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9 O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE PARTIDOS CABO-VERDIANO 1 Edalina Sanches 2 Resumo/Abstract Este artigo analisa a importância dos partidos e dos sistemas de partidos para o estudo dos processos de democratização no contexto da “Terceira Vaga”. Com base na grelha de análise de Mainwaring (1999), descrevemos características básicas do sistema de partidos cabo-verdiano desde a transição para a democracia. Os resultados demonstram que um dos aspectos centrais do processo de institucionalização do sistema partidário cabo-verdiano tem sido a crescente consolidação da dimensão bipartidária. Com efeito, para além do sistema eleitoral, demonstramos que o nível de volatilidade em diferentes eleições, a identificação partidária, a percentagem de votos dos partidos, a idade média dos partidos e a evolução dos direitos políticos e civis, dão indicação de um crescente enraizamento dos dois maiores partidos. Palavras-chave: sistema de partidos; Terceira Vaga; institucionalização dos sistemas partidários; bipartidarismo. This article analyses the relevance of parties and party systems when assessing the “Third Wave” of democratisations. The aim is to describe essential features of the cape verdean party system since the democratic transition, drawing upon Mainwarings’ (1999) framework of analysis. The findings evince that one central aspect in Cape Verdes’ party system institutionalization process is precisely the growing consolidation of its two-party nature. In fact, beyond the electoral system, we reveal that level of volatility in different elections, share of votes, mean age of parties and extension of civil and political rights, all combine for strengthening the roots of the two major parties. Keywords: party system; Third Wave; institutionalization of party systems; two-party. 1 Este artigo é uma versão revista de um dos capítulos da dissertação de mestrado da autora, intitulada “Sistema de Partidos Cabo-Verdiano no Período Democrático: 1991-2006”, ICS- UL. A Autora agradece à Doutora Gláucia Nogueira pelos seus comentários à primeira versão deste artigo. ** Edalina Rodrigues Sanches é aluna de Doutoramento em Ciência Política na Universidade de Lisboa (UL) e colabora em vários projetos de investigação no Instituto de Ciências Sociais/UL. Entre Setembro e Dezembro de 2011 foi Visiting Student na Universidade de Leiden. Os seus principais interesses de investigação são as instituições políticas e os partidos políticos nas sociedades africanas contemporâneas. As suas publicações cobrem tópicos variados sobre o funcionamento dos sistemas partidários em democracias europeias e africanas. Revista de Estudos Cabo-Verdianos Nº 4

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O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO SISTEMA DE PARTIDOS CABO-VERDIANO1

Edalina Sanches2

Resumo/Abstract

Este artigo analisa a importância dos partidos e dos sistemas de partidos para o estudo dos processos de democratização no contexto da “Terceira Vaga”. Com base na grelha de análise de Mainwaring (1999), descrevemos características básicas do sistema de partidos cabo-verdiano desde a transição para a democracia. Os resultados demonstram que um dos aspectos centrais do processo de institucionalização do sistema partidário cabo-verdiano tem sido a crescente consolidação da dimensão bipartidária. Com efeito, para além do sistema eleitoral, demonstramos que o nível de volatilidade em diferentes eleições, a identificação partidária, a percentagem de votos dos partidos, a idade média dos partidos e a evolução dos direitos políticos e civis, dão indicação de um crescente enraizamento dos dois maiores partidos.

Palavras-chave: sistema de partidos; Terceira Vaga; institucionalização dos sistemas partidários; bipartidarismo.

This article analyses the relevance of parties and party systems when assessing the “Third Wave” of democratisations. The aim is to describe essential features of the cape verdean party system since the democratic transition, drawing upon Mainwarings’ (1999) framework of analysis. The findings evince that one central aspect in Cape Verdes’ party system institutionalization process is precisely the growing consolidation of its two-party nature. In fact, beyond the electoral system, we reveal that level of volatility in different elections, share of votes, mean age of parties and extension of civil and political rights, all combine for strengthening the roots of the two major parties.

Keywords: party system; Third Wave; institutionalization of party systems; two-party.

1 Este artigo é uma versão revista de um dos capítulos da dissertação de mestrado da autora, intitulada “Sistema de Partidos Cabo-Verdiano no Período Democrático: 1991-2006”, ICS- UL. A Autora agradece à Doutora Gláucia Nogueira pelos seus comentários à primeira versão deste artigo. ** Edalina Rodrigues Sanches é aluna de Doutoramento em Ciência Política na Universidade de Lisboa (UL)

e colabora em vários projetos de investigação no Instituto de Ciências Sociais/UL. Entre Setembro e Dezembro de 2011 foi Visiting Student na Universidade de Leiden. Os seus principais interesses de investigação são as instituições políticas e os partidos políticos nas sociedades africanas contemporâneas. As suas publicações cobrem tópicos variados sobre o funcionamento dos sistemas partidários em democracias europeias e africanas.

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Introdução

Os partidos e os sistemas de partidos dizem muito sobre o funcionamento de um sistema político e podem ser um veículo para o estudo dos processos de democratização. Desde a emergência da democracia de massas no século XIX, os partidos têm-se tornando os maiores agentes de representação e de canalização de interesses no interior de uma determinada sociedade (Mainwaring, 1999). A forma como se organizam, a ideologia e as estratégias de competição eleitoral que adoptam, é historicamente contingente (Mair, 1990) e tem implicações directas na natureza de um regime político. A primeira tentativa de tipificação dos sistemas partidários, entre bipartidários e multipartidários, foi conseguida por Duverger (1954), contando apenas o número de partidos em diferentes sistemas políticos. Os efeitos políticos destes dois formatos eram diferenciados. Assim, enquanto a competição entre dois partidos mais ou menos equivalentes em poder, permitiria equacionar governos de partido único, alternância no governo e estratégias eleitorais centristas, a competição entre vários partidos, implicaria a necessidade de coligações para a formação de governo, a fragmentação ideológica é maior logo espera-se maior instabilidade governativa. Se o alcance de algumas destas premissas foi contestado, por outro lado, o critério utilizado por Duverger (1954) – número de partidos – tem estado na base da maioria dos estudos posteriores que se fizeram sobre os sistemas de partidos. Se até meados dos anos 90, as tipologias desenvolvidas pretendiam compreender o funcionamento dos partidos e dos sistemas de partidos nas democracias ocidentais industrializadas, a partir da Terceira Vaga de democratização, com a emergência de novas formas de organização partidária,

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surgem também novos modelos teóricos (por exemplo, Mainwaring, 1999; Kuenzi e Lambright, 2005 e 2001;Manning, 2005; Bogaards, 2001).

Neste artigo, iremos descrever alguns traços do sistema de partidos cabo-verdiano. Começaremos por fazer uma breve apresentação da literatura sobre os sistemas de partidos. Neste contexto, elegemos a tipologia de Mainwaring (1999), que analisa o processo de institucionalização dos sistemas de partidos, para aplicar ao caso cabo-verdiano. Continuamos com a medição do grau de institucionalização do sistema de partidos em três dimensões (estabilidade/regularidade dos padrões de competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições) e, finalmente, terminamos com as considerações finais.

Estado da Arte(…) A party system is precisely the system of

interactions resulting from inter-party competition. (Sartori, 1976: 43-4)

Os sistemas de partidos podem ser compreendidos como padrões de competição e de cooperação entre os diferentes partidos dentro de um sistema (Ware,1996: 7) e o seu estudo é sobretudo orientado para responder à questão sobre o que determina o número de partidos que competem e são eleitos numa determinada sociedade. O estudo dos partidos e dos sistemas de partidos está associado ao processo de democratização no mundo ocidental. Por este motivo, o seu sentido está associado a características históricas, sociais, económicas e políticas típicas destes países. São estas primeiras tipologias que apresentamos de seguida.

As tipologias clássicas de descrição dos sistemas de partidos (Mair, in Le Duc,

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1996) tiveram, de um modo geral, por base o critério do número de partidos. Unicamente com base nesta medida Duverger (1954) distinguiu sistemas bipartidários de sistemas multipartidários, resultando o primeiro tipo em governos de maior estabilidade, enquanto o último se caracterizava por uma maior fragmentação e instabilidade governativa, como aliás, já referimos na introdução1. Ao número de partidos, Rokkan (1968) junta mais dois critérios; a probabilidade de ocorrerem maiorias monopartidárias e a distribuição da minoria em forças partidárias e; identifica três tipos de sistemas de partidos: 1) sistema 1 vs 1+1, no qual dois partidos dominantes coabitam com um terceiro pequeno partido, 2) sistema 1 vs 3+4, existência de um grande partido confrontado com uma aliança formal entre 3-4 pequenos partidos e, 3) sistema multipartidário equilibrado 1 vs 1 vs 1 + 2-3, onde a competição é dominada por três ou mais

1 Esta ideia é também amplamente discutida por Lijphart (1994), quando identifica dois estilos de democracia: a maioritária e a consensual. Assim, enquanto a democracia maioritária favorece a responsabilização e a estabilidade do governo; a democracia consensual envolve secções mais amplas da sociedade no processo de tomada de decisão do governo.

partidos com igual peso. Por sua vez, Sartori (1976) propõe uma tipologia em que analisa as interacções entre os partidos dentro de um sistema político. Assim, através dos padrões de competição (medido pelo número de partidos) e da distância ideológica (medida pelo grau de polarização) destaca quatro formatos distintos: bipartidário (pouca distância ideológica com competição limitada), pluralismo moderado (pluralismo limitado, distância ideológica relativamente pequena), pluralismo polarizado (pluralismo extremo ampla distância ideológica) e partido dominante (um partido ganha a maioria dos lugares).

Estes modelos foram essencialmente desenvolvidos e testados em democracias consolidadas (europeias), no entanto quando estudamos as democracias de “Terceira Vaga” poderá ser necessário repensar a teoria dos sistemas de partidos existente.

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Com efeito, desde que Huntington (1991) assinalou o início da “Terceira Vaga” torna-se imperativa a distinção entre os sistemas de partidos em democracias consolidadas e não consolidadas.

É este o exercício que nos propõe Mainwaring (1999), que aos critérios de Sartori vem acrescentar, o grau de institucionalização do sistema partidário, que define como o processo pelo qual as práticas e as organizações são tomadas como universalmente legítimas, permitindo que os actores políticos possuam expectativas claras e estáveis sobre o comportamento de outros actores políticos. Este conceito é operacionalizado em quatro componentes: 1) a estabilidade da competição eleitoral (medido através do índice de volatilidade eleitoral), 2) o enraizamento dos partidos na sociedade (medido pela consistência das posições ideológicas, se os votantes estão ligados aos seus partidos e candidatos, se grupos de interesse apoiam os partidos ou são fundados por eles, pela percentagem de votantes que afirmam ter preferência partidária, pela possibilidade de candidatos independentes serem eleitos e pela idade

média dos partidos), 3) a medida em que os cidadãos e outros actores políticos aceitam os partidos e as eleições como meio de determinar quem governa e; 4) a medida em que os partidos estão organizados (na maioria das democracias de Terceira Vaga os partidos têm fracos recursos e

estão pouco profissionalizados, em muitos casos são veículos personalísticos existindo por isso uma fraca lealdade por parte da própria elite política) (Mainwaring, 1999: 21-39).

Do ponto de vista teórico, Mainwaring refuta a utilidade de uma teoria das clivagens sociais ou eleitoralista per se, propondo que se analise também, o modo como a relação estado/elites partidárias tem contribuído para a estruturação e reestruturação dos sistemas partidários a partir do topo. Precisamente, a partir deste trabalho, Kuenzi e Lambright (2005) sustentam que, nos sistemas de partidos africanos a estabilidade (medida pela idade média dos partidos) e a competitividade (medida pelo número efectivo de partidos) estão positivamente correlacionadas com as perspectivas de consolidação e qualidade da democracia. Ou seja, nos sistemas de partidos onde os partidos estão fortemente institucionalizados, o processo de consolidação democrática tenderá a ser mais fácil, (Mainwaring, 1998), logo quanto maior a idade média dos partidos maior o grau de estabilidade

democrática, por exemplo.

Adicionalmente, Mozaffar e Scarritt (2005) identificaram a existência de elevada volatilidade eleitoral e de baixa fragmentação nos sistemas de partidos africanos. A explicação destes

Dimensão 1991 1995 2001 2006 CE MD % CE MD % CE MD % CE MD %

Pequena 12 25 31,6 16 41 56,9 17 39 54,2 17 40 55,6 Media 5 28 35,4 1 7 9,7 1 9 12,5 1 6 8,3 Grande 2 26 32,9 2 24 33,3 2 24 33,3 2 26 36,1 Total 19 79 100 19 72 100 20 72 100 20 72 100

Quadro 2 – Círculos e mandatos por distrito em Cabo Verde

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fenómenos tinha a ver com o impacto dos legados institucionais dos regimes autoritários no processo de formação e desenvolvimento dos partidos políticos. Perante os constrangimentos colocados pelos regimes autoritários (fraca mobilização eleitoral e escasso pluralismo político, etc.) os actores políticos nas democracias emergentes estabeleceram partidos políticos com vista a manterem a sua base de poder fragmentada e, contavam com as eleições e as clivagens etnopolíticas, para a coordenação estratégica dos votos e dos lugares e para a formação de coligações eleitorais. Como resultado, os sistemas de partidos foram invadidos por um grande número de partidos de curta existência. Assim, os sistemas de partidos apresentariam níveis elevados de volatilidade combinada com uma baixa fragmentação, na medida em que a representação parlamentar continuava a ser um exclusivo dos maiores partidos. Na mesma linha, Bogaards (2004) sustentou que a “Terceira Vaga” de democratização, essencialmente caracterizada pela introdução de eleições multipartidárias concorrenciais, resultou no predomínio dos partidos históricos e, logo, de sistemas de partidos dominantes.

Na próxima secção iremos descrever o sistema de partidos cabo-verdiano com base no conceito de institucionalização dos sistemas partidários de Mainwaring (1998 e 1999). Como veremos os dados apontam

para uma crescente estabilização do padrão de competição eleitoral bipartidário.

Processo de institucionalização do sistema de partidos

Desde 1991, os resultados eleitorais traduzem uma sucessão de maiorias com rotação entre os dois maiores partidos, MPD (Movimento para a Democracia) e PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde). A contribuir para este fenómeno de bipolarização acresce o facto de, na curta história da democracia cabo-verdiana, os poderes presidencial e legislativo nunca se terem oposto, criando-se assim verdadeiras maiorias de partido (este facto é salientado em vários estudos veja-se Costa, 2003 e Semedo e cols., 2007).

Uma das potenciais explicações deste fenómeno é o tipo de sistema eleitoral. Com efeito, a aplicação do método d’Hondt em círculos de baixa dimensão aumenta a desproporcionalidade no processo de conversão de votos em mandatos e a probabilidade de ocorrência de maiorias artificiais favorecendo assim os maiores partidos (Lijphart, 1994). Como se pode observar no quadro 2, apesar de representarem 85% do total de círculos eleitorais em 2006, os círculos de pequena dimensão elegem pouco mais de metade (55,6%) do total de deputados da Assembleia da República.

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Mas este argumento não é suficiente, segundo Semedo e cols. (2007) o fenómeno de bipartidarização tem-se acentuado ao longo do processo de consolidação democrática, porque para além destes aspectos disposicionais, existe uma marcada homogeneidade cultural (ver também Chabal, 2002 e Meyens, 2002) e todo um contexto histórico de mudança de regime que favorece o MPD e o PAICV. O facto de terem protagonizado os dois momentos politicamente mais relevantes da história do país – o primeiro está ligado à abertura política e o segundo à independência – faz com que reúnam as preferências de grande parte do eleitorado (Ibid.).

Outra forma de olhar para estes padrões, já o referimos, é avaliar o processo de institucionalização do sistema de partidos nas suas componentes: estabilidade/regularidade dos padrões de competição eleitoral, enraizamento dos partidos na sociedade e legitimidade das eleições. A quarta componente apontada por Mainwaring (1999) “organização dos

partidos” não será aqui analisada uma vez que não dispomos de dados suficientes para o fazer. Pensamos, no entanto, que

esta dimensão deverá ser tida em conta em investigações futuras.

Estabilidade ou regularidade dos padrões de competição eleitoral

Os padrões de competição partidária tendem a ser, relativamente, regulares nas democracias mais consolidadas.

Esta característica pode ser medida através do índice de volatilidade eleitoral, que diz respeito à percentagem total de mudança de votos de um partido para outro de uma eleição para outra (Op. Cit. Przeworski, 1975 e Pedersen, 1983 in Mainwaring, 1999: 28)2. Mainwaring (1998) calculou a volatilidade eleitoral de 26 países: 8 democracias industriais avançadas, três casos da Europa do Sul, as três democracias mais antigas na América Latina, quatro casos da Ex-União Soviética e 8 países recentemente democratizados da América Latina. Os resultados revelaram padrões bastante distintos, com as democracias industriais avançadas a apresentarem

2 Exemplo para o cálculo da volatilidade: num sistema com três partidos dominantes se o partido A vencer 38 % numas eleições e 43% na próxima, enquanto o partido B descer de 47% para 27% e o partido C aumentar de 15% para 30% então a V = 5+20+15÷2 = 10%.

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níveis de volatilidade mais baixos, do que os países da Ex-União Soviética e da “Terceira Vaga” de democratização.

Ora níveis de volatilidade distintos assumem consequências políticas distintas, nomeadamente, ao nível dos padrões de competição entre os partidos. Onde a volatilidade for mais baixa os resultados eleitorais são mais previsíveis de eleição para eleição. Onde a volatilidade for maior, as expectativas tanto dos eleitores como dos partidos eleitorais, são de maior incerteza (Ibid.: 72).

Analisando a volatilidade eleitoral em 30 países africanos, entre 1966-1999, Kuenzi e Lambright (2001: 449), encontram uma volatilidade eleitoral média de 31.4%.

No período 1991/1995, que correspondeu às duas legislaturas do MPD, Cabo Verde registou uma volatilidade eleitoral de 7,7% enquanto, por exemplo S. Tomé e Príncipe a proporção era de 24% (Ibid.).

No período eleitoral seguinte – 1995/2001 – os cidadãos cabo-verdianos trouxeram o PAICV de volta ao poder e, em consequência disso, a volatilidade eleitoral aumentou 14.6 pontos percentuais (22,3%). Se tivermos em conta unicamente os dois maiores partidos, verificamos que o MPD perde 19.8 pontos percentuais enquanto o PAICV ganha exactamente mais 19.8 pontos percentuais, ou seja a alteração do sentido de voto, poderá dever-se maioritariamente a uma volatilidade do comportamento eleitoral entre estes dois partidos. Quanto aos pequenos partidos

– PSD (Partido Social Democrata), PRD (Partido da Renovação Democrática) e a coligação ADM (Aliança Democrática para a Mudança) – verifica-se que ganham mais votos, crescendo 1.6 pontos percentuais comparativamente aos resultados de 19953. No período eleitoral 2001/2006 o

3 A comparação dos níveis de volatilidade aponta tendências importantes ao nível da regularidade da competição eleitoral. Uma informação complementar poderia seria dada através da medição das transferências de votos, o que não tem lugar neste artigo mas é sem

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PAICV mantém-se no poder e os níveis de volatilidade descem para 7,7%. Numa leitura desagregada verifica-se que o PAICV e o MPD registaram aumentos de 4.5 e 4.8 pontos percentuais enquanto os pequenos partidos – PRD, PSD e UCID (União Cabo-Verdiana Independente e Democrata) – perdem no total 6 pontos percentuais, piorando a sua performance face a 2001.

Em termos globais ficamos com a ideia que a volatilidade média observada (12,6%) é relativamente baixa e que a competição eleitoral está dotada de alguma regularidade.

dúvida importante.

Esta percepção pode ainda ser medida de outra forma, nomeadamente, observando até que ponto os cidadãos votam no mesmo partido em diferentes eleições. No quadro 4 apresentamos a diferença de votos entre as eleições presidenciais e as legislativas para os dois maiores partidos. Assim, relativamente às eleições presidenciais e para efeitos deste cálculo, assume-se a percentagem de voto no candidato apoiado pelo partido faz-se a diferença relativamente aos votos obtidos nas eleições legislativas (Mainwaring, 1999).

A título descritivo apresenta-se ainda o posicionamento dos pequenos partidos relativamente aos candidatos presidenciais.

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No caso cabo-verdiano os votantes têm seguido, sistematicamente, as labels partidárias para votar nas eleições presidenciais. O candidato presidencial apoiado pelo partido do poder vence sempre as eleições presidenciais (ver quadro 4). Observa-se, por outro lado, que enquanto o MPD reforça sempre o número de votos nas eleições presidenciais face às eleições legislativas, mesmo quando sai derrotado (2001 e 2006 o candidato era Carlos Veiga), o PAICV tende a perder votos nas eleições presidenciais face às legislativas (excepção feita às eleições de 2001 ganhas pela margem mínima de 12 votos). Outro aspecto adicional que acentua a bipartidarização do regime é a posição dos pequenos partidos em eleições presidenciais, que tem oscilado uma posição neutra e um apoio aberto aos dois maiores candidatos.

Enraizamento dos partidos na sociedade

Este critério pode estar intimamente relacionado com a volatilidade eleitoral,

pois onde existe maior regularidade do voto, ou seja, mais cidadãos que apoiam o mesmo partido de uma eleição para outra, existem poucos eleitores cuja

alteração no comportamento do voto estão reflectidas na volatilidade eleitoral. Podemos observar se os partidos têm raízes fortes na sociedade se os cidadãos votam com base na sua filiação partidária, pela percentagem de inquiridos que afirmam ter uma identificação partidária, pela idade média dos partidos e pela percentagem de lugares que obtêm em eleições legislativas (Mainwaring, 1999 e 1998).

De acordo com os dados do Afrobarómetro a maioria dos cabo-verdianos inquiridos não assume uma identificação partidária (52,6% em 2002 e 55,5% em 2005).

Dos que referem ter uma identificação partidária – 47,4% em 2002 e 44,6% em 2005 – a esmagadora maioria identifica-se com o PAICV e com o MPD, os pequenos partidos recolhem em conjunto 2,1% e 0,7% das preferências, em 2002 e 2005, respectivamente.

Ainda no que diz respeito à percentagem de inquiridos sem uma identificação partidária, vale a pena salientar que Cabo Verde

regista uma proporção relativamente inferior à média dos países analisados no Afrobarómetro. Por outro lado, como se pode observar pelo quadro que se

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segue, os indivíduos parecem apresentar simpatias partidárias fixas, já que tendem a votar de acordo com a sua identificação partidária, ainda que aqui estejamos a falar em termos da intenção de voto e não do comportamento voto numa eleição passada.

Assim, 85% dos indivíduos que afirmaram identificar-se com o PAICV e com o MPD em 2005, também perspectivam votar nesse partido se as eleições legislativas fossem amanhã, sendo que apenas 15% se apresentaram como indecisos.

Podemos ainda medir se os partidos têm raízes estáveis na sociedade utilizando dois indicadores adicionais: percentagem de lugares obtidos por partidos fundados em 1970 nas últimas eleições e idade média dos partidos a vencer 10% dos lugares nas últimas eleições (Mainwaring, 1999 e 1998).

Kuenzi e Lambright (2001: 453-457) verificaram que em 13 dos 30 países africanos analisados, entre os quais o Benim e a Zâmbia, nenhum partido fundado em 1970 tinha ganho um lugar nas últimas eleições (em finais da década de 90). Noutros casos, como o Zimbabué e a Namíbia grande parte dos lugares, 98,3% e 73,6%, respectivamente, foram ganhos por um único partido (fundado

nos anos 70). Nestes países confirma-se a predominância dos partidos que desempenharam um papel de destaque no pré e pós independência. Face ao ano eleitoral considerado para Cabo Verde, 1995, o PAICV ganhou 29% dos lugares, ocupando o 14 lugar no ranking de institucionalização elaborado pelas autoras.

Se considerarmos as eleições de 2006, em que o PAICV ganhou 56,9% dos lugares, podemos afirmar que o partido apresenta uma grande capacidade para fixar lealdades ao longo do tempo e que o sistema de partidos está mais institucionalizado do que em 1995. Relativamente ao segundo indicador verifica-se uma grande disparidade entre os países analisados por Kuenzi e Lambright (2001). Em sete casos a idade média dos partidos a vencer 10% dos lugares nas últimas eleições, é superior a 30, em seis casos é superior a 20 e em oito casos é superior a 10. No caso Cabo-verdiano a idade média dos partidos a vencer 10% dos lugares em 2006 é de 33 anos, sendo considerados o PAICV e MPD, fundados respectivamente em 1956 e 1990.

Com base nestes dados é possível argumentar que o sistema partidário cabo-verdiano, se caracteriza pela predominância dos partidos com importância histórica e aos quais a maioria da população se

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sente identificada. Isto significa que os partidos têm raízes estáveis na sociedade e que por isso, os resultados eleitorais são de algum modo previsíveis ou pelo menos a luta eleitoral está reduzida aos dois principais partidos.

Confiança/Legitimidade nos partidos e eleições

A legitimidade diz respeito às atitudes sobre o regime político enquanto um todo, mas pode estar vinculada a determinadas instituições sociais. Neste caso, diz respeito à aceitação dos partidos e das eleições

Dimensão 1991 1995 2001 2006 CE MD % CE MD % CE MD % CE MD %

Pequena 12 25 31,6 16 41 56,9 17 39 54,2 17 40 55,6 Media 5 28 35,4 1 7 9,7 1 9 12,5 1 6 8,3 Grande 2 26 32,9 2 24 33,3 2 24 33,3 2 26 36,1 Total 19 79 100 19 72 100 20 72 100 20 72 100

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enquanto meios para determinar quem governa. Os partidos são legítimos na medida em que os actores políticos os consideram essenciais para o funcionamento de um bom regime político. Atitudes positivas poderão indicar que o sistema é mais estável. Onde os partidos forem mais “desacreditados”, mais fácil se torna que políticos “anti-partido” ganhem lugares (Mainwaring: 1998; 76-78).

Kuenzi e Lambright (2001: 457) definiram três indicadores para este critério: se a oposição boicotou as eleições, se os vencidos aceitaram a derrota e se as eleições são livres e justas. Assim as eleições podem ser consideradas legítimas se os partidos da oposição participaram livremente nas eleições, se o processo eleitoral não foi marcado por boicotes, se os procedimentos eleitorais foram amplamente aceites e se existiu liberdade de acesso à informação, bem como garantia dos direitos políticos.

Relativamente ao primeiro e ao segundo indicadores não se registaram nas quatro eleições legislativas realizadas até ao momento, fenómenos de boicote ou de não-aceitação dos resultados por parte dos partidos cabo-verdianos. No que diz respeito ao terceiro critério de acordo com os relatórios da Freedom House4, o país tem assinalado melhorias no respeito pelas liberdades políticas e civis, atingindo o score máximo (1) nesses dois itens, a partir de 2004. Ainda segundo esta fonte, apesar de se terem registado queixas junto do Supremo Tribunal alegando fraude eleitoral, nomeadamente nas eleições presidenciais de 2001, as mesmas foram arquivadas uma vez que as eleições foram consideradas «livres e justas» e o resultado, definido pela margem de 12 votos, aceite.

As opiniões dos eleitores constituem 4 Http://www.freedomhouse.org/modules/mod_

call_dsp_country-fiw.cfm?year=2004&country=2906

outra forma de medir o nível de confiança e de aceitação das instituições políticas. Neste sentido, recorremos, novamente, ao inquérito do Afrobarómetro, utilizando a questão que mede o grau de confiança nas instituições sociais: «Até que ponto confia em cada uma das seguintes (instituições), ou não ouviu falar o suficiente para dar a sua opinião?». Para este critério seleccionámos unicamente as respostas relativamente às instituições políticas. Começamos por utilizar os dados individuais e, posteriormente, iremos construir um índice de confiança nas instituições políticas.

Os resultados de 2002, apontam, de um modo global, para uma baixa confiança dos inquiridos em todas as instituições políticas. Com efeito, a grande maioria (cerca de 60%) afirma não confiar «de maneira nenhuma» ou confiar «só um pouco» nas instituições políticas em avaliação. O Partido do Poder (31,2%), os Partidos da Oposição (30,1) e o Presidente da República (28,0%), são as instituições que inspiram menor confiança aos inquiridos.

Por outro lado a proporção que “não sabe ou não ouviu o suficiente” para se posicionar na escala de confiança, é relevante ultrapassando a percentagem de inquiridos que confiam “até certo ponto” ou “muito”, em algumas instituições políticas (por exemplo: CNE, AM, e P/A)

Os dados de 2005 revelam algumas melhorias nos níveis de confiança. Assim, a maioria dos inquiridos refere confiar «até certo ponto» ou «muito» nas instituições políticas. No entanto, a proporção que não confia «de maneira nenhuma» continua a ser bastante expressiva (20-30%).

Se analisarmos os dados em termos agregados, utilizando antes o índice de confiança nas instituições políticas, verificamos

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que há uma tendência de melhoria nas atitudes face às instituições políticas. Enquanto em 2002, cerca de metade dos inquiridos (49,4%) não tinha nenhuma confiança nas instituições políticas em 2005 essa percentagem desce perto de 20 pontos percentuais (29,4%). Outra diferença importante é que a distribuição dos inquiridos pela escala de confiança, é mais heterogénea em 2002 (percentagens variam entre 16% e 49,4%) do que em 2005 (as percentagens variam entre 20,9% e 29,8%).

O aumento da confiança nas instituições políticas de 2002 (média = 1,54) para 2005 (média = 1,91) pode estar relacionado com a avaliação da performance dos órgãos de poder político. Fizemos uma correlação entre a “avaliação da performance dos órgãos de poder político” e o “índice de confiança nas instituições políticas” e os resultados demonstraram uma correlação estatisticamente significativa entre as duas dimensões quer em 2002 (p <0,01) quer em 2005 (p <0,01).

Assim, do mesmo modo que a confiança nas instituições políticas é reforçada em 2005, também a percepção que os inquiridos têm sobre a performance do governo é mais positiva: a percentagem de inquiridos que consideraram a performance do governo boa em 2005 aumentou 4.3 pontos percentuais.

Considerações finais

Os resultados obtidos nesta análise apontam para um progressivo processo de institucionalização, a par de uma crescente consolidação da dimensão bipolar do sistema partidário cabo-verdiano. Todos os indicadores que aqui utilizámos – volatilidade legislativa e presidencial, idade dos partidos, percentagem de lugares dos

partidos, evolução dos direitos e liberdade políticas e civis, identificação partidária, entre outros – serviram para demonstrar a força dos dois maiores partidos no sistema político cabo-verdiano e a sua evolução desde a transição para a democracia. A tendência tem sido o reforço da bipartidarização. Segundo Sartori (1976) podemos identificar um formato bipartidário sempre que a existência de um terceiro partido, não inibe o governo sem oposição, dos dois maiores partidos, ou seja sempre que não se coloca um quadro de coligação (Sartori, 1976: 143).

No contexto cabo-verdiano, desde de 1991, os resultados eleitorais têm sido altamente regulares e previsíveis, a distância entre os dois maiores partidos é curta, no sentido em que permite aos dois principais partidos terem expectativas legítimas de vencer as eleições e de formar governo maioritário. Também por isso o tipo de competição entre os partidos é definido por uma tendência centrípeta (ver também Mair, 1990), ou seja, uma vez que os eleitores se identificam sobretudo com dois partidos as clivagens e estratégias políticas – são mais moderadas, porque os eleitores flutuantes são eles próprios mais moderados (Sartori, 1976: 46). Isto significa que o bipartidarismo funciona quando existe uma fraca variação das posições ideológicas. Os partidos funcionam neste quadro como agências agregadoras que competem entre si no sentido de representarem o maior número de grupos e de interesses possíveis.

Reflictamos brevemente sobre estas questões tendo em conta os contextos históricos nos quais os dois maiores partidos foram forjados.

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Contexto de fundação dos partidos

O PAIGC/CV surgiu, num contexto em que os movimentos de libertação nacional se disseminavam por toda a África Lusófona. Fundado por Amílcar Cabral e outros em 1956, a sua ideologia e prática foram, amplamente, influenciadas pela matriz socialista e revolucionária (Chilcote, 1991: 153). Do ponto de vista das suas bases de apoio o partido assume uma natureza inter-classista agregando o campesinato, o proletariado, as elites pseudo-burguesas ou pequena burguesia e adopta como função principal a organização das camadas sociais em redor de um único motor político, o partido (Gomes, 2002: 40). Neste sentido, o PAICV identificava-se, na sua origem, com o tipo ideal de partido de massas de base nacionalista. Segundo Gunther (2003) estes partidos caracterizam-se por ter uma base alargada de suporte, organizações partidárias extensivas e uma clientela eleitoral constituída por indivíduos que se identificam com um projecto distinto de estado nação. As suas aspirações relacionam-se com o governo do território e a construção do estado independente (Gunther, 2003: 180-181). No entanto, este objectivo foi, historicamente, contingente e logo após a independência o PAICV foi incapaz de manter um discurso unificador. Segundo Furtado (1993) a reforma agrária permitiu ao partido direccionar a sua acção, numa segunda fase, para os trabalhadores rurais tendo assumindo, assim, uma componente mais classista do que anteriormente.

O MPD constitui-se inicialmente com o objectivo de fazer oposição ao regime de partido único e de reivindicar a instauração da democracia. Ao contrário do PAICV não resultou de um movimento social, tendo antes, sido fundado por elites políticas que chegaram a assumir postos de confiança no regime autoritário, nomeadamente quadros técnicos superiores que estavam envolvidos na administração do Estado no regime monopartidário mas que, de certa forma, assumiam uma postura reformista dentro do regime (Furtado 1997, in Évora 2004: 93). Ao lado de Carlos Veiga, estavam alguns quadros da mesma geração que os dirigentes do PAICV, mas que sempre tinham recusado colaborar (Teófilo Figueiredo Silva, Manuel Chantre), mas sobretudo quadros de 35-45 anos que tinham sido estudantes em Portugal por volta de 1970 (…) dos quais alguns pertenceram mais tarde ao chamado «trotskismo cabo-verdiano», como Manuel Faustino e José Tomas Veiga (Cahen, 1991: 147).

Segundo Évora (2004), dificilmente conseguiremos associar o MPD a uma linha ideológica definida, na medida em que tanto nas eleições de 1991, como no programa político de 1997, o partido limitou-se a apresentar as suas propostas de desenvolvimento não se posicionando à esquerda ou à direita do PAICV. Segundo o jornalista João Paulo Guerra, “teoricamente o MPD está mais perto das posições da Igreja Católica do ponto de vista ideológico do que o PAICV, membro da Internacional Socialista. Mas a definição ideológica do MPD é algo de muito vago e complexo. Agrupando toda a oposição ao PAICV, o MPD vai de posições da direita liberal e democrata-cristã aos dissidentes trotskistas do partido” (O Jornal 14/12/1990).

Numa entrevista concedida ao jornal

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Público (29/07/90), o líder Carlos Veiga referiu: “Temos gente da esquerda à direita. Vamos elaborar um programa credível, alternativo” e identificou, também, alguns princípios e valores defendidos pelo seu partido “democracia pluralista, cultura das liberdades, economia mista em que o papel do sector privado tenha um papel fundamental e o homem é medida de todas as coisas” e demarca-se da esquerda “o que decerto não vamos é para a ideologia marxista. Rejeitamos o dogmatismo”. Estas posições foram continuamente reforçadas, no decorrer da campanha eleitoral para as eleições de 1991: “O MPD não se considera um partido de orientações e, por isso, não assume qualquer filosofia monista sobre a história ou sobre a evolução da sociedade” (Diário de Noticias 6/12/1990).

O MPD é, assim, desde a sua origem, um partido de base eleitoralista (Gunther, 2003; Katz e Mair, 1995), semelhante ao ideal tipo catch all. Otto Kirchheimer (1995 e 1966) desenvolveu este conceito para explicar a transformação dos partidos de massas em partidos “agregadores”, nas sociedades ocidentais a partir dos anos 50-60. Com o enfraquecimento das fronteiras sociais, em consequência dos elevados níveis de bem-estar económico e de segurança social, torna-se mais difícil identificar sectores separados do eleitorado e interesses de longo-termo. No caso africano, Manning (2005), salientou que a crescente personificação dos partidos e a perda de autonomia dos governos nacionais face às políticas externas de ajustamento estrutural, impostas pelos países doadores, contribuíam para uniformizar os conteúdos programáticos dos partidos e também para uma a fraca polarização esquerda/direita.

Ao mesmo tempo, este novo quadro democrático criou, incentivos para a

formação de novos partidos, sendo o aspecto mais singular deste fenómeno, o facto da grande maioria ter surgido a partir do topo da sociedade política, nomeadamente a partir de cisões no interior de outros partidos, o que vai de encontro ao argumento de Manning (2005) e de Mainwaring (1999), segundo os quais os sistemas de partidos, na “Terceira Vaga”, são formatados em grande medida pelo topo da sociedade política, nomeadamente por notáveis/elites políticas. Com efeito, os quatro partidos, que surgiram entre 1992-2000, foram fundados por elites políticas dissidentes. Assim, o PCD e o PRD, fundados respectivamente em 1993 e 2000, resultam de duas crises no interior do MPD e; o PSD, fundado em 1992, resulta de uma cisão no interior da UCID. Apenas o PTS não resultou de uma cisão, tendo sido formado em 2000, por Onésimo Silveira que, no passado, chegou a integrar governos do PAICV.

Porém, a entrada em cena de novos partidos eleitorais não parece ter alterado a distribuição do poder já que a fórmula maioritária tem-se reproduzido sem que as estratégias dos pequenos partidos (coligações, candidaturas independentes pelas listas dos dois maiores partidos) surtam efeitos acentuados.

♦♦♦♦♦

A democracia cabo-verdiana emerge no contexto da “Terceira Vaga”, com a introdução de eleições livres concorrenciais em 1991, às quais apenas dois partidos (PAICV e MPD) concorreram. O sistema de partidos pode, contando apenas o número de partido relevantes, ser identificado com o formato bipartidário, pois não existia, à altura uma terceira força política. Ambos os partidos tinham expectativas fortes de vencer as eleições em 1991, mas é o MPD que as vence, com maioria qualificada e

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forma um governo maioritário. Com um padrão de alternância entre dois partidos apenas e o acesso ao poder virtualmente impossibilitado aos pequenos partidos, pelas regras do sistema eleitoral por um lado, e pelas dificuldades de financiamento que enfrentam por outro lado, a fórmula de governo, no sentido em que foi formulado por Mair (1990), é sistematicamente a mesma: maioritária.

Estes factores parecem colocar Cabo Verde ao lado das democracias mais consolidadas onde aparentemente as estruturas de competição são mais regulares e estáveis. No entanto estas estruturas não são condicionadas unicamente por factores mecânicos (como por exemplo a lei eleitoral), mas também psicológicos, uma vez que as preferências de voto são aqui condicionadas pelo facto de as expectativas serem mais previsíveis. Ou seja os eleitores têm conhecimento que a luta pelo poder está concentrada nos dois maiores partidos. Adicionalmente, como demonstramos, o crescente enraizamento dos partidos na sociedade, acontece porque os simpatizantes dos dois maiores partidos apresentam lealdades relativamente fixas e estáveis e têm atitudes cada vez mais positivas sobre as instituições políticas.

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