Upload
lythien
View
221
Download
1
Embed Size (px)
Citation preview
O “PROJETO DE VIDA” E A FORMAÇÃO DO HABITUS DISCENTE NO
ENSINO MÉDIO DE TEMPO INTEGRAL
Valdirene Alves de Oliveira
UEG-Inhumas
Resumo: Este texto apresenta uma discussão sobre a formação discente no Ensino Médio
em tempo integral em face de uma Parceria Público Privada no Estado de Goiás. O recorte
privilegia o modelo de ensino médio presente em uma escola piloto de tempo integral,
que se localiza na capital. Tal modelo é fruto da parceria da Seduc/Go com o Instituto de
Corresponsabilidade pela Educação (ICE). O artigo apresentado apresenta a síntese da
primeira etapa de um projeto de pesquisa em desenvolvimento. Nessa primeira etapa o
foco foi a formação discente. Na segunda etapa, em curso, a formação e trabalho docente
estão sendo analisados na mesma instituição. A análise apresentada é intensificada na
proposição do “Projeto de Vida”, que os discentes elaboram, mediante os princípios
norteadores dessa atividade e sua relação com o ideário formativo pretendido. Os
documentos basilares desse projeto foram coletados e analisados e algumas aulas da
“disciplina Projeto de Vida” foram acompanhadas durante seis meses. A escola
possibilitou acesso aos materiais fornecidos pelo ICE para subsidirar ao trabalho docente.
Tais materiais contêm inclusive o plano para cada aula que o docente deve seguir ao
ministrar a disciplina. O referencial teórico que sustenta a análise está alicerçado nos
conceitos habitus, campo e capital cultural, em conformidade com Bourdieu. Nessa
perspectiva alguns elementos são enfatizados no entrelaçamento entre o pretendido com
o “Projeto de Vida” e o papel da escola na constituição do habitus secundário. O texto
esboça algumas considerações sobre a complexa relação entre público e privado, na
particularidade da formação discente na/para a última etapa da Educação Básica.
Palavras chave: empreendedorismo, projeto de vida, juventude.
Introdução
No final de 2012 i a Secretaria de Estado da Educação de Goiás (Seduc) firmou
convênio com o Instituto de Corresponabilidade pela Educação (ICEii) para iniciar em
2013 a implantação do Ensino Médio em tempo integral em quinze escolas. Oito
localizadas na capital e as outras sete escolas no interior e em 2014 outras sete escolas
aderiram ao Programa Novo Futuro, assim denominado em Goiás. Esse retrato ilustra a
diversificação bastante atual nas secretarias de educação para a oferta do Ensino Médio,
conforme salienta Krawcyzk (2013).
O ICE é pioneiro em estabelecer parceria com as secretarias de educação para
oferta de Ensino Médio em tempo integral. Iniciou em 2004 com uma experiência isolada
em Pernambuco, para reforma física do prédio do Ginásio Pernambucano. Até 2013, além
de Goiás, o ICE já havia estabelecido parcerias com os Estados de Ceará, Piauí, Sergipe,
Rio de Janeiro e São Paulo.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302782
Esse breve cenário da trajetória do Ensino Médio em Goiás e sobre o ICE pretende
focalizar a criação do Ensino Médio em Tempo Integral e na singularidade deste texto
discutir: “o que se pretende para a formação discente em uma proposta pedagógica
de Ensino Médio em tempo integral, como resultado de uma parceria público
privada?”.
Na pretensão de apreender alguns elementos acerca dos processos envolvidos na
efetivação dessa configuração de Ensino Médio em Goiás, está em desenvolvimento o
projeto de pesquisa “Formação discente, formação e trabalho docente na escola de
Ensino Médio em tempo integral em Goiás”. Tal pesquisa prevista para dois anos,
iniciada em 2013, focou na primeira etapa da investigação o pretendido para a formação
discente nesse modelo de escola. Na segunda etapa a prioridade se converte para a
investigação do impacto de tal proposta para a formação e trabalho docente.
Durante a primeira etapa da pesquisa foi realizado um levantamento de
documentos junto ao ICE e também em uma das escolas piloto, sediada em Goiâniaiii.
Após a fase de leitura e análise dos documentos, foram realizadas observações semanais
de algumas aulas, encontros e conversas informais com a coordenação. No decorrer desse
processo foi tomada a decisão de melhor investigar a proposta e realização da disciplina
Projeto de Vida (PV). A disciplina Protagonismo Juvenil (PJ) também marca uma
singularidade na proposta, mas em PV a racionalidadeiv da proposta fica mais explícita.
O arcabouço teórico para o desenvolvimento do projeto de pesquisa, que resultou
no presente trabalho, contempla algumas produções de Bourdieu para fins de
compreensão dos conceitos campo, habitus e capital cultural. Entre os autores que nos
últimos anos contribuíram e contribuem com a discussão sobre o Ensino Médio no Brasil
o diálogo foi estabelecido principalmente com Krawczyk (2013, 2011) e Kuenzer (2000,
2010).
Kuenzer (2000) problematiza a necessidade de se pensar um Ensino Médio para
os que vivem do trabalho e corrobora com a análise, no âmbito das políticas educacionais
para esta etapa da educação básica, no que tange ao financiamento. Tendo em vista o
Plano Nacional de Educação de 2001-2010 não houve avanços, período denominado para
ela de “década perdida”, em face dos rumos que foram dados para o Ensino Médio.
Kuenzer (2010)
Entre conceitos e contextos
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302783
Para Bourdieu (1989) todo campo é um espaço social de relações objetivas.
Assim, as relações objetivas internas de um campo também recebem conotações
emanadas das diversas relações que se estabelecem fora do campo. O campo educacional
na lógica de constituição do espaço social contém em si: “o princípio de uma apreensão
relacional do mundo social (...) toda “realidade” que designa reside na exterioridade
mútua dos elementos que a compõem” (1996, p 48).
A concepção de campo traz em si a constituição de campo como espaço de
disputas internas e externas. Internamente, todo agente quer aumentar o seu capital e
assumir a condição de agente dominante. Externamente, na correlação com outros
campos, na disputa por ampliação de capital a centralidade se estabelece no elemento
específico de cada campo. Nesse movimento, pode ocorrer a elevação de capital dos
agentes envolvidos ou não, assim como um campo poderá ser fortalecido ou enfraquecido
no bojo do campo social. Para Bourdieu, campo é:
Um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se
encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do qual os
agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na
estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a
transformação de sua estrutura. (1996, p 50)
Para entrar em um jogo é preciso ter capital, pois este garante uma rede de relações
e possibilita que ocorram as trocas materiais e simbólicas e o lucro. Em consonância com
Bourdieu (2010), o capital social:
embora seja relativamente irredutível ao capital econômico e cultural possuído
por um agente determinado ou mesmo pelo conjunto de agentes a quem está
ligado (...) não é jamais completamente independente deles pelo fato de que as
trocas que os instituem e o inter-reconhecimento supõem o reconhecimento de
um mínimo de homogeneidade “objetiva” e de que ele exerce um efeito
multiplicador sobre o capital possuído com exclusividade (p 67).
O campo educacional, portanto é compreendido neste artigo na sua relação com o
campo econômico e na correlação destes campos com o Estado. Na relação entre campos,
cada qual com seu objeto específico, procura jogar o seu jogo a partir do habitus, peculiar
aos agentes de cada campo. Portanto, cada campo se constitui como um espaço de
relações de poder, constituindo um sistema de forças, em que os agentes lutam para
ampliar o capital adquirido.
Nessa perspectiva habitus “é essa espécie de senso prático do que se deve fazer
em cada situação”, o que norteia o jogo. (op.cit. p 42). Assim, no campo e fora do campo,
o habitus tende a conservar no agente aquilo que o constituiu, pois o habitus se constitui
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302784
em: “sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios
geradores e organizadores de práticas e de representações” (BOURDIEU, 2009, p 87)
O campo educacional tem o seu habitus e o seu capital, do mesmo modo que os
demais campos. É o capital de cada campo que o valida dentro e fora desse espaço social.
Na interface entre campos, nessa aproximação, mediante um campo de poder instaurado,
o capital empregado por seus respectivos agentes poderá acarretar em o habitus de um
campo induzir a transformação do habitus de outro campo? De que forma? Em quais dos
agentes de cada campo? Em conformidade com Bourdieu, os elementos definidores desse
processo são as estratégias empreendidas, o saber jogar o jogo e o capital de cada agente.
O campo econômico historicamente dedica atenção especial ao campo
educacional. Conforme Bourdieu (1998), na medida em que a sociedade se complexifica,
mediante o desenvolvimento do setor econômico, ecoa na escola um jogo que para ser
compreendido de forma prática “é preciso tomar por objeto o efeito próprio da garantia
escolar sobre o mercado de trabalho” (p.134). Sob essa prerrogativa Bourdieu discute o
jogo que se configura na autonomia relativa do campo educacional frente ao campo
econômico, em face da relação diploma-cargo.
Na contemporaneidade o interesse do agente empresarial pelo campo educacional
tem se materializado na busca por aproximações cada vez mais evidentes.. Assim, o
capital empregado, por este agente, será aquele que mais o legitima e também o torna
mais estratégico, nas disputas empreendidas. Para Bourdieu cada campo social possui
uma forma predominante de capital e essa forma de agir é uma estratégia em busca de
ampliação de capital.
Nessa perspectiva, a inserção do campo econômico (empresarial) no campo
educacional (nesse caso via secretaria de educação) compõe uma relação emblemática
com o Estado, configurando assim o que Bourdieu considerou ser do conjunto das trocas
mais importantes, ao afirmar que:
a gênese do Estado é inseparável de um processo de unificação dos diferentes
campos sociais, econômico, cultural (ou escolar), político etc., que acompanha
a constituição progressiva do monopólio estatal da violência física e simbólica
legítima. Dado que concentra um conjunto de recursos materiais e simbólicos,
o Estado tem a capacidade de regular o funcionamento dos diferentes campos
(...) (BOURDIEU, 1996, p 51).
O Estado assume, portanto, um papel importante no espaço social, corrobora e
consolida o capital simbólico por ele criado, pois o Estado tem a sua legitimidade, é
detentor de muitos capitais e regula os diversos campos, uma vez que:
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302785
O Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de
capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital
econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico,
concentração que, enquanto tal, constitui o Estado como o detentor de uma
espécie de metacapital, com poder sobre os outros tipos de capital e sobre seus
detentores (BOURDIEU, 1996, p 99).
Nesse sentido, é possível inferir que na aproximação atual do campo econômico
com o campo educacional, via parceria público privada (PPP), para realização de
propostas inovadoras no Ensino Médio, há ainda, na alçada de poder do Estado, a
legitimidade de nomearv.
A tônica dessa prática traz à tona a problemática da relação entre o público e o
privado, que perpassa pela redefinição do papel do Estado, com implicações diretas nas
políticas públicas. Essa redefinição ocorre com a transmissão de elementos da esfera
estatal para o público não-estatal ou privado, ou ainda pode ocorrer de a permanência de
elementos de corte social, como a educação escolar, continuar sob responsabilidade da
propriedade estatal, mas o fio condutor passa a ser a lógica do mercado (ADRIÃO,
PERONI, 2009).
O “Projeto de Vida” e a formação do habitus discente: algumas aproximações
O ICE oferece o suporte pedagógico às escolas que aderem ao Programa, uma vez
que o Instituto é responsável por gerenciar o projeto, pois sua função não se circunscreve
ao âmbito administrativo e /ou financeiro, pois: “Mais do que atuar como agente
financiador, a classe empresarial se faz potente agente de transformação que desafia
paradigmas e traz para o setor público maior eficiência na gestão dos processos”. (ICE,
s/d, p 10)
Para fins de discussão neste artigo os documentosvi que subsidiam a elaboração
do “Projeto de Vida” foram priorizados, uma vez que nesses fica mais latente o viés de
habitus discente pretendido por meio das orientações expressas em afirmações e
definições, como:
O Projeto de Vida é um plano de ação escrito que permite uma melhor
visualização dos caminhos a ser seguidos pelo jovem para alcançar seus
objetivos. Para tanto, é preciso conhecer claramente seus reais objetivos e
metas, ter em mente seus valores, pois eles direcionarão sua vida. As metas
devem ser compatíveis com os valores mais profundos, para que sua
consecução leve à satisfação e à realização pessoal, e não à frustração ou à
insatisfação. (...) É também um excelente instrumento para trabalhar o
Protagonismo, sobretudo pela ênfase dada aos princípios e valores, a visão
correta de uma empresa e o papel educativo do empresário. Utilizando a Tese
como ferramenta de planejamento, a construção do Projeto de Vida foi
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302786
comparada à elaboração do Plano de Ação de uma empresa e da própria escola.
(MAGALHÃES, 2008, p 64-66)
O “Projeto de Vida” em discussão é delineado por sujeitos matriculados em
escolas que aderiram ao Programa Novo Futuro. Estes são discentes que têm
disponibilidade para estudarem no período diurno (das 7:00 às 17:00h), o que possibilita
inferir que se constitui em um grupo peculiar, que não pode ser compreendido em uma
conotação generalista de “juventude”. Bourdieu (1983) foi o percussor na interpretação
de que não é possível analisar o termo “juventude” numa lógica homogeneizante, pois
ao desenvolver seus estudos e pesquisas este pesquisador francês observou que as
divisões etárias são definições arbitrárias, pois:
a idade é um dado biológico socialmente manipulado e manipulável e o fato
de falar dos jovens como se fossem uma unidade social, um grupo constituído,
dotado de interesses comuns, e se relacionar estes interesses a uma idade
definida biologicamente já constitui uma evidente manipulação . Seria preciso
pelo menos analisar as diferenças entre as juventudes Por exemplo, poderíamos
comparar sistematicamente as condições de vida, o mercado de trabalho, o
orçamento do tempo, etc., dos “jovens” que já trabalham e dos adolescentes da
mesma idade (biológica) que são estudantes: de um lado as coerções do
universo econômico real, apenas atenuadas pela solidariedade familiar, do
outro, as facilidades de uma economia de assistidos quase lúdica, fundada na
subvenção, com alimentação e moradia e preços baixos, entradas para teatros
e cinema a preço reduzido. (...) entre essas posições extremas, o estudante
burguês e, do outro lado, o jovem operário que nem mesmo tem adolescência,
encontramos hoje todas as figuras intermediárias (BOURDIEU, 1983, p.113).
Essas indicações são basilares para uma discussão sobre a formação de habitus
nos discentes do Ensino Médio em face da definição e acompanhamento do “Projeto de
Vida”, segundo as orientações do ICE. O pano de fundo dessa distinção entre juventude
X juventudes se sustenta na compreensão, conforme Bourdieu, quanto à formação de
habitus primário e habitus secundário, que resvala na constituição do capital cultural. Por
conseguinte Bourdieu (2010) ressalta que: “Em síntese, as cartas são jogadas muito cedo”.
O “Projeto de Vida” orientado pelo ICE se insere em uma proposição que
considera o jovem como protagonista nas definições do rumo da sua vida profissional e
acadêmica. Ao definir os rumos para a vida futura do jovem, é recomendado que haja
uma articulação entre “talento”, “necessidade” e “paixão”. A orientação para a definição
do “Projeto de Vida” pode ser compreendida como uma ação pedagógica. Segundo
Bourdieu (1982, p21) “toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência
simbólica enquanto, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural”.
A proposição do ICE concebe a escolha profissional do jovem para o “Projeto de
Vida” como uma questão de saber equilibrar a relação entre talento, necessidade e paixão.
As condições que interferem nesse conjunto e que impulsionam em uma direção e, de
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302787
certa medida, definem caminhos (condições socioeconômicas, culturais...) não são
consideradas de forma a permitir uma compreensão do contexto, mas recebem abordagem
circunstancial, como pode ocorrer na materialização da ação pedagógica, ou seja:
(...) as técnicas empregadas dissimulam a significação social da relação
pedagógica, sob a aparência de uma relação puramente psicológica e que, de
outro lado, sua dependência ao sistema das técnicas de autoridade que definem
o modo de imposição dominante contribui para impedir os agentes moldados
segundo esse modo de imposição. (BOURDIEU, 1982, p 39)
O “Projeto de Vida” é apresentado em um dos documentos de orientação para
professores e alunos em analogia a uma árvore. Por meio de etapas nos procedimentos a
analogia se estrutura da seguinte forma:
1º Passo: como conseguir transformar sonhos em metas – definição de metas
de forma clara e objetiva.
2º Passo: diagnóstico pessoal – Árvore da vida:
■ raízes – crenças e valores;
■ tronco – melhores qualidades;
■ galhos – planos para o futuro;
■ folhas – principais habilidades;
■ flores – grandes sonhos; e
■ frutos – as conquistas nos próximos dez anos.
3º Passo: análise dos obstáculos e das oportunidades externas, e das facilidades
e dificuldades pessoais (análise do campo de força).
4º Passo: Plano de Carreira – o que é necessário para alcançar os objetivos –
Construção da Escada da Vida por um período de dez anos, na qual cada degrau
corresponde a um ano.
(MAGALHÃES, 2008, p 64-66).
A metáfora entre árvore e plano o PV se desdobra “Plano de Carreira” e “Escada
da Vida”, ou seja, por meio do “Projeto de Vida” ocorre uma vinculação com a pretensão
de o Projeto perdurar para além do período de curso do Ensino Médio, pois a “Escada da
Vida” prevê um tempo de dez anos de duração. Essa prerrogativa pode ser discutida no
âmbito da Ação Pedagógica (AP) em vinculação com o Trabalho Pedagógico (TP), tendo
em vista o habitus, pois;
(...) a AP implica o trabalho pedagógico (TP) como trabalho de inculcação que
deve durar o bastante para produzir uma formação durável; isto é, um habitus
como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz
de perpetuar-se após a cessação da AP e por isso de perpetuar nas práticas os
princípios do arbitrário interiorizado. (...) o TP tende a reproduzir as condições
sociais de produção desse arbitrário cultural, isto é, as estruturas objetivas das
quais ele é o produto, pela mediação do hábito como princípio gerador de
práticas reprodutoras das estruturas objetivas (BOURDIEU, 1982, p 44-45)
O Projeto de Vida na escola de Ensino Médio em tempo integral, como fruto da
parceria com o ICE, de certa forma, imprime ao discente uma nova lógica na relação entre
o passado, presente e o futuro. Nesse sentido, opera em uma das lacunas que se coloca
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302788
como desafio ao trabalho e à organização escolar tendo em vista a última etapa da
Educação Básica, conforme assevera Krawczyk (2011).
A escola que adere ao Ensino Médio em tempo integral em parceria com o ICE
concebe à categoria “tempo” uma forma distinta da que a escola habitualmente trabalha.
A abordagem dessa nova concepção se reveste na formação do habitus secundário com
matizes que fomentam o individualismo e secundarizam as condições objetivas que
permeiam as escolhas individuais.
Nessa perspectiva, a aproximação entre campos (econômico e educacional) pela
via da PPP com o ICE acarreta em um novo ethos adentrar a escola e interferir na
dinâmica da instituição escolar, em busca de consolidação da proposta formativa, pois:
“Numa formação social determinada, o êxito diferencial da AP dominante segundo os
grupos ou as classes é função dos ethos pedagógico próprio a um grupo ou a uma classe”.
(op.cit, p 42).
A fim de consolidar a inserção de um ethos empresarial no campo educacional é
necessário que este opere com as estratégias, como o trabalho pedagógico (TP), peculiares
do campo educacional, que por sua vez é permeado pela dimensão política constitutiva
da educação. Para Bourdieu:
Enquanto trabalho prolongado de inculcação que produz um habitus durável e
transponível, isto é, inculcando ao conjunto dos destinatários legítimos um
sistema de esquemas de percepção, de pensamento, de apreciação e de ação
(parcial ou totalmente idênticos), o TP contribui para produzir e para
reproduzir a integração intelectual e a integração moral do grupo ou da classe
em nome dos quais ele se exerce. (op.cit, p 47).
Isto certamente desvela o teor da violência simbólica empreendida em ações
dessa natureza, pois:
Quanto mais o mercado em que se constitui o valor dos produtos das diferentes
AP está unificado, mais os grupos ou as classes que sofreram uma AP que lhes
inculcou um arbitrário cultural dominado têm oportunidades de lembrar o não-
valor de seu acervo cultural, tanto pelas sanções simbólicas do mercado de
trabalho, quanto pelas sanções simbólicas do mercado cultural. (op.cit, p 41).)
Bourdieu (1998) esclarece acerca da relação entre as leis de transformação do
campo de produção econômica e as leis de transformação do campo de produção de
produtores (escola e família), pois a escola ganha relevância à medida que o campo
econômico se complexifica. Essa dinâmica, por sua vez, não pode ser secundarizada ou
esquecida por parte dos que atuam no campo educacional.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302789
Algumas considerações
O projeto mais individual nunca é senão
um aspecto das esperanças estatísticas
que estão associadas à classe. Bourdieu
(1979, p. 81).
Este estudo possibilitou observar que estão imbricadas no formato de escola de
Ensino Médio em Tempo Integral um ideário de juventude, uma perspectiva formativa
discente, sob um projeto de escola, com repercussões na forma de conceber o trabalho
pedagógico, com implicações para o trabalho docente. Tal prerrogativa traz elementos
contraditórios para o debate, pois neste modelo de escola os docentes recebem uma
bonificação de dedicação exclusiva, um dos grandes desafios postos para os professores
da Educação Básica, em conformidade Krawczyk (2011). Essa constatação ratifica a
relevância compreender o emaranhado que se estabelece na complexa relação entre o
público e o privado, sob o manto das PPP.
O Projeto Político Pedagógico, na concepção de Veiga, (1995) das escolas de
Ensino Médio em parceria com o ICE sofre alterações estruturais nos seus princípios e
finalidades. Essa situação preconiza que as instâncias que formam professores se
debrucem na investigação dos processos atuais que corroboram com a impressão de uma
nova lógica para a educação escolar.
A atualidade educacional revela um quadro complexo para a formação inicial e
continuada docente, bem como impulsiona as instituições educativas de ensino superior
em manter o compromissovii com as pesquisas e estudos que busquem a essência nas
causas. Nesse sentido, urge questionar: O que muda efetivamente em termos de
concepção de formação docente quanto ao papel da escola na formação do discente?
Adrião e Peroni (2009) buscam em Zeca Baleiro a expressão “alma é o segredo
do negócio”. Essa expressão retrata bem até que ponto a busca pela formação de um
trabalhador disposto a atender às demandas e condições do mercado de trabalho busca
espaço dentro da escola, ou seja, definir o conteúdo da educação, seu currículo, gestão,
organização do sistema e da escola tem sido a meta do setor privado na educação.
No caso da parceria com o ICE o “Projeto de Vida” implica estabelecer uma
pretensa formação de um habitus discente, calcado no empreendedorismo, gerenciamento
e cumprimento de metas, pois são prerrogativas oriundas do campo empresarial,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302790
respaldadas no campo educacional com a expectativa de que perdurem no decorrer da
vida laboral.
A formação do habitus discente, por meio da elaboração e acompanhamento do
“Projeto de Vida”, conforme o proposto pelo ICE às escolas, certamente não é a única
estratégia empreendida para consolidar o habitus pretendido, mas este artigo ilustrou a
pretensa formação de um capital cultural, no âmbito da escola, pois é “sem dúvida na
lógica da transmissão do capital cultural que reside o princípio mais poderoso da eficácia
ideológica dessa espécie de capital”. (BOURDIEU, 1999, p 76).
Referências
ADRIÃO, T. ; PERONI, Vera . A educação pública e sua relação com o setor privado:
implicações para a democracia educacional. Revista Retratos da Escola, 2009.
BRASIL, Decreto 7.478, que cria a Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e
Competitividade - CGDC do Governo Federal, 2011.
BOURDIEU, Pierre. O capital social: notas provisórias. Publicação original em
31.janeiro 1980. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Orgs.). Escritos de
educação. 11. ed. Petrópolis,RJ: Vozes, 2010.
______. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
______. Escritos de Educação / Maria Alice e Afrânio Catani (organizadores) –
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
____.Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.).
Escritos de educação. Tradução Magali de Castro. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. p. 71-80.
______. O novo capital. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Trad.: Mariza
Corrêa.Campinas -SP: Papirus, 1996.
____.Introdução a uma sociologia reflexiva. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro:
Bertrand do Brasil, 1989.
_____. A juventude apenas uma palavra. In P. Bourdieu (Org.), Questões de Sociologia
(p. 151-162). Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
____. O desencantamento do mundo. São Paulo, Perspectiva, 1979.
BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1982.
ICE. Uma nova escola para a juventude brasileira: escolas de Ensino Médio em Tempo
Integral. S/D. Disponível em: http://www.icebrasil.org.br/wordpress/wp-
content/uploads/01_secure.pdf
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302791
___.Projeto de Vida: o jovem e sua formação acadêmica. S/D, b. Disponível em:
http://www.icebrasil.org.br/wordpress/wp-content/uploads/13_secure.pdf
KRAWCZYK, Nora. Políticas para o Ensino Médio e seu potencial inclusivo. Goiânia:
36 Reunião Anual da Anped, 2013
______. Reflexão sobre alguns desafios do Ensino Médio no Brasil de hoje. Cadernos de
Pesquisa, V. 41, N.144, set/dez, 2011.
KUENZER, Acacia. O Ensino Médio no Plano Nacional de Educação 2011-2020.
Educação & Sociedade, v. 112, p. 851-874, 2010.
____. Ensino Médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. São Paulo,
Cortez, 2000.
MAGALHÃES, Marcos. A juventude brasileira ganha uma nova escola de Ensino Médio:
Pernambuco cria, experimenta e aprova. São Paulo: Albatroz : Loqüi, 2008.
OLIVEIRA, Valdirene Alves de. Os intelectuais e a construção de uma proposta
hegemônica para o ensino médio brasileiro. Anped: Goiânia, 2014. Disponível e:
:http://www.36reuniao.anped.org.br/pdfs_trabalhos_aprovados/gt05_trabalhos_pdfs/gt0
5_2939_texto.pdf Acessado em 10/05/2014
VEIGA, Ilma Passos A. (org.). Projeto político-pedagógico da escola. Campinas: Papirus,
1995.
Notas
i A Secretaria de Estado da Educação de Goiás (Seduc) tem sido signatária nas listas de Estados que
prontamente respondem ao chamado nacional para realizarem mudanças no Ensino Médio. No ano 2002 o
Estado de Goiás compôs com outros três estados brasileiros o grupo das experiências do Projeto Escola
Jovem. Ver Oliveira (2014)
ii O ICE é uma instituição com sede em Pernambuco que se apresenta como uma: “instituição privada sem
fins lucrativos, cuja missão é mobilizar a sociedade em geral e, em particular, a classe empresarial, segundo
a ética da co-responsabilidade, a fim de produzir soluções educacionais inovadoras e replicáveis em
conteúdo, método e gestão. Tudo isso objetiva uma nova forma de ver, sentir e cuidar da juventude,
contribuindo para a formação de jovens autônomos, solidários e competentes. (MAGALHÃES, 2008, p 10) iii A identidade da instituição em que foi desenvolvida na primeira etapa e está em curso a segunda será
preservada, apenas será informado que se localiza em Goiânia. Sempre que o texto se referir a esta escola
será utilizada a expressão “instituição”.
iv Para melhor compreensão desse conceito na atualidade das propostas para o Ensino Médio brasileiro ver
Krawczyk (2013).
v O segmento empresarial foi nomeado pelo Governo Federal para compor a Câmara de Políticas de Gestão,
Desempenho e Competitividade - CGDC do Governo Federal. Para consultar os nomes dos quatro
representantes da sociedade civil, designados pela Presidência da República consultar em: BRASIL, 2011,
p.2.
vi Os textos mencionados exigem senha de acesso. Mediante solicitação por e-mail, pelo endereço
disponibilizado para contato no site do ICE, foi fornecida a senha para autora deste texto. A instituição
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302792
participante da pesquisa também viabilizou o acesso outros documentos como os materiais didáticos dos
professores. Em tais materiais constam as aulas da disciplina de PV.
vii Michael Apple em duas conferências em Goiânia, no V Edipe em 29/08/2013, sob o título “Currículo,
Educação e Ideologia” e no X Seminário de Pesquisa do PPGE da UFG/FE (30/09), sob o título “Teoria
Crítica, lutas políticas e cidadania: pode a educação mudar a sociedade?” salientou como a direita tem
empreendido esforços em busca da consolidação de um projeto educativo e societário. Entre as tarefas da
universidade, em prol do enfrentamento dessa situação, está o desvelar da “névoa epistemológica” que recaí
sobre o que o é dito, sobre a educação, em especial na construção equivocada sobre a educação e seu papel.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302793