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VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS Perspectivas sobre poder em um mundo em redefinição 25 a 28 de julho de 2017 - Belo Horizonte / MG Área temática - Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa O PROCESSO DE REMILITARIZAÇÃO DO JAPÃO NO COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DA ÁSIA ORIENTAL Hugo Gabriel de Souza Leão Machado Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Universidade Federal de Santa Catarina

O PROCESSO DE REMILITARIZAÇÃO DO JAPÃO NO … · 2017-07-14 · ... divergências ideológicas e a aquisição de armamento ... Aspectos do pós-Segunda Guerra Mundial ajudam a

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VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Perspectivas sobre poder em um mundo em redefinição

25 a 28 de julho de 2017 - Belo Horizonte / MG

Área temática - Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa

O PROCESSO DE REMILITARIZAÇÃO DO JAPÃO NO COMPLEXO REGIONAL DE SEGURANÇA DA ÁSIA ORIENTAL

Hugo Gabriel de Souza Leão Machado

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Universidade Federal de Santa Catarina

1

RESUMO

No século XXI a Ásia Oriental se apresenta como um cenário de grande propensão a

conflitos entre Estados. Este fato ocorre devido à alta tensão ocasionada pelas relações,

em maior ou menor escala, entre Japão, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Taiwan,

Rússia e Estados Unidos. Haja vista a conjunção de diversos fatores, como: passados

conflituosos, disputas territoriais, divergências ideológicas e a aquisição de armamento

nuclear. Esse contexto de grande instabilidade regional levou o Japão a tomar a dianteira no

processo de construção de organizações que visem à segurança e à estabilidade regionais,

como a ASEAN+3 e a Conversação das Seis Partes. O objetivo japonês é liderar a

construção da agenda no debate de segurança regional. Entretanto, a falta de Forças

Armadas, devido à Constituição Japonesa de 1947, o torna um ator limitado na alçada dos

maiores atores do CRS. Contudo, é possível notar que a questão da remilitarização vem

ganhando força, especialmente, devido ao temor que os Estados Unidos retirem as suas

bases militares do Japão. O início do segundo governo Shinzo Abe, em 2012, representou

um marco nessa questão, uma vez que a intenção é ampliar a atuação das Forças de

Autodefesa, criadas na década de 1950. Em 2014, o governo Abe aprovou a revisão para a

Nova Estratégia de Defesa Nacional, que prevê o aumento dos gastos com orçamento de

defesa e ao mesmo tempo assegura o direito do país de participar de conflitos externos,

desde que a segurança nacional esteja em perigo. Essa atenção especial à temática de

segurança e as medidas tomadas pelo governo japonês constituem um dos principais

pontos da chamada Doutrina Abe. O objetivo do trabalho é entender os fatores que levaram

ao processo de remilitarização japonês e ao mesmo tempo mostrar como o seu entorno

geográfico vem respondendo a essas medidas.

PALAVRAS-CHAVE: JAPÃO; REMILITARIZAÇÃO; COMPLEXO-REGIONAL-DE-

SEGURANÇA.

2

INTRODUÇÃO

A Ásia Oriental é uma região de grande importância para a segurança internacional

devido ao potencial bélico dos seus principais atores: Japão, China, Coreia do Norte, Coreia

do Sul e Rússia. A partir da década de 1990, as relações entre esses países têm gerado

preocupação, uma vez que há um acirramento das tensões gerado por passados

conflituosos, posições políticas antagônicas e disputas territoriais. Nesse cenário instável, a

discussão acerca do processo de remilitarização do Japão tem sido um dos principais

tópicos na agenda de segurança regional, visto que há um temor por parte dos seus

vizinhos que o país conquiste a mesma capacidade militar da primeira metade do século XX

e retome a postura expansionista de outrora.

Aspectos do pós-Segunda Guerra Mundial ajudam a entender o processo de

remiltarização que o Japão vem atravessando. No final do conflito, ainda em 1945, o Japão

sofreu um processo de ocupação norte-americana que se estendeu por sete anos, tendo

seu fim em 1952. Durante esse período diversas mudanças internas foram empreendidas,

sendo a principal delas a adoção de uma nova constituição em 1947 e a consequente

extinção de suas Forças Armadas. Importante salientar que apesar do fim do período de

ocupação, durante toda a Guerra Fria o Japão seguiu uma política externa e de defesa

bastante alinhadas à norte-americana, fruto dos tratados de segurança e cooperação mútua

assinado pelos dois países nas décadas de 1950 e 1960.

Entretanto, o fim da Guerra Fria, na década de 1990, foi marcado por mudanças na

estrutura internacional de poder que refletiram nas dinâmicas regionais de segurança. O

sistema internacional unipolar que emergiu no pós-guerra provocou alterações na balança

de poder regional, com a corrida armamentista entre os principais países da região. A China

que já havia conquistado um acentuado crescimento econômico passou a investir mais na

área militar e a Coreia do Norte criou o seu programa nuclear no mesmo período, além

desses, os Estados Unidos se inseriram na região militarmente devido a posse de diversas

bases militares.

O Complexo Regional de Segurança (CRS) como trazido por Waever e Buzan busca

uma aproximação entre as dinâmicas regionais de segurança com a estrutura do sistema

internacional (FUCCILLE; REZENDE, 2013). Segundo Buzan e Waever (2003, p. 44) o CRS

“é um conjunto de unidades com maiores processos de securitização, dessecuritização, ou

ambos que estão tão interligados que seus problemas de segurança não podem ser

analisados ou resolvidos a parte um do outro”). Desse modo, ajuda a visualizar a tentativa

de remilitarização do Japão a partir da década de 1990, não só como um fenômeno

resultante do emergente sistema internacional, como também, das novas dinâmicas

3

regionais de segurança, que ascenderam naquele momento, como: a ascensão militar

chinesa e o programa nuclear norte-coreano.

O artigo está dividido em três partes: a primeira tem por objetivo analisar o processo

de criação das Forças de Autodefesa Japonesas e a aliança militar com os Estados Unidos

como frutos das dinâmicas da Guerra Fria; a segunda parte trata sobre a década de 1990 e

o início do debate sobre a remilitarização japonesa como consequência da alteração da

balança regional de poder e das dinâmicas regionais de segurança; e a terceira parte visa

fazer uma análise sobre o segundo governo Shinzo Abe (2012-atual) evidenciando as

medidas tomadas pelo primeiro-ministro no tocante a nova postura de política de defesa no

pacote da chamada Doutrina Abe.

1. ANTECEDENTES – O JAPÃO NA GUERRA FRIA

Após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Japão passou um processo de ocupação

militar norte-americana1 liderada pelo general Douglas MacArthur. Durante esse período,

que durou aproximadamente sete anos, as autoridades japonesas foram compelidas a

aceitar uma série de diretrizes que partiam de Washington, com a finalidade de submeter o

Japão à política norte-americana (FORSBERG, 2000; UEHARA, 2003).

Uma das principais mudanças propostas pelos Estados Unidos e acatada pelo Japão

dizia respeito à adoção de uma nova Constituição, que foi promulgada em 1947 e, que está

em vigor até hoje. Essa reforma constitucional promoveu uma série de transformações,

entre elas acabou com o poder político que o Imperador detinha, uma vez que se creditava a

sua figura e decisões a postura expansionista japonesa nos anos da guerra, e, além disso, a

extinção das Forças Armadas japonesas a partir daquele momento. Dentro do segundo

capítulo intitulado “Renúncia à guerra” está o artigo 9, que ficou conhecido como a norma

pacifista2.

1 Em 1951 foi assinado o Tratado de São Francisco que restabelecia a soberania japonesa, está sendo formalmente restaurada no ano seguinte. 2 Aspirando sinceramente a paz mundial baseada na justiça e ordem, o povo japonês renuncia para sempre o uso da guerra como direito soberano da nação ou a ameaça e uso da força como meio de se resolver disputas internacionais. Com a finalidade de cumprir o objetivo do parágrafo anterior, as forças do exército, marinha e aeronáutica, como qualquer outra força potencial de guerra, jamais será mantida. O direito a beligerância do Estado não será reconhecido (Artigo 9 - CONSTITUIÇÃO DO JAPÃO 1947)

4

1.1. A CRIAÇÃO DAS FORÇAS DE AUTODEFESA

A extinção das Forças Armadas Japonesas colocou o país em uma situação de

extrema vulnerabilidade nos primeiros anos da Guerra Fria. Essa insegurança foi traduzida

em esforços do governo nipônico para garantir o desenvolvimento de mecanismos que

ajudassem na proteção do seu território. Dessa forma, em 1950 foi criada a Reserva de

Polícia Nacional com a função de apenas proteger o território nacional sem qualquer

possibilidade de atuação no exterior (ALVES; KANAYAMA, 2013; SAKURAI, 2011).

O escalonamento de tensão na Ásia Oriental provocado pela Guerra da Coreia (1950-

1955) fez com o governo japonês juntamente com o norte-americano repensassem a

criação de um programa de segurança mais eficiente para o país. Naquele momento o

Japão já se apresentava como o principal aliado norte-americano na região (LEIFER, 1986;

SCHALLER, 1987). A política de defesa japonesa, no período, estava lastreada em três

premissas básicas, como aponta Makato (1977, p.345):

“(1) o Japão deveria estar preparado para prevenir agressões direitas e indiretas, assegurar o abastecimento marítimo e proteger a sua independência e segurança; (2) o Japão deve permanecer dentro de um sistema de segurança coletiva de um mundo livre; (3) os planos para defesa do Japão deveriam levar em consideração a economia japonesa e o

pensamento do seu povo”3.

Dessa maneira, em 1954, o governo japonês criou as Forças de Autodefesa (Japan

Ground Self-Defense Force – JGSDF - ou Rikujō Jieitai) sob consentimento norte-

americano. As FAD surgiram como forma de garantir uma maior proteção ao país e também

como resultado direto da parceria com os Estados Unidos. Essas forças estão presentes na

atualidade e embora o seu escopo de atuação tenha sido aumentado em anos recentes, a

sua principal função continua sendo a defesa do território nipônico (SCHALLER, 1987).

1.2. A ALIANÇA MILITAR COM OS ESTADOS UNIDOS

Em 1960 foi assinado o Tratado de Segurança Mútua entre Japão e Estados

Unidos, o Mutual Security Assistance. Através desse último tratado ficava acordado que o

Japão teria seu território protegido pelas forças armadas norte-americanas em caso de

ataque estrangeiro (SCHALLER, 1987). Entretanto, teria obrigações para com o governo

americano como explicitado pelo artigo 6 do documento4. As instalações militares norte-

3 Tradução do autor. No original: “(1) Japan must be able to prevent both direct and indirect aggresssion, secure sea-supply lanes, and protect its independence and safety; (2) Japan must remain within the collective security system of free world; and (3) plans for Japan’s defense must take into consideration the state of the Japanese economy and the state of mind of the people.” 4 Segundo o mesmo: “Com o objetivo de contribuir para a segurança do Japão e a manutenção da paz e segurança internacionais no Extremo Oriente, aos Estados Unidos da América são concedidos

5

americanas ficaram situadas, principalmente, na ilha de Okinawa, devido a sua posição

estratégica, onde eles fundaram a base de Futenma. A soberania japonesa sobre Okinawa

só foi restabelecida em 1972, fruto de acordo entre Japão e Estados Unidos.

MAPA 1: A POSIÇÃO ESTRATÉGICA DE OKINAWA

Fonte: JAPAN’S WHITE PAPER, 2016

Nesse momento é importante ressaltar a preocupação dos Estados Unidos em

confirmar o Japão como um importante aliado contra a ameaça soviética. A posição

estratégica insular japonesa perto da China, que havia acabado de passar pela Revolução

Comunista, em 1949, e a proximidade com a Coreia que passava por um dos primeiros e

principais conflitos da Guerra Fria, fez com que o governo norte-americano se apressasse

em tornar o Japão seu principal satélite militar na região da Ásia-Pacífico (SCHALLER,

1987).

Durante todo o período da Guerra Fria o Japão seguiu uma política externa bastante

dependente das diretrizes traçadas por Washington. Com a aliança militar firmada com os

Estados Unidos, o território japonês entrou automaticamente na esfera de dissuasão

estendida norte-americana (WATANABE, 2011). Usufruindo dessa posição, o governo

japonês direcionou a sua força para a reestruturação econômica do país, com um plano de

o uso de suas forças terrestres, aéreas e navais de instalações e áreas no Japão (TRATADO DE SEGURANÇA MÚTUA JAPÃO- ESTADOS UNIDOS)

6

metas que levou o nome do primeiro ministro japonês entre 1948 e 1954 Shigeru Yoshida. A

doutrina Yoshida foi responsável pela estabilização econômica do Japão no pós-Segunda

Guerra Mundial, bem como, pela sua ascensão nas décadas de 1970 e 1980. O sucesso

econômico japonês desse período é resultado do grande investimento norte-americano no

país. Esse era o plano dos Estados Unidos para posicionar o Japão dentro da sua esfera

política e garantir o país como uma de suas principais bases na Ásia Oriental (TOGO, 2005).

2. A DÉCADA DE 1990 E O PROCESSO DE REMILITARIZAÇÃO JAPONÊS

A década de 1990 representou um marco no debate sobre a remilitarização do Japão.

O fim da Guerra Fria trouxe mudanças profundas para a balança regional de poder que

ocasionou o aumento de tensões regionais, influenciando a classe política japonesa a

repensar a questão da transformação do país em um “Estado Normal com suas Forças

Armadas próprias (UEHARA, 2003).

De acordo com Buzan e Waever (2003) no final do século XX ocorreu a emergência

do Complexo Regional de Segurança da Ásia Oriental a partir da fusão entre os complexos

sub-regionais do Sudeste e Nordeste Asiático. Essa junção ocorreu devido ao

aprofundamento de relações econômicas e político-militares, com a criação de diversas

organizações e fóruns multilaterais que propiciaram uma maior união entre os países do

complexo maior. Os autores também apontam o importante papel que o Japão

desempenhou na criação desse novo complexo “Bem como sendo conduzida pela dinâmica

de segurança militar-política clássica, a criação de um complexo da Ásia Oriental também foi

impulsionada pela integração econômica da região centrada no Japão, que adicionou uma

forte dimensão econômica aos processos seus de securitização”.5

2.1. O ENTORNO REGIONAL E AS NOVAS DINÂMICAS DE SEGURANÇA

O fim da Guerra Fria propiciou diversas mudanças a nível mundial que refletiriam na

balança de poder regional. Entre as principais mudanças estavam: a mudança da estrutura

internacional de poder que deixava de ser bipolar e passava a ser um sistema unipolar. No

âmbito regional, a disputa político-militar dos anos da Guerra Fria desapareceu com o

esfacelamento da União Soviética, o que propiciou a emergência militar de novos atores,

modificando as dinâmicas de segurança regionais. A China alcançou um crescimento

econômico importante, o que propiciou o crescimento do seu gasto militar na década de

1990. Esse aumento no orçamento de defesa chinês foi acompanhado de uma postura

5 Tradução do autor. No original: “As well as being driven by classical military-political security

dynamics, the making of an East Asian complex was also driven by the Japan-centred economic integration of the region, which added a strong economic dimension to ist securitisation processes.” (BUZAN, WAEVER, 2003,p.144)

7

revisionista do seu governo, que passou a reivindicar uma série de territórios na região da

Ásia-Pacífico. Ao mesmo tempo parte do exército chinês, que ocupava a Manchúria, deixou

a região e se posicionou com vistas ao Pacífico. Entre 1995 e 1996 as Forças Armadas

chinesas fizeram um ataque balístico a Taiwan, que na época realizava sua primeira eleição

presidencial, esse fato aumentou a instabilidade regional (GASPAR, 2008; TOGO, 2005;

UEHARA, 2003). Nesse mesmo período a Coreia do Norte adquiriu arsenal nuclear a partir

da instalação da Organização para o Desenvolvimento de Energia na Península Coreana

(Kedo) em 1995. Assim, buscando se proteger das ações de seus concorrentes, o Japão

iniciou o debate sobre a sua possível remilitarização como forma de não ficar pra trás na

corrida armamentista ocasionada pelo fim da Guerra Fria na região da Ásia Oriental

(TOGO,2005; UEHARA, 2003).

2.2. A POSTURA JAPONESA FACE OS NOVOS DESAFIOS

O primeiro desafio internacional à Constituição pacifista japonesa veio com a Guerra

do Golfo no Oriente Médio, entre 1990 e 1991. Os Estados Unidos como líderes do conflito

exigiam a participam de seus aliados principalmente do Japão. O governo japonês chegou a

enviar uma ajuda em dinheiro para as tropas aliadas, um montante de treze bilhões de

dólares. Entretanto, a ausência de japoneses no conflito foi motivo de muita insatisfação do

governo norte-americano, que questionava uma participação mais proeminente do Japão na

aliança militar entre os dois países. Dessa forma, o governo japonês por medo de ver a sua

parceria militar de tantos anos acabada, fomentou debates acerca da mudança na

constituição do país para que ele pudesse atuar no exterior defendendo os interesses de

países aliados. Entretanto, as mudanças propostas pelo primeiro-ministro Hashimoto (1996-

98) como a ampliação do escopo de atuação das Forças de Autodefesa não foram

atendidas, devido a impasses dentro do governo (GASPAR, 2008; TOGO, 2005).

Aqueles que advogam a transformação do Japão em um “Estado Normal” desejam que o país volte não apenas a desempenhar um papel internacional mais ativo, mas de liderança, com poderes políticos e militares compatíveis com sua capacidade econômica. As reivindicações que envolvem a retomada dos direitos e deveres cabíveis a um Estado Normal, iniciam-se pela remoção das restrições existentes na Constituição sobre o uso da força militar como instrumento de política externa. Nessa perspectiva, compreende-se a opinião de Iwanaga, de que o envio de tropas da FAD ao exterior para operações militares autorizadas pela ONU é entendido como um primeiro e importante passo para que o Japão venha a ser aceito como um Estado Normal. De maneira concreta, conclui Iwanaga, isso significa suprimir o artigo 9 da constituição japonesa que institui à renúncia à guerra pelo país, habilitando-o, dessa forma a exercer um papel político e militar mais amplo na política internacional (UEHARA, 2003, p.137).

8

Como não havia conseguido implementar uma mudança significativa para que o Japão

se remilitarizasse, o governo japonês, então, passou a promover a criação de organismos e

fóruns multilaterais de segurança regional que passaram a fazer parte da agenda de política

externa do país. Em 1993 a partir de uma proposição japonesa foi criado o Fórum Regional

da ASEAN6, que visa reunir os países do bloco do sudeste asiático com os do nordeste

asiático e tem por objetivo fomentar o diálogo sobre tópicos importantes na agenda de

segurança regional. Em 1997 o Japão incentivou a criação da ASEAN+37, que visava reunir

os países do bloco com China, Japão e Coreia do Sul para discutir questões econômicas.

Dois anos mais tarde, os países deste novo bloco adotaram a Declaração Conjunta sobre

Cooperação na Ásia Oriental definindo como uma das prioridades a segurança e

estabilidade regionais (MASASHI, 2003). E, em 2003, foi criado a chamada Conversação

em Seis Partes, reunindo Japão, China, Rússia, Coreia do Norte, Coreia do Sul e Estados

Unidos, o objetivo primordial desse fórum é fomentar a discussão acerca do armamento

nuclear na região, principalmente, o programa nuclear norte-coreano8 (TOGO, 2012). A

criação desses mecanismos é interpretada como resultado da fragilidade japonesa frente às

ameaças que seus vizinhos representam para a sua segurança. Ao assumir a dianteira no

processo de formulação de uma agenda de segurança regional o governo nipônico visa

garantir não só um papel de relevância para o país nesse debate, como também colaborar

para uma proposta comum de segurança que diminua a sensação de instabilidade nacional.

3. O SEGUNDO GOVERNO ABE – REDEFININDO AS ESTRATÉGIAS DE DEFESA

O segundo governo do primeiro-ministro Shinzo Abe (2012-atual) representou uma

mudança na política de defesa do país e em questões importantes no tocante a

possibilidade de revisão da Constituição de 1947. Os constantes testes de mísseis e o

programa nuclear norte-coreano, assim como, as atividades da marinha chinesa no mar da

China Oriental, onde estão localizadas as ilhas Senkaku/Diaoyutai, de posse do Japão e

reclamadas pelo governo chinês, aumentaram a sensação de insegurança na região da Ásia

Oriental. Essa instabilidade levou o governo japonês a propor uma revisão de diversos

pontos na agenda de defesa do país, principalmente, no que toca as Forças de Autodefesa

e o orçamento militar, no que está sendo chamado de Doutrina Abe (HUGUES, 2015).

6 O encontro inaugural do Fórum Regional da ASEAN foi realizado em Bangkok, Tailândia, em julho de 1994. 7 Togo (2012, p.219) aponta: “A ASEAN Plus Three (APT) foi formada na época da crise financeira asiática de 1997-98. Inicialmente concebida com a missão de promover diálogo na área de cooperação econômica, foi gradualmente ampliada para cobrir um espaço mais abrangente, incluindo questões de política e segurança. 8 O fomento para a criação desse fórum de discussão veio ainda na década de 1990, quando a Coreia do Norte passou pela sua primeira crise nuclear (TOGO, 2012).

9

3.1. AS AMEAÇAS REGIONAIS E A PROPOSTA DE UMA NOVA AGENDA DE

DEFESA

No início do seu segundo governo, em 2012, Shinzo Abe definiu a nova política de

defesa do Japão como um “pacifismo pró-ativo”. Com esse discurso, o primeiro ministro

queria acalmar os ânimos da maioria da população japonesa, que se mostra contrária a

proposta de remilitarização do país e, ao mesmo tempo, garantir ao governo norte-

americano que o objetivo do governo japonês é desempenhar um papel mais atuante na

aliança militar dos dois países. Os pontos defendidos pelo primeiro-ministro é reafirmar o

compromisso japonês em garantir a segurança e estabilidade regional, assim como, ampliar

a sua agenda de defesa (NISHIDA, 2014).

Como dito anteriormente, o cenário de extrema instabilidade regional na Ásia-Pacífico

tem fomentado as principais mudanças na política de defesa do Japão. Em 2012 o governo

japonês realizou a compra das ilhas Senkaku/Diaoyutai, esse arquipélago que é reclamado

pela China estava sob a posse de um proprietário japonês que as vendeu ao governo

nipônico. Ao realizar a compra do território, o Japão garantiu a soberania sobre o mesmo o

que provocou um grande abalo nas relações entre os dois países. É de conhecimento geral

que em uma região próxima às ilhas há uma grande concentração de gás e petróleo, assim,

esses territórios têm uma posição geopolítica muito importante. Com a perda das ilhas para

o Japão, a China começou a realizar diversas atividades da sua marinha no mar da China

Oriental. Aconteceram alguns incidentes envolvendo civis e militares chineses e japoneses o

que levou a um desgaste nas relações. Outras disputas territoriais envolvendo o Japão e

seus vizinhos estão em curso. É o caso das ilhas Takeshima/Tokto importante entreposto

pesqueiro reivindicado pelo Japão que está sob posse da Coreia do Sul. E, das ilhas Curilas

que estão sob domínio Russo. A partir de uma análise do posicionamento desses territórios

é possível entender a necessidade que governo japonês tem em conquistar a soberania

sobre os mesmos para garantir a proteção do seu território (MEARSHEIMER, 2001).

10

MAPA 2: DISPUTAS TERRITORIAIS ENVOLVENDO O JAPÃO

Fonte: THE NEW YORK TIMES- ASIA PACIFIC

3.2. A NOVA POLÍTICA DE DEFESA E A ALIANÇA COM OS ESTADOS

UNIDOS

O primeiro ministro Shinzo Abe tem proposto a criação de novos mecanismos

internos para discutir e rever importantes estratégias para a defesa nacional. Em 2013 foi

criado o Conselho Nacional de Segurança, que tem por finalidade coletar e discutir assuntos

referentes ao tema, aumentando a fonte de informações que já eram coletadas pela Agência

Nacional de Defesa. Entretanto, ao propor mudanças mais significativas na agenda de

defesa do país, Shinzo Abe tem encontrado resistência por parte dos políticos japoneses

que temem a possível exclusão da norma pacifista da Constituição (AKIYAMA, 2015;

HUGHES, 2015).

Apesar dos empecilhos o governo japonês tem tido alguns êxitos, como: em 2014 foi

aprovado um Novo Programa de Diretrizes de Defesa Nacional, que já previa um aumento

dos gatos com defesa. E no ano seguinte foi iniciada a mudança mais expressiva no escopo

de atuação das Forças de Autodefesa. Naquele ano o primeiro ministro japonês viajou a

Washington para um encontro com o presidente Barack Obama com a finalidade de discutir

novas diretrizes na aliança militar dos dois países. O objetivo de Shinzo Abe era estreitar a

aliança militar com os americanos e garantir uma maior proteção contra as ameaças

iminentes: a ascensão da China e o programa nuclear norte-coreano. Dessa forma, em

setembro de 2015 o congresso japonês aprovou duas leis alterando a interpretação da

constituição e a norma pacifista. A partir daquele momento estava autorizado às Forças de

11

Autodefesa a participação em missões humanitárias e de paz fora da sua região e a

segunda e mais importante lei versava sobre a questão da autodefesa coletiva. De acordo

com essa nova lei o Japão estaria autorizado a enviar as Forças de Autodefesa para ajudar

um aliado do país, desde que a sua segurança estivesse em perigo (SUZUKI, 2015).

A garantia da paz do Japão e da sua integridade tem crescido em importância devido à transformação fundamental do ambiente de segurança nos anos recentes. Isso pode claramente ser visto na mudança da balança de poder, particularmente na Ásia, com rápidos avanços em inovações tecnológicas, a proliferação de armas de destruição em massa, e o crescimento de ataques terroristas em ameaças cibernéticas. A legislação

está visada para acrescentar esses desenvolvimentos (AKIYAMA, 2015)9

O gráfico abaixo salienta as mudanças no orçamento de defesa japonês ao longo de

vinte anos. Nota-se que apesar da norma pacifista da sua constituição, o Japão é um dos

países que mais investem em orçamento militar no mundo. Segundo dados do Stockholm

International Peace Research Insitute (SIPRI) em 2016 o Japão foi o oitavo país que mais

destinou dinheiro para área de defesa.10

GRÁFICO 1: MUDANÇAS NOS GASTOS DE DEFESA RELATADOS

Fonte: JAPANESE MINISTRY OF DEFENSE

9 Tradução do autor. No original: “The securing of Japan’s peace and integrity has grown in

importance due to the fundamental transformation of the security environment in recent years. This can clearly be seen in the shifting balance of power, particularly in Asia, rapid advances in technological innovation, the proliferation of weapons of mass destruction, and the rise in terrorist attacks and cyber threats. The legislation is aimed at addressing these developments” (AKIYAMA, 2015)

10 Em 2016 o Japão investiu um total de 49 bilhões de dólares em defesa, o que representa 2,7% do gasto mundial. Esse montante colocou o país na oitava posição no ranking do dispêndio na área militar. Dados: Relatório 2016 do SIPRI.

12

Ao propor uma revisão da norma pacifista o governo japonês responde às

expectativas norte-americanas que desde o fim da Guerra Fria fazem pressão para que o

país se remilitarize como também às novas dinâmicas regionais de segurança com a

ascensão de novos pólos de poder na Ásia Oriental.

CONCLUSÃO

Desde a sua derrota na Segunda Guerra Mundial o Japão adotou uma postura passiva

no cenário internacional. A promulgação da constituição de 1947 evidenciou esse novo

momento da política japonesa. Seguindo uma política externa bastante relacionada à norte-

americana, o Japão durante a Guerra Fria teve tempo para se reestruturar economicamente

e aprofundar os laços de cooperação com os países no seu entorno geográfico.

Entretanto, as novas dinâmicas de segurança regional forçaram o governo japonês a

iniciar os debates sobre o início de um processo de remilitarização. Além disso, as pressões

vindas de Washington, principalmente, depois da Guerra Golfo, na década de 1990,

influenciaram o governo japonês a repensar a norma pacifista da sua constituição colocando

a questão da remilitarização como um dos pontos mais importante da sua agenda de

defesa. A constante ameaça de um possível enfraquecimento na aliança militar com os

Estados Unidos, o acirramento das tensões no mar do China Oriental e os testes nucleares

norte-coreanos forçaram o governo a rever o programa de defesa nacional, lançando em

2014 novas diretrizes de defesa. E, no ano seguinte alterando o escopo de atuação das

Forças de Autodefesa.

A vitória do candidato Donald Trump nos Estados Unidos no final de 2016 fomentou o

crescimento do debate sobre a remilitarização, uma vez que uma de suas propostas,

enquanto candidato à presidência, era a retirada das tropas americanas que estão na Ásia.

Na primeira semana pós-eleição o primeiro ministro Shinzo Abe embarcou com destino a

Nova York, sendo o primeiro líder de Estado a ter uma reunião com o candidato eleito.

Apesar de não ter o assunto divulgado, estima-se que um dos tópicos da reunião foi a

questão da aliança militar entre os dois países, já que esse era um tópico importante na

agenda dos dois países no momento da eleição norte-americana.

Dada a situação de instabilidade regional e as medidas adotadas pelo governo

japonês, pelo menos a partir do segundo governo Sinzo Abe, é possível inferir que a

remilitarização ocupa uma posição de destaque na agenda do Japão. A chamada doutrina

Abe de segurança inclui outros tópicos, como o aumento do orçamento de defesa do país e

a possível mudança na Constituição de 1947. As políticas públicas do Japão na área de

defesa e segurança sinalizam a transformação do Japão em um Estado normal, com suas

forças armadas próprias.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKIYAMA, Masahiro. The Objectives of Japan’s New Security Legislation. The Tokyo Foundation, agosto de 2015. Disponível em: <http://www.tokyofoundation.org/en/articles/2015/objectives-of-new-securitylegislation>; Acesso em: 25/05/2017.

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BUZAN, Barry; WÆVER, Ole. Regions and Powers. The structure of international security. Cambridge: Cambridge University Press. 2003.

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