do poder político, aomesmo tempo em que observavamregras estritas, a nobreza francesa não conseguiu realizar. As tensões e conflitos deinteresse entreosprincipaisgruposdanobrezaedaburguesia eram incomparavelmentemaiores na França do que na Inglaterra. Sob o manto do absolutismo, eramconstantementediscerníveis.Mascomo,emtodasasfortesautocracias,alutatravadaemtorno do governante, nos círculosmais altos, ocorre por trás de portas fechadas, Saint-Simonfoiumdosprincipaiscontendoresdessecombatesecreto.

148. O Processo Civilizador, vol. I, pp. 204 e segs. Sobre o problema geral dossentimentosdevergonha,cf.TheSpectator(1807),vol.5,n.373:“Seeufosseobrigadoadefiniropudor,euodenominariadaseguinteforma:Areflexãodeumamenteengenhosaquandoumhomemcometeuumaaçãopelaqualsecensura,ouimaginaqueestáexpostoàcensuradosoutros.”Vertambém,namesmapublicação,oquesedizsobreadiferençadossentimentosdevergonhanoshomensenasmulheres.

149.OProcessoCivilizador,vol.I,pp.129esegs.

150.Ibid.,pp.201esegs.

151.Ibid.,pp.117esegs.

152.Têmsidofeitasfreqüentestentativasdeexplicarocaráternacionaldosingleses,oualgunsdeseusaspectos,pelasituaçãogeográficadopaís,peloseucaráterinsular.Masseessecaráter insular,comoumdadonatural, fossesimplesmenteresponsávelpelocaráternacionaldeseushabitantes,entãotodasasdemaisnaçõesinsularesteriamcaracterísticassemelhantesenenhumpaísmaisseaproximariaemcarátereconstituiçãodosinglesesqueosjaponeses.

Nãoéasituação insularcomotalque imprimesuamarcasobreocaráternacionaldapopulação,mas a importância dessa situação na estrutura total da sociedade insular, nocontextototaldesuahistória.Comoresultadodeumdesenvolvimentohistóricoparticular,a faltade fronteiras terrestres,porexemplo, levoua Inglaterra, aocontráriodoJapão,aumabaixaestimadaperíciamilitare,maisconcretamente,aofatodequeosmilitaresnãogozemdeumprestígiosocialmuitoelevado.

NaInglaterra,anobrezarelativamentepacificada,juntamentecomosprincipaisgruposburgueses,conseguiubemcedoreduziremmuitoocontroledasarmasedoexércitopelorei e, em especial, o emprego da violência física dentro do país. Essa estrutura domonopólio de força física, tornada possível, para sermos exatos, apenas pelo caráterinsulardopaís,desempenhouumpapelnãomodestonaformaçãodeumcaráternacionalespecificamente inglês.O fortegrauemquecertosaspectosdo superego inglês,ou, emoutras palavras, a consciência inglesa, estão ligados à estrutura domonopólio de força

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físicaédemonstradomesmohojepelaliberdadedemanifestaçãoconcedidanaInglaterraao “objetor de consciência”, ou à convicção geral de que o recrutamento militarobrigatório constitui uma grande e perigosa restrição à liberdade individual.Provavelmente não erraríamos em supor que os movimentos e organizações não-conformistas conseguiram permanecer fortes e vigorosos durante séculos na InglaterraapenasporqueaIgrejaAnglicana,oficial,nãoeraapoiadapelapolíciaeamáquinamilitarna mesma extensão em que o foram, por exemplo, as Igrejas nacionais nos EstadosprotestantesdaAlemanha.Dequalquermodo,ofatodeque,naInglaterra,apressãodopodermilitarestrangeirosobreoindivíduofosse,desdeépocamuitoremota,muitomenosfortedoqueemqualqueroutrograndepaísdocontinenteeuropeu, teveestreita ligaçãocom o outro fato, a saber, que o controle que o indivíduo tinha que exercer sobre simesmo, especialmente emmatérias relacionadas com a vida do Estado, tornou-semaisforteemaisabrangentedoquenasgrandesnaçõesdaEuropacontinental.Dessamaneira,como um dos elementos da história social, o caráter insular e toda a natureza do paísexerceram realmente, de uma grande variedade demaneiras, uma influência formadorasobreocaráternacional.

153.OProcessoCivilizador,vol.I,pp.34esegs.pp.86esegs,ep.255,nota30.Sobreessa questão, cf. também A. Loewe, The Price of Liberty (Londres, 1937), p. 31: “Oalemão educado dos períodos clássico e pós-clássico é um ser dual. Na vida pública,ocupao lugarqueaautoridade lhedeterminaeo faznacapacidadedupladesuperioresubordinado, com uma completa devoção ao dever. Na vida privada, pode ser umintelectual crítico e um romântico emocional… Esse sistema educacional malogrou natentativadeobterumafusãoentreos ideaisburocráticoehumanista.Criou,naverdade,umaespecialistaintrovertido,semigualnaespeculaçãoabstrataenaorganizaçãoformal,mas incapaz de modelar um mundo real com base em suas idéias teóricas. O idealeducacionalinglêsnãoconheceessaclivagementreomundointernoeomundoexterno.

154.Cf.pp.65esegs.

155.Cf.pp.93-4epp.97esegs.Emcertonúmerodeocasiões,tem-sefrisadoofatodeque a força das tensões entre diferentes unidades hegemônicas está indissoluvelmenteligadaàforçadastensõesedetodaaordemsocialdentrodelas.Mostrou-sequeconexõesdesse tipo existiram mesmo nos começos da sociedade feudal do Ocidente, com suaeconomiabasicamentedetroca.Apressãopopulacionalqueprovocounelaváriostiposdelutas expansionistas e competitivas, o desejo de um pedaço de terra por parte dosguerreirosmaispobres,edemaisterraaexpensasdeoutrosporpartedosmaisricos,oscondes, os duques e os reis, essa pressão demográfica não foi simples resultado doaumento da população, mas também das relações de propriedade vigentes, damonopolizaçãodosmaisimportantesmeiosdeproduçãoporumsegmentodosguerreiros.Apartirdecertaépoca,aterrafoiumapossefixa.Tornou-secadavezmaisdifíciloacessoa ela por famílias e indivíduos que já não a “possuíam”, e as relações de propriedadetornaram-se cada vezmais rígidas. Nessa constelação social, um aumento adicional depopulação tanto na classe dos camponeses como na dos guerreiros e o constanterebaixamentodenumerosaspessoasapadrõesdevidainferiores,exerceramumapressãoqueintensificouastensõeseacompetiçãodentrodetodaasociedade,dealtoabaixo,emcada um dos territórios e entre todos estes, e manteve em movimento o mecanismocompetitivo (verpp.43,48, e58e segs).Exatamentedamesmamaneira,na sociedade

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industrializada não é o nível absoluto da população, e ainda menos o aumento dapopulação,quesãoresponsáveispelapressãoemestadosespecíficos,masadensidadedapopulação somada às relações de propriedade vigentes, o relacionamento entre aquelesquecontrolamasoportunidadesdeacessoàpropriedade,atravésdeummonopólionão-organizado,eaquelesquenãodispõemdessasoportunidades.

ÉevidentequevariouemgrauapressãosocialemdiferentesEstadosdoOcidente.Nãopossuímos ainda, porém, qualquer instrumento conceitualmuito útil para analisar essasrelaçõesdepressãonemumcontextoprecisodentrodoqualograudepressãopossasermedido com exatidão, como, por exemplo, mediante uma comparação entre diferentesEstados.Éclaro,porém,queessa“pressãointerna”setornamaisacessívelàobservaçãoeàanálisedopontodevistadopadrãodevida,seporistonãoentendemosapenasopoderaquisitivodarenda,mastambémotempoeaintensidadedotrabalhonecessáriosparaseobter renda.Além domais, não podemos obter uma compreensão adequada da relaçãoentrepressãoetensãonasociedadecomparandoestaticamenteospadrõesdevidadesuasdiferentes classes, isto é, numa determinada data, mas apenas por comparação que seestendaporlongosperíodos.Ograudetensãoeapressãodemográficanasociedadenemsempreseexplicampelonívelabsolutodopadrãodevida,mas,sim,pelabrusquidãocomqueopadrãocaiemcertasclasses,deumnívelparaoutro.Temosquelevaremcontaacurva,omovimentohistóricodopadrãodevidadediferentesclassesdasociedade,afimdecompreenderasrelaçõesdepressãoetensãoemseuseio.

Essa a razão por que não devemos examinar isoladamente uma única naçãoindustrializada,sequeremosformarumaidéiamaisclaradanaturezaeforçadasrelaçõesdepressãoetensãodentrodela.Istoporqueoníveldepadrãodevida,diferentecomoénasdiferentesclassesdamesmasociedade,emparteésempredeterminadopelaposiçãode toda essa sociedade na rede global de diferentes nações-estado e impérios, com suaulterior divisão de funções. Namaioria, se não em todas as nações industrializadas daEuropa,opadrãodevidaquefoiestabelecidocomaindustrializaçãosópodesermantidoporumaconstanteimportaçãodeprodutosagrícolasematérias-primas.Essasimportaçõessópodemserpagaspelareceitaproduzidaporexportaçõescorrespondentementevultosas,pelarendadeinvestimentosemoutrospaíses,ouaindaporreservasemouro.Acontece,assim,quenãoéapenasapressãointerna,aquedaiminenteourealdopadrãodevidadegrandesclasses,quemantémeàsvezes intensificaa tensãocompetitivaentrediferentesnações-estado industrializadas, — mas a tensão entre os Estados pode, por seu lado,contribuir ocasionalmente, em extensão muito considerável, para aumentar a pressãosocialnumaououtradasnações-estadoquecompetementresi.

Até certo ponto, essa situação é a mesma nos países que exportam principalmenteprodutos agrícolas ou matérias-primas. E aplica-se, sem dúvida, a todos os países queadquiriramumafunçãoespecíficanadivisãodetrabalhoentreasdiferentesnaçõesecujopadrãodevida,porconseguinte,sópodesermantidosehouverespaçosuficienteparaasexportações e importações relevantes.Variamuito, porém, a sensibilidade de diferentespaísesàsflutuaçõesnocomérciointernacional,aderrotas,aumdeclíniorápidooulentonacompetiçãoentrenações-estados.Elaésemdúvidamuitoaltaemnaçõescompadrãodevidarelativamenteelevado,nasquaisabalançaentresuaprópriaproduçãoindustrialeagrícolainclinou-sefortementeemdesvantagemparaestaúltimaedepende,emambosossetores, de grandes importações de matérias básicas, em especial quando não podem

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contrabalançaressesdéficitscoma receitageradapor investimentosnoexterioroucomreservasdeouroequando,alémdisso,torna-seimpossível,também,aexportaçãodesereshumanos,porexemplo,sobaformadaemigração.Esta,contudo,éumaquestãodistintaequeprecisadeanálisemaisdetalhadadoquenosépossívelfazeraqui.Sóatravésdetalinvestigaçãopoderíamosobtermelhorcompreensãodomotivoporque,porexemplo,astensõesnaconfiguraçãodeEstadoseuropeussãomuitomaioresqueasexistentesentre,porexemplo,osEstadosdasAméricasCentraledoSul.

Como quer que seja, freqüentemente formamos a idéia de que basta deixar acompetiçãoeconômicaentreosEstadosaltamenteindustrializadosaolivrejogodasforçasparaquetodososparceirosprosperem.Esselivrejogodeforças,porém,énaverdadeumaduralutacompetitiva,sujeitaàsmesmasregularidadesqueemtodasasoutrasesferas.OequilíbrioentreosEstadoscompetidoreséextremamente instável.Tendeparamudançasespecíficas, cuja direção, certamente, só pode ser determinada por observação a longoprazo.Nocursodessacompetiçãoeconômicaentreasgrandesnaçõesindustrializadas,apreponderânciagradualmentesemoveemfavordealgumasecontraoutras.Torna-semaisrestritaacapacidadedeexportareimportardosparceirosquesedebilitam.AumEstadoqueseencontrenessasituaçãorestam—se,conformedissemos,nãopudercontrabalançaressasperdasmediante investimentosou reservasdeouro—apenasduaspossibilidades.Terá ou que forçar o aumento das exportações através, por exemplo, da redução dospreços das mesmas, ou limitar as importações. Ambas as medidas resultam direta ouindiretamenteemreduçãodospadrõesdevidadasociedade.Essadiminuiçãoérepassada,pelos que controlam o monopólio das oportunidades econômicas, para os que nãopossuem tal poder.Estesúltimosdescobremque estãonomeiodeumduplo círculodegovernantes monopolistas: dentro de sua própria sociedade e de parte de paísesestrangeiros. A pressão aplicada por eles contribui para impelir seus própriosrepresentantes e o Estado como um todo para uma luta competitiva com outros países.Dessamaneira, as tensões em diferentes Estados e entre eles reforçam-semutuamente.Essemovimentoemespiral,parasermosexatos—estepontoprecisaserenfatizado—,éapenasumaemmeioamuitasdistintasordensseqüenciaisdemudança.Asimplesmençãodessas ordens, embora fragmentária, já pode dar ao leitor uma impressão do poder dasforças irresistíveisquehojemantêmemmovimentoa competiçãoentreosEstadoseosmecanismosdomonopólio.

156. Cf. pp. 139-40, acima. Um sumário das teorias modernas sobre os órgãos dosEstadospodeserencontradoemMacLeod,TheOriginandHistoryofPolitics,pp.139esegs.

157.Cf.pp.97esegs,acima.

158.Cf.pp.225esegs,especialmenteaspp.230esegs.

159.Cf.pp.197esegs,ap.213,easpp.215esegs.

160.Cf.pp.212esegs,app.219-20,aspp.222-3,epp.242esegs.

Sobre esta questão, cf. Parsons, Fear and Conventionality, p. xiii: “Aconvencionalidade tem por base um estado apreensivo de mente…”, e a p. 73: “Asmaneirasàmesasão,acho,umadasmaneirasmaisvisíveisdedistinçãodeclasse.”ElecitatambémW.James,PrinciplesofPsychology(NovaYork,1890),p.121,quediz:“O

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hábito é, assim, o todo-poderoso volante da sociedade, seu mais precioso agenteconservador.Éapenaselequenosmantémdentrodoslimitesdaordemesalvaosfilhosda fortuna dos levantes invejosos dos pobres. Só ele impede que as mais penosas erepulsivas ocupações na vida sejam abandonadas por aqueles que foram obrigados aaceitá-las.”

Aquestãomaisgeral,paracujasoluçãoestetrabalhoprocuradarumacontribuição,foiformuladahámuitotempopelasociologiaamericana.Sumner,porexemplo,escreveemFolkways, p. 418: “Quando, por conseguinte, os etnógrafos aplicam adjetivoscondenatóriosoudepreciativosaospovosqueestudam,dãoporrespondidaaquestãomaisimportante que queremos investigar, isto é, o que são padrões, códigos, e idéias decastidade, decência, propriedade, pudor, etc., e de onde provêm?Os fatos etnográficoscontêmarespostaaessasquestões,mas,paraalcançá-la,queremosumrelatórioimparcialdos fatos.” Dificilmente precisamos dizer que isso se aplica não só à investigação desociedadesestrangeirasemaissimples,mastambémànossasociedadeesuahistória.

O problema estudado no presente trabalho teve em tempos recentes uma formulaçãomuitoclaraporpartedeJudd,ThePsychologyofSocialInstitutions,mesmoqueeletenhatentado para o mesmo uma solução diferente da que aqui é oferecida (p. 276): “Estecapítulointentaprovarqueostiposdeemoçõespessoaisconhecidasdohomemcivilizadosãoprodutodeumaevolução,naqualelastomaramumanovadireção…Osinstrumentose meios dessa adaptação são as instituições, algumas das quais foram descritas noscapítulosprecedentes.Todasasinstituições,àmedidaqueseconsolidavam,desenvolviamem todos os indivíduos que caíram sob sua influência um modo de comportamento eatitudeemocionalqueseconformavamaelas.Onovomododecomportamentoeanovaatitude emocional não poderiam ter sido aperfeiçoados até que as próprias instituiçõesfossemcriadas…Oesforçodosindivíduosparaseadaptaremaexigênciasinstitucionaisresulta no que pode ser corretamente descrito como um grupo inteiramente novo deprazeres.”

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ÍndiceRemissivoabsolutismo,1-2,3,4,5,6,7,8,9,10,11-12,13,14

absolutista,corte,1-2,3,4,5,6

estado,1,2

Abissínia

acumulação,1,2,3

adolescência

adultos,1-2,3-4,5,6

aides,1,2-3,4-5

Albigenses

Alberi,E.

‘‘altasociedade’’

Alençon,Casade

ambição,1,2

ambivalência,1,2,3-4,5,6,7,8,9,10

América

AméricadoSul

Amiens

amor,1-2

‘‘anarquia’’

ancienrégime,1,2,3-4,5,6-7

Anjou,1,2,3-4,5,6

Casade,1,2

AnadeBretanha,1,2

anseio(anelo)aquisitivo

Antiguidade,1-2,3-4,5-6,7,8-9

Aquitânia,1,2,3

Casade

ansiedades,1-2,3

Antônio,duquedeBrabante

árabes,1,2,3,4

Aragão

áreafrancadoOcidente,1,2

aristocracia,1,2,3,4,5,6,7,8,9

Armagnac,Casade

ArnulfodeCaríntia

ascetismo,1,2

Ásia

assimilação

atitudessociais,1,2,3

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conduta,1,2,3,4-5

declínio,1,2,3-4

dinâmica,1,2,3,4

estrutura,1,2,3

existência,1-2,3,4

expansão/desenvolvimento,1-2,3,4

funções/papéis,1,2,3,4,5,6-7,8

limitações,1,2

poder,1,2,3-4,5-6,7,8,9,10-11,12-13,14,15,16,17,18,19-20,21,22,23,24,25-26,27,28,29

regularidades,1,2,3,4

Ault,W.O.

Aunis,1,2

Áustria,1,2

autarquia/independênciaeconômica,1,2-3

competição,1,368

força,1,2,3,4

integração

subsistência,1,2

auto-limitação/autocontrole,1,2,3-4,5-6,7-8,9-10,11,12-13,14,15,16,17,18,19,20,21-22,23,361-2,24,25

condensação

imagens

autocracia,1,2

Auvergne

autoridadecentral,1,2-3,4,5,6

funcionários

instituições/máquina,1,2-3,4,5,6,7-8,9,10

setor

balanço/equilíbriodeprazer,1,2,3,4

economiado,1,2

Balzac,Honoréde

bárbaros,1-2,3

Barcelona

Barroco,1,2

Barrow,R.H.

Basin,Thomas

BeatrizdeBourbon

Beauvais

beligerância

Berry,1,2

bispos,1-2

Bizâncio,1,2

Block,Marc,1,2,3,4

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‘‘boasociedade’’,1,2,3-4,5,6

Bonwit,Ralph

Bourbon,Casade,1,2,3,4

Borgonha

Bretanha,1,2,3

duques,1,2

Casa,1,2,3

Brandemburgo

Brantôme,1,2

Breisig,Kurt

Brinkmann,Hennig

Bruges

Brunelleschi

Brunner,O.

Burdach,Konrad

burguesia,1,2-3,4,5-6,7,8,9-10,11,12-13,14-15,16,17,18,19,20,21-22,23-24,25,26,27,28,29-30,31,32,33,34,35-36,37,38-39,40,41,42,43

Bury,J.B.

Byles,A.T.

Byrne,E.H.

cadeiasdeação,1,2

Calmette,J.,1,2,3,4

camponeses,1,2

Capelão,André

Capetos,1,2,3,4,5,6-7,8,9-10,11-12,13-14,15-16,17-18,19,20,21

capitalismo

caráternacional,1-2,3

economia

CarlosMagno,1-2,3,4,5

VertambémImpérioCarolíngio

CarlosIII,reideFrança

CarlosIV

CarlosV.,1-2,3,4-5

CarlosV,ImperadorRomano-Germânico,1,2

CarlosVI,reideFrança,1,2-3

CarlosVII,1,2,3-4,5

CarlosVIII,1,2,3

CarlosdeValois,1-2

Carlos,oMau,reideNavarra

Carlos,oTemerário,duquedeBorgonha,1-2

Carlos,oGordo,reidosfrancosdoOcidente

Carolíngio,Império,1,2,3

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fisco/erário

período,1,2,3,4-5,6,7

Cartelieri,A.

Catolicismo

causação,1,2,3

Cavalli,Marino

centralização,1,2,3,4,5,6,7,8-9,10,11,12,13,14,15

centrosadministrativos,1,2

cerimônia

chambresdesaides,1,2

Champagne,1,2

chansonsdegeste,1

China,1,2,3

ciclosépicos

cidades,1-2,3,4,5,6,7-8,9

cidades-estadositalianas

príncipesdas

civilité,oucivilidade,1,2-3,4,5,6

‘‘civilização’’,1,2,3,4,5-6,7,8,9,10-11,12,13-14,15,16,17,18

classe,1-2

classealta/superior,1,2,3,4,5,6-7,8,9-10,11,12,13,14,15-16,17-18,19-20,21,22,23

classesfuncionais,1-2

democratização

dependências,1,2,3

dominação

classeguerreira,1-2,3,4,5,6,7,8,9

famílias/Casas,1-2,3-4,5,6,7

nobreza,1,2,3

sociedade/sociedades,1-2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15-16,17-18

classeinferior/baixa,1,2,3-4,5-6,7,8

classesmédias/classemédia,1,2-3,4,5,6,7,8,9-10

classesacerdotal/religiosa

classetrabalhadora/operária,1-2,3

clero/sacerdotes,1-2,3,4,5,6,7,8,9,10

códigosdeconduta,1,2,3

códigosdemaneiras,1-2

códigolegal

direitos,1-2

relações

coexistência,1-2,3

Cohn,W.

coisapública

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colonização,1,2,3,4,5,6,7

comercialização,1,2,3,4-5

comércio

comunicações

competição,1,2,3,4,5,6,7-8

Vertambémlivrecompetição

competiçãorestritiva/limitadora,1-2,3,4,5

competiçãoterritorial/porterritório

domíniodafamília

governantes,1,2

competição,mecanismosde

pressõesda,1-2,3

lutasda,1,2

compulsão,1,2,3,4,5,6

condutacivilizada

condutacortesã

configuraçãodeEstados/sociedadesde,1,2,3,4-5,6,7,8

consciência,1,2,3,4,5

constelaçãodenecessidades

controledaconduta,1,2,3-4

controledaspulsões/emoções,1,2,3,4,5,6,7,8,9-10,11,12,13,14,15,16,17

inibição

estrutura,1,2,3

economia,1,2,3,4,5,6,7

energias

satisfação

coordenação,1-2,3,4,5,6,7

funções

coordenadorsupremo,1,2

cortes,1,2,3-4

cortesfeudais,1,2,3,4

propriedades

senhores,1,2

sociedades,1,2,3

sistema,1,2,3

cortesãos,1,2,3,4,5,6,7,8,9

Coulton,G.G.

Courtin,Antôniode

Crécy,batalhade

Cruzadas,1-2,3-4

culpa

‘‘cultura’’

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Darwin,Charles

Delfinado

descentralização,1,2

desflorestamento,desmatamento,1,2-3,4

departamentização,353

dependência,1,2-3

DellaCasa,Giovanni,337,358

desfrute(prazer)

desintegração,1,2,3

desvalorização,1,2

diferenciação,1,2,3-4,5-6,7,8,9

docomportamento

dasfunçõessociais,1,2,3,4

dîmesaladine,dízimosaladino,1

dinâmicaconfiguracional,1-2

pressões

dinâmicarelacional/dasrelações,1-2

direito,1-2,3,4-5

‘‘direito’’científico

distinção,1-2

distribuição

divisãodefunções,1,2,3,4,5-6,7-8,9-10,11-12,13-14,15,16,17,18,19-20,21

dotrabalho,1,2,3,4,5,6,7-8,9,10,11,12,13,14,15

dominaçãomasculina,1-2

Donatello

Dopsch,A.,1-2,3-4

dor,tolerânciada

Dreux,Casade

Dummler,Enst

Dupont-Ferrier,G.

economia,1-2

economiaprivada

propriedade,1,2,3

economiadetroca/escambo,1,2-3,4,5-6,7,8,9,10,11-12,13,14-15,16,17,18,19,20,21,22,23,24,25,26-27,28-29,30

educação

EduardoIII,reidaInglaterra

ego,1,2

centro

funções,1,2

estrutura,1,2

eixosdetensão,1,2,3,4,5

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ElCid

Elias,Norbert,1,2

emancipação,1,2,3

emigração

emoções,1,2

emoçõesdecurtaduração

empregados,1,2

entrelaçamento/interligação,1-2,3,4,5,6,7,8,9,10,11-12,13,14,15-16,17

envolvimento,1-2

equilíbrio/balançodepoder,1,2,3,4

detensões,1,2

Erasmo

Escócia,1,2

escravidão

Espanha,1,2,3

especialistas

especialização,1,2

Estados,1-2,3,4

Estado,formaçãodo,1,2,3,4-5,6,7,8

Vertambémcentralização,configuraçãosociedadede

EstadosUnidos

estrangeiros,1,2,3-4,5

estratosinferiores,1-2

estruturadaansiedade

daconsciência

docontrole

daspulsões,oupulsional,1,2

dosmedos

dosrelacionamentoshumanos

dasociedade

etnologia

etiqueta,1,2,3

Europa,1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11

evolução

excesso/excedentedemão-de-obra

produção

excessodepopulação,excessodemográfico

exército,1,2

exércitodereserva,1,2

expansãoárabe

expansãoeuropéia,1-2

expansãodoOcidente

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sociedade,1,2,3-4

expressãoafetiva

Ferrara

fechamentodasociedade,1,2

FelipeIII,reideFrança,1,2,3-4

FelipeV,duquedeOrléans

FelipeVIdeValois,reideFrança,1-2

FelipedeEvreux

Felipe,oAudaz,duquedaBorgonha,1,2-3,4

‘‘fenômeno’’

Ferté-Alais,Casade,1-2

feudalismo,1,2,3,4

feudalização,1-2,3,4,5,6-7,8,9,10,11,12,13-14

Flandres,1,2-3,4,5,6,7,8,9

Flaubert,Gustave

Florença,1-2,3

FoixCasade

Foulque,condedeAnjou

forçascentrífugas,1-2,3-4,5-6,7-8,9-10,11-12,13,14,15-16,17,18,19

forçasdescentralizadoras

força/poder/poderiomilitar,1,2,3,4,5,6

formaçãodecapital,1,2

formaçãodeconceitos,1,2,3

formulaçõesmatemáticas

Fowles,L.W.

fragmentação

França,1,2-3,4,5-6,7-8,9,10,11,12,13-14,15-16,17,18-19,20-21,22,23,24,25-26,27,28,29,30,31,32,33,34,35,36

Franco-CondadodeBorgonha,1,2

Frância,1,2-3,4,5,6

Casade

FranciscoI,reideFrança,1,2,3,4-5,6

FredericoII,oGrande,reidaPrússia

Fronda,1,2,3

funçõescomerciais

funçãoreal,1,2,3,4

Casa,1,2,3,4

família

mecanismoda,1,2,3,4,5-6

poder

tesouro

GabrielleduSel

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Gales,1,2

Gasconha

Gastão,duquedeOrléans

GautierSenzavoir

gensd’armes,1

GodofredoPlantagenetadeAnjou,1-2

Germânia,1,2,3,4,5,6-7,8,9-10,11,12,13,14

Ghilberti

GodofredodeBouillon

Goldenweise,A.

Goudsblom,Johan

governo,1.Vertambémcentralizaçãogovernamental,organização/máquina,1,2,3,4,5,6

Gracián,1,2-3

Grécia,1,2

gruposurbanosburgueses,1,2

classes/estratos,1,2,3

levantes/insurreições

setor

guerra,1,2,3,4

tecnologiada

GuerradosCemAnos,1,2,3-4,5,6,7,8

guerrascivis,1,2

guerrasreligiosas

GuerradosTrintaAnos

guerreiros,1,2,3,4-5,6,7-8,9,10,11,12,13,14

GuilhermeI,oConquistador,reidaInglaterra,1,2,3,4-5

Guiscard,Roberto

Habsburgo,1,2,34,5,6-7

VertambémImpérioRomano-GermânicoHalphen,Louis

Hampe,Karl,1,2

Hanotaux,G.

Haskins,C.H.,1,2

Hauser,Henri,1,2

Hawkins,Francis

Hegel,G.W.F.

hegemonia,1-2,3

HenriqueI,duquedaSaxônia

HenriqueI,reidaInglaterra

HenriqueII,1,2

HenriqueII,reideFrança

HenriqueIII

HenriqueIV,1,2-3,4-5,6,7

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HenriqueIV,Imperador

Romano-Germânico

HenriqueVI,reideFrança

Hintze,Otto

história,1,2,3-4,5,6,7-8,9,10

históriaestrutural

historiografia

Hofmann,A.von

Hohenstaufen,1,2

Hohenzollern,1,2

Holbach

Holanda,1-2

homensdenegócios/empresários

Houssaie,Amelotde

HumbertoIIdeViena

HugoCapeto,1-2,3

Huguenotes

Huizinga,Johan

Húngaros,1-2,3

Hungria

id,1-2,3

IdadeMédia,1,2,3,4-5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17-18,19-20,21

Igreja,1,2,3,4,5,6,7,8,9-10,11-12,13,14

IgrejaAnglicana

ImbertdelaTour,P.

Iluminismo

ImpérioBritânico

ImpérioCarolíngio,1,2,3

ImpérioFranco,1,2-3,4

ImpérioHitita

ImpérioInca

ImpérioRomano,1,2,3,4

VertambémImpérioRomano-GermânicoImpérioRomano-Germânico(SacroImpérioRomano)1,2-3,4,5,6-7,8

impotência/inermidade

impostos,1,2,3,4,5,6

impulsosemocionais

individualização,1-2,3

Inglaterra,1,2,3-4,5,6-7,8-9,10,11,12,13,14,15,16,17-18,19,20,21,22

infância,1-2,3-4,5

integração,1-2,3,4,5,6,7,8-9,10,11-12

‘‘inteligência’’

interdependência,1,2-3,4,5-6,7,8,9,10-11,12,13,14,15-16,17,18,19,20,21,22,23,24,25,26,27,28,29,30,31,

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32-33,34,35-36,37,38-39,40,41,42,43,44,45,46,47-48,49,50,51,52-53,54,55-56

internalização

Itália,1,2,3,4,5,6,7

Jacqueton,G.

James,William

Japão,1,2

Jerusalém

JoanaD’Arc

João,reidaInglaterra

JoãodeBerry,1-2

João,oBomreideFrança,1-2,3,4

Judd,C.H.,1,2

justiça

JuvenaldesUrsines

Kern,Fritz

Kirn,Paul,1-2,3

Kretschmayr,H.

Kulisch,A.E.

LaBruyère,1-2,3-4

Lancaster,Casade

langued’oc,1

langued’oil,1

LaRochefoucauld

Lavisse,E.

lei/direitocientífico

LefebvredesNoettes,1-2

Lehugeur,P.

Levasseur,E.

Lewis,C.S.

libido,centroda

energias,1-2

impulsos,1,2

limitações/restrições,1,2,3,4,5-6

atravésdeoutraspessoas

limitação/controledaspaixões,1,2

Lisboa

livrecompetição,1,2-3,4,5,6,7-8,9,10,11,12,13,14-15,16,17-18

Vertambémcompetição

livros,demanda/procurade

Loewe,A.

Londres,1-2

Longnon,Auguste

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Lot,F.

Lotaríngia,1,2,3

LuísI,oPio,reideFrança,1-2

LuísIV,reideFrança

LuísVI,oGordo,1,2-3,4-5,6,7,8,9

LuísVII,1,2

LuísVIII,1,2

LuísIX,SãoLuís,1,2

LuísX,1,2

LuísXI,1-2,3,4

LuísXII,1,2

LuísXIII,1-2,3

LuísXIV,1,2,3,4-5,6,7-8,9,10

LuísdeAnjou,1,2,3,4

Luís,duquedeBourbon,1,2

Luís,duquedeOrléans,1-2

Lowenthal,L.

Lowie,R.H.,1,2

Luchaire,A.,1,2,3-4,5-6,7,8,9-10,11

Maquiavel

Macleod,W.C.,1,2,3

MagnaCarta

Maine

Maiorca,reide

Malraux,André

Mannheim,Karl

Maomé

MargaridadeFlandres

Maria,filhadeCarlos,oTemerário

MariadeChampagne

Mariéjol,J.H.

Masaccio

Maupassant,Guyde

Maximiliano,SacroImperadorRomano,1-2

Medici

Mediterrâneo

Meerssen,Tratadode

Mennell,Stephen

mercadores

merovíngia,época,1,2

Meudon

migrações

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Minnesang/menestréis,1-2,3-4,5

Mirot,Léon,1-2

missidominici,1

mobilidade

moderação

moderação/aquietamentodaspulsões

moeda,1-2,3,4,5,6-7,8,9,10,11,12,13-14,15,16,17-18,19,20,21,22,23,24,25

funçõesaquisitivas

economiada,1-2,3,4-5,6,7

monarca,1,2,3

monarquia,1-2,3,4,5-6,7,8,9-10,11,12,13-14,15-16,17,18,19

monarquiaabsoluta,1,2,3

monopólios,1,2-3,4

monopolização,1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14

monopólio,formaçãode,1,2

mecanismo/máquina,1,2,3,4-5,6-7,8,9,10,11,12,13

deoportunidadeseconômicas,1,2-3,4

dearmas,1-2,3

deforça/violênciafísica,1,2,3,4,5,6,7-8,9,10,11,12,13-14,15,16,17-18,19,20-21,22-23,24,25

dogoverno,1,2,3,4,5,6,7,8,9

datributação,1-2,3,4,5,6,7-8,9,10,11,12

Monthéry,Casade,1-2

Montmorency,duquede,1,2,3-4

Morrissey,Grace

movimentocivilizador,1-2

processo,1-2,3,4,5,6,7-8,9,10-11,12-13,14,15,16,17,18,19,20,21,22,23

mulheres,1-2,3

naçãoinglesa,1,2,3

nações,1,2,3,4,5

nações-estados,1,2-3

Nápoles,1,2,3

‘‘natureza’’,1,2-3,4,5,6

Navarra,reide

níveisinconscientes

nobreza,1,2-3,4,5,6,7,8,9,10-11,12-13,14-15,16-17,18-19,20,21,22,23-24,25,26,27,28-29,30,31,32,33,34-35,36-37,38,39,40-41

noblessed’épée,nobrezadeespada,1

noblessederobe,nobrezadetoga,1,2

Normandia,1,2,3

normandos,1,2,3,4,5,6

normandosdinamarqueses

novelas/romances

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Ogburn,W.F.

oligarquia

opressão

Oriente,1,2,3,4,5

Orléans,1,2

OtoI,ImperadorRomano-Germânico,1,2

pacificação,1,2,3,4-5,6-7,8-9,10-11,12-13

padrõesdecivilização,

deconduta,1,2

devida,1-2,3-4,5,6

pulsões,1,2

pulsõesdecurtaduração

Paris,1-2,3,4,5,6-7,8,9,10-11,12-13,14,15

parlamentos,1,2,3

Parsons,E.C.

patamardeembaraço,1-2,3,4,5,6

pensamentoracional,1,2

percepção

Peru

Petit-Dutaillis,C.,1-2

Petrusevski,1-2

pequenaburguesia

poderdafamília,1-2

Poitiers,Batalhade,1,2

Poitou

polarização

‘‘política’’,1-2

políticaexterna,1-2

potência/paísindustrializado

sociedadedas,1,2,3-4

prestígio,1,2,3,4,5,6-7,8,9,10,11-12

PrimeiraGuerraMundial

príncipesdefleursdelis,1,2-3

príncipesgermânicos

territóriosdos,1,2

privilégios,1-2,3

produção,meiosde,1-2,3

profissõesliberais/independentes

proletariado,1,2

propriedadedaterra,1,2-3,4,5

protestantismo

Proust,Marcel

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provas/lutaseliminatórias,1-2,3,4,5,6,7,8,9,10,11-12,13,14,15,16

Prússia

psique

psicogênese,1,2

psicologia,mudança

funções,1-2,3

psicologização,1-2,3-4

psicologia

Puritanismo

Quitzow

Ranke,Leopoldvon,1,2,3

racionalidade,1,2

racionalização,1,2,3-4,5,6-7,8

reduçãodecontrastesnaconduta,1-2

reis,1,2,3,4,5,6-7,8-9,10-11,12,13,14,15-16

lexão

orma

regimedemocrático

regularidades,1,2,3,4

regulaçãodaspulsões,1,2

dasrelaçõessexuais

relaçõesinternacionais,1-2

relaçõesnativos-estrangeiros

religião,1,2

Renascença,1,2

repugnância,1,2

fronteirada

retrogressão

revoltas

RevoluçãoFrancesa,1,2,3

RicardoI,CoraçãodeLeão,reidaInglaterra,1,2

Richelieu,Cardeal,1,2,3,4

Rieux,condede

Robert,condedeClermont

RobertoCapeto

Rocheford,Casade,1,2

Rochow

rococó

Romains,Jules

Roma

Rostovtsev,M.

Rouen

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sábios/eruditosambulantes

SacroImpérioRomano,1,2,3,4

VerImpérioRomano-Germânico

Saint-Simon,duquede,1,2,3-4,5,6,7,8-9

Sand,George,1-2

sarracenos,1,2

Saudita,Arábia

Schomberg,general

secularização

sensitividade,1,2

servosdagleba

setoragrário

sociedadesguerreirase

sexos,relaçõesentreos

sexuais,impulsos,1,2

sexualidade

Sicília

sociedadedecavaleiros/cavaleirosa,1-2

sociogênese,1-2,3,4,5,6-7,8,9

sociologia,1,2,3,4

sociologiaamericana

status,1,2

Stölzel,A.

sublimação

Sumner,W.G.,1,2

superego,1,2-3,4,5,6,7,8,9,10-11,12,13,14,15,16,17,18-19,20-21,22,23,24,25,26

funçõesdo,1,2

Suábia,Casada

Suécia

Suíça

superioridadefísica

tabus,1,2,3,4,5-6

TancredodeHauteville

taxadenatalidade

tecnologia,1,2-3,4-5

Teggart,F.J.

tensões,1,2,3,4,5,6,7-8,9,10,11

tensõesinternas,1,2,3

terceiroestado,1,2-3,4,5-6

Thompson,JamesWestfall,1,2

tipoideal

Toledo

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toga,homensda,1-2

TomásdeAquino,São

tortura

Toulouse,condesde

Toulose,condadode,1,2,3

Touraine

trabalhoescravo,1-2,3

tráfico

transporte,1-2,3-4,5,6

triboseslavas

tribosnômades,1-2

tributação,1,2,3

trovadores,1-2,3

VertambémMinnesang

Tudors

turcos

unidadeshegemônicas

unidadetribal,1,2

utopia

Vaissière,Pierrede

Valência

ValentinaVisconti

Valois,Casade,1,2,3-4,5-6

vassalos,1,2,3-4,5

Vendôme,duquede

Veneza,1,2,3,4,5

Verdun,Tratadode

vergonha,1-2,3,4

fronteirada,1,2-3,4

Versalhes

Vexin,1,2

vigilância,1,2

Viena

vinicultura

violência,1,2

violêncianão-física

Viollet,Paul

Vuitry,A.,1,2-3

WalterHabenichts

WaltervondeVogelweide,1,2

Washington,George

Weber,Max,1,2

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Wechssler,Eduard

Weimar

Welf

Werneke,Hansvon,1-2

Zarncke,F.

Zimmern,A.

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PublicadooriginalmentesobotítuloÜberdenProzessderZivilisation,vol.2,em1939,

porHauszumFalken,deBasiléia,Suíça

Traduçãoautorizadadaversãoinglesa,feitaporEdmundJephcott,com

notaserevisãodoautor.(Englishtranslation©BasilBlackwell,1982)

Copyright©1939,1969,1976,NorbertEliasCopyrightdaediçãobrasileira©1993:

JorgeZaharEditorLtda.

ruaMéxico31sobreloja

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Todososdireitosreservados.Areproduçãonão-autorizadadestapublicação,notodo

ouemparte,constituiviolaçãodedireitosautorais.(Lei9.610/98)

ISBN:978-85-378-0458-2

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