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O Processo - Franz Kafka

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O Processo - Franz Kafka

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Ficha TcnicaTtulo: O PROCESSO

    Autor: Franz KafkaCapa: Rui Belo/Silva! designers

    ISBN: 9789896600969Leya, SA

    Rua Cidade de Crdova, n. 22610-038 Alfragide Portugal

    Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor Publicaes Dom Quixote 2009, LeYa, SA

    Traduo: Guimares Editoreshttp://bisleya.blogs.sapo.pt

  • Breve notcia bibliogrficaFoi o escritor checo de lngua alem, Max Brod (1884-1968), editor e amigo de Franz

    Kafka (1883-1924), quem revelou postumamente ao pblico, em 1925, a obra O Processo,pertencendo-lhe tambm a escolha e a sistematizao dos textos, aos quais viria a acrescentaroutros nas reedies de 1935 e 1946; preferiu ainda intitular o original alemo Der Prozess,quando em todo o manuscrito surge sempre a ortografia Der Process. Durante largas dezenasde anos foi naturalmente esta sistematizao de Max Brod que serviu de base s inmerastradues publicadas em todo o mundo.

    Recentes trabalhos universitrios de investigao directa e minuciosa dos manuscritosderam, porm, origem a novas edies portanto muito mais prximas da presumvel vontadedo autor que, alis, nunca chegou a depurar o texto designadamente a de Malcolm Pasley(em 1990) e a de Roland Reuss e Peter Staengle (em 1997) que apresentam O Processodividido em dez captulos no numerados e seis trechos fragmentrios.

    A nova estrutura que tudo indica ser a definitiva preside portanto, igualmente, a estaedio, para manifesto benefcio e enriquecimento cultural de todos os leitores portugueses.

  • DetenoAlgum devia ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manh, sem que ele houvesse

    feito alguma coisa de mal. A cozinheira da Senhora Grubach, a dona da penso, que lhe levavao pequeno-almoo todos os dias por volta das oito horas, no apareceu desta vez. Isto nuncatinha acontecido. K. aguardou mais um pouco; apoiado na almofada da cama, viu a velhasenhora que morava em frente da sua casa a observ-lo com uma curiosidade completamenteinacostumada; mas depois, sob o efeito simultneo da surpresa e da fome, tocou a campainha.Bateram logo porta e entrou um homem que ele nunca vira naquela casa. Era esbelto e, noentanto, de constituio slida, trajava um fato preto muito justo que, semelhana dos fatosde viagem, possua diversas pregas, algibeiras, botes e um cinto, em consequncia do que,sem que se conseguisse designar-lhe o uso, parecia particularmente prtico.

    Quem o senhor? perguntou K., soerguendo-se na cama.Mas o homem ignorou a pergunta, como se fosse obrigatrio aceitar a sua apario e

    respondeu simplesmente: Chamou algum? Anna deve trazer-me o meu pequeno-almoo disse K. e comeou por tentar,

    conservando o silncio, graas a um esforo de ateno e de reflexo, descobrir quem podiaser aquele homem.

    Mas este ltimo no se exps muito tempo ao seu olhar; voltou-se para a porta e entreabriu-a para dizer a algum que, visivelmente, se encontrava mesmo ali atrs:

    Ele quer que Anna lhe traga o pequeno-almoo.Um riso breve ecoou ento na sala contgua; ao ouvi-lo, ficava-se com a certeza de que

    vrias pessoas tinham participado nele. Embora o desconhecido no pudesse revelar assimnada que ele no soubesse j, insistiu em dizer a K. num tom de declarao:

    impossvel. Seria a primeira vez disse K. saltando da cama para enfiar rapidamente as calas. Vou

    ver que espcie de gente se encontra aqui ao lado, e como que a Senhora Grubach me vaiexplicar este incmodo.

    Para dizer a verdade, ocorreu-lhe logo ao esprito que no deveria ter dito isto em voz alta,e que reconhecia assim de certo modo um direito de olhar ao desconhecido; mas isto no lheparecia agora muito importante. No entanto, foi assim que este se apercebeu das suasintenes, porque disse:

    No prefere permanecer aqui? No quero permanecer aqui nem que o senhor me dirija a palavra, enquanto no se tiver

    apresentado. Foi com boa inteno disse o desconhecido ao mesmo tempo que abria a porta.Na sala contgua, onde K. entrou mais devagar do que desejava, tudo parecia, primeira

    vista, exactamente como na vspera noite. Era o salo da Senhora Grubach, talvez houvessehoje naquela diviso sobrecarregada de mveis, de napperons, de porcelanas e de fotografias,um pouco mais de espao do que habitualmente, mas no se dava por isso imediatamente,ainda menos porque a diferena principal resultava da presena de um homem sentadoprximo da janela aberta, com um livro, e que erguia agora os olhos.

    Deveria ter permanecido no seu quarto! Franz no lho disse?

  • Sim, e o que que o senhor quer? replicou K., cujo olhar se desviou do recm-chegadopara o denominado Franz, que tinha ficado no limiar da porta, regressando, depois, novamenteao outro.

    Atravs da janela aberta, ainda se avistava a velha senhora que, com uma curiosidadedeveras senil, se havia aproximado da janela, agora mesmo em frente, para continuar aobservar tudo.

    Vou dizer Senhora Grubach... principiou K., parecendo fugir influncia dos doishomens, todavia a boa distncia dele, e quis avanar.

    No disse o homem prximo da janela, atirando o livro para cima de uma mesa elevantando-se. O senhor no tem o direito de ir-se embora, porque est detido.

    Tem todo o ar disso retorquiu K. Mas ento porqu? perguntou em seguida. No fomos encarregados de lho dizer. V para o seu quarto e espere. O processo judicial

    acaba de ser instaurado, e saber tudo na altura oportuna. Ultrapasso a minha misso ao falar-lhe to amistosamente. Mas espero que ningum, excepto Franz, me oua, e alis tambm ele otrata simpaticamente, revelia do regulamento. Se continuar a ter tanta sorte como para adesignao dos seus guardas, pode ficar sossegado.

    K. queria sentar-se, mas reparou agora que nada mais havia na sala, alm da cadeira pertoda janela.

    Em breve compreender quanto tudo isto verdadeiro disse Franz avanando na suadireco ao mesmo tempo que o outro homem.

    Este ltimo, em particular, era nitidamente mais alto do que K. e no parava de bater-lhe noombro. Ambos examinaram a camisa de noite de K. e disseram que teria agora de usar umamuito menos delicada, mas que eles guardariam aquela com todo o resto da sua roupa, e lhadevolveriam se o seu caso terminasse bem.

    Mais vale dar-nos as suas coisas do que deix-las no depsito disseram eles , porqueno depsito muitas vezes desaparecem e, alm disso, vendem todas as coisas decorrido umcerto tempo, sem se preocuparem que o respectivo processo esteja ou no concludo. E comoestes processos se eternizam, sobretudo nestes ltimos tempos! Claro que acabar por receberdo depsito o produto da venda, mas por um lado esta importncia j mnima em si, porqueno momento da venda no o montante da oferta que determinante mas o do suborno; poroutro lado, a experincia mostra que o produto destas vendas diminui ao passar de mo emmo e ao longo dos anos.

    K. no prestou muita ateno a este discurso; ligava pouco valor ao direito que era talvezainda o seu de dispor das suas coisas; interessava-lhe muito mais obter esclarecimentosacerca da sua situao; mas na presena daquela gente nem sequer podia reflectir, a barriga dosegundo guarda porque s podiam ser guardas empurrava-o constantemente, quase demodo amigvel; contudo, quando erguia os olhos, avistava um rosto muitssimo mal adequadoquele corpo rechonchudo: seco, ossudo, nariz forte, torcido de um lado, e que trocava porcima dele sinais de conivncia com o outro guarda. Que espcie de gente era ento esta? Deque falavam? A que administrao pertenciam? K. vivia no entanto num estado regido peloDireito, a paz reinava em todo o lado, todas as leis estavam em vigor, quem ousava invadir-lhe a casa? Tinha sempre tendncia para levar as coisas de nimo leve, tanto quanto possvel,para s acreditar no pior quando o pior acontecia, para no tomar nenhuma precauorelativamente ao futuro, mesmo quando estava cercado de ameaas. Mas aqui, esta atitude no

  • lhe parecia ser a adequada; claro que se podia considerar este caso como uma brincadeira,uma brincadeira grosseira que, por motivos desconhecidos, talvez porque hoje era o dia doseu trigsimo aniversrio, os seus colegas do banco lhe tinham feito, era possvel, claro:talvez lhe bastasse rir de certa maneira na cara dos guardas, e eles ririam com ele, talvezfossem homens de recados da esquina da rua, tinham um pouco o ar disso contudo, quasedesde o instante em que avistara o guarda Franz, decidira firmemente no desperdiar amnima vantagem que pudesse ter sobre esta gente. O risco de que, depois, dissessem que eleno tinha compreendido a brincadeira, era totalmente desinteressante do seu ponto de vista;em contrapartida sem que, alis, tivesse por hbito extrair a lio das suas experincias ,recordava-se de certos casos, em si sem importncia, nos quais, ao contrrio dos amigos,havia adoptado cientemente uma conduta pouco prudente, sem de modo algum encarar aspossveis consequncias, e nos quais fora castigado pelo resultado. Isto no devia voltar aacontecer; em todo o caso, desta vez, se era uma comdia, ora bem, desempenharia nela o seupapel.

    Por enquanto ainda estava livre. Com licena disse enquanto deslizava precipitadamente por entre os guardas para

    regressar ao quarto. Tem um ar sensato ouviu atrs de si.Mal chegado ao quarto, puxou bruscamente as gavetas da secretria; estava ali tudo muito

    bem arrumado, mas, na sua agitao, no encontrou logo os documentos de identificao queprecisamente procurava. Acabou por encontrar o registo da matrcula da bicicleta, e iamostr-lo aos guardas, mas o documento pareceu-lhe demasiado insignificante: continuou aprocurar e encontrou a sua certido de nascimento. Na altura em que entrou de novo na salacontgua, a porta sua frente abriu-se e a Senhora Grubach mostrou teno de entrar. S aviram um instante porque, mal reconheceu K., foi invadida por um embarao evidente,apresentou as suas desculpas e desapareceu, fechando a porta com grandes precaues. K.teve apenas o tempo de dizer:

    Vamos, entre!De p no meio da sala, com os documentos, o olhar ainda pregado na porta que no se

    tornara a abrir, foi arrancado ao seu torpor por um apelo dos guardas, sentados mesinha emfrente da janela aberta e, K. deu agora conta, a devorar o seu pequeno-almoo.

    Porque que ela no entrou? perguntou. No permitido disse o mais alto. Afinal o senhor encontra-se sob priso. Como posso eu encontrar-me sob priso? E desta maneira, quem pode estar? C o temos agora a recomear disse o guarda enquanto molhava uma fatia de po no

    pequeno boio de mel. Ns no respondemos a esse gnero de perguntas. Vo ter de responder disse K. Aqui esto os meus documentos, mostrem-me agora os

    vossos e, antes de tudo, o mandado de priso. meu Deus! disse o guarda. Como incapaz de adaptar-se situao e parece

    determinado a irritar-nos inutilmente, a ns que, entre todos os outros, somos sem dvida osmais prximos de si!

    Ele tem razo, creia disse Franz que, em vez de levar boca a chvena de caf quesegurava na mo, lanou a K. um olhar que talvez quisesse dizer algo, mas incompreensvel.

    K. trocou involuntariamente vrios olhares com Franz, depois, e apesar disso, comeou a

  • desdobrar os seus documentos enquanto dizia: Aqui esto os meus documentos de identidade. Que quer que faamos com eles? exclamou ento o guarda alto. O seu comportamento

    pior do que o de uma criana. Que pretende ento? Quer apressar o fim do seu malditogrande processo, discutindo a identidade e o mandado de priso connosco, os guardas? Somosapenas funcionrios, quase incapazes de nos entendermos com documentos de identidade ecujo nico elo com o seu caso ficarmos de guarda dez horas por dia sua casa, sendo pagospara isso. Eis tudo quanto somos; todavia, somos capazes de perceber que as altas autoridadesque servimos, antes de ordenarem uma tal deteno, se informam pormenorizadamente dosmotivos da priso e da pessoa do acusado. No existe erro possvel. As autoridades de quedependemos, tanto quanto as conheo, e apenas conheo os escales mais baixos, no so dognero de ir procurar a culpa no seio da populao; pelo contrrio, como diz a lei, a culpaque as atrai, e elas devem ento mandar-nos, os guardas. a lei. Onde poderia haver erro?

    Ignoro tal lei disse K. Tanto pior para si disse o guarda. Ela s existe, sem dvida, nas vossas cabeas disse K., que queria descobrir, de uma

    maneira ou de outra, os pensamentos dos guardas, desvi-los a seu favor ou domin-los.Mas o guarda ignorou simplesmente a sua observao, dizendo: H-de sentir-lhe os efeitos.Franz interveio ento: Ests a ver, Willem, que ele reconhece que ignora a lei, e afirma ao mesmo tempo estar

    inocente. Tens perfeitamente razo, mas no h outra maneira de faz-lo escutar alguma coisa

    disse o outro.K. no respondeu mais nada. Devo, pensou deixar-me perturbar ainda mais pelas

    futilidades destes meias-tigelas pois eles prprios se reconhecem como tal? De qualquermodo, falam de coisas de que no compreendem nada. A sua firmeza produto da suaestupidez. Duas ou trs palavras que trocarei com uma pessoa do meu nvel tornaro as coisasincomparavelmente mais claras do que uma interminvel conversa com estes indivduos.Andou um certo nmero de vezes para trs e para diante no espao livre da sala; do outrolado, viu a velha senhora: tinha trazido para a janela um velhote ainda mais idoso, quesegurava nos seus braos. K. devia pr termo a esta exibio:

    Conduzam-me ao vosso superior disse. Quando ele o desejar; antes, no disse o guarda que fora tratado por Willem. E agora

    acrescentou , aconselho-o a ir para o seu quarto, a adoptar um comportamento calmo e aesperar pelo que for decidido a seu respeito. Aconselhamo-lo a no se dispersar compensamentos inteis, mas a concentrar-se, porque muito ser exigido de si. No nos tratouconforme a nossa cortesia merecia; sejamos o que sejamos, esqueceu-se de que actualmente,relativamente a si, somos pelo menos homens livres, e no uma vantagem irrisria. Mesmoassim, se tem dinheiro, estamos prontos a ir buscar-lhe um pequeno-almoo ao caf em frente.

    Sem responder a esta oferta, K. permaneceu imvel por momentos. Talvez os dois homensno se atrevessem a ret-lo se abrisse a porta do quarto contguo, ou mesmo a porta dovestbulo; talvez a soluo mais simples de toda esta histria fosse extrem-la. Mas talvezento eles lhe pusessem as mos em cima e, uma vez vencido, perderia tambm a

  • superioridade que ainda conservava apesar de tudo, em certa medida, perante eles. Foi porisso que, preferindo a certeza da soluo que o curso natural das coisas forosamente traria,voltou para o quarto, sem que outra palavra fosse pronunciada por ele ou pelos guardas.

    Atirou-se para cima da cama e apanhou na mesinha-de-cabeceira uma bela ma que tinhaposto de lado na vspera noite para o seu pequeno-almoo. Agora ia reduzir-se a esta ma;em todo o caso, como se certificou quando a mordeu com avidez, ela era muito melhor do queo pequeno-almoo provindo de um caf miservel que teria podido obter atravs das boasgraas dos guardas. Sentia-se em forma, confiante; claro que no estava no seu posto nobanco, essa manh, mas atendendo posio relativamente elevada que ali ocupava, isso ser-lhe-ia facilmente desculpado. Deveria apresentar o verdadeiro motivo? Encarava faz-lo. Seno o acreditassem, o que seria compreensvel no caso presente, poderia invocar o testemunhoda Senhora Grubach ou ento o dos dois velhos do outro prdio, que estavam sem dvida aencaminhar-se para a janela da frente. K. admirava-se ou pelo menos achava espantoso, nalgica dos guardas, que estes ltimos o tivessem deixado voltar para o quarto onde ficousozinho, quando havia a grande possibilidade de se suicidar. Para dizer a verdade, perguntavaa si mesmo ao mesmo tempo, desta vez na sua prpria lgica, que motivo poderia ter para agirassim. Porque estavam os outros dois sentados na sala contgua e tinham apreendido o seupequeno-almoo? Teria sido a tal ponto absurdo suicidar-se que, mesmo se quisesse faz-lo, oabsurdo da coisa t-lo-ia tornado incapaz. Se a limitao intelectual dos guardas no houvessesido to manifesta, poderia supor-se que tambm eles, fortalecidos pela prpria convico,no viam nenhum perigo em deix-lo sozinho. Se lhes apetecesse, podiam agora v-lo dirigir-se para um pequeno armrio onde conservava uma boa aguardente, e esvaziar um primeirocopinho para substituir o seu pequeno-almoo, antes de confiar a um segundo copinho amisso de dar-lhe coragem, isto por pura precauo, para o caso improvvel de que tivessenecessidade dela.

    Foi ento que um apelo proveniente da sala contgua o fez sobressaltar, ao ponto de osdentes embaterem no copo.

    O inspector chama-o ouviu.Apenas o grito o assustou, aquele grito brusco, desabrido, militar, do qual no teria julgado

    capaz o guarda Franz. Quanto ordem em si, recebia-a de boa vontade. Enfim!, exclamoupara consigo como resposta; fechou o armrio e correu logo para a sala contgua. Os doisguardas estavam ali de p e empurraram-no para o quarto, com toda a naturalidade.

    Mas em que anda a pensar? exclamaram. de camisa que tenciona apresentar-seperante o inspector? Ele mand-lo- moer de pancada, e ns de acordo!

    Deixem-me, vo para o Diabo! exclamou K., que eles j haviam empurrado at aoguarda-fato. Se me surpreendem na cama, no devem esperar encontrar-me em traje de gala.

    intil disseram os guardas, que se mantinham sempre muito calmos, quase tristes at,quando K. se punha a gritar, e conseguiam assim perturb-lo ou traz-lo mais ou menos razo.

    Ridculas cerimnias! resmungou mais uma vez, mas pegara j num casaco pousado emcima da cadeira e mantinha-o no ar h alguns instantes nas duas mos, como para submet-loao julgamento dos guardas. Estes menearam a cabea.

    Tem de ser um casaco preto disseram.Ao ouvir estas palavras, K. atirou o casaco para o cho e disse, sem ele mesmo saber em

  • que sentido o dizia: No entanto ainda no estamos na audincia plenria. Os guardas sorriram, mas

    contentaram-se em repetir: Tem de ser um casaco preto. De bom grado, se o meio de acelerar o processo disse K.Abriu o armrio, procurou demoradamente entre os numerosos fatos e escolheu o seu

    melhor fato preto, cujo corte tinha quase feito sensao entre os seus conhecidos; ps tambmuma camisa nova e comeou a vestir-se com cuidado. Julgava intimamente ter conseguidoacelerar tudo, porque os guardas tinham-se esquecido de obrig-lo a tomar banho. Observou-os receoso de que eles se lembrassem disso, mas claro que a ideia nem sequer os aflorou; emcontrapartida, Willem no se esqueceu de mandar Franz anunciar ao inspector que K. estava avestir-se.

    Quando ficou completamente pronto, teve de passar por Willem quando cruzava a salacontgua, onde no estava mais ningum, para chegar sala seguinte, cuja porta de batenteduplo estava j completamente aberta. Esta diviso, K. sabia-o muito bem, era habitada hpouco tempo por uma tal Menina Brstner, dactilgrafa, que saa habitualmente muito cedopara o escritrio, regressava tarde e com a qual K. no tinha trocado mais do que simplescumprimentos. A sua mesinha-de-cabeceira fora afastada da cama e colocada no meio doquarto para servir de mesa de audincia, e o inspector estava sentado junto dela. Tinha aspernas cruzadas e um brao pousado nas costas da cadeira.

    Num canto do quarto estavam trs jovens que observavam as fotografias da MeninaBrstner, dispostas numa moldura fixada na parede. Uma blusa branca estava pendurada nofecho da janela aberta. Na janela em frente, os dois velhos estavam novamente no seu posto;mas o grupo tinha-se alargado, porque atrs deles, dominando-os com a sua grande altura,encontrava-se um homem em camisa de colarinho aberto, que apertava entre os dedos a barbae a torcia.

    Josef K.? perguntou o inspector, talvez com o nico fito de atrair para si o olhardistrado de K. Este aquiesceu. Ficou sem dvida muito surpreendido com osacontecimentos desta manh? perguntou o inspector, ao mesmo tempo que afastava com asduas mos os poucos objectos que se achavam colocados em cima da pequena mesinha-de-cabeceira, a vela com os fsforos, um livro e um novelo com agulhas, como se se tratasse deobjectos necessrios para a audincia.

    Certamente disse K., e sentiu um imenso bem-estar por se encontrar enfim diante de umhomem sensato, com o qual podia falar da sua situao , estou certamente surpreendido, masde modo algum excessivamente.

    No excessivamente? perguntou o inspector enquanto colocava agora a vela no meio damesinha e reagrupava os outros objectos sua volta.

    Talvez me tenha feito compreender mal apressou-se a observar K. Quero eu dizer... Aqui, K. interrompeu-se e procurou com o olhar um assento. Apesar de tudo, posso sentar-me? perguntou.

    No costume respondeu o inspector. Quero dizer explicou agora K. sem delongas que fiquei, claro, muito surpreendido;

    mas quando se passou dos trinta anos nesta terra e se tem de sair de embaraos sozinho, comofoi o meu caso, fica-se acostumado s surpresas e deixa-se de lev-las demasiado para o ladotrgico. Sobretudo a de hoje.

  • Porqu sobretudo a de hoje? No quero dizer que tomo todo este assunto como uma brincadeira, pois o dispositivo

    posto em campo parece-me de uma enorme amplitude. Seria preciso que os outros hspedesda casa participassem nela, e todos vocs igualmente; isso ultrapassaria os limites de umabrincadeira. No quero, portanto, dizer que se trata de uma brincadeira.

    Muito correcto disse o inspector enquanto verificava o nmero de fsforos contidos nacaixa.

    Mas por outro lado prosseguiu K. voltando-se ao mesmo tempo para todas as pessoaspresentes (at inclura de bom grado os trs indivduos que observavam as fotografias) , poroutro lado, no pode tratar-se de um assunto muito importante. Deduzo isto do facto de seracusado, mas incapaz de encontrar o mnimo erro de que possam acusar-me. No entantotambm isto secundrio; a questo essencial a seguinte: quem me acusa? Que autoridadeslanaram o processo judicial? Os senhores so funcionrios? Ningum usa uniforme, a no serque se queira chamar ao seu traje aqui virou-se para Franz um uniforme, mas antes umtraje de viagem. Peo explicaes acerca destas questes, e estou convencido de quepoderemos separar-nos amigavelmente aps estes esclarecimentos.

    O inspector fez estalar a caixa de fsforos quando a pousou na mesa. Est redondamente enganado disse ele. Estes senhores aqui presentes e eu prprio

    somos de uma importncia completamente nfima em relao ao seu caso, do qual atignoramos pouco mais ou menos tudo. Poderamos usar os uniformes mais regulamentares, e asua causa no ficaria em piores lenis. Tambm no posso dizer-lhe em absoluto que estacusado ou, antes, ignoro se est. Encontra-se detido, exacto, no sei mais nada. Talvez osguardas hajam dito outra coisa enquanto tagarelavam, mas no passava de tagarelice, nadamais. Portanto, se no posso responder s suas perguntas, posso pelo menos dar-lhe esteconselho: no pense tanto em ns e no que vai suceder-lhe; pense antes em si prprio. E noclame com tanta veemncia a sua inocncia, pois isso prejudica a boa impresso que causa emtodo o lado. Deveria tambm ser mais comedido nas suas palavras; mesmo que s tivesse ditoduas ou trs palavras, ter-se-ia podido deduzir do seu comportamento quase tudo o que disseantes; alis, no h nada que lhe seja manifestamente favorvel.

    K. fitou o inspector com insistncia. Ali estava um indivduo, talvez mais novo do que ele, adar-lhe lies! A sua franqueza era punida com uma reprimenda? E no sabia nada acerca domotivo da sua priso nem acerca dos que haviam dado a ordem? Tomado por um certonervosismo, caminhou de um lado para o outro no quarto, no sendo impedido por ningum;arregaou os punhos da camisa, apalpou o peito, arranjou o cabelo, passou em frente dos trscavalheiros, dizendo realmente insensato, ao que estes se viraram para ele e o fitaramcom benevolncia, embora com ar grave, e acabou por parar de novo diante da mesa doinspector.

    O procurador Hasterer um dos meus bons amigos disse , posso telefonar-lhe? Certamente retorquiu o inspector , mas no estou a ver que justificao isso teria, a no

    ser que tenha um assunto particular a tratar com ele. Que justificao? exclamou K., mais consternado do que irritado. Quem ento o

    senhor? Reclama justificao e representa a comdia mais disparatada que imaginar se possa?E no haveria nada que causasse comoo? Estes cavalheiros comearam por se introduzir emminha casa, e agora ficam aqui, sentados ou de p, e obrigam-me a fazer acrobacias diante de

  • si. Que justificao teria telefonar a um procurador, quando me encontro, parece, sob priso?Muito bem, no telefonarei.

    Claro que sim, telefone disse o inspector estendendo a mo para o vestbulo onde estavao telefone , faa favor, telefone l.

    No, j no quero disse K., e dirigiu-se para a janela.Do outro lado, os trs curiosos ainda estavam janela, e foi s quando viram K. aproximar-

    se por sua vez que pareceram um pouco perturbados na sua tranquila contemplao. Os velhosfizeram meno de levantar-se, mas o homem atrs deles acalmou-os.

    Ali tambm h espectadores gritou K. ao inspector, com uma voz forte, apontando oindicador para o exterior. Desapaream! gritou depois na mesma direco.

    Os trs outros recuaram logo dois ou trs passos; os dois velhotes colocaram-se mesmoatrs do homem que os protegia com a sua corpulncia e, a avaliar pelo movimento dos seuslbios, dirigia-lhes palavras tornadas incompreensveis pela distncia. Mas eles nodesapareceram por completo; pareciam antes aguardar o momento em que pudessem voltar janela sem ser vistos.

    Gente indiscreta e incmoda! disse K. voltando-se para o interior da sala.Talvez o inspector estivesse de acordo com ele, K. julgou notar isto quando lhe deitou um

    olhar discreto. Mas era muito possvel tambm que no tivesse escutado, porque tinha uma dasmos apoiada firmemente na mesa e parecia comparar o comprimento dos dedos. Os doisguardas encontravam-se sentados numa arca coberta por um bonito pano e esfregavam osjoelhos. Os trs jovens tinham as mos nas ancas e passeavam os olhares sua volta. A calmareinava, como num qualquer gabinete esquecido.

    Ora bem, meu senhores exclamou K., e durante um momento teve a impresso de levartodos s costas , a julgar pelo vosso ar, o meu caso parece arrumado. Sou de opinio que omelhor no mais perguntar se os vossos procedimentos so justificados ou injustificados econcluir tudo isto trocando um aperto de mo, em sinal de reconciliao. Se forem tambm daminha opinio, ento, faam favor... e avanou para a mesa do inspector de mo estendida.

    O inspector ergueu os olhos, mordeu os lbios e fitou a mo estendida; K. ainda julgou queo inspector a iria apertar. Mas levantou-se, pegou num chapu de coco que estava pousado nacama da Menina Brstner e com as duas mos ajustou-o na cabea, como se faz quando seexperimenta um chapu novo.

    Como tudo lhe parece simples! disse ao mesmo tempo a K. Deveramos concluir tudoisto com uma reconciliao, foi o que disse? No, no, est fora de causa. No quero dizerque deva desesperar. Claro que no, porqu? Apenas se encontra sob priso, nada mais. oque eu tinha para lhe comunicar, fi-lo e verifiquei igualmente como acolheu a coisa. Isto porhoje chega e podemos despedir-nos, pelo menos para j. Quer, sem dvida, ir agora para obanco?

    Para o banco? perguntou K. Julgava-me sob priso.K. fez a pergunta num certo tom de desafio, porque embora o seu aperto de mo tivesse sido

    recusado, sentia-se cada vez mais independente perante toda aquela gente, sobretudo depoisde o inspector se ter levantado. Brincava com eles. Tencionava, no caso de partirem, correrpara a porta da entrada e oferecer-se para se deixar prender. Por isso repetiu:

    Como posso eu ir ao banco, se me encontro detido? Ah! disse o inspector que se achava j prximo da porta , compreendeu-me mal;

  • encontra-se sob priso, claro, mas isso no deve impedi-lo de exercer a sua profisso.Tambm no deve sentir-se incomodado nos seus hbitos.

    Sendo assim, no muito mau estar preso disse K., aproximando-se do inspector. Eu nunca afirmei outra coisa disse este. Assim, nem sequer parece realmente necessrio ter-me informado da minha deteno

    disse K. aproximando-se mais.Os outros tambm se tinham aproximado. Achavam-se agora todos reunidos num espao

    exguo, perto da porta. Era o meu dever disse o inspector. Um dever idiota replicou K. duramente. Talvez respondeu o inspector , mas no vamos perder o nosso tempo em conversas

    deste gnero. Supunha que desejasse ir ao banco. Uma vez que presta ateno a tudo quantodizemos, acrescento que no o obrigo a ir ao banco, apenas tinha suposto que o desejasse. Epara facilitar-lhe a tarefa e atrair o menos possvel a ateno para a sua chegada ao banco, pus sua disposio estes trs cavalheiros, que so seus colegas.

    O qu? exclamou K. encarando os trs homens, espantado.Aquelas personagens to insignificantes, to anmicas, to jovens, de quem ele apenas se

    recordava em grupo, de p prximo das fotografias, eram efectivamente empregados do seubanco, no eram colegas, a frmula era excessiva e indicava uma falha na omniscincia doinspector, mas sim pequenos funcionrios do banco. Como pudera isto escapar a K.? Comodevia estar absorvido pelo inspector e pelos guardas, a ponto de no reconhecer aqueles trsindivduos! Rabensteiner, hirto e balanando as mos, Kullych, o louro dos olhos enterradosnas rbitas, e Kaminer, cujo sorriso insuportvel era devido a uma contraco muscularcrnica.

    Bom dia disse K. aps um pequeno instante, e estendeu a mo aos cavalheiros que seinclinaram delicadamente. No vos tinha reconhecido. Portanto, vamos agora para oescritrio, isso?

    Os cavalheiros aquiesceram, rindo com ar solcito, como se, durante todo aquele tempo,no tivessem esperado outra coisa; mas no momento em que K. verificou que havia esquecidoo chapu, que tinha ficado no quarto, eles correram para ir busc-lo, todos juntos e em fila,revelando apesar de tudo um certo embarao. K. permaneceu imvel e seguiu-os com o olharatravs das duas portas abertas; o ltimo era, claro, o indiferente Rabensteiner, que secontentava com um elegante trotezinho. Kaminer entregou o chapu a K. e, como era, alis,muitas vezes obrigado a faz-lo no banco, K. teve de recordar-se expressamente de que osorriso de Kaminer no era intencional e de que ele era mesmo incapaz de sorrir quandoqueria. No vestbulo, a Senhora Grubach, que no tinha o ar de sentir-se muito culpada, abriua todos estes cavalheiros a porta da entrada e, como tantas vezes fazia, K. baixou os olhospara o cordo do seu avental, que cavava muito inutilmente uma linha no seu corpo macio.No rs-do-cho, K. decidiu, de relgio na mo, utilizar um automvel, a fim de no agravarinutilmente o seu atraso, que j ia em meia hora. Kaminer correu para a esquina da rua procura do carro; os dois outros esforavam-se manifestamente por distrair K., quando desbito Kullych apontou com o dedo a porta da casa fronteira, onde surgira justamente o homemda pra branca: ao princpio um pouco incomodado por aparecer agora em toda a sua altura,recuou para a parede e encostou-se-lhe. Os velhotes encontravam-se sem dvida ainda na

  • escada. K. ficou irritado por Kullych ter chamado a ateno para este homem, que ele mesmoj avistara, e que j contava at avistar.

    No olhe para ali! exclamou, sem reparar que era uma maneira singular de falar ahomens e a adultos.

    Mas no foi necessria nenhuma explicao, porque o automvel j estava a chegar;sentaram-se e meteram-se a caminho. Ento K. recordou-se de que no tinha dado pela partidado inspector e dos guardas; o inspector havia-lhe dissimulado os trs funcionrios, e estes oinspector. Isto no revelava presena de esprito, e K. resolveu vigiar-se cada vez mais a talrespeito. No obstante, voltou-se mais uma vez sem querer e inclinou-se para trs, por cima dacapota do automvel, a fim de tentar avistar o inspector e os guardas. Mas endireitou-se logosem ter realmente tentado distinguir fosse o que fosse, e instalou-se confortavelmente numcanto da viatura. Apesar das aparncias, teria precisado de ser reconfortado naquele precisomomento, mas os cavalheiros pareciam cansados; Rabensteiner olhava para a direita, a cabeadebruada para o exterior da viatura, Kullych, para a esquerda, e s restava Kaminer com oseu trejeito, de que, por uma questo de humanidade, era infelizmente proibido gracejar.

  • Conversa com a Senhora Grubach, depois com aMenina Brstner

    Nessa Primavera, K. criara o costume de passar as noites, quando isso era ainda possveldepois do trabalho porque na maioria das vezes ficava no escritrio at s nove horas ,dando um pequeno passeio, sozinho ou com pessoas suas conhecidas; depois, dirigia-se cervejaria onde ficava habitualmente sentado sua mesa preferida at s onze horas nacompanhia de cavalheiros, em geral mais velhos do que ele. Mas esta ocupao do tempotinha tambm excepes, por exemplo, quando K. se via convidado pelo director do banco,que muito apreciava a sua eficcia no trabalho e a sua competncia, para um passeio deautomvel ou para um jantar na sua moradia. Alm disso, K. ia uma vez por semana a casa deuma jovem chamada Elsa que trabalhava noite e at de manh como criada numa taberna, edurante o dia recebia todas as suas visitas metida na cama.

    Mas, nessa noite o dia passara depressa sob a presso do trabalho e das numerosasprovas de respeito e de amizade que recebera por ocasio do seu aniversrio , K. quis logovoltar para casa. No cessara de pensar nisso durante todas as pequenas pausas do dia; semsaber exactamente porqu, parecia-lhe que os acontecimentos da manh tinham espalhado umagrande desordem no apartamento da Senhora Grubach, e que a sua prpria presena eraindispensvel para restabelecer a ordem. Ora, logo que esta ordem ficasse restabelecida,todos os vestgios desses acontecimentos seriam apagados, e as coisas retomariam o seu cursonormal. No havia nada de especial a temer da parte dos trs funcionrios; tinham mergulhadonovamente na massa do pessoal do banco e no se verificava qualquer mudana na sua atitude.K. tinha-os convocado vrias vezes para o seu gabinete, separadamente ou todos juntos, com onico fito de os observar; e pudera sempre mand-los embora tranquilamente.

    Quando s nove e meia chegou em frente da casa onde habitava, encontrou porta um jovemrapago que ali estava de p, pernas afastadas, a fumar cachimbo.

    Quem voc? perguntou logo K. aproximando o seu rosto do do rapaz, porque no sevia grande coisa na penumbra do vestbulo.

    Sou o filho do porteiro, senhor respondeu o rapaz, ao mesmo tempo que retirava ocachimbo da boca e se afastava.

    O filho do porteiro? perguntou K. batendo com a bengala no cho, com impacincia. O senhor deseja alguma coisa? Devo ir buscar o meu pai? No, no disse K. com uma espcie de mansuetude na voz, como se o rapaz houvesse

    feito alguma coisa errada, mas que ele desculpava. Est tudo bem acrescentou enquantoavanava, mas antes de subir a escada, voltou-se mais uma vez.

    Teria podido seguir directamente para o quarto, mas como desejava falar com a SenhoraGrubach, bateu sua porta. Estava sentada a passajar, em frente de uma mesa onde havia ummonte de meias velhas. Com ar distrado, K. desculpou-se por chegar to tarde, mas a SenhoraGrubach foi muito amvel e no quis ouvir falar em desculpas: podia ir sempre procur-la,sabia muito bem que era o seu melhor hspede, o seu hspede favorito. K. examinou a sala emseu redor; tinha recuperado perfeitamente o seu estado inicial; a loua do pequeno-almooque, nessa manh, estava posta na mesinha perto da janela, tinha tambm sido arrumada. Asmos femininas realizavam bem tarefas sem nada dizerem, pensou, porque ele teria partido a

  • loua logo ali, talvez, mas certamente no conseguiria levant-la da mesa. Encarou a SenhoraGrubach com um certo reconhecimento.

    Porque trabalha at to tarde? perguntou.Agora estavam os dois sentados mesa, e K. mergulhava de vez em quando a mo no monte

    das meias. H muito trabalho disse ela durante o dia, perteno aos hspedes; se quero pr em

    ordem as minhas coisas, s me restam as noites. Hoje dei-lhe, sem dvida, mais trabalho do que habitualmente. Como assim? perguntou ela animando-se um pouco e pousando a costura nos joelhos. Estou a falar dos cavalheiros que vieram aqui esta manh. Ah, sim! disse ela, recuperando a calma. Isso no me deu particularmente trabalho.Sem dizer nada, K. viu-a recomear a passajar. Parece admirar-se por eu falar nisto,

    pensou, parece achar despropositado que eu fale nisto. ainda mais importante que eu ofaa. S com uma mulher idosa posso falar disto.

    Sim, deu-lhe seguramente trabalho disse ele ento , mas no voltar a suceder. No, isso no pode voltar a suceder acentuou ela sorrindo a K. com um ar quase

    melanclico. Pensa assim, a srio? perguntou K. Sim disse ela mais baixinho , mas antes de tudo o senhor no deve levar as coisas para

    o lado trgico. Acontecem tantas coisas no mundo! J que me est a falar com tal confiana,Senhor K., posso muito bem confessar-lhe que escutei um pouco atrs da porta e que tambm amim os dois guardas me contaram duas ou trs coisas. que se trata da sua felicidade e que eume interesso muito por ela, mais talvez do que deveria, porque sou apenas a dona da pensoonde vive. Ora bem, ouvi ento duas ou trs coisas, mas no posso dizer que sejaparticularmente grave. No. Claro que se encontra sob priso, mas no como se prende umladro. Quando se preso como um ladro, ento grave, mas esta deteno... Isto d-me aimpresso de algo de sbio, desculpe-me se digo disparates, d-me a impresso de algo desbio, que no compreendo, verdade, mas que tambm no somos forados a compreender.

    No disse nenhum disparate, Senhora Grubach; em todo o caso, eu tambm sou em parteda sua opinio; mas julgo a coisa ainda com mais severidade; no vejo nela absolutamentenada de sbio, estimo-a nula e sem valor. Fui apanhado de surpresa, eis tudo. Se mal acordei,me tivesse levantado logo sem me deixar desconcertar pela ausncia de Anna, e se tivesse idoprocurar a senhora, sem prestar a mnima ateno a quem quer que me barrasse o caminho, setivesse, dessa vez, excepcionalmente, tomado o meu pequeno-almoo na cozinha, porexemplo, se lhe tivesse pedido que fosse buscar a minha roupa ao quarto, em suma, se tivesseagido razoavelmente, nada teria sucedido; tudo quanto supostamente sucedesse teria de incioficado anulado. Mas estamos muito pouco preparados. No banco, por exemplo, estoupreparado, nada disto poderia acontecer-me l: tenho um empregado s para mim, o telefonedirecto e o telefone interno esto diante de mim na minha secretria, h gente sem parar,clientes, empregados que entram; mas alm disso e antes de tudo, estou constantementeinserido no contexto do trabalho, tenho portanto o esprito alerta, sentiria mesmo prazer emachar-me confrontado ali com este gnero de situao. Bom, tudo isto j passou e, de facto, euno tinha nenhuma inteno de falar dele, queria simplesmente escutar a sua opinio, a opiniode uma mulher sensata, e sinto-me encantado por estarmos de acordo. E agora, deve apertar-

  • me a mo, um tal acordo deve ser selado por um aperto de mo.Ela ir estender-me a mo? O inspector no me estendeu a mo, pensou, e lanou

    mulher um olhar diferente, inquisidor. Ela levantou-se, pois tambm ele se tinha levantado;estava um pouco embaraada, porque no tinha compreendido tudo o que K. dissera. Mas esteembarao f-la proferir palavras que no tinha qualquer inteno de proferir e, ainda mais,palavras deslocadas:

    No leve tanto as coisas para o lado trgico, Senhor K. disse com a voz embargada eesquecendo-se, claro, do aperto de mo.

    Que eu saiba, no levo as coisas para o lado trgico disse K., subitamente cansado evendo bem o pouco valor que tinha o assentimento daquela mulher.

    Prximo da porta, perguntou-lhe ainda: A Menina Brstner est em casa? No respondeu a Senhora Grubach, acompanhando com um sorriso esta informao

    muito seca e, com um pouco de atraso, com uma dose razovel de simpatia. Est no teatro.Queria pedir-lhe alguma coisa? Devo transmitir-lhe algum recado?

    Oh, queria s dizer-lhe duas palavras! Infelizmente ignoro quando ela regressar; sempre que vai ao teatro, volta habitualmente

    tarde. Isso no tem nenhuma importncia disse K. voltando-se j para a porta para sair, de

    cabea baixa , queria apenas pedir desculpa por ter ocupado o seu quarto esta manh. intil, Senhor K., muito atencioso, alis ela no est ao corrente de nada, saiu de casa

    de manh cedo, e tudo foi posto em ordem, veja pessoalmente.E abriu a porta do quarto da Menina Brstner. Obrigado, acredito em si disse K., mas mesmo assim dirigiu-se para a porta aberta.A Lua, silenciosa, iluminava o quarto escuro. Tanto quando se podia ver, tudo estava

    efectivamente no seu lugar, mesmo a blusa j no estava pendurada no fecho da janela. Asalmofadas pareciam particularmente dispostas ao alto na cama e estavam em parte iluminadaspela Lua.

    Ela volta muitas vezes tarde disse K. encarando a Senhora Grubach como se tivesse aresponsabilidade disso.

    Ah!, quando somos jovens! disse a Senhora Grubach, com indulgncia. Claro, claro disse K. , mas isso pode levar demasiado longe. bem verdade retorquiu a Senhora Grubach , como tem razo, Senhor K. Talvez

    sobretudo neste caso preciso.Longe de mim o desejo de caluniar a Menina Brstner, uma boa e simptica rapariga,

    amvel, ordenada, pontual, trabalhadora; aprecio muito todas estas qualidades, mas verdadeque deveria mostrar mais orgulho, mais recato. J a vi duas vezes este ms em ruas isoladas, ede cada vez com um senhor diferente. Isto deu-me muita pena, e Deus testemunha de que s oconto a si, Senhor K., mas terei de ser eu prpria a falar com ela. No , alis, o nicopormenor que a mim a torna suspeita.

    Est completamente enganada disse K. com uma raiva que foi quase incapaz dedissimular , alm disso compreendeu manifestamente mal a minha observao a propsitodela, no o que eu queria dizer. Desaconselho-a por completo a fazer-lhe a mnimaobservao, equivoca-se redondamente, eu conheo muito bem esta menina, nada do que disse

  • verdade. Alis, estou a ir talvez demasiado longe; no quero impedi-la, diga-lhe o quequiser. Boa noite.

    Senhor K. disse a Senhora Grubach, numa voz suplicante, correndo atrs de K., que jtinha aberto a sua porta , mas no tenciono falar por enquanto com ela; claro, continuarei aobserv-la antes de o fazer, o senhor a nica pessoa a quem confiei o que sabia. Afinal, osproprietrios so obrigados a meter na cabea estas coisas se querem manter a tranquilidadeda sua penso, e eu s o que procuro com isto.

    A tranquilidade! exclamou K. atravs da porta entreaberta. Se pretende manter atranquilidade da sua penso, sou eu o primeiro que deve ser despedido.

    Depois bateu com a porta, deixando de se preocupar com as pancadas discretas que soavamdo outro lado.

    No entanto, por no ter nenhuma vontade de dormir, decidiu no se deitar imediatamente eaproveitar a ocasio para ver a que horas a Menina Brstner voltaria. Talvez houvessetambm um meio, mesmo se fosse inconveniente, de trocar duas palavras com ela. janela,apoiado nos cotovelos, e esfregando os olhos cansados, pensou mesmo castigar a SenhoraGrubach, persuadindo a Menina Brstner a des pedir-se ao mesmo tempo que ele. Mas estareaco pareceu-lhe logo terrivelmente exagerada, e suspeitou at que procurava mudar dedomiclio por causa dos acontecimentos da manh. Nada teria sido mais insensato e sobretudomais vo e mais desprezvel.

    Quando se cansou de vigiar a rua deserta, deitou-se no canap, depois de ter entreaberto aporta do vestbulo, a fim de estar em condies de avistar logo, ali deitado, quem quer quefosse que entrasse em casa. At perto das onze horas, permaneceu tranquilamente deitado nocanap a fumar um charuto. Depois, incapaz de ficar quieto, foi por instantes ao vestbulo,como se pudesse desse modo apressar a vinda da Menina Brstner. No sentia um desejoespecial por ela, nem sequer chegava a recordar-se exactamente de como ela era, mas agoraqueria falar-lhe, e sentia-se irritado com o pensamento de que, com o seu atraso, tambm elaintroduzia a agitao e a desordem naquele fim de dia. Era tambm culpa sua se, naquelanoite, no tinha jantado e se abstivera da sua visita prevista para hoje a casa de Elsa. Claroque podia remediar estas duas coisas indo taberna onde Elsa trabalhava. Tencionava, alis,faz-lo mais tarde, depois da conversa com a Menina Brstner.

    J passava das onze e meia quando soaram passos na escada. K., mergulhado nos seuspensamentos, percorria com passos sonoros o vestbulo de um lado para outro, como se setratasse do seu prprio quarto, e refugiou-se atrs da sua porta. Era a Menina Brstner queestava de volta. Enquanto fechava a porta da entrada apertou, estremecendo, um xaile sobre osombros frgeis. Ia entrar no quarto no instante seguinte e estava fora de questo que K. lpudesse entrar meia-noite; devia, portanto, falar-lhe agora, mas infelizmente tinha-seesquecido de ligar a luz no seu quarto, de modo que ao sair desta diviso obscura muito searriscava a dar a impresso de assalto ou, pelo menos, de causar-lhe grande pavor. Na suaconfuso, e como no havia um instante a perder, murmurou pela porta entreaberta:

    Menina Brstner!Parecia mais uma orao do que um apelo. Est a algum? perguntou a Menina Brstner olhando sua volta, de olhos arregalados. Sou eu disse K. adiantando-se. Ah, o Senhor K.! disse a Menina Brstner, sorrindo. Boa noite! e estendeu-lhe a

  • mo. Queria dizer-lhe duas palavras: permite-me que o faa agora? Agora? perguntou a Menina Brstner. indispensvel que seja agora? um pouco

    estranho, no acha? Estou sua espera desde as nove horas. Ah, sim, estava no teatro, ignorava que estava minha espera! Aquilo que tenho para falar consigo data de hoje apenas. Bom, ora bem, no vejo grande objeco, a no ser que estou a cair de cansao. Entre

    ento um instante no meu quarto. No adequado falar aqui, vamos acordar toda a gente, eisso incomodar-me-ia ainda mais por ns do que pelos outros. Espere que eu acenda a luz omeu quarto, depois apague a luz aqui.

    K. assim procedeu, mas aguardou depois que a Menina Brstner, do quarto, o convidassemais uma vez muito baixinho a entrar.

    Sente-se disse ela, designando o div; manteve-se de p junto da cama, apesar docansao de que falara; nem sequer pousou o pequeno chapu enfeitado com um monto deflores. Que queria ento? Estou realmente com curiosidade de saber.

    Cruzou as pernas com -vontade. Vai talvez dizer comeou K. que o assunto no era to urgente que fosse preciso falar

    dele agora, mas... Nunca ouo os prembulos disse a Menina Brstner. Isso vai facilitar-me a tarefa retorquiu K. Esta manh, o seu quarto foi, de certo modo

    por culpa minha, um pouco desarrumado por estranhos, contra a minha vontade e, no entanto,como j lhe disse, por culpa minha; por isso queria apresentar-lhe as minhas desculpas.

    O meu quarto? perguntou a Menina Brstner e, em vez de examinar o quarto, dirigiu a K.um olhar inquisidor.

    a verdade disse K., e ambos se entreolharam pela primeira vez , o modo como issoaconteceu dispensa comentrios.

    Mas , no entanto, a nica coisa interessante replicou a Menina Brstner. No disse K. Bom prosseguiu a Menina Brstner , no quero imiscuir-me nos seus segredos, se

    mantm que no reveste interesse, no fao nenhuma objeco. Aceito de bom grado asdesculpas que me apresenta, tanto mais que no vejo qualquer vestgio de desarrumao. Demos apoiadas nas ancas, deu uma volta pelo quarto. Deteve-se diante da barafunda quecontinha as fotografias. Sim, olhe! exclamou. As minhas fotografias esto todasmisturadas. Aqui est uma coisa muito desagradvel. Algum, de facto, entrou sem autorizaono meu quarto.

    K. aquiesceu e amaldioou intimamente o empregado Kaminer, sempre incapaz de dominara sua estpida e v agitao.

    singular disse a Menina Brstner que eu seja obrigada a proibir-lhe o que o senhordeveria proibir a si prprio, a saber: entrar no meu quarto na minha ausncia.

    No entanto, expliquei-lhe, menina disse K. acercando-se tambm das fotografias , queno fui eu que tocou nas suas fotografias; mas j que no me acredita, devo confessar-lhe que acomisso de inqurito trouxe trs funcionrios do banco e que um deles, que eu mandareidespedir na prxima ocasio, provavelmente mexeu nas fotografias. Sim, veio aqui uma

  • comisso de inqurito acrescentou K. perante o seu olhar interrogador. Tinha que ver consigo? perguntou ela. Sim respondeu K. No! exclamou ela sorrindo. Mas tinha disse K. , portanto julga-me inocente? Enfim, inocente... disse ela. No quero pronunciar um juzo apressado e talvez

    carregado de consequncias; afinal, no o conheo; apesar de tudo, preciso ser um grandecriminoso para ter s costas uma comisso de inqurito. Mas uma vez que est livre... deduzopelo menos da sua calma que no se evadiu da priso..., no pode ter cometido um crimegrave.

    verdade disse K. , mas possvel que a comisso de inqurito se tenha apercebidode que no sou culpado ou em todo o caso no grau que supunham.

    Claro que possvel disse a Menina Brstner, muito atenta. Bem v prosseguiu K. que no tem muita experincia em matrias judiciais. No, no tenho muita disse a Menina Brstner , e j o lamentei muitas vezes, porque

    gostava de saber tudo e sinto justamente um imenso interesse pelas questes judiciais. Otribunal tem algo de particularmente atraente, no acha? Mas vou seguramente ampliar os meusconhecimentos neste domnio, porque entro no ms que vem como empregada num escritriode advogados.

    Excelente disse K. , nesse caso poder ajudar-me um pouco no meu processo. possvel respondeu a Menina Brstner , porque no? Gosto muito de utilizar os meus

    conhecimentos. Estou a falar a srio disse K. ou, pelo menos, meio a srio, como a menina. O caso

    realmente muito pouco importante para recorrer a um advogado, mas poderia precisar muitobem dos servios de um conselheiro.

    Sim, mas se devo aconselh-lo, preciso de saber de que se trata retorquiu a MeninaBrstner.

    A que est o problema disse K. , eu prprio o ignoro. Nesse caso esteve a brincar comigo disse a Menina Brstner, excessivamente

    decepcionada , foi completamente intil escolher uma hora to tardia para isto.E afastou-se das fotografias em frente das quais tinham permanecido de p juntos todo este

    tempo. Mas, minha menina disse K. , eu no estou a brincar. Porque se recusa a acreditar-me?

    Acabo de dizer-lhe o que sei. At mais do que sei, porque no se tratava de uma comisso deinqurito; eu designo-a assim falta de arranjar-lhe outro nome. No houve inqurito, fuisimplesmente detido, mas por uma comisso.

    A Menina Brstner estava sentada no div e tornara a sorrir. Ento como que isso se passou? perguntou. Foi horrvel disse K. mas agora no pensava muito nisso, absorvido por completo pelo

    espectculo da Menina Brstner que tinha o rosto apoiado numa das mos, com o cotovelo adescansar na almofada do div, enquanto a outra mo acariciava lentamente a anca.

    um pouco vago disse a Menina Brstner. O que que demasiado vago? perguntou K. Depois lembrou-se e perguntou: Quer

    que lhe mostre como foi que as coisas se passaram?

  • Queria mexer-se, sem no entanto partir. Estou muito cansada disse a Menina Brstner. Regressou muito tarde disse K. E para acabar faz-me censuras; com toda a razo, alis, porque eu no deveria t-lo

    deixado entrar. E isso tambm no era necessrio. Era necessrio, e s agora que vai compreend-lo disse K. Posso afastar a mesinha-

    de-cabeceira da sua cama? Mas que ideia! disse a Menina Brstner. Claro que no! Ento no poderei mostrar-lhe replicou K. rapidamente, como se lhe tivessem infligido

    assim um imenso prejuzo. Bom, se indispensvel para a descrio, ento empurre a mesinha, mas com cuidado

    disse a Menina Brstner, e depois acrescentou, aps um breve instante, numa voz fraca: Omeu cansao torna-me mais compreensiva do que deveria ser.

    K. colocou a mesinha no meio do quarto e sentou-se atrs. Deve imaginar bem adisposio das personagens, muito interessante. Eu sou o inspector; ali na arca estosentados dois guardas; perto das fotografias h trs jovens de p. No fecho da janela,menciono-o apenas de passagem, est pendurada uma blusa branca. E agora vai comear. Ah,sim, j me esquecia, eu, a personagem mais importante, mantenho-me, pois, em frente damesinha! O inspector est sentado muito vontade, as pernas cruzadas, deixando pender obrao aqui, por cima das costas da cadeira, um perfeito grosseiro. E agora, portanto, istocomea deveras. O inspector grita como se tivesse de me acordar, berra a plenos pulmes; epeo desculpa mas, se quero faz-la compreender, tenho de berrar tambm, alis, s o meunome que ele berra assim.

    A Menina Brstner, que escutava a rir, pousou o indicador na boca para impedi-lo deberrar, mas era demasiado tarde, K. achava-se demasiado absorvido pelo seu papel, berroulentamente: Josef K.!, alis com menos fora do que ameaara faz-lo, mas no entantosuficiente para que este grito, que soltara de um s impulso, parecesse espalhar-seprogressivamente pelo quarto.

    Logo se ouviram vrias pancadas sonoras, breves e regulares, na porta do quarto contguo.A Menina Brstner empalideceu e levou a mo ao peito. K. sobressaltou-se de um modoparticularmente violento, porque, durante um curto instante, o seu pensamento ficaraprisioneiro dos acontecimentos da manh e da jovem diante da qual estava a reconstitu-los.Mal se recomps, saltou para junto da Menina Brstner e tomou-lhe a mo.

    Nada receie murmurou , eu vou tratar de tudo. Mas quem pode ser? Apenas existe osalo ao lado, onde ningum dorme.

    Sim cochichou a Menina Brstner ao ouvido de K. , desde ontem que um sobrinho daSenhora Grubach dorme aqui, um capito. No h outro quarto livre neste momento. Tambmeu me tinha esquecido. Tinha necessidade de gritar com tanta fora? Sinto-me muito infeliz.

    No tem nenhuma razo disse K. e, enquanto ela se deixava cair de novo sobre aalmofada, beijou-lhe a testa.

    V-se embora, v-se embora disse ela levantando-se subitamente , saia j, saia, emque est a pensar, ele est escuta junto da porta, vai ouvir tudo. Como me atormenta!

    No sairei at ficar um pouco mais calma retorquiu K. Venha para o outro canto doquarto, ele no poder ouvir-nos da. Ela deixou-se conduzir. Esquece-se disse ele deque se trata de um dissabor para si, verdade, mas que no corre qualquer perigo. Sabe que a

  • Senhora Grubach, que a nica pessoa que importa aqui, sobretudo se o capito seusobrinho, tem por mim uma verdadeira venerao e acredita rigorosamente em tudo o que lhedigo. Alm disso est-me grata porque me pediu emprestado uma elevada quantia de dinheiro.Aceito qualquer explicao que possa propor para a nossa presena juntos, desde que tenhaum mnimo de verosimilhana, e comprometo-me a agir de modo a que a Senhora Grubachfique no s convencida diante de terceiros, mas que ela prpria acredite com toda asinceridade. Sobretudo, no me poupe. Se quiser que digam que a agredi, a Senhora Grubachser esclarecida nesse sentido e acreditar sem me retirar a sua confiana, a tal ponto me estligada.

    A Menina Brstner, emudecida e um pouco abatida sobre si mesma, olhava fixamente para ocho.

    Porque que a Senhora Grubach no acreditaria que eu a agredi? acrescentou K.Fitava os cabelos dela, mesmo sua frente, cabelos ruivos, com um risco ao meio, bem

    apanhados num carrapito baixo. Julgou que ia levantar os olhos, mas sem mudar de atitude eladisse:

    Desculpe-me, foram estas pancadas bruscas que me assustaram, no tanto asconsequncias que poderia ter a presena do capito. Houve um tal silncio depois do seugrito, depois bateram, foi o que me fez tanto medo; alm disso estava sentada perto da porta,as pancadas ecoaram quase ao meu lado. Agradeo as suas propostas, mas recuso-as. Possoassumir a responsabilidade de tudo o que se passa no meu quarto, e perante seja quem for.Admira-me que no sinta o que as suas propostas tm de melindre, para l das suas boasintenes que no deixo, claro, de reconhecer. Mas agora saia, deixe-me sozinha, precisodisso ainda mais do que antes. Os poucos minutos que pediu transformaram-se em mais demeia hora.

    K. tomou-lhe a mo, depois o pulso: Mas no est zangada comigo? disse.Ela afastou a mo de K. e respondeu: No, no, nunca fico zangada com ningum.Ele voltou a segurar-lhe o pulso, o que ela agora permitiu e levou-o assim at porta.

    Estava firmemente decidido a ir-se embora. Mas diante da porta, como se no esperasseencontrar uma porta naquele stio, tropeou e a Menina Brstner aproveitou esse instante parasoltar-se; abriu a porta e deslizou para o vestbulo, de onde murmurou na direco de K.:

    Vamos, venha agora, peo-lhe apontava com o dedo a porta do capito de onde saa umraio de luz , ele acendeu a luz e diverte-se nossa custa.

    Vou j disse K. acorrendo; atraiu-a a si, beijou-a na boca, depois em todo o rosto, comoum animal sedento bebe com a lngua a gua de uma nascente enfim descoberta. Por fimbeijou-lhe o pescoo, altura da garganta e deixou os seus lbios demorarem-se alongamente. Um rudo proveniente do quarto do capito f-lo levantar os olhos. Agora vou-me embora disse ele; desejou tratar a Menina Brstner pelo primeiro nome, mas ignorava-o.

    Ela aquiesceu, com um ar cansado, abandonou-lhe a mo para beijar desviando-se j umpouco, com o ar de no saber nada, e um pouco curvada, reentrou no quarto. Pouco depois, K.estava deitado na cama. Adormeceu muito depressa; antes de adormecer, pensou por instantes,mais uma vez, na sua conduta: sentia-se satisfeito, mas admirou-se por no se sentir aindamais; efectivamente, preocupava-se com a Menina Brstner, por causa do capito.

  • Primeiro interrogatrioK. tinha sido avisado por telefone de que no domingo seguinte realizar-se-ia um pequeno

    interrogatrio no mbito do seu caso. Observaram-lhe que tais interrogatrios se sucederiamregularmente, ou mesmo todas as semanas, pelo menos muito frequentemente. Por um lado, erado interesse geral terminar o processo rapidamente; mas por outro lado, era indispensvel quetudo fosse examinado em profundidade durante as sesses, sem todavia as fazer durardemasiado tempo, em virtude do cansao que provocavam. Assim, tinham optado pela soluodestes interrogatrios frequentes, mas breves. Haviam escolhido o domingo como dia deinterrogatrio, para no prejudicar K. nas suas actividades profissionais. Supunham que eleestaria de acordo e, se conviesse outro dia, esforar-se-iam, na medida do possvel, porcorresponder ao seu desejo. Os interrogatrios podiam, por exemplo, tambm ocorrer noite,mas K. no estaria, sem dvida, suficientemente fresco nessa altura. Fosse como fosse, salvoobjeco da parte de K., ficariam pelo domingo. Claro que ele devia comparecer sem falta,no era preciso insistir nesse ponto. Comunicaram-lhe o nmero do prdio onde devia dirigir-se; situava-se numa rua de um subrbio distante, onde K. ainda nunca tinha ido.

    K. pousou o auscultador sem responder, depois de ter recebido esta mensagem; decidiu logol ir, no domingo; era certamente necessrio; o processo comeara e devia enfren t-lo,devendo este primeiro interrogatrio ser tambm o ltimo. Ainda se encontrava de p junto doaparelho, com ar sonhador, quando ouviu atrs de si a voz do director interino; queriatelefonar, mas K. barrava-lhe a passagem.

    Ms novas? perguntou o director interino sem reflectir, no para se informar, mas paraafastar K. do aparelho.

    No, no disse K. afastando-se, sem todavia se ir embora.O director interino pegou no aparelho e disse por cima do auscultador, enquanto aguardava

    a sua comunicao: Queria perguntar-lhe, Senhor K., se me daria o prazer de, no domingo, vir fazer connosco

    uma excurso no meu veleiro? Vai estar muita gente, l encontrar sem dvida pessoasconhecidas. O procurador Hasterer, designadamente. Quer vir? Vamos, aceite!

    K. esforava-se por prestar ateno ao que o director interino dizia. Isto tinha importnciapara ele, porque o convite do director interino, com quem nunca se entendera muito bem,significava um esforo de reconciliao da sua parte e indicava o ascendente que K. assumirano banco, assim como o valor que a segunda personagem da hierarquia ligava sua amizadeou, pelo menos, sua neutralidade. Mesmo lanado por cima do auscultador enquantoaguardava uma ligao telefnica, este convite era humilhante para o director interino. Mas K.deve ter-lhe infligido uma segunda humilhao quando respondeu:

    Muito obrigado, mas infelizmente no posso, no domingo tenho outro compromisso. pena disse o director interino, virando-se para apanhar a chamada que acabara de ser

    estabelecida.A conversa no foi breve, mas K. estava to distrado que permaneceu de p ao lado do

    aparelho enquanto ela durou. Foi s no momento em que o director interino desligou que teveum sobressalto e informou, para desculpar um pouco a sua presena intil:

    Acabam de telefonar-me a dizer que devo ir a um stio qualquer, mas esqueceram-se dedizer-me a que horas.

  • Ento ligue mais uma vez disse o director interino. No assim muito importante retorquiu K., embora a sua anterior desculpa, j tosca em

    si mesma, ainda menos credvel ficasse.Enquanto se retirava, o director interino falou ainda de diversas coisas. K. obrigou-se a

    responder-lhe, mas estava sobretudo a pensar que o melhor seria l ir no domingo s novehoras da manh, pois a hora em que todos os tribunais comeam o trabalho, nos dias teis.

    Estava um tempo cinzento naquele domingo; K. sentia-se muito cansado; tinha ficado atmuito tarde no restaurante, porque haviam festejado qualquer coisa com os clientes habituais epor pouco que no acordava a horas. pressa, sem ter tempo de reflectir e de pr em ordemos diversos projectos que elaborara durante a semana, vestiu-se e partiu a correr, sem tertomado o pequeno-almoo, para o subrbio que lhe tinham indicado. Estranhamente, emborano dispusesse de muito tempo para olhar sua volta, encontrou os trs funcionrios ligadosao seu processo: Rabensteiner, Kullych e Kaminer. Os dois primeiros passaram num elctricocom que se cruzou no caminho, mas Kaminer estava sentado na esplanada de um caf, e passagem de K. inclinou-se, com curiosidade, por cima da balaustrada. Sem dvida todos oacompanharam com o olhar, admirados por verem o seu superior a correr; numa espcie dedesafio, K. tinha decidido no apanhar um carro; naquele caso que era o seu, a mnima ajudaexterior, por menor que fosse, causava-lhe horror; desejava igualmente no recorrer aningum, para no pr ningum ao corrente, mesmo muito vagamente; enfim, no sentianenhuma vontade de rebaixar-se diante da comisso de inqurito devido a um excesso depontualidade. No entanto, agora corria, para chegar, na medida do possvel s nove horas,embora nem sequer tivesse sido convocado para uma hora precisa.

    Julgava que reconheceria o prdio de longe, graas a uma indicao qualquer de que nofazia exactamente ideia, ou ainda graas agitao especial que reinaria em torno da suaentrada. Mas a Juliusstrasse onde devia ficar o edifcio e entrada da qual K. permaneceu ummomento parado, era ladeada por prdios quase uniformes, grandes prdios de rendimento,cinzentos, habitados por gente pobre. quela hora de domingo, havia gente em quase todas asjanelas; homens em mangas de camisa estavam apoiados nos cotovelos a fumar ou entoseguravam crianas pequenas nos parapeitos, com prudncia e afeio. Noutras janelas,amontoava-se roupa de cama por cima da qual a cabea de uma mulher toda despenteada faziauma furtiva apario. Gritavam mensagens de um lado para o outro da rua, e mesmo por cimade K. uma delas provocou grandes risos. Com intervalos regulares ao longo de toda estacomprida rua, havia pequenas mercearias, num nvel inferior ao passeio, s quais se acediapor alguns degraus. Mulheres entravam e saam ou ficavam de p a conversar nesses degraus.Um vendedor ambulante de fruta que anunciava a sua mercadoria para as janelas, mais acima,sem prestar mais ateno do que K., quase o atropelou com a sua carroa. No mesmo instante,um gramofone que conhecera dias melhores nos bairros mais favorecidos, ps-se a grazinarabominavelmente.

    K. embrenhou-se na rua, sem pressas, como se tivesse agora todo o tempo ou como se o juizde instruo estivesse a observ-lo do alto de uma janela, e soubesse portanto que ele viera audincia. Pouco passava das nove horas. O prdio ficava muito afastado; era de umaproporo quase inabitual: o porto da entrada, em especial, era alto e largo. Eramanifestamente destinado aos camies pertencentes aos diversos armazns que, agoraencerrados, rodeavam o grande ptio e exibiam o nome de diversas firmas; K. conhecia

  • algumas, graas ao registo de transaces do banco. Contrariamente ao seu hbito, observoucom grande ateno todos estes pormenores exteriores, e deteve-se tambm um instante entrada do ptio. Perto dele, um homem descalo estava sentado numa caixa a ler um jornal.Dois rapazes balouavam-se num carro de mo. Uma jovem franzina, de roupo, estava de pao lado de uma bomba de gua e fitava K. enquanto a gua corria no seu cntaro. Num cantodo ptio, estendiam entre duas janelas uma corda onde a roupa j estava estendida a enxugar.Em baixo, um homem dirigia o trabalho gritando algumas ordens.

    K. dirigiu-se para a escada, a fim de alcanar a sala de interrogatrio, mas deteve-senovamente, porque alm da primeira, avistou no ptio mais trs outros vos de escada; umapequena passagem na extremidade do ptio parecia tambm abrir-se para um segundo ptio.Sentia-se furioso por no lhe terem indicado com mais preciso a localizao da sala;tratavam-no realmente com particular negligncia ou indiferena, e contava chamar a atenopara isso em alto e bom som. Acabou, porm, por subir a escada e divertiu-se a recordar afrmula do guarda Willem, segundo o qual o crime atraa a justia: daqui resultava que a salade interrogatrio devia, de facto, dar para a escada que K. escolhesse ao acaso.

    Enquanto subia, perturbou as numerosas crianas que brincavam na escada e o fitaram comar maldoso quando passou por elas. Se tiver de voltar aqui brevemente, disse para consigo,terei de trazer guloseimas para lhes agradar, ou ento a bengala para as castigar. Mesmoantes do primeiro patamar, teve at de esperar por instantes que um berlinde terminasse o seupercurso, enquanto dois rapazes, com a cara dura de malandros experientes, o retinham pelascalas; se tivesse querido soltar-se, teria sido forado a fazer-lhes mal, e receou os seusgritos.

    No primeiro andar comeou a verdadeira busca. No podendo, apesar de tudo, perguntaronde ficava a comisso de inqurito, inventou um marceneiro chamado Lanz este nomeocorreu-lhe, porque era o do sobrinho da Senhora Grubach, o capito ; ia agora perguntar emtodos os apartamentos se o marceneiro chamado Lanz morava ali, de forma a poder deitar umaolhadela para dentro das casas. Contudo, na maioria das vezes, isto foi possvel semdificuldade, porque quase todas as portas estavam abertas, e as crianas entravam e saam acorrer. Tratava-se quase sempre de pequenas salas com uma nica janela, que tambm serviade cozinha. Vrias mulheres tinham bebs nos braos e afadigavam-se diante do forno, com amo livre. Jovens adoles centes que pareciam apenas vestidas com um avental corriam emtodos os sentidos, com um ar muito atarefado. Em todos os quartos, as camas estavam aindaocupadas, com doentes ou dorminhocos, ou ainda pessoas deitadas completamente vestidas.Quando a porta de um apartamento estava fechada, K. batia e perguntava se um marceneirochamado Lanz morava ali. Na maioria das vezes, era uma mulher quem abria; escutava apergunta e voltava-se para algum no quarto, que se soerguia na cama.

    O senhor pergunta se um marceneiro chamado Lanz mora aqui. Um marceneiro chamado Lanz? perguntava o outro metido na cama. Sim respondia K., embora no tivesse nenhuma dvida de que a comisso de inqurito

    no ficava ali, e que ali nada mais saberia.Muitos julgavam que K. tinha imperativamente necessidade de encontrar o marceneiro Lanz;

    reflectiam durante muito tempo, citavam o nome de um marceneiro, mas que no se chamavaLanz, ou ento um nome que se parecia vagamente com Lanz, ou ento perguntavam aosvizinhos, ou ento acompanhavam K. at uma porta muito afastada, onde lhes parecia que um

  • indivduo deste gnero era talvez sublocatrio, onde talvez morasse algum susceptvel defornecer melhores informaes. K. acabou por quase nem precisar de ser ele a formular apergunta, fazendo-se assim levar de andar em andar. Arrependeu-se de ter adoptado este planoque ao princpio lhe parecera muito prtico. Antes de alcanar o quinto andar, decidiu-se aabandonar as pesquisas, cumprimentou um amvel jovem operrio que queria conduzi-lo maisacima, e desceu. Mas sentiu-se novamente contrariado pela ideia de ter empreendido tudoaquilo em vo; voltou para trs e bateu primeira porta do quinto andar. A primeira coisa queavistou na pequena sala foi um grande relgio de parede que indicava j dez horas.

    Mora aqui um marceneiro chamado Lanz? perguntou. Faa o favor de entrar disse uma mulher jovem de olhos pretos brilhantes, ocupada a

    lavar roupa de criana num alguidar, e que designou com a mo encharcada a porta aberta dasala contgua.

    K. teve a impresso de que invadira uma assembleia. Uma multido das mais diversasprovenincias ningum se ocupou do recm-chegado enchia uma enorme sala com duasjanelas, uma galeria a meia altura volta, tambm ela cheia, e onde as pessoas eram foradasa inclinar-se para se manterem de p e batiam com as costas e a cabea no tecto. Achando aatmosfera irrespirvel, K. voltou a sair e disse jovem que, sem dvida, o tinhamcompreendido mal:

    Foi por um marceneiro, um certo Lanz que eu perguntei, no foi? Sim disse a mulher , entre, faa favor.K. talvez no lhe tivesse obedecido se a mulher no avanasse para ele e no tivesse

    agarrado na maaneta da porta enquanto dizia: Devo fech-la depois de o senhor entrar, mais ningum tem o direito de entrar. Eis uma coisa razovel disse K. , mas h demasiada gente.Entrou, apesar de tudo.Deslizando entre dois homens que conversavam mesmo ao lado da porta um tinha as duas

    mos estendidas para a frente e fingia contar dinheiro, o outro fixava-o nos olhos , uma dasmos pegou na de K. Era um rapazinho de faces vermelhas.

    Venha, venha disse.K. deixou-se conduzir; descobriu que atravs desta multido fervilhante havia apesar de

    tudo uma estreita passagem, separando talvez dois partidos opostos; isto parecia tambmconfirmado pelo facto de que direita e esquerda, nas primeiras filas, K. no avistou rostosvoltados para ele, mas somente as costas de pessoas cujas palavras e gestos apenas sedirigiam a membros do seu prprio partido. Estavam quase todos vestidos de preto, comcompridos fatos de domingo coados que flutuavam em redor deles. Apenas estes trajesdeixavam K. perplexo; de outro modo, teria tomado tudo aquilo por uma reunio poltica debairro.

    No outro lado da sala onde conduziram K., estava colocada de vis num estrado muitobaixo, igualmente repleto, uma mesinha por detrs da qual, muito prximo da borda, estavasentado um homem baixinho e gordo, com a respirao ofegante, que conversava soltandogargalhadas com um indivduo de p, atrs dele, cotovelos apoiados nas costas da cadeira e aspernas cruzadas. Erguia de vez em quando o brao no ar, como para caricaturar algum. Orapaz que guiara K. teve dificuldade em fazer-se anunciar. Erguido na ponta dos ps, tinha jpor duas vezes tentado dizer algo, sem que o homem, l em cima, lhe houvesse prestado a

  • mnima ateno. Foi s quando um dos indivduos no estrado lhe apontou o rapaz que ohomem se virou e se inclinou para escutar o que ele segredou. Puxou em seguida pelo relgioe lanou uma olhadela rpida a K.

    Devia j ter chegado aqui h uma hora e cinco minutos disse ele.K. aprestava-se para responder, mas no teve tempo para isso, porque mal o homem falara,

    logo se elevou um vozear geral no lado direito da sala. Devia j ter chegado aqui h uma hora e cinco minutos repetiu o homem ento, elevando

    a voz e lanando ao mesmo tempo um rpido relance de olhos sala.Logo o vozear se amplificou e se dissipou pouco a pouco, pois o homem no disse mais

    nada. Reinava agora na sala um silncio muito maior do que quando K. entrou. S as pessoasna galeria no cessavam de trocar observaes. Pareciam menos bem vestidas do que os debaixo, tanto quanto era possvel distinguir fosse o que fosse l em cima, atravs da penumbra,do fumo e da poeira. Alguns tinham trazido almofadas que haviam colocado entre as suascabeas e o tecto para no se esfolarem.

    K. tinha decidido observar mais do que falar, por isso renunciou a justificar o seu pretensoatraso e disse simplesmente:

    Se cheguei atrasado, em todo o caso aqui estou agora.Seguiram-se aplausos novamente do lado direito. Eis pessoas fceis de conquistar,

    pensou K., e s ficou perturbado pelo silncio do lado esquerdo da sala, que ficavaexactamente atrs dele, e de onde apenas haviam esguichado alguns aplausos muito isolados.Reflectiu sobre o que poderia dizer para cativar todo o auditrio ao mesmo tempo ou, se talfosse impossvel, pelo menos por algum tempo, a outra metade.

    Sim disse o homem , mas agora no sou j obrigado a interrog-lo novo vozear, masambguo desta vez, porque o homem prosseguiu fazendo sinal s pessoas para que se calassem, no entanto, excepcionalmente, hoje acedo. Mas um tal atraso no poder repetir-se. E agoraavance.

    Algum saltou do estrado a fim de arranjar um lugar para K., e este ltimo subiu para l.Ficou de p, encostado mesa; a balbrdia atrs dele era tal que teve de resistir para nofazer cair do estrado a mesa do juiz de instruo, ou mesmo o prprio juiz.

    Mas este no se preocupou; sentado vontade no seu cadeiro e depois de ter dirigido umaderradeira observao ao homem que estava atrs dele, pegou num caderninho, nico objectoque se encontrava em cima da mesa. Assemelhava-se a um caderno escolar, velho e muitodeformado, fora de ter sido folheado.

    Portanto disse o juiz de instruo, enquanto folheava o caderno, voltando-se para K.num tom peremptrio , o senhor pintor de prdios?

    No retorquiu K. , sou gerente num grande banco.Esta resposta suscitou em baixo, do lado direito da sala, uma to franca hilaridade que K.

    no pde deixar de tambm rir. As pessoas apoiavam as mos nos joelhos e eram sacudidascomo por uma violenta crise de tosse. Algumas at riam na galeria. O juiz de instruo, agoramuitssimo encolerizado, e no dispondo provavelmente de nenhum poder sobre a gente daplateia, procurou desforrar-se junto da galeria; levantou-se com um salto, ameaou a galeria, eas suas sobrancelhas, j por si mesmas pouco salientes, contra ram-se e ficaram negras,espessas e encrespadas por cima dos olhos.

    Mas o lado esquerdo da sala continuava silencioso, as pessoas estavam de p em filas, o

  • rosto virado para o estrado, e escutavam com a mesma calma as palavras trocadas l em cimae a barulheira do outro partido; at toleravam que certos indivduos nas suas fileirasreagissem por momentos do mesmo modo que o outro partido. As pessoas do lado esquerdo,alis menos numerosas, podiam muito bem ser to insignificantes como as do lado direito, masa calma da sua atitude dava-lhes um ar de maior importncia. Quando K. se ps a falar, ficouconvencido de que concordavam com ele.

    A sua pergunta, Senhor Juiz de Instruo, a inquirir se sou pintor de prdios... alis, osenhor no me perguntou nada, atirou-me esta declarao... reveladora do conjunto doprocesso intentado contra mim. Pode objectar que no se trata de modo nenhum de umprocesso judicial, e tem inteiramente razo, porque no se trata de um processo judicial, salvose eu lhe reconhecer essa qualidade. Ora, reconheo-a neste instante, por compaixo, porassim dizer. A compaixo a nica atitude que pode adoptar-se aqui, supondo que se queiraconceder interesse a este processo. No afirmo que seja um processo mal preparado, massinto-me feliz por lhe ter apresentado esta frmula para que reflicta sobre ela.

    K. interrompeu-se e baixou a vista na direco da sala. Tinha exposto observaes severas,mais severas do que pretendera, mas no obstante justas. Teria merecido aplausos aqui e alme, no entanto, reinava o silncio; aguardavam manifestamente a continuao, com curiosidade;talvez se preparasse um clamor naquele silncio, clamor que poria fim a todo o caso. Foidesagradvel que nesse instante abrissem a porta, ao fundo da sala, e entrasse a jovem mulherque terminara provavelmente a lavagem da roupa e que, apesar de todo o cuidado, atraiu sobresi alguns olhares. S o juiz de instruo proporcionou uma alegria imediata a K. porquepareceu logo impressionado pelas palavras que acabara de ouvir. At ento, tinhapermanecido de p a escut-lo, porque a arenga de K. surpreendera-o quando se pusera de ppara interpelar a galeria. Aproveitou esta interrupo para se sentar discretamente, naesperana de que isso passasse despercebido. Sem dvida para recuperar uma postura calma,voltou a pegar no seu caderninho.

    Intil continuou K. , tambm o seu caderninho, Senhor Juiz de Instruo, confirma asminhas palavras.

    Satisfeito por apenas ouvir ecoar calmamente as suas prprias palavras naquela assembleiade estranhos, K. atreveu-se mesmo a arrancar o caderno das mos do juiz de instruo eergueu-o no ar segurando-o com a ponta dos dedos por uma das folhas do meio, como umobjecto repugnante, de modo que as pginas cobertas por uma escrita cerrada, maculadas nasbordas amarelecidas, pendiam dos dois lados.

    Aqui esto os autos do juiz de instruo disse ele, deixando cair o caderno em cima damesa. Continue tranquilamente a l-lo, Senhor Juiz de Instruo, este livro de contas no memete realmente medo, embora me seja inacessvel, porque apenas posso segur-lo com a pontados dedos.

    Foi forosamente com um gesto de profunda humilhao (pelo menos devia-se interpret-loassim) que o juiz de instruo pegou no caderninho tal como ele cara em cima da mesa, seesforou por voltar a p-lo um pouco em ordem e o abriu de novo para o ler.

    Os rostos das pessoas da primeira fila fixavam K. com uma tal curiosidade que este baixouum curto instante os olhos na sua direco. Tratava-se sem excepo de homens bastanteidosos; alguns tinham uma barba branca. Eram talvez os que decidiam, os que podiaminfluenciar toda aquela assembleia, qual nem mesmo a humilhao do juiz de instruo

  • bastara para abalar o torpor em que estava mergulhada desde o discurso de K.? O que me aconteceu prosseguiu K. um pouco mais suavemente do que antes, sem cessar

    de perscrutar aqueles rostos na primeira fila, o que dava ao seu discurso um ar um poucodistrado , o que me aconteceu no passa de um caso isolado, sem grande importncia nestestermos, pois no o levo demasiado a srio, mas revelador de procedimentos utilizados contrauma multido de pessoas. So elas que eu defendo aqui, no a mim.

    Tinha elevado o tom sem dar por isso. Algures, algum aplaudiu erguendo os braos egritou: Bravo! E porque no? Bravo! E mais uma vez bravo! Duas ou trs pessoas, naprimeira fila, cofiaram a barba, mas ningum se voltou por causa desta agitao. K. tambmno lhe concedeu grande importncia, mas mesmo assim sentiu-se reconfortado; j no julgavaagora necessrio que todos aplaudissem, bastava-lhe que o auditrio se pusesse a reflectir eque, de vez em quando, uma pessoa se deixasse convencer pela sua fora de persuaso.

    No busco os efeitos fceis do orador disse K. seguindo o fio da sua argumentao ,seria alis incapaz. O Senhor Juiz de Instruo fala sem dvida muito melhor, isso faz parte doseu ofcio. O que desejo que seja discutida publicamente uma prepotncia do serviopblico. Escutem: h cerca de dez dias, fui preso; as prprias condies desta priso fazem-me rir, mas no essa a questo agora. Fui surpreendido na minha cama de manh cedo;talvez... esta hiptese no fica excluda, dadas as palavras do juiz de instruo... tivessemordem para prender no sei que pintor de prdios, to inocente como eu, mas foi a mim queescolheram. O quarto contguo estava ocupado por dois guardas, personagens grosseiras. Noteriam podido adoptar melhores precaues se eu fosse um perigoso ladro. Estes guardaseram, alm disso, canalhas sem nenhum senso moral: deram-me cabo dos ouvidos com a suatagarelice, tentaram fazer-se subornar, contaram-me todo o gnero de histrias para meapanharem roupa e fatos; queriam dinheiro, com o pretexto de me trazerem um pequeno-almoo, depois de terem j devorado minha frente e sem a mnima vergonha o meu prpriopequeno-almoo. Mas no tudo. Fui conduzido para uma terceira sala e posto na presena doinspector. Era o quarto de uma senhora que muito estimo, e tive de ver este quarto por assimdizer profanado por causa de mim, mas no por culpa minha, pela presena dos guar das e doinspector. Senti dificuldade em manter a calma. Mas consegui-o, e perguntei ao inspector coma maior calma... se ele aqui estivesse, seria obrigado a confirm-lo... por que motivo estavasob priso. Ora, qual foi a resposta deste inspector, que ainda estou a ver minha frente,sentado na poltrona da senhora que acabo de evocar, encarnao da mais estpida arrogncia?Meus senhores, no fundo nada me respondeu; talvez no soubesse realmente nada; tinha-meprendido, e isso bastava-lhe. Tinha-se at mostrado zeloso ao trazer para o quarto destasenhora trs funcionrios subalternos do meu banco, que se puseram a examinar e adesarrumar fotografias pertencentes a essa senhora. A presena destes funcionrios tinha,claro, outro fito: tal como a dona da penso onde moro e a sua criada de quarto, eles deviamespalhar a novidade da minha deteno, prejudicar a minha respeitabilidade e em particularminar a minha situao no banco. Ora, tudo isto falhou lamentavelmente; at a dona da penso,pessoa sem nenhuma pretenso... pronunciarei aqui o seu nome para prestar-lhe homenagem:chama-se Senhora Grubach..., at a Senhora Grubach foi suficientemente inteligente paracompreender que uma tal deteno no significa nada mais do que uma agresso feita na ruapor rapazolas entregues a si prprios. Repito: todo este caso s me proporcionou dissabores euma clera passageira, mas no podia ter consequncias mais graves?

  • Quando K. se interrompeu e lanou uma olhadela na direco do juiz de instruo, julgouobservar que este, sem nada dizer, fazia justamente sinal com os olhos a algum na assistncia.K. sorriu enquanto dizia:

    Neste mesmo instante, o juiz de instruo a meu lado dirige um sinal combinado a algumde entre vs. H, portanto, entre vs gente que manipulada a partir deste estrado. Ignoro seeste sinal tinha por fim provocar os assobios ou os aplausos, e ao divulgar desde j este facto,renuncio em perfeito conhecimento de causa a descobrir o significado desse sinal. mecompletamente indiferente e autorizo publicamente o Senhor Juiz de Instruo a transmi tir aosseus empregados, ali na plateia, as suas ordens em voz alta e inteligvel em vez de sinaisfurtivos, dizendo: Agora assobiem!, ou Agora aplaudam!

    Embaraado ou impaciente, o juiz de instruo balanou-se em todos as direces na suapoltrona. O homem atrs dele, com o qual j tinha conversado, inclinou-se de novo, quer paradar-lhe coragem, quer para dar-lhe um conselho preciso. Na sala, as pessoas conversavam emvoz baixa, mas com arrebatamento. Os dois partidos, que pareciam precedentemente teropinies to opostas, misturavam-se; algumas pessoas apontavam K. com o dedo, outras, ojuiz de instruo. A atmosfera que reinava na sala era extremamente penosa, impedia at deobservar com preciso as pessoas de p mais afastadas. Isto devia ser particularmenteincmodo para os espectadores da galeria, porque eram forados, no sem lanarem olharestimoratos ao juiz de instruo, a interrogar em voz baixa os membros da assembleia para seinformarem mais em pormenor. As respostas eram tambm comunicadas em voz baixa,ocultavam a boca com as mos.

    Quase terminei disse K. e, falta de sineta nas proximidades, bateu com o punho namesa; assustadas com este barulho, as cabeas do juiz de instruo e a do seu conselheirosepararam-se de imediato. Todo este caso diz-me muito pouco respeito, por isso o julgocalmamente e ganhareis muito se me escutardes, admitindo que tenhais um pouco de interessepor este pretenso tribunal. Peo-vos que deixeis para mais tarde os comentrios que quiserdestrocar acerca do que afirmo, porque tenho pouco tempo e vou partir em breve.

    Fez-se imediatamente silncio, a tal ponto K. dominava agora a assembleia. J no gritavamem todos os sentidos como no princpio, nem sequer aplaudiam, mas pareciam j convencidosou prestes a s-lo.

    No resta qualquer dvida disse K. muito devagar, porque se comprazia a ver toda aassembleia tensa para escut-lo: deste silncio surgia um sussurro mais excitante do que osaplausos mais frenticos , no resta qualquer dvida de que por detrs de todos osprocedimentos deste tribunal, portanto no meu caso preciso, por detrs da deteno e dapresente instruo, dissimula-se uma vasta organizao. Uma organizao que no s empregaguardas corruptos, inspectores estpidos e juzes de instruo modestos no melhor dos casos,mas sustenta alm disso uma alta magistratura e uma magistratura suprema, com o seuincontornvel cortejo de oficiais de diligncias, de escrives, de polcias e de outrosauxiliares, talvez mesmo os seus carrascos, a palavra no me mete medo. E qual o sentidodesta vasta organizao, senhores? Consiste em fazer prender pessoas inocentes e em intentarcontra elas processos judiciais loucos e, na maior parte das vezes, como no meu caso, semresultado. Como, perante o absurdo de tudo isto, evitar as formas mais graves de corrupodos funcionrios? impossvel, mesmo para si prprio, o mais alto magistrado no oconseguiria. Eis porque os guardas procuram despojar o acusado das suas roupas, eis porque

  • os inspectores entram abusivamente na casa de outrem, eis porque, em vez de os submeterem aum interrogatrio, humilham inocentes diante de vastas assembleias. Os guardas falaram-meem depsitos onde os bens do acusado ficam consignados; eu gostaria de ver esses depsitosonde apodrecem os bens que o acusado penosamente acumulou fora de trabalho, pelomenos aqueles que no so roubados por funcionrios desonestos do depsito.

    K. foi interrompido por um grito agudo proveniente do fundo da sala; protegeu os olhos coma mo para olhar nessa direco, porque a luz mortia do dia tornara esbranquiada eofuscante aquela atmosfera cheia de fumo. Era a lavadeira; desde a sua entrada, K. tinhapressentido nela uma potencial fonte de perturbao. Era impossvel dizer se era culpa sua ouno, desta vez K. viu simplesmente que um homem a atrara para um canto prximo da porta ea apertara contra ele. No fora ela, porm, quem gritara, mas o homem; tinha a bocacompletamente aberta e fitava o tecto. Tinha-se formado um pequeno grupo volta deles; opblico da galeria que estava nas proximidades parecia encantado, porque a seriedadeespalhada por K. na assem bleia se havia assim dissipado. A primeira reaco de K. foicorrer logo para l, persuadido de que todos desejariam restabelecer ali a ordem e, pelomenos, evacuar o casal da sala, mas as primeiras filas sua frente mantiveram-se impassveis,ningum se mexeu, e ningum o deixou passar. Pelo contrrio, impediram-no de faz-lo,cavalheiros idosos estenderam os braos e uma mo desconhecida atrs dele no teve tempode se voltar agarrou-o pelo colarinho; para dizer a verdade, K. j no pensava no casal;tinha a impresso de que a sua liberdade estava entravada, que o prendiam de facto e saltou doestrado sem reflectir. Encontrava-se agora frente a frente com a multido. Tinha-se equivocadoacerca daquela gente? Havia sobrestimado o efeito do seu discurso? Tinham representado acomdia enquanto ele falava e, agora que chegara s concluses, estavam fartos de representara comdia? Que rostos sua volta! Olhinhos negros fitavam furtivamente direita e esquerda, as faces eram flcidas como nos bbedos, as barbas compridas eram rgidas e ralas,e quando nelas se passava a mo, era como se se desenhassem garras, no como se sepassasse a mo por uma barba. Mas debaixo das barbas e foi esta a verdadeira descobertafeita por K. brilhavam na gola dos casacos insgnias de dimenses e de cores diversas.Todos tinham estas insgnias, tanto quanto podia avaliar-se. Pertenciam todos a u