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Pedro Almeida Vieira O profeta do castigo divino

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Pedro Almeida Vieira

O profeta do castigo divino

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Da minha língua vê-se o mar.Vergílio Ferreira

Fic

ção

Pedro Almeida Vieira

O profeta do castigo divino

Ilustrações de Enio Squeff

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O profeta do castigo divinoPedro Almeida Vieira

Publicado em Portugal por:Sextante Editora

© Pedro Almeida Vieira, 2005, 2011© Sextante Editora, 2011

Design da capa: Atelier Henrique Cayattecom Susana Cruz

Imagem da capa: S. Jerónimo Penitente (óleo sobre tela), Georges de la Tour (1593-1652).© Museu Nacional de Estocolmo, Suécia / The Bridgeman Art Library / AIC

3.ª edição (1.ª edição na Sextante): Maio de 2011

Sextante Editora é uma chancela daPorto Editora, Lda.Email: [email protected]

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nemtransmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico,fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

Execução gráfica Bloco Gráfico, Lda. Unidade Industrial da Maia.

DEP. LEGAL 326676/11ISBN 978-972-0-07140-8

Distribuição Porto Editora, Lda.

Rua da Restauração, 3654099-023 Porto | Portugal

www.portoeditora.pt

A cópia ilegal viola os direitos dos autores.Os prejudicados somos todos nós.

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Aos meus pais.

Ao Tiago e ao Miguel, sempre presentes.

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A ilustração como cosa mentale

Quando o artista português Francisco de Holanda obteve de Miguel Ângelo Buonarroti a consideração de que a pintura seria cosa mentale, numa certa medida a sua reflexão abria, para os ilustradores, o mote com que pensariam a sua tarefa; ou seja, ela seria para além da simples reprodução de um texto ou de um livro. O que se quer dizer é que todo o ilustrador seria – ou deve-ria ser – pessoanamente, digamos – alguém que fosse ou bus-casse ir além da ilustração.

Talvez tivesse sido essa a intenção que buscava quando comecei a desenhar diretamente nas páginas do livro O profeta do castigo divino, do meu amigo Pedro Almeida Vieira. Guardo para mim – leitor compulsivo que sou – que a única maneira de nos encontrarmos com um livro é no quanto da cosa mentale ele nos possa suscitar. Compreenda-se: essa matéria de pensação pode assumir várias formas. Uma gênese possível são as adi-ções que um ilustrador apõe ao pensamento do escritor.

Nada de pretensões, por favor. Avancei sobre o belo romance do Pedro Almeida Vieira como uma forma de apreendê--lo, por mais improvisados que sejam os desenhos que fui colo-cando diretamente entre os interstícios do texto – assim como um estudioso sublinha uma frase, qualquer uma, para interpretá--la. Ler com a totalidade que podemos ser, essa a contrapartida de um leitor atento. E pela lógica de um ilustrador também ati-lado, ainda que quase compulsivo.

A história contida nesta obra, em que o diabo se faz, afinal, a mais compreensível das criaturas, um fino analista do homem (à «imagem e semelhança de Deus»), cada vez me animava a

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desenhar como quem comenta – admirativamente no meu caso – os achados do livro.

Jorge Luis Borges, num de seus escritos, referiu-se certa vez ao «milagre» que são esses pequenos sinais que, ao se moldarem em letras, em significados, criam mundos, universos – novos mundos, na verdade. São esses os mundos pelos quais os artistas plásticos transitam – mesmo quando não são figurativos. Robert Schumann, que sabia o que a música incorporava à poesia, quando a transformava numa canção, repetia, muito a propósito, que todas as artes têm algo entre si. Digo «repetia», porque a idéia nunca foi nova: encontramo-la no Pro Archia do velho Cícero. E claramente como uma tentativa – mais uma, já naquele tempo – de teorizar sobre o assunto.

Mas Schumann não apenas defendia uma tese: escreveu can-ções simplesmente maravilhosas a partir dos textos tanto de Heine, quanto de Mörike, de Goethe, de Schiller... Tinha ele, para si, que a confluência das artes podia ser uma outra coisa – mas sobretudo, também a seu turno, uma cosa mentale.

Não foi somente isso, entretanto, que me animou a desenhar n’O profeta do castigo divino, pois não o fiz com qualquer intuito além de satisfazer minhas impressões. Em minha já longa car-reira de ilustrador de livros, não foram poucas as obras – ensaios, inclusive – em que interferi nas suas páginas com desenhos e, não raro, até com aquarelas. O que eu quero sublinhar – sinceramente – é que nunca me ocorreu que meus desenhos viessem parar na mesa de projetos de uma editora, como a Sextante: e como parte de um livro, como acabou por acontecer.

A encomenda que fiz para mim mesmo, se é que posso dizê--lo desta forma, desenhou-se em minhas ilustrações com uma espécie de satisfação íntima: queria ver como ficava o livro do Pedro com as minhas garatujas. Desenhei-as, portanto, sem pre-tensão alguma. Digamos que foi a maneira que encontrei de gos-tar do livro.

Deu-se, porém, que cometi a indiscrição de mostrá-las a alguns amigos escritores. Todos foram unânimes: «Você tem de enviar o livro ilustrado para o Pedro. Não tem sentido você ficar com o volume, e querer dizer, com isso, o quanto o livro lhe

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agradou». Logo, não seria o caso de guardá-lo numa estante. Ou no ateliê, entre outros trabalhos.

Todos disseram mais ou menos a mesma coisa. Pessoal-mente, porém, tinha as minhas dúvidas: e se o escritor não gos-tasse do que fiz? Afinal, eu tinha coberto alguns espaços do livro que o Pedro me havia dado, e com a minha interpretação – o ponto de vista de quem ilustra. No jeito, um pouco (ou muito), do velho adágio que diz que «quem conta um conto, aumenta um ponto». Minhas dúvidas se resumiam, em síntese, a uma espécie de expectativa cautelosa: e se acontecesse que o Pedro pensasse – «que acinte...»; ou pior – «que ridículo»? Cheguei a consultar um amigo comum – o escritor David Oscar Vaz: ele que opinasse se o Pedro poderia não gostar do livro ilustrado. O David repetiu o bordão: é claro que eu deveria pô-lo no correio rumo a Portugal.

Talvez, enfim, seja necessário consignar esses fatos. Foi pois com uma inefável surpresa que ouvi, não muito tempo depois, do próprio Pedro, que não apenas tinha gostado da minha intrusão, mas que até iria propor à Sextante incluí-la numa futura nova edição da obra. Tentei, com franqueza, fazer que o Pedro não considerasse quaisquer possíveis segundas intenções. E mais: que ele me desculpasse, mas se um de seus outros livros me agra-dasse, eu os desenharia da mesma forma, no próprio livro, sem cogitar que isso pudesse comprometê-lo para qualquer coisa, além da minha interferência, que é o meu modo de ler. Penso, assim, que ele me possa desculpar num futuro qualquer, se o cor-reio lhe trouxer um outro de seus romances, devolvido com, diga-mos, «minhas considerações devidamente sublinhadas».

Em suma, para os leitores deste belo livro: se a homenagem que eu pensava prestar ao Pedro Almeida Vieira – autografando à minha moda, e malcriadamente, quem sabe, o seu romance –, resultou em algo que lhes possa aprazer, ficam aqui os nossos agradecimentos – meu e dele, seguramente –, mais que de praxe.

Uma nota final sobre o fato de se estar perante uma edição ilustrada de um romance. Não me agrada a expressão, o lugar--comum muito usado no Brasil, de «valor agregado». Fica a idéia de que tudo é mercadoria – e não me parece que os valores espiri-tuais, por mais que sejam justamente remunerados, se comparem

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aos automóveis, aos quais se acrescentam aparelhos de TV ou computadores. Ao desenhar sobre O profeta do castigo divino, penso ter aduzido muito mais que qualquer valor mensurável em moedas: homenagens a riquezas de uma obra de arte se consti-tuem, para certos artistas, no quanto elas se espraiam para outras expressões. Pensemos, finalmente, sobre as ilustrações de uma obra como sendo um tema musical para o qual um compositor faz suas variações; elas desvelam o quanto uma idéia se desdobra em outra, realmente como cosa mentale.

São Paulo, 24 de Março de 2011

Enio Squeff

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Este romance é uma ficção! Convém esclarecer, não vá o diabo tecê -las e a Igreja Católica ficar ofendida. No entanto, o seu conteúdo, bem como as personagens, baseiam -se em factos, inúme-ros documentos (não é imodéstia, mas foram mesmo centenas), deduções, intuições, procurando -se sempre um rigor cronológico. Não deixa, porém, de ser uma ficção, embora com uma linha orien-tadora: os acontecimentos relatados estão tão próximos da verdade e da mentira como muitas das crónicas oficiais, políticas ou teológi-cas escritas naquela época. O Santo Ofício, primeiro, e a Real Mesa Censória, mais tarde – não esquecendo a acção do pombalismo no seu auge –, «filtraram» e «reescreveram» parte da História de Por-tugal e Brasil do segundo e terceiro quartéis do século xviii que chegou até nós.

O autor deste romance desconfia também que jamais teria coragem para o escrever se vivesse naquela época. Perante a into-lerância religiosa, o melhor que lhe poderia acontecer era que o livro não fosse impresso. O pior: acenderem -se duas fogueiras; uma para ele, outra para o livro…

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«The eighteenth century used the word Lisbon much as we use the word Auschwitz today.»

Susan Neiman (2002), in Evil in Modern Thought –An Alternative History of Philosophy

«Movido de um justo temor e compaixão a esta pobre Cidade, fiz várias diligências, ainda que talvez não todas as que devia, para satis‑fazer de alguma sorte a Deus, e atalhar castigo tão tremendo; pois sabia, e era para mim tão certo, que só uma conversão verdadeira das nossas almas ao mesmo Senhor, podia atalhar tão horroroso estrago.»

Gabriel Malagrida (1756), in Juízo da Verdadeira Causa do Terremotoque Padeceo a Corte de Lisboa no Primeiro de Novembro de 1755

«Ah Portugal! Ah Lisboa! O que maquinaram os teus pecados; já Deus tinha revelado à sua Serva, a Madre Maria Joana do Mosteiro do Santíssimo Sacramento do Louriçal, que não podia sustentar os peca‑dos deste Reino, e principalmente os de Lisboa.»

D. J. F. M. (1756), in Theatro Lamentável, Scena Funesta: RelaçamVerdadeira do Terremoto do Primeiro de Novembro de 1755

«Ô malheureux mortels! ô terre déplorable! Ô de tous les mortels assemblage effroyable!D’inutiles douleurs éternel entretien!Philosophes trompés qui criez: “Tour est bien”;Accourez, contemplez ces ruines affreuses, Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses, Ces femmes, ces enfants l’un sur l’autre entassés, Sous ces marbres rompus ces membres dispersés; Cent mille infortunés que la terre dévore, Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore, Enterrés sous leurs toits, terminent sans secours Dans l’horreur des tourments leurs lamentables jours!»

Voltaire (1756), in Poème sur le desastre de Lisbonne

ou Examen de cet axiome «Tout est Bien»

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Antelóquio

Caro padre Gabriel Malagrida, vou acender esta vela para que despertes. Dentro de uma hora te chamarão ao claustro da igreja de São Domingos. A tua Santa Igreja prepara ‑se para te atribuir um prémio pelos trinta anos de apostolado que lhe dedicaste, no âmago das florestas da Amazónia, entre os gentios selváticos e os colonos ímpios do Maranhão e Brasil, e pela década de vida que consumiste a pregar a cruz de Jesus Cristo em Portugal. Insiste, a tua Santa Igreja, que estejas presente no solene acto onde, de ordinário, se per‑suadem os mais encarniçados pecadores a reconhecerem a misericór‑dia e o poder do Senhor. Sempre de forma piedosa, porque assim o ensinou e determinou o Filho de Deus.

Aliás, como é apanágio da tua Santa Igreja, que mesmo para as mais vis transgressões sempre pugnou pelo axioma da compaixão, jamais sequer atirando pedras, porque afinal todos pecam. A tua Santa Igreja foi, por isso, previdente e organizada, já fez espalhar um édito pelas ruas da cidade de Lisboa e às portas dos templos para apartar excessos e apregoar a benignidade. Vou lê ‑lo para que ouças quão piedosa é a tua Santa Igreja:

– Os Inquisidores Apostólicos contra a herética pravidade e apostasia nesta cidade de Lisboa e seu distrito, fazemos saber que domingo que vem, 21 de Setembro de 1761, com o favor Divino se celebrará Auto público da Fé, no qual há -de haver sermão em lou-vor de nossa Santa Fé, para o qual os Sumos Pontífices têm conce-dido muitas graças e indulgências às pessoas que assistirem em semelhantes actos. Pelo que mandamos que no dito dia não haja em Igreja alguma ou convento desta cidade outro sermão. E man-damos também que todas as pessoas, de qualquer condição e estado que sejam, não escandalizem nem tratem mal, por obra ou

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palavra, os penitenciados que saírem no dito Auto, nem lhe cha-mem sambenitados ou algum outro nome afrontoso; antes os encomendem a Deus com muita caridade em suas orações, para que com arrependimento e humildade cumpram suas penitências.

Diz ‑me, padre Malagrida, não é mesmo bondosa e compassiva esta tua Santa Igreja?! Vê lá que os seus mais insignes membros deci‑diram que sejas devida e pomposamente acompanhado por dois fra‑des beneditinos e pela mais fina nata da nobreza: o duque de Cadaval e o conde de Vila Nova te irão escoltar. Terás mesmo o privilégio de fechar o cortejo formado por uma vasta legião de pecadores; tal como em todas as inúmeras procissões que organizaste no Maranhão, no Brasil, em Portugal.

Neste préstito, porém, tudo será diferente, porquanto, de entre todos os pecadores, há alguns cujas transgressões são tão horríveis que se ditarão um público. Mais precisamente as de 37 homens e 20 mulheres. A maior parte deles são bígamos masculinos ou pratican‑tes do judaísmo. Quatro homens e nove mulheres, sabe ‑se, fizeram pactos com o demónio – coisa que, no entanto, não te confirmo; alguns deram missa não sendo sacerdotes; uns quantos homens par‑dos e negros, vindos do Brasil, foram apanhados na posse de hóstias consagradas; um açoriano disse blasfémias; um religioso pôs em causa os rectos procedimentos da tua Santa Igreja e, pior, do Santo Ofício. Enfim, o rol é longo.

Contudo, o maior dos pecadores serás tu, padre Malagrida! Eu sei que durante a tua vida sempre foste rigoroso na introspecção: te identificavas, invariavelmente, nas cartas para os teus colegas da Companhia de Jesus, como Il più indegno servo di tutti nel Sig-nore1. Mas de servo indigno, a tua Santa Igreja te acusa agora de seres o mais pérfido dos homens. Deixai ‑me ler aquilo que está aqui escrito no teu processo, feito pelos doutos e perfeitos juízes do Tribu‑nal da Inquisição:

– Christi Jesu nomine invocato2, declaramos o réu padre Gabriel Malagrida por convicto no crime de Heresia, por afirmar, seguir, escrever e defender proposições e doutrinas opostas aos

1 O mais indigno servo de todos no Senhor, em tradução do italiano.2 Depois de termos invocado o nome de Jesus Cristo.

Pedro Almeida Vieira

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verdadeiros dogmas e doutrinas que nos propõem e ensina a Santa Madre Igreja de Roma; e que foi e é herege de nossa Santa Fé Católica, e como tal incorreu em sentença de excomunhão maior e nas mais penas em Direito contra semelhantes estabele-cidas. E como herege e inventor de novos erros heréticos, con-victo, ficto, falso, confitente, revogante, pertinaz e profitente dos mesmos erros: manda este Tribunal que seja deposto e degra-dado das suas ordens, segundo a disposição e forma dos Sagrados Cânones. E assim será entregue à Justiça Secular para que, com baraço e pregão, seja levado pelas ruas públicas desta cidade até à praça do Rossio, e que nela morra de morte natural de garrote; e que, depois de morto, seja seu corpo queimado e reduzido a pó e cinza, para que dele e de sua sepultura não haja memória alguma.

Padre Gabriel Malagrida?!, quantas acusações!!! Como o mundo dos humanos é caprichoso e cruel. Eu até já assisti a muitos homens e mulheres serem considerados heréticos em vida, mas que, depois de mortos, acabaram santos. Mas eis que contigo sucederá o oposto: passarás de santo vivo a herético morto. Triste desfecho o teu! Ficarás na História como o derradeiro condenado à fogueira da Inquisição e a última vítima do terramoto de Lisboa do ano da graça de 1755. O mesmo terramoto que anunciaste como Castigo Divino, que querias evitar, tornando o Reino mais pio. E afinal, falhaste a tua «missão» e, em troca, recebeste, por via de um homem, o mais cruel Castigo Humano: o suplício na morte.

Mesmo tendo eu sido eleito pela tua Santa Igreja como o pior inimigo dos homem – e tu próprio me acusaste disso por inúmeras vezes –, vou contar a tua história e a de todos os acontecimentos que te levaram ao patíbulo. Desconfio que não o aproves, mas nada pode‑rás fazer para me deteres.

Receio, porém, ser o narrador menos ajustado. E se admito esta incerteza não é por duvidar do meu talento, mas sim por temer que os leitores possam desacreditar da minha isenção. Arriscaria, aliás, esse agravo, de imediato, se eles me reconhecessem desde já. O meu pas‑sado, segundo assoalha a tua Santa Igreja, está inundado de mácula. Sou eu acusado há séculos, embora sem provas, de me apresentar sob várias formas e disfarces, transmutando mesmo de nome; de incitar

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os homens à inveja, ao ciúme, à cólera, até à fornicação, e principal‑mente à idolatria.

Alega a tua Santa Igreja que posso ocasionar no corpo humano todas as enfermidades que procedem de coisas naturais, dando ‑lhe venenos sem advertir; que altero os humores nocivos; que inclino os homens a que façam destemperanças nocivas à saúde; que posso mover um homem de uma parte para a outra, arrebatá ‑lo pelos ares e conservá ‑lo imóvel no ar; que posso fazer com que desapareçam objec‑tos ou causar névoas na visão com algum humor; que posso infundir às pessoas um sono repentino ou mudar ‑lhes os sentidos, até levá ‑los a outras partes.

Diz também a mesma tua Santa Igreja que posso criar fanta‑sias e ilusões; que posso confundir o entendimento, ensinando muitas coisas novas, descobrir muitos segredos, levantar muitas dúvidas; e que ilustro, com muitas inteligências, doutrinas erróneas à luz dos ensinamentos canónicos, e outras que, mesmo sendo verdadeiras, sempre têm algum mau fim.

Prevejo, por isso, no decurso deste relato, que os meus leitores cheguem a desconfiar da veracidade da minha escrita ou da proba‑bilidade de ter conhecido alguns dos factos, tanto mais que, admito, não possuo a capacidade de omnipresença nem de omnipotência. No entanto, sempre compensei esses estorvos com a potência locomo‑tiva, por virtude da qual me posso mover de um lado para outro de forma estupenda. Posso, em tempo breve e imperceptível, rodear todo o Mundo com maior presteza e menor dificuldade que o adejo dos pensamentos humanos. No espaço de uma Ave ‑Maria consigo ir e vir da Índia, duas, três ou mesmo quatro vezes; e posso fazê ‑lo sem passar pelo mar ou pelo espaço. Não há torre, não há montanha, não há cidade que seja suficientemente sólida, pesada e firme para que a tome às costas e a transplante noutra parte remotíssima. Sou incapaz de produzir fogo, mas posso ir de um sopro ao Monte Etna ou a outro qualquer vulcão, desenterrar labaredas, trazê ‑las comigo e lançá ‑las numa nau, queimando ‑a no meio do mar. Tenho até a aptidão para, por alguns instantes, condensar o ar, figurá ‑lo a meu modo e formar todos os corpos, imagens e aparência que quiser.

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Além destas faculdades, conheço por experiência própria todas as inclinações dos homens, sou subtilíssimo em discorrer e conjectu‑rar as coisas – mesmo as ocultas, como os actos livres e interiores de cada homem e mulher –, o que faço combinando sagazmente e pesando com incrível subtileza todas as premissas e meios.

Tenho também a capacidade, aponta a tua Santa Igreja, de ins‑truir uma pessoa de Oração para que esta pareça não só um mago mas também vaticinador, revelando ‑lhe coisas que já existem no Mundo ou que venham a surgir, como os cataclismos, os eclipses futu‑ros, as esterilidades, as fertilidades e mesmo os terramotos. Que posso, para enganar, causar no coração da criatura dada à Oração sentimentos espirituais repentinos e veementes que parecem santos e honestos, não o sendo. Que, por minha intervenção, pode um vivente ter aparentes êxtases, alienações de sentidos, suspensões no ar e outras coisas mais portentosas. E muitos outros prodígios me atribui a tua Santa Igreja, que aqui omito para evitar aturdimentos.

É certo que usei, padre Malagrida, mas sem abusar, de muitas, que não de todas, estas minhas habilidades. Mas, em todo o caso, te juro – embora não colocando a mão nas Sagradas Escrituras da tua Santa Igreja – que serei fiel ao curso dos acontecimentos.

Espero, assim, ao longo desta história, ter acerto no começar, direcção no progredir e perfeição no concluir. Dos meus leitores, somente anseio que tenham a agudeza para entender, a capacidade para reter, método e faculdade para aprender, e subtileza e graça para interpretar.

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LIVRO Io santo vivo

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Capítulo I

À entrada da barra de Lisboa, enxergar um navio com casco despedaçado, velas esmolambadas e leme partido deveria signifi-car, pelas leis da marinhagem, naufrágio à vista. O primeiro dia de Fevereiro de 1750 deveria ter sido, por isso, o último da vida dos marinheiros e passageiros daquela nau que, há dois meses, rumara de Belém do Pará.

Perante aquele previsível soçobro, no princípio daquela tarde, magotes acorreram às praias do Tejo. Uns por sentida inquietação, outros pelo fascínio do triste espectáculo, aqueloutros esperanço-sos em recolher os despojos da embarcação que derribariam aos rochedos. Para matar o tédio, que o navio andou em rebuliço des-governado, surgiram então as apostas sobre o salva -se, não se salva. Estavam quase equilibradas, mas logo que o navio adornou num escolho, ainda por cima havendo maré vazante, os palpites guindaram também. Criou -se então uma nova variante: o acerto no número de mortes, pois apenas um jogador, com mais fé, insistiu em manter empenhado meia dúzia de réis a favor de um salvatério. Lance mais arriscado por os apostadores nem sequer saberem ao certo quantos homens trazia a nau, mas, de qualquer modo, com direito a um prémio mais apetecível para os sortudos vencedores.

Tão animada estava esta jogatina que poucos se aperceberam do instante em que, num repente, a embarcação se soltou do rochedo. E muitos nem repararam, de início, que derivou contra a maré vazante – estando ainda por cima o vento a bater de leste – como se propulsada por mão invisível, começando a entrar barra adentro com a popa a fazer de proa. O pasmo foi enorme e teria sido ainda maior, não fosse ter -se vislumbrado, no cimo do convés do navio, condu-zindo aqueles madeiros flutuantes como cavaleiro destro, um homem

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vestido de preto, alouradas barbas ao vento, em brados para os céus e de braços esticados suportando a imagem da Virgem Maria.

– Milagre! Milagre! É o Santo do Maranhão que ali vem! – alguém gritou.

Embora discordando desta denominação, aquela voz tinha razão sobre a fama da pessoa em causa. Era mesmo o padre Gabriel Malagrida, jesuíta famoso pelos portentosos milagres que operara nas Américas, que acostava à cidade de Lisboa. O delírio apossou -se daquelas gentes – tanto assim que todos se esqueceram, ou a confu-são lhes foi proveitosa para tal, de pagar as quantias ajustadas ao único homem que arriscara dinheiro pela salvação da nau. E, mais tarde, quando se tomou conhecimento com que artes se evitaram outras maleitas da jornada, o endeusamento de Malagrida atingiu o infinito, sobretudo porque foram muitas – as artes e as maleitas – e os marinheiros acrescentaram pontos aos contos para impressionar os ouvintes com os relatos daquela espinhosa travessia do Atlântico.

Confesso -vos que estive tentado a tomar medidas drásticas para impedir a vinda deste jesuíta ao Reino de Portugal. O fim justificaria os meios – e haveria mesmo quem me agradecesse o serviço. Contudo, como estou despossuído das maldades que por regra me atribuem, fui demasiado brando nos meus gestos para evitar a sua chegada a Lisboa. Aliás, pior, mais valia ter estado quieto: acabei, indirectamente, por contribuir com as minhas obras, adicionadas a prodígios inexplicáveis e a sortes incríveis, para o oposto às minhas pretensões, que era obrigar a nau a dar meia volta e regressar ao Maranhão.

Não foi por tardança ou negligência que falhei. Ainda no porto de Belém, saindo o navio numa tarde radiosa, tratei logo de trazer sobre o mar um vento impetuoso até se formar uma tão grande tempestade que a embarcação logo ameaçou despedaçar--se. Julguei que, com esta borrasca, o capitão decidisse pelo regresso a terra, mas este, apesar da oposição unânime do ime-diato e marinheiros, ousou continuar a navegação.

– Este navio está protegido pelo padre Malagrida, o nosso São Francisco Xavier! – sentenciou.

Por causa destas palavras, ainda desassosseguei mais a tor-menta e com alguns sussurros nos espíritos de alguns temerosos

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marinheiros, o padre Malagrida começou a ser apontado como suspeito daquele iminente suicídio colectivo. A confirmação sur-giu a todos quando, decididos a apurar culpas, a marinhagem foi deitar sortes: os dados apontaram, repetidamente, para o jesuíta como o causador da desgraça. Mas, no precedente momento em que aquela chusma ululante já se aprestava para descer à cata do jesuíta, de modo a lançá -lo ao mar, surgiu -lhes a própria vítima no convés para anunciar uma missa de acção de graças. Como consta que Jonas, antes de ser arremessado borda fora, não esteve a organizar orações ao Senhor, os marinheiros recuaram nas suas intenções. E a missa fez -se.

Infelizmente, os meus poderes não conseguem, por espaço muito alargado, manter alterações artificiosas nos centros de altas pressões de onde derivam os ventos. Por isso, para minha lamentável amofinação, não aguentei sustentar a tempestade por mais tempo, abalando esta depois do jesuíta lançar os braços ao alto e, com um bastão na mão e voz altiva, ameaçar o vento e inti-midar as águas. Logo que Malagrida terminou a troada, o navio deu de querena, sem percalços, aumentando -lhe a santimónia fama de serenar tempestades.

No entanto, e nisto já nada influí, as vociferantes preces do jesuíta devem também ter tido o condão de amedrontar tanto o vento que este, assustadiço, careceu de coragem para rodear a embarcação durante longos dias – coisa que, naqueles tempos, significava falta de combustível. Sem vento não há nuvens, sem nuvens não há chuva, sem chuva não há água, sem água não há pipas cheias que resistam à sede. Foi decretado, por isso, raciona-mento. E tanto assim que, passando os dias, a míngua fez regres-sar a angústia a bordo. Desta vez, a marinhagem nem precisou lançar de novo sortes; de suspeito no caso da tempestade, Mala-grida passou a culpado de serenar em excesso o ar à conta de tan-tas rezas. Como é curto o caminho da graça até à desgraça. No entanto, infelizmente, eram já poucas as forças e coragem dos marinheiros para o lançarem ao mar.

O padre Malagrida, homem habituado a maiores agruras, manteve -se sereno, mas não alheio aos tormentos daqueles homens. Mas somente reagiu após uma desesperante súplica do

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capitão, feita com muita fé – que o desespero ajuda a aumentá -la – para que fizesse chuva. Eu teria motivos, como vos relatarei mais tarde, para recear que a sorte em questões de meteorologia o ajudassem de novo. Contudo, desta vez, fiquei aliviado. Em redor de milhares de milhas não se vislumbrava qualquer resquí-cio de nuvens e, perscrutando a localização dos centros de altas pressões, confirmei a ausência de qualquer instabilidade promo-tora de precipitação nos dias mais próximos. Apesar disso, o padre Malagrida não se fez rogado ao pedido e assomou ao con-vés, com naturalidade, anunciando:

– Se alguém tem sede, venha a mim!Estas palavras tiveram, por sequiosas razões, o condão de

provocar um célere ajuntamento, tanto mais que aquelas gentes, padecendo já de alucinações sitibundas, julgaram que do coração do jesuíta haveriam de brotar rios de água pura. Mas, em vez disso, ouviram uma estranha solicitação:

– Trazei -me doze pedras, uns pedaços de madeira, uma por-ção de um boi esquartejado e quatro canadas de água doce.

Pasmo geral, alguns marinheiros desfaleceram ao ouvir as duas últimas palavras.

– Pedras não temos, santo padre. E tanta água também não! – respondeu o atónito capitão.

Malagrida quedou -se pensativo, coçou então a barba e olhou para o céu por breves momentos, como quem pede autorização superior para trocar lebre por gato.

– Pedras seriam mais adequadas para os meus intentos. Mas então… cortai um mastaréu e trazei -o em igual número de peda-ços. E se não há quatro canadas, que me tragam quatro quartilhos.

– Um mastaréu?! – admirou -se o capitão, cada vez menos crédulo. – E como continuaremos viagem? E que ireis fazer com a água?

– Ah, homem de pouca fé! Faz o que te digo. Não recuses o que te demando para que aos olhos de Deus não sejas merecedor do castigo devido aos pecados deste navio.

Malagrida sempre soube usar sábias palavras para conven-cer um pertinaz. E estas até foram das mais brandas, que o Inferno como destino era, de ordinário, mencionado se algo lhe

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recusavam. Em menos de três tempos, lhe satisfizeram os três pedidos: foi serrada a gávea do velacho, arrumaram -se uns nacos de carne e levou -se do porão a única pipa que ainda continha algo mais do que ar. O jesuíta encheu então quatro talhas com água, dispôs os madeiros até formarem uma desengonçada árula, em volta deste arcaico altar raspou um sulco com uma navalha e, por fim, depositou a carne e uns pedaços de madeira. Terminado isto, pegou -lhes o fogo.

A marinhagem nem quis acreditar nos próprios olhos. E fe cha-ram -nos, em desespero, quando o jesuíta derramou as talhas de água sobre aquele holocausto. Mas os seus ouvidos tiveram, logo de seguida, motivos para também se afligirem.

– Tornai a fazer o mesmo! Enchei e despejai mais quatro talhas! – ordenou -lhes Malagrida.

O jesuíta viu -se obrigado a repetir mais duas vezes esta inti-mação perante o burburinho das protestações. E a terceira já foi com a voz escabreada e as faces ruborescidas, de modo a que lhe obedecessem sem mais reclamações. Vi então, naquele convés, muitos pares de olhos de desespero e muitos pares de pernas com ânsias em se lançarem aos pés daquela ara para sorverem os des-perdícios aquosos que dali tombavam – que punhos fechados de fúria, dos mais incrédulos, ainda eram poucos, embora em número crescente. O padre Malagrida parecia, contudo, indife-rente aos esgares horrorizados daqueles homens.

– Fazei -o pela terceira vez! – repetiu.Desta vez, ninguém se mexeu, nem mugiu nem tugiu;

somente se ouviram dentes rangendo. Somente após um pene-trante olhar do jesuíta sobre o capitão, este se abalançou para, finalmente, lançar as últimas porções do líquido que restava na pipa. Apesar deste cerimonial, e de se ter passado uma hora a ouvir as ladainhas do padre Malagrida defronte daqueles destro-ços lamacentos de carnes e madeiras esturricadas, nem nuvens no horizonte assomaram, quanto mais água a cair do céu. Os mais afoitos e assanhados de entre a marinhagem estavam já a perder a encalistração e ameaçavam avançar para junto do altar. Suspei-tava eu que, desta vez, falhando Malagrida a promessa de trazer água à nau, acabaria ele lançado da nau para a água.

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Desconheço se foi pela sua experiência em perceber inten-tos selvagens, obtida junto dos gentios, certo é que o jesuíta pare-ceu desconfiar dos propósitos de alguns daqueles homens. Estavam já alguns a quatro ou cinco passos de distância, quando Malagrida os fitou, abriu os braços, olhou os céus e clamou em vozeirão assustador:

– Senhor, mostrai hoje que sois o Deus dos homens! Que eu sou o teu servo, e que às tuas ordens eu fiz tudo isto. Respondei--me Senhor, respondei -me! Fazei com que estas gentes reconhe-çam que Tu, Senhor, é que és Deus; Aquele que lhes converte os corações!

Mais uma vez, à conta de ditos celestiais, se livrou o jesuíta de dificuldades, porquanto se tornou inoportuno à marinhagem causar violência a quem proferia rogos em direcção ao Altíssimo. Em todo o caso, se o padre Malagrida esperava, com estas preces, receber resposta divina similar à obtida pelo profeta Elias, enganou -se. Nem o fogo do Senhor caiu sobre aquele holocausto de lenha, carne e lama; nem o vento soprou; nem o céu se cobriu de nuvens negras; nem chuva tombou em torrentes. Tudo ficou na mesma, excepção feita ao navio ter ficado sem mastaréu e a marinhagem com menos carne de boi e sem quatro quartilhos de água doce.

Dois enganos em tão curto espaço de tempo, mesmo em homens crédulos, são sempre um excesso. Caso aquele jesuíta não fosse o padre Gabriel Malagrida, o seu destino estaria tra-çado, mais rogo menos rogo. Contudo, como um mágico que falha um truque e se apresta a tentar outro – ou um político que faz esquecer uma promessa incumprida, criando outra –, Malagrida tratou de tirar ideias homicidas aos marinheiros.

– Não olheis, até amanhã, para as águas do mar! – apregoou aos homens, em modos ameaçadores, quando alguns já o rodea-vam. – Pobres dos que corromperem este meu aviso, porque a ira divina vos castigará como à mulher de Lot que olhou a destruição de Sodoma.

Embora conhecesse a astúcia do jesuíta, somente mais tarde alcancei os seus propósitos. Aquelas palavras não foram proferi-das apenas para salvar a sua pele. Aquele sacrifício de calcinar

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carne e apagar o fogo com água fora parte de uma encenação. E as ameaças aos marinheiros para não fixarem o líquido salgado do mar constituía o segundo acto – embora também com acção profiláctica. De facto, sem água doce e sem aquelas advertências, certo seria alguns desesperados lançarem baldes ao mar para se saciarem, transformando -se, senão em estátuas salgadas, pelo menos em rijos cadáveres salmourados.

A estratégia de Malagrida, disso fiquei depois ciente, já há muito estaria conjecturada. Como dos céus não lhe surgia água doce, então congeminara que do mar viesse, conquanto se lhe tirasse o sal, por um método subtilíssimo, para que o paladar não o sentisse. Mas para que o coração saboreasse como sendo uma dádiva divina – que é deste conduto que se alimenta a fé – ser -lhe--ia ponderoso que nenhuns olhos vissem como surgira a manipu-lação. Na verdade, na verdade vos digo: o padre Malagrida era um embusteiro, mas com fidúcia e, em seu abono, letrado.

Há alguns anos atrás, lera ele um livro, intitulado Silva de varia lección, escrito por um sevilhano de nome Pedro Mexía, cro-nista régio de D. Carlos V de Castela, que explicava como se poderia sacar no mar alguma quantidade de água doce. Esta obra continha um amontoado de patetices, mas o capítulo sobre a des-salga do mar – que antecedia uma dissertação sobre a razão e causa de todos os animais locomotores terem pés pares – tinha algum sentido. Através do receituário de Gaius Plinius Secundus, incluído no seu trigésimo primeiro livro da Historia Naturalis, Mexía sugerira que se usassem filtros de argila. Não os havendo, recomendava um método semelhante ao proposto por Aristóte-les: umas bolas de cera delgadas, ocas por dentro, sem boca e res-pirador, que deveriam ser metidas no mar, dentro de uma rede, pelo espaço de um dia natural. Abertas, escreveu Pedro Mexía, sairia uma água tão doce e tão boa como a de uma fonte.

Embora Mexía avisasse nunca ter operado aquela experiên-cia, para o padre Malagrida a receita soava -lhe a mel na sopa. Cera oca era, por acaso, ingrediente abundante na sua bagagem, pois trouxera abundantes bolas vazias para, em Lisboa, as inocu-lar de água benta e as vender como milagrosas. Duzentas e trinta e oito bolas, contei -as então eu, foram lançadas ao mar pelo padre

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Malagrida, dentro de uma rede, e aí deixadas a marinar durante toda a noite e manhã do dia seguinte.

Que retirar os sais da água do mar seja um processo físico--químico possível, através da osmose inversa, sei -o bem. No entanto, aquela tentativa pareceu -me destinada ao insucesso, por-quanto seria preciso alguma pressão forçada, tanto mais que a cera simples não é uma membrana suficientemente capaz.

Contudo, das duas, uma: ou Malagrida obteve essa pressão forçada por ajuda divina ou, então, as plantas odoríferas usadas no fabrico da cera possuíam propriedades de fixação dos sais por mim espantosamente ignoradas. Por isso, foi com bastante sur-presa que, arrebentada uma bola de cera, vi o jesuíta meter os lábios à água que de lá saía sem a cuspir.

Apesar deste insólito evento – prefiro não usar a palavra mila-gre –, o jesuíta não foi logo dar sustento às gargantas dos marinhei-ros. Eles tiveram que a merecer, para glória do Senhor. Nova encenação se fez, portanto, que o padre Malagrida foi um mestre no teatro, como vereis mais à frente. Desta vez, embora prescindindo de repetir o holocausto do profeta Elias no Monte Carmelo, não foi nada prosaico. À socapa, no porão, encheu as pipas com o líquido retirado das bolas de cera, carregou -as então ele próprio até ao con-vés, dissimulando o esforço por serem uma vintena e, sobretudo, o conteúdo ter ficado muito mais pesado – na verdade, exactamente 775 vezes mais. Apenas uma das barricas se manteve vazia.

Com o cenário concluído, Malagrida gritou aos semimortos marinheiros que Deus lhes iria ofertar a água e que, se assim não fosse, o lançassem ao mar. Se por acreditarem nele ou com o intuito de serem os primeiros a agarrá -lo em caso de mais um malogro, em poucos segundos o ajuntamento estava feito. Mala-grida pediu então ao capitão para lançar um balde ao mar e daí retirar água suficiente para encher a vasilha que apontou – a vazia, claro. Terminado o enchimento, começou a ouvir -se, pela voz do jesuíta, o versículo 32, do capítulo 15 do Evangelho segundo São Mateus. Ou seja, o relato do milagre da multiplica-ção dos pães junto ao mar de Galileia.

– Como Jesus Cristo teve compaixão daquelas gentes que o ouviram junto ao mar da Galileia, porque há três dias que estavam

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com ele e não tinham que comer, também Deus, por meu intermé-dio, de vós tem piedade por há três semanas quase não beberem – anunciou, por fim, Malagrida.

E, acto contínuo, abrindo uma das pipas, supostamente vazias para os incrédulos marinheiros, meteu lá dentro um caneco, dando -o ao capitão.

– Creia que temos, agora, água de sobra! Seja mais generoso para as suas gentes.

O homem hesitou antes de meter os beiços na água. O seu cép-tico cérebro ainda obrigou a língua a tilintar, por momentos, na superfície daquele líquido e somente quando as suas papilas gustati-vas ratificaram o grau de salinidade, se abriram então as goelas de satisfação. Escusado será relatar pormenores da reacção daquele convés pelo tão extraordinário surgimento de água doce. Nunca Deus foi tão glorificado e Malagrida tão abençoado. E como tam-bém no dia seguinte – depois de alguns inchaços aquosos e muitos, untuosos e babosos beijos na roupeta do jesuíta –, o vento também surgiu, cheguei à conclusão de que seria uma perda de tempo inten-tar qualquer nova tentativa para abortar aquela viagem.

Contudo, os percalços não terminaram. Aliás, pioraram. E, por ironia, após eu ter jurado, a mim mesmo, que nem por pen-samentos ou desejos meteria mais o bedelho naquela travessia. Chegada a nau ao mar de Cádis, a leve bafagem passou a uma ara-gem mais rija, a seguir o vento mudou para fresco, depois para forte, mais tarde a muito forte e, daí a nada, a duro e muito duro, chegando ao estado de tempestuoso, criando vagalhões enormes, encurtando a visibilidade e, enfim, quase fazendo sumir o navio no cavado das ondas. Cabos e velas, tudo se despedaçou, dois dos três mastaréus ameaçaram desarvorar – o terceiro, se se recor-dam, serviu para o holocausto – e o cadaste partiu -se. Ou seja, o leme foi de vela.

De repente, como é comum em circunstâncias similares, uma descarga eléctrica de corona – resultante de uma grande diferença de potencial que se estabelece entre as nuvens e um objecto condutor – ionizou o ar em torno do mastro e surgiu uma chama cor azul -violeta – o lume vivo que a marítima gente tem por santo, como escreveu o poeta Camões.

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– Salva, salva, Corpo Santo! – gritou -se no convés.Sucedeu, contudo, um motivo para grande aflição. Horror

mesmo, pois em vez de surgirem dois ou três penachos luminosos deste fogo -de -santelmo, somente apareceu um, e nas partes bai-xas do mastro. Ora, de acordo com o saber daqueles pobres, des-conhecedores dos fenómenos de electricidade, isto denunciava naufrágio. Clamaram, por isso, desta vez com fé, ao padre Mala-grida para que substituísse o Santo Elmo. O jesuíta mostrou -se exigente:

– Façam todos votos em honra da Virgem Maria e jurem que no salvamento se confessam e comungam no santuário de Nossa Senhora da Penha, em Lisboa. Se assim for, nenhum de vós per-derá um só cabelo da cabeça.

Santa ignorância, a destas gentes; o fogo -de -santelmo é um sinal, já de si, de estar a tempestade a ganhar sumiço. Assim, não só juraram como ainda mais prometeram: esmolas, penitências, expiações e procissões; a tudo estavam prestes e disponíveis desde que os salvassem da desdita.

De qualquer modo, livraram -se desta tempestade, mas bem que continuaram a precisar de ajuda, uma vez que, sem o leme operacional, o navio precisaria de – não gosto desta palavra – um milagre à chegada a Lisboa. E, de facto, não sei mesmo que fenó-meno houve, porque vos afianço, não houve truque nem passe de mágica; nem sorte, porque até esta não pode contrariar as leis da física. Sei apenas que logo depois do navio ter batido num escolho do Tejo – e nas praias, como vos relatei, o povoléu apostava já na dimensão da mortandade –, o padre Malagrida retirou, com uma calma imperturbável, o véu que cobria a sua imagem de Nossa Senhora das Missões, subiu à coberta e de braços ao alto e segu-rando a estátua, de bordão batendo nos madeiros, esteve vários minutos bradando aos céus.

Aliás, eram mais queixas, quase semelhantes à apologia que São Paulo proclamou perante Deus. Malagrida reclamou que, para glória do Altíssimo, fizera viagens a pé sem conta; que sofrera perigos nos rios; baldões dos salteadores; fráguas dos seus irmãos de raça; adversidades dos pagãos; aflições na cidade; provações no deserto; transtornos no mar; traições de falsos

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irmãos; que passara trabalhos e duras fadigas; em muitas noites não dormira; que sofrera de fome e sede; que se atormentara em frequentes jejuns, frio e nudez. Concluiu o rol de queixumes com uma reivindicação:

– Salvai este navio, pois a minha obra, para Tua glória, ainda não está completa.

E foi, de facto, após esta frase que a nau se soltou do rochedo e subiu a vazante do Tejo com a popa a servir de proa. De modo que Malagrida terá obtido, provavelmente dos céus, uma maior mercê do que a alcançada por São Paulo junto à ilha de Malta, porquanto o rabino convertido, para se salvar de um naufrágio, viu -se obrigado a nadar até à praia, enquanto o jesuíta nem os pés molhou para chegar a terra.

A propagação de todas estas maravilhas que se operaram seguiu, assim, do porto até às ruas, das ruas até ao Terreiro do Paço, do Terreiro do Paço até aos corredores do Paço da Ribeira e dos corredores do Paço da Ribeira até ao quarto do caquéctico Rei D. João V. Tudo em passo tão célere que a velocidade do som foi, neste século e em Portugal, quase batida pela rapidez na transmissão da chegada do Santo do Maranhão.

Veloz foi também a ordem régia para que, em pessoa, Frei Gaspar da Encarnação – inútil ministro de D. João V – fosse ao encontro do padre Malagrida para o trazer, de imediato, ao Paço da Ribeira. Contudo, por causa da abundância de gentes que con-fluíram ao porto e encheram as ruas, aquele e o outro se perde-ram no meio da multidão. Somente no colégio de Santo Antão, noite já bem dentro, chegou à fala com Malagrida um novo men-sageiro: o também jesuíta João Baptista Carbone, secretário par-ticular do Rei – este, por acaso, de alguma utilidade. Após os cumprimentos da praxe de dois irmãos de Loyola, mais umas tro-cas de impressões por serem conterrâneos das terras de Itália, o padre Carbone informou Malagrida da facienda para a manhã seguinte:

– Sua Majestade vos requisita a presença, logo pela alvorada, para uma visita de alívio e conforto espiritual. E pede que leveis a imagem de Nossa Senhora das Missões para a deixar a velar no seu quarto.

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Malagrida surpreendeu -se com este pedido tão urgente. Embora fosse muito zeloso da sua fama pelas terras de Portugal, que conhecia pela troca de cartas desde o Maranhão e Brasil1, sempre julgou serem necessários alguns dias de espera, pelo menos, até conseguir uma entrevista com o Magnânimo. Mais ainda porque se sabia estar D. João V quase incontactável, que a doença o monopolizava.

E, além disso, para a tarefa de alívio e conforto espiritual não faltavam esculápios. Portugal possuía então uns 407 conventos e 129 mosteiros, além de colegiadas, irmandades e muitos centos de paróquias com os seus clérigos seculares. Ou seja, qualquer coisa como duas centenas de milhar de religiosos, que estariam dispo-níveis para orar pela saúde de quem, como D. João V, sempre tão bem tratara os representantes de Deus na Terra. Somente na região de Lisboa, o Magnânimo, nos intervalos da sua vida de pra-zenteiro deboche, ordenou o enriquecimento ou construção de muitos templos: a Patriarcal, a Real Obra de Nossa Senhora das Necessidades – quase então pronta a ser benzida – e o convento de Mafra, além da Igreja do Menino Deus, dos novos conventos das Trimas do Rato, dos Teatinos e de Santa Apolónia, do hospí-cio de São João Nepomuceno, do recolhimento de Lázaro Leitão, da ermida de Nossa Senhora Mãe dos Homens, e muitos outros abençoados edifícios, que omito para não alongar mais esta frase, que já bastante dilatada ficou.

O padre Malagrida ficou também admirado de lhe requere-rem a sua Nossa Senhora das Missões, dado que soubera, mesmo no Maranhão, ser a imagem de Nossa Senhora das Necessidades que, desde a apoplexia de 1742, ganhara a eleição para a veladura do quarto régio. E não se dissesse que Portugal carecesse de Vir-gens Marias. À mãe de Cristo, à falta de lhe reconhecerem a mesma capacidade de omnipresença de Deus, cuidaram de a

1 Desde 1621, altura em que Portugal consolidou o seu poder naquela região, o Mara-nhão estava agregado ao Grão -Pará, sendo um Estado separado do Brasil. Em 1772, ocorreu, por sua vez, a divisão entre o Pará e o Maranhão. Este último Estado haveria de se fundir ao Brasil apenas em 1823, um ano depois da independência deste país. Na época em causa, o Maranhão correspondia aos actuais Estados brasileiros do Mara-nhão, Pará, Roraima, Amazonas, Acre, Amapá, Piauí e parte de Tocantins.

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tornar ubíqua, multiplicando -a em dezenas de formas, feitios e denominações. Por isso, poucas foram as terreolas do Reino de Portugal sem direito a reivindicarem a aparição da sua Nossa Senhora, embora, desconhecem -se as razões, as mais famosas fossem então as da Oliveira, da Lapa, da Nazaré, do Cabo, da Conceição e de Faro. E como neste pedaço de Mundo se achou ser insuficiente, uns dois séculos depois, fizeram -na aparecer em cima de uma azinheira de Ourém, para glória de toda a cristan-dade. Em todo o caso, desde a Restauração, em 1640, decidira -se entretanto confederar todas estas Nossas Senhoras e proclamar a Nossa Senhora da Imaculada Conceição como padroeira e pro-tectora privilegiada do Reino.

No entanto, para D. João V, que sempre adorou mulheres, nunca era demasia mais uma Virgem, ainda mais uma trazida das Américas que, pensou por certo, teria outros dotes que as da Europa não possuíam. Assim, na manhã seguinte, lá partiu bem cedo a Nossa Senhora das Missões em procissão do colégio de Santo Antão, com o préstito iniciado por duas filas de meninos de coro, cada um com a sua bandeira, depois os seus mestres de sobrepeliz, e, mais atrás, quatro jesuítas que transportavam a imagem miraculosa. E com nova vestimenta, pois o padre Car-bone levara, para a adornar, o vestido do casamento da rainha D. Maria Ana de Áustria, que até então cobria a estátua de Nossa Senhora das Necessidades. Aliás, se uma e outra não fossem a mesma pessoa, certamente haveria lugar para invejas e amuos por parte da preterida. A longa fila deste beatério terminava com o padre Malagrida, descalço e de crucifixo na mão, corda ao pes-coço, seguido pelos afortunados marinheiros – que gratos sem-pre ficaram – e de uma imensa multidão que, incessantemente, lhe lançava louvores de homem santo.

Mal chegado ao quarto régio do Paço da Ribeira, uma hora depois – porquanto muitas foram as paragens, para gáudio da populaça –, o balbuciante e quebrantado D. João V pediu aos seus camareiros que o ajudassem a ajoelhar aos pés do jesuíta, supli-cando -lhe uma bênção. Pela primeira vez, Malagrida mostrou -se constrangido e retraiu mesmo a mão quando o Rei, choroso, a agarrou e levou ao rosto.

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– Senhor, nós Te pedimos que olheis para o Rei vosso servo – disse o embaraçado jesuíta.

Na verdade, se Deus fizesse julgamentos à vida de D. João V, talvez fosse preferível para a sentença final que fosse míope, por-que não tinha sido muito primorosa. Talvez por ter essa consciên-cia, bem pesada, o Magnânimo mostrou um rebate de humildade.

– Não, meu padre! – exclamou ele. – Não digais Rei; dizei pecador!

Lindo serviço! Com estas palavras, Malagrida nem precisou de prédicas. Vendo ali tão agraciada recepção, não perdeu tempo, dizendo logo ao que vinha: rogar protecção aos conventos e semi-nários que fundara nas Américas, e haveria mais para criar, que tão necessários que eram para glória de Deus, do Reino de Portu-gal, das colónias e do Mundo inteiro e do seu Rei, Fidelíssimo e Magnânimo.

Valerá a pena dizer -vos qual foi a resposta de El -Rei Mori-bundo aos pedidos do jesuíta? Ou será apenas necessário reco-nhecer, perante vós, o meu espanto – e muito vira já eu – dever que o padre Malagrida acabara de conseguir em menos de um dia aquilo que jamais alguém obtivera numa vida inteira: um Rei a seus pés.

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