54
TRABALHANDO COM A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Ministério da Educação Ministério da Educação O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORES

O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

TRABALHANDO

COM A EDUCAÇÃO

DE JOVENS

E ADULTOS

Ministérioda Educação

Ministérioda Educação

O PROCESSO

DE APRENDIZAGEM

DOS ALUNOS

E PROFESSORES

Page 2: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

Presidente da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Educação

Fernando Haddad

Secretário-Executivo

José Henrique Paim

Secretário da Educação Continuada,

Alfabetização e Diversidade

Ricardo Henriques

Page 3: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

TRABALHANDO

COM A EDUCAÇÃO

DE JOVENS

E ADULTOS

O PROCESSO

DE APRENDIZAGEM

DOS ALUNOS

E PROFESSORES

Page 4: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

Diretor do Departamentode Educação de Jovens e Adultos

Timothy Denis Ireland

Coordenadora-Geralde Educação de Jovens e Adultos

Cláudia Veloso Torres Guimarães

Equipe de elaboração

Redação:

José Carlos da Motta Barreto

Coordenação:

Vera Barreto

Revisão:

Maria Luisa SimõesGlória Maria Mota Lara

Design gráfico, ilustração e capa

Amilton Santana

Fotos da capa:

Moisés Moraes

Agradecimentos:

Irene SantiagoIolanda G. Castro Feola

Brasília - 2006

Page 5: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

1

Apresentação

O Ministério da Educação, para enfrentar os processos excludentes que marcam os sistemas de educação no país, cria, em 2004, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD). Respeitar e valor izar a diversidade da população, garant indo pol í t icas públ icas como instrumentos de cidadania e de contribuição para a redução das desigualdades são os objetivos desta nova Secretaria.

A SECAD, por meio do Departamento de Educação de Jovens e Adultos, busca contribuir para atenuar a dívida histórica que o Brasil tem para com todos os cidadãos de 15 anos ou mais que não concluíram a educação básica. Para tanto, é fundamental que os professores e professoras dos sistemas públicos de ensino saibam trabalhar com esses alunos, utilizando metodologias e práticas pedagógicas capazes de respeitar e valorizar suas especificidades. Esse olhar voltado para o aluno como o sujeito de sua própria aprendizagem, que traz para a escola um conhecimento vasto e diferenciado, contribui, efetivamente, para sua permanência na escola e uma aprendizagem com qualidade. Apesar de a educação de jovens e adultos ser uma atividade especializada e com características próprias, são raros os cursos de formação de professores e as universidades que oferecem formação específica aos que queiram trabalhar ou já trabalham nesta modalidade de ensino. Igualmente, não são muitos os subsídios escritos destinados a responder às necessidades pedagógicas dos educadores que atuam nas salas de aula da educação de jovens e adultos. Procurando apoiar esses educadores, a SECAD apresenta a coleção Trabalhando com a Educação de Jovens e Adultos, composta de cinco cadernos temáticos. O material trata de situações concretas, familiares aos professores e professoras, e permite a visualização de modelos que podem ser comparados com suas práticas, a partir das quais são ampliadas as questões teóricas.

O primeiro caderno, ALUNAS E ALUNOS DA EJA, traz informações, estratégias e procedimentos que ajudam os educadores a conhecerem quem são os seus alunos e alunas. Questões que abordam o perfil do público da educação de jovens e adultos, tais como: porque procuram os cursos, o que querem saber, o que já sabem e o que não sabem, suas relações com o mundo do trabalho e na sociedade onde vivem.

Em A SALA DE AULA COMO UM GRUPO DE VIVÊNCIA E APRENDIZAGEM, segundo caderno desta coleção, são apresentadas algumas estratégias capazes de gerar, desenvolver e manter a sala de aula como um grupo de aprendizagem onde cresçam os vínculos entre educador/educando e educandos entre si. Nos dois cadernos seguintes são abordados quatro instrumentos importantes para a prática pedagógica dos professores e professoras: OBSERVAÇÃO E REGISTRO, AVALIAÇÃO E PLANEJAMENTO. São desenvolvidas, entre o conjunto de questões pertinentes aos temas, suas funções e uti l idades no cotidiano do educador.

O último caderno, O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORES, apresenta orientações e discussões relativas à teoria do conhecimento: como os alunos aprendem e como os professores aprendem ensinando.

Boa leitura!

Ricardo HenriquesSecretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Page 6: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

2

Índice

Parte 1

O conhecimento 3

As várias concepções do conhecimento 4

Parte 2

A concepção tradicional do conhecimento 7

Algumas características da concepção tradicional 7

Parte 3

A concepção democrática do conhecimento 19

Algumas características da concepção democrática 22

Parte 4

Os passos do conhecer 42

Como estimular o aluno a conhecer 45

Bibliografia 50

Page 7: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

3

Parte 1

O CONHECIMENTO

É preocupação presente em qualquer professor(a) é saber se seus alunos

aprenderam o que ele gastou tempo e energia para ensinar.

Triste é perceber, algumas vezes, que nada ou quase nada do que ele pensou

ter ensinado foi aprendido. Nestes momentos, costuma ocorrer uma frustração

pessoal que chega a ser maior do que a gerada pelos baixos salários que

costumam ser pagos aos que dedicam sua vida ao ensino.

Inúmeros são os fatores que contribuem para isto e não iremos analisá-los

todos. Mas, sendo o processo do conhecimento um aspecto central da

atividade educativa, merece que façamos um esforço maior para compreendê-

lo. Afinal, a escola é um espaço privilegiado para a busca do conhecimento.

As pessoas chegam lá para aprender e quando isto não acontece a ida à

escola perde o sentido.

Apesar de toda essa importância, o conhecimento não tem merecido a atenção

adequada por parte de todos os professores. Muitos costumam acreditar que

já sabem tudo o que é necessário sobre ele. Lidando continuamente com o

ensino e a aprendizagem esse assunto lhes parece óbvio. Não têm dúvidas

sobre ele.

É exatamente aí que mora o perigo! Nada prejudica mais o conhecimento do

que a inexistência de dúvidas. Você que está nos lendo, provavelmente sabe

que só nos movimentamos para aprender quando temos perguntas sobre

alguma coisa, isto é, quando temos dúvidas sobre ela.

Ninguém se dará ao trabalho de buscar conhecer melhor aquilo sobre o que já

tem certeza.

As certezas, que muitos professores têm sobre o conhecimento podem ser

responsáveis por noções equivocadas sobre esse assunto. Isto é grave para

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Page 8: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

4

um profissional da educação porque, de alguma forma, repercute na sua ação

de contribuir para que seus alunos aprendam.

Aprender dá trabalho, às vezes muito trabalho! Os professores devem ter isto

sempre presente. Devem estar preocupados em não convidar seus alunos a

realizar um trabalho inúti l . Trata-se de uma questão ética. Trabalho inúti l

ocorre quando é real izado para obter um conhecimento que não lhes dá

nenhum retorno efetivo. É inúti l também quando dele não resulta nenhum

conhecimento. Estes riscos são presentes quando o(a) professor(a) sustenta o

seu trabalho sobre conceitos equivocados em relação ao que seja o

conhecimento e suas características.

Nesse caderno iremos refletir sobre questões do conhecimento. Procuraremos

oferecer subsídios que possam se somar ao que você já sabe, para ajudá-lo a

compreender melhor o assunto que é central na sua atividade de professor(a).

A sala dos professores é sempre lugar de muitas conversas. O assunto de

ontem foi sobre qual a melhor forma de agir para que os alunos aprendam o

conteúdo, que lutamos por ensinar.

AS VÁRIAS CONCEPÇÕES DO CONHECIMENTO

Luísa, a professora mais antiga da escola, foi logo dizendo:

Lena, que diferentemente da Luísa só começou a trabalhar esse ano, foi

entrando na conversa:

“Eu exijo a presença de todos, todas as noites. Brigo, mesmo, para

ter todos presentes na aula! Sei que os alunos da EJA encontram

muitas dificuldades na hora de estudar, mas se faltam piora. Como

podem aprender sem ouvir as nossas explicações!”

“Para mim uma coisa já ficou certa. Os alunos aprendem melhor

quando são obr igados a responder um quest ionário sobre o

assunto tratado na aula.”

Page 9: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

5

Jair, que estava quieto, resolveu entrar na roda:

Do outro canto da mesa, Selma completou:

“Eu escrevo o que é para saber no quadro e todos copiam. Assim

aprendem.”

“Nossa gente! Para mim é diferente! Eu procuro tratar o conteúdo

do ponto de vista do interesse dos alunos. Eles ficam envolvidos

com o que estão estudando e se esforçam por aprender bem.”

Você deve ter observado que numa pequena roda de professores é possível

encontrar diferentes prática visando o conhecimento.

Luísa pensa que ouvir as expl icações dadas pela professora leva a

aprendizagem; Lena imagina diferente. Para ela, nada ensina melhor do que

responder a um conjunto de perguntas feitas pelo(a) professor(a) sobre a

matéria que está sendo desenvolvida. Para Jair, é copiando que se aprende. E

para Selma, os alunos aprendem melhor quando o conteúdo ensinado

responde a alguma curiosidade ou necessidade deles.

Analisando o conjunto das respostas dadas poderíamos achar estranha tanta

diversidade entre professores de uma mesma escola. Isso só ocorre porque as

concepções de conhecimento são muito variadas.

As di ferentes concepções vão sendo construídas pelas experiências e

informações pessoais bem como idéias socialmente construídas e transmitidas

pela cultura da qual fazemos parte.

Esta diversidade de concepções produz também a diversidade de maneiras de

trabalhar dos professores. Não se trata apenas de meras preferências

pessoais, mas dos alicerces sobre os quais é construído seu trabalho. Muitas

vezes, eles nem se dão conta deste fenômeno, isto é, que o trabalho que

fazem expressa a concepção que têm do conhecimento.

Para ajudar a compreender melhor as concepções mais freqüentes em

Page 10: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

6

relação a produção do conhecimento é que convidamos você a acompanhar

conosco essas reflexões.

Vamos começar apontando alguns aspectos do conhecimento que, certamente,

não apresentam nenhuma novidade. São velhos conhecidos de todos nós, que

freqüentamos a escola, porque lá convivemos com eles.

Esta convivência pode nos fazer acreditar que a forma escolar de conhecer

seja a única forma de conceber o conhecimento. Seu prestígio em nossa

sociedade é enorme mas ela não tem o monopólio do ensino. A escola não é

o único espaço onde se aprende. Quando entramos na escola já sabíamos

muito e depois que saímos continuamos a aprender. Grande parte da nossa

população freqüentou a escola durante pouco tempo e teve que aprender o

que sabe fora dela.

A concepção escolar de conhecimento não é tão diferente das que estão

presentes em outros espaços da nossa sociedade: na família, nas igrejas, nas

associações esportivas, nos sindicatos. Isso acontece porque a escola é parte

da sociedade. Como tal, o que acontece nela repercute na sociedade e vice-

versa.

Existem outras formas de conceber o conhecimento, mas dentro deste espaço

limitado, iremos nos preocupar com apenas duas: a concepção tradicional e a

concepção democrática.

Page 11: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

7

Parte 2

A CONCEPÇÃO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO

Ao nos determos nessa visão de conhecimento iremos perceber que ela não

contempla muitas das características e necessidades do mundo de hoje.

A concepção tradicional de conhecimento começou a enfrentar dificuldades

com as mudanças que foram ocorrendo no mundo moderno. No Brasil, como

em toda a América Latina, estas dificuldades se tornaram acentuadas com as

grandes transformações pelas quais passou a escola pública, nos últimos

trinta anos. Foram mudanças que trouxeram fatos inéditos, como a escola

passar a abrigar crianças e jovens que antes não encontravam espaço nela;

crianças e jovens marcados pela pobreza, com experiências e expectativas

não usuais entre aqueles que eram atendidos até então.

A escola começava a deixar de ser o espaço de uma pequena parcela de

eleitos para se tornar o espaço de todos. Surgiram novas demandas que a

visão tradicional de conhecimento não contemplava: trabalhadores que se

tornaram estudantes para obter conhecimentos que lhe permitissem melhoria

profissional, o crescimento do ensino infantil, o aumento das creches. A escola

passou a ser procurada como nunca havia sido antes. Assim, não é de se

estranhar o crescimento da EJA e seu entendimento como modalidade de

ensino.

A visão tradicional de conhecimento já não era mais suficiente para dar conta

das novas necessidades a serem supridas pela escola. Não se trata de

desmerecer todas as contribuições da escola tradicional, mas reconhecer as

transformações ocorridas na sociedade e na escola.

Quanto a função

Para que serve o conhecimento dentro da concepção tradicional ainda

dominante na escola que conhecemos?

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA CONCEPÇÃO TRADICIONAL

Page 12: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

8

Até meados do século XX, eram, predominantemente, os filhos das famílias

originárias das classes médias e altas da sociedade que freqüentavam a

escola para buscar conhecimento. A escola ensinava o que ela considerava

necessário aos membros destas elites. Visava contribuir para que os jovens

pudessem participar da sociedade de forma compatível com suas origens e

posições sociais. Deviam saber o necessário para não ficarem inferiorizados

junto aos seus pares.

Os temas desenvolvidos eram escolhidos com esta finalidade. Com o tempo,

estes conteúdos tornaram-se característicos da escola e dominá-los passou a

ser uma indicação de ter passado pelos bancos escolares. Sendo freqüentada,

quase que apenas pelas elites, isto indicava também a situação social de

quem dominava estes conhecimentos. É provável que isto esteja na raiz do

prestígio dos conhecimentos ditos “escolares”. Prestígio que perdura até hoje!

Quem passava pela escola, em geral, fazia parte da elite social, isto é, estava

destinada a mandar. Os conhecimentos necessários eram os que ajudassem a

cultivar as virtudes que facilitassem o exercício de mandar e dirigir.

Precisava dominar a linguagem e a retórica, auxiliares na argumentação. Eram

conhecimentos preciosos para quem precisava convencer e garant i r a

obediência.

Para quem freqüentava a escola, os conhecimentos ligados ao fazer eram

secundários e até desnecessários. Af inal , t inha o poder e os recursos

necessários para mandar fazer.

Percebe-se que a função do conhecimento nesta visão tradicional é servir às

el i tes, isto é, as classes com melhor s i tuação social , para as quais

mudar a sociedade não oferece a menor atração. O conhecimento perde,

neste caso, a motivação transformadora da sociedade e passa a ser apenas

de manutenção e eventual melhoria.

Quanto a produção

Na visão tradicional, o conhecimento é considerado obra de especialistas:

Page 13: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

9

cientistas, pesquisadores, filósofos, teólogos, inventores etc. São eles que

detêm a autoridade de produtores de conhecimentos. Raramente é admitido

que pessoas comuns possam produzir conhecimentos.

Também se imagina que alguns espaços sejam pr iv i legiados para esta

produção: as universidades, os laboratórios, as empresas especializadas.

Dentro dessa concepção estabeleceu-se quase uma “l i turgia” para tornar

legítimo o conhecimento. Simplificando bastante, poderíamos descrever assim

este ritual: depois de produzido, o conhecimento é codificado em um texto e

publ icado em revistas especial izadas ou l ivros que dão início à sua

divulgação. Normalmente esta divulgação é completada por palestras,

conferências, cursos, aulas e internet. Os veículos de comunicação se

encarregam de “passar” o conhecimento preparado pelos especialistas aos

ouvintes, assistentes, participantes, alunos, leitores e simples mortais.

É este tipo de conhecimento, assim legitimado, que se espera ser ministrado

na escola. Não é de admirar que essa forma de tratar o conhecimento dê a

ele um caráter tão solene que intimida os professores e alunos. Ninguém se

atreve a alterar nada do texto que explicita esse conhecimento.

A título de ilustração lembro-me de uma professora de Geografia de muitos

anos atrás, do início da era espacial , quando começaram a aparecer

fotografias da Terra feitas pelos satélites. Nelas aparecia o nosso planeta

perfeitamente circular. Estas fotos desmentiam o conhecimento que constava

dos livros escolares e que afirmava ser a Terra redonda mas ligeiramente

achatada nos pólos. Quest ionada sobre a questão, a professora não se

acanhou em dizer que o que “valia” era o que estava nos livros. Ninguém

devia afirmar nada diferente enquanto os livros não fossem alterados.

Percebe-se porque, nessa visão, a memória é tão fundamental. Ela serve para

guardar a maior quantidade possível de conhecimentos, reproduzindo o que

vai sendo produzido e divulgado pelos especialistas.

É considerado bom aluno ou aluna quem souber as respostas na “ponta da

língua”. Sinal que o esforço realizado para “decorar” tornou dispensável gastar

tempo pensando para responder.

Page 14: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

10

A separação entre fazer e pensar

Na concepção tradicional, tem muito prestígio tudo aquilo que se refere ao

pensamento. Em contrapartida, é pouco valorizado aquilo que se refere à

ação, ao fazer.

Isso, de uma certa forma, reproduz a nossa sociedade em que pensar tem

mais prestígio do que fazer. Talvez seja uma reminiscência do nosso passado

escravocrata em que o senhor pensava e os escravos e assemelhados faziam.

São mais considerados os conhecimentos relativos ao pensar, chamados de

teóricos, do que os relativos ao fazer, chamados de práticos.

A valorização exagerada da memória

O costume de reproduzir apenas o conhecimento socialmente legit imado

acabou por fazer crer que a memorização fosse sinônimo de conhecimento.

Saber é saber de cor. Aprender é o mesmo que decorar.

A verbalização excessiva

A visão tradicional tende a fazer crer que o conhecimento é uma formulação

verbal expressa em uma exposição oral ou escrita. Esta exposição pode ser

feita no momento adequado e assim demonstrar o conhecimento de quem a

faz. Conhecimento e discurso se identificam e o resultado mais evidente é uma

verbalização excessiva.

Na busca da exibição do conhecimento é tão importante mostrá-lo quanto

esconder o desconhecimento. Para isto nada mais útil do que a manipulação

verbal.

As experiências que acumulamos durante toda a nossa vida escolar e social

podem nos levar a acreditar que o conhecimento é um discurso ou texto

escrito, que existe pronto na cabeça dos professores ou impressos nos livros,

e que aprender consiste em memorizá-los.

Page 15: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

11

Isto tende a induzir o(a) professor(a) a acreditar que ensinar é a arte de fazer

com que os alunos decorem este “conhecimento-texto ou discurso”. Daí as

infindáveis repetições e exercícios destinados a facilitar a memorização.

Muitos dos que acreditam nessa concepção argumentam que estando o

conhecimento na memória, no momento em que for necessário utilizá-lo, ele

estará à disposição. Se a memória falhar, sabendo de que assunto se trata,

basta consultar a literatura existente para “refrescar” a memória.

Mas, essa concepção de conhecimento que tanto sucesso fez na escola, não

dá conta de toda a questão.

Em primeiro lugar, porque nem tudo o que sabemos pode ou precisa ser

transformado em texto ou discurso. Experimente colocar em palavras o seu

conhecimento sobre nadar, dirigir ou andar de bicicleta. Por mais informações

que coloque na sua verbalização verá que ninguém será capaz de nadar,

dir ig ir ou andar de bic ic leta apenas lendo seu texto ou escutando seu

discurso.

A verbalização pode informar, descrever acontecimentos, ações, sentimentos

ou objetos. É instrumento poderoso na tarefa do ensino e aprendizagem, mas

não têm o poder de expressar a totalidade do conhecimento.

Verbalizar é quase insubstituível na comunicação humana que é essencial na

construção do saber. Mas não é possível conter o infinito do conhecimento

dentro dos limites finitos da comunicação verbal.

Tudo o que dissemos até aqui, sobre memória e conhecimento, teve por

objetivo principal demonstrar que reduzir o conhecimento à memorização de

um discurso é equivocado. Não signif ica que a memória não tenha uma

função importante para o ensino e a aprendizagem, mas que ela é apenas um

dos elementos que interfere no conhecimento.

Influenciados por este modelo de conhecimento, por muito tempo acreditamos

que é preciso decorar para aprender. Na verdade, o que acontece é o inverso:

quando refletimos, aprendemos e só então memorizamos.

Page 16: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

12

O conhecimento é absoluto e está pronto e acabado

Na concepção tradicional, o conhecimento é visto como sendo inerente ao

objeto a ser conhecido. Conhecer é desvendar, neste objeto do conhecimento,

a verdade nele presente.

Nesta concepção, o conhecimento não muda a menos que o objeto do

conhecimento mude. Como o objeto do conhecimento raramente muda, o

conhecimento dele também pouco muda.

Dentro desta visão, pouco ou mesmo nada importa o papel daqueles que

pretendem conhecer este objeto. O subjetivo é desconsiderado.

Uma das conseqüências dessa atitude é trabalhar apenas com duas categorias

de conhecimento: o certo e o errado. Certo é o conhecimento que expressa

fielmente o objeto estudado e errado é aquele que não o faz.

Quando o aluno tenta responder perguntas de uma prova com as suas

próprias palavras, muitos professores vêem nisso um sintoma de falta de

estudo. Preferem que a resposta seja dada da forma mais próxima da que está

no livro adotado. Com isso, livram-se do trabalho de ter que acompanhar o

raciocínio do aluno e concluir se aceita ou não a resposta dele como certa.

Muitas vezes acontece que o critério para a inclusão nessas categorias de

certo e errado nem sempre é lógico, científico e, às vezes, nem está ligado ao

conhecimento.

É considerado certo porque está publicado e errado por que não está.. Outras

vezes porque “deu” na televisão ou no rádio. É extremamente valorizada a

“autoridade” de quem escreveu ou disse. Algumas vezes obedece uma certa

lógica de competência, como a do médico falando sobre saúde ou do

advogado sobre as leis; outras de motivos aleatórios e até preconceituosos do

tipo: é homem, é rico ou é o chefe.

O pior disso tudo é favorecer uma atitude equivocada frente a qualquer coisa que

se pretenda conhecer. Há a crença de que existe apenas uma forma certa de

Page 17: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

13

conhecer e, por decorrência, todas as outras são erradas. Como ninguém quer

conhecer a forma errada, a tentação é procurar o conhecimento considerado

certo, que normalmente está nos l ivros didát icos ou na cabeça do(a)

professor(a), e memorizá-lo.

Isto parece afastar a insegurança de estar errado. No entanto, esta atitude

além de enganosa, porque o que está no livro ou na cabeça do(a) professor(a)

pode estar errado, impede que se use o próprio discernimento, raciocínio e

julgamento para conhecer o que precisamos.

A hierarquia entre conhecimentos

Numa sociedade autor i tár ia como a nossa, a base que sustenta a

desigualdade é a diferença.

Você pode verificar que raramente existe uma diferença que não sirva para

estabelecer quem é mais e quem é menos. Homens e mulheres são diferentes

e portanto a sociedade trata de estabelecer quem é mais: homens ou

mulheres. As pessoas moram em bairros ou tem automóveis di ferentes.

Imediatamente procura-se hierarquizar estas diferenças. Que bairro ou que

automóvel é melhor? E as conclusões se estendem aos felizes ou infelizes

proprietários.

Faça um exercício para identificar esta hierarquização das diferenças. Poderá

chegar a conclusões muito interessante. Verifique entre seus conhecidos como

são percebidas as diferenças de raças, vestimentas, escolas, faculdades,

preferência musical, regiões, estados ou cidades de origem, programas de

televisão que assistem etc.

É muito raro exist i r uma di ferença que não seja just i f icat iva para uma

desigualdade: onde um é mais e o outro é menos. Uma das tragédias do

autoritarismo é transformar as diferenças, que são ótimas, em desigualdades

que são péssimas.

Como não poderia deixar de ser, esta lógica permeia também as áreas do

conhecimento. Estabelece-se uma hierarquia de conhecimentos: os que são

Page 18: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

14

mais e os que são menos. Alguns são desejáveis e outros não. O critério para

categorizá-los não é o da necessidade de quem vai aprender mas, na maior

parte das vezes, o da classe social que se serve deles.

Não é por acaso que conhecimentos sobre literatura, matemática, filosofia,

línguas estrangeiras ou história e geografia são considerados mais “nobres” do

que os conhecimentos sobre mecânica, construção ou marcenaria. O divisor

clássico e mais visível disto é a separação entre teoria e prática com nítida

superior idade da pr imeira sobre a segunda. Igualmente ocorre com a

valorização do pensar sobre o fazer.

Transmissão verbal do conhecimento

Na concepção tradicional, o conhecimento está contido, na maior parte das

vezes, em um discurso oral ou escr i to. Discursos são instrumentos de

comunicação e podem ser memorizados e transmitidos. Provavelmente daí

nasce a falsa impressão muito difundida de que os conhecimentos podem ser

transmitidos.

Na verdade, o que é possível transmit ir é o discurso oral ou escri to que

descreve o objeto do conhecimento. O conhecimento independe do discurso.

Uma pessoa que seja muda ou surda pode perfeitamente conhecer sem ser

capaz de falar ou ouvir. Igualmente um analfabeto pode conhecer sem ser

capaz de escrever o que sabe.

“O processo ensino-aprendizagem pode ser assim sintetizado: o

professor passa para o aluno, através do método de exposição

verbal da matér ia, bem como de exercícios de f ixação e

memorização, os conteúdos acumulados cul turalmente pelo

homem, considerados como verdades absolutas. Nesse processo,

predomina a autoridade do professor enquanto o aluno é reduzido

a um mero agente passivo, Os conteúdos, por sua vez, pouco têm

a ver com a realidade concreta dos alunos, com sua vivência. Os

alunos menos capazes devem lutar para superar as suas

dificuldades, para conquistar o seu lugar junto aos mais capazes”

(J.S. Brubacher)

Page 19: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

15

Não favorece os alunos da área popular

O aumento do ingresso da população de baixa renda na escola fez crescer

algumas dif iculdades desta concepção na conquista dos bons resultados

esperados. Certamente, este fato tem forte relação com a forma popular de

aprender, muito diferente do modelo escolar.

O jeito de aprender do povo

Esta situação não é apenas deles, mas de grande parcela da população

brasileira, na qual se incluem os alunos e alunas da EJA.

É um jeito de aprender diferente da forma como se aprende na escola. Vamos

tentar uma comparação:

Neide e Januário aprenderam vendo e tentando fazer. As dificuldades no

acesso à escola e a decorrente dificuldade na leitura de livros e revistas

tornaram accessíveis a eles só o aprender na sua forma inicial: observar

e reproduzir.

Forma popular de aprender

Aprende-se o que desperta a

curiosidade ou se tem a

necessidade de saber.

O corpo acompanha a

aprendizagem de uma forma livre,

participando ativamente.

A relação entre quem ensina e

quem aprende é próxima. Geral-

mente um parente, um vizinho,

alguém que sabe mais, mas tem

muito em comum com seu aprendiz.

Forma escolar de aprender

Aprende-se porque o programa

exige e o professor decidiu

ensinar

Há uma disciplina corporal

imposta: ficar sentado por um

determinado tempo, não

perguntar a qualquer hora etc.

Mesmo quando há diálogo entre

professor e aluno a relação entre

os dois é mais distante, é de

respeito.

Page 20: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

16

Forma popular de aprender

Aprende-se mais vendo e

acompanhando o fazer do que

pelo ouvir explicações.

O conhecimento repercute na vida

de quem aprende quase

imediatamente. Altera sua forma

de fazer.

Forma escolar de aprender

Ouvir o professor é um dos

principais elementos do aprender.

Por isso a necessidade do

silêncio.

O conhecimento não repercute

imediatamente na vida da pessoa

mas aumenta seu prestígio

social.

O relato, que segue, demonstra bem esta situação:

“Fui convidada para um trabalho de educação, com participantes

de uma frente de trabalho.

Sou professora da EJA, mas esta era uma situação nova para

mim. Os que seriam meus alunos não haviam procurado a escola,

queriam um trabalho que, mesmo sendo temporário, daria a eles

algum dinheiro.

Todos tinham um compromisso de 6 horas diárias com a prefeitura.

Duas destas horas seriam para o nosso curso e as outras quatro

horas seriam prestadas num dos serviços municipais. Nem preciso

dizer que o interesse da maioria era muito pequeno. Apesar de

todo o esforço para tornar as aulas interessantes era muito grande

a movimentação de todos.

Depois de algum tempo, por questões operacionais, a prefeitura

estendeu o período escolar.

Quando a notícia chegou ao grupo foi um desespero total. O mais

idoso dos trabalhadores, um senhor de mais de 50 anos quase

chorou ao argumentar que nunca sentou tanto na sua vida que o

corpo todo doía, as pernas inchavam. No meio dos protestos,

Page 21: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

17

Nair levantou e falou: “Sonia, para isso dar certo a gente tem que

ficar fazendo alguma coisa, enquanto escuta você ou entre uma

atividade e outra. Como aqui tem muito mais mulher quero pedir

para a gente poder fazer crochê enquanto estuda.” A idéia parecia

louca, mas foi tão aplaudida que respondi propondo terminar as

manhãs com uma roda de leitura, atividade onde o crochê estaria

liberado. Curiosamente, nunca as leituras foram tão esperadas e

aproveitadas. E ninguém saia da sala, a maioria participando com

comentários e observações bem interessantes, além de muito

crochê...

Passei a pensar no quanto esquecemos do significado que o uso

do corpo tem para quem o utiliza durante todo o dia. Nunca tinha

pensado nisso, concentrando toda muita atenção no intelectual de

quem aprende.” Sonia Álvares

“São pessoas simples, mas queridas e amadas. São maravilhosas

em seu modo de ser, pois demonstram um desejo imenso de

aprender a ler, escrever e vencer. Mesmo com todas as

dificuldades enfrentadas tanto na aprendizagem quanto em sua

vida particular, têm tempo para um sorriso no inicio da aula, uma

palavra amiga quando estou triste ou com problemas, ou ainda

discretamente e timidamente colocar sobre a mesa balas sortidas

dizendo: “Professora, é para a senhora adoçar a garganta”.

Não é fácil perceber o quanto a escola difere das outras experiências vividas

nas áreas populares.

Tanta estranheza cria a necessidade de aceitação, de ajuda, de paciência.

Aliás, qual é o professor da EJA que nunca recebeu agradecimentos pela sua

paciência.

É fáci l perceber como a relação professor(a)-aluno(a) é de fundamental

importância para o sucesso na educação de jovens e adultos. Essa relação é

facilmente percebida nos textos da professora Iolanda e da aluna Irene:

Page 22: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

18

Com todo o estudo que tenho, e enquanto puder vou continuar a

aprender, pois adoro ler e escrever. Já estou convicta de que

minha segunda paixão é alfabetizar, já que a primeira é a minha

famíl ia. E quando chega o f im do dia, estafante, o que me dá

forças, muitas vezes, é justamente o esforço, a dedicação, a força

de vontade e o car inho que demonstram pelo estudo e pela

professora.”

Iolanda Feola é professora

Em Francisco Morato (SP)

“Para minha professora Dora

Você não sabe mas você é muito importante para mim. Eu vivia

doente, ia sempre no posto de saúde. Na escola e com a

professora Dora sou outra pessoa. Você foi como sol porque

iluminou a vida. Agradeço muito a sua paciência com quem não é

mais muito inteligente.

Deus lhe pague,”

Irene Santiago

Educação para a submissão

Nesta concepção o papel de sujeito na produção do conhecimento é atribuído

ao(à) professor(a). Ao aluno(a) cabe o papel de objeto. Diferentemente para quem interessa uma sociedade mais justa, é fundamental

a atitude de sujeito tanto do(a) professor(a) quanto do(a) aluno(a).

A escola, na visão tradicional, perde uma excelente oportunidade de ser um

espaço onde todos, democraticamente, exercitem o seu direito de atuar como

sujei tos. Sujei tos, diante dos conhecimentos, das outras pessoas e da

natureza.

Para os alunos jovens e adultos pesa ainda a desvalor ização dos

conhecimentos que construíram ao longo da vida. Na escola, o saber medir da

costureira desaparece, a forma de calcular dos pedreiros é considerada

imprecisa, o jeito de falar do povo é visto como cheio de erros gramaticais.

Page 23: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

19

Considerados equivocados e pouco significativos, os conhecimentos que estes

alunos trazem, deixam de ser considerados como base para os novos

conhecimentos que buscam aprender.

Esta situação torna bem mais difícil chegar àquilo que o professor(a) tenta

ensinar.

Pior do que isto, estes alunos colocam-se em posição de inferioridade diante

daqueles que são capazes de aprender melhor do que eles. Consideram-nos

mais inteligentes e não percebem que eles tiveram maiores oportunidades,

inclusive a de uma concepção de conhecimento que lhes favoreceu. Mais uma

vez, repete-se o que é habitual na nossa cultura: quase sempre a vít ima

costuma ser a culpada.

A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DO CONHECIMENTO

Os seres que não são vivos submetem-se integralmente às leis da natureza, especialmente à física e à química, sem nenhuma possibilidade de intervir no seu destino.

Os seres vivos, entretanto, dispõem de uma capacidade de “perceber” o ambiente em que estão e selecionar ou construir algumas alternativas para interagir com o ambiente em que estão inseridos com ele. Isto lhes permite conviver com o ambiente de forma mais conveniente às suas características. Esta capacidade é o que podemos chamar de Conhecimento.

Um bom exemplo dessa capacidade é o movimento que faz a planta ao voltar as suas folhas para a luz do sol.

Evidentemente, esta capacidade é exercida pelos recursos biológicos próprios de cada espécie de ser v ivo: recursos muito simples no caso dos seres

Parte 2

O CONHECIMENTO É PRÓPRIO DOS SERES VIVOS

Page 24: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

20

unicelulares ou muito complexos como os dos mamíferos, com destaque para os seres humanos. Essencialmente, o conhecimento desempenha em todos os seres vivos as mesmas funções: “perceber” o ambiente, identificar e selecionar ou construir alternativas para responder aos desafios.

Os seres humanos são um caso específ ico que merece uma expl icação especial. Neles, a constituição neurológica altamente sofisticada desenvolveu uma capacidade única que lhes permite ir além da realidade presente: não se restringem só a ela. Os seres humanos são capazes de representar simbolicamente a realidade e trabalhar mentalmente com esta representação. Isto signif icou um passo gigantesco que provavelmente explique a sua condição hegemônica entre os seres vivos.

Não precisam restringir-se ao que está acontecendo no momento. Podem registrar simbolicamente o momento e operar com esta representação quando lhes for conveniente. Podem com isto trabalhar com o passado e planejar o futuro. Mais do que isto, esta capacidade de simbolizar lhes permite construir mentalmente realidades não existentes e trabalhar com elas. Em outras palavras, podem fazer literatura, artes plásticas, música, podem filosofar e fazer ciência. Podem sonhar.

No bonito texto abaixo, Marx ressalta a idéia de que ser capaz de construir projeto é a marca diferenciadora dos seres humanos.

“ Uma aranha executa operação semelhante às do tecelão e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que t inha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade.”

Page 25: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

21

Iremos a seguir explicar mais detalhadamente este aspecto que realmente torna os humanos únicos na escala biológica, no que diz respeito ao conhecimento.

Ao defrontar-se com o mundo, as pessoas vão construindo mentalmente uma imagem codificada dos aspectos da realidade com que estão lidando. Não se trata da própria realidade mas de uma representação dela.

Desta imagem ou idéia fazem parte as características da realidade que lhe são significativas por infinitas e variadas razões. Fazem parte dela também as múltiplas relações que sua inteligência e sensibilidade foram capazes de fazer sobre esta real idade, inclusive as lembranças e experiências pessoais provocadas por ela. Esta imagem ou idéia é que constitui o que podemos chamar de conhecimento.

Para facilitar o entendimento do que foi dito, vamos dar um exemplo simples para tornar este conceito mais concreto.

A representação, idéia ou conhecimento de uma pessoa sobre uma caneta

qualquer, pode conter códigos relacionados com a forma, a cor, a textura, o

cheiro e a consistência dela. Conterá também informações sobre o funcio-

namento, o material de que é feita, a marca, ano e processo de fabricação,

A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Page 26: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

22

histórico, usos possíveis, experiências bem ou mal sucedidas, prazerosas ou desagradáveis com ela: a mancha de tinta na roupa nova ou o momento em que a recebeu por ter se destacado na escola. Abrangerá igualmente todas as relações que forem estabelecidas neste processo de construção da representação. É fácil perceber que os aspectos possíveis de fazerem parte desta representação mental de uma simples caneta são infinitos. Além disso, é preciso considerar que esta representação não é estática. Pode crescer ou alterar-se não apenas quando existir um contacto físico entre a pessoa e a caneta, mas também quando a pessoa lembrar-se dela ou mesmo conversar sobre canetas. Quando isto acontecer, esta representação mental que é o conhecimento de caneta de uma certa pessoa, se comunicará com oconhecimento de caneta da outra e as possibi l idades de crescimento e al teração do conhecimento sobre canetas poderá se mult ip l icar. Este exemplo simples nos ajuda a perceber porque se pode afirmar que as possibilidades de crescimento do conhecimento são infinitas. Sempre será possível conhecer mais.

Também nos faz compreender porque se diz que sábios são aqueles que percebem que quanto mais aprendem mais podem aprender.

O que dissemos sobre o conhecimento hipotético de uma caneta pode ser dito também sobre todo e qualquer objeto de conhecimento, inclusive objetos abstratos tratados pelas ciências ou filosofias.

A finalidade do conhecimento

O conhecimento faz parte integrante da nossa vida. É com ele que

percebemos o mundo que nos cerca e encontramos as maneiras de superar as

dif iculdades e os obstáculos decorrentes do viver neste mundo. Com ele

somos capazes de ut i l izar os recursos disponíveis para construir nossa

felicidade. Não há como viver sem conhecer.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA

Page 27: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

23

Nós e as outras pessoas estamos sempre nos relacionando. Relacionamo-nos

entre nós mesmos e com o mundo em que vivemos. Esta relação faz que nós

nos tornemos diferentes, ao mesmo tempo em que vamos tornando o mundo

diferente. Quando plantamos, por exemplo, uma roça de café, vamos mudando

o mundo criando uma paisagem diferente (a roça de café onde antes havia

pasto ou mato), mas também vamos nos tornando diferentes: mudamos nossos

hábitos, o ritmo e a forma de trabalhar, o medo da geada, o assunto da nossa

conversa, nossas preocupações e interesses.

Neste mesmo exemplo, poderemos dizer que nossa relação com outros plantadores, consumidores e comerciantes de café modif icam nossas representações sobre o cultivo e comercialização desse produto. Seguramente modifica também as representações deles sobre o mesmo tema.

É verdade que a intensidade e profundidade destas mudanças são variáveis e dependem de uma série de fatores que incluem oportunidade, necessidade, curiosidade, interesse e da infinidade de fatores que constituem a complexa natureza humana.

A produção do conhecimento

O conhecimento nasce da relação dos seres humanos entre si e com o mundo. Mas nem sempre se soube disso. Houve época em que se acreditou que o conhecimento estava nas pessoas e que ensinar era o processo pelo qual se fazia aflorar este conhecimento interior, inato.

Houve também um tempo em que se acreditou que o conhecimento estava fora das pessoas e que ensinar consistia em transferir este conhecimento externo para dentro das pessoas. A escola tradicional é a explicitação desta forma de pensar.

Nem fora nem dentro: o conhecimento se constrói na relação dos seres

humanos com o mundo.

Vimos que o conhecimento nasce na relação dos homens e mulheres com o

mundo, incluindo nele os outros seres humanos. Mas sabemos que esta

relação não é sempre igual.

Page 28: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

24

Algumas vezes, o mundo está sendo exatamente do jeito que as pessoas

gostam. Outras vezes, nada está sendo como as pessoas querem. Entre estes

dois extremos pode-se imaginar uma infinidade de possibilidades.

No primeiro caso, é fácil perceber que a produção de conhecimentos é muito pequena, quase nula. Não há razão para mudar, inclusive o conhecimento, quando as coisas estão indo como a gente quer.

Mas, se as coisas não estão do jeito que queremos, o estímulo para mudar torna-se grande. Aparece a necessidade de aprender novas coisas para enfrentar a situação e mudar o mundo que não está nos satisfazendo.

A existência de necessidades a serem sat isfei tas desempenha papel fundamental para que se produza conhecimento. Mas não basta que elas existam. É preciso disposição e empenho em sat isfazê-las. Quando isto ocorre, as pessoas usam todos os seus recursos pessoais para atender estas necessidades, inclusive o de pensar.

A necessidade e o pensar são vitais na produção de conhecimento

É pensando que as pessoas compreendem melhor suas necessidades e como satisfazê-las. É pensando que escolhem as alternativas de ação. Pondo em prática estas alternativas, voltam a pensar nos resultados e em possíveis al terações que, postas em prát ica, fornecem novas pistas para novas reflexões, reiniciando-se o ciclo do pensar e fazer.

Em cada momento deste ciclo, novas informações e representações são incorporadas e novos conhecimentos são construídos.

Percebe-se, portanto, que é agindo e pensando que os seres humanos constroem o seu conhecimento. Não é só agindo e não é só pensando, mas fazendo os dois. Nem sempre nos damos conta disto porque se trata de um movimento natural, quase instintivo, em que o agir-pensar-agir se dá quase que simultaneamente. Foi agindo e pensando que os seres humanos construíram toda sua cultura e é agindo-pensando que todos nós continuamos a construir e a modificar o mundo e a nós mesmos.

Page 29: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

25

“O Homem é, entre outras coisas, um ser de necessidade: O que observamos, historicamente, é que o hominídeo não desenvolvia uma ação qualquer, mas uma ação carregada de sentido, visto corresponder a uma carência. Assim, foi construindo representações vez a vez mais elaboradas da realidade, que se tornavam cada dia mais importantes a f im de poupar esforço desnecessário, diminuir o sofr imento e poder garant i r a sobrevivência da espécie: a al imentação, a defesa contra os animais e intempéries, a defesa frente a outros bandos, a habitação, etc. O conhecimento, pois, sempre esteve l igado a necessidades, interesses, sendo que a partir deles o homem se empenhava no enfrentamento da realidade, vindo a construir cada vez mais representações mentais, (...) Portanto, a necessidade faz surgir o conhecimento e, com o tempo, o próprio conhecimento torna-se uma necessidade, como mediação para satisfazer outras necessidades.” Celso Vasconcellos

A necessidade de conhecer e a sala de aula

Se a necessidade é a grande impulsionadora do fazer e conseqüentemente do aprender, temos aí, um elemento forte para a escolha do que ensinar.

Quais as necessidades dos alunos da EJA?

Sabemos que são bem variadas dependendo do lugar onde vivem os alunos e das circunstâncias que enfrentam. Quando procuramos responder a esta pergunta, muitas vezes nos surpreendemos.

Encontramos questões que nunca pensamos, muitas vezes bem diferentes das que tradicionalmente têm lugar nas salas de aula. Estas são algumas das necessidades apontadas pelos alunos de diferentes salas de aula:

Page 30: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

26

� saber fazer orçamento por escrito (o que escrever, a forma de escrever, como calcular preços);

� conhecer o desenvolvimento das crianças (grande preocupação das mães);

� alimentação e saúde;� onde passear no fim de semana;� como divulgar o que se faz para vender: tricô, doces, sabonetes, pães;� fazer orçamento doméstico para controlar os gastos;� compreender as questões ou geralmente saber o porquê: o frio e calor

de uma região; as fases da lua; o dinheiro dos outros países; entender o que diz a televisão (notícias); aspectos ligados a hereditariedade, fazer recibos;

� saber preencher fichas (em firmas, oficinas, bancos, INSS);� criar senhas, usar caixas eletrônicas.

Não é difícil perceber que a partir destas questões chegamos de forma natural a muitos dos conteúdos considerados escolares e que, de fato, se constituem como elementos importantes para solucionar as questões da vida diária.

A reflexão acelera a produção do conhecimento

Separar o fazer do pensar é uma possibi l idade humana. Todos vivemos quotidianamente a experiência de fazer alguma coisa e ao mesmo tempo pensar em algo que nada tem a ver com o que estamos fazendo. Muitos atropelamentos já ocorreram porque o pedestre estava com a “cabeça na lua” enquanto atravessava uma avenida.

Muitos de nós usam continuamente a capacidade de pensar separadamente do que fazem, como uma defesa contra a monotonia das tarefas repetitivas. A dona de casa que l iga o rádio enquanto cozinha ou arruma a casa, normalmente está fazendo isso. Outros, procuram atividades repetitivas como bordar, tricotar ou lavar o próprio carro como forma de “descansar a cabeça”. Enquanto o fazem, acham que não precisam ficar pensando, na verdade ficam pensando em outra coisa.

Separar a ação do pensamento é muito menos freqüente do que possa parecer.

Page 31: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

27

Na verdade, muitas ações humanas dispensam totalmente o pensamento. Ao encostar a mão em uma panela muito quente ou numa ponta de cigarro, qualquer pessoa saudável retirará imediatamente a mão. O aparecimento inesperado de um rato, barata ou cobra fará muitos correrem sem se dar ao trabalho de pensar se este deveria ser o melhor comportamento. Estas ações, chamadas de ref lexas ou inst int ivas, dispensam totalmente o uso do pensamento para ocorrerem.

Mas, não é todo fazer que dispensa o pensar. O pedestre distraído não andará com a “cabeça nas nuvens” em um bairro tido como perigoso altas horas da noite. A dona de casa não ouvirá o rádio quando estiver experimentando pela primeira vez uma receita nova e complicada para um jantar de cerimônia. Igualmente, ninguém imagina que i rá descansar a cabeça procurando consertar os erros que a amiga fez na blusa que estava tecendo para o namorado.

As pessoas não farão isto porque sabem que, para responder aos desafios que estão enfrentando, precisam concentrar-se no que estão fazendo. Suas cabeças estarão pensando, ocupada em identificar as informações pertinentes e relacionar estas informações com os conhecimentos que já dispõem. Imaginam hipóteses e alternativas para responder ao desafio. Fazem isso manipulando suas idéias da forma mais disciplinada possível para obter os resul tados pretendidos. Estão ref let indo. Por isso não desviam seus pensamentos para outras coisas. Concentram-se nos objetivos e com isso, aumentam seus conhecimentos. Saberão o que não sabiam e portanto serão capazes de fazer e o que não faziam.

Refletir é a forma mais eficiente de

produzir conhecimento porque acelera o

relacionamento das idéias e

conseqüentemente a descoberta de saídas

para enfrentar os problemas.

Page 32: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

28

As diferentes formas de pensar

Não é preciso ser um especialista para perceber que existem diversas formas de pensar. O pedestre de que falamos certamente está pensandoenquanto atravessa a rua. A dona de casa ouvinte de rádio também. Isto porque é praticamente impossível deixar de pensar.

Mas, não existe apenas uma única forma de pensar. O apaixonado que rememora o encontro com a namorada está pensando. O pedestre desatento, está pensando. Igualmente, o operár io regulando a máquina, o pedreiro acertando o prumo da parede, a professora montando a estratégia para que seus alunos aprendam determinado conteúdo estão pensando.

Nestes exemplos é possível identi f icar pelo menos dois t ipos básicos de pensamento. O pensamento sem nenhum compromisso com a busca de soluções e o pensamento dest inado a resolver problemas. O pr imeiro é normalmente prazeroso, já o segundo, em razão da necessidade de obter resultados, costuma dar menos prazer e consome trabalho. Os ant igos f i lósofos chamavam de devaneio o pr imeiro t ipo de pensar e costumavam condená-lo como um vício que apenas consumia tempo sem nenhum outro resultado além de dar prazer ao pensador.

Mesmo considerando que dar prazer a quem pensa não é um vício mas, uma virtude, temos que concordar que a busca de prazer não é a única razão pela qual os seres humanos são dotados da capacidade de pensar.

A reflexão, o conhecimento e os alunos da EJA

Mesmo considerando que a ref lexão como elemento básico para o conhecimento, não podemos esquecer que vivemos numa sociedade onde a reflexão é pouco incentivada. Habituados a seguir ordens, os alunos da EJA são frágeis do ponto de vista da prática do pensar e do tomar decisões.

Isso aumenta a responsabilidade da escola como espaço capaz de incentivar essa capacidade tão fundamental ao ser humano.

Page 33: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

29

Isto signi f ica que a sala de aula da EJA tem a responsabi l idade de ser marcada pelas atividades que envolvem o pensamento, em detrimento das que apontam a mera memorização do que se pretende ensinar.

Comentar o que está sendo aprendido, tomar posição diante de um fato ocorrido e contribuir na sua própria avaliação são situações que certamente contribuirão para o crescimento desses alunos.

É a ação humana que produz conhecimento

O conhecimento é um dos produtos da ação humana sendo decorrência da vocação dos seres humanos de relacionarem-se com o mundo de forma ativa e transformadora. Nesta relação, os homens e mulheres encontram dificuldades, estímulos e recursos necessários que os levam a agir intervindo no mundo.

Nesta ação, homens e mulheres percebem o próprio ambiente, identificam situações desfavoráveis, inventam ou descobrem alternativas possíveis para enfrentá-las ou alterá-las, experimentam, avaliam o que fizeram, rejeitam ou aceitam-nas e neste processo produzem e incorporam uma infinidade de idéias (que também chamamos de representações mentais) e constroem conhecimentos.

“Foi com o trabalho que o ser humano “desgrudou“ um pouco da natureza e pode, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais. Se não fosse o trabalho, não existiria a relação sujeito-objeto. O trabalho criou para o homem a possibilidade de ir alem da pura natureza. A natureza, como tal, não cria nada de propriamente humano (...)

O homem não deixa de ser animal, de pertencer à natureza; porém, já não pertence inteiramente a ela. Os animais agem apenas em função das necessidades imediatas e se guiam pelos instintos (que são forças naturais); o ser humano, contudo, é capaz de antecipar na sua cabeça os resultados das suas ações, é capaz de escolher os caminhos que vai seguir para tentar alcançar suas finalidades. A natureza dita o comportamento dos animais; o homem, no entanto, conquistou certa autonomia diante dela.”

Leandro Konder

Page 34: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

30

Ninguém aprende sozinho

A ação-reflexão que produz conhecimentos é capaz de mudar o Mundo e a nós mesmos. Todos nós vivenciamos esta experiência segundo nossos valores, aspirações e de acordo com nossas experiências anteriores. Esta vivência pessoal pode ser comunicada mas não pode ser transferida aos outros. Vivência não se transfere.

Igualmente, o conhecimento que é parte integrante desta vivência não pode ser transferido. Pode ser comunicado, mas comunicar conhecimento não é transferi-lo.

Posso comunicar o que conheço, por exemplo, sobre dirigir automóvel. Mas isto não faz com que as pessoas que me ouvirem passem a conhecer o assunto como eu ou mesmo passem a dirigir. Para isto ocorrer, elas terão que incorporar a comunicação à sua vivência, com tudo o mais que constitui esta vivência de agir-pensar-agir que constrói conhecimentos.

O mesmo se dá com matemática, al fabet ização ou qualquer outro

conhecimento. Comunicar o que eu sei sobre como se lê ou escreve não

tornará ninguém al fabet izado. É preciso que este alguém passe pela

experiência de agir-pensar que constrói o conhecimento.

Embora pessoal e intransferível, o conhecimento de cada um depende dos

outros porque ninguém está só no Mundo. Cada um age-pensa-age com os

outros. Como se comunicam, as ações e as descobertas de cada um se

confrontam, se complementam. Fazem parte do Mundo com o qual todos

lidamos.

Podemos perceber assim, que o processo de conhecer se faz na relação com

os outros. O conhecimento dos outros repercute nos meus e os meus

repercutem no dos outros, mesmo quando não nos damos conta disto.

Este maravi lhoso processo humano de conhecer, que combina o esforço

pessoal com a interdependência entre as pessoas, levou Paulo Freire a

afirmar que “ninguém ensina ninguém, mas ninguém aprende sozinho”.

Page 35: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

31

A variedade de conhecimentos nas classes da EJA

Pensando que conhecer se dá no coletivo, nos lembramos que a variedade de saberes do coletivo interfere significativamente nas possibilidades de aprender de todos. Neste sentido, a heterogeneidade da sala de aula deve ser vista como um fator positivo. Para isso, é fundamental a criação de um clima de conf iança e amizade que permita a part ic ipação de todos no esforço de descobrir o que se busca conhecer. A diversidade de olhares nascida das diferentes experiências vividas pelos alunos contribui fazendo crescer as possibilidades de compreender o que está sendo estudado.

Conhecer exige esforço

A produção do conhecimento é resultado da ação humana e implica no uso direcionado de pensamento. Pensar é uma atividade natural e espontânea nos seres humanos, mas o conhecer, que usa o pensamento como instrumento, não é espontâneo. Implica em direcionar o pensamento, a vontade e as próprias ações para dominar, enfim, para apreender aquilo que precisa ser conhecido.

Este direcionamento exige trabalho de quem vai conhecer. Não há conhecimento sem esforço. Esforço para manter o pensamento na atividade de atuar sobre o objeto do conhecimento. Esta atividade assume várias formas, entre elas destacamos perceber o objeto, admirá-lo e intuir o seu significado. Mas esta atividade implica também em relacionar este objeto com outros já conhecidos, em dividi-lo, mentalmente, em partes (analisá-lo); relacionar as partes entre si e com o que já é sabido; em construir explicações para este objeto; julgá-las. Aceitando ou rejeitando-as; concluir os resultados desejáveis e assim por diante. Como se pode ver, isto tudo não se faz sem trabalho.

É possível perceber que este esforço envolve também as ações necessárias à produção do conhecimento: a ação de fazer, de experimentar, de refazer, de tornar a experimentar e assim sucessivamente até que o conhecimento atingido seja considerado satisfatório. Como vimos, as possibi l idades de

Page 36: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

32

conhecimento de qualquer objeto são infinitas e portanto é necessário que estabeleçamos um limite para nossa busca. Isso não significará que saibamos tudo sobre o objeto, mas apenas que conhecemos o suficiente para as nossas necessidades do momento.

Em cada uma destas ações o pensamento direcionado a buscar o conhecimento estará presente consumindo esforço e trabalho.

Este esforço só será feito se as pessoas quiserem fazê-lo. E as pessoas raramente querem fazer esforço se não perceberem alguma compensação proporcional a ele. No caso do conhecimento, a compensação costuma ser a de ajudar a resolver algum problema que esteja preocupando ou responder a alguma necessidade. Conhecer por conhecer, embora muito elogiado, é tão raro que apenas confirma a regra geral de que o conhecimento costuma ser pragmático. Felizmente para nós que trabalhamos na educação, existe nos seres humanos uma necessidade universal: a de satisfazer a própria curiosidade. Responder à curiosidade tem sido um aliado considerável na construção do conhecimento da humanidade. Mas, é preciso lembrar também que somos muito mais curiosos sobre as coisas que nos afetam pessoalmente.

O conhecimento vem de conhecimentos já existentes e provoca

conhecimentos futuros

Só foi possível exist i rem armas ou ferramentas de metal depois que os homens aprenderam a manejar o fogo. Os veículos apareceram depois das rodas. Podemos perceber um desenvolvimento crescente e cada vez mais complexo nos conhecimentos da humanidade. Cada um deles vai indo além do conhecimento anterior e por sua vez torna possível a existência de novos conhecimentos. A humanidade não passou da era da pedra lascada à conquista espacial de uma só vez. Foi construindo seu conhecimento gradativamente, um passo após o outro.

No plano pessoal ocorre o mesmo fenômeno. As pessoas não passam a conhecer as coisas de uma vez só. Vão aprendendo por aproximações sucessivas aquilo que pretendem conhecer. Começam percebendo que ele existe, depois vão se aproximando dele, admirando-o, identif icando suas

Page 37: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

33

características, construindo relações, ampliando a quantidade e qualidade delas e incorporando-as ao universo das relações já construídas. Neste processo, cada conhecimento novo supera um conhecimento anterior menos completo e serve de base para a construção de um novo mais elaborado. Note que não estamos estabelecendo nenhum juízo de valor.

Quando dizemos que o conhecimento é mais elaborado ou complexo não estamos dizendo que ele seja necessariamente melhor. Melhor ou pior são avaliações subjetivas. Quem estiver preocupado com a forma física pode preferir ir de bicicleta ao trabalho do que de moto ou automóvel, embora estes últimos sejam muito mais complexos e sofisticados que a primeira. Saber tocar violão em uma roda de amigos é muito mais realizador do que saber tocar órgão, embora aprender órgão seja mais sofisticado. Conhecimento melhor é aquele que serve melhor a quem o tem. Assim como na história da humanidade, as pessoas não passaram do “não saber” ao saber, de uma vez só, mas foram construindo o seu conhecimento gradativamente.

Também, como na histór ia da humanidade, não existem l imites para o conhecimento. Sempre será possível saber o que não se sabe e sempre será possível saber melhor o que já se sabe.

Cada novo aprendizado só se torna possível graças aos conhecimentos anteriores. Cada conhecimento obtido torna possível avançar para novos conhecimentos. Podemos dizer que o conhecimento que se tem é sempre fruto de conhecimentos anteriores e semente de novos conhecimentos.

A teoria e a prática

A teoria, assim como o conhecimento, nasce da prát ica. Você se lembra quando estudamos a concepção de conhecimento que sustentou a escola tradicional?

Nela, percebe-se uma nítida separação entre o fazer e o pensar, entre a teoria e a prát ica. A teor ia costumeiramente é apresentada na forma de texto

Page 38: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

34

genérico e amplo. A prát ica, na maior parte das vezes, costuma ser apresentada na forma de exemplos apenas para facilitar a compreensão da teor ia. O fato de que todas as teor ias nascem da prát ica raramente é destacado dando a falsa impressão de que a teoria é uma construção mental, fruto da inspiração e pensamento de seu formulador.

A conseqüência costuma ser a valorização exagerada da teoria. Parece que apenas ela deve ser aprendida, porque é ela o que realmente interessa. A prática qualquer um faz, já a teoria...

Não que a prát ica seja desprezada mas o ensino costuma dedicar-se pr ior i tar iamente ao ensino da teor ia. A prát ica costuma ser relegada a momentos eventuais das aulas de trabalhos manuais, artes ou às atividades em laboratório, raramente equipados devidamente. Na concepção democrática do conhecimento a separação entre teoria e prática é apenas formal. Esta dicotomia entre teor ia e prát ica é tão general izada na concepção tradicional de conhecimento que são corriqueiras afirmações do tipo: “Ele tem a teoria mas eu tenho a prática” ou “Na prática a teoria é outra” ou mesmo; “Detesto o ensino teórico, prefiro o ensino prático”. Estas três afirmações são absurdas fora da concepção tradicional. Vejamos porque. A teoria nasce de fenômenos percebidos, provocados ou não, onde as pessoas envolvidas conseguem estabelecer algum tipo de relação. A mais comum é a relação de causa e efeito. A Lenda do Café ilustra bem como isso ocorre. Segundo a lenda, pastores do oriente viram que as suas cabras f icavam agitadas quando comiam os frutos de um arbusto (prática) e concluíram que provavelmente, o fruto deste arbusto t inha efei tos est imulantes ( teor ia). Resolveram experimentar (prática) e concluíram que realmente isso acontecia (teoria). Passaram a usá-los quando precisavam ficar acordados vigiando o rebanho (prática).

A teoria é um conjunto de idéias, relacionadas entre si, que permitem explicar ou prever eventos reais e, com isto, construir ou identificar alternativas de intervenção adequada nesta real idade. Isto que foi dito, embora simples, representa o essencial em toda e qualquer teoria. Seja a da descoberta do

Page 39: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

35

café ou a da Relatividade de Einstein. É lógico que é possível e algumas vezes até necessário classificar estas teorias segundo a sua abrangência ou forma de construção: pode ser científica se construída usando-se o método científico. Filosófica quando sustentada por uma lógica filosófica. Teológica ou religiosas se construída a partir de elementos de revelação religiosa. Ou então qualquer outra categoria de classificação.

As teorias podem ter maior ou menor prestígio social. Na essência, porém, todas as teorias partem de eventos, reais ou imaginários, em que se consegue estabelecer relações para expl icá- los, prever seus desdobramentos e identificar alternativas de ação perante eles. Fazer teoria não é privilégio dos teóricos: é necessidade dos seres humanos. Dentro desta visão de teoria, mais ampla do que o senso comum costuma considerar, é fácil perceber que ela esta mais presente em nossa vida do que costumamos imaginar. Mais do que isto, podemos perceber que sem ela estaríamos condenados à imobilidade. Vejamos um exemplo corriqueiro e imaginário para ilustrar isto. Peçam aos seus alunos para desenhar um “BULIPAN”. Isto mesmo, um “bulipan”! Vocês verão que eles ficarão estáticos sem saber o que fazer. Nunca ouviram falar disso e não fazem a menor idéia do que isto seja. Não têm a mínima idéia sobre isso. Nunca viram ou ouviram contar de nenhum evento com este nome. Não podem, assim, estabelecer relações que lhes permitam expl icar ou compreender o que seja. Estão sem nenhum elemento que ajude a prever algo ou identificar alternativas para desenhar o bulipan.

Em outras palavras, não possuem nenhuma teoria, por simples que seja, sobre bul ipan. Estão condenados a não real izar a tarefa até ter uma teor ia a respeito. Caso interesse aos alunos fazer o que foi pedido na esperança de agradar ou ter melhor aval iação, procurarão suprir a def ic iência. Inst in-tivamente, procurarão recolher outras informações de você para montar uma teoria que lhes permita agir.

É provável que tentem conferir o seu entendimento. Talvez, você tenha pedido outra coisa sobre a qual já tenham alguma teoria. Tentarão obter informações adicionais desde a forma direta do tipo: “O que é isso?” ou indireta como “Parece com que?” ou “É uma peça de automóvel?” Instintivamente sabem que

Page 40: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

36

só poderão fazer o que foi pedido se conseguirem obter uma teoria mesmo que simples e pouco abrangente, mas que possibilite a ação.

Estamos tentando convencer você de que, para exercer qualquer ação que não seja apenas reflexa é preciso estar sustentado por uma teoria. Não existe prática sem teoria.. A função da teoria é exatamente esta: sustentar a prática.

Extensão

A teoria que sustenta nossa prática é muito mais ampla do que qualquer discurso que pretenda formulá- la. O discurso ou texto é sempre uma codificação e o mesmo ocorre com o discurso teórico. O leitor ou ouvinte terá sempre que decodificá-lo para compreendê-lo. Ao codificar uma teoria será necessário, portanto, reduzi-la ao formato necessário a qualquer discurso. Nesta formatação, muitos elementos são excluídos e outros são acrescentados e modificados pelos leitores ou ouvintes. Assim, a extensão do discurso nunca será capaz de cobrir toda a extensão da teoria.

Nossa teoria não se reduz a idéias

formuladas em palavras

Decorrente dessa condição de sustentação da prática, a teoria tem todo o compromisso com a realidade. O discurso é mais amplo e tem muito mais compromisso com a retórica do que com a verdade.

De uma certa forma, na prática que desenvolvemos somos escravos da teoria que temos sobre as questões relativas a esta prática. Isto é, somos escravos do conjunto de representações mentais que const i tuem a nossa teor ia. Percebam que falo em representações mentais e não apenas idéias. Porque, diferentemente das teorias que costumamos ver formuladas, a teoria que sustenta a nossa prát ica também é composta de emoções, sent imentos, recordações e eventuais l igações, experiências e raciocínios que vamos construindo durante a nossa vida. Nem todas estas representações mentais estão codificadas em palavras e nem por isto deixam de ser importantes na condução da nossa prática.

Page 41: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

37

As recordações que temos, por exemplo, da forma como a nossa professora alfabetizadora trabalhou conosco e da nossa reação frente a este trabalho fazem parte das representações mentais que constituem a nossa teoria sobre a prát ica de al fabet izar. É possível que estas representações mentais repercutam mais na nossa ação alfabetizadora do que as leituras que fizemos sobre as pesquisas da “Psicogênese da Língua Escrita”, das professoras Emília Ferreiro e Ana Teberosky.

Somente somos capazes de pôr em prática

a nossa própria teoria

Gostaríamos que ficasse claro que estamos chamando de prática as ações que fazemos de forma organizada e dest inadas a conseguir at ingir os objetivos que pretendemos. Não nos referimos às ações instintivas, reflexas ou mecânicas que também fazem parte da nossa vida ativa mas que obedecem a outros fatores. Feito este esclarecimento, gostaríamos de salientar que um equívoco muito comum, cometido por quem está tentando aprimorar a sua prát ica pelo estudo, é o de tentar por em prát ica as teor ias que está estudando. Quando estuda as teorias de Piaget, por exemplo, pensa que deve tentar pôr em prática as teorias formuladas por Piaget, ou Frenet, ou Paulo Freire e assim por diante.

Nada mais equivocado. Teorias não são formuladas para serem postas em prática. Podem ser testadas, rejeitadas ou aprimoradas. Podem inspirar novas teor ias, ajudar na compreensão e previsão de fenômenos mas não são construídas para serem postas em prática. Isto por várias razões e algumas delas tentaremos explicar aqui.

Como vimos acima os discursos ou textos teóricos são codificações que em razão das regras de comunicação não incluem todos os aspectos que compõem a teoria. Portanto, ao tentar pôr em prática um texto ou discurso teórico estaríamos tentando pôr em prát ica uma teoria incompleta o que certamente redundaria em fracasso.

Outra razão de fracasso é ignorar que a prática oferece nuances e desafios que nenhuma teoria tem condições, por si só, de dar conta. São infindáveis as teorias que podem ajudar no enfrentamento das dificuldades de uma prática. Ao contrár io do que muitos acredi tam, a prát ica é muito mais

Page 42: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

38

complexa que qualquer teoria tomada individualmente. Ignorar isto é sinal de fracasso certo. É o mesmo que tentar calçar um pé 42 num sapato 34. Não cabe!!!

Não estamos aqui, de jeito nenhum, diminuindo a importância da teoria. Ao contrário, já afirmamos que ela é tão necessária e importante que sem ela a prática é impossível. O que estamos tentando, apenas, é eliminar um equívoco muito comum que é transformá-la em uma simples receita.

Só mudamos a prática que temos quando mudamos

a teoria que sustenta esta prática

Como a ação voluntária e consciente que estamos chamando de prática é sustentada pelas teorias que temos, decorre que só mudamos esta prática quando alteramos a teoria sobre a qual sustentamos esta prática. Vale dizer que a simples memorização de formulações teóricas não altera em nada a prática. Para que exista alguma mudança nela é preciso que a teoria estudada se componha com as teorias que já temos, produzindo uma nova síntese. Esta síntese passará a sustentar a nova prática. Sendo diferente, produzirá uma prática diferente.

“Faça o que eu falo e não faça o que eu faço”

Esta frase bastante cínica certamente já foi ouvida por você. Ela demonstra que as pessoas podem falar uma coisa e fazer outra. Isto ocorre porque quando falamos ou escrevemos estamos basicamente interessados em agradar, convencer quem nos ouve ou lê. Estamos orientados pelas reações do nosso inter locutor. Não estamos obrigados a dizer exatamente o que pensamos se isso for desfavorável aos nossos objetivos. Na maior parte das vezes, tendemos a dizer o que o nosso interlocutor quer ouvir. Já existiram f i lósofos e psicanal istas que af i rmaram que as palavras são fei tas para esconder o que pensamos.

O mesmo não ocorre com as teorias que temos. Salvo casos muito especiais, tendemos a fazer o que consideramos melhor para a ação que pretendemos.

Page 43: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

39

E este melhor, está balizado pelas teorias que temos ou assumimos. Nas ações que fazemos são expressas as idéias ou teorias em que realmente acreditamos.

Estaremos mais próximos de saber o que os outros pensam ou acreditam de verdade se observarmos o que eles fazem ao invés de ouvir o que eles dizem. Não confunda teoria com discurso. Muitas vezes, se justif ica colocar uma teoria em palavras. É construído um discurso oral ou escrito para facilitar a sua comunicação. Nestes casos, esta formulação segue as regras e preceitos da comunicação. Diferentemente da teoria, que tem por objetivo sustentar as práticas e ações, o discurso teórico visa sensibilizar o interlocutor. São coisas absolutamente dist intas: a teor ia tem compromisso com a prát ica, já o discurso tem compromisso com quem lê ou escuta.

Um exemplo simples da interação

teoria e prática

Para ilustrar o mecanismo da interação entre a teoria e a prática bem como as formas de al terá- las vejamos um exemplo hipotét ico, com a única finalidade de tornar mais claro o que estamos dizendo.

Imagine que alguém tenha recebido a função de varrer uma sala sem nunca ter varrido nada antes. Caso este alguém não faça a menor idéia do que seja varrer uma sala, será impossível cumprir a tarefa. Como já vimos, qualquer prática é sustentada pela teoria que se tenha sobre ela. Quem não tem a mínima idéia do que seja varrer obviamente não tem nenhuma teor ia a respeito.

Se, no entanto, essa pessoa tiver algumas idéias sobre varredura, já será possível assumir a tarefa. Saber, por exemplo, que varrer é pentear o chão com um instrumento com pêlos ou fibras para juntar a sujeira e removê-la já é suficiente para começar o trabalho. Como se vê, as idéias são rudimentares e incompletas, mas constituem um pequeno esboço do que podemos chamar de “Teoria da Varreção”.

Page 44: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

40

O primeiro passo seria procurar uma vassoura. Olha aqui, pergunta dali e o nosso herói acaba descobrindo um armário com vassouras de vários tipos e tamanhos. O que fazer? Sua teoria incipiente não oferece nenhuma indicação sobre o tipo ou tamanho da vassoura a ser usada. Usando o bom senso ou qualquer outro critério, nosso amigo escolhe uma vassoura bem pequena. Parece-lhe bastante leve e fácil de utilizar. E lá vai ele pilotando a vassourinha com a mão direita enquanto usa a esquerda para segurar o cigarro.

Caso complete a varredura de forma que lhe pareça sat isfatór ia terá enriquecido sua “Teoria de Varreção” com um elemento novo, o de usar uma vassoura de tamanho pequeno. Sua teoria passaria a ser então: “Varrer é pentear o chão com um instrumento com pelos ou f ibras na ponta, de preferência pequeno para juntar a sujeira a fim de removê-la”. Logicamente a prática de varrer, caso ele pense sobre ela, poderá ajudá-lo a aprimorar a sua teoria. “Por onde começar a varreção?”; “Trazer a lata de lixo para perto ou transportar a sujeira até o lixo?”; “Molhar o chão ou varrer a seco?” são alguns exemplos de perguntas cujas respostas podem ajudar a aprimorar sua teoria. Mas as teorias podem ser modificadas de outras maneiras. Por exemplo, no caso que estamos acompanhando, imagine que a part i r de determinado momento comece a aparecer uma dor nas costas do nosso herói. A dor nas costas poderá estimulá-lo a pensar sobre suas causas. Poderá perceber que a vassoura muito pequena o está obrigando a uma posição forçada para varrer.

E ele já sabe, por experiências anteriores, que posições forçadas costumam fazer as suas costas doerem. O surgimento de di f iculdades est imulam a mudança da teoria para resolvê-las.

Neste momento a sua “Teoria de Varreção” volta a mudar: “Varrer é pentear o chão com um instrumento com pelos ou fibras na ponta, de preferência com um tamanho que não obrigue a posições forçadas, para juntar a sujeira a fim de removê-la”.

Pensar a prática pode levar os praticantes a mudar sua teoria e a

mudança teórica, quase sempre, implica em mudança da prática.

Na próxima vez, nosso herói escolherá uma vassoura com o

tamanho mais adequado.

Page 45: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

41

Existe uma outra maneira de provocar uma mudança teórica.

Digamos, usando este mesmo exemplo, que alguém entre na sala e veja o nosso herói varrendo com a vassourinha. Reparando no tamanho da vassoura diga alguma coisa do t ipo: “Puxa vida, se eu varresse o chão com uma vassoura deste tamanho, morreria de dor nas costas...” Pronto! Embora possa não parecer, dada a sua simplicidade, esta afirmação inclui uma constatação teórica de quem a disse. É genérica, nasce da prática, ajuda a fazer previsão e indica alternativas de ação. No momento em que uma pessoa escuta (ou lê) a comunicação da teoria de uma outra pessoa, especialmente sobre assunto de seu interesse (neste caso estar com as costas doendo) f ica normalmente tentada a comparar a sua teoria com a teoria comunicada. Dessa comparação podem surgir mudanças teóricas que irão refletir na prática de quem as faz. Aí está a chave do estudo destinado a aprender para melhorar a prática! A leitura produtiva de qualquer estudo teórico só ocorre quando o leitor dedica-se a comparar a sua própria teoria com a teoria exposta. Este “ovo de Colombo” é ignorado por uma quantidade enorme de gente que imagina que estudar a teoria de um autor é memorizá-la ou, o que é pior, buscar transformar esta teoria em uma receita para enfrentar suas dificuldades. São os que imaginam ser possível “colocar em prática” a teoria lida ou ouvida.

As teorias são péssimas “receitas” pela sua generalidade. Sofrem também da carência de informações, decorrente da necessidade de serem codificadas para atingir a finalidade da comunicação, que é sensibilizar ou convencer quem está sendo informado. Quanto estudo e quanto esforço se perderam pelo desconhecimento desta realidade tão simples.

Diferença entre a teoria e o discurso

Embora muitas vezes apareçam juntos discurso e teor ia são coisas absolutamente distintas. O essencial no discurso (falado ou escrito) é ser instrumento de comunicação. Na teoria o essencial é ser instrumento de compreensão da realidade para intervir nela da melhor forma possível.

Page 46: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

42

Teoria e discurso costumam andar juntos porque é impossível comunicar total ou parcialmente uma teor ia sem usar o discurso. Mas teor ia e discurso possuem identidades próprias que não podem ser esquecidas. Certamente você já percebeu que é muito mais fácil mudar o discurso do que a prática. Esta para ser mudada, como já vimos, necessita de uma mudança teórica enquanto que o discurso precisa apenas da vontade de quem o faz e da expectativa que tem sobre a reação do interlocutor. Não podemos esquecer que somos frutos de uma cultura onde dizer o que o interlocutor quer ouvir faz parte das regras usuais de etiqueta.

Portanto, quem quiser saber no que alguém acredita realmente, é preferível ver o que ele faz do que perguntar a ele.

OS PASSOS DO CONHECER: SÍNCRESE, ANÁLISE E SÍNTESE

Você certamente já viveu a experiência de chegar a um lugar completamente desconhecido: um bairro, uma cidade, um novo emprego. Lembra-se da sensação? Lembra-se como foi o processo de conhecer este novo lugar.

No primeiro momento, você teve apenas a percepção do conjunto. Quase nenhum detalhe, apenas e eventualmente aqueles que, por alguma razão, eram muito inusitados.

Esta primeira visão geral, comum a quem se relaciona pela primeira vez com um objeto de conhecimento, é conhecida pelo nome de Síncrese. Forma-se na sua cabeça uma imagem ou representação mental sobre este objeto.

Caso, posteriormente, alguém perguntasse a você alguma particularidade deste objeto, você dificilmente seria capaz de responder. No entanto, este mo-mento é muito importante para conhecer. Sem esta noção de conjunto é muito difícil perceber depois as partes que compõem este objeto de conhecimento.

Parte 4

Page 47: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

43

Em um segundo momento, você começou a reparar em alguns detalhes que antes parecia não ter visto. Inicialmente naqueles que chamaram mais atenção e, pouco a pouco, outros detalhes do conjunto começaram a ser “vistos”. Esta separação das partes que compõe qualquer objeto de conhecimento é chamada de Análise.

Esta análise vai enriquecendo aquela imagem mental inicial do todo que você teve na síncrese.

Esta imagem ou idéia foi se tornando mais complexa. O processo tornou-se mais sofist icado. Você não apenas agregou a esta idéia inicial as partes identificadas mas também as relações entre estas partes que você foi capaz de fazer.

Mais ainda: não apenas as relações entre estas partes mas também todas as relações com outras idéias, imagens e representações mentais que você já tinha ajudam você a construir uma imagem cada vez mais adequada do objeto. Esta imagem composta do todo e de suas partes bem como de todas as relações que você foi capaz de fazer é chamada de síntese. É o conhecimento que você foi capaz de construir a partir da sua inteiração com o objeto. Para ajudar a compreensão deste processo, vamos dar um exemplo concreto embora fictício. Digamos que você por questões de trabalho precisasse alugar uma casa em uma cidade desconhecida. O que faria?

Em primeiro lugar provavelmente faria uma visita a esta cidade. Chegando, desceria do ônibus e daria uma volta ali pelos arredores. Teria uma visão geral da cidade e recolheria as suas primeiras impressões. Sem maiores detalhes, construiria algumas idéias a respeito dela.

Acharia a cidade suja ou limpa, rica ou pobre, agradável ou desagradável, feia ou bonita, de acordo com as suas referências e critérios. Esta visão genérica e não detalhada constituiria a síncrese. É o conhecimento inicial pelo qual você começará o processo de conhecer a cidade. Embora superficial, a síncrese é importante porque influenciará a continuidade

Page 48: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

44

do processo de conhecer. Certamente você já escutou de alguém a frase “As primeiras impressões são as que ficam”. Embora bastante discutível, esta afirmação tem o mérito de chamar a atenção para o papel da síncrese na continuidade do conhecimento.

Caso a sua síncrese da cidade não tenha sido tão negativa a ponto de fazer você desistir de se mudar para lá, você voltará outras vezes para melhorar seu conhecimento. Af inal, foram tantas as perguntas que seus amigos e familiares fizeram e que você não soube responder! Terá que fazer novas visitas e encontrar mais respostas. Tem início o seu processo de análise.

Nestas novas vis i tas, você i rá se deter sobre detalhes que passaram despercebidos inicialmente. Como é o calçamento das ruas? Onde f ica a Igreja? E a escola? Como é o transporte? Qual o tipo de comércio? Quais oportunidades de trabalho a cidade oferece? E serviços de saúde? E a segurança pública? Existem muitos roubos e assaltos? As coisas são muito caras? Existem muitas casas para alugar? E como anda o preço dos aluguéis? Enfim, estes são alguns de uma infinidade de aspectos que compõem uma cidade. Algumas das respostas você obterá pela simples observação mas outras exigirão perguntas, conversas e pesquisas. Estas vão lhe fornecer informações sobre o caráter e cordial idade do povo que mora na cidade, aspecto importante para quem pretende morar ali.

Cada nova resposta obtida nesta análise irá enriquecer mais a imagem ou representação mental que você tem da cidade. As respostas irão fornecer elementos para que você consiga fazer novas relações: as oportunidades de emprego com o custo dos alugueis, o tamanho do destacamento policial com a criminalidade, o transporte e possíveis lugares para morar.

Nesta análise estarão presentes também as representações ou idéias que você já tinha anteriormente sobre aspectos que foi encontrando na análise. Digamos que você veja um padre passando na rua, vestindo uma batina. Dependendo das suas idéias sobre uso da batina, poderá tirar conclusões do tipo “Puxa, a igreja daqui deve ser muito atrasada pois os padres ainda usam batina!” ou, ao contrár io “Fel izmente a igreja daqui é preocupada com a espiritualidade e o sacerdócio porque os padres daqui usam batina”. Uma ou outra idéia irá fazer parte da imagem da cidade que você tem na cabeça.

Page 49: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

45

O resultado da análise que você f izer é uma representação mental. Nela estarão presentes todas as relações que você for capaz de fazer. É a síntese do conhecimento da cidade.

Esta síntese por mais completa que seja, não será nunca definitiva. Algum tempo depois de você mudar para a cidade, vai perceber que muitas das idéias que compunham esta síntese estavam equivocadas. A Igreja não estava tão preocupada com a espiritualidade, nem era atrasada como parecia. O preço das coisas era maior do que você pensava mas os aluguéis eram mais acessíveis. O que exemplificamos hipoteticamente para a cidade, aplica-se para qualquer objeto de conhecimento. O conhecimento de um l ivro segue o mesmo movimento. A síncrese é o pr imeiro contato: a aparência, o volume, as informações sobre o autor, as capas e orelhas, as cores e assim por diante.

A análise se dá nas observações do prefácio, índice e na leitura do texto propriamente dito. A leitura irá contemplando a coerência das propostas, percebendo as relações entre as idéias, a coerência entre as afirmações e conclusões, a credibilidade e veracidade do que está escrito. Com algumas colocações exist i rá concordância, com outras não. Irá formando-se uma imagem do livro na qual estarão presentes todas as relações que puderam ser construídas. É a síntese. Ou, como muitos poderiam dizer, o conhecimento do livro. Não é o livro, não é um retrato do livro. É uma representação mental composta por todas as relações que foram construídas. Eventuais releituras i rão modif icando este conhecimento ou imagem mental tornando-a mais sofisticada e abrangente.

Busque assuntos de interesse dos alunos

Seus alunos só aprenderão se quiserem aprender. Especialmente porque aprender custa esforço e ninguém fará esforço a troco de nada. Os velhos “ truques”, muito usados anter iormente, de ameaçar com notas baixas e reprovação não funcionam na EJA. Jovens e adultos não se int imidam facilmente. Eles só irão empenhar-se em aprender os assuntos sobre os quais tenham interesse.

COMO ESTIMULAR O ALUNO A CONHECER

Page 50: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

46

Portanto, você terá que descobrir quais são estes assuntos e começar por eles. Sobre estes assuntos eles irão envolver-se para encontrar e construir relações entre os dados e informações de que dispõem ou que você trouxer. Irão tirar conclusões e construir as sínteses necessárias. Em outras palavras, farão a reflexão sem a qual o conhecimento não acontece.

Você poderá estar pensando que a maior parte dos conteúdos que você tem que dar conta na sua sala de aula não tem o menor interesse para seus alunos. Se for assim, desista de ensinar estes conteúdos porque no máximo, você conseguirá que eles memorizem alguns discursos sobre eles que serão facilmente esquecidos. Sabemos que esta memorização não tem nenhum parentesco com o conhecimento.

Aprendendo melhor o que já sabem e o que ainda não sabem sobre os assuntos sobre os quais estão interessados, seus alunos ampl iarão os própr ios hor izontes e interesses. Esta ampl iação poderá at ingir alguns conteúdos que você considera ter a obrigação de ensinar e aí, então, você terá sucesso em ensiná-los.

De qualquer forma, f icará um ganho muito maior do que o de uma memorização inútil: o exercício de reflexão que fizeram para conhecer ajudará as futuras reflexões a serem menos trabalhosas.

Havendo oportunidade, tente devolver aos alunos a pergunta feita, ao invés de dar a eles, imediatamente, a resposta que você acredita ser a certa. São úteis diálogos do tipo:

Perguntas são excelentes maneiras de desafiar as pessoas a pensarem. Portanto, não economize perguntas, especialmente aquelas que instigam as pessoas a buscar mais idéias sobre o que estão estudando: por que?, Como?, quando?, onde? etc.

- “Professora, por que existe seca no Nordeste?” - “Por que será que isto acontece?” - “Qual a ...”

Page 51: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

47

Quando possível, trabalhar com códigos

para estimular a reflexão

Perguntas são instrumentos indispensáveis para produzir conhecimento. As pessoas aprendem quando precisam encontrar respostas para suas perguntas.

O primeiro passo da aprendizagem é ter perguntas Quando fazemos perguntas aos alunos, corremos um r isco. Os alunos geralmente acreditam que para cada pergunta existe uma, e apenas uma, resposta certa. Normalmente a que está na cabeça de quem perguntou. Por isso, tentam adivinhar que resposta o professor considera certa. Responder, neste caso, deixa de ser um exercício que favorece o conhecimento de reflexão para ser um exercício de adivinhação.

Uma forma criativa e eficiente para contornar, apresentar as questões sob o formato de códigos e não de perguntas. Códigos são construções simbólicas que representam um assunto escolhido por nós. Um prato vazio, por exemplo, é um código bastante aceitável da questão da fome. O desenho ou fotografia de uma delegacia pode codif icar a segurança pública. A dramatização de pessoas numa fila pode codificar o desemprego, a condução, o INSS entre outras situações.

Uma vez codificado o assunto que você quer refletir com os alunos, o próximo passo é mostrá-lo e perguntar a eles alguma coisa como: “O que estamos vendo aí?” Não há porque tentar adivinhar o que o professor espera ouvir. Trata-se apenas de descrever o que está sendo visto. Descrição que pode ser est imulada por você com indagações como “E o que mais?” Durante a descrição, os alunos podem ser convidados a ir além do que está aparecendo no código. As perguntas de intel igência “Como?”, “Por que”, “Onde?, “Quando?”, ajudam a ir decodificando a situação.

- “Como se escreve uma carta?”; - “Como se faz um abaixo-assinado?”; - “Como se prepara um frango ao molho pardo?”;- “Como se dirige um automóvel?”; - “Como ensinar matemática aos meus alunos e alunas?”

Page 52: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

48

Pouco a pouco os alunos irão esquecendo do código e se preocupando com o codif icado. Esquecerão do prato e se preocuparão com comida ou fome. Deixarão o desenho da delegacia para concentrar-se no assunto segurança (ou insegurança) pública. Da dramatização da fila irão para o transporte ou INSS. Uma vantagem adicional de usar a codificação como recurso para apresentar questões significativas é poder trabalhar com o grupo todo simultaneamente.

Perguntas são respondidas individualmente enquanto a decodificação desafia todo o grupo. A contribuição de cada aluno ajuda e estimula a participação dos outros.

Amplie o horizonte de informações do aluno

As pessoas usam as informações de que dispõem para pensar. Quanto mais informações seus alunos t iverem, melhor pensarão. Portanto, t rate de conseguir ampliar as informações deles. Isto não é fácil porque de maneira geral eles acreditam que na escola devem ser tratados apenas assuntos que eles consideram escolares. Imaginam que tratar de outros assuntos seja perda de tempo. Por isso é bom explicar que até para conhecer melhor os conteúdos escolares é bom ter conhecimentos sobre outras coisas. Quem começa a cavar um buraco de 50 metros de profundidade não pode imaginá-lo com 10 centímetros de largura. Igualmente, para poder conhecer mais e melhor é preciso ampliar os próprios horizontes.

Esta costuma ser uma das fragi l idades dos jovens e adultos dos grupos populares: as dificuldades que têm que enfrentar, as poucas oportunidades culturais e de lazer, a convivência com pessoas muito parecidas tendem a restringir seus horizontes. Ampliar estes horizontes deve ser preocupação das professoras da EJA. Um caminho para isto é aproveitar o espaço da sala de aula para comentar os assuntos de interesse dos alunos e o que se passa no País e no mundo. Para isso é preciso trazer notícias, discussões, comentários e informações para a sala de aula, mas tudo com a participação dos alunos para criar um ambiente de geração de conhecimento.

Page 53: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

49

Discutir sobre questões em evidência no rádio e na televisão, também é uma boa estratégia. Conseguir visitar com os alunos espaços culturais tais como museus, exposições, espetáculos folclóricos oferece grande oportunidade para ampl iação de hor izontes, desde que acompanhados de momentos para comentar o que será e o que foi visto. Vale, quando é possível ir em conjunto a espetáculos de teatro, dança, circo ou música.

Outra sugestão valiosa é manter na sala de aula uma caixa com material escrito, livros e revistas que possam ser vistos e consultados pelos alunos. A experiência mostra que costuma ser muito menos di f íc i l do que parece conseguir doações públicas ou privadas para este fim.

Aproveite a solidariedade existente

para implementar o conhecimento

A solidariedade costuma ser uma virtude bastante comum no meio popular. Provavelmente porque é mais fácil enfrentar problemas com a ajuda dos outros do que disputando com eles. Aproveitando isto, est imule seus alunos a trocarem conhecimentos. Sugira que os que sabem ajudem os que ainda não sabem. Aprenderão os que não sabem e os que ensinam. Sempre que possível, solicite trabalhos em grupo mesclando os que sabem mais com os que sabem menos. Não desanime com as resistências que possam existir. Lembre-se que vivemos em uma sociedade extremamente competi t iva em que as pessoas são compelidas a competir e não a colaborar. A escola deveria ser um espaço de trégua dessa disputa individual ista: ser um lugar onde se possa viver momentos de solidariedade.

Page 54: O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DOS ALUNOS E PROFESSORESforumeja.org.br/sites/forumeja.org.br/files/5-o-processo-de-aprendizagem.pdf · A concepção tradicional do conhecimento 7 Algumas

50

BIBLIOGRAFIA

VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Construção do Conhecimento em sala de aula - Cadernos Pedagógicos do Libertad: vol. 2

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Ed Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1981 - 9ª ed.

MARX, Karl. Os Pensadores, 2ª ed. São Paulo, Ed. Abril - 1978

PINTO, Álvaro Vieira - Ciência e Existência; 2ª ed. Paz e Terra - Rio de Janeiro, 1979

KOSIK, Karel. Dialética do concreto, 2ª ed. Paz e Terra - Rio de Janeiro, 1983.