Upload
duongminh
View
214
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
ARTHUR ALEXANDRE MACCDONAL
O que demarcar faz fazer? Um olhar sobre as instâncias de fabricação da
autoridade científica: o caso do doutorado interdisciplinar em Meio
ambiente e Desenvolvimento da UFPR
CURITIBA
2011
ARTHUR ALEXANDRE MACCDONAL
O que demarcar faz fazer? Um olhar sobre as instâncias de fabricação da
autoridade científica: o caso do doutorado interdisciplinar em Meio
ambiente e Desenvolvimento da UFPR
Monografia apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Bacharel e
Licenciado em Ciências Sociais no curso de
Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas
Letras e Artes da Universidade Federal do
Paraná
Orientador: Professor Dr. Dimas Floriani
CURITIBA
2011
“Como filósofos que adotam por princípio o que podemos
chamar de radicalismo do ponto de partida, vamos começar,
cada um por si e em si, colocando de lado nossas convicções
admitidas até aqui e, em particular, não aceitando como certas
as verdades da ciência.” Edmund Husserl
“They insisted that we were already held by the force of some
society when our political future resides in the task of deciding
what binds us all together.” Bruno Latour
RESUMO
Esta monografia procura apresentar alguns movimentos necessários à fabricação da ciência,
de sua autoridade e da qualidade que passa a ter o seu produto; o conhecimento científico.
Para tanto, buscou-se apresentar o movimento necessário para a produção, legitimação e
institucionalização do conhecimento científico em práticas interdisciplinares com ênfase nas
relações entre meio ambiente e sociedade. Não se furtando da necessária reflexividade quando
se trata de pensar as práticas de produção do conhecimento, o texto monográfico foi redigido
de modo a explicitar as suas próprias condições de produção. Ao final, com o texto, pretende-
se pensar tanto o movimento necessário para a institucionalização de outras práticas de
produção do conhecimento quanto o movimento necessário para que seja executado um
trabalho que procure pensar as práticas de produção do conhecimento científico. Posto isso, o
texto foi dividido em duas partes; a primeira com um capítulo no qual procurou-se discutir as
condições necessárias à explicações sociológicas do conhecimento, especificamente nas
posições da sociologia do conhecimento científico. Apresentou-se na abordagem de três
autores, Bloor, Bourdieu e Latour, os paradoxos das explicações sociais da produção
científica e suas possíveis saídas. Na segunda parte, constituída por dois capítulos, procurou-
se apresentar, a partir de um programa-referência (MADE/UFPR) as condições de
justificativa das práticas interdisciplinares em ambiente e sociedade suas características de
produção do conhecimento e suas conseqüências para as formas de organização das
instituições científicas. No capítulo dois procurou-se apresentar, com base em relatório de
pesquisa interdisciplinar, as modificações das práticas de produção do conhecimento e suas
correspondentes tensões institucionais e sociais. No capítulo três procurou-se apresentar
detidamente as conseqüências das práticas interdisciplinares em meio ambiente no que se
refere à organização de espaços institucionais de produção e circulação do conhecimento e
suas respectivas modalidades de avaliação da produção e das práticas científicas.
Palavras-chave: Ciência – interdisciplinaridade – Meio ambiente – Science Studies
7
SUMÁRIO
Prólogo......................................................................................................................................08
Introdução................................................................................................... ..............................11
PRIMEIRA PARTE
Primeiro exorcismo –Justificativa............................................................................................14
1. A sociologia pelo avesso: paradoxos da explicação social do conhecimento ..................17
1.1O problema da análise sociológica do conhecimento..........................................................17
1.2 David Bloor e Pierre Bourdieu: simetria e campos de força..............................................27
1.3 Reducionismo? Pela busca da uma simetria generalizada..................................................41
SEGUNDA PARTE
Segundo exorcismo – Incursões metodológicas.......................................................................55
2. A interdisciplinaridade pelo avesso: Comentários acerca do relatório de pesquisa
coletiva de um Doutorado interdisciplinar em Meio-Ambiente e Desenvolvimento........64
2.1 Buscando os atalhos da constituição do conhecimento......................................................64
2.2 O Livro-relatório.................................................................................................................70
2.3 Condições iniciais do modelo metodológico de pesquisa...................................................79
2.4 Pesquisa interdisciplinar: ou como fazer a realidade ter escalas.........................................83
3. Espaços de socialização e conformação de enunciados científicos: Da criação da
ANPPAS à Comissão de avaliação interdisciplinar da CAPES..........................................94
3.1 A socialização dos enunciados científicos: ou os fatos vão parque....................................95
3.2 O reconhecimento por parte da CAPES.............................................................................99
Considerações finais: intervenções especulativas em torno da ciência por fazer...................106
Epílogo....................................................................................................................................116
Referências bibliográficas.......................................................................................................117
Anexos................................................................................ ....................................................120
8
Prólogo
25 de maio de 2010
Isso não é uma etnografia
Hoje, pela manhã, caminhava pelo pátio depois de uma aula de sociologia quando um
colega do grupo de pesquisa veio me avisar que haveria, neste mesmo dia, a conclusão do
primeiro módulo do programa de pós-graduação interdisciplinar em Meio Ambiente e
Desenvolvimento. Os alunos deveriam apresentar alguns seminários referentes aos temas do
módulo. Como o programa me servirá como objeto monográfico, aceitei prontamente em
assistir o seminário.
O programa é localizado no campus de ciências agrárias, onde possui sede própria.
Uma casa de madeira pré-fabricada, dividida em duas partes, uma administrativa e uma sala
de aula. Espaços distintos e complementares onde se desdobram os matizes do fazer
científico. Dirijo-me à secretaria e pergunto se o seminário já havia começado ao que ela me
responde positivamente, dizendo-me que poderia entrar.
Abro a porta devagar. Recinto cheio, poucas cadeiras vagas; sento-me numa delas.
Logo percebo alguns professores à esquerda da sala e em frente ao quadro cinco alunos
expõem o artigo que redigiram coletivamente. Os seminários em geral corriam bem, com
alguns comentários pontuais feitos pelos professores indicados para a apreciação dos
trabalhos dos grupos. Porém, no terceiro grupo, presenciei uma cena interessante.
O tema privilegiara a discussão do esvaziamento do espaço público tendo como lócus
um parque da cidade de Curitiba. A dinâmica do curso supõe que os alunos, neste caso
mestrandos, escrevam um artigo sobre uma temática específica que tenha sido discutida no
decorrer do módulo introdutório do programa de pós-graduação interdisciplinar. O artigo é
escrito com a orientação de dois professores e avaliado por outros dois para que se promova a
discussão do trabalho na situação que acabo de apresentar.
Após o término da apresentação os professores responsáveis por comentar o trabalho
passam a fazer a apreciação. Um dos professores diz:
9
[...] a redação do texto tem sérios problemas, inclusive, algumas passagens soam até
mesmo preconceituosas. Tem muito de vocês no texto e pouco da reflexão teórica
[...] a exposição das fotos da apresentação de vocês é tendenciosa, visto que vocês
constroem um passado saudoso para o parque e o retratam como decadente.
O outro professor também fez algumas considerações críticas embora de outro teor.
Após a avaliação dos dois professores, o mediador do debate abre para questionamentos das
pessoas que assistem à exposição. Ao pedir a palavra, uma senhora se refere à situação que
acabo de esboçar da seguinte forma:
Após esse enquadramento científico que vocês levaram (se referindo aos comentários dos dois professores) acredito... (gargalhadas ressoam na sala).
Neste momento, olho os professores que haviam comentado os trabalhos e percebo
certo desconforto. Fito também a expressão um tanto inquieta e irônica do mediador do debate
ao sorrir de canto de boca e levar a mão ao rosto. Em seguida um dos professores avaliadores
se manifesta: ―só aceito a expressão se for entre aspas‖ referindo-se à enquadrada científica.
Ao que o mediador comenta em tom de brincadeira: ―cheguei a me doer ao ouvir esse termo!‖
Em seguida o professor que pronunciou as sentenças descritas acima se retrata: ―é uma
enquadrada científica no bom sentido. No sentido de que se possa dar voz ao objeto!‖
Ora, por que a ânsia por retratar-se em uma situação onde se deveriam avaliar os
trabalhos científicos confeccionados pelos alunos? Ressalvando que o tempo do módulo foi
de quatro semanas, não parece haver uma situação na qual seja necessária uma retratação, ali
se encontravam pessoas dispostas a compreenderem o que lhes era repassado.
Contudo, estamos num ambiente diferenciado dos moldes acadêmicos tradicionais: um
programa de pós-graduação interdisciplinar em Meio ambiente e Desenvolvimento. Aqui, as
primeiras reflexões a que os alunos têm acesso são a respeito da crise da modernidade,
entendida em seu modelo societal hegemônico (produtivista) bem como do modelo
tecnocientífico que lhe subjaz. Em outras palavras, há uma preocupação curricular em
oferecer aos alunos uma introdução crítica ao modelo clássico de ciência bem como ao
modelo sócio-cultural hegemônico que é retratado em colapso pela sua relação predatória com
o meio ambiente.
A incisão do professor ao avaliar alunos que tomavam contato com um tema fora dos
domínios de sua formação disciplinar; a recepção por parte da assistência (enquadramento
científico!); o desconforto dos professores; a ironia contida no mediador (que também é
professor e orientara o trabalho avaliado). Reações diversas a uma cena peculiar. O primeiro
10
agenciamento de atores em um novo campo; sua atitude deliberada de fazer parte de...; a
resposta por parte daqueles que ―representam‖ a interdisciplinaridade e tem a potencialidade
de conformar determinadas práticas nos moldes aceitáveis. Há um jogo de demarcação de
práticas legítimas e ilegítimas, de enunciação de discursos sobre alguma coisa. A justificativa
se da por uma relação mais ―limpa‖, mais digna, entre sujeito e objeto; por isso a retratação.
O que temos aqui? Evidentemente, a dinâmica de produção de conhecimento. Mais
atentamente, a produção de conhecimento científico num espaço (autonomeado) heterodoxo.
Do compromisso curricular de apresentação de um ―contexto‖ que justificaria a prática
interdisciplinar à hesitação em demarcar determinada postura como um ―enquadramento
científico‖: uma certa ideia de Ciência e, em sentido lato, de conhecimento, parece estar em
suspeição.
O devir científico interdisciplinar não poderia demarcar-se? Delimitar maneiras
práticas de conduzir a sua produção de conhecimento?
Houve neste caso uma iniciativa de dar voz ao objeto. Atentar a um artifício de poder
que limita e delimita o objeto (ainda que este, como sujeitos, longe daquele recinto nem
saibam que teriam as suas vozes caladas por um simples trabalho de conclusão de disciplina).
De maneira distinta, houve uma atitude deliberada, pelo espaço e pela situação, de delimitar e
marcar determinados tipos de práticas científicas. Mas o meu interesse se revela neste
desconforto-justificado, de uma expressão ―legítima‖ do fazer científico calcado no direito do
objeto.
Por hora vejo uma ciência em vias de constituição, valendo-se do direito daqueles que
estão fora dela, mas que são sua razão de ser, para distinguir a boa ciência da má ciência. A
demarcação da relação sujeito-objeto, que busca demarcar a si mesma neste espaço que busca
sentidos outros para o devir científico. Pergunto-me então, o que faz demarcar e o que o
demarcar faz fazer?
11
Introdução
Com esta introdução, quero explicitar e finalizar a primeira parte do experimento a que
esta monografia se propõe. Compreender o processo de construção do conhecimento que se
julga científico. Em outras palavras, busco entender os elementos que fazem com que um
dado discurso específico passe a revestir-se de autoridade sobre alguma coisa. No presente
caso, faço circular um referente escrito (a monografia) sobre determinado conjunto de práticas
de produção do conhecimento científico e seu movimento de institucionalização e progressivo
reconhecimento de autoridade sobre seu objeto.
Procuro apresentar alguns elementos da estratégia de produção da autoridade do
conhecimento científico em um campo relativamente novo na comunidade científica
brasileira. Trata-se de pensar o campo de produção do conhecimento interdisciplinar,
especificamente nas relações entre meio ambiente e desenvolvimento social. Este campo de
produção intelectual tem o início de suas experiências a mais ou menos vinte anos e possui
marcos importantes de institucionalização a mais ou menos dez anos. Para fins da composição
do plano de fundo sob o qual estas práticas passam a emergir, importa que se saiba que tem
fortes relações com os discursos ambientalistas tanto no âmbito internacional quanto no
âmbito nacional.
Nos últimos cinqüenta anos, os problemas referentes ao modelo de desenvolvimento
socioeconômico das modernas sociedades capitalistas e seus respectivos modos de exploração
dos recursos naturais do planeta foram alvo de críticas veementes por parte de pesquisadores,
ambientalistas e movimentos sociais dos mais diversos matizes. Estas problemáticas foram
progressivamente incorporadas em uma agenda política internacional com marco na
conferência de Estocolmo (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento Humano) em 1972 que resultou na criação do PNUMA (Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente), a primeira agência global voltada para as questões
ambientais, com os objetivos de monitorar e recomendar medidas de desenvolvimento social
com equilíbrio ambiental. No Brasil, uma série de iniciativas da tradução destas problemáticas
para o meio acadêmico, a fim de produzir reflexões e propor caminhos para as questões do
desenvolvimento social e equilibro ambiental, fizeram emergir programas de pesquisa e
formação profissional diferenciados. Suas estratégias de produção do conhecimento, como já
disse, são interdisciplinares e seus recortes de pesquisa estão nas relações entre meio ambiente
e sociedade, com enfoque para os problemas do desenvolvimento social.
12
Começa, assim, um movimento de diferenciação no interior do campo científico
brasileiro, que terá uma série de conseqüências para os modelos organizacionais e
institucionais que regulam os modos de produção do conhecimento. Estes escritos procuram
mapear alguns movimentos deste processo. O texto só foi possível devido à minha inserção
em uma pesquisa mais ampla (iniciação científica), de caráter coletivo, que tem como objetivo
aventar quais são as concepções de natureza e desenvolvimento social que emergem no
interior destes programas de pós-graduação que compõem o campo interdisciplinar em meio
ambiente. Minha contribuição, acredito, é menos o desvelamento de quaisquer novidades dos
problemas enfrentados pelos atores neste longo processo de institucionalização do que uma
reunião, num mesmo espaço, das diversas instâncias pelas quais deve passar uma prática que
busca incorporar-se com identidade própria, num espaço institucional marcado por modelos
rígidos de produção e avaliação do conhecimento científico.
Além do mais, trata-se de propor uma reflexão minha sobre um processo relacional de
produção do conhecimento (interdisciplinaridade/meio-ambiente), de modo que este texto
represente o produto final de uma relação de conhecimento sobre uma outra relação de
conhecimento. Procurei explicitar – em seções especificas intituladas de exorcismos, ou
mesmo no decorrer do texto – minhas próprias condições de produção do conhecimento, a fim
de propor um vínculo com o próprio objeto, no qual o mesmo contribuísse para a reflexão de
minhas próprias estratégias de produção e legitimação do conhecimento, ao passo que
procurava fazer o mesmo inversamente.
É em certa medida por isto que procurei dividir o texto que se segue em duas partes,
ainda que a ordem das reflexões e questionamentos deste texto não tenham sido em minha
trajetória os mesmos que apresento agora num quadro sucessivo e progressivo. Assim, na
primeira parte, no capítulo um, tratei de refletir sobre a minha posição, enquanto aspirante a
cientista social, e as condições necessárias à produção da autoridade de meu próprio discurso.
É por isso que considero a escrita desta introdução e a finalização desta monografia como a
primeira parte da experiência de produção do meu discurso sobre o conhecimento. Ele se
completará à medida que o texto circule na leitura de outros, nas instâncias de avaliação pelas
quais terá que passar e etc.
Embora esta percepção sobre o meu trabalho não estivesse clara para mim no começo
de sua escrita, iniciei o capítulo buscando refletir sobre a sociologia do conhecimento.
Especificamente a sociologia do conhecimento científico de David Bloor, Pierre Bourdieu e
13
Bruno Latour. Analiso, aí, o que vem a ser a sociologia do conhecimento e quais são suas
conseqüências para a constituição de sua autoridade em relação ao seu objeto, e da autonomia
tida por seu objeto em relação à sua autoridade sociológica. Apresento, assim, os paradoxos
provocados pelo intento de se estabelecer as condições sociais de produção do conhecimento
e quais são as alternativas, dos três autores, de sua solução.
Na segunda parte, estabeleço em dois capítulos uma estratégia de escrita que busca
intuição nos estudos sociais sobre a ciência; Science Studies, a qual prevê que os estudos
sociológicos sobre a ciência não devem reter-se no contexto de suas produções e sim partir de
um continuum onde circulam, conteúdo do conhecimento e sociedade. No capítulo dois trato
de apresentar, a partir de um programa-referência (MADE/UFPR1), os desdobramentos
institucionais e contextuais que, associados às práticas de produção do conhecimento
interdisciplinares, conduzem à adequação e incorporação dos modelos interdisciplinares de
organização do conhecimento no interior de um campo científico disciplinar. Deste crescente
movimento de diferença, no capítulo três traço alguns eventos importantes para a
institucionalização das práticas e sua crescente afirmação de autoridade. Passo por uma
descrição dos Grupos de Trabalho da ANPPAS (Associação Nacional de Programas de Pós-
graduação em Ambiente e Sociedade), e pelo momento de incorporação das práticas
interdisciplinares em uma agência de avaliação, regulação e fomento da produção científica –
a CAPES.
Ao final, identifico uma ambivalência entre as características institucionais necessárias
ao reconhecimento e legitimação do campo interdisciplinar, e a potência transformadora que
carrega a incorporação da sua problemática no interior da academia. Suas modalidades de
avaliação e circulação do conhecimento, necessárias à institucionalização, tensionam o
próprio modelo de avaliação que a institucionaliza. Podendo, enfim, pelo caráter que a
qualificação de seu produto possuir, ter a potência de transformar os regimes de produção,
avaliação e circulação do conhecimento, ou simplesmente se adequar às condições
institucionais que a acolhem.
1 Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR
14
Primeiro exorcismo – Justificativa
Iniciar um trabalho monográfico é sempre muito custoso, em termos existenciais, para
o indivíduo que pretende submeter-se à apreciação daqueles que, ele deseja, sejam seus pares.
Ainda que possam dizer que há um longo caminho percorrido de aproximação com
determinados temas e adequação de interesses a condições adversas que facilitariam a
produção monográfica, o fato é que conduzir um trabalho que disserte sobre um tema
específico destinado a destinar a apreciação que se possa fazer daquilo que o indivíduo é,
enquanto aspirante ao reconhecimento dos pares, carrega sempre um tanto de angústia
misturada com hesitações e demasiada vontade fazer. Aqui, o fazer faz ser, ainda que
possamos delimitar as condições que significam o que é esse ser que faz o fazer. Afinal, trata-
se de fazer um trabalho de conclusão de curso em ciências sociais.
A introdução que precede este capítulo não traduz aquilo que este trabalho está sendo.
Ali, conduzi(rei) um texto retrospectivo. Não, ela não está escrita no momento em que teço
estes comentários. Não a escrevi ainda por dois motivos: pela impossibilidade de visualizar a
imagem completa das relações conceituais e empíricas que esta reflexão tem suscitado, e pela
grande dificuldade de construir um caminho, gradual, que me sirva de contexto/justificativa
das relações teórico/empíricas que pretendo estabelecer. Eis o ponto: justificativa. Transportar
um conjunto de vínculos que nos traduzem ao domínio do necessário. Hesito em dispor
historicamente o meu objeto – como o fazem geralmente os trabalhos monográficos – pois ele
mesmo constrói a sua história a partir de sua perspectiva retrospectiva. Aqui penso com
Deleuze: ―A história tão-somente traduz em sucessão uma coexistência de devires‖ (1997).
Como pretendo compreender o devir de meu objeto, tenho que ligeiramente distingui-lo da
relação que esta própria situação (a monografia) me impõe, admitindo a coexistência e
propondo uma relação. ―Essa relação é uma relação de sentido‖, ou, ―uma relação de
conhecimento‖ (quando a prática se pretende a ciência), como comenta Eduardo Viveiros de
Castro ao referir-se à prática do antropólogo como ligeiramente diferente da prática do nativo
(2002:113).
Tendo a convicção de que o trabalho monográfico é um constructo escrito para dar
conta de determinado tema, opto por deixar, antes de cada capítulo, algumas linhas de caráter
reflexivo; na verdade um exercício de auto-exorcismo, para marcar os labirintos mentais que
tenho estado a percorrer neste processo. Se, por ventura, o leitor encontrar nestas páginas
redundâncias, ou caminhos que poderiam ser percorridos de outra maneira, não os veja como
15
meras falhas, mas como vestígios da dificuldade de construção do próprio trabalho e como
uma intenção deliberada de apresentá-los como um mapa do meu próprio caminho. Se saberei
chegar ao final apresentando o caminho de forma mais ou menos clara não sei dizer. Porém,
devo acrescentar que de minha parte o caminho tem sido percorrido apaixonadamente.
*****
Nos últimos vinte anos têm emergido, no campo científico brasileiro, programas de
pós-graduação com propostas diferenciadas; a saber, interdisciplinares. O foco destes
programas de pós-graduação é variado, e o que compete a este trabalho é voltar-se sobre
programas que tenham como foco a interface natureza-sociedade.
A peculiaridade destes programas está, a meu ver, na composição do seu próprio
objeto. Notadamente, estas novas abordagens têm se contextualizado em relação à crise
ambiental pela qual temos passado. Neste sentido, em sua maioria, buscam produzir reflexões
acerca da relação entre desenvolvimento social e conservação ambiental. Desta relação se
admite a exigência de abordagens plurais na constituição de um objeto de pesquisa. E é deste
ponto que advém o meu interesse.
A reconfiguração de um conjunto de práticas no campo científico parece traduzir a
necessidade de dar conta reflexivamente dos processos decorrentes da problemática ambiental
– no momento em que passa a ratificar a existência da crise e ajuda a construí-la –, ao passo
em que subsume a problemática à exigência de novas maneiras de construção do
conhecimento. Assim, a produção do conhecimento interdisciplinar na interface natureza-
sociedade me aparece como um ―novo‖ modo de fazer ciência, e o processo de diferenciação,
institucionalização e autonomização no interior do campo científico é sintomático.
Como pensar estes elementos? Como transformá-los num objeto? O meu interesse se
volta a uma concepção de produção de conhecimento que advém destas relações. Se, por um
motivo qualquer, o meu interesse estivesse mais na dita crise ambiental, e para tanto eu
pretendesse promover uma reflexão sociológica sobre o tema, seria provavelmente arrastado a
uma discussão epistemológica dos limites disciplinares para o trato com temas dessa natureza.
Provavelmente, não conseguiria me desvencilhar de uma premente tomada de posição em
relação à necessidade ou não de uma abordagem interdisciplinar para o trato com questões
sócio-ambientais.
16
No entanto, este não é o ponto no qual pretendo começar a reflexão. O meu interesse é
justamente compreender qual a imagem do conhecimento que emerge da relação entre as
práticas interdisciplinares e o seu objeto. Veja-se que, do primeiro modo, eu não me furtaria
de produzir uma reflexão epistemológica, porém esta seria menos um enfoque no processo de
produção do que uma justificativa para a conivência ou não com determinado tipo de práticas
de produção do conhecimento. Estabeleço, portanto, uma relação com outra relação.
Para onde me leva esta relação que pretendo estabelecer? Quais são as condições
possíveis para a apreensão da relação que se dá entre produção interdisciplinar e seu objeto
(ambiente/sociedade)? O que preciso fazer para compreender esta relação?
Uma possibilidade, próxima da qual indiquei mais acima, é tomar para mim o discurso
dos praticantes, não me furtando do tom apologético. Outra possibilidade, devido à minha
posição enquanto cientista social, é a de apenas produzir uma explicação sociológica da
emergência do objeto (crise ambiental) e das próprias práticas interdisciplinares. Porém com
isso me encontraria num impasse. Os próprios atores já fazem isso, alias o que justifica a sua
prática é uma crítica à degradação ambiental através de diversos matizes científicos,
delineando assim um objeto, e a crítica a uma ciência (reducionista), em certa medida
responsável pela crise. O discurso dos agentes se pretende à ciência, portanto, a sua
autoridade de dizer sobre as condições de sua emergência está em pé de igualdade com a
minha, e quiçá de maior autoridade, pois é mesmo a razão de ser de suas práticas. O que fazer
então quando seu objeto possui autonomia de dizer a si mesmo a autoridade de dizer aos
outros as razões de sua própria razão?
Devo tomar cuidado pois, quando o objeto se pretende à ciência, o resvalo no discurso
apologético pode ser fácil. A relação que busco estabelecer é outra. A minha aproximação se
delineia nos moldes de uma sociologia do conhecimento, mas precisamente uma sociologia do
conhecimento interdisciplinar.
Agora, creio eu, possuo certa autonomia ao explicitar o tipo de relação que procuro
estabelecer com o meu objeto para conseqüentemente passar a evidenciar a que lugares esta
relação me levará, e quais as conseqüências disso tanto para a minha própria prática quanto
para a prática de meu objeto.
Como a sociologia, ou as ciências sociais, devem abordar o tema do conhecimento
científico? Como uma abordagem sociológica pode contribuir para uma arriscada pergunta
17
que a minha relação com o objeto me impõe, a saber: qual é a ideia ou imagem de ciência ou
conhecimento científico que emerge no interior de práticas interdisciplinares na interface
ambiente-sociedade?
O primeiro passo, acredito, é tratar de pensar a relação que estabeleço com um
conjunto de práticas de produção do conhecimento. Neste vínculo passo a estabelecer uma
relação de conhecimento com um objeto que se constitui numa própria relação de
conhecimento que o faz dizer de si, que é esta relação de conhecimento aquilo que o
diferencia e o identifica. Julgo necessário, então, pensar qual o tipo de relação de
conhecimento que a sociologia faz ao vincular-se a outros conjuntos de práticas de relação de
conhecimento. O que é o estudo sociológico do conhecimento científico e quais são suas
conseqüências?
18
A sociologia pelo avesso: paradoxos da explicação social do conhecimento
O problema da análise sociológica do conhecimento
Podemos considerar que a Sociologia do Conhecimento tem por objetivo identificar,
conhecer, explicar e validar os nexos existentes entre as ―condições sociais‖,
posicionadas historicamente, e as produções culturais de atores individuais e
coletivos oriundas da interação de conteúdos cognitivos desses atores com a própria
realidade coletiva (tipos de instituição, crenças, doutrinas, racionalidades sociais).
(RODRIGUES JÚNIOR, 2002:115, grifos meus)
A sociologia do conhecimento é capaz de suscitar pelo seu próprio nome reflexões,
dúvidas, paixões, enfim, interesses dos mais diversos. Falar sobre as condições sociais que
delimitariam a emergência de crenças, doutrinas, instituições e etc. tem uma potência
demolidora que é capaz de despertar a fúria dos defensores do pensamento puro. Karl
Mannheim foi um dos primeiros a estabelecer esta sub-disciplina da sociologia enquanto um
programa de pesquisa. Buscou tecer explicações sociais que enquadravam em determinados
períodos históricos estilos de pensamento que por sua vez marcavam a ―cristalização‖ da
realidade social. Como no caso em que buscou estabelecer diferenças sociais que
conformavam tipos de ação política, como o pensamento conservador. Entretanto, Mannheim
não restringiu a sociologia do conhecimento ao estudo da ação política.
Em outros períodos, a religião pode ter sido o agente cristalizador e o assunto só
requer uma explicação mais longa para mostrar porque nesse período a política era
tão decisiva na formação dos estilos de pensamento. Apesar disso, entretanto, seria
errado delinear uma distinção nítida entre política e filosofia e considerar o
pensamento político como socialmente determinado, mas, não a filosofia ou outros tipos de pensamento. Tais distinções entre filosofia, política, literatura, etc., existem
somente nos livros e não na vida real, já que, sendo dado que todas elas pertencem a
um mesmo estilo de pensamento, devem todas imanar de um centro comum. Se se
penetra com profundidade suficiente, descobre-se que certas suposições filosóficas
formam a base de todo o pensamento político e, de forma similar, em qualquer tipo
de filosofia, está implícito um certo padrão de ação e uma abordagem da realidade
definida.(MANNHEIM, 1986:89)
Assim, a sociologia seria capaz de relativizar determinadas categorias sociais que
conformariam a realidade. Ora, a própria ideia de uma sociologia do conhecimento é
paradoxal. Um conhecimento sobre as condições sociais do conhecimento. Ganhamos assim
um efeito de conhecimento capaz de dinamitar quaisquer pretensões de um pensamento
absoluto. Não obstante, Mannheim hesita em generalizar suas proposições sociológicas, ainda
que estas colocassem problemas fundamentais para a epistemologia e teoria do conhecimento
na medida em que subordinava a emergência de determinado conhecimento a uma relação
direta com as condições sociais que o delimitavam, pondo em questão a validade e
objetividade da produção do conhecimento:
19
[...] os problemas epistemológicos foram evitados ou colocados num segundo plano.
É possível tal reserva de nossa parte e é mesmo desejável tal isolamento de um
conjunto de problemas, na medida em que nosso objetivo seja somente o de uma
análise desinteressada de determinadas relações concretas, sem distorções oriundas
de preconceitos teóricos. (MANNHEIM, 1982, apud RODRIGUES JÚNIOR,
2002:118)
Houve uma preocupação, por parte do autor, de evitar o embate com o positivismo
lógico do Circulo de Viena, dominante no período anterior à segunda guerra. Tinha-se um
problema alcançado pela sociologia do conhecimento – o da validade e objetividade do
conhecimento – que adentrava aos domínios que antes eram restritos à epistemologia. Em
ultima instância era a sociologia do conhecimento que seria a única disciplina com autoridade
suficiente para estabelecer este tipo de análise. Porém, como salienta Lamo de Espinoza e
Colaboradores apud Rodrigues Junior (ibdem) o ―Círculo de Viena solucionou este problema
distinguindo – com Hans Reichenbach – o contexto social da descoberta do conhecimento e o
contexto de sua justificação, ou seja, distinguindo entre a gênese dos conhecimentos e a sua
validade‖.
Esta divisão de papéis é importante para a reflexão deste trabalho. O domínio
concernente à sociologia do conhecimento é apenas o contexto de descoberta do
conhecimento. As conseqüências da produção de uma sociologia do conhecimento promovem
uma distinção entre a ―naturalização‖ dos estilos de pensamento por parte dos diferentes
atores sociais, mas não produzem um efeito de conhecimento sobre o conteúdo da produção
científica2. Restringe-se a explicar a realidade social e o contexto de descoberta; como uma
literatura que contextualizasse fenômenos sociais a uma coerente produção de fatos pela
ciência, à qual a avaliação deveria ser restrita aos cientistas, filósofos da ciência e
epistemólogos.
Desse modo, pode-se perceber a restrição de domínios de aplicação tanto da
sociologia como da epistemologia como uma tentativa de demarcar a autonomia e a
autoridade, de dizer da realidade o que ela é e o que deve ser (o tom propositivo das duas
posições não deixam de ter um caráter prescritivo e explicativo, tanto na epistemologia quanto
na sociologia). Bem, o que quero salientar é o duplo movimento concernente à produção do
conhecimento científico e a desestabilização provocada pela inversão deste movimento. Em
outras palavras, há uma relação de delimitação de práticas de produção do conhecimento e de
limites de aplicação destas práticas. A explicação da gênese social dos tipos de pensamento
2 O interesse de Mannheim em compreender as condições sociais que fazem emergir determinada posição política, como no
estudo do pensamento conservador denota essa relação de conhecimento, porém, aí o sentido do conhecimento ganha
autoridade de dizer (pela diacronia) que o pensamento é delimitado pelas condições sociais, transformando o domínio do que
é necessário para a ação dos sujeitos em contingências históricas. Os usos políticos da sociologia do conhecimento tornam-se
patentes, ainda mais, se reconhecermos na obra mannheimiana a tentativa de ―compreender o desenvolvimento e as implicações da ideia de intervenção racional no processo social‖ (FORACCHI, 1982:10, grifos meus).
20
por parte da sociologia e a explicação das condições de produção e validade do conhecimento
científico por parte da epistemologia. Um movimento para dentro que se auto-regula e um
para fora que regula a experiência real.
Não obstante, este movimento feito pela sociologia, se generalizado, pode travar o
movimento epistemológico. Então, a divisão de domínios. Temos sim contextos de
descoberta, mas estes nada têm a ver com a lógica e a objetividade do conhecimento que a
epistemologia pode controlar3.
A virada sociológica, ou melhor, a insistência em continuar essa passagem de um
domínio a outro ganhou novo fôlego, no início da década de 60, com o trabalho fundamental
de Thomas Kuhn A estrutura das revoluções científicas (2006). A obra deste autor modifica
substancialmente a ideia que se podia ter tanto das práticas científicas quanto da própria
ciência. Apresentar a lógica do desenvolvimento científico tendo como analogia a ideia de
revolução trouxe inúmeras questões para a problemática da produção do conhecimento. A um
só tempo Kuhn trata das relações entre teoria e empiria; da importância da organização da
comunidade científica para o funcionamento da ciência; dos caracteres cognitivos que
delimitam o proceder científico; e da própria noção de progresso científico no que concerne à
cumulatividade da ciência – para Kuhn a ciência se faz por rupturas.
Para tratar destes temas, Kuhn desenvolve o conceito de paradigma e de ciência
normal, que em princípio podem parecer circulares, como comenta o próprio autor: ―Um
paradigma é aquilo que os membros de um comunidade compartilham e, inversamente, uma
comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma (ibidem: 221)‖. No
entanto a ideia consiste em subsumir um conjunto de teorias, metodologias e padrões
científicos à noção de paradigma ao mesmo tempo em que se definem por estes mesmos
termos a ideia de uma ciência normal, que ao operacionalizar o paradigma estabelece um
conjunto de perguntas ―quebra-cabeças‖ (teorias) a serem respondidos por determinações
protocolares (metodologia) no interior de uma comunidade organizada em torno destas
mesmas questões.
3 Aliás, esta tentativa de controle e demarcação foi o que fez Karl Popper em seu livro A Lógica da Descoberta Científica e
em outras de suas obras. Com uma crítica ao modelo indutivista de ciência ele estabelece como lógica de desenvolvimento
da produção científica o falsificacionismo. Onde a ciência seria estabelecida por conjecturas experimentais e refutações
destas conjecturas. Não há uma delimitação de que o conhecimento científico é verdadeiro, antes porém, este é objetivo dentro dos critérios de sua objetividade. O progresso se daria de maneira que o conhecimento científico pudesse ser refutado
por outras condições experimentais, mas não invalidado, pois nas condições anteriores poderia exercer sua autoridade. No
pensamento de Popper há uma concepção metafísica de um universo indeterminado. Porém, o autor salienta que está
preocupado com a lógica da produção do conhecimento e sua verificação em condições específicas e refutáveis evitando assim o trilema de Münchhausen o regresso ad infinitum, a escolha por arbitrariedades (psicologismo) e o raciocínio circular.
21
O olhar de Thomas Kuhn, no entanto, se volta para os períodos de descoberta
científica, de inovação. É este recorte que produzirá a grande contribuição e a própria
inovação do pensamento Kuhniano para a história e filosofia da ciência.
Ao admitirmos a ideia de paradigma e de ciência normal compreende-se o conjunto de
práticas cotidianas de pesquisa científica, voltadas para problemas específicos, tendo
protocolos de pesquisa e prospecções a respeito do tipo de resultados esperados e previsto
pelo paradigma em voga. Ora, é no bojo de uma ciência normal que se conjuram as
revoluções científicas. Aquela ao estabelecer critérios, protocolos, necessários a resoluções de
determinados problemas-chave do paradigma, pode pela sua própria natureza experimental
trazer à tona, como dados experimentais, certas anomalias (ibidem: 77), elementos que não se
enquadram no paradigma vigente. Este estado de coisas faz a comunidade científica ou pelo
menos parte dela voltar-se à resolução desta anomalia; nesse período há uma tentativa de
―remendo‖ do próprio paradigma para que este comporte determinadas situações
experimentais.
Não obstante, esta lógica pode perpetuar-se à medida que surgem novos elementos
destoantes do tom explicativo do paradigma vigente. Então, consuma-se o momento de crise
paradigmática; haverá um conjunto de problemas postos que o paradigma vigente não é capaz
de solucionar e a comunidade científica volta-se inteiramente à tentativa de resolução destas
questões. Veja-se que este momento de não plausibilidade do paradigma vigente não implica
a sua falsidade, ele admite determinadas questões e supõe um conjunto possível de resoluções,
que por ventura podem originar a crise. É no período de crise que emergem outros
paradigmas, na tentativa de promoverem um conjunto teórico-metodológico que resolva as
anomalias e ao mesmo tempo restabeleça questões e protocolos de pesquisa.
E aqui reside a novidade do pensamento Kuhniano: a afirmação da
incomensurabilidade entre paradigmas. Esta postura advém da própria noção de paradigma
que subsume a natureza objetiva do conhecimento científico a posturas teóricas e
metodológicas específicas, estas por sua vez compartilhadas e respaldadas pela própria
comunidade científica. Este aspecto social da prática científica converge para uma abordagem
cognitiva do proceder científico; aqui o cientista vê o que foi treinado para ver4.
4 Esta ideia é bem expressa na famosa passagem da experiência das cartas anômalas. ―Numa experiência psicológica [...]
pediram a sujeitos experimentais que identificassem uma série de cartas de baralho, após serem expostos a elas durante
períodos curtos e experimentalmente controlados. Muitas cartas eram normais, mas algumas tinham sido modificadas, como por exemplo, seis de espadas vermelho [...] Cada seqüência experimental consistia em mostrar uma única carta a uma única
22
Entretanto, no que se segue, em momentos de crise, existem dois ou mais paradigmas
que estabelecem critérios distintos de apreciação tanto da prática científica quanto das
questões que a norteiam. Não há uma instância superior à qual apelar para fazer prevalecer
determinado paradigma sobre os demais. A realidade não pode arbitrar em favor de um ou
outro paradigma; há, portanto, um afastamento por parte de Kuhn da proposta de uma
epistemologia positivista que admitiria certos ajustes entre a natureza tal como ela é e a teoria
científica. Conforme argumenta: ―Parece-me que não existe maneira de reconstruir expressões
como ‗realmente aí‘ sem auxílio de uma teoria; a noção de um ajuste entre a ontologia de uma
teoria e sua contrapartida ‗real‘ na natureza parece-me ilusória por princípio‖. (KUHN,
2006:256).
Esta constatação rendeu inúmeros adjetivos à explicação oferecida por Thomas Kuhn;
relativista, irracionalista e etc. Como então se operam as passagens de um paradigma a outro
nos períodos de revolução? Como o cientista é capaz de transpor a barreira cognitiva que o
seu olhar (norteado pelo paradigma) insiste em alimentar? Certamente, diriam os críticos, se
existirem tais rupturas e incomensurabilidades o apelo ao conhecimento tornar-se-ia
arbitrário, relativo. É que a proposta de Kuhn ao afirmar que em tempos de crise emergem
diferentes posições – que diferem tanto no quesito de como colocar questões quanto no
quesito de como julgar as soluções – incomensuráveis em seus critérios cognitivos, estabelece
uma instância que pode ser interpretada de dois modos – os quais irei discutir mais adiante: (i)
que quaisquer fatores externos incidem sobre a decisão a ser tomada e outra (ii) que admite a
autonomia da comunidade científica na escolha, ainda que esta escolha seja norteada por
valores diversos por parte de cada cientista.
[...] visto que nenhum paradigma consegue resolver todos os problemas que define e
posto que não existem dois paradigmas que deixem sem solução exatamente os
mesmos problemas, os debates entre paradigmas sempre envolvem a seguinte
questão: quais os problemas que é mais significativo ter resolvido? [...] essa questão de valores somente pode ser respondida em termos de critérios totalmente exteriores
à ciência e é esse recurso a critérios externos que – mais obviamente que qualquer
coisa – torna revolucionários os debates entre paradigmas. (KUHN, 2006:145)
O problema que se interpõem entre esses caracteres normativos (teórico-
metodológicos) dos paradigmas e dos valores que estes põem em jogo é a questão de serem
pessoa, numa série de apresentações cuja duração crescia gradualmente. Depois de cada apresentação, perguntava-se a cada
participante o que ele vira. A seqüência terminava após duas identificações corretas sucessivas. [...] Depois de um pequeno acréscimo no tempo de exposição, todos os entrevistados identificaram todas as cartas. No caso das cartas normais, essas
identificações eram geralmente corretas, mas as cartas anômalas eram quase sempre identificadas como normais, sem
hesitação ou perplexidade. [...] Seja como metáfora, seja por que reflita a natureza da mente, essa experiência psicológica
proporciona um esquema maravilhosamente simples e convincente do processo de descoberta científ ica.‖ (KUHN,2006.p.89,90 e 91)
23
estes mesmos paradigmas constitutivos de uma ideia de natureza. A dimensão da revolução
paradigmática alcança um status ontológico, onde o mundo muda com a mudança da teoria.
Obviamente, tais conclusões fazem aumentar o escândalo causado pela explicação
Kuhniana que dinamitaria um dos baluartes da ciência moderna; a saber, a crença na
acumulação progressiva de conhecimentos objetivos sobre o mundo. Agora nem o
conhecimento era absoluto nem a totalidade da nossa produção científica constituiria um
conjunto de saberes cada vez mais coerentes sobre as coisas. Esta inconsistência entre a
concepção ―moderna‖ de um conhecimento universal e cumulativo e a concepção de
desenvolvimento científico por rupturas incomensuráveis advém do fato do estudo histórico
ter contribuído para compreensão e, por conseguinte, distinção entre a história ―real‖ da
ciência e a história da ciência contada aos cientistas e leigos. As revoluções são invisíveis
àqueles que não passaram por ela, como salienta Kuhn:
Grande parte da imagem que cientistas e leigos têm da atividade científica criadora
provém de uma fonte autorizada que disfarça sistematicamente – em parte devido a
razões funcionais importantes – a existência e o significado das revoluções
científicas. [...] Quando falo em fonte de autoridade, penso sobretudo nos principais
manuais científicos, juntamente com os textos de divulgação e obras filosóficas moldadas naqueles. (ibidem: 175-6, grifos meus)
Para Kuhn ―uma confiança crescente nos manuais‖ era concomitante ―com a
emergência do primeiro paradigma em qualquer domínio da ciência‖ (Ibidem). E geralmente
o conhecimento, tanto dos leigos como dos profissionais, deriva da literatura destes manuais,
que reinterpretam com um conjunto lexical contemporâneo todo o conjunto de
desenvolvimento de conceitos historicamente situados.
Agora, a operação que historiciza a produção do conhecimento tem implicações
homologas à propiciada pelo movimento – que adentra o domínio da epistemologia –
esboçado pela sociologia do conhecimento. E o não reconhecimento das rupturas, apontadas
por Kuhn, é justificado pela obliteração dessa passagem por parte da autoridade exercida no
que poderíamos chamar de processo de reprodução científica, que joga com o fomento de
currículos, manuais, divulgação científica e etc. O texto de Kuhn retoma a ideia de um
conhecimento historicamente situado, ao mesmo tempo em que conduz sua explicação
fixando a atenção no processo coletivo de manutenção e reprodução da prática científica,
convergindo para uma argumentação que parece afirmar certa exterioridade das vias que
produzem os processos cognitivos do cientista em sua prática. Contudo, a dinâmica que
conduz por um viés historicista a explicação de gênese do conhecimento, não mais se divide
24
em domínios específicos (sociologia e epistemologia). Thomas Kuhn não pretendia fazer uma
sociologia do conhecimento, agora o seu trabalho podia reabrir os caminhos traçados pela
sociologia. Porém as interpretações sobre seus escritos são difusas. O certo é que a partir da
publicação da Estrutura das revoluções científicas o debate ganha novo fôlego e se estende
até nossos dias.
Agora podemos retomar as duas dimensões interpretativas do trabalho de Kuhn, que
acredito, podem ser exemplificadas nas propostas de David Bloor e Pierre Bourdieu, ainda
que estes dois autores construam suas posições de maneira ligeiramente distinta e não
explicitem essa aproximação que pretendo fazer.
David Bloor e Pierre Bourdieu: simetria e campos de força
A problemática central na proposta de David Bloor é a questão de uma análise
sociológica dos conteúdos do conhecimento científico. Como vimos, em Mannheim há uma
intuição dessa possibilidade, pelos próprios atributos da sociologia do conhecimento, contudo
a demarcação de fronteiras entre a sociologia e a epistemologia se mantém. Em Kuhn há uma
retomada da questão ainda que não explicitamente por um viés sociológico. A fecundidade do
viés histórico em correlação com a noção de paradigmas incomensuráveis e a estrutura da
comunidade científica ocupa um papel preponderante.
A partir da década de 70, David Bloor, no que ficou conhecido como Programa Forte,
pretende dar continuidade ao movimento esboçado pela sociologia do conhecimento,
adentrando os domínios da epistemologia para o trato com o conteúdo do conhecimento
científico. Para ele não haveria motivos para que a sociologia não se ocupasse da ciência. Os
que assim o fazem, diz ele, traem o ponto de vista de sua disciplina. Retomando Durkheim,
ele argumenta que poderíamos ter como fonte de inspiração As formas elementares da vida
religiosa, obra que demonstraria como o sociólogo pode adentrar nas profundezas de uma
forma de conhecimento. Os que, contrariamente, pensam que esta proposta seria inviável,
admitem, segundo Bloor, que a ciência é um caso especial; fato este que, se ignorado, nos
levaria fatalmente a absurdos e contradições. Estes argumentos denotam uma posição
filosófica a priori e revelam, como temos tentado apontar até aqui, razões outras para a
delimitação das práticas científicas; emerge uma certa dimensão valorativa (de autoridade)
no movimento de demarcação e expansão do proceder científico. Para David Bloor, portanto,
a relutância por parte dos sociólogos em reduzir o seu escopo de investigação a análises
institucionais seria injustificada do ponto de vista da sociologia do conhecimento.
25
Desse modo, em seu livro Conhecimento e Imaginário Social (2009) temos as
características que devem possuir um criterioso programa de pesquisa em sociologia do
conhecimento científico. O famoso Programa Forte. Ao propor uma explicação sociológica
do conhecimento científico, Bloor afirma que esta explicação tomará um caráter naturalista.
Ou seja, toma como natural o processo de atribuição de significados às coisas. Aqui operam
as famosas formas de classificação que outrora Durkheim e Mauss usavam para compreender
o sistema classificatório das sociedades ditas primitivas (2001) Ao tomar a ciência como
instituição que atribui significados às coisas e as classifica, ordenando – na forma ocidental –
o mundo, Bloor admite a empresa científica como produto de determinações sociais; logo, a
origem dos significados atribuídos pela ciência pode ser encontrada na cultura na qual está
imersa.
É por tratar a sociedade como ponto de origem de quaisquer sistemas classificatórios
que ele abre passagem a domínios outrora restritos à filosofia. O conteúdo do conhecimento
científico é social, pois é socialmente que ele se constitui e se torna ratificado. Como na
celebre passagem de Marcel Mauss sobre a magia:
É porque o efeito desejado por todos é constatado por todos que o meio é
reconhecido apto a produzir o efeito; é porque desejavam a cura dos doentes febris
que a aspersão de água fria, que o contato simpático com uma rã, pareceram aos
hindus, que recorriam aos brahmans do Atharva Veda, antagonistas suficientes da
febre terçã ou quartã. Em última instância, é sempre a sociedade que se paga, ela
própria, com a moeda falsa de seu sonho. A síntese da causa e do efeito produz-se
apenas na opinião pública. Fora dessa maneira de conceber a magia, não se pode
representá-la senão como uma cadeia de absurdos e de erros propagados, da qual se
compreenderia mal a invenção, e jamais a propagação. (MAUSS,2003:159)
Neste sentido, para que a objetividade da explicação sociológica possa tornar-se
verificável, cabe aplicá-la tanto à ciência como à não ciência, ou seja, produzir uma
explicação geral da maneira pela qual o conhecimento é construído. Daí, a concepção do que
vem a ser conhecimento não mais se restringe à maneira da filosofia clássica; conhecimento
como uma ―crença verdadeira – ou, ainda, crença verdadeira justificada –, para o sociólogo o
conhecimento é tudo aquilo que as pessoas consideram conhecimento‖ (BLOOR, 2009:17-8).
Cabendo ainda uma breve distinção entre conhecimento e crença, esta permaneceria então no
domínio do ―idiossincrático‖ e do ―individual‖ (idem).
A extensão do significado do termo conhecimento dará autonomia para que a
sociologia do conhecimento possa transpassar as restrições de domínio da epistemologia e
tornar-se-á condição fundamental para que a sociologia do conhecimento possa se estabelecer
de modo autônomo, cabendo a ela generalizar o seu corpus explicativo a todos os domínios
26
sociais. Assim a ideia do programa forte passa a distribuir-se por pelo menos quatro eixos
temáticos, a saber: 1) Conexões entre macroestrutura social de grupos e a forma geral das
cosmologias que eles adotaram; 2) conexões entre desenvolvimento econômico, técnico e
industrial e o conteúdo de teorias cientificas; 3) conexões entre aspectos da cultura em geral
(não científicos) exercendo grande influência na criação e avaliação de teorias científicas; 4)
importância do treinamento e da socialização na condução da ciência. (Idem, 2009:19)
Segundo David Bloor, estes quatro eixos devem ser levados a cabo a partir de um
quadro metodológico que definirá a abordagem sociológica conhecida como Programa Forte:
1) Ela deverá ser causal, ou seja, interessada nas condições que ocasionam as
crenças ou os estados de conhecimento. Naturalmente, haverá outros tipos de
causas além das sociais que contribuirão na produção da crença 2) Ela deverá ser imparcial com respeito à verdade e à falsidade,
racionalidade e irracionalidade, sucesso ou fracasso. Ambos os lados dessas dicotomias irão requerer explicação.
3) Ela deverá ser simétrica em seu estilo de explicação. Os mesmos tipos de
causa deverão explicar, digamos, crenças verdadeiras e falsas.
4) Ela deverá ser reflexiva. Seus padrões de explicação terão que ser aplicáveis,
a princípio, à própria sociologia. Assim como a condição de simetria, essa é uma
resposta à necessidade da busca por explicações gerais. É uma óbvia condição de
princípio, pois, de outro modo, a Sociologia seria uma constante refutação de
suas próprias teorias. (BLOOR, 2009:21, grifos meus)
Estes princípios metodológicos carregam em si uma certa ideia de ciência que se
desdobrará à medida em que a sociologia expande o seu domínio de aplicabilidade
(autonomia/autoridade). Isto se dá pela inversão da direção do movimento científico em
relação ao objeto. Se antes a sociologia sustentava a sua autoridade e se distinguia de outros
discursos sobre o social pela sua capacidade analítica de apontar a gênese de estilos de
pensamento, ao mesmo tempo em que consolidava sua autonomia noutro domínio: o
científico, agora é este domínio científico, que antes lhe reiterava a autoridade de distinguir-se
em relação ao seu objeto, que se torna o próprio objeto. O primeiro passo é ampliar a noção
do que vem a ser conhecimento ao mesmo tempo em que se generaliza o seu ponto de origem,
a sociedade. Aqui, o primeiro princípio é realizado, a relação causal se apresenta
sumariamente como social – e num segundo momento, psicológica ou cognitiva, o que ainda
assim, não subverte a preeminência do social.
O segundo e o terceiro princípios são gêmeos. O princípio de simetria é fundamental
tanto para entendermos o programa forte como para a composição do problema deste
trabalho. Quando Bloor afirma que a explicação sociológica deverá ser imparcial ante a
verdade e a falsidade e deverá submeter estas noções a um mesmo estilo de explicação, ele
recomenda um determinado tipo de relação entre sujeito e objeto, que reafirma a autoridade
27
da sociologia, pois a generaliza e nivela, ao menos intelectualmente, posições que se
encontram socialmente hierarquizadas, verdade-erro, racional-irracional e etc. O descompasso
se dá em relação à autonomia do conhecimento científico. Ao propor uma explicação social
equivalente tanto para a verdade quanto para o erro, o movimento feito pela sociologia
transgride o domínio científico, solapando o movimento interno que produz a própria razão de
ser da ciência.
Esta razão de ser da ciência está arraigada, segundo Bloor argumenta, numa noção
naturalista e teleológica (BLOOR, 2009:22-9) do conhecimento, e à qual ele opõem o
programa forte. Este naturalismo é dotado de um certo finalismo filosófico, que admite na
logicidade e racionalidade do conhecimento o seu critério de verdade e objetividade; ou seja,
a razão, pela sua própria natureza conhece aquilo que as coisas são. Esta concepção não
admite a causalidade social como explicação a não ser em casos de patentes desvios. A razão
é auto-explicativa, deixando a si, ainda, a explicação de seus desvios. Aqui recaímos na
divisão de domínios entre a epistemologia e sociologia. Bloor, citando como exemplo o
filósofo da ciência Imre Lakatos, diz que esta postura pretende relegar à sociologia o erro e os
desvios da ciência, visto que a filosofia e a própria ciência poderiam dizer a si mesmas o
porque do acerto.
O interessante é atentar para a relação que David Bloor atribui a estes dois pontos de
vista que ele considera metafísicos (idem: 28); o modelo teleológico e o causal. Em se
tratando de dois pontos de vista metafisicamente opostos parece a princípio que se deve
decidir sobre qual é o verdadeiro. Como no caso dos paradigmas incomensuráveis. No
entanto, no programa forte a coexistência parece servir de controle, tanto heurístico quanto
filosófico. Segundo Bloor, os dois pontos de vista são interdependentes; para que se critique
um dos dois é necessário se postar na posição contrária. Internamente, os dois não parecem ter
inconsistências, embora quando vistos um pela lente do outro a inconsistência apareça. Assim,
Bloor busca uma anulação da crítica feita pelos adeptos da postura teleológica, se
aproximando da incomensurabilidade. Porém, para que ele possa efetivar a estratégia do
programa forte, foi preciso olhar com olhos sociológicos a explicação teleológica. As razões
para que se mantenha a escolha pelo programa forte, diz Bloor, são metodológicas, pois ―em
seus próprios termos, o modelo teleológico é, sem dúvida, perfeitamente consistente e talvez
não haja razões lógicas para alguém preferir a abordagem causal à concepção finalista.‖
(2009:28).
28
Mas, como temos dito, ao apontar a explicação sociológica para a construção do
conteúdo do conhecimento científico o programa forte desvela um mecanismo de autoridade;
no caso da ciência, a natureza ocupará um papel central na atribuição do que é ou não é
conhecimento válido.
Uma vez que se admita que a explicação depende de avaliação prévias, os processos
causais que se supõe ocorrer no mundo serão reflexos dos critérios dessa avaliação.
Os processos causais serão entalhados com base no padrão de erros identificados,
pondo em relevo a forma da verdade e da racionalidade. (BLOOR, 2009:28)
À natureza é reservada uma espécie de sanção moral que a um só tempo endossa e
eleva o conhecimento científico e por oposição rebaixa ao erro aquilo que não se enquadra
nos critérios estabelecidos. É claro que simetricamente a sociologia ocupa posições análogas,
e também pressupõem aquilo que quer explicar, à sociedade (naturalizada) é reservada a
sanção neutralizadora, que equaliza e, portanto relativiza aquilo que a concepção oposta
naturaliza e hierarquiza.
Contudo essa posição conduz a um paradoxo em dois níveis e que em grande medida
são os paradoxos deste trabalho. Primeiro a relação de hierarquia que a sociologia estabelece
em relação ao conhecimento científico no momento em que se põem a estudá-lo. E à qual
Bloor tenta furtar-se tornando incomensuráveis as posturas ao mesmo tempo em que opera
uma divisão do trabalho, que se traduz num programa de pesquisa autônomo, mas que
depende do olhar contrário para consolidar a sua crítica.Neste nível a sociologia parece
ter,necessariamente, que estabelecer uma relação de autoridade para com o objeto ao mesmo
tempo em que desvela a relação de autoridade que este possui na autonomia de sua prática.E
em outro nível, agora filosófico, poder-se-ia dizer que a sociologia é uma refutação de suas
próprias explicações, ao que adentramos no ultimo principio metodológico. Ao produzir uma
explicação que retira do conhecimento o seu caráter absoluto, diluindo-lhe na multiplicidade
de contingências históricas, sociais, culturais e políticas, o sociólogo generaliza estas
impressões. Aqui, ao dizermos em uma proposição ―todas as proposições são relativas‖
passamos a tornar relativa a proposição que afirma a relatividade. Para não recair em um
raciocínio tautológico, David Bloor propõe que a sociologia deve ter como princípio de
sustentação uma reflexividade – um pouco diferente daquela de Bourdieu que veremos em
seguida – que seja capaz de explicar a sociologia pelos mesmos termos utilizados para
explicar o seu objeto.
29
O interessante é que Bloor ao mesmo tempo em que se diferencia da concepção
finalista de ciência com estes quatro princípios metodológicos ele reafirma os valores que a
ciência –nesta concepção finalista – diz possuir; generalidade, neutralidade, causalidade e etc..
Ao situar o domínio de explicação do conteúdo do conhecimento científico nos
caracteres culturais sociais e políticos que compõem a sociedade o programa forte se distancia
do modelo teleológico. Afirmando, muito próximo de Kuhn, os determinantes externos dos
componentes do paradigma científico. Esta afirmativa pode ser vista como um afastamento do
pensamento de Kuhn ou ainda sua generalização, ao estender à sociedade os determinantes
cognitivos dos agentes. É aqui que o segundo paradoxo o retém, e traz a tona uma concepção
de ciência como única saída. Kuhn admite a impossibilidade de um juízo capaz de mediar a
incomensurabilidade de paradigmas; a exterioridade não poderia arbitrar fora de paradigmas5.
Bloor o faz do mesmo modo ao propor a causalidade e a simetria, tratando do mesmo modo a
verdade e o erro, ampliando a relação do conhecimento científico com outras formas de
classificação da realidade.
No entanto, o preço dessa generalização é o conteúdo fenomenológico que a
pressupõe, a sociedade como fenômeno, enquanto a ciência seria tomada como um
epifenômeno. Nesse momento entramos num profundo relativismo, que guarda um laço
estreito com uma arbitrariedade plena por parte da explicação sociológica. A saída é reafirmar
os valores científicos, ou seja reiterar a ciência neste seu processo de autonomização e
expansão de domínios, pela reflexividade, ao menos por parte da sociologia. Para tanto,
produz-se uma ligeira distinção entre termos; a tentativa de enquadrar a posição da sociologia
enquanto contraditória se reduziria a uma visão teleológica, aquela que opõem conhecimento
verdadeiro e falso. Para Bloor, o fato de que uma proposição seja determinada socialmente
não implica a sua falsidade, como ele admite ao citar Bottomore ―Se todas as proposições são
determinadas existencialmente e nenhuma proposição é absolutamente verdadeira, então esta
própria proposição, se verdadeira, não é absolutamente verdadeira, mas determinada em
termos existenciais (2009:36)‖. A sociologia estaria então na posição intermediária entre o
relativismo absoluto e a arbitrariedade plena, caberia a ela reconhecer que seu conhecimento
embora sistemático, não será jamais, absoluto. Daí uma concepção convencionalista de
ciência parece surgir ( e uma certa proximidade com Popper), onde operacionalizaríamos e
assentaríamos o duplo movimento de autonomia e autoridade da sociologia, porém
5 É neste momento que a filosofia Kuhniana torna-se uma via dupla. A interpretação inversa, restringiria à autonomia da
comunidade científica a autoridade de dizer quais são os problemas mais pertinentes a serem resolvidos, distanciando assim a influência social generalizada pela proposta do Programa Forte.
30
conscientes de que nossas convencionalidades não são trivialmente satisfeitas, pelo contrário,
naturalmente exigentes (BLOOR, 2009:75).
Ainda que esta convencionalidade seja ratificada para estabilizar o discurso
sociológico de suas próprias conseqüências, não me parece claro que a mera convenção
deixaria as demais ciências livres destas conseqüências relativistas. Lembremos que não é
apenas o fato do conteúdo do conhecimento e seus processos de validação sofrerem
influências culturais que relativiza o conhecimento. Mas, sobretudo, o atravessamento da
ciência por parte de forças sociais dos mais diversos matizes ( eixo nº2 do programa forte).
Que o acesso à realidade mesma é limitado, já sabemos desde Kant, que o mundo é aparência
sabemos desde Platão. A questão parece tomar um desvio. Ou as ciências esqueceram-se dos
limites cognoscentes apontados por inúmeras tradições filosóficas (ainda que na filosofia e em
grande parte das ciências naturais sempre imperasse o caráter puro das matemáticas), ou o
escândalo provocado pela sociologização toma um sentido mais amplo.
A sociologia atravessa o convencionalismo das demais ciências, transformando-as em
contingências ao mesmo tempo em que afirma o seu próprio caráter convencional e
contingente, porém autônomo. Parece-me que trazer o conhecimento científico ao domínio do
contingente, do convencional, não é o maior problema. Alias a parcialidade do conhecimento
científico sempre foi o mote da busca pela verdade. Ainda que existam discussões acerca da
acumulação progressiva do conhecimento ou da mudança ontológica provocada por rupturas
científicas.
Por que o escândalo? A crença na objetividade parcial do conhecimento não parece
incomodar aos cientistas. Porém a crença de que essa objetividade só é, por que só poderia
ser, ratificada socialmente fere os sentimentos. Equiparar a validade do conhecimento
científico a qualquer outra convenção social, como bruxaria, religião, ideologias diversas e
etc., provoca um estardalhaço. É que a explicação sociológica do conteúdo do conhecimento
apresenta as razões pelas quais a razão se torna racional. Estas razões não parecem ser as
razões atribuídas estritamente ao conteúdo do conhecimento. O conhecimento científico e
principalmente seu processo de construção são atravessados pelo domínio da nossa realidade
que é tido como o mais difuso, idiossincrático; o social. Lugar dominado por paixões das mais
diversas, políticas, econômicas e etc..
Este tipo de explicação levou Pierre Bourdieu (2004) a afirmar em seu ultimo curso
no College de France que no que concerne à autonomia do campo científico estes estudos
31
representariam uma ―terrível regressão‖. Ora, o problema da autonomia do conhecimento é o
que parece estar na ordem do dia. Seja para atacar as conseqüências de se sociologizar o
conhecimento científico e distinguir domínios de aplicação (epistemologia e sociologia). Seja
para reafirmar o uso da sociologia na compreensão do conteúdo do conhecimento científico,
tornando-o dependente de quaisquer fatores externos. Parece então que a questão da
autonomia é menos o problema de propor as próprias convenções do que dizer que, o que se
faz; não se faz pelas motivações que se dizem o mote, porém motivações outras, estas dotadas
de todo caráter parcial e idiossincrático que a sociedade, as culturas, a política, enfim o que o
social pode nos oferecer.
Diante da crítica de Bourdieu à explicação sociológica do conhecimento científico,
podemos ao adentrar às suas propostas, contrastar posições diferentes no que diz respeito à
ideia de ciência subjacente à discussão relativa à autonomia, ao mesmo tempo em que
conhecemos um programa de pesquisa que busca notadamente se diferenciar da proposta
anterior à medida que se posicionará a respeito da problemática da objetividade do
conhecimento científico.
Primeiramente, deve-se lembrar que o interesse de Bourdieu é antes de tudo construir
um programa de pesquisa para sociologia como um todo, aplicável a diversos domínios
sociais ou como ele nomeou, campos sociais. Atento para isto, por que, a trajetória intelectual
de Bourdieu buscou estabelecer e consolidar a sociologia como disciplina científica autônoma
e, portanto, na relação com a sociologia da ciência este é um ponto fundamental.
Veja-se que tanto Bloor quanto Bourdieu buscam cada um à sua maneira, generalizar o
escopo de explicação da sociologia. Se Bloor se volta ao conteúdo do conhecimento
científico, transpassando o velho tratado territorial entre sociologia e epistemologia,
desestabilizando assim a distinção entre análises externalistas e internalistas6. Bourdieu terá
uma postura diferente e tentará dispor à autonomia da sociologia a solução tanto da
problemática internalismo/externalismo como da relatividade do conhecimento científico
construído socialmente.
6 Deve- se atentar para os diversos matizes que tomam essa distinção de explicações da prática científica. Se antes a
sociologia e a história da ciência estariam destinadas a explicar ao contexto de descoberta que não teria implicações objetivas sobre o conteúdo do conhecimento. Com os trabalhos de Kuhn, a noção de rupturas incomensuráveis e de paradigmas, a
subdeterminação do conteúdo do conhecimento a fatores exteriores pode ser novamente problematizada. Na posição do
programa forte isso toma um forte apelo ao serem generalizadas as explicações sociológicas tanto à verdade como ao erro,
tanto à ciência como à não ciência. Já em Bourdieu o programa se demarcará em relação à problemática externalismo/internalismo, porém de uma maneira diversa da do programa forte.
32
Para tanto o conceito de campo possui um papel fundamental.
[...] para compreender uma produção cultural (literatura, ciência etc.) não basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se ao contexto social
contentando-se em estabelecer uma relação direta entre texto e contexto. O que
chamo de ―erro de curto-circuito‖ [...] Minha hipótese consiste em supor que entre
esses dois pólos, muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco
imprudentemente, que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário que
chamo campo literário, artístico,jurídico ou científico, isto é, o universo no qual
estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem
a arte a literatura ou a ciência.(BOURDIEU,2003:20)
Este espaço a que Bourdieu se refere, é o conjunto de relações de força (uma estrutura
de posições hierarquizadas) em que agentes e instituições mantém relações, estas relações
estão sempre dadas para os agentes num conjunto de fatores como disposições sociais, um
conjunto de elementos que possibilitam tomadas de posição que revelam tensões, relações de
poder (donde o espaço de forças, também se constitui num espaço de lutas). Contudo, por este
campo ser composto por um conjunto de elementos estruturados (hierarquizados) e
estruturantes que reproduzem e definem o conjunto de posições possíveis de serem tomadas; o
campo segundo Bourdieu se torna um espaço relativamente autônomo. Um microcosmo
dotado de leis próprias. ―Se, como um macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não
são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a
este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada (ibidem)‖.
Esta proposição é importante quando voltamos nossa atenção aos estudos sobre o
campo científico. Um dos maiores problemas é apontar o grau de autonomia do campo
científico. Ou seja, em que medida ele consegue refratar as pressões externas ou de que
maneiras as pressões externas influenciam os problemas no interior do campo. Portanto:
―O grau de autonomia do campo tem por indicador principal o seu poder de refração,
de retradução. Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta-se,
essencialmente, pelo fato de que os problemas exteriores, em especial os problemas
políticos, aí se exprimem diretamente (ID. IBID. 22)‖.
Pode-se dizer que esta lógica transpassa os diversos campos sociais, constituindo-se de
uma maneira genérica como uma propriedade geral dos campos. Mas, obviamente, como
estes são espaços relativamente autônomos, possuem lógicas específicas, de modo que pode-
se entender que está lógica de autonomia dos campos é estrutura e as propriedades específicas
de cada campo são conteúdo.
O interessante disso é que na descrição das propriedades específicas do campo
científico, Bourdieu, por estar fazendo uma sociologia do campo científico se encontra com
aquele mesmo movimento paradoxal que tenho tentado mostrar até aqui. Ao voltar o
33
movimento da sociologia – que lhe garantia autonomia para fazer (ciência) e autoridade de
dizer (científicamente, portanto, verdadeiramente sobre o objeto)– ao pólo que a vinculava a
um conjunto de práticas que detinham este mesmo movimento em outros domínios e que lhe
justificava e ratificava esta posição de autoridade, ela corre o risco de minar a razão de ser da
produção do conhecimento científico. Em Bloor o interesse pelo conteúdo do conhecimento e
pela explicação simétrica entre verdade e erro produz essa perplexidade, porém diluída na
afirmação da parcialidade social do conhecimento sociológico seguido de uma retificação
convencionalista de ciência.
Ciente, creio eu, desse movimento paradoxal, e de que toda análise sociológica do
campo científico é também uma auto-análise da sociologia enquanto ciência, Bourdieu
descreverá a singularidade do campo científico de modo que o seu caráter social e, portanto,
convencional e histórico, não promova a perda do valor trans-histórico do produto da empresa
científica. Ciente ainda do caráter relativista da explicação histórica e sociológica e, portanto,
do paradoxo do ponto a-histórico a que o pesquisador pode recair ao promover uma
explicação relativista, Bourdieu irá propor uma espécie de sociologia da sociologia, o caráter
reflexivo e necessário da empresa sociológica para a sua assunção, conquistando assim a sua
autonomia.
Em seu livro Para uma sociologia da ciência (2004), Bourdieu descreve as
propriedades específicas do campo científico. Passando a comentar o processo de
autonomização do campo científico tomando como exemplo o desenvolvimento da
matematização das ciências naturais. O importante na explicação é denotar como esta
crescente matematização de física a partir de Newton tende a abrir um fosso entre os
profissionais e os amadores, ao produzir um refinamento do discurso. Essa característica
passa a produzir um grau de autonomia crescente ao passo em que ―cada um dos
investigadores inseridos no campo está sujeito ao controlo de todos os outros e, em particular,
dos seus concorrentes mais competentes, tendo, por conseqüência, um controlo muito mais
forte do que as meras virtudes individuais ou todas as deontologias (ibidem:71)‖. Além deste
grau crescente de matematização, Bourdieu aponta para uma dessubstancialização da
matemática, rompendo com a necessidade de uma ontologia, o que torna a prática mais
esotérica em relação à necessidade da explicação ontológica do mundo (ibidem: 72-3).
34
Este processo de autonomização conceitual é concomitante com o processo de
autonomização social através da institucionalização nas universidades. Citando o historiador
Yves Gingras, comenta o processo de desenvolvimento de um campo científico.
[...] em primeiro lugar, a emergência de uma prática de investigação, ou seja, de agentes cuja prática assenta mais na investigação do que no ensino, e a
institucionalização da investigação na universidade através da criação de condições
favoráveis à produção do saber e à reprodução a longo prazo do grupo; em segundo
lugar, a constituição de um grupo reconhecido como socialmente distinto e de uma
identidade social, quer disciplinar, através da criação de associações científicas, quer
profissional, através da criação de uma corporação: os cientistas dotam-se de
representantes oficiais que lhes dão visibilidade social e que defendem os seus
interesses. (GINGRAS apud BOURDIEU ,2004:73)
Aqui a proximidade com as noções de comunidade científica, paradigma e ciência
normal propostas por Kuhn é evidente. Este processo de autonomização que definirá as
propriedades específicas do campo deve, ainda, prover requisitos de admissão ao campo que
consistem na competência e apetência, o primeiro; ―capital científico incorporado (por
exemplo [...] o conhecimento da matemática que é cada vez mais imperativamente exigido),
que se tornou o sentido do jogo‖ o segundo; ―a libido scientifica, a illusio, crença não só
naquilo que está em jogo, mas também no próprio jogo, ou seja, no fato do jogo valer a pena
ser jogado (ibidem:74)‖.
Estes elementos conduzem, a partir de uma descrição do processo de autonomia do
campo na constituição de suas características próprias de produção e reprodução, a uma
tomada de posição normativa da qual se depreenderá tanto a aplicabilidade desta lógica na
explicação do objeto quanto ao sujeito, ou seja, ao próprio sociólogo enquanto agente
produtor de um conhecimento científico.
É por o campo científico ser, em certo aspectos, um campo como os outros, mas que
obedece a uma lógica específica, que podemos compreender, sem recorrer a alguma
forma de transcendência , que ele é um lugar histórico onde se produzem verdades
trans-históricas. A primeira, e sem dúvida a mais fundamental, das propriedades
singulares do campo científico é, como vimos, o seu fechamento sobre si (mais ou menos total) que faz com que cada investigador tenda a ter apenas como receptores
os investigadores mais aptos a compreendê-lo, mas também a criticá-lo, e até refutá-
lo e desmenti-lo. A segunda, que dá a forma particular ao efeito de censura
implicado neste fechamento, é o fato de a luta científica, ao contrário da luta
artística, ter como objetivo o monopólio da representação cientificamente legitima
do <<real>> e de os investigadores, no seu confronto, aceitarem tacitamente a
arbitragem do <<real>> (tal como pode ser produzido pelo equipamento teórico e
experimental efetivamente disponível no momento considerado) (Ibidem:98)
Estas características – tais como o fechamento do campo sobre si que denotam
marcadamente a ruptura científica com a doxa ao passo em que se passam a formular questões
próprias advindas do refinamento do discurso e a lógica de funcionamento do campo na qual
35
há uma crescente competição de alto nível crítico que tende a regular o primeiro momento –
demonstram uma certa ideia de conhecimento num sentido mais amplo e conhecimento
científico mais estritamente (incluindo a justificação da autoridade que o produto do campo
passa a exercer sobre a sociedade ).
Embora, esta caracterização do campo enquanto um universo autônomo com critérios
próprios de avaliação dos pares concorrentes pareça uma descrição lógica e auto-legitimadora
do produto da prática científica, a lógica descrita torna-se apenas uma faceta do tipo de capital
que move os agentes no interior do campo. Existem dois tipos de capitais ligeiramente
contraditórios e que influenciarão no grau de autonomia do campo; um capital de autoridade
científica e uma capital de poder sobre o mundo científico, este se mantém nas instancias de
poder das instituições, revistas, agencias avaliadoras e de incentivo a pesquisa e etc.. Estes
dois tipos de capital que refletem as posições e disposições no campo representarão a
estrutura de relações objetivas na qual se manifestará o espaço de lutas na medida em que
estes dois tipos de capital estiverem distribuídos de maneira desequilibrada.
Quanto mais um campo é heterônomo, mais a concorrência é imperfeita e é mais
lícito para os agentes fazer intervir forças não-científicas nas lutas científicas. Ao
contrário, quanto mais um campo é autônomo e próximo de uma concorrência pura e
perfeita, mais a censura é puramente científica e exclui a intervenção de forças
puramente sociais (argumento de autoridade, sanções de carreira e etc.) e as pressões sociais assumem a forma de pressões lógicas, e reciprocamente: para se fazer valer
aí, é preciso fazer valer razões; para aí triunfar, é preciso fazer triunfar argumentos,
demonstrações e refutações. (BOURDIEU, 2003:32)
Disso se depreende, como já disse, uma imagem ideal do campo científico, que ao
mesmo tempo em que pode ser tida como descritiva – no sentido de ser uma lógica
encontrada em campos científicos de grande autonomia – passa a ser normativa, ao explicitar
como variável de autonomia uma lógica de funcionamento estritamente balizada nos critérios
científicos formalizados pelo campo. Ou seja, um campo autônomo deve prover a livre
concorrência entre os pares7 e garantir que os critérios estritamente científicos possam fazer-
se valer mais do que os político-institucionais.
Aqui, a importância da sociologia para a análise do campo científico torna-se patente.
É somente ela que poderia produzir uma análise da estrutura das relações objetivas de
determinado campo passando a contribuir com a avaliação do grau de autonomia. O
interesse pelo conteúdo do conhecimento científico é menos importante para esta abordagem
7 Próximo também do que falaria Popper sobre a objetividade na prática científica ―A objetividade pode, somente se
explicada em termos de idéias sociais como a competição (ao mesmo tempo dos cientistas individuais e de várias escolas);
tradição (principalmente a tradição crítica); a instituição social (por exemplo, a publicação em vários jornais concorrentes e através de vários editores concorrentes; discussão em congressos) (POPPER, 1999: 23)
36
do que as condições sociais, no interior do campo, que permitem a livre produção científica.
Afinal a lógica própria do campo (autônomo) que formaliza critérios, rompendo com a
opinião, e engendra problemas próprios, que concernem exatamente à busca pela
representação do real, terá como produto o conhecimento legítimo, por que sancionado
coletivamente, do próprio real.
Enfim, para Bourdieu o conteúdo do conhecimento é socialmente produzido, não há
aqui mais uma relação entre um sujeito que conhece e seu objeto, mas sim uma relação entre
sujeitos e o objeto. Sujeitos que deliberadamente aceitam a arbitragem do real ante normas
socialmente ratificadas por eles mesmos (campo). A lógica social que mobiliza a produção do
conhecimento no interior do campo é a socialização de uma lógica de relação com o real na
intenção de dizer o que é este real. O sujeito cognoscente não é mais universal no sentido
Kantiano, é histórico, intersubjetivo, do mesmo modo que a objetividade alcançada é um
conjunto de representações aceitas pelos agentes do campo, que atualizam e contribuem para
a reprodução das práticas científicas, seja na elaboração de contraprovas ou de construção de
provas. Porém, este sujeito cognoscente compartilhado,e historicamente construído, não pode
ser tomado historicamente por uma relação direta com o contexto macro que lhe é subjacente.
Pois o conceito de campo como um espaço relativamente autônomo, permite que os critérios
de avaliação compartilhados que são criados pelas necessidades geradas no próprio campo
sejam suficientes para afirmar que o produto de sua lógica é trans-histórico, ainda que
originário de uma condição social específica, as regras do campo.
Agora, se a proposta de uma sociologia simétrica busca explicar socialmente tanto os
erros como os acertos da ciência, dirimindo a critério de distinção entre verdade e erro pela
justificativa meramente racional (ou aquele conjunto de critérios que são socialmente aceitos
pelo campo) produzindo assim uma perplexidade acerca da validade e objetividade do
conhecimento científico. Bourdieu confere à especificidade da autonomia do campo científico
o direito de produzir uma explicação própria sobre o domínio que lhe confere, a sociologia
pode explicar a ciência sem produzir ferimentos. Aqui Bourdieu, não faz mais do que manter-
se na illusio de sua própria prática, a ciência é um jogo que deve valer a pena ser jogado.
Afinal a sociologia é uma ciência e como tal deve buscar a sua autonomia na produção de um
discurso científico que explique o do mundo social.
Bourdieu não cansa de afirmar a dificuldade da autonomização da sociologia. Esta
dificuldade deriva da sua singularidade, a saber, que a natureza de seu objeto ―diz respeito a
37
toda gente, a começar pelos que detém o poder‖; as pressões externas são muito mais fortes
do que em relação a outras ciências e as dificuldades de se instaurar condições internas de
autonomia são enormes, ― as proposições inconsistentes ou incompatíveis como os factos têm
mais hipóteses de se perpetuar e até de prosperar do que nos campos científicos mais
autônomos, desde que sejam dotadas [...] de peso social capaz de compensar a sua
insuficiência ou insignificância[...] (BOURDIEU,2004:122)‖; e por ultimo a condição da
construção científica. Fator premente nos demais campos científicos com grau de autonomia
elevado, nas ciências sociais este ponto é difícil de ser alcançado. Se nas demais ciências a
luta científica é arbitrada pelas referências ao real construído coletivamente e ratificado pelo
campo, nas ciências sociais isso não se dá da mesma maneira. A realidade social, independe
do conhecimento sobre ela para existir e, no entanto não cessa de ser construída pelos agentes.
Este me parece o fator primordial, o sociólogo ocupa posição análoga à do sujeito (objeto)
que estuda. ―A ciência social é, portanto, uma construção social de uma construção social.
(ID. IBD: 122)‖.
Neste sentido, Bourdieu aponta três níveis de reflexividade8 necessários à produção
sociológica para que esta alcance um grau de autonomia suficiente em relação ao seu objeto e
que devem, para alcançar efetividade, ser um compromisso coletivo no interior do campo.
Em primeiro lugar o sociólogo, deve buscar estabelecer a sua própria posição social no espaço
global, origem, trajetória, suas adesões sociais e religiosas. Num segundo momento,
estabelecer a posição ocupada no campo dos especialistas, visando objetivar o inconsciente
acadêmico, tradições da disciplina, problemáticas reconhecidas, limitações na divulgação de
resultados. E por ultimo, objetivar tudo o que está ligado ―à pertença ao universo escolástico‖,
em particular a ilusão de um ponto de vista puro, desinteressado, absoluto (BOURDIEU,
2004:130).
*****
Vemos aqui o ponto de inflexão entre as propostas do programa forte e a sociologia
reflexiva de Pierre Bourdieu. A sociologia por estar na mesma ordem de grandeza de seu
objeto entra num conflito entre a posição do sujeito que conhece e o objeto que é conhecido.
O sociólogo ao produzir uma explicação, constrói uma realidade social que explica as
condições sociais que possibilitam a construção social da realidade. Parece-me que o
8 As ciências naturais podem furtar-se deste tipo de reflexividade, pois esta é inerente ao tipo de objeto das ciências sociais.
Pois nela o sujeito que conhece é parte constituinte do objeto que pretende conhecer. Quando nas ciências naturais a ordem de grandeza é diferente.
38
enunciado sociológico, como salienta Bloor, por mostrar-se causal, recaí num jogo de
espelhos, próximo do que seria uma regressão ad infinitum, porém com peculiaridade da
causa já estar estabelecida num espaço de imanência. Assim, as forças sociais enquanto causa,
não podem jamais serem totalmente objetivadas, pois a cada passo que tenta reconhecer sua
origem uma multiplicidade de imagens parecem surgir.
Esta problemática é posta para a sociologia de um modo geral, como obstáculo
metodológico derivado da natureza social da realidade. Entretanto há uma generalização, por
parte do programa forte, desta problemática no que se refere aos estudos sociológicos sobre a
ciência. Enquanto Bourdieu restringe este paradoxo à própria sociologia, deixando aos demais
campos científicos a autoridade sobre o objeto que lhe compete, conquanto que o campo seja
autônomo.
É que Bloor alça a problemática sociológica ao status de teoria do conhecimento. Por
quanto o seu interesse pela causalidade social do conteúdo do conhecimento científico, não
pode promover a distinção entre a natureza do produto científico e as naturezas dos demais
produtos sociais. A simetria é apresentada então como um imperativo metodológico,
derivado da natureza eminentemente social da vida humana. Já, Pierre Bourdieu interpõe
entre a macro-realidade social e os agentes, o campo como uma realidade social intermediária.
Isto, penso eu, não exige o efeito simetrizante da explicação do programa forte, pois delimita
a porção da realidade que a sociologia está apta a conhecer. Ou seja, ao estabelecer a
autonomia relativa dos campos, e descrever as propriedades específicas do campo científico
como um jogo em que o objetivo é a busca por uma representação legítima do real, onde cada
jogador possuí armas distribuídas e legitimadas pelo próprio campo para atingir tais objetivos,
ele permite que o produto do campo seja ratificado eminentemente pelo campo. Pois só o
campo pode sancionar o produto de sua própria lógica, através do nível de ruptura alcançado
pela autonomia, que é a mesma causa da ratificação social generalizada. Neste sentido é que
o trabalho de Bourdieu se aproxima muito do trabalho de Kuhn, quando este afirma que
apenas a comunidade científica decidirá as questões pertinentes a serem resolvidas na
aceitação de cada paradigma. À sociologia então restaria contribuir para a manutenção da
autonomia do campo científico e por conseguinte do seu próprio campo. Mesmo que para
tanto, deva buscar exercer a autoridade legitima de representação da realidade social, sobre as
39
demais formas de manifestação da realidade social, ao passo em que descola os interesses
científicos da sociologia dos interesses sociais9.
Veja-se que estas duas posturas de construção do conhecimento sociológico,
produzem uma relação diferente no que se refere aos estudos sobre a ciência. Diria mais; cada
postura ao propor um tipo de relação para o trato da ciência constrói uma imagem de ciência
específica, tanto para si, quanto para a própria ciência. O que fica claro, a meu ver, é que a
ciência de um modo geral faz-se por um movimento que procura distinguir o seu produto dos
demais modos de existência pela rigidez de condições de produção que atribuem à sua
autonomia (a pretensa neutralidade) ao passo em que estende os seus resultados para os
demais domínios sociais. A sociologia, por conseguinte, não é isenta deste movimento.
Entretanto, dependendo da intensidade com que este movimento é levado para o trato do
conhecimento científico, o efeito produzido na percepção do seu objeto e por conseguinte da
imagem que a sociologia faz de si ao estabelecer a relação de conhecimento com o objeto
podem variar.
Bourdieu não solapa o movimento de autoridade das demais ciências, pois não as
simetriza, pelo contrário, prega a busca pela autonomia da sociologia e alça a análise
sociológica a um status de corregedora do progresso científico, ao demonstrar a sua
proficuidade para a autonomia do campo científico. O paradoxo alcançado pela generalização
do fator social na produção do conhecimento é contido no interior do campo sociológico. A
imagem da ciência foi mantida em segurança, portanto. É aí que compreendemos o escândalo
causado pela sociologia da ciência do programa forte e a presente afirmação de Bourdieu
sobre estes estudos representarem um retrocesso da autonomia. Bourdieu, não nega o que ele
chama da illusio do campo, antes se torna consciente dele e o reitera perante outros campos,
fazendo valer assim tanto a sua concepção de ciência como de ordem social donde constituir-
se-iam campos hierarquizados.
David Bloor ao apresentar de um modo generalizado o caráter social, sobretudo do
conteúdo do conhecimento científico, produzirá um efeito diferente em seu objeto. Alias, irá
de fato produzir um efeito de transmutação no objeto, ao passo que lhe atribui uma natureza
9 Poderiam perguntar-nos sobre de onde então sobrevém a potencialidade crítica do trabalho de Bourdieu, se para este, a autonomia do campo científico consiste também em postular os seus próprios problemas. Diria que a estrutura lógica do
pensamento de Bourdieu exige uma realidade social hierarquizada, portanto com relações de poder, e que se põem em
movimento pelo espaço de lutas produzido pelas relações de força constituídas pela hierarquia de posições. Aqui, impera uma
lógica social do conflito, que normalmente é velado, que é naturalmente explicitado pela própria atribuição das posições no campo.
40
diversa da qual é reconhecida pelos próprios sujeitos (objetos). E por conseqüência exigirá da
sociologia uma explicitação das condições de produção do conhecimento.
Ainda que o programa forte proponha uma reflexividade (à maneira de Bourdieu) a
fim de garantir uma autoridade mínima de seus enunciados, consciente de convencionalidade,
para fugir dos efeitos de um relativismo pleno (auto-refutação).O efeito principal de sua
explicação simétrica é a produção de um relativismo cognitivo, que de certo modo, mina o
movimento de autonomia/autoridade das ciências em relação a outras lógicas sociais. O
mérito da simetria é justamente identificar as relações de poder constitutivas da própria
ciência em movimento, pois retira a aura de neutralidade do produto do conhecimento feito
em si e por si, jogando o elemento utilizado para a justificativa de distinção entre ciência e
não ciência para a causalidade social. Aqui a causalidade social, não representa apenas a
convencionalidade da produção científica, mas a condicionalidade dessa produção a fatores
sociais diversos.
Se a sociologia simétrica não diz à ciência que ela está com a verdade, também não lhe
diz que está em erro. Apenas afirma que o produto de sua lógica interna, só se faz legítimo
pela ratificação social. E ao apontar as condições de reconhecimento do produto enquanto tal
ela explicita o caráter duplamente valorativo da produção do conhecimento, ou seja, as
condições sociais, políticas e econômicas que atravessam a prática científica e direcionam o
seu processo de construção e as condições históricas e culturais que forjam o reconhecimento
da especificidade autoridade científica sobre outras formas de composição do mundo real. Em
suma, a sua lógica interna só se distingue de outras formas cognitivas pela ratificação social
desta lógica em detrimento de outras. Acho que falta a compressão do dado empírico da ciência a
multiplicação dos agentes do mundo
Se a ciência atribuía o seu sucesso por estar no caminho da verdade, portanto
demarcando-se em relação a outras formas de vida social. A sociologia ao simetrizá-la em
relação às demais formas de vida social retira a força que lhe atribuía autoridade, na relação,
sobre outras lógicas sociais. Obviamente, torna-se claro que a sociologia do programa forte
faz emergir uma ciência, socializada, ou seja, imersa na lógica da sociedade na qual está
inserida, e politizada, no sentido claro dos usos políticos que se fazem da imagem sem macula
que a ciência procura estabelecer a si mesma.
Esta imagem das ciências conduzida pela premissa sociológica generalizada carrega
consigo o paradoxo, da autoridade sociológica (sua imagem de ciência), derivado da mesma
41
ordem de grandeza do seu objeto. Bloor, diferentemente de Bourdieu, opta por não restringir
a problemática ao campo sociológico; seu interesse (o conteúdo do conhecimento científico) é
justamente possível pela generalização da premissa. Quando enfim poderíamos pensar que a
sociologia é uma auto-refutação de suas próprias explicações, pois afirma a relatividade social
de todos enunciados, a causalidade social vem ratificá-la. Se a sociologia não está totalmente
correta, também não está totalmente em erro, sua reflexividade é capaz de apontar os limites
de sua própria explicação. Porém, é somente a sociedade que poderá ratificá-la, ou não. Por
ser um empreendimento humano e convencional, não significa que seja destituída de valor e
de regras difíceis de serem reguladas Aqui talvez seja um ponto interessante para o relativismo
empírico. Se ela estiver em razão, será pela ratificação social de suas razões, se não produzir
nenhum efeito de conhecimento sobre as nossas formas de conduzir a realidade, o será
também pela recusa social de suas explicações. Entretanto, a ciência para prosseguir, não
poderá furtar-se do caráter eminentemente social de suas práticas e do produto de suas
práticas. Se para fazer-se valer aí deveríamos fazer valer razões agora temos razões outras
para dizer que apenas a razão, em si mesma, não basta para se fazer valer.
Reducionismo? Pela busca da uma simetria generalizada
Contudo, a postura apresentada pela posição radical do programa forte não parece ser
inflexível. E é justamente pela maneira frouxa – porém englobante – em que a explicação
sociológica dispõe o seu objeto, que a sociologia se torna vulnerável a outra tomada de
posição. De fato a instituição da simetria oferece a oportunidade de explicitar relações de
poder que podem beneficiar aqueles que estão em posição hierarquicamente inferior em dada
relação. Mas, em relação à aqueles que são o foco mesmo dos estudos sociológicos sobre a
ciência, a eficácia da explicação não se completa. Os filósofos e cientistas ao tomarem contato
com este tipo de explicação sentem que a liberdade que viam em suas práticas lhes foi
roubada por algum determinismo qualquer. E por outro lado, como vimos anteriormente, não
haveriam razões lógicas para o abandono do modelo teleológico de ciência
(BLOOR.2009:28). Esta possibilidade é o que torna o paradoxo da possível auto-refutação da
sociologia uma fraqueza e faz com que os adeptos da postura contrária utilizem os próprios
argumentos da sociologia para travar o seu movimento. O que obriga a sociologia a admitir a
parcialidade de sua explicação, conquanto, se possa perceber a eficácia da força social que
constrói os enunciados.
42
Ficamos então numa via de mão de mão dupla, ou reconhecemos a especificidade e a
trans-historicidade dos produtos científicos, e limitamo-nos a considerar apenas como objeto
sociológico não o conteúdo, mas as relações da ciência enquanto instituição ou passamos a
considerar o conteúdo do conhecimento científico dotado de uma natureza eminentemente
social. Das duas maneiras seriamos obrigados a reafirmar o sentido da prática sociológica;
tomá-la como ciência autônoma, por que reflexiva, provendo a ruptura epistemológica com os
demais discursos sobre o social ao mesmo tempo em que subsidiaríamos o processo de
autonomização dos demais campos científicos ou tomá-la como mero empreendimento
humano, da mesma natureza social dos demais empreendimentos, não podendo justificar a sua
autoridade de conhecer, se não, pelo fato de que esta autoridade é reconhecida socialmente.
No ultimo caso ficamos no limite tênue entre afirmar a autoridade científica da sociologia do
conhecimento científico de uma maneira arbitrária e um reconhecimento da impossibilidade
do conhecimento pleno sobre todas e quaisquer coisas e, por conseguinte, da autoridade que
se possa exercer sobre determinado segmento da realidade. Se houver uma posição
hierarquizada, ou assimétrica, ela deve ser explicada pelo velho discurso sobre as relações de
poder
Mas e como ficam aqueles que nos servem como ―objeto de estudo‖? Ora, a
explicação um tanto quanto sociologizante do programa forte, não exerce eficácia sobre
aqueles a quem tenta explicar as práticas. Muito pelo contrário, a explicação parece
escandalizar os agentes. Ademais estas posições se tornam incomensuráveis, à medida que as
influências de autoridade estão postas em xeque tanto pela própria explicação sociológica
quanto pela equivalência de posições derivadas do autonomeação daquilo que se faz como
‗conhecimento científico'.
Há uma certa recalcitrância por parte dos agentes em aceitar as explicações
sociológicas. As posturas contrárias são pertinentes. O próprio David Bloor afirma ser
necessário o erro da explicação sociológica, para que a explicação teleológica esteja correta.
Como vimos; o fato da ciência manter-se convencional não parece ser um problema
fundamental para a prática científica. E ainda como diria a filosofa Isabelle Stengers (2002), a
crítica à ciência, como por exemplo das tecnociências, não parece minar de todo a autonomia
do conhecimento científico, antes reitera a sua irreversibilidade, a sua singularidade na
história humana e busca apenas trabalhar os limites de suas aplicações. Para Stengers esta
crítica pode ser incorporada naturalmente pelos cientistas, como um fardo a ser carregado por
43
aqueles que carregam consigo a potência de dizer sobre o mundo o que ele é10
. Mas é o fato
da explicação sociológica do conteúdo do conhecimento ―ferir‖ duplamente o fazer científico
a causa do escândalo. Ou seja, ao propor não somente a convencionalidade, mas a
equiparidade entre verdade e erro e a correlação estrita entre inúmeras contingencias sociais e
a produção do conhecimento científico, a sociologia faz colidir por todos os lados a
confecção de sua imagem de ciência com a imagem que os cientistas fazem da ciência.
O que fazer? O caráter interdisciplinar do meu objeto me faz relutar em empreender
uma explicação sociológica, e portanto disciplinar, do conteúdo do conhecimento. Contudo é
justamente no processo de composição deste conteúdo que, acredito, encontrarei a imagem de
ciência que singulariza o meu objeto. Os dois modelos de prática sociológica que acabei de
expor me fazem, ao mesmo tempo, delimitar a natureza do vínculo em relação ao objeto e
reificar de antemão (pela caráter da relação) uma imagem de ciência. E o mais interessante é
que a natureza do vínculo pode produzir um efeito de transubstanciação no objeto.
Ora, é justamente o modelo de ciência que está em suspeição e por isso mesmo a
relação de conhecimento que lhe é inerente é posta em xeque. Temos então um eixo em que
se enlaçam dois estilos de sociologia que refletem duas imagens de ciência tanto no
reconhecimento de seu objeto quanto no seu procedimento de pesquisa. De um lado uma
divisão de domínios mantém as ciências em segurança (Bourdieu), do outro (Bloor), uma
excessiva ênfase no caráter social do proceder cientifico desemboca num conflito que parece
se desdobrar em termos incomensuráveis ou excessivamente idealistas (no sentido filosófico).
Ou a ciência acessa a natureza mesma das coisas, ou a natureza das coisas é um tipo de
construção social como as demais representações sociais acerca do mundo. O que parece é
que a explicação que ratifica a maneira do sociólogo ver o mundo pode reduzir a
multiplicidade do mundo de outrem e no presente caso o potencial inovador que podem
carregar tais práticas. Porém uma excessiva correspondência com o discurso do objeto me faz
pensar ou num ato confessional de pertença a aquilo que se está tentando conhecer ou numa
mera exigüidade da minha capacidade explicativa que pode soar um tanto reducionista.
É diante dessa notável imobilidade causada pela sociologia do conhecimento científico
que o pensamento de Bruno Latour parece apontar outro caminho possível de ser percorrido, o
qual acredito pode prover um tipo de vínculo em relação ao objeto sem causar tamanha
10 A distinção entre ciências puras e aplicadas tende a dar conta dessa tensão sem que se precise negar a objetividade do conhecimento científico.
44
perplexidade e fixidez, o que não quer dizer que a sua posição teórica não construa uma
imagem ligeiramente diferente daquela que os epistemólogos e cientistas creditam à ciência.
A perspectiva Latouriana se apresenta nesse imbróglio como uma proposta mediadora,
que pretende levar em conta as vozes dos que estão em guerra, os cientistas no geral, os
sociólogos, e os objetos das ciências. Porém a tarefa pode ser desastrosa na justa medida em
que tenta buscar a paz, pois cada passo pode ser visto como traição por cada uma das partes.
Para Latour esta imobilidade ocasionada pela sociologia da ciência só se faz enquanto tal se
tomarmos as duas posições como possíveis. Geralmente o que se passa é que os sociólogos da
ciência não vêem nenhum problema na suas explicações e continuam a produzir seus estudos
normalmente (LATOUR,2008). Fato que ocorre de maneira inversamente proporcional com
os demais cientistas e epistemólogos. E dessa presente incongruência de práticas, volta e meia
se observam ferozes debates entre as posições contrárias, as já conhecidas Science Wars11
.
Acontece que estas posturas que tem se delineado insolúveis – como nos velhos impasses
aporéticos dos diálogos filosóficos – o são, somente para aqueles que tentam solucioná-las.
Pois bem, no presente caso estas posições são referidas enquanto uma tensão entre um
construtivismo social que sub-determina o conhecimento a uma maleabilidade incrível através
de sua ‗razão sociológica‘ e um certo ‗naturalismo cientificista‘ que insiste em dizer que
apesar de tudo a realidade exterior ainda ‗está lá‘.
Bruno Latour despontará com outro caminho procurando evitar tomar uma das duas
direções traçadas pelas partes em litígio. Para tanto, argumentará que estas posições contrárias
são produto de um dispositivo mais amplo que traduz em linhas gerais o sistema de
pensamento moderno, ao qual ele denomina – numa alusão à terminologia jurídico-política –
de Constituição moderna (1994), instância que separa e reparte modelos de representação e
competências tanto para sujeitos quanto para objetos.
Em seu livro-manifesto Jamais fomos Modernos (1994), Latour proporá a ideia de que
a ‗modernização do mundo‘ que hora se nos apresenta como impossível ou pelo menos não
recomendável pelas mais diversas concepções de crises ecológicas, é um sintoma de que
efetivamente nunca houvéramos sido modernos. O que pode ser reconhecido no modo de
11
Mais recentemente a chamada ―Questão Sokal11‖ irrompeu mais um episódio da chamada ―guerra das ciências‖ onde o
físico Alain Sokal enfrenta posições como as de David Bloor e de Bruno Latour. Embuste feito pelo Físico Alain Sokal, ao
publicar um artigo com o nome ―Transgredir as Fronteiras: por uma hermenêutica transformadora da gravidade quântica‖ em
uma revista de estudos culturais e posteriormente refutá-los em outra revista. Os artigos foram sucedidos da publicação de
um livro em parceria com outro físico Jean Bricmont intitulado ―Imposturas Intelectuais‖ (1999) onde os autores atacam as posturas da sociologia e antropologia da ciência bem como a outros autores da filosofia e de outras ciências.
45
funcionamento deste aparato denominado de Constituição Moderna. Antes de prosseguirmos,
porém, faz-se necessário elucidar o que Latour entende como moderno ou modernização.
Efetivamente, como aponta Latour, poderíamos ter tantas definições quantos forem os seus
autores (idem: 14), contudo todas as proposições tendem a definir a modernidade como uma
passagem do tempo onde há rupturas que qualificam, pelo embate, vencedores e vencidos12
.
A hipótese do livro Jamais fomos Modernos consiste, portanto, na tentativa de
explicação da capacidade de amplitude e mobilização, de seres e coisas, no que se
convencionou chamar de modernidade e modernização. Termos que ao redistr ibuírem o
mundo através de um qualificativo temporal, delineiam espacialmente a sua ―pujante vitória‖
sobre os demais modos de existência, povoando o mundo com objetos e artefatos que agora
fazem circular e estabilizar em suas redes as categorias modernas e modernizadoras.Posto
isso, faz-se necessário propor/delinear13 as instâncias que compõem essa tal constituição
moderna, ―que designa dois conjuntos de práticas totalmente diferentes que, para
permanecerem eficazes, devem permanecer distintas (idem: 16)‖. O primeiro conjunto de
práticas , segundo Latour, cria, multiplica o mundo com a produção de seres e objetos
completamente novos, híbridos de natureza e cultura. O segundo conjunto de práticas, insiste
em dividir e qualificar as competências destes seres em duas instâncias ontologicamente
distintas; natureza e cultura, a morada contígua de humanos e não-humanos, processo que
Latour chamará de purificação. A modernidade seria então, uma produção constante de
híbridos não ditos, por que esquizofrenicamente coletados, classificados, por instâncias
incomensuráveis.
Este dispositivo a que se lhe atribui o nome de Constituição Moderna, carrega em si,
como toda constituição, garantias para a sua manutenção e eficácia. Latour dirá que são
quatro estas garantias. E como veremos, elas esclarecerão os paradoxos que não nos
permitiram prosseguir até então. O contra-senso em que nos detemos até aqui consiste numa
certa circularidade da explicação sociológica que insiste em tornar contingente, pelo caráter
histórico, o produto do conhecimento científico, quando de outro lado, temos a concepção de
12
Como nos lembra o autor: “Através do adjetivo moderno, assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma
revolução do tempo. Quando as palavras ―moderno‖, ―modernização‖ e ―modernidade‖ aparecem, definimos, por contraste, um passado arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre colocada em meio a uma polêmica, em uma briga
onde há ganhadores e perdedores, os Antigos e os Modernos. [...] Se hoje há tantos contemporâneos que hesitam em
empregar este adjetivo, se o qualificamos através de preposições, é porque nos sentimos menos seguros ao manter essa dupla
assimetria: não podemos mais assinalar a flecha irreversível do tempo nem atribuir um prêmio aos vencedores. (LATOUR,1994:14)‖.
13 Propor, por que afinal trata-se de uma hipótese explicativa acerca de um processo (modernidade) e delinear no sentido de
demonstrar o funcionamento deste dispositivo que ,acredita-se, proporciona o problema a ser explicado.
46
uma ciência capaz de produzir conhecimento objetivo e portanto de dizer como as coisas
realmente se passam na natureza. A virada sociológica consiste em tornar esse processo de
objetivação do conhecimento científico como um processo histórico que transmuta a
objetividade da ―realidade em si‖ para uma realidade ―construída historicamente‖. Porém ao
fechar o circulo de sua explicação em uma tentativa reflexiva, a sociologia dilui a sua
explicação sem conseguir dar conta definitivamente da sua própria explicação; se não, por
uma concepção aprioristica da realidade como eminentemente social. O fato é que ao explicar
a ciência, a sociologia desdobra forças sociais irredutíveis às escolhas dos sujeitos que
produzem o conhecimento científico, analogamente, os cientistas desdobram forças naturais
das quais eles apenas desvelam os mecanismos e que constituem a realidade em si mesma. Eis
o duplo paradoxo e Bruno Latour , por sua vez, assim o resume : “A natureza não é uma
construção nossa: ela é transcendente e nos ultrapassa infinitamente; A sociedade é uma
construção nossa: ela é imanente à nossa ação; Nós construímos artificialmente a natureza
no laboratório: ela é imanente; Não construímos a sociedade, ela é transcendente e nos
ultrapassa infinitamente (IDEM: 37)‖.
Como se pode perceber, estas antinomias traduzem a impossibilidade de se expressar
algum enunciado sobre a causalidade primeira da qual derivaria todas as demais proposições
articuladoras da nossa existência (moderna) e do nosso mundo. Se tivéssemos parado para
pensar sobre o problema teríamos nos tornado ‗estatuas de sal‘ na busca incessante por algo
atrás de nós mesmos.
Que garantias constitucionais permitem que estes paradoxos não nos tenham
imobilizado a todos, tal como tenho estado até então? Como já disse são quatro estas
garantias: 1ª) ainda que sejamos nós que construímos a natureza, ela funciona como se nós
não a construíssemos; 2ª) ainda que não sejamos nós que construímos a sociedade, ela
funciona como se nós a construíssemos; 3ª) a natureza e a sociedade devem permanecer
absolutamente distintas; o trabalho de purificação deve permanecer absolutamente distinto do
trabalho de mediação; 4ª) O Deus suprimido, longínquo sem poder arbitrar entre a natureza e
a sociedade, porém sempre presente nos corações humanos capaz de intervir imediatamente
em caso de um embate entre os dois pólos. Em outras palavras, a cada passo que damos em
direção a esta causalidade anterior a nós mesmos, poderíamos ser objetivados no momento em
que estabelecêssemos esta causalidade tornando-nos anteriores à nossa própria origem causal.
A saída então, dividir domínios de coleta para as nossas atribuições causais, sem que
47
precisemos de fato lhe dar com o angustiante e já tão pueril estratagema do ―ovo e da
galinha‖.
Mas como não posso e não pretendo fazer intervir aqui a Força Divina para dar cabo
do paradoxo, volto-me à controvérsia – exemplificada por Latour em Jamais Fomos
modernos – que se passa, segundo ele, nos tempos em que a constituição começava a ser
redigida. Trata-se de um comentário sobre embate entre Thomas Hobbes e Robert Boyle
acerca da existência ou não-existência do vácuo e uma crítica da interpretação deste embate
no livro intitulado Leviathan and the Air-pump dos sociólogos Steven Shapin e Simon
Schaffer, representantes do renovado programa da sociologia do conhecimento científico.
O embate trata da afirmação, por parte de Boyle, da existência do vácuo, produzido na
―bomba de ar‖ construída pelo próprio Boyle para dar cabo desta demonstração, e a negação,
por parte de Hobbes, da possibilidade ontológica da existência do vácuo, bem como o
questionamento da autoridade da experiência de Boyle sobre a existência do vácuo. O
interessante na controvérsia é que daí resultou um processo que tende a dissociar ciência e
política: ―a comunidade experimental [criada por Boyle] lutou, justamente, para impor este
vocabulário da demarcação‖ (Shapin e Schaffer apud Latour, 1994:21).
Mas o que esta controvérsia nos faz pensar sobre o funcionamento da Constituição
Moderna? Em se tratando de uma abordagem de sociologia do conhecimento científico a
intenção não é mostrar como ―o contexto social da Inglaterra podia justificar o
desenvolvimento da física de Boyle e o fracasso das teorias matemáticas de Hobbes (idem:
22)‖. Como apresentei anteriormente, a proposta vinculada ao programa forte não sugere a
análise de um contexto de justificativa e de um contexto de descoberta, a intenção de Shapin e
Schaffer não é a de produzir uma explicação contextual da descoberta do vácuo; ‖Eles
examinam como Hobbes e Boyle brigaram para inventar uma ciência, um contexto e uma
demarcação entre os dois‖.
Boyle, através da sua Bomba de ar procura demonstrar – sem tomar partido entre as
controvérsias filosóficas intermináveis de sua época entre plenistas e vacuístas – a existência
efetiva do vácuo, ―inventando assim o estilo empírico que usamos até hoje‖. ―Ao invés de
fundar-se sobre a lógica, a matemática ou a retórica‖, Boyle escolhe como base experimental
o testemunho legítimo daqueles que viram a sua bomba de ar funcionar, transubstanciando a
opinião dos outros em atestado da veracidade da observação feita sob condições controladas
para tal fim. Retomando assim a problemática construtivista; conhecemos os fatos por que
48
sabemos de que maneira foram elaborados. Hobbes por sua vez, não admite a possibilidade da
existência do vácuo na Bomba de ar, desacreditando todo o dispositivo de Boyle. Ele pretende
impor-se, tal como Boyle parece o fazer ao promover a experimentação publicizada da
existência do vácuo, contudo, não o faz da mesma maneira que o seu opositor.
[Hobbes] também quer terminar com a guerra civil; ele também quer abandonar a
interpretação livre da Bíblia pelos padres e pelo povo. Mas é através de uma
unificação do corpo político que ele deseja atingir seu objetivo (LATOUR, 1994:24
grifos meus)
É a criação do Leviatã que preocupa Hobbes, é a unidade do corpo político o seu
interesse, portanto qualquer categoria que se julgue transcendente não pode subsistir sem que
haja o risco de uma guerra iminente. Onde há transcendência, há a possibilidade de se dizer
representante único da mesma. É por isso que a estratégia argumentativa do Leviatã de
Hobbes faz a exegese bíblica, ―um dos maiores perigos para a paz civil vem da crença em
corpos imateriais [...] aos quais as pessoas apelam contra o julgamento do poder civil‖
(IDEM). A proposta de um elemento centralizador, porém imanente é a resposta de Hobbes à
guerra civil inglesa, o leviatã ―o Ator do qual nós, cidadãos, somos o autor (HOBBES apud
LATOUR, ibidem)‖ é o seu resultado.
Poderíamos argumentar, contudo que à existência do Leviatã precederia algum
elemento transcendente, como causa primeira, para o sustentáculo de toda edificação do
estado. Entretanto, Hobbes recusa-se a estabelecer qualquer elemento transcendente de
antemão, tornando a sua postura em um construtivismo generalizado.
Não há direito divino, não há instância superior que possam ser invocados pelo soberano para que ele possa agir como quiser [...] o soberano será apenas uma ator
designado pelo contrato social. (LATOUR, 1994:25)
Nem mesmo o seu critério de argumentação reside em um transcendente, Hobbes se
utiliza da demonstração matemática, não aquela de cálculos transcendentais, mas o do cérebro
mecânico, naturalizado e, portanto, imanente a qualquer estratégia de cálculo. Enfim temos as
duas posições esboçadas, o imanentismo por princípio de Hobbes que delineia autoridade do
nosso representante pela autoridade que exercemos sobre ele, e a transcendência de Boyle que
apresenta a existência do vácuo a todos aqueles que têm olhos para o ver e reconhecer em
Boyle e seus discípulos a representação legitima sobre o fenômeno.
A diferença do trabalho de Shapin e Schaffer, segundo Latour, é o que nos trará a
conclusão desta história tanto para apresentar o desfecho do debate entre Hobbes e Boyle
como para delinear os caminhos diferenciados entre a posição de Bruno Latour e a posição do
49
programa forte e como que por progressão geométrica o distanciamento destas, da posição de
Bourdieu. Para Latour, o enfoque dado pelos autores ao papel exercido pela experimentação e
especificamente pela ‗bomba de ar‘ faz com que a sua explicação se diferencie dos trabalhos
comuns em história da ciência. Ao apresentar o papel do Laboratório de Boyle e de sua
experimentação controlada no desfecho da controvérsia com Hobbes os autores abrem uma
possibilidade interessante para a explicação social da construção dos fatos científicos. A
proposição dos autores consiste em explicar que toda a classificação de atribuições e
competências de seres e coisas teria que necessariamente passar pelo julgamento da existência
ou não do vácuo.
Pela primeira vez nos estudos sobre as ciências, todas as idéias relativas a Deus, ao
rei, à matéria, aos milagres e à moral são traduzidas, transcritas e obrigadas a passar
pelos detalhes de funcionamento de um instrumento (LATOUR, 1994:26)
Porém, dessa passagem, não derivará ainda a posição de Latour a respeito do trabalho
de Shapin e Schaffer. Apesar de demonstrarem o papel importante do laboratório para a
resolução do debate, bem como atentarem para como Hobbes tenta de qualquer maneira
obstruir, desacreditar, a existência do vácuo atribuindo a existência de um vento de éter que
ali estaria mesmo no momento do funcionamento da bomba de ar.
Ainda que os autores considerem o regime jurídico implicado na resolução do debate –
Boyle faz testemunhar os ‗não-humanos‘ a seu favor efetuando diversas experiências com
objetos no interior de seu dispositivo, obtemperando sempre que ―corpos inanimados são
incapazes de preconceitos ou de dar apenas informações imparciais‖ (idem:p.29) promovendo
por isso mesmo uma ruptura com os demais ramos políticos e religiosos para sustentar a sua
existência – Latour argumentará que a conclusão dos dois sociólogos permanece assimétrica,
mesmo quando eles supõem simetrizar o naturalismo atribuído por Boyle ao vácuo que
acabava de criar!
É que Shapin e Schaffer creditam maior explicação e penetração às posições
defendidas por Hobbes. Não deram conta, porém, de que na controvérsia há uma dupla
invenção; reconheceram sim que a distinção entre ciência e política foi deslocada por Boyle e
seus colegas; compreenderam a postura política de Hobbes ao não poder reconhecer a
existência de um elemento transcendente no momento em que tentava unificar o corpo
político sem precisar recorrer a nenhuma outra transcendência. Não hesitaram, contudo, ao se
posicionaram em relação aos conceitos de ―poder‖, ―interesse‖ e ―política‖ (LATOUR,
1994:32).
50
Por que a postura destes dois sociólogos permanece assimétrica? A que dupla
invenção Latour se refere ao comentar o texto de Shapin e Schaffer? Ao explicar todo o
processo de argumentação, construção, evolução e banalização da bomba de ar, do seu
laboratório e conseguintemente do próprio vácuo, os autores transubstanciam o naturalismo
constituinte do vácuo. Para manifestar-se ele [o vácuo] precisará, de articulações sociais,
laboratórios, cientistas; precisará também testemunhar ante um público diversificado,
religiosos, nobres e etc., deslocando a posição destes em relação ao mundo pela sua própria
substancialização gradativa na realidade, advinda do reconhecimento de sua existência e da
mudança das relações sociais implicadas à medida em que o vácuo passa a habitar o mundo
de direito e de fato. Mas e então o vácuo é social? É natural? Shapin e Shaffer deslocam a
invenção de Boyle de um dos pólos da constituição moderna – a natureza. Mas é onde o
situam que os coloca em uma posição ambivalente que testemunhará a assimetria apontada
por Bruno Latour. Ao contarem que a explicação Hobessiana é mais consistente, eles tornam
vulnerável, porque explícita, a sua posição teórico/metodológica enquanto sociólogos da
ciência. ―O conhecimento, assim como o Estado, é produto das ações humanas. Hobbes tinha
razão‖ dirão eles ao final de seu livro. Mas Latour prossegue dizendo-nos:
Hobbes e seus seguidores criaram os principais recursos que dispomos para falar do
poder – representação, soberania, contrato, propriedade, cidadãos –, enquanto que
Boyle e seus seguidores elaboraram um dos repertórios mais importantes para falar
da natureza – experiência, fato, testemunho, colegas (LATOUR, 1994:30)
Esta é a dupla invenção, a de um não-humano capaz de ser representado por um
cientista e a de um humano que pode ser representado por um político. Dizer que a explicação
de Hobbes é mais consistente, exige tomar partido na partilha de representação sobre o
mundo. Foi Hobbes ―que inventou a sociedade monista na qual conhecimento e poder são
uma única coisa (LATOUR: 1994:32)‖. Dizer que a sociedade preexiste e subdetermina a
construção da realidade em todos os sentidos, dilui de fato a capacidade de representação da
natureza por parte dos cientistas, ou pelo menos a anula. No entanto, reitera a existência de
uma entidade social que nos supera e nos determina a todos. Ao fazerem este tipo de
explicação, Shapin e Schaffer polarizam e, portanto, transgridem a dupla invenção de Hobbes
e Boyle que consistiria em determinar campos de representação de pessoas e coisas. Resta-nos
então o paradoxo da própria sociologia do conhecimento científico, que Latour resolve ao
indicá-lo como a invenção um humano que pode ser representado. A autoridade científica
requerida pela sociologia do conhecimento científico é a autoridade de representação legítima
sobre seu objeto. Latour obtempera da seguinte maneira, ao retornar ao Leviatã de Hobbes.
51
Hobbes define um cidadão nu e calculador que constitui o Leviatã, este deus mortal,
esta criatura artificial. O que sustenta o Leviatã? O cálculo dos átomos humanos
gerado pelo contrato, o qual decide quanto à irreversível composição da força de
todos nas mãos do único. Do que é feita essa força? Da autorização dada por rodos
os cidadãos nus a uma única pessoa que pode falar em seu nome. Quem age quando
ele age? Nós, que delegamos a ele, de forma definitiva, nosso poder. A Republica é
uma criatura artificial paradoxal, composta de cidadãos unidos apenas através da
autorização dada a uma pessoa para representá-los todos. O soberano fala em seu
nome ou em nome daqueles que o autorizam? Questão insolúvel que a filosofia
moderna nunca terminou de desembaralhar. (LATOUR, 1994:34 grifos meus)
Esta é a assimetria de Shapin e Schaffer. A sua postura de representantes legítimos
daqueles que reconhecem a existência das forças sociais, que são construídos por elas, mas
que agora já não poderão ser signatários de suas próprias causas. Tal situação não se sustenta
totalmente quando percebemos a tentativa reflexiva de David Bloor. Ao diluir o
conhecimento num ―éter social‖, ele reconhece a incapacidade de alcançar um conhecimento
pleno sobre o próprio social, visto que a postura exige que se caracterize a própria ciência
social que se faz, como um constructo social entre tantos outros, capaz de produzir um
discurso explicativo sobre outros constructos por um ‗criterioso protocolo de pesquisa‘ talvez
a sua única característica distintiva.
Vemos então neste impasse, uma crise de representação simbólica (provavelmente
uma crise do próprio domínio simbólico enquanto representável) e por isso mesmo política; o
sociólogo fala em seu nome ou em nome daqueles que o autorizam? David Bloor reconhece
de fato que sua postura teórico-metodológica pode provocar esta assimetria que ele denomina
‗metodológica‘ (BLOOR, 2008:259). Isto porque a condição de simetria da sociologia prevê
uma simetrização da explicação sociológica; as condições sociais devem explicar a verdade e
o erro da ciência. Já em seu posfácio ao livro conhecimento e Imaginário social, Bloor
demonstra consciência desta característica, não se furtando em dizer que:
Duas formas residuais de assimetria permanecerão intocadas por essas novas
estruturas de curiosidade. Eu as chamarei de ―assimetria psicológica‖ e de ―assimetria lógica‖. Nenhuma delas é inconsistente com a condição original que, a
fim de diferenciá-la, pode ser chamada de ―assimetria metodológica‖ (BLOOR,
2008:259 grifos meus).
A assimetria psicológica consiste na capacidade da explicação sociológica poder
produzir uma explicação sobre determinada crença – como, por exemplo, a crença na
existência de bruxas (ibidem) – sem que o sociólogo partilhe efetivamente da crença em
bruxaria. A eficácia da explicação produz então uma simetria metodológica que por
conseqüente torna capaz a explicação da crença ou não na existência de bruxas. Já a
assimetria lógica consiste na premente descontinuidade entre a explicação que o sociólogo
52
atribui a um evento e a explicação nativa do próprio evento14
. Segundo Bloor estas assimetrias
são residuais e deixam intacta a noção de simetria metodológica que consiste menos em
endossar ou rejeitar enunciados do que estabelecer o problema colocado na aceitação ou
rejeição de determinados enunciados. ―que o mundo não contenha bruxos deixa em aberto a
questão de se será ou não crível que ele contenha bruxos (BLOOR, 2008:261)‖. Isto, porém,
não quer dizer que o sociólogo não esteja comprometido ―com certa imagem do que de fato
acontece (ibidem), daí, a aceitação daquilo que advém como explicação, ser atribuída por
Bruno Latour como uma ―afirmación ontológica de que las causas tienen que incluir fuerzas
hechas de sustancia social‖ (2005:151). Neste ponto, teríamos então uma bifurcação da
possibilidade de existência da sociologia do conhecimento científico que se distanciaria do
estudo do campo científico (Bourdieu) e tentaria resolver o angustiante paradoxo em que nos
encontramos.
Em David Bloor a sociologia do conhecimento teria o papel de identificar os
elementos sociais estruturantes de nossa curiosidade de tal maneira que possa se tornar a
provedora da superação das condições sociais estruturantes de nossa própria curiosidade sem
que pra isso precisemos destituir-nos de nossas atitudes psicológicas mais correntes. Esta
postura da sociologia se daria, segundo Bloor, com a criação de ―novos grupos especializados
com perspectivas profissionais por eles próprios assumidas (BLOOR,2008:259)‖. Ou seja, por
intermédio do programa forte, poderia ser possível voltar a tratar de ciência e valores de
maneira simétrica, de modo que pensar ciência seria também outro modo de pensar política,
seria enfim dada a possibilidade de grupos sociais diversos tratar de temas científicos
específicos no interior de suas particularidades culturais no entanto sem precisar dissociá-las
da própria prática de construção dos fatos científicos.
Para Bruno Latour, no entanto, o problema não se resolve, ao conduzirmos o projeto
científico a uma disputa acerca da representação legítima da realidade não abriremos o
caminho à resolução dos paradoxos. Pelo contrário, os paradoxos se mantêm, a realidade
intocada, sempre infinitamente representada, continuará a ser incansavelmente buscada, não
faltarão aqueles a se dizerem legítimos representantes daquela realidade que mais ninguém
acessou. Em outras palavras a dúvida se mantém, envolta em um consenso de direito.
14 ―Os membros de um cultura de bruxaria dirão que acreditam em bruxos porque encontram bruxos. Um antropólogo pode
dizer que isso se dá porque eles simbolizam a experiência social de viver em um grupo pequeno e desorganizado propenso a procurar por bodes expiatórios (BLOOR,2008:260)‖
53
A questão aqui é de ordem representacional, não mais no sentido de cognoscente, ou
pelo menos não só, é uma questão de representação política no sentido estrito do termo,
daqueles humanos e não-humanos chamados a representar ora a natureza ora a política em
nome dos fatos duros das leis naturais ou do emaranhado de forças da vida social. Bruno
Latour desdobra os fatos em fatos-valores, não mais caminhando entre um pólo e outro da
constituição moderna. Quando as imagens tornam-se paradoxalmente múltiplas produzindo
todo tipo de excesso e imobilidade, a proposta é o retorno aos acontecimentos.
A única posição central que a Constituição reconhecia, como vimos anteriormente,
era o fenômeno, ponto de encontro onde convergem os dois pólos da natureza e do
sujeito. Mas este ponto permanecia terra de ninguém, um não-lugar. Tudo muda de
figura, conforme descobrimos, quando, ao invés de alternar sempre entre os dois
pólos da dimensão moderna, apenas, nos descemos ao longo da dimensão não
moderna. O não-lugar impensável torna-se o ponto de irrupção, na Constituição, do
trabalho de mediação. Longe de estar vazio, é lá que os quase-objetos, quase-
sujeitos proliferam. Longe de ser impensável, torna-se terreno de todos os estudos
empíricos realizados sobre as redes. (LATOUR,1994:95 grifos meus)
Aqui torna-se mais clara a posição ambígua de Shapin e Schaffer, ao não conseguirem
posicionar a bomba de ar nalgum lugar no momento em que destituíam-na de seu caráter
natural. A proposta de Latour consiste em acompanhar o processo de constituição dos objetos
científicos (por isso o interesse dos Science Studies por controvérsias) na sua rede de relações
tanto no que convencionalmente chamaríamos de materiais quanto sociais. A metodologia
Latouriana consiste em um dispositivo relacional capaz de cartografar a quantidade de
agenciamento necessários para a estabilização de um fato científico. Nisso consiste a diluição
de um contexto de justificativa e um contexto de descoberta, de um contexto cultural e
político e um contexto estritamente protocolar de experimentação científica. É por isso, diz
ele, que:
[...] toda a sociedade francesa do século XIX vem junto se puxamos as bactérias de
Pasteur, e torna-se impossível compreender os peptídeos do cérebro sem acoplar a
eles uma comunidade cientifica, instrumentos, práticas, diversos problemas que pouco lembram a matéria cinza e o cálculo. (LATOUR, 1994:9)
Ao invés de tomar um dos lados da partilha, no exemplo de Hobbes e Boyle, que
constatam ora a neutralidade científica ora a política apaixonada das ciências sem contudo
resolver o problema de ordem de representação dos fatos e dos valores. Latour propõe o
retorno à ―velha matriz antropológica‖ não definindo a priori qual a natureza dos fatos e dos
valores, tal como Hobbes e Boyle brigaram por fazer sem, no entanto resolverem o paradoxo.
Afinal,
Hobbes, em seu Leviatã, refaz ao mesmo tempo a física, a teologia, a psicologia, o
direito, a exegese bíblica e a ciência política. [...] Boyle retraça ao mesmo tempo a
54
retórica científica, a teologia, a política científica, a ciência política e a hermenêutica
dos fatos (LATOUR, 1994:35)
Na prática, os dois repartem as competências de coisas e pessoas, sem pensar num
processo de purificação que os lançaria em duas instâncias incomensuráveis. Natureza e
Cultura são artefatos; as grandes instâncias causais que na verdade são todo o efeito da prática
de mediação, ou construção e atribuição de competências a humanos e não-humanos. No
meio, apenas o processo ou as ―redes‖ como o quer Latour. Ao programa forte deixamos o
mérito da recusa da partilha. Seu englobamento não consegue diluir a visão partilhada, os seus
―objetos‖ recusam a sua explicação. A sociologia mostra, entretanto, que a sua modalidade de
existência por explicações sociais reside ainda no tempo da partilha, ou seja, o tempo em que
alguém tomou para si o direito de representar o mundo e as pessoas. Afinal, trata-se aqui de
escolher um ordenamento de representantes ou modos de representação, se simetrizamos a
natureza ante as forças sociais, devemos destacar então a proposta de Latour como uma busca
de uma simetria generalizada (1994), calcada em eventos, processos e não mais, pensou eu,
em proposições fixadoras. Transformam-se as antigas causas em efeitos de práticas, incumbe-
se a antropologia simétrica de acompanhar o processo de composição de nossa realidade,
imersa num jogo de relações em que não-humanos valem tanto quanto humanos e vice-versa.
Posso enfim seguir a intuição de que o processo de construção do conhecimento
interdisciplinar guarda toda a sua inovação, sem temer a queda nalgum tipo de naturalismo de
antemão seja ele naturalmente ‗natural‘ ou ‗social‘.
55
Segundo exorcismo – incursões metodológicas
As coisas se passam de maneira diversa entre a redação de um texto e o próprio
grampeamento de ideias, autores e frases no pensamento. É como se alguém pudesse
sobrevoar o conhecimento , sentir sua brisa, antes de peremptoriamente dar o primeiro passo.
Um caminhar que te trás ao chão; prostrando-te de tal maneira ao solo que é difícil partir daí
para além. Aliás, este próprio texto pode ser considerado um subterfúgio à recondução do
trabalho, eu, porém, o trato como um antelóquio do capítulo próximo, algo que exprime um
estado intermitente, um tanto angustiante, no processo de redação monográfica.
Digo isto não para rememorar aquela angustiosa, porém, não menos esperançosa busca
pelo conhecimento ―ali‖; não se trata de opor existência ao mundo, muito menos sujeito e
objeto. Espero que o capítulo anterior tenha sido suficientemente claro para apontar as
condições de existência de tal sensação para aquele que quer conhecer. Trata-se agora de
expor algo ligeiramente diferente do que a construção lógica de um trabalho monográfico; a
sua produção em mim mesmo. Não quero expressar desvarios solipsistas, pois acredito
compartilhar de sensações (analogicamente medidas) tais com alguns de meus colegas. A
angústia que sinto neste momento é daquela sensação de partilha com as frações de existência
da minha trajetória e engloba o próprio processo de elaboração da monografia; seria então
menos uma mono-grafia do que uma pluri-grafia. Um certo habitar daqueles fragmentos
bibliográficos, memórias, reuniões, fichamentos, conversas acaloradas e descontraídas entre
os diversos espaços que compõem um certo circuito acadêmico. O conhecer me afeta antes da
própria grafia.
Essa a questão, um afeto, o sobrevôo, não um caminhar detalhado em que cada gesto
visual torna-se sensação muscular, como naquele tal Funes dito o Memorioso de que nos faz
lembrar Borges. Uma sensação tomada no momento de uma relação, aliás, varias relações,
que agora retomadas num exercício de rememoração são também outra experiência,
ligeiramente distinta, ainda que estranhamente distante daquela certeza do afeto. Agora é a
tarefa da escrita que tece relações, que me afeta de outra maneira naquelas memórias que a
delineiam. Em mim a experiência, que agora se torna escrita, tece (por que já teceu no
momento em que experienciei) o trabalho todo, sem percorrê-lo. Pois percorrer é
experimentar de outra maneira outra vez.
Talvez a grafia não seja capaz de mediar o afeto que a traduz; há, todavia, afetividade.
A angústia segue na possível descontinuidade (por que vinda da diferença da experiência)
56
entre a relação de sentido que tem sido a minha trajetória e à relação de conhecimento que ora
pretendo submeter-me. Em mim, esse afeto que conhece destoa da certeza daquele que
escreve sobre o que conhece. Mas quem nunca hesitou a escrita sem, contudo, titubear naquilo
que sabia? Fico assim, na experiência intermitente de um conhecer que me afeta tão certo
quanto a minha própria existência e um conhecer outro, que escreve, que busca comunicar-se.
Que se coloca em posição de saber algo sobre os outros para outros, que tem a potência de
retraduzir a segurança que me afeta em algo seguro que não mais esteja em mim. Mas é
(in)completo; ganha vida ou perece ao transitar pelo pensamento de outros. Enfim, a
subjetividade e a objetividade do conhecer na sua capacidade de transportar-se a outrem; todo
o problema da autoridade do conhecer na (in)solubilidade da experiência.
*****
À sociologia do conhecimento científico e à própria sociologia cabe o meu
reconhecimento de que nem mesmo os artefatos científicos estão afastados das paixões do
mundo. Fica, entretanto, a ambigüidade que pude exprimir no capítulo anterior. Que a relação
de conhecimento estabelecida pela sociologia – aquela que representa ―cientificamente‖ os
humanos – esboroa ao voltar-se sobre os avessos de seus conceitos. Que a sua experiência se
distingue daquela experiência-objeto isso não o nego, alias, esta reflexão é fruto mesmo desta
condição. Agora, que se possa recorrer a um argumento de autoridade é outra coisa. Isto,
contudo, explicitou o movimento comum em ciência o de autoridade; do sujeito, da
experiência, da verdadeira realidade enfim. O estranho é que aos olhos de outros, uma certa
com-paixão direcionada ao ‗objeto‘ pode causar incomodo; no presente caso, traduz-se em
uma postura que pode ser considerada ligeiramente conservadora, que pretende dar voz a
aqueles que recusaram historicamente a dar voz a outrem, pois a sua fala era aquela dos fatos
mudos.
Isabelle Stengers em seu livro A invenção das Ciências Modernas, a partir do cenário
deflagrado pelas Science Wars afirma que o momento é o de criação de novas questões.
Afinal, como bem lembra esta filósofa, a reação dos cientistas deve ser vista como um ―grito‖
de triplo aspecto: ferimento, revolta, inquietação (2002:22-3). Ferimento por saber que sua
atividade não é apenas uma atividade social como qualquer outra. Revolta, pelo sentimento de
traição ocasionado pelos estudos sobre a ciência, pois aqueles que estudam a ciência se valem
de infinitos recursos retóricos para questionarem a realidade ―muda e proba da ciência‖. E
inquietação, por que estes recursos retóricos usados pelos estudos sobre a ciência são da
57
mesma natureza daqueles recursos utilizados pelos cientistas tanto nas resoluções de
controvérsias internas como na manutenção de sua autonomia em relação à sociedade.
Devemos, portanto, negar a razão de ser das práticas dos cientistas ou então restituir-
lhes a verdadeira razão de ser de suas práticas e ao fazê-lo reafirmarmo-nos enquanto
detentores do sentido das práticas alheias? Porém, como negar a ―boa intenção‖ dos hábeis
desmistificadores das ciências? O problema, como parece sugerir a filósofa belga, é que a
denuncia que desmistifica, passa a ficar numa posição em que pode ser caracterizada de
mistificadora. Ou seja, se os estudos da ciência pretenderem desvelar alguma coisa a mais
presente na prática científica, para também acusá-la de defender interesses particulares, como
não pensar que essa estratégia de desmistificação não transportaria à ciência os seus próprios
interesses? (idem: 25).
A saída diplomática na qual se inserem tanto Latour quanto Stengers, retoma a ideia
de restrição Leibniziana (STENGERS, 2002:25-9) ou o que Latour chamará de princípio de
irredução. Os termos pretendem associar verdade e devir; pensar os enunciados nas
conseqüências de sua enunciação, em suma, não ferir os sentimentos estabelecidos. Em ultima
instância é esta a preocupação de Bruno Latour ao identificar a explicação sociológica
enquanto uma afirmação ontológica. Disso não se depreende qualquer intenção conciliatória
ou ecumênica que pareceria ingênua, nem mesmo uma posição a-crítica. Como salienta
Stengers:
O problema para o qual aponta a restrição Leibniziana liga verdade e devir, confere
ao enunciado daquilo que se pensa como verdadeiro a responsabilidade de não
obstruir o devir: não ferir os sentimentos estabelecidos a fim de poder tentar abri-los
à aquilo que sua identidade estabelecida os obriga a recusar, combater, desconhecer.
(STENGERS, 2002:26)
Ora, é pensando nas conseqüências de uma postura teórica como a do programa forte
para o trato com um objeto que impõe a si mesmo um dispositivo de construção do
conhecimento interdisciplinar, que me detive até agora. Pois da relação que eu vier a
estabelecer com o objeto, pode advir a obstrução de um devir-interdisciplinar, fazendo
sobressaltar apenas o fazer sociológico.
Assim, cabe-me agora a condução de uma relação outra, cuidadosa em relação ao
devir. Em Latour a intenção acontece no retorno ao fenômeno, aos eventos, um procedimento
que delineie associações que articulam determinado devir. Aqui, proponho uma relação,
ciente de estar situado numa posição teórica especifica, ainda que esta posição procure não
58
obstruir devires. Penso que a intenção de conhecimento é ―imediatamente uma relação social‖
e, portanto ―é o efeito das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o
sujeito que ele conhece, e a causa de uma transformação na constituição relacional de ambos‖
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002:113-4)15
.
Neste sentido, propor uma relação é menos uma tentativa de oferecer equivalência de
forma-conteúdo entre dois conjuntos de experiências do que buscar uma ―experiência de
pensamento‖, no sentido de experimentar um pensamento outro (do outro), acompanhando-o
em seu próprio movimento ao recusarmos a vantagem epistemológica de uma relação de
conhecimento (VIVEIROS DE CASTRO,2002)16
. A este respeito, a perspectiva de Bruno
Latour nos cai muito bem. Apesar de ser proponente de uma teoria explicativa da
modernidade, e não menos crítica em relação ao seu objeto; os modernos. A sua sociologia
orientada às relações entre humanos e não-humanos e suas conseqüentes produções de
artefatos, conceituais ou materiais nos facilita sobremaneira.
É que a famosa ANT (Actor-Network-Teory) dispõe de um vocabulário que permite
ao cientista social deslocar-se pelo mundo social, sem dispor de uma meta-linguagem que se
sobreponha ao ‗nativo‘. Ao invés de antepor uma explicação social ao mundo que procura
estudar, trata de dispor de uma infra-linguagem (LATOUR, 2005) que toma o seu enfoque
num conjunto de relações de humanos e não-humanos que compõem o mundo social,
deixando que o mundo seja o meta-discurso que cabe ao sociólogo seguir.
La TAR [ANT] prefiere usar lo que podría llamarse un infralenguaje, que no tiene
otro sentido mas que permitir el desplazamiento de un marco de referencia al
siguiente. En mi experiencia, esta es una mejor manera de que se escuche fuerte y
claro el vocabulario de los actores, y no me preocupa particularmente que se le quite
peso a la jerga de los cientificos sociales (LATOUR, 2005:51).
É assim que numa controvérsia científica em plena efervescência um objeto torna-se
semi-objeto ou um quase-objeto (LATOUR,1994), numa sessão de etnopsiquiatria um sujeito
torna-se semi-sujeito (IDEM,2002), o importante é traçar o conjunto de elementos que
compõem aquele jogo de relações, um fluxo, um movimento que proverá à sociedade a sua
15
Se caracterizarmos ainda uma ligeira distinção entre a intenção dada a esta relação como sendo de ―conhecimento‖ e a
própria relação de ―sentido‖ que resulta da minha experiência com o tema em questão teremos no texto uma experiência outra que se perpetua à medida que produz agenciamentos. Neste caso, o texto carrega a destinação de uma apreciação por
pares, mais uma vez angustia-ansiedade – a experiência-texto se completa num devir-leitura. 16 Devemos considerar que a situação aqui é diferente da proposta de Eduardo Viveiros de Castro ao perspectivar o
pensamento ameríndio, tratando de fazê-lo transgredir as nossas próprias categorias de entendimento (ocidentais). A alteridade aqui não é radical, e em certo sentido, todos nós poderíamos reconhecer o processo interdisciplinar de construção
do conhecimento muito facilmente como legitimo de fato e de direito. Postura diferente encontra-se no perspectivismo
ameríndio onde pretende-se recusar a partilha de que todos temos de fato cultura, mas de direito apenas uma; a nossa. Daí a
postura de reconhecimento de um papel ativo do pensamento do outro em nosso próprio, ainda que isso signifique apenas um reconhecimento conceitualmente legítimo.
59
estabilidade ou não. É por isso que não há uma hierarquia entre sujeitos e objetos em e na
relação. Neste conjunto relacional existem actantes (2001) não apenas atores humanos;
objetos também possuem agencia, na justa medida em que nos fazem fazer algo, conduzindo-
nos a regimes de subjetivação/objetivação. E forçosamente não há distinção de domínios
analíticos, como contexto, abordagem internalista/externalista e etc. aqui toda gênese será
heterogênese pelo próprio caráter relacional da descrição (GUATARRI, 1992).
Sigamos então o rastro deixado por este processo de diferenciação no campo científico
brasileiro, que ora se apresenta em um total de 42 programas interdisciplinares na temática
ambiental. Como retraçar esse processo que se desdobra em mais ou menos 20 anos? Como
alcançar aquele fluxo diferenciante que equivale em temporalidade a aproximadamente à
minha idade? História, dirão todos! Com ares de obviedade concordo. Como, porém, busco
ao menos a co-existência entre vida e ciência, pergunto, reflito, respondo; escrevo.
À maneira de Latour, buscarei seguir o que ele chama de inscrições ou inscrição;
termos referentes a todo tipo de estabilização de um fluxo de relações. Ou seja,
transformações que ―materializam uma entidade num signo, num documento, num pedaço de
papel (LATOUR,2001:350)‖. O interessante destas tais inscrições é tê-las como vestígios de
articulações, agenciamentos, translações (de pessoas, interesses, coisas, instituições etc.) que
de alguma forma cristalizaram-se, não perdendo ainda assim a sua capacidade de mobilização
ou agenciamento. Enfim, voltar-se sobre documentos, textos, é acessar o vestígio temporal
dos fluxos que agenciaram a própria inscrição, produziram-na e por conseqüência, foram
desdobrados, circularam e circulam pelas mesmas.
Tendo como objeto estas inscrições, cabe posteriormente, identificar, ou seja, traçar a
virtualidade que elas compõem. Buscar-se-á compor a rede de relações que os próprios atores
reconhecem, utilizam, enfim, agenciam, para buscar dar sentido às suas práticas/discursos,
tomando cuidado para não estabelecer de antemão as causas das próprias causas dos agentes.
Não há aqui um ponto central do qual se desdobrem todas as outras relações como numa
sucessão causal. As redes são sistemas a-centrados e como tais possuem ―iniciativas locais
[que] são coordenadas independentemente de uma instância central (DELEUZE e
GUATARRI,1995:28)‖ o que garante tanto a multiplicidade de práticas e associações quanto
um certo afrouxamento para com o ponto onde se inicie a pesquisa. A rigor, existiriam tanto
60
mais associações quantos forem os actantes; as redes se estenderiam ao infinito junto com a
realidade17
.
Por fim, trato de carregar algumas recomendações de Latour para a tarefa de delinear
associações, ou o que ele chamaria de ―sócio-lógicas‖ dos atores. Para conseguirmos rastrear
estas associações ―A única coisa que podemos fazer é observar tudo o que está atado as
afirmações. Para simplificar, podemos estudar: (a) como são feitas as atribuições de causas e
efeitos;(b) que pontos estão interligados:(c) que dimensões e que força têm essas ligações,(d)
quais são os mais legítimos porta-vozes;(e) como todos esses elementos são modificados
durante a controvérsia. (LATOUR,2000)‖.
Como disse que não há ponto inicial para ―o traçar‖ das redes e como a ideia de uma
infra-linguagem soa mais como redizer textualmente o que o outro já disse ou reescrever a
palavra escrita por outrem, opto por partir da minha experiência. Rememoro o laço que
possibilitou este trabalho. Foi no ano de 2008 através de uma bolsa de iniciação científica que
obtive contato com o tema interdisciplinar, o projeto (ainda em aberto) consiste em
cartografar as concepções de natureza e desenvolvimento social presentes em programas de
pós-graduação interdisciplinares na área nomeada pela CAPES de Meio Ambiente e Agrárias.
O trabalho de início foi a coleta de dados estruturais de cada um dos 42 programas de pós-
graduação vinculados a esta área temática, como linhas e projetos de pesquisa, corpo docente,
grade curricular entre outras variáveis.
Acontece que se tratava de um projeto coletivo do qual faziam parte três alunos de
graduação e dois professores, um orientador e outro associado à pesquisa18
. Éramos três
graduandos em Ciências Sociais e dois sociólogos, ambos doutores, o orientador, doutor em
sociologia, mas com ampla inserção no campo interdisciplinar com a interface ambiente e
sociedade sendo mesmo integrante de uma pós-graduação na área. Já o professor associado
obtivera o seu doutorado em um programa interdisciplinar, o mesmo do qual fazia parte o
professor orientador.
Este é o quadro. A minha problemática de pesquisa já nascia com o próprio vínculo de
iniciação científica. Teríamos então um projeto de pesquisa de sujeitos em ―trânsito‖,
professores/pesquisadores que tratavam de refletir não só sobre a ambivalência de suas
posições, mas de produzir um conhecimento reflexivo sobre o próprio campo de saber que
17 Não fosse o fato da estabilização de redes e de seu cruzamento com outras redes, teríamos um acompanhar incessante de
micro-relações. Aqui a alusão ao paradoxo de Zenão pode tomar contornos mais fortes do que a metáfora. 18 Posteriormente associou-se ao projeto um mestrando na área de sociologia.
61
vinham contribuindo para a expansão e consolidação. Demorei a me aperceber desta
ambivalência, as coisas foram se tornando mais claras à medida que o tempo de projeto
passava, as reuniões corriam e alguns resultados eram construídos.
Segue-se que em dado momento nos deparamos com a necessidade de classificar ou
agrupar programas com estruturas similares de práticas interdisciplinares. De algum modo, os
critérios de classificação me eram desconfortantes e a meus colegas também. Aprendemos a
lidar com o nível de arbitrariedade de categorias analíticas bem como entender o fundamento
político-epistemológico que lhes dá movimento. A ambivalência dos proponentes da pesquisa
no trânsito entre campos de práticas disciplinares e interdisciplinares nos fazia partir de um a
priori teórico-metodológico sobre o teor das práticas interdisciplinares19
. Em outras palavras,
tínhamos uma concepção de interdisciplinaridade – meio fluida de princípio para mim, que
era novato no tema de pesquisa – mas que era meio que uma resultante deste ―trânsito‖ dos
dois pesquisadores tutores do projeto. Ambos tem inserção em um programa interdisciplinar,
ambos carregam em si um sentido de prática interdisciplinar, pensam, refletem, discorrem
sobre a própria interdisciplinaridade. Essa é a explicação retrospectiva de meu desconforto em
dizer, classificar e agrupar outros sem conhecer o que é a interdisciplinaridade. Essa, porém, é
a necessidade premente de uma reflexividade do interior de uma posição no campo, como nos
apontaria Pierre Bourdieu e conforme consigo entender.
Em mim aquilo pulsava de modo desconfortante, eu não fazia, não faço
interdisciplinaridade, de princípio não me sentia bem ao tomar uma posição sobre a mesma,
afinal eu mal a conhecia e, todavia não estou certo de que a conheço. No entanto, me
interessava cada vez mais pela crítica à ciência e pela outra concepção do fazer científico que
vinha até mim neste transcurso de tempo. Voltei-me ao estudo da sociologia do
conhecimento, porém nunca satisfeito com certos sociologismos (alias esse desconforto ainda
me toma de assalto algumas vezes, todavia não consigo identificá-lo nos meus exercícios
auto-analíticos). Mantinha-me na angustia da dúvida, é fato ou valor? Verdade ou mentira?
Ciência ou Ideologia?
19 Floriani et al. Panorama preliminar da pós-graduação interdisciplinar em Meio Ambiente e Desenvolvimento in: RBPG,
Brasília, v. 7, n. 14, p. 523 - 555, 2010. Neste artigo buscamos mapear alguns dados estruturais de 42 programas
interdisciplinares da área de meio ambiente e agrárias ao que os classificamos entre três categorias que indicariam condições de práticas interdisciplinares e a organização dos programas: programas tipicamente interdisciplinares, pois reúne um
conjunto de disciplinas das ciências da vida, da natureza e da sociedade; programas considerados destoantes, uma vez que
são monotemáticos, com alguns títulos como: Engenharia: energia, ambiente e materiais; Ecologia aplicada; agronegócios;
modelagem em ciências da terra; recursos naturais; física ambiental e um terceiro grupos de programas em ciências ambientais
62
Passei então a querer refletir sobre a minha própria posição naquele projeto, não era
praticante interdisciplinar, mas estava lá, não era ainda nem totalmente inserido no campo das
ciências sociais, um mero graduando, ainda que possuísse uma origem disciplinar. Minha
atenção voltou-se para as concepções de ciência em jogo, pela própria condição ambígua em
que havia me encontrado. Passei a querer compreender como o conteúdo do conhecimento
poderia ser socialmente construído e ao mesmo tempo real, objetivo. A discussão de uma
concepção de ciência ocupava um papel articulador no interior do projeto coletivo (foi assim
ao menos que a compreendi), pois em hipótese, na medida em que se diferenciariam práticas
de produção de conhecimento também difeririam as concepções de natureza e
desenvolvimento social me programas interdisciplinares.
Neste ínterim, confeccionei dois relatórios de iniciação científica; o primeiro ainda
muito amplo, com a intenção de identificar a ―ideia de ciência‖ em programas de pós-
graduação interdisciplinares. Voltei-me à bibliografia clássica de filosofia da ciência, bem
como retomei alguns textos indicados pelo orientador, os quais abordavam uma forte crise
paradigmática da ciência moderna bem como do projeto moderno, caracterizando o status quo
no qual emergiriam propostas diferenciadas de produção de conhecimento. No segundo
relatório, já atormentado pela ambivalência de posições bem como decidido a reflexionar
sobre a mesma, tratei de esboçar um texto a partir da sociologia da ciência, onde tive contato
com os trabalhos de David Bloor, Bruno Latour entre outros. Neste período foi que passei a
esboçar muito do que já apresentei até aqui; tinha a intenção de conhecer as instancias de
produção e circulação da produção acadêmica interdisciplinar. Pensei então em etnografar os
módulos de pesquisa do Doutorado Interdisciplinar em Meio Ambiente e agrárias da UFPR o
mesmo programa do qual fazem parte os dois professores tutores da pesquisa. Por
adversidades temporais não pude concretizar este objetivo, ao que me voltei a trabalhar com
um livro-relatório que discorre sobre a experiência de pesquisa da primeira turma de
doutorado interdisciplinar do programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR..
Além disso, tive acesso a diversos artigos e alguns documentos da própria CAPES referentes
à temática interdisciplinar.
Antes de prosseguir com a apresentação dos dados convém uma ultima ressalva, que
advém menos da tentativa de justificar os limites discursivos deste trabalho do que apontar
para uma condição do meu próprio processo de aproximação com o tema. A grande
contribuição dos science studies para a compreensão do que vem a ser a ciência, vem do seu
enfoque etnográfico, a sua característica distintiva é seguir os cientistas em ação. Entretanto,
63
não é o que tenho para oferecer neste trabalho, é por isso que deixo claro no prólogo o fato
deste trabalho não ser uma etnografia; não o é. Relatei até agora a minha experiência de
escrita e de composição do trabalho, ela, contudo, não é a experiência que tento conhecer.
As práticas interdisciplinares chegam até mim de varias formas, como pude contar
logo acima. Aqui opto por trazer uma composição daquilo como pude a experienciar. Trago
como objeto-referência este livro-relatório intitulado Desenvolvimento e Meio-Ambiente: em
busca da interdisciplinaridade, é daí que extrairei a maior parte de relatos sobre a construção
interdisciplinar do conhecimento, eventualmente trarei a contribuição de alguns atores-autores
do próprio campo interdisciplinar, para esclarecer ou pontuar algum elemento presente no
próprio livro-relatório. Como não há a possibilidade de se fazer uma descrição da própria
escrita que explica o processo de construção do conhecimento, pelo fato de ter que reescrevê-
la tal como ela se encontra escrita, haverá quem veja nos textos subseqüentes às citações uma
espécie de retórica da repetição, quase que uma paráfrase do que os atores-autores dizem.
Outros trechos provavelmente pedirão mais do texto do que aquilo que ele pode dar. É o caso
de justificar com a minha experiência, a aproximação com o tema excede aquilo que é a
experiência escrita. Enquanto a isto, permaneço tranqüilo. Estas palavras serão lidas, espero,
por aqueles a quem a experiência interdisciplinar em questão provoca sentidos.
64
A interdisciplinaridade pelo avesso: Comentários acerca do relatório de pesquisa
coletiva de um Doutorado interdisciplinar em Meio-Ambiente e Desenvolvimento
Buscando os atalhos da constituição do conhecimento
O conceito de interdisciplinaridade encontra muitas dificuldades para ultrapassar uma retórica
axiomática e oferecer procedimentos concretos de construção do conhecimento. [...] Por outro
lado é possível praticar a interdisciplinaridade sem necessariamente questionar ou desprezar os
recortes disciplinares, concebendo-a como um mosaico de olhares complementares que,
associados, reconstituem a complexidade da realidade nas suas várias dimensões.20
(grifos meus)
É com esta fala que me deparo ao abrir o livro Desenvolvimento e Meio Ambiente: em
busca da interdisciplinaridade, publicado no ano de 2002 pelo grupo de pesquisadores
criadores do Doutorado interdisciplinar em Meio ambiente e Desenvolvimento da UFPR. O
trecho se encontra na orelha do livro e se nos detivermos aí por um momento, veremos que
ele nos dá passagens a alguns temas e lugares que constituem vínculos importantes para
composição desta inscrição. Afinal, o livro que tenho em mãos é um produto, trata-se da
ciência pronta,e portanto é uma espécie de ―síntese‖ ativa, interessada. Pois advém de uma
conjunção de fatores e é destinada a selar ao menos num primeiro nível as bases articuladas,
movidas e seccionadas que possibilitaram a sua emergência para daí em diante circular,
contribuindo para a territorialização de um tipo de prática de produção do conhecimento. É
por isso que do trecho acima até o final de sua escrita no livro vamos de sobrevôo por alguns
possíveis entraves à prática interdisciplinar e outras conjunções positivas; desde a constatação
de sua efetiva possibilidade materializada no presente livro-relatório à presentificação de um
importante vínculo institucional.
A orelha é escrita pela Chefe da Seção de Políticas e Cooperação Internacional em
Ciências Sociais do setor de Ciências Sociais e Humanas da UNESCO, o programa de
Doutorado em Meio ambiente e Desenvolvimento (daqui em diante tratado como MADE)
abre suas atividades com a chancela da Cátedra UNESCO de Desenvolvimento Sustentável.
Por outro lado, vemos no trecho citado, um discurso que se refere – com ares de resposta aos
descrentes – à dificuldade do conceito de interdisciplinaridade ultrapassar uma ―retórica
axiomática‖ para práticas concretas de pesquisa. Pois o texto trata de apresentar os resultados
efetivos de uma prática interdisciplinar. Trago em seguida um trecho que se refere ao papel
das disciplinas científicas no processo de construção do conhecimento, o que nos abre o
caminho para entendermos tanto a concepção epistemológica de prática de pesquisa quanto
20 A partir de agora distinguirei os trechos documentais dos trechos de autores com os quais dialogarei por um critério de
espaçamento. As mais curtas referem-se a autores ―interdisciplinares‖ comentando sobre seu próprio campo, as mais longas referem-se livro-relatório tomado como objeto de análise.
65
uma certa concepção do real: a complexidade da realidade reconstituída em suas varias
dimensões por um mosaico de olhares (disciplinares) complementares.
Disso tudo se segue que a produção social do conhecimento é multicentrada, e por se
tratar de um livro que traduz a primeira experiência interdisciplinar na UFPR é importante
atentar para as relações se articulando por discursos. A articulação político institucional que
impulsionou o projeto; o sistema de Cátedras da UNESCO, ―envolve treinamentos, pesquisas
e outras atividades de produção de conhecimento, em consonância com os objetivos e
diretrizes dos programas e áreas de maior prioridade da UNESCO21
‖. O programa ao
vincular-se a uma cátedra, reitera o seu caráter ativo tanto político quanto intelectual. O
―ultrapassar a retórica axiomática‖ no discurso acima parece denotar uma intenção voltada
para uma prática de formação intelectual, politicamente orientada, ao menos no processo de
organização e composição do quadro pedagógico no qual se estrutura o programa de
Doutorado. O vínculo institucional com a UNESCO desdobra caracteres institucionais
relevantes, na medida em que fazem convergir ao programa recursos financeiros e
intelectuais22
que provavelmente contribuíram para dar um certo peso tanto para a
pertinência/ autoridade do projeto quanto para o afrouxamento das pressões institucionais
pelas quais eventualmente viria a passar um projeto de cunho interdisciplinar.
É o que já afirmava dois anos antes o professor Paulo da Cunha Lana (um dos editores
do próprio livro sobre a primeira experiência do doutorado Interdisciplinar) num artigo
intitulado Cátedra Unesco para o desenvolvimento sustentável: o exemplo da Universidade
Federal do Paraná (UFPR) em que apresenta um esboço das relações que fomentavam o
movimento de diferenciação da comunidade científica da UFPR para os interesses de pesquisa
interdisciplinares. O artigo consta na primeira publicação23 da revista do Programa de
Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR, o que já revela um período
importante de consolidação do programa.
21 http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/networks/unesco-chairs-programme/ (acessado em 19/05/2011) 22 A participação da UNESCO no Programa consiste em uma contribuição tanto intelectual quanto financeira.
Especificamente, a contribuição financeira da UNESCO destina-se, principalmente, a atender os seguintes tipos de encargos e despesas: Investimento inicial, com objetivo de facilitar o contato entre as instituições envolvidas na elaboração do projeto de
cooperação do Programa de Cátedras UNESCO; Suporte para as atividades desenvolvidas pelo Programa de Cátedras, que
podem beneficiar diretamente as instituições de Educação Superior dos países em desenvolvimento, bem como os países da
Europa Central e Europa Oriental. http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/networks/unesco-chairs-programme/finance-and-resources-of-a-unesco-chair/#c154162 (acessado em 19/05/2011) 23
Houveram outras publicações, como salienta o mesmo artigo, é o caso da revista intitulada ―Cadernos de Desenvolvimento
e Meio Ambiente, com publicação iniciada em 1993 e que depois muda de nome para a atual revista ―Revista de Desenvolvimento e Meio Ambiente‖ do qual se segue que este artigo supracitado conste na primeira edição.
66
―A complexidade das relações entre o homem e a natureza expõe, de forma clara, os
limites de quaisquer abordagens reducionistas para o trato da questão ambiental.
Isto é particularmente verdadeiro quando se toma como referência a temática do
meio ambiente e desenvolvimento. Neste contexto, há pelo menos duas décadas que
diversas abordagens ditas integradoras, sejam elas multidisciplinares,
interdisciplinares ou transdiciplinares, são discutidas em todo o mundo, tanto no
plano epistemológico como metodológico. [...] É no marco dessas tentativas de se
forçar a interação de distintas disciplinas para a compreensão e o manejo das
complexas situações ambientais que a Universidade Federal do Paraná vem
trabalhando desde 1987, com a criação de seu Núcleo Interdisciplinar de Meio
Ambiente e Desenvolvimento (NIMAD), unidade interdepartamental e intersetorial
que congrega atualmente mais de 50 departamentos da universidade. Uma das
constatações iniciais deste Núcleo e dos pesquisadores e professores a ele associados foi a de que era necessário trazer para a academia práticas de reflexão e ação que
se desenvolviam principalmente em outros âmbitos da sociedade, como os próprios
órgãos públicos, federais, estaduais e municipais, além das organizações não
governamentais, voltados para o trato imediato de problemas de conservação e
desenvolvimento. A discussão da questão ambiental e as tentativas de implantação
destas abordagens integradoras não prosperavam na universidade por problemas
estruturais, históricos e epistemológicos‖ (LANA, 2000:103 grifos meus).
Neste olhar retrospectivo; 20 anos paras discussões sobre as ditas abordagens
integradoras e 13 anos para o início de atividades de pesquisa interdisciplinares na UFPR
(NIMAD) a experiência interdisciplinar na universidade parece acompanhar as discussões
com alguns anos de diferença. O interessante é frisar que não se sublinha especificamente o
que vem a ser estas abordagens integradoras, a não ser a ideia de que há uma deliberação de
interação entre disciplinas com um objetivo comum de manejo e compreensão de complexas
situações ambientais.
A ideia de uma interdisciplinaridade na interface ambiente e sociedade já se propunha
ativa, interessada, não só na compreensão de situações ambientais complexas, mas no intuito
de administrar estas condições. A menção à transposição de reflexões e ações de outras
instâncias da sociedade para a academia me causa grande interesse, pois afinal, como tentei
apresentar na seção anterior, um dos grandes problemas da sociologia da ciência é tratar desse
movimento; política/ciência. Aqui vejo uma intenção deliberada de partir dessa conjunção e
de conduzir a uma transposição de problemáticas entre academia a sociedade.
Finalmente, o apontamento para a questão da estrutura organizacional que este tipo de
prática suscita, interdepartamental e intersetorial, expõe tensões políticas, burocráticas dentre
outros possíveis problemas, como, por exemplo, nos dizeres do próprio autor, ―problemas
epistemológicos‖. Ora, nesta mirada entre dois relatos textuais publicados e, portanto,
divulgados em seus devidos meios de circulação, vemos que a proposta de prática científica
interdisciplinar deve passar por inúmeras instâncias ao colocar-se como uma posição legítima.
Em algumas linhas o professor Lana nos remete à uma distância temporal de 20 anos para a
67
circulação destas questões referentes à interdisciplinaridade e meio ambiente em âmbito
internacional e a diversos espaços sociais que demandariam inúmeros estudos de caso para o
acompanhar da extensão do movimento que ali ele pretende representar. De um lado a outro,
questões interessantes que nem de longe parecem fáceis de lidar muito menos de se resolver.
A incorporação de uma temática a ser trabalhada de modo conjunto por diferentes disciplinas
científicas – Meio Ambiente e Desenvolvimento; O problema suscitado por esta iniciativa no
sentido de promover uma discussão e interação maior entre as diversas instâncias da
sociedade, principalmente no que se refere ao papel da universidade. E a recomposição
estrutural que advém da incorporação destas questões no interior da comunidade científica.
Aí temos o indício explicativo da sociologia da ciência; a cada movimento que implica uma
produção de conhecimento, a cada novo objeto que passa a constituir-se, uma gama de outros
espaços, discursos e entidades passam a ser reconfiguradas, realocadas.
O autor ainda reconhece na cátedra todos os vínculos que apontamos aqui no que se
refere à concepção de um programa interdisciplinar de ensino e pesquisa, reiterando o
compromisso político nos seus pressupostos:
―Em 21 de março de 1994 foi oficialmente concedida à Universidade Federal do
Paraná uma Cátedra UNESCO para o Desenvolvimento Sustentável. A Cátedra da
UFPR compreende, desde a sua concepção e implantação, um conjunto de
atividades de formação, de pesquisa, de informação e de documentação. No centro
destas atividades, estão a valorização dos recursos naturais e a análise das
dimensões econômicas, sócio-políticas e sócio-culturais do desenvolvimento
sustentável em uma perspectiva interdisciplinar. Estes pressupostos devem, por sua
vez, conduzir à aprendizagem de técnicas aplicáveis em distintas regiões e ao
reforço das capacidades de formulação de políticas integradas de meio ambiente e desenvolvimento” (LANA, 2000:103 grifos meus).
A prática interdisciplinar no domínio ambiente e sociedade, ainda que demarque seu
campo de atuação na interação entre dois pólos, parece comportar, no âmbito de sua
constituição epistêmica, questões que excedem as proposições de uma epistemologia clássica,
aquela que busca desvincular a ação política de uma ação científica. Não poderíamos aqui
reduzir a correlação entre diversos domínios que vem sendo rastreados, interpretando-os
como uma utilização ideologicamente interessada da ciência, auditando (com enunciados
acusativos do tipo ―perda de autonomia científica‖ e etc.) o fluxo de associações que
sustentam esse conjunto de práticas. Pois se trata de um outro movimento, trazer ao centro das
questões científicas temas como a valorização dos recursos naturais no âmbito do
desenvolvimento sustentável, estabelecer como problemática a formulação de política
integradas de desenvolvimento sustentável. Dizer destas posições que elas não passam de
usos politicamente orientados da ciência não é o que está em jogo, se quisesse ficar por aí
68
bastaria aplicar a mim mesmo uma concepção de ciência, aquela que exclui toda a política de
si ou aquela que divide domínios de práticas de pesquisa pura e aplicadas. O fato é que se
institucionalizam novas práticas que trazem outros tipos de perguntas; entender de que modo
isto se rearticula com o espaço acadêmico e se assenta em um modelo de produção do
conhecimento é mais importante do que classificarmos de antemão o que tais práticas são ou
devem ser.
Antes de prosseguir convêm nos detenhamos um momento no discurso em questão
para que se possa visualizar um ponto que me parece relevante para a compreensão da prática
interdisciplinar e a concepção de ciência que ela é capaz de suscitar.Prosseguindo na
descrição do processo de desenvolvimento do programa Interdisciplinar da UFPR, chancelado
pela UNESCO, o autor nos deixa algo que me pareceu importante evidenciar, pois delimita
condições para a prática de pesquisa e de ensino.
―É ilusório esperar formar especialistas interdisciplinares em meio ambiente, no
âmbito de programas acadêmicos forçosamente limitados a uns poucos anos. Um
objetivo mais realista é capacitar profissionais que já possuem uma especialização
para um trabalho de integração nas interfaces de um objeto novo. O objetivo não é o
de criar novos especialistas ou disciplinas, mas sim promover a interação de profissionais já especializados em suas respectivas áreas de formação, com título de
mestre ou experiência equivalente.[...] O pressuposto é de que o doutorando já é um
especialista na sua área. O conhecimento interdisciplinar deverá capacitá-lo a
analisar problemas que não se explicariam pelo conhecimento unidisciplinar.‖(IBDEM:104)
Aqui vemos um elemento interessante, no que se refere à prática interdisciplinar. A
sua delimitação a um programa de Doutorado24
,tem indícios de uma condição epistêmica de
possibilidade, a saber, o conhecimento interdisciplinar impõe um conhecimento disciplinar
especializado, ainda que a esfera de ação de um conhecimento ―unidisciplinar‖ seja
apresentada como insuficiente para a resolução de determinados problemas. Neste sentido, os
problemas é que atravessariam as diversas disciplinas constituindo um objeto coletivo, como
é o caso do Meio Ambiente e Desenvolvimento25
. Como salienta o professor Paulo Lana o
recurso utilizado na proposta do programa interdisciplinar MADE consiste em um projeto de
pesquisa coletivo com uma temática comum a todos os doutorandos.
24 Atualmente o Programa de pós-graduação do MADE conta com um mestrado, demonstrando uma possível mudança de
concepção para práticas interdisciplinares, no entanto, como veremos, outros programas surgiam no mesmo período já com
alternativas entre mestrado e doutorado. 25 Ainda que estas características busquem delimitar o que vem a ser práticas de pesquisa interdisciplinares, não é possível
reduzir a uma formula de produção de conhecimento nesta área. Para um maior esclarecimento sobre a composição de
modelos interdisciplinares no interior da área de Meio Ambiente e Agrárias ver o já citado artigo de FLORIANI, D. Et al
Panorama preliminar da pós-graduação interdisciplinar brasileira em meio ambiente e desenvolvimento:2004-2006 .
69
―O primeiro programa de pesquisa, que está sendo desenvolvido pela primeira turma
do doutorado, com16 alunos selecionados no final de 1993, denomina-se
“Interações entre os processos produtivos, meio ambiente e qualidade de vida na
região da Baía de Paranaguá/PR: geração de propostas de desenvolvimento” (LANA, 2000:104:105)
Esta estratégia tem implicações interessantes para a prática de produção de
conhecimento, pois o objeto ou tema de pesquisa possui um fundo comum, que há de se
imaginar predefinido, ao menos genericamente, pelo conjunto de docentes do programa e
coloca em jogo uma outra postura tanto para o critério de seleção de pesquisadores a serem
incorporados na programa de pesquisa, quanto para o direcionamento das pesquisas que virão
a ser concebidas no interior do programa. No caso em questão o nome do projeto coletivo é
sintomático, ao final: ―geração de propostas de desenvolvimento‖; cabe compreender de que
modo o conhecimento científico é acionado para o trato destas questões.
Até agora, tenho apresentado intuições e relatos sugestivos do que se passa no
processo de formação e consolidação de um determinado conjunto de práticas sociais, no
presente caso, práticas interdisciplinares de produção do conhecimento científico. Entretanto,
cabe ressaltar que este movimento, que busca afirmar a sua identidade em oposição a outras
maneiras do fazer científico (moderno), não é homogêneo e não pretendo apresentar com o
enfoque deste caso específico a gênese do campo. Porém, creio ainda assim poder ter o mérito
de cartografar, pela fala dos atores, as mobilizações que devem ser executadas para a
articulação e a consolidação de um conjunto crescente de práticas de produção do
conhecimento. Isto quer dizer que teremos de passar a vista por algumas inscrições que
indicam a diferença-unidade do teor de práticas interdisciplinares, e que por isso mesmo
apresentam o seu caráter social (e de associação). Em outras palavras, penso que o seu
potencial de mobilização e multiplicação é consoante com a multiplicidade de práticas de
produção do conhecimento. No capítulo seguinte, me voltarei sobre alguns relatos da
constituição de instâncias representativas no próprio campo interdisciplinar. De um
comentário mais detido sobre os comitês de avaliação da CAPES, a um conjunto de relatos
que incidem na criação de um espaço coletivo de discussão de tais práticas de produção do
conhecimento, faremos dali em diante um panorama da ANPPAS (Associação Nacional de
Programas de Pós-graduação em Ambiente e Sociedade). Por ora, nos detenhamos no livro-
relatório de pesquisa do MADE, para que possamos aprofundar as condições de existência das
intuições que acabo de apresentar.
70
O livro-relatório
Ao tomar como objeto este livro-relatório sobre práticas de pesquisa interdisciplinares
tive como intenção, compreender de que modo se opera a construção do conhecimento nestes
termos. Ainda que tenha uma séria restrição empírica, pois trata-se de interpretar um texto
sobre as condições de produção desse conhecimento e não o acompanhamento do mesmo em
seu processo, julgo que por se tratar de um livro sobre a experiência dos próprios
pesquisadores poderei seguir ao menos a intuição do programa de pesquisa em sociologia das
ciências. A saber, que é possível transitar do conteúdo do conhecimento à sociedade sem que
precisemos cindir o processo de produção do conhecimento em domínios distintos
(contexto/conteúdo).
Tomar o texto metodológico como objeto de estudo não me deixa menos
despreocupado com a maneira que passarei a descrevê-lo. É exatamente pelo fato de ele já ter
sido escrito que me sinto obrigado a justificar a possibilidade de problematizá-lo. Ora, todo
processo de construção do conhecimento científico tem em relação com sigo mesmo, uma
série de condições das quais a possibilidade de tal ou qual prática de produção do
conhecimento passa a ser justificável. Com a interdisciplinaridade não poderia deixar de ser
diferente. Por isso, tratar da primeira experiência de pesquisa de um programa de doutorado
interdisciplinar tem essa vantagem. Como o livro-relatório tem a intenção de comunicar esta
experiência ele carrega em si, passagens a estas condições. Veja-se que não se trata de fazer
operar as categorias de contexto de justificativa e contexto de descoberta, mas de apresentar
de que modo estas características se traduzem em práticas de metodologia de pesquisa e
passam a ser fundamentais no processo de construção do conhecimento.
Do mesmo modo que iniciei esta monografia tentando reconhecer as condições de
possibilidade de uma sociologia do conhecimento científico e suas consequências, tentarei
destacar em passagens, do livro-relatório, o que compõe este quadro que precede e justifica as
práticas interdisciplinares.
O texto introdutório inicia a sua retórica de sensibilização destacando que a
comunidade científica internacional estaria passando por um profundo movimento de
interrogação de categorias-chave do pensar científico que estariam podo em xeque a
pertinência dos recortes disciplinares no interior da comunidade científica; concepção de
objeto, o estatuto do observador, a pertinência da busca por regularidades etc.. Por outro lado
como já observamos na análise feita pelo professor Paulo Lana, há um profundo
71
comprometimento com temas relacionados ao meio ambiente. Aliás, no meio desta
desterritorialização do modo de se organizar as práticas científicas, o próprio campo produz
trabalhos reflexivos26
a respeito das condições sociais que possibilitaram a emergência da
prática interdisciplinar e a sua relação com a temática ambiental, o ambientalismo e a
sociologia ambiental no Brasil. Por ora, cabe apenas retratar este ponto como conhecimento
de fundo das praticas interdisciplinares27
.
Na continuidade do livro-relatório, desdobram-se a partir desse quadro de crise, os
imperativos para a prática interdisciplinar. Trata-se de esboçar um deslocamento entre a
concepção do real que as práticas tradicionais de produção do conhecimento produziram
(hiper-especializado; real fragmentário) e uma certa consciência da unicidade da realidade que
agora compete à interdisciplinaridade restituir.
O desafio fundamental ao se adotar um enfoque interdisciplinar é tentar restituir, ainda que de
maneira parcial, o caráter de totalidade e complexidade do mundo real dentro do qual e sobre o
qual, nós todos pretendemos atuar. [...] O mundo real em sua essência é total. (ZANONI et. Al,
2002:9)
Essa condição de totalidade torna-se o ponto articulador entre uma determinada
leitura da ciência moderna, seus conseqüentes modos de intervenção na realidade, seus
desdobramentos institucionais e uma outra modalidade de prática científica que vem se
desenhando. Uma leitura que procura historicizar um modo de fazer ciência faz-se necessária
para o reconhecimento de que determinados tipos de prática tem um determinado ponto de
origem, o que implica a possibilidade da recusa da sua prática nos termos em que se tem dado.
A novidade trazida pelo pensamento científico, quando comparado a outras formas de pensamento, foi justamente a de aceitar dividir o mundo em facetas ou níveis de organização diferentes [...] o
recorte do real pelas disciplinas foi o movimento histórico do pensamento humano que viabilizou
o surgimento e o desenvolvimento do pensamento científico. Este recorte é arbitrário, não apenas
26 Leila da Costa Ferreira (2004), conduz alguns textos que refletem sobre as interações entre a questão ambiental, as
condições de incorporação da problemática ambiental no campo das ciências sociais, e as práticas interdisciplinares. A relação entre problemáticas ambientais e as ciências sociais aqui no Brasil institucionalizou-se produzindo uma gama de
trabalhos na sub-área chama sociologia ambiental e a partir deste quadro passam a haver ressonâncias entre a problemática
aventada pela sociologia ambiental e as demandas de pesquisa interdisciplinares. Este quadro, como veremos mais adiante
produzirá uma diferença entre concepções de práticas interdisciplinares, ao menos uma diferença que é marcada a partir da própria reflexividade dos atores sobre suas práticas. Para maiores informações sobre a incorporação da problemática
ambiental no campo das ciências sociais ver a dissertação de Alexandre Lucas Pires (2007)Reflexões sobre a gênese dos
estudos ambientais brasileiros: estudo de sociologia das ciências sociais , trabalho que aliás foi orientado pela professora
Leila C. Ferreira. 27Isto é de tal modo importante que deveríamos tratá-lo de modo mais cuidadoso, não fossem os limites deste próprio
trabalho. Já que a questão ambiental é um tema relativamente tocante ao senso comum, cabe apenas ressaltar que esta
modalidade de pesquisa interdisciplinar é uma resposta a esta situação de crise ambiental pela qual temos passado. E em que
pese as restrições contextuais de que dispomos o trabalho, o enfoque no processo de produção do conhecimento destas práticas interdisciplinares, creio me absolverá, pois é ali que se entrelaçam tais problemáticas.Ademais, meu intuito aqui não
é contribuir para a gênese de um campo socioambiental, numa reconstrução histórica das condições sociais de emergências
das questões ambientais. Pois o próprio campo trata de fazê-lo. Aqui pretendo apenas reunir estas características evidentes e
vê-las articuladas no processo de produção do conhecimento.
72
na medida em que segmenta uma totalidade complexa, mas também por ter nascido de um
contexto cultural e sócio-econômico particular. [...] (ibidem).
O reconhecimento deste nível de arbitrariedade não implica numa negação do próprio
resultado do fazer científico. Muito pelo contrário, trata-se aqui de justificar outra modalidade
de produção do conhecimento. O que está em questão é que os moldes que propiciaram a
organização e desenvolvimento da prática científica, puderam produzir um nível sem
precedentes de intervenção no real. A emergência de práticas interdisciplinares não dispõe de
uma recusa deliberada das aquisições do conhecimento científico. Como reiteram os autores:
A característica principal do pensamento científico, quando comparado a outras formas de
representação do mundo, sejam elas míticas, religiosas ou ideológicas, é a de se apoiar em
instrumentos de descrição e de análise de objetos e dos fatos que transcendem as diferenças entre as culturas e as épocas e possibilitam, ultrapassando o espaço e o tempo, um acúmulo do saber. Ele
nunca se confunde com o dogma, ficando sempre aberto à crítica, às dúvidas e a aprimoramentos.
(ibidem: 10-11)
O ponto de demarcação não é uma reavaliação do produto do conhecimento científico
(através de um questionamento de sua objetividade, de suas aquisições e etc. como parece
possível à sociologia e antropologia da ciência), ele na verdade conduziu a uma certa ruptura
com outras modalidades de pensamento pelo caráter objetivo e trans-histórico de seu produto.
Vejo aqui uma preocupação de não atentarem contra as bases objetivas da ciência, muito pelo
contrário é o desenvolvimento técnico-científico e seu crescente grau de intervenção no real
que possibilitaram um olhar bi-partido ―confirmando o divórcio que vinha se estabelecendo
[...] entre homem e natureza (ZANONI et al 2002:10)‖. É o sucesso da prática científica, sua
distribuição e grau de influência pela e na sociedade a fora que conduziu a própria separação
sociedade/natureza, dando condições favoráveis à presente crise ambiental28
.
A característica de dissonância entre as práticas disciplinares e as práticas
interdisciplinares, se traduz nessa qualificação do modelo disciplinar enquanto um produto
sócio-histórico arbitrário. O qual pelo seu grande enraizamento na cultura ocidental acabou
por ser esquecido enquanto um recurso formal, que possibilitou a intervenção na realidade, e
engendrou uma repartição de territórios disciplinares.
[...] o recorte disciplinar, outrora instrumento metodológico para organizar o pensamento, se
transformou em partição de territórios [...] As fronteiras disciplinares serviram para construir
divisões institucionais – principalmente nas universidades – que se transformaram
28 Conforme salienta FLORIANI (2000) ―Uma das principais críticas dirigidas ao atual processo de produção do
conhecimento científico deriva de sua hiper-especialização (leia-se fragmentação), trazendo graves conseqüências para o entendimento e a explicação da realidade, principalmente no domínio das ciências da vida, da natureza e também da
sociedade; como as sociedades modernas estão apoiadas em bases produtivistas, ao conhecimento científico é imposta uma
racionalidade instrumental, traduzindo-se em técnica intervencionista, tanto na natureza como na sociedade‖. Esta relação é
freqüente não somente no campo socioambiental, mas também é um dos problemas freqüentemente abordados pela sociologia e antropologia das ciências.
73
progressivamente em redes de interações privilegiadas, quadros de afirmação de identidade
intelectual e, por fim, em territórios de poder (ZANONI et al,2002:11)
É neste descompasso entre a qualificação formal da prática científica e suas
conseqüências ―naturalizantes‖ que a prática interdisciplinar tenta se estabelecer. Afinal trata-
se de críticas às condições institucionais da prática de ensino e pesquisa científica. Como
salientam os autores ―O sistema educacional reforçou e cristalizou o que era no início uma
diversidade epistemológica do real (ibidem: 11)‖. Segue-se então que o discurso em questão
não produza em seus próprios termos desdobramentos similares aos quais critica? Acaso já
não vimos as instâncias que são necessárias recorrer, para conseguir um espaço estável de
produção de conhecimento interdisciplinar? O apelo à formalidade e a arbitrariedade para
desestabilizar o discurso dominante não mantém frágil a construção de um contra-discurso
que deve por sua vez demonstrar a sua validade, não somente, mas também pelo grau de
objetividade do produto de suas próprias práticas? Obviamente, se há uma crítica a um
modelo de prática científica há aqui um outro modelo em vias de constituição. Há um
reconhecimento da ruptura causada pela ciência em relação a outras formas de representação
do mundo. Entretanto, o ponto de inflexão é o reconhecimento da formalidade da prática
científica e da arbitrariedade de seus modelos institucionais de organização. Encontramos
aqui uma certa ambigüidade; a ciência rompe com outros modos de pensar e, no entanto, é
apresentada como arbitrária. Mas se nos voltarmos à intuição presente na orelha do livro-
relatório; aquela de que é ―possível praticar a interdisciplinaridade sem necessariamente
questionar ou desprezar os recortes disciplinares‖ veremos que para os autores a prática
interdisciplinar busca um espaço de diferença e não de negação em relação às práticas
científicas disciplinares.
As disciplinas, entretanto existem. São os seus conceitos, seus métodos e suas modalidades de
validação do conhecimento que constituem, até hoje, a fundamentação de nossa capacidade de
conhecer o mundo, bem como de conhecer a nós mesmos. Em se tratando do Doutorado em Meio
Ambiente da UFPR, falar de interdisciplinaridade não significa apelar para uma nova era do saber
científico que veria o desaparecimento progressivo das fronteiras entre disciplinas (IBIDEM: 11)
Não se trata ali de substituir modelos científicos. Se a estrutura disciplinar existe, não
se questiona a sua legitimidade, porém não se coaduna com a justificativa de que este é um
único modo de se pensar as práticas científicas. Os autores não pretendem nenhuma revolução
científica nem qualquer outro modelo global de práticas de produção do conhecimento. Como
seguem afirmando no texto:
Podemos pensar, como Morin, que as barreiras entre disciplinas e a hiperespecialização científica
impedem a percepção do real na sua complexidade e na sua permanente renovação. Pensamos, no
entanto, que antes de chegarmos nesse ponto, é preciso, mais modestamente, tentar tornar
74
possível o diálogo e a colaboração entre disciplinas tal como existem, sem colocar em questão
logo de início suas fundamentações teóricas e metodológicas. Isto não quer dizer que a
colaboração estabelecida deixará, ao final, de conduzir cada uma delas a uma evolução importante
de seus procedimentos e de seus modos de produção do conhecimento. (ZANONI et al,2002:11)
A proposta se apresenta de modo mais modesto, o que não quer dizer que a situação a
que os pesquisadores se expõem não seja desafiadora. Promover a colaboração entre olhares
disciplinares em torno de uma problemática comum, esquematizar temas e projetos de
pesquisa em que cada abordagem disciplinar possa contribuir efetivamente para um problema
científico não reduz a envergadura do projeto. Se os autores apresentam algumas ressalvas
para com um autor-chave nas discussões sobre interdisciplinaridade, Edgar Morin29
, é antes
pelo diagnóstico apresentado sobre as condições institucionais de produção do conhecimento
e possivelmente, me arriscaria a dizer, pela menção a aquela ―retórica axiomática‖ do início
do texto, que não oferece procedimentos concretos de pesquisa. Daí então o imperativo de
uma temática comum que ponha a dialogar diferentes disciplinas, contribuindo para a
visualização global do objeto em questão. Caberia questionar se os problemas apresentados às
diversas disciplinas científicas têm, em suas respectivas áreas, estatuto de problemas
científicos e de que modo as práticas interdisciplinares dão retorno às disciplinas30
.
No caso da experiência do programa MADE a temática ambiental e o problema do
desenvolvimento social dão a orientação do problema de pesquisa, e é neste recorte temático
que se inserem os problemas em relação à ciência e valores. Com efeito, se as práticas
interdisciplinares em questão se apresentam conforme nos diz Floriani (2000:101), ―A
interdisciplinaridade necessita de uma intenção deliberada, assentada em trocas
intersubjetivas sistemáticas, a partir do confronto de saberes disciplinares, que leve em conta
uma ou mais problemáticas na relação sociedade-natureza‖, então o estatuto da área de
29 Em tese intitulada, Da crítica ao modelo de desenvolvimento à gestão dos problemas ambientais: o campo de pesquisa
sobre as relações entre ambiente e sociedade no Brasil (1992-2002), Ricardo Barbosa de Lima discorre sobre a produção
acadêmica do campo socioambiental tendo como lócus ―seis programas de pós-graduação ligados a cinco universidades
brasileiras, sediados em quatro estados da federação. A meta foi identificar e recolher os trabalhos de tese que tivessem como eixo central a temática das relações entre ambiente e sociedade. Nessas universidades foram alvo de investigação três
programas de pós-graduação (Doutorado) disciplinares (Sociologia) associados à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) e três programas de pós-graduação multidisciplinares (Doutorado) associados à
Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) ( LIMA,2005:22). Dentre os programas dito ali ―multidisciplinares‖ encontra-se o MADE, no qual, há uma certa recorrência de Edgar Morin, como um
autor–referência nas teses, sem contudo se tornar presença fundamental na maioria das teses avaliadas no período. Morin,
contudo, é uma referência regular nas teses analisadas por LIMA, ver tabelas p.152e anexos. 30 Como poderemos verificar no próximo capítulo, existe uma certa gama de trabalhos no campo que trabalham no âmbito de uma reflexividade, buscam pensar o sentido das próprias práticas interdisciplinares, discorrer sobre os empecilhos
institucionais e etc.. Em se tratando de propostas de práticas interdisciplinares e sua interface com campos disciplinares há
uma postura que ―aproxima o diálogo entre disciplinas científicas no intuito de ampliar a explicação dos objetos do
conhecimento disciplinares como no caso da Sociologia Ambiental, onde se busca interagir teoricamente em alguns campos de convergência. (FERREIRA, 2005:186).
75
pesquisa em ambiente e sociedade é capaz de promover uma reconfiguração do estatuto dos
problemas científicos no interior de cada disciplina.
Ora, pode parecer óbvio que a transversalidade do tema meio ambiente e
desenvolvimento carregue em si uma exigência de produção do conhecimento politicamente
orientada. A questão aqui é outra, há um reconhecimento de diferença em relação a outras
formas de produção do conhecimento, há um conjunto de fatores sociais, institucionais e
epistemológicos que se modificam para que este movimento de diferença possa acontecer. De
que maneira estes elementos se articulam na prática de pesquisa? Se há resistência
institucional, se há resistência epistemológica, quais as condições de resposta a essa
resistência. Como essa rede de relações passa a modificar o processo de construção do
conhecimento? Parece haver sim razões políticas, como, porém se articula este domínio
político no processo de construção do conhecimento?
Na minha forma de entender, existem, neste jogo de relações, dois pontos nos quais a
prática de produção do conhecimento interdisciplinar tem se apoiado. São dois referenciais
que tem de ser levados em conta para compreendermos como se opera a mudança na prática
de construção do conhecimento. A prática de ensino e a prática de pesquisa. Produzir
conhecimento interdisciplinarmente não implica que se tenha de conformar a isto uma prática
de ensino interdisciplinar. O caso aqui é outro, é a constituição de um programa de pós-
graduação interdisciplinar na interface ambiente e sociedade. A articulação entre valor e
produção científica pode ganhar aqui um outro estatuto, já que não se trata apenas de conjugar
experiência de pesquisa científica e demandas sociais e políticas, como no caso da crise
ambiental. No avesso da produção deste aparato de pesquisa há uma intenção de formação
intelectual diferenciada, ou seja, estabelecer um espaço de formação profissional que tenha
como meio de formação a prática de pesquisa interdisciplinar.
O propósito era contribuir, antes de tudo para o desenvolvimento de uma comunidade científica
específica através da formação de pesquisadores já confirmados em suas disciplinas originais,
com título de mestre ou experiência equivalente – pertencentes às ciências naturais, às ciências
sociais, às ciências médicas e às tecnológicas – capazes de repensar o desenvolvimento,
contemplando os desafios ambientais. (ZANONI et al, 2002:18)
A própria dinâmica da produção do conhecimento implica que se tenha um processo
de construção cognitiva dos sujeitos que se dispõem a fazer parte daquele determinado
conjunto de práticas. Mas é nesse ponto que surge a descontinuidade entre as dinâmicas de
produção do conhecimento tradicionais (disciplinares) e as interdisciplinares, pois o produto
deste espaço heterodoxo de produção do conhecimento é hibrido, não se adéqua aos critérios
76
de filtro, classificação, e demanda das práticas de produção do conhecimento tradicionais. É
aí que se articulam também as dimensões políticas (o problema ambiental) e a prática de
pesquisa científica, pois é no projeto pedagógico que o problema ambiental se objetiva
enquanto um problema de pesquisa científica, torna-se problema científico do outro (do
doutorando, pesquisador) que dali em diante buscará respostas para o conjunto de problemas
em que se inseriu. E neste ponto poderíamos perceber se há apenas uma conjugação entre
duas instâncias polarizadas ou este processo de formação conduz a uma leitura mais fluida na
relação natureza/sociedade, fato/valor.
Posto isso, é importante visualizar como se entrelaçam a concepção política, o ensino
e pesquisa interdisciplinar e de que modo estas propostas acabam por desestabilizar o modus
operandi de nossas próprias categorias de classificação. De pronto, nos deparamos com esta
crítica em relação tanto ao produto do conhecimento científico quanto às suas modalidades de
produção. A problemática que atravessa esta crítica no caso do MADE é a problemática
ambiental. Como de princípio a postura dos autores não é a de uma substituição dos modos de
produção do saber e sim uma condução de expansão e diferenciação nas modalidades de
produção do conhecimento, o discurso até agora tem se apresentado ambivalente, entre a
condenação e a absolvição da prática disciplinar. O problema em si não é a prática de
produção científica, mas são as questões que ela deixa de fora pela natureza de sua
organização. Como salientam os autores :
Caso nos situemos no âmbito de uma interrogação estritamente científica permanece possível
selecionar um número limitado de níveis e ângulos de análise dentro dessa complexidade, em
função dos objetivos de conhecimento perseguidos e das competências disponíveis. No entanto,
quando torna-se necessário encarar os processos ambientais a partir dos seus desdobramentos
concretos relacionados com a existência humana, como por exemplo, nos casos da desertificação,
chuvas ácidas, ou aquecimentos global, não é mais possível impor limites a priori. (ZANONI et
Al.,2002:13)
Esta constatação de que não há como impor limites a priori em face a estas condições
possibilita a meu ver uma dupla vazão; tanto na proposta de um programa de doutorado
interdisciplinar quanto na própria prática de pesquisa interdisciplinar. Pois é dos objetivos
mesmos do programa, da sua própria razão de ser, que conseguiremos perceber de que modo
todos os pontos ligados até aqui confluem para um produto que reflui na transformação destes
pontos. Na busca pela diferença e não a negação das práticas disciplinares, a constatação do
tema a ser problematizado vem deste contato direto com os problemas ambientais, ou seja o
problema a ser tratado ali no programa MADE é um problema que se constata além das
práticas científicas; que traz para as práticas científicas outro modo de propor
77
questionamentos. O fato de existir o reconhecimento de que um pensar estritamente científico
não implica este tipo de abordagem com uma temática transversal, denota o reconhecimento
das práticas científicas (disciplinares) como um modelo legítimo de produção do
conhecimento e, no entanto insuficiente para tratar este tipo de problema.
A dupla vazão (saída) a que me referi, vem primeiro, dos objetivos do programa de
doutoramento do MADE e sua conseqüente organização e prática pedagógica
ensino/pesquisa. E segundo, trata-se de uma questão referente ao estatuto e validação dos
problemas científicos tanto no âmbito interdisciplinar como no âmbito disciplinar. No que se
refere a este último, seria necessário acompanhar quais são os tipos de problemas aventados
na práticas interdisciplinares que não seriam reconhecidos como problemas científicos para
determinadas disciplinas e que no entanto, no processo de diálogo e composição de uma
problemática coletiva aparecem às mesmas como exigências dos próprio objeto constituindo
assim um espaço que engendra uma nova modalidade de estatuir problemas científicos e
como veremos adiante até mesmo de validá-los31
.
No que se refere à relação objetivos/ensino/pesquisa o livro-relatório é capaz de
suscitar um problema interessante para este trabalho, justamente pelo modo que tenho
conduzido a reflexão através das proposições da sociologia e antropologia das ciências. Os
objetivos do programa MADE estão vinculados, como já vimos, à produção do conhecimento
voltada para o manejo de situações ambientais complexas. Conforme não cessam de apontar:
Quando se consideram não apenas as conseqüências de processos ambientais sobre as sociedades
humanas, mas também a necessidade de incorporar as dimensões ambientais na formulação das
políticas de desenvolvimento – harmonizando-se objetivos econômicos, sanitários, sociais e éticos
com a preservação da natureza – a exigência de interdisciplinaridade faz-se mais presente,
abrindo- se para um espaço ainda mais amplo.(ZANONI et al,2002:13)
O ponto a que quero chamar a atenção é este, existe sim uma outra modalidade de
questionamentos que norteiam estas práticas de produção do conhecimento, estas práticas,
conforme salientam os autores, excedem os limites da prática estritamente científica.
Contudo, a reconfiguração do espaço acadêmico, a constituição de programas de formação
doutoral e de práticas de pesquisa interdisciplinares, estará apenas traduzindo demandas
sociais em demandas de produção do conhecimento para a resolução de problemas?
31 Além disso, seria interessante acompanhar a circulação dos trabalhos oriundos de pesquisas interdisciplinares nos espaços restritos a temas disciplinares. Traçar o regime de circulação e distribuição desses dados seria um índice interessante para
reconhecer de que modo os problemas relacionados à prática de pesquisa interdisciplinar, passam a habitar outros espaços
que não aqueles criados para a própria reflexão interdisciplinar. Mas Como fazer isto excederia os limites deste próprio
trabalho, cabe levar a reflexão a título de especulação acerca da consolidação do campo interdisciplinar na área de ambiente e sociedade.
78
Poderíamos terminar esta monografia por aqui e dizer que a dinâmica de diferenciação do
campo científico brasileiro é nada mais do que uma crise de autonomia do campo, não
totalmente consolidado e por isso incapaz de refratar demandas sociais. E para, além disso,
estaríamos vendo apenas uma adequação e realocação de práticas científicas puras e
aplicadas? Se assim o for a proposta de Pierre Bourdieu seria suficiente para delinearmos os
possíveis contornos deste processo. A crescente autonomização do ambientalismo a sua
conversão em problemática científica por agentes atuantes em outro campo, o conflito
institucional como a explicitação das posições objetivas no campo que determinariam habitus
diferentes aos agentes etc.. Porém se continuarmos seguindo a intuição de que a relação entre
processo de construção e conteúdo do conhecimento científico pode traduzir este conjunto de
relações, de um modo menos polarizado, poderemos, então, tecer algumas reflexões
interessantes.
A interação entre disciplinas em face ao problema ambiental e os problemas humanos,
ao buscar a confluência harmônica entre ―objetivos econômicos, sanitários, sociais e éticos
com a preservação da natureza‖ trás consigo a noção de ―desenvolvimento sustentável‖. Este
conceito por demais polissêmico, dizem os autores, não pode ser especificado de antemão,
deve sim se “alimentar na análise da realidade concreta” (ibidem: 13). Ora, a finalidade da
produção do conhecimento interdisciplinar consiste no pensar/propor modalidades de
desenvolvimento sustentável, ou ainda pensar a sua produção do conhecimento tendo como
marco a sustentabilidade na relação sociedade/natureza. Mas, no entanto, é impossível de
dizê-la a priori32.
O interessante disso tudo é que o fato de não tê-la como definível a priori33
não
suprime a envergadura da mobilização que deve ser feita para que ela se torne possível, pois
ao mesmo tempo está se criando um espaço de formação intelectual e profissional (e aqui
puxamos de um só vez tudo o que dissemos em relação aos conflitos institucionais, concepção
de universidade, relação universidade/sociedade) que congregue diferentes disciplinas no
interior da própria universidade ( que trás consigo toda a problemática referente ao estatuto
dos problemas científicos em cada disciplina, aos modelos organizacionais etc.), tendo como
produto um outro conhecimento acerca desta relação ―ambiente e sociedade‖ e indivíduos
com a formação de Doutores em desenvolvimento e meio ambiente (e aqui puxamos junto
32 A discussão a respeito do conceito de desenvolvimento sustentável é ampla, e não caberia aqui delineá-la. O tema tem sido
tratado nas discussões da pesquisa coletiva a que este trabalho se vincula. 33 Embora pudéssemos mapear a recorrência de autores que falem sobre desenvolvimento sustentável nas grades curriculares de disciplinas e na própria produção do campo.
79
tudo aquilo que se refere à critérios de classificação e qualificação profissional, de formação
de identidades, da possibilidade de outros estilos de abordagem dos problemas científicos e
etc.).
E este último ponto é a meu ver de grande importância. Talvez por não ter sido algo
que estivesse claro para mim em grande parte da minha trajetória de pesquisa, que tendia para
a universalização, ingênua admito, da natureza do trabalho intelectual. Mas o fato de estarem
formando profissionais doutores com habilitação na área de meio ambiente e desenvolvimento
implica uma multiplicidade de práticas possíveis ao mesmo tempo em que provavelmente
congregue características comuns aos pesquisadores. O ponto importante é esta abertura do
programa de doutoramento a indivíduos com práticas intelectuais e profissionais de natureza
distintas. Se na ciência tradicional (ou aquela dita normal por Tomas Kuhn) há um corrente
apelo para a homogeneização de práticas de produção do conhecimento ou uma estratégia
comum de mobilização de recursos teóricos em práticas de pesquisa, aqui na
interdisciplinaridade a natureza da prática intelectual tende a ser híbrida34
.Além do que é na
formação de quadros intelectuais diferenciados que as práticas interdisciplinares expandem o
seu potencial de inovação na produção do conhecimento e por conseguinte criam a condição
de exterioridade (quer dizer daquela ―realidade objetiva‖ que lhes diz respeito) de suas
próprias práticas. O que quer dizer que as condições de circulação (socialização) do conteúdo
(produto) da prática interdisciplinar tendem a ser difusas tendo que passar efetivamente por
estes novos quadros de formação.
Condições iniciais do modelo metodológico de pesquisa
Mas para que tudo isso seja executável, faz-se necessário estabelecer critérios de
seleção de pesquisadores e diretrizes de abordagem destas tais problemáticas entre meio
ambiente e sociedade. A prática de pesquisa interdisciplinar e formação doutoral na área de
meio ambiente e desenvolvimento introduz um elemento contingente em seu processo de
construção do conhecimento. Pois não é possível saber a priori com quais aportes
disciplinares se conduzirão as práticas de pesquisa. Ainda que o programa possa estabelecer
marcos disciplinares que propiciem o diálogo e critérios de seleção de pesquisadores35
. E
34―Ao término desta formação, universitários, pesquisadores, profissionais de organismo públicos e não governamentais,
associativos, sindicais, estariam capacitados em intervir, em diferentes níveis, nos setores de políticas científicas, de reordenamento do território, de gestão ambiental e planificação do desenvolvimento, assim como avaliar projetos e ações de
desenvolvimento segundo os princípios da sustentabilidade (ZANONI et al,2002:18). 35 A seleção dos alunos dessa primeira experiência do programa MADE foi feita segundo critérios de competência e
proporcionalidade dos candidatos. Competência reconhecida na sua disciplina de origem e proporcionalidade ― de candidatos oriundos de áreas de ciências sociais e ciências naturais e uma proporcionalidade entre candidatos pertencentes à instituição
80
ainda que os programas possuam um corpo docente interdisciplinar ―equilibrado‖36
, a prática
de pesquisa em seus produtos individuais (e em parte coletivas no caso da formação da grade
de dados comum a todos os pesquisadores) estão sujeitas à contingência advinda da formação
dos doutorandos37
.
No que se refere às concepções teórico-metodológicas que produzirão matrizes
pedagógicas para a prática de formação dos alunos, como o leitor já deve ter notado, temos
esta classificação polarizada (natureza/sociedade) na qual se buscarão identificar domínios de
inter-relação. Isso deve lembrar as discussões Latourianas a respeito das dicotomias
modernas. Mas ao invés de nos deixarmos seduzir por uma explicação ad hoc, vejamos sob
qual quadro os autores constroem suas práticas interdisciplinares.
O binômio natureza-sociedade pode ser apenas aparente na conjunção das
problemáticas que emergirão no processo de pesquisa. Visto que há, segundo os autores, uma
concepção acerca do vem a ser meio ambiente, e que engloba estes dois grandes sistemas. O
conceito nada mais é do que a recusa de compreender as dinâmicas do meio ambiente
(natureza) de modo que o ser humano seja considerado como um ―hóspede‖ (ibidem:13) . Ele
(o ser humano) ―não é visto apenas como uma espécie viva entre outras, mas como um ser
social, produtor de sentido e parte integrante desse mesmo meio do qual é, ao mesmo tempo,
sujeito e objeto, ator e produto (ibidem: 13)‖.
Posto isso o marco no qual vão se delinear as interações entre natureza e sociedade
(entendidos como dois subsistemas do conceito amplo de meio ambiente) implicará antes de
tudo no reconhecimento do modo como estes se organizam de acordo com suas dinâmicas e
propriedades específicas. As definições que os autores dão de cada sistema são estas:
O sistema Natureza compreende o conjunto de componentes biológicos e físico-químicos que
interagem no interior dos grandes domínios de organização biológica, como a atmosfera,
pedosfera, hidrosfera e geosfera. Este sistema Natureza integra uma parte que, embora fortemente
artificializada – a ponto de ser às vezes, como na cidade, um produto direto da ação humana – não
deixa de ser submetida a processos da mesma ordem dos meios físicos e naturais. Este sistema
compreende certamente o homem, mas como organismo vivo, tomado individualmente ou reunido
universitária (professores e pesquisadores), aos órgãos públicos e aqueles provenientes de associações e organizações não
governamentais e setores privados (ZANONI et al,2002:19)‖. Esta postura produz um ambiente variável no próprio processo de construção do conhecimento quanto na possibilidade de variação da natureza do conhecimento ali produzido ensejando a
circulação de sua produção em diversos espaços sociais. 36 O fato da formação do corpo docente variar, possibilita o entendimento das variações possíveis em abordagens e criação
de programas de pesquisa no interior do programa interdisciplinar. Assim, programas que possuam em seus quadros uma predominância de professores/pesquisadores de uma área, possivelmente terão projetos de pesquisa voltados às suas práticas
disciplinares. Isto tem sido alvo de atenção no projeto de pesquisa coletivo ao qual eu tenho vínculo e que procura mapear os
programas de pesquisa interdisciplinares na área de meio ambiente e desenvolvimento. 37 Essa variação corpo docente/discente também repercutirá nas modalidades de avaliação dos programas por parte da CAPES como veremos no último capítulo.
81
em populações. O sistema Sociedades compreende o conjunto de elementos e de processos cuja
articulação participa na organização, na reprodução e na evolução das relações sociais e dos fatos
culturais. Aqui, as coerências que buscamos compreender arraigam-se nos processos de produção
e de circulação do sentido (representações, valores e normas), que se inscreve na história e
permanecem, em grande parte, autônomos em relação às determinações biológicas e físico-
químicas. (ZANONI et al,2002:13)
Em se tratando das propriedades do sistema sociedades, não se supõe que os
fenômenos abordados aí sejam destituídos de toda materialidade que compõem as sociedades.
Porém ―essa base material só é considerada parte integrante do sistema Sociedades quando
contribui para produzir relações sociais (ibidem: 13-14)‖38
. Neste sentido, para que se produza
uma certa ordem para a leitura da realidade no domínio do sistema Sociedades organizaram-se
quatro grandes instâncias nas quais a dinâmica dos fatos operam por lógicas distintas.
As lógicas bio-demográficas: dinâmicas através das quais uma sociedade se reproduz como
população de seres vivos. Isto inclui tanto os fenômenos demográficos quanto os que são
ligados ao estado de saúde.
As lógicas técnicas: que correspondem às necessidades que regem as relações entre atos
técnicos, instrumentos e matéria na produção de bens e de serviços.
As lógicas sociais e culturais: combinação de símbolos, representações, valores, normas,
instituições e de relações interpessoais que orientam as ações humanas, resultando na
permanência ou na mudança dos sistemas sociais
As lógicas do mercado: próprias às dinâmicas internas de funcionamento da forma de
economia dominante a nível mundial. (ZANONI et al,2002:14)
Estas lógicas definem possíveis aportes de pesquisa e constituem antes, um pré-
referencial do que a condição da realidade mesma a ser estudada. Conforme situam os
autores: ―Estas lógicas não remetem a distintas categorias de fatos, mas sim a eixos diferentes
de leitura da mesma realidade (IBIDEM: 14)‖. Deste modo um mesmo fato pode ser
apreciado nessas diferentes lógicas, e apresentar-se ao pesquisador por ângulos diferentes e
tendo em vista o caráter coletivo da construção de um referencial comum, poderão surgir
deste embate questões pertinentes à pesquisa que queira se situar a partir do referencial destas
lógicas. Como veremos em seguida este quadro serve de baliza tanto para a elaboração do
plano pedagógico de ensino, ou seja, do modo de apresentação do tema aos doutorandos,
quanto da dinâmica que conduz a pesquisa coletiva, sugerindo abordagens para a constituição
de um quadro de informações comum.
A concepção pedagógica do doutorado MADE, segue, nesta primeira experiência aqui
relatada, uma organização que busca aliar progressivamente atividades de formações e prática
38 Poderíamos perguntar de que modo esta diferença entre níveis analíticos no interior dos dois sub-sistemas são agenciadas
na construção do conhecimento sobre determinado objeto. Para ao final observar de que modo a base material mesmo não
estando diretamente ligada ao sistema sociedades, pode relacionar-se com o objeto (através da figura do pesquisador) na finalidade de uma pesquisa que pretende evocar sustentabilidade como condição de possibilidade.
82
de pesquisa, buscando produzir uma dinâmica de reflexão continua entre estas duas
instâncias. As atividades propriamente ditas de formação abrangem sete semestres num total
de quatro módulo de formação intercalados com dois seminários de pesquisa coletiva. A
segunda metade, segue-se na orientação e seminário de projeto de pesquisa individual39
. Os
quatro primeiros módulos consistem em: 1) Complementação teórico-prática de formação 2)
Temas integradores 3)Formação da prática interdisciplinar 4) Áreas de concentração
rural/urbana (ZANONI et al,2002:19:20:21).
Nestes módulos têm-se respectivamente, a apresentação dos objetos de estudo e
conceitos de base e métodos específicos de cada disciplina; conhecimento de procedimentos
integradores; fornecimento de bases teóricas e instrumentais visando tanto a relativização dos
enfoques disciplinares enquanto constructos históricos, quanto a disponibilização de meios
para a integração de dados complexos; especialização das abordagens através das bases
teóricas e metodológicas no âmbito dos problemas rurais e urbanos.
No que se segue ao terceiro módulo (integrador) a sua constituição é fundamental e se
desdobra a partir do quadro dos dois sub-sistemas a cima comentados. Pois passa a conduzir a
qualificação dos problemas de inter-relação entre sistemas. Se no que se refere ao sistema
Sociedades havia um critério de classificação de domínios da mesma realidade, aqui no caso
de primeira experiência de pesquisa, o módulo integrador formalizou eixos de dinâmicas de
interação entre os dois sub-sistemas40
, os quais foram indispensáveis para a produção da
grade de dados comum a todos os pesquisadores, que foi constituída paralelamente nos
seminários de pesquisa coletiva. Esta grade de dados conforme apresentarei na seqüência tem
papel fundamental no reconhecimento da realidade a ser tratada e possibilita a recondução dos
módulos de formação três e quatro, nos quais se elaborarão a articulação das informações na
grade de dados (com os instrumentos para a integração de dados complexos), para a
constituição de amplos programas de pesquisa (na elaboração de hipóteses) em duas áreas de
concentração rural/urbano, às quais servirão de áreas de concentração para a elaboração das
teses de doutorado.
39 Essa parte tem duração de cinco oito semestres e é finalizada com a defesa da tese de doutorado que tem a peculiaridade de ser orientada por um comitê de orientação, onde um professor deve ser da área disciplinar do aluno e outros tendem a ser
da disciplinas correlatas ao trabalho em questão. 40 Os eixos são: interações entre dinâmicas bio-demográficas e dinâmicas de ecossistemas; interações entre práticas materiais
e dinâmicas dos ecossistemas;interações entre dinâmicas sociais e dinâmicas dos ecossistemas interações entre mecanismos de mercado e dinâmicas dos ecossistemas; interações entre políticas públicas e dinâmicas dos ecossistemas.
83
Pesquisa interdisciplinar: ou como fazer a realidade ter escalas
Conforme dizia Bachelard, ―a ciência tanto por necessidade de coroamento como por
princípio, opõe-se absolutamente à opinião‖ (BACHELARD, 1996:18). A noção de que a
ciência opera por rupturas, com o senso comum, com as mais variadas formas de
representação da realidade etc. é relativamente freqüente em textos epistemológicos e na
maneira como a palavra ciência aparece em discursos que pretendem demarcar a prática
científica de qualquer outra coisa. Como vimos na primeira seção, o programa de pesquisas
em sociologia da ciência consiste em diluir, pela explicação social, estes domínios de
demarcação entre o que é e o que não é ciência. Para o trato dos problemas ambientais e de
desenvolvimento, a prática de pesquisa interdisciplinar se demarca em relação às práticas
tradicionais (disciplinares), não por uma ruptura (se assim o fosse seria supor uma ruptura
com a ruptura?), mas por um exercício metódico de reconhecimento de condições arbitrárias
dos modos de produção científica, para em seguida propor a sua diferença. Como procurei
apresentar; a dinâmica que busca legitimar a pesquisa interdisciplinar, supõe aportes
disciplinares consistentes e não requer a recusa das ―conquistas‖ disciplinares, antes, supõe
que se possam criar condições de questionamento que incitem a outras modalidades de
produção científica a organizar-se em torno de perguntas diferenciadas.
Uma das principais questões dos science studies vem da proposição construtivista, de
que a ciência fabrica a realidade, em oposição a aquele conhecimento objetivo da realidade
―lá fora‖, causa e conseqüência da ruptura da ciência em relação a todos os outros modos de
existência. O programa forte leva ao limite esta afirmação produzindo um paradoxo que
questiona a sua própria ruptura com o objeto. Latour, ao considerar a sociologia também
como construtora de sua realidade, supõe conduzir a pesquisa para um outro espaço, o
caminho das mediações. Lugar onde a sociologia e a sociedade não seriam as moradas
explicativas dos fatos científicos, estas deveriam ser explicadas como produtos de um trabalho
de construção tanto quanto as ciências ―duras‖.
Na proposta de Bruno Latour a realidade sim é construída, e a ciência não passa de
uma construção, porém, construção que não retira o teor objetivo do produto científico, não
obstante, a restrição de toda e qualquer possibilidade de ruptura entre ciência e o resto do
mundo. O produto científico não será um fato, mas um fe(i)tiche (LATOUR,2002),
neologismo que associa os termos feito e fetiche, num tentativa de classificação que busca
dar conta do processo de fabricação da objetividade do próprio ―fato‖ científico. A premissa
84
que o rege é a seguinte, somos ligeiramente superados por aquilo que criamos. No lugar dos
fatos, temos então fe(i)tiches, que são todo o resultado das mediações necessárias à sua
fabricação. Esta noção de fabricação remonta à série de termos cunhados para dar conta
daquilo que se pode observar seguindo os cientistas em suas práticas de conhecimento. As tais
inscrições são neste sentido, todos aqueles elementos que são capazes de produzir articulações
e rearticulações de informações que conduzirão a prática científica a levar em conta uma
quantidade enorme de informação num espaço relativamente pequeno, uma formula, uma
tabela, um gráfico e etc. (LATOUR, 2000:392-395). Assim é que o livro-relatório sendo uma
inscrição, por que sintetiza uma grande quantidade de informação deixando margens para as
condições de sua rearticulação, me permite a fabricação desta outra inscrição que vem a ser a
monografia. Este modo de operação das inscrições subsidia níveis de abstrações, pela sua
capacidade de rearticulação com outras inscrições, do mesmo modo que eu escolho
cuidadosamente alinhar trechos do livro-relatório as condições de explicação escritas no meu
próprio texto.
Mas o que importa para a finalidade deste tópico é termos uma noção de como o
alinhamento de uma série de inscrições é capaz de conduzir à fabricação do fato científico e,
por conseguinte, da própria realidade que ele pretende subvencionar. Há, entretanto, uma
descontinuidade entre as condições de enunciação da postura construtivista dos science
studies (aquela que diz que a ciência fabrica a realidade) e o presente caso das práticas
interdisciplinares. Primeiro, é que a afirmação da construção da realidade tende a ser
subsidiada pelo relato de um evento histórico, como o surgimento de uma disciplina ou uma
grande descoberta (uma revolução) em que o mundo de antes não era habitado por tal ou qual
entidade, como no caso da socialização do vácuo através da disseminação da bomba de ar de
Boyle e no caso dos micróbios para Pasteur. Segundo, mas ainda restrito aos science studies,
estas categorias de enunciação, como as inscrições, são fruto da observação empírica da
prática científica e sua condição de existência é relacional a aquilo que se observa na prática.
Podemos ainda sim, identificar em tais inscrições um conjunto de referentes que a compõe e
que traduziriam as informações de outras inscrições. Entretanto, esta descrição do evento
científico em inscrições e somente por elas, não supre a condição pulsante que um relato
etnográfico pode dar ao mesmo evento.
Agora no que concerne à prática interdisciplinar, não há, a rigor, a enunciação de uma
nova disciplina científica, existe sim, como veremos, uma conjunção de olhares que produzirá
alguns níveis analíticos distintos. A exteriorização, ou melhor, a concretude desses níveis,
85
para além das inscrições aqui observadas, terá de passar por outros processos de validação à
medida que a rede se expande. Em segundo lugar, não serei capaz de apresentar aqui as
possibilidades dramáticas pelas quais um enunciado científico tem de passar antes de sua
efetiva socialização por uma série de inscrições, como artigos, livros e etc.. Ainda assim,
penso que pela própria intuição dos science studies conseguirei produzir certa imagem desta
dinâmica de fabricação do conhecimento científico.
Vejamos então, como se segue a pesquisa interdisciplinar na formação de uma grade
de dados que a um só tempo mobiliza todos os pesquisadores em torno de uma metodologia
comum e subsidia a matéria para a constituição de programas de pesquisa. A primeira etapa
que busca delimitar a prática de pesquisa nesta primeira experiência do MADE, acontece
desde o processo de seleção dos candidatos. Ali uma das condições exigidas para o ingresso
foi a aceitação, por partes dos candidatos, de compartilharem uma área de pesquisa comum.
Aqui não me refiro a uma área temática, mas sim uma área geográfica comum, o que de
pronto distribuiria o olhar dos pesquisadores em torno de objetos que possuem relações de
determinação recíproca (ZANONI el tal,2002:21).
A escolha de uma área geográfica comum, não é exigência da interdisciplinaridade41
,
mas no presente caso vem da necessidade de por à prova a diversidade de modelos
explicativos (e especulativos) que se podem fabricar só com o diálogo entre disciplinas. Este
imperativo se apresenta aqui, talvez, pelo teor experimental e decisivo que incorporava esta
experiência interdisciplinar.
[...] o verdadeiro desafio científico consiste em ir além desse nível especulativo para verificar, nos
fatos, a pertinência de um tal modelo ou, em outras palavras, a possibilidade de identificar, de
qualificar e às vezes de medir as relações entre variáveis que são utilizadas por disciplinas
diferentes.(ZANONI et al, 2002:21-22)
A área geográfica escolhida, partindo de uma proposta do programa, foi o litoral do
Paraná, as justificativas para a escolha foram estas: ―a unidade geográfica e humana da
região, claramente delimitada pela serra do mar‖; a região possuindo ―uma posição singular
na história do Paraná (marginalização no decorrer do processo de modernização agrícola,
aumento dos conflitos entre os objetivos de desenvolvimento e os de proteção da natureza,
centrados na baía de Paranaguá e na Mata Atlântica); e por último ―pela grande diversidade de
problemas que podem ser encontrados no Litoral, com concentrações urbanas (Paranaguá,
41 Aliás, nas turmas de doutorado subseqüentes à primeira experiência do MADE, a metodologia foi sendo experimentada de
maneiras diversas, não ficando restrita sempre a uma área geográfica comum. Até a terceira turma o recorte espacial foi
gradualmente substituído por enfoques temáticos o que implicou na incorporação de outros procedimentos metodológicos e de tratamento de material empírico(ZANONI et al,2202:24).
86
cidade portuária, e balneários), coexistindo com uma pequena agricultura e pesca artesanal em
curso de transformação(IBIDEM:22)‖.
Como podemos perceber, já havia uma certa consciência dos problemas que
perpassariam a construção da pesquisa. O ponto interessante, é que a pesquisa já começa por
um recorte disciplinar, uma área geográfica, bem delimitada espacialmente. A extensão deste
recorte é o primeiro passo à mobilização de deverá ser executada para a coleta de dados.
Conforme veremos, a cartografia será um elemento chave, que nos serve tanto de metáfora
para indicar a mobilização de disciplinas, através de variáveis que representam dados, quanto
de instrumento efetivo para que de início treze doutorandos e outra dezena de professores
possam, alinhar o litoral aos seus e enunciados e fazê-los produzir escalas reais que subsidiam
respostas para o problema do desenvolvimento e meio ambiente.
Na pesquisa coletiva, o MADE toma, relativamente, as atribuições do que Latour
(2001) chamará centrais de cálculo, lugar onde as inscrições passam a ser recombinadas para
a fabricação de outros artefatos, potencializando, pela sua capacidade de combinação, a
extensão da rede científica em vias de consolidação. Para uma melhor capacidade de
mobilização de dados, a região do litoral do Paraná foi dividida em duas grandes áreas,
consonantes com as áreas de concentração presentes no quarto módulo, ―os meios rurais e
estuarinos, de um lado, e o meio urbano de outro (ZANONI et al,2002:23)‖.
Não cabe aqui uma descrição pormenorizada de todo o trabalho de compilação nem
uma exegese das teses.A pertinência de tal descrição se daria no âmbito de uma observação
participante ou de um trabalho exegético. Por outro lado, como os dados apresentados no
livro-relatório são pontuais, servem apenas para ilustrar a experiência de cada um dos grupos
que se voltou para estas duas áreas temáticas, buscarei apresentar apenas a experiência de um
dos grupos (rural), com o que, descreverei como se transforma a realidade ―bruta‖ (ou
―complexa‖ como querem os autores) do litoral, num conjunto de problemas ordenados por
escalas fabricadas pelo entrelaçamento de indicadores de diferentes níveis analíticos.
A grade de dados é constituída com base naqueles eixos de diferentes lógicas de
interação entre o sistema natureza e sistemas Sociedades. No caso da coleta de dados que foi
realizada em torno do domínio rural e estuarino os eixos foram: Demografia, controle social
dos recursos, potencialidade dos recursos, utilização dos recursos e Degradação e
desequilíbrios ambientais. A ideia é produzir no interior destes eixos temáticos indicadores
que tornem mensurável a realidade que cada eixo supõe. Cada indicador deve, portanto,
87
possuir categorias de classificação nas quais a informação possa ser mapeada em torno de sua
variabilidade. Ao final, quando cada indicador possui um grau de informações consistentes
com a sua categoria há o cruzamento destes indicadores na produção de uma carta síntese de
informações sobre aquele determinado eixo. Esta é a dinâmica comum de articulação de
informações a partir de eixos temáticos; ao final, a síntese de cada eixo será cruzada, para
aprofundar o diagnóstico da região, possibilitando a formulação de hipóteses de pesquisa
induzidas pela constatação das dinâmicas organizadas pela grade de dados.
categorias
indicadores categorias
categorias
Eixo temático Carta síntese
categorias
indicadores categorias
categorias
Para maior compreensão tomemos como exemplo a confecção do eixo demografia.
Este eixo tinha como definição genérica a finalidade de abarcar ―as características e dinâmicas
populacionais, [manifestando as] condições nas quais a sociedade local mantém ou não suas
bases biológicas de reprodução nos seus segmentos territorializados (ANDRIGUETTO
FILHO et al,2002:140)‖.Vê-se que a abordagem geográfica ocupa papel central na
organização das informações a serem coletadas, pode soar óbvio no que se refere à abordagem
de dinâmicas demográficas, contudo, o papel desta cartografia é fundamental para que se
possa pensar em termos de desenvolvimento regional partindo de diferentes disciplinas. Pois
uma condição fundamental dos indicadores que compõem cada eixo temático é a sua
capacidade de ser representado espacialmente (IBIDEM: 141), desse modo cada indicador
presente em determinado eixo e, por conseguinte os aportes disciplinares dependentes dos
eixos e suas conseqüentes sobreposições, só serão possíveis através deste tipo de inscrição
cartográfica. Como dizem os autores:
O mapeamento e a sobreposição de cartas têm por propósito fazer surgir padrões espaciais dos
indicadores e suas interações, que não eram aparentes a priori, ou pelo menos não evidentes. Tais padrões são o principal elemento para expor situações de risco e desequilíbrios reais ou potenciais
decorrentes das diferentes dinâmicas sociais e naturais do litoral (ANDRIGUETTO
FILHO,2002:144)
88
Obviamente, as articulações não serão meras somatórias de dados, no entanto pelo seu
caráter espacializante os instrumentais matemáticos serão necessários para a organização e
quantificação das informações.
Para que a elaboração dos indicadores tivesse êxito, e o cruzamento entre indicadores
fosse viável, foi necessário organizar uma ―unidade espacial de análise única. Esta unidade
deveria permitir a cartografia destes indicadores, levando em conta os diferentes níveis de
agregação e natureza dos dados a serem coletados (ANDRIGUETTO FILHO et al,
2002:143)‖, esta unidade espacial será desmembrada em unidades geográficas (UGE). O que
ocorreu, é que as fontes disponíveis para a coleta de dados42
―bibliografia, mapas, estatísticas
e bancos de dados de instituições governamentais e não governamentais (IBIDEM: 142)‖, não
possuíam um padrão comum de análise e nem estavam compiladas por variáveis que
mensurassem as informações do interesse da pesquisa43
. Foi necessário então definir uma
unidade espacial que permitisse a superposição de um grande número de indicadores sem
uma perda na qualidade dos dados. Ao que se definiu a bacia hidrográfica, como lócus no
qual se distribuiriam os indicadores, produzindo, cada qual um mapa temático próprio (vide
anexos). Escrever sobre as translações destes dados com estas instituições
Os indicadores referentes ao eixo demografia são: Densidade populacional em 1991
(ano referente à coleta dos dados utilizados para a pesquisa) e Taxa de crescimento
demográfico (1980/1991) para o meio rural e referente ao meio marítimo o indicador
estabelecido foi o da Densidade da população pesqueira (IBIDEM: 144). Os dados primários
foram coletados pelo censo do IBGE de 1980 e 1991 e a maneira pela qual estavam agregados
diferia das unidades de analise estabelecidas pelo grupo, ao que se buscou uma transposição
de um tipo de unidade espacial para outro, através da comparação com as estimativas
populacionais do litoral feitas pela FUNASA (Fundação Nacional de Saúde). Isso foi
necessário para que se redistribuísse espacialmente, o total populacional e fosse possível
efetuar os cálculos de densidade e taxa de crescimento; a taxa utilizada para calcular a
estimativa do primeiro indicador foi feita convencionalmente e a do último com base na taxa
de crescimento populacional do IBGE (IBIDEM: 145).
42 Houveram outras formas de coleta de dados, como a entrevista com pessoas-chave na região. 43 Existiam diversas possibilidades cartográficas em mãos, como a composição geográfica por unidades ambientais ou o uso
dos 77 setores censitários para o litoral do Paraná. ―a quadriculação aleatória e as Unidades Naturais não se mostraram
eficientes, em função da grande diferença no grau de definição dos indicadores ambientais (bastante detalhado) e sócio-econômicos (bastante difusos e agregados por município, na maioria dos casos). A utilização dos Setores censitários também
não se mostrou apropriada, uma vez que o critério que os definiu privilegiou as conveniências do trabalho de campo dos
recenseadores [...]‖. Em outros casos, como no que se refere ―aos conflitos fundiários ou à biodiversidade dos ecossistemas
litorâneos, os dados existentes são muito genéricos, ou encontram-se pulverizados em uma série de fontes de naturezas diferentes e incompatíveis (ANDRIGUETTO FILHO et al,2002:142-143)‖.
89
O conteúdo dos dois indicadores foi organizado tendo sempre como referencial os
índices médios da região e do estado do Paraná. Assim o índice de Densidade Demográfica
teve de levar em conta o índice de densidade demográfica do litoral (21 hab./km²) e do estado
do Paraná (42 hab./km²) o qual possibilitou o desmembramento de três categorias que se
tornariam legendas de leitura da carta de densidade populacional feita pelos
pesquisadores(vide anexo figura 1). As categorias são: a) unidades com índices de densidade
demográfica menores que a média do litoral; b) unidades com índices de densidade
demográfica entre a média do litoral e a média do Estado do Paraná);c) unidades com índices
superiores à média do Estado (ANDRIGUETTO FILHO et al,2002:145).
Do mesmo modo o índice da taxa de crescimento populacional foi organizado em
relação aos valores médios do litoral e do Estado. As categorias são: a) unidades de
crescimento negativo; b) unidades de crescimento inferior à média do Estado; c) unidades de
crescimento entre a taxa estadual e a do litoral; d) Unidades de crescimento superior à média
regional (vide anexo figura 2).
Após a composição da carta temática referente a cada um destes índices, é feita uma
transposição dos indicadores para a confecção da carta-síntese das situações demográficas,
através de uma matriz de correlação onde se produzirão legendas em que se agruparão
unidades geográficas em relação à densidade e crescimento demográfico. No presente caso
identificaram-se quatro situações distintas (vide anexo, figura 3): A) ―pólos de população‖,
unidades que apresentam alta taxa de crescimento populacional e uma densidade já elevada;
B) regiões ―em esvaziamento‖, com densidades altas, mas com baixo crescimento; C)espaços
em ―estagnação‖, com uma densidade entre baixa e média e crescimento populacional baixo
e negativo; D) ―frentes demográficas‖, unidades com baixa densidade populacional, mas altas
taxas de crescimento.
Esta carta-síntese por si só já possibilita a elaboração de algumas perguntas, no
entanto não se deve esquecer que as cartas-sínteses de outros eixos temáticos também são
sobrepostas para evidenciar outros tipos de relação em cada UGE. No que se refere a esta
carta de situações Demográficas os autores comentam:
[...] permite diagnosticar os grandes padrões da dinâmica demográfica do litoral, como, por
exemplo, a dinâmica urbana relativa aos ―pólos‖ e ―frentes de crescimento‖. Mais do que isso, a
carta leva a formular hipóteses ou questões de pesquisa pra explicar as situações observadas. Por
exemplo: por que a 18 das 23 UGE [vide anexo figura 3] apresentam-se estagnadas, quando
existem ―pólos‖ e ―frentes‖? O que explica a localização das ―frentes‖? Por que uma dinâmica tão
intensa nas áreas urbanas? Mesmo ainda não se fazendo correlações com as demais cartas-síntese,
tais questões já indicam ou permitem supor disfunções nas interações entre sociedade e natureza, e
90
se apresentam como pertinentes na formulação de um programa de pesquisa interdisciplinar sobre
o desenvolvimento na área de estudo.(ANDRIGUETTO FILHO et al,2002:146)
No caso do livro-relatório, o exemplo de contribuição entre eixos se dá entre o eixo
Demografia e o eixo Utilização dos recursos, no qual os indicadores associados aos demais já
mencionados são: Produtividade agrícola, nível tecnológico e grau de diversidade das
culturas de renda (ANDRIGUETTO FILHO et al,2002:146). A caracterização destes
indicadores se dá de modo semelhante aos indicadores do eixo Demografia e produz ao final
uma outra carta-síntese, portanto passo para o momento da articulação das cartas e a sua
consequência.
Não há nesta etapa de sobreposição das cartas-síntese uma reelaboração de outros
indicadores e assim sucessivamente. A intenção desta conjunção de indicadores serve para
complexificar as condições de existência dos próprios dados. Assim não faria sentido seguir
sucessivamente as sobreposições de cartas-síntese e traduzi-las em outros níveis formais
conforme deixam claro Andriguetto Filho e Marchioro (2002:175) ―Como se perde
informação a cada nível adicional de sobreposição de cartas, julgou-se procedente não
efetivar um cruzamento formal de cartas-síntese apresentadas até aqui, mas apenas compará-
las, procurando discutir relações julgadas pertinentes‖. Então é deste modo que o litoral,
especificamente na sua dinâmica rural passa a ser caracterizado em diferentes escalas
visualizadas pelo esforço de olhares diferentes.
Assim é que as UGE em ―estagnação‖ associadas aos índices de produtividade
agrícola construíram um cenário em que, as unidades de agricultura incipiente
transformavam-se naquelas que possuíam tendências estagnantes de demografia. E estas
condições associadas ao nível tecnológico revelaram uma afinidade entre a agricultura
tradicional e unidades estagnantes (ANDRIGUETTO FILHO et al,2002:82). Por outro lado as
―frentes de expansão‖ são aquelas que possuem, pelo atributo concedido pelas próprias
variáveis, áreas de transformação técnica (IBIDEM). E destas condições os pesquisadores do
MADE, situados ali na casa de madeira pré-fabricada que indiquei no prólogo, em um bairro
de classe média de Curitiba, passam a mobilizar as dados para produzir questões sobre uma
região distante, alguns quilômetros dali, conduzindo assim hipóteses de pesquisa que por sua
vez direcionarão os pesquisadores que irão a campo produzir os seus próprios fatos.
Conforme nos relatam os pesquisadores do MADE:
Do exposto, se pode levantar a hipótese, por exemplo, de que o aprimoramento técnico do [modelo
técnico] tradicional é mais desejável, como mais sustentável pelo menos social e economicamente,
91
do que a inovação técnica. Em outros termos, a nova tecnologia que substitui os modelos
tecnológicos tradicionais também expulsa a população rural tradicional, como parece ser o caso
das unidades de Marumbi, Rio Sagrado e Paranaguá (ANDRIGUETTO FILHO et al,2002:151).
Estas hipóteses, conduzidas com cuidado, na correlação de mais indicadores referentes
aos demais eixos temáticos, produzirão uma descrição detalhada, em diversos níveis de
agrupamento, de cada unidade geográfica (UGE) da unidade espacial referente às dinâmicas
rurais e estuarinas. O que possibilitará a composição de um quadro que desenhará as Grandes
dinâmicas do litoral (vide anexo figura 4) que consistirá no preenchimento de informações
naquele quadro inicial que previa interações entre os dois sub-sistemas Natureza e sociedades.
A partir daí serão definidos programas de pesquisa a serem contemplados nas teses de
doutorado44
, todos obviamente buscando nesta análise detalhada de diversos níveis da
realidade as condições nas quais poderão se desenvolver modelos de desenvolvimento
sustentável par a região.
A rearticulação de índices de cada eixo em uma problemática de pesquisa, me trás à
mente a questão da incomensurabilidade de paradigmas enunciada por Thomas Kuhn. Ora,
uma série de indicadores, induzidos por diferentes olhares disciplinares podem prover ao
pesquisador questões que não seria da sua alçada, mas que, no entanto saltam aos olhos num
diálogo de disciplinas, produzindo questões diferentes. Não haveria aí um indicio de
comensurabilidade?
Não há de se esperar uma revolução paradigmática na qual a totalidade estaria de vez
restituída, os pesquisadores já o deixaram claro, como expus mais a cima. No entanto, existem
incorporações de outras perguntas, a partir de uma grade de dados diversificada. Lembrando
de que o que norteia paradigmas são efetivamente questões ( aliadas evidentemente,com
métodos e critérios de validação e enfim a uma teoria para nortear as questões), é de se pensar
de que modo isso pode de fato produzir, a posteriori , uma mudança na maneira de conduzir
as condições de produção do conhecimento e talvez até mesmo em seus critérios de validação.
Pois, de princípio, os dados compilados neste jogo de indicadores e variáveis, tiveram
que se sobrepor a uma série de outros informantes e informações para adequar-se às intenções
da pesquisa (ruptura), no fim tornaram-se hipóteses, questões, conduzidas por uma outra
44 A história social das comunidades atualmente presentes no Litoral, com ênfase à sua composição demográfica, evolução
das formas de organização familiar, política, econômica e modos de controle dos fatores de produção; A fixação da identidade das diferentes comunidades, novos movimentos religiosos, análise dos projetos de vida e dos valores sociais que
os inspiram; As diferentes formas de mobilidade das populações, seus deslocamentos entre zonas rurais e a orla, as migrações
temporárias e permanentes no sentido das cidades da região e fora dela, a chegada de novas populações; As estratégias
sociais e econômicas que inspiram as escolhas técnicas efetuadas pelas diferentes categorias de produtores, que se utilizam das diferentes combinações dos fatores de produção (ANDRIGUETTO FILHO e MARCHIORO,2002:191)
92
metodologia convencionalizada por alguns pesquisadores para associar-se ao litoral e produzir
Fe(i)tiches que farão o próprio litoral dizer que os fatos existem (desenvolvimento
sustentável). A dinâmica do proceder científico é esta, encontramo-nos a meio caminho,
todavia.
A objetividade alcançada pela ciência se dá neste critério progressivo de articulação e
permutação de informações em níveis abstratos45
pela mediação de artefatos, inscrições, num
movimento crescente que conduz os artefatos a um alto grau de circulação e conseqüente
presentificação em diferentes pontos da sua rede (sempre em expansão). Este nível de
circulação será tanto maior quanto mais esotéricas forem as ciências. Pois o caráter fechado e
abstrato denota uma incrível capacidade de rearticulação entre inscrições e permite uma maior
presença da informação desejante de circular por outras formas de presentificação (outras
inscrições). A dinâmica de produção do conhecimento científico aqui se faz, ao menos em
parte , do mesmo modo que as demais ciências, conforme as descrições dos science studies
(Latour apresenta em inúmeros exemplos.) um movimento a montante e outro a jusante.
Penso que, pelo que foi apresentado e conforme ilustro a baixo, as cartas-síntese
conduzem as disciplinas a associarem-se, num dado momento da pesquisa, produzindo uma
conjunção de escalas que engendram uma condição de expressão da realidade, que não é
exatamente aquela que o sujeito vive; por exemplo, na sua experiência de partir de uma região
a outra (representada com um elemento possível no diagnóstico de densidade populacional),
ou na experiência de tornar-se pai ou mãe, ver um filho crescer (apenas um elemento possível
no critério representado por uma taxa de crescimento demográfico etc.).
As variáveis são uma realidade, não toda a realidade, dirão alguns. Sim tendo a
concordar, no entanto a variável pode atravessar a vida destes sujeitos, da mesma maneira
que, enquanto eu escrevo estas palavras, mediado pelo teclado do meu computador (que
provavelmente faz a vida de quem o fabricou do outro lado do mundo, possivelmente
diferente do que era antes da sua possibilidade de fabricá-lo), os responsáveis pelo
planejamento urbano da minha cidade criam condições, tão reais quanto as variáveis
demográficas que possibilitam a própria planificação, que me farão fazer outras coisas, pegar
uma linha ônibus, freqüentar um parque, comprar num mercado próximo à minha casa.
45 No entanto abstrações não supõem nenhuma singularidade cognitiva presente nas mentes dos cientistas. A intenção de
descrever a prática de construção do conhecimento através de inscrições denota , ao contrário, que o conhecimento se faz por
mediações e se a explicação do conhecimento não puder ser compreendida por intermédio destas tais inscrições, então aí
poderemos dizer que caracteres cognitivos qualitativamente superiores podem enfim produzir o conhecimento verdadeiramente verdadeiro.
93
É assim que a ciência promove a aparente ruptura com a realidade. Aparente, pois ela
nos deixa estes rastros que são as inscrições, objetos capazes de transportar informações sem
perder a natureza de seu conteúdo; o que Latour (2000:368; 2001:350) chamará de móveis
imutáveis. A condição de diferença que se traduz por esta aparente ruptura com o resto das
coisas, com o caos do mundo, é o alinhamento de todos os referenciais a um único movimento
que faz circular a informação do ―objeto‖ de um ponto a outro, por inúmeras formas,
produzindo assim a referência circulante, condição de existência tanto da objetividade
daquilo que se quer conhecer quanto da sua reversibilidade, pois é possível segui-la por todo
o seu caminho de volta. Assim, das teses do Doutorado eu poderia voltar aos programas de
pesquisas, às descrições pormenorizadas de cada UGE, de lá para a composição da grade de
dados, daí, para todos os critérios de coleta de dados e assim por diante.
Mas é o movimento contrário que estou seguindo, é essa objetivação que a ciência é
capaz de produzir a minha pista. É com esta estratégia que se poderá produzir fatos adequados
à condução de uma política de desenvolvimento sustentável. Daí para as teses e além, há um
longo caminho para que o conhecimento produzido por estes atores ( do qual este livro-
relatório é um mensageiro), possa tornar-se tão real quanto o é para os seus próprios
criadores. Como salientam Claude Raynaut, Magda Zanoni e Paulo Lana no capítulo final do
livro-relatório, ao refletirem sobre as possibilidades de se proporem políticas de
desenvolvimento sustentável:
Levando em conta a grande diversidade das realidades locais no litoral e a ausência de definições
únicas tanto no do ―equilíbrio‖ do meio natural como do estado desejável das relações entre
homens e natureza, a sustentabilidade torna-se uma noção relativa, cuja definição deve considerar
a especificidade de cada situação e somente pode ser o resultado de uma negociação entre vários
atores [...] Nesse contexto, consideramos que o papel da pesquisa cientifica só pode ser a produção
de um conhecimento que possa alimentar essa negociação (2002:247).
94
Espaços de socialização e conformação de enunciados científicos: Da criação da
ANPPAS à Comissão de avaliação interdisciplinar da CAPES
A condição a que me atenho a comentar agora, é esta de produção da objetividade dos
enunciados científicos. Ou melhor, da qualidade que os enunciados passam a possuir pelo seu
grau de circulação em lugares distintos. Se no tópico anterior eu busquei apresentar, quais são
as condições necessárias para que se possa fazer que um determinado tipo de ―objeto‖ bem
delimitado, possa se tornar um aliado na intenção de enunciar algo sobre alguma coisa. Se ali,
tiver ficado relativamente clara, a relação íntima, na fabricação da realidade – entre uma
inscrição tão local quanto possa estar (no pedaço de papel na minha mão, no arquivo do meu
computador) e a quantidade de informação sobre uma extensão espacial (tão distante da mão
que segura o papel que a enuncia) que ela é capaz de traduzir como realidade – então terei
tido êxito em apresentar o movimento fino que passa a demarcar aquilo que se faz como,
ciência, e aquilo que se produz como, um produto científico.
No entanto, como já disse, no capítulo anterior estávamos a meio caminho do
procedimento de demarcação. A circulação dos enunciados científicos produzirá um reforço
identitário aos mesmos, quanto mais forem os lugares que passarem a acolhê-los. No caso de
estarmos buscando uma diferença no procedimento de fabricação do conhecimento (como no
caso interdisciplinar), teremos então que socializar os problemas, identificar aliados e buscar
conduzir uma afinação entre problemas, exigências e por que não, produtos, tornando-os
comuns.
A criação de um espaço institucional que recrute aliados e os represente – pela sua
ampla capacidade de mobilização de problemas, lugares, coisas e pessoas – pode ser
interessante para a organização e consolidação daqueles mesmos procedimentos que indiquei
no capítulo anterior. Além de ser importante na condução do regime de objetivação
(reconhecimento) daquilo que se faz, enquanto real, como legítimo e etc. Isto implicará,
também, que estes outros espaços de maior mobilização de aliados permitirão produzir outras
modalidades de translação de interesses, como o reconhecimento normatizante e
normalizante daquilo que se faz e se quer fazer. Sigamos então a criação da Associação
Nacional de pós-graduação e pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e o
reconhecimento deste campo de atuação por parte da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES).
95
A socialização dos enunciados científicos: ou os fatos vão parque...
―[...] um grupo de profissionais vinculados a instituições de ensino e pesquisa que
atuam de forma interdisciplinar com foco em Ambiente e Sociedade vem mantendo
um ativo debate em torno da necessidade de se constituir um espaço institucional
próprio. Não se trata de mais uma associação disciplinar [...] A idéia é termos um
pólo real de interação, troca de experiências e socialização de resultados. E é,
também, uma forma de nos fazermos reconhecer junto à Universidade a ao sistema
de apoio, fomento e avaliação. Assim, está em gestação a APPAS – Associação de
Pesquisa e Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade. (BURSZTYN,1999:231)‖
Marcel Bursztyn economista vinculado ao CDS/UNB (centro de desenvolvimento
sustentável da Universidade de Brasília), no ano de 199946
, publicava na edição de numero
cinco da revista Ambiente e Sociedade47 um artigo intitulado “Interdisciplinaridade: é hora
de institucionalizar!”. Neste artigo, o autor tenta sensibilizar o leitor com as nuances que
aproximam política e produção do conhecimento, além de fazer um breve comentário acerca
da institucionalização da problemática ambiental nas universidades brasileiras e a resistência
causada por esta inserção. Uso este excerto para chamar a atenção para as diversas
experiências que contemporaneamente concorriam para consolidar o campo no qual se insere
o programa MADE. Não pretendo traçar a história de cada experiência, no entanto este relato
já nos serve de mediador a outros espaços que contribuíram para a legitimação da prática
interdisciplinar em ambiente e sociedade. Neste sentido traçar as relações necessárias à
formação da revista que divulga este relato,bem como localizar da onde fala o autor do texto
já nos servem de medidores da extensão da mobilização que este movimento de diferença na
modalidade de produção do conhecimento teve de executar para a sua consolidação.
O relato da necessidade da criação de um espaço institucional revela já um nível
importante de articulação entre os atores e um relativo grau de reconhecimento do campo de
produção interdisciplinar e de circulação desta produção. Afinal, a revista, ambiente e
46
Portanto um ano antes do artigo de Paulo Lana, apresentado no capítulo dois, que marcava a primeira edição da revista do
programa da UFPR. 47 A Revista Ambiente e Sociedade é fruto do debate no interior do campo das ciências sociais, e reitera a posição de que a
gênese do campo passou pela legitimação dos problemas ambientais pela e na academia através de um forte contato com as
ciências sociais: ―Em junho de 1995, durante um encontro intermediário do Grupo de Trabalho de Ecologia e Sociedade da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais) realizado em Campinas, chegou-se à conclusão da
necessidade de institucionalização de uma área de conhecimento produzida pela e na interface entre as questões do Ambiente
e as Ciências Sociais. Para isso, era necessário investir na criação de um meio de divulgação da produção científica
especializada e um espaço institucional de debates de idéias. O primeiro passo nesse processo parecia ser a criação de uma revista científica e foi então formalizada uma Comissão Editorial para enfrentar tal tarefa. Tratava-se naquele momento de
uma publicação de caráter interinstitucional e interdisciplinar, sem vínculos institucionais rígidos, para acentuar seu caráter
coletivo. Apesar da importância desta característica, essa aposta dificultava ainda mais a solidificação da proposta, ainda
mais em tempos recursos escassos na área acadêmica. Foi estabelecida uma estratégia de assinaturas solidárias junto às pessoas e instituições mais diretamente ligadas à proposta e constituído um Conselho Editorial de excelência, formado por
pesquisadores da Unicamp, USP, UFSC e FGV (RJ). O Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) da Unicamp
responsabilizou-se pelo apoio em infraestrutura, recursos financeiros complementares e pela agregação de talentos em torno
de um ambiente propício à concretização de um projeto ambicioso e inovador no cenário acadêmico brasileiro‖ (http://www.ambienteesociedade.org.br/home.php?p=historico acessado em 14/06/2011)
96
sociedade, começou a ser gestada em 1995 e no caso do MADE as experiências
interdisciplinares já vinham de 1987 com o NIMAD. Além da revista Meio ambiente e
desenvolvimento estar representando no ano de 2000 um outro veículo de circulação da
produção acadêmica na área.
A criação, no ano 2000, do que veio a se chamar ANPPAS se deu, conforme salienta o
relato acima, pela exigência de troca de experiências entre diversos espaços interdisciplinares
de produção do conhecimento, bem como para a socialização de resultados e a conformação
de problemas comuns a serem representados ao sistema de apoio, fomento e avaliação do
conhecimento científico. Em seu site, a associação define assim seus objetivos:
[...] incentivar academicamente o estudo, o ensino e a pesquisa de caráter
interdisciplinar no âmbito de Ambiente e Sociedade nas suas múltiplas dimensões,
promover e incentivar academicamente atividades voltadas ao diálogo e à interação
entre diferentes campos do saber permitindo tratar problemas multidimensionais de
forma interdisciplinar, promover reuniões científicas, objetivando o intercâmbio de
informações entre seus associados e os de associações similares brasileiras,
estrangeiras ou internacionais, promover a divulgação de estudos em Ambiente e
Sociedade, promovendo publicações, concursos e premiações. As atividades da
ANPPAS incluem a realização a cada dois anos de um Encontro. (ANPPAS,
presente em: http://www.anppas.org.br/novosite/index.php?p=oque acessado em
14/06/2011)
É certo que entre os objetivos da associação está o incentivo a produções
interdisciplinares no âmbito de ambiente e sociedade, no entanto não há uma simples
definição das condições de produção e a qualificação dos termos ambiente e sociedade.
Há de se convir que qualquer definição a priori para a criação de um espaço de
discussão a respeito desta temática poderia ser pouco proveitosa para a sua finalidade de
agregação. Pois estabeleceria, de princípio, determinadas condições a serem atendidas por
programas de pós-graduação e indivíduos que a ela queiram associar-se; algo ligeiramente
distinto das condições de uma dinâmica em vias de institucionalizar-se. Por outro lado, é com
a consolidação deste espaço de trocas que poderão surgir níveis de translação de interesses
nas instâncias avaliadoras da instituição científica, que por sua vez determinarão critérios de
identidade e qualificação destes determinados tipos de práticas48
.
Sem poder estabelecer o que são as categorias ―filtro‖ que possibilitariam a
delimitação de temas de interação ambiente e sociedade, fico apenas com os encontros
promovidos por esta associação e passo a mapear quais os temas recorrentes dos grupos de
48 Como veremos no tópico seguinte, a CAPES, passa a incorporar a partir do ano de 1999, programas de pós-graduação que não se enquadram nos moldes tradicionais de avaliação, em uma grande área multidisciplinar.
97
trabalho nestes encontros. Destes encontros, poderemos retirar indagações tanto da
multiplicidade de temas (e por suposto, de enunciados) em circulação, quanto a sua orientação
de fabricação da realidade.
Os encontros nacionais da ANPPAS são fóruns importantes de discussão e de comunicação entre os pesquisadores, profissionais e estudantes que integram nossa
comunidade. Também, é um importante momento para a criação de redes sociais
em torno dos assuntos relacionados aos temas de interesse da associação.
(http://www.anppas.org.br/novosite/index.php?p=anteriores acessado em
14/06/2011)
A finalidade destes encontros não é nenhuma surpresa para quem está relativamente
familiarizado com o ambiente acadêmico. Contudo é importante apresentar relatos textuais
que ao menos nos dêem ideia de tais condições. Os congressos científicos são espaços
fundamentais para a prática de expansão e consolidação do conhecimento. Caberiam, aliás,
relatos etnográficos sobre como a ciência se faz nestes espaços, como translações de
interesses são efetivadas e como o conhecimento flui de um lado a outro em questão de
minutos numa breve conversa. Como não é este o caso a ser tratado aqui, tenho que voltar-me
para os GTs. O primeiro encontro da ANPPAS foi no ano de 2002 em Indaiatuba-SP e a partir
de então foram mais quatro encontros sendo o último no ano de 2010 em Florianópolis-SC.
No website da associação não consta a programação geral de cada um de seus encontros49
,
temos acesso apenas aos anais dos congressos. Onde se disponibilizam os trabalhos enviados
de acordo com as seções de cada GT.
Estabelecer critérios de leitura dos trabalhos apresentados seria, demasiado trabalhoso
e acredito que não muito profícuo. Afinal, como em cada congresso de pós-graduação,
apresentam-se trabalhos em andamento ou incipientes, como resultados de dissertações ou
teses em andamento, sem, no entanto, desprezar os esforços de pesquisa e obviamente os
trabalhos dos professores pesquisadores. Faria sentido voltar-se a todos os trabalhos
apresentados em um GT se tivéssemos interesse em um tema específico. Como o tópico
consiste mais em relatar, descrever o espaço institucional, passo em vista alguns temas de GT
mais freqüentes.
Conforme o leitor poderá verificar nos anexos, há uma regularidade de alguns Grupos
de Trabalho desde o início dos encontros até a sua última edição; GTs, como, por exemplo, o
de Teoria e Ambiente; Biodiversidade e recursos naturais; agricultura, riscos e conflitos
ambientais, despontam como temas-chave nas discussões dos congressos, estando presentes
49 Com exceção do último encontro.
98
em todas as suas edições. Existem outros ainda na mesma condição como o GT de energia e
meio ambiente e o de recursos hídricos. Os GTs da ANPPAS, podem ser bons medidores para
o grau de consolidação de algumas temáticas de pesquisa bem como para o delineamento da
diversidade de temas que o campo em consolidação é capaz de retraduzir em práticas de
pesquisa. De 11 GTs iniciais no ano de 2002 foram 18 na última edição, o que verifica um
grau equilibrado de desenvolvimento nos últimos 10 anos de existência da Associação. Por
outro lado, houveram alguns GTs que não permaneceram para além de um único encontro,
como no caso do GT Natureza, técnica e violência do ano de 2004.
Quando observamos as temáticas dos GTs percebemos certo equilíbrio entre a
consolidação de algumas áreas e a incorporação de outras temáticas novas, o que nos dá a
indicação das possíveis áreas onde encontraremos maiores quantidades de trabalho e com um
campo de pesquisas mais consolidado em detrimento dos GTs iniciais, onde veriamos ou
indícios de desdobramentos das problemáticas de outros GTs ou um grau crescente de
inovação e expansão de domínios ditos de interação entre Ambiente e sociedade. O fato é que
estes espaços servem para conduzir fabricações da realidade, já que anteriormente viam-se
dois pólos a serem observados em interação, agora passa-se a um processo lento de
fabricação/verificação de problemas híbridos, donde emergem temas como justiça ambiental,
conflito social e desigualdade; mídia e ambiente; meio ambiente e consumo. Ora, se
efetivamente podemos seguir o processo de fabricação de temáticas de pesquisa poderíamos
dizer então que as relações entre meio ambiente e sociedade são construídas socialmente? O
ambiente fabricado no interior de um GT de justiça ambiental é o mesmo de um GT de mídia
e ambiente? Como poderiam estes pesquisadores estar traçando um laço entre dois pólos,
quando apenas discutem seus textos, a cada dois anos num determinado espaço de tempo em
uma determinada localidade geográfica?
Como já disse, estes espaços servem para a circulação de informações e translações de
interesses, não parece haver a posteriori uma separação entre ambiente e sociedade, pelo
contrário, se o enfoque são as interações entre ambiente e sociedade o resultado há de ser mais
hibridizações. Por isso evoquei a figura do parque no título deste tópico. Segundo o dicionário
Houaiss; Parque é Terreno relativamente extenso, cercado, arborizado, destinado à recreação.
A recreação em questão é a fabricação de outras modalidades da fatos-valores, que nos
conduzam outros questionamentos e possam contribuir para a modificação gradual de nossas
existências, fazendo-nos cada vez mais estar em simbiose com o ―ambiente‖ .
99
Mas e os GTs que se mantém desde o início dos encontros? Estes são temas clássicos
do ambientalismo, como recursos naturais, recursos hídricos, energia, agricultura.
Possivelmente foram temas fundamentais para a consolidação de práticas de produção do
conhecimento interdisciplinares. Como podemos observar no GT de teoria e ambiente há um
nível crescente de reflexividade sobre as modalidades de produção do conhecimento
interdisciplinar e uma preocupação por parte dos atores em mapear tanto as condições de sua
produção quanto a direção que ela tem tomado, produzindo critérios tanto para a demarcação
de posições no campo que crescentemente tem se consolidado quanto para a demarcação de
metodologias e epistemologias a serem utilizadas nas práticas de produção do conhecimento.
Existem inúmeras outras nuances a serem avistadas neste espaço de socialização do
conhecimento que é a ANPPAS. Em seus encontros vemos uma série de lugares sendo
mobilizados para dar voz àqueles que falam sobre seus textos. Vemos um nível de construção
gradual de problemas comuns com a formação de Grupos de Trabalho (GTs) e por
conseguinte um processo coletivo de reconhecimento de objetos, problemas e resultados em
circulação. O que em outro nível serve para conduzir a uma crescente definição de problemas
e metodologias e serem incentivadas e reguladas pelas comissões avaliadoras, constituídas
pelos próprios atores em questão.
O reconhecimento por parte da CAPES
No ano de 1999, a CAPES, iniciava a abertura de um espaço para abrigar/reconhecer
iniciativas de programas que não se encaixavam na divisão tradicional estabelecida pela
própria instituição50
. Decidiu-se criar a grande área multidisciplinar, na qual se agrupariam
programas com temáticas afins. De princípio, como consta no documento da área do ano de
1999, foram examinados 54 programas nestas condições de inadequação com as demais áreas
do conhecimento. Ao que se decidiu agrupá-los em categorias ainda incipientes: 1) Meio
Ambiente/ Agricultura/ ecossistemas com 15 programas; 2) biologia/Saúde 19 programas; 3)
modelagem matemática 03 programas; 4) Engenharia/Materiais 08 programas; 5) Ciências
Sociais e Humanas/Educação/Comportamento 09 programas.
Neste período, o enquadramento dos programas na área multidisciplinar, era de
autonomia de suas próprias coordenações, não cabendo à CAPES a distribuição destes
programas em respectivas áreas do conhecimento de antemão. Deste modo, a demanda
recebida por parte do comitê avaliador da CAPES era diversa, não podendo ser reduzida a um
50 A saber: ciências agrárias, ciências biológicas, ciências da saúde, ciências exatas e da terra, ciências humanas, ciências sociais aplicadas, engenharias, lingüística, letras e artes.
100
único modelo de proposta organizacional para os cursos de pós-graduação. Isto na verdade
incitou à comissão avaliadora da área a buscar definir alguns parâmetros de distinção entre
programas multidisciplinares e interdisciplinares, afim de que se pudesse gradualmente
distribuir e classificar programas no interior desta grande área multidisciplinar como também
realocar determinados programas à outras áreas de conhecimento, das quais dado programa
fosse um desdobramento51
.
Assim, de início buscou-se uma pré-definição do que seria interdisciplinaridade para
que se pudesse enquadrar as experiências em andamento em todo o Brasil ao passo que com o
tempo seriam conformadas as definições em concordância entre os pares. Afinal, no início da
constituição da área, haviam poucos profissionais com experiência (conforme consta no
documento da área do ano 2000) afim de que se pudesse conduzir uma plena avaliação por
pares.
Entende-se por interdisciplinaridade (ou pesquisa científica e tecnológica
interdisciplinar) a convergência de duas ou mais áreas do conhecimento, não
pertencentes à mesma classe, que:
1. Num processo de síntese contribua para o avanço das fronteiras da ciência ou tecnologia que, de resto, seria impossível sem essa interação.
2. Faça surgir um novo profissional com um perfil distinto dos já existentes, com
uma formação básica sólida e integradora.
3. Transfira métodos de uma área para outra, gerando novos conhecimentos ou
novas disciplinas. (CAPES 1999, DOCUMENTO DE ÁREA)
Por oposição a estes critérios, segue a comissão avaliadora:
Não se constitui proposta do âmbito desse Comitê:
1. A simples agregação de duas ou mais áreas de conhecimento para examinar um
mesmo tema sob pontos de vista distintos, próprios a cada área.
2. A interação entre áreas de concentração afins, pertencentes a uma mesma classe
de conhecimento que se caracterize por um processo de evolução científica ou
tecnológica Incluído nas atribuições dos Comitês existentes. (IBIDEM)
51 A maneira que os programas foram reorganizados em subáreas vem se modificando com o passar do tempo à medida que
seus respectivos campos temáticos amadurecem e o próprio comitê de avaliação multidisciplinar da CAPES ganha
experiência. Até pouco tempo a grande área multidisciplinar era constituída por 4 áreas dita interdisciplinares, próximas das
primeira classificações ainda no ano de 1999. Eram elas: Interdisciplinar I: Meio Ambiente e Agrárias. Área Interdisciplinar
II: Sociais e Humanidades. Área Interdisciplinar III: Engenharia/Tecnologia/Gestão e Área Interdisciplinar IV: Saúde e Biológicas. Hoje, encontramos no website da CAPES a grande área multidisciplinar constituída por outras 4 subáreas:
biotecnologia; ensino( ensino de ciências e matemática); interdisciplinar; materiais. A ênfase em uma subárea
interdisciplinar conduz a uma possível demarcação de estilos de produção e organização dos programas. Nesta subárea
encontram-se todos os programas de interface ambientes-sociedade, saúde, ciência humanas dentre outros. O que demonstra um momento de reorganização por parte da CAPES de seus quadros de classificação. Já neste ano de 2011, no web site da
CAPES, consta uma portaria na qual estipulam-se a criação de 4 novas áreas do conhecimento, que possivelmente terá
influencia para a organização do campo interdisciplinar em interface ambiente e sociedade, são elas : Biodiversidade,
Ciências ambientais; ensino; nutrição, com ênfases minhas à área de C. ambientais. http://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/Portaria_083_Cria_novas_areas.pdf
101
Podemos ver que ao passo em que se gestava a ANPPAS, sem, no entanto, definirem-
se quais eram os critérios que balizavam as produções acadêmicas naquela área. No interior
da CAPES algumas condições faziam-se necessárias para a própria regulamentação deste
novo tipo de práticas. A singularidade é que no comitê multidisciplinar da CAPES
(posteriormente em 2008 veio a se chamar Comissão avaliadora interdisciplinar CAInter )
inscreviam-se programas de múltiplas áreas, não só ambientais. O que fez com que a
instituição acaba-se por pré-definir condições de existência de programas naquela área. Daí a
certa ambigüidade em relação aos objetivos de programas Interdisciplinares, pois via-se de
início, a área multidisciplinar como incubadora de programas a serem assimilados a outras
áreas de conhecimento disciplinares. Por isso no item dois o comitê de avaliação afirma que
programas com áreas de concentração pertencentes a uma mesma classe não serão da alçada
da comissão. Aqui, a exigência da interação entre conhecimentos de outras classes, torna
singulares os programas em ambiente e sociedade, pois passam a adquirir uma identidade
legitima perante a instituição avaliadora do país.
A avaliação por parte destas instâncias reguladoras serve tanto para o subsídio dos
programas quanto para pautar o nível de qualidade da produção científica. Estas comissões
avaliadoras são compostas por pares, sujeitos pertencentes ao mesmo espaço que avaliam. As
comissões por serem células constituintes da instituição (CAPES) tem grande ressonância
com as políticas de desenvolvimento científico e tecnológico do Estado, portanto constituem-
se em um nível de relacionamento político52
. No presente caso, tem-se a elaboração de uma
nova ―grande área de conhecimento‖, o que trás a tona dificuldades tanto para as condições de
classificação e qualificação de programas, quanto para a própria conformação de um quadro
de indivíduos em vias de se tornarem ―pares‖ e conduzir os critérios de avaliação.
Um dos problemas para a consolidação do campo foi justamente este nível de
avaliação por pares. Conforme podemos conferir em um texto de alguns professores
pesquisadores do MADE (RAYNAUT et al.2000), as dificuldades corriam ainda no início da
elaboração de programas com aportes interdisciplinares na área ambiental, onde as comissões
avaliadoras eram as de ecologia e limnologia, produzindo algumas vezes penalizações aos
cursos interdisciplinares pela sua característica disciplinarizante. Porém ainda em 2004 esta
problemática se mantinha, conforme salienta o então presidente da CAPES Marcel Bursztyn
(IBIDEM).
52 Não por acaso, estas dinâmicas de planejamento, avaliação e fomento de pesquisa científica são englobadas no termo ―política científica‖.
102
Em 2004, a Capes avaliou a totalidade dos 2.861 cursos de mestrado e doutorado
credenciados no Brasil. Desse total, apenas 111 – os que se enquadram na área
denominada multidisciplinar e ensino de ciências – não foram analisados por
comissões de avaliação composta exclusivamente por pares.(BURSZTYN,2004:73)
Outros questionamentos acerca dos modelos de avaliação propostos pela CAPES à
área multidisciplinar também foram evidenciados em artigo pelos professores do MADE:
[...] embora conte com este excelente sistema de informação e com uma excepcional
base de dados a respeito da vida acadêmica da pós-graduação, a CAPES vem
priorizando o tempo médio dos doutoramentos e mestrados e a produtividade
científica total, comumente aferida por critérios meramente quantitativos, como os critérios básicos de avaliação da pós-graduação no país. Tais critérios são cabíveis e
imprescindíveis e, como tal, parte importante dos processos de avaliação, ainda mais
em um país caracterizado por enormes heterogeneidades sociais, que se refletem
necessariamente em heterogeneidades no espaço da pesquisa e da formação nas
instituições universitárias. No entanto, ―tempo‖ e ―quantidade‖ não devem ser as
diretrizes básicas ou únicas dos processos de avaliação, sob pena de sujeitarem a
política nacional de pós-graduação, de forma não crítica, às políticas macro-
econômicas governamentais e não à uma política científica saudável e
instigadora(RAYNAUT et all.2000:79)
A avaliação dos programas de pós-graduação se dá por múltiplos critérios, em certa
medida homogêneos em todas as áreas de conhecimento da CAPES, havendo porém uma
autonomia em relação a cada área53
. No caso do atual comitê interdisciplinar, e de toda a sua
história, a autonomia se deu na definição das balizas que definiram as características do que
vem a ser interdisciplinaridade e um programa interdisciplinar. A primeira concerne à citação
que expus mais acima a segunda consiste num jogo de condições para a eficácia do processo
interdisciplinar. No documento da área do ano de 1999 as condições requeridas a um
programa interdisciplinar eram expressas em seis tópicos:
1. Conter uma proposta integradora de preferência com poucas áreas de
concentração bem caracterizadas por objetivos focalizados.
2. Apresentar corpo docente, com formação disciplinar diversificada mas coerente com as áreas de concentração, linhas ou projetos de pesquisa integradores.
3. Apresentar grade curricular apropriada à formação dos alunos, que deve ser sólida
e integradora, constituída por um conjunto de disciplinas coerentes com as áreas de
concentração, evidenciando a construção de linhas de pesquisa fundamentadas.
4. Dispor de docentes dispostos a ampliar a base do conhecimento fora de suas
respectivas áreas de especialização, para poderem aprofundar uma cooperação
produtiva. No caso ideal, essa cooperação já deve estar em andamento, na ocasião da
submissão da proposta para abertura do curso.
5. Contar com corpo docente disposto a abrir as fronteiras do conhecimento, o que
exige grande experiência, competência e produtividade nas respectivas
especialidades.
6. Propor a oferta de cursos que favoreçam a formação de profissionais com um
perfil inovador e a emergência de novas áreas do saber que permitirão descobertas e
invenções que, de resto, seriam impossíveis de serem alcançadas sem a concorrência
das áreas clássicas. (CAPES, 1999)
53 De início formavam as fichas de avaliação os seguintes quesitos: proposta do programa;corpo docente; atividade de
pesquisa; atividades de formação; corpo discente; teses e dissertações e produção intelectual. Posteriormente a partir de 2004 serão incorporados novas fichas de avaliação
103
Nos anos subseqüentes os quesitos pouco mudam, dando ênfase sempre na
consistência e coerência da estrutura dos programas, enfatizando, a partir de 2003, uma
proporção entre docentes, discentes e outros participantes. O que me interessa é expor aqui,
estes critérios que serviram e servem de modelo disciplinarizador aos programas que se
pretendem interdisciplinar. Pode-se dizer que tais características definem os termos em que se
darão os processos de construção do conhecimento, ao passo que os demais quesitos de
avaliação complementam-se entre a avaliação de processo e produto conforme vemos na nota
53.
Como o que interessa aqui é evidenciar por quais mecanismos a ciência deve passar
para tornar-se ―Ciência‖, ou seja, demarcar-se em relação a outras modalidades discursivas,
cabe qualificar estas características distintivas entre processo e produto como uma cadeia de
processos, que definidos e definíveis através da rede que vem se expandindo e consolidando,
promovem consecutivamente uma distinção em relação à aquilo que fica fora da rede e em
relação à aquilo que serve de alimento para a própria dinâmica de produção do conhecimento,
ou seja seus objetos.
É por isso que cabe apresentar aqui, quais são os critérios que compõe os quesitos
teses e dissertações e produção intelectual54. Tomo referência ainda o documento de área do
ano de 1999, o qual estabelece as balizas para os posteriores desdobramentos e
reconfigurações, no entanto não deixo os demais documentos de área. Em se tratando da
produção de teses e dissertações o ponto principal de avaliação é a verificação da adequação/
vinculação destas produções às linhas e projetos de pesquisa do programa; geralmente o que
se passa é o cruzamento entre resumo e demais informações. Outro fator importante é o tempo
de duração da pós-graduação; deve-se estabelecer um equilíbrio entre oferta e demanda de
vagas e dissertações e teses e uma proporcionalidade entre produção de teses e dissertações a
o número de orientadores. No que se refere à produção intelectual
As publicações das pesquisas devem ser feitas também em veículos que ajudem a
credenciar a qualidade da contribuição científica ou tecnológica.
• As publicações devem preferencialmente incluir a participação de discentes,
particularmente dos candidatos ao Doutorado.
• Os trabalhos devem preferencialmente incluir autores de mais de uma área do
conhecimento, que compõem a estrutura do curso, demonstrando a eficácia da
cooperação científica e da pesquisa colaborativa em andamento.
54 Sendo que este último quesito juntamente com um outro inserção social passaram a ser de grande importância nas avaliações a partir do ano de triênio 2004-2007
104
• Uma indicação concreta para a avaliação da qualidade dos trabalhos é dada pelo
volume de publicações nos periódicos mais importantes que o curso referencia com
constantes da sua biblioteca. (CAPES,1999)
Os critérios deste quesito apontam para mudanças no modo de produção intelectual,
incentivando produções coletivas e uma interface maior entre discentes e docentes para a
publicação. No entanto, como vemos no último tópico a ênfase se dá no volume de
publicação, corroborando as críticas dos pesquisadores do MADE aos modelos de avaliação.
Além do mais, verificamos que a produção intelectual do programa, em se tratando de
docentes ou discentes, deve procurar publicações através de veículos que capazes de
credenciar a qualidade do produto que ali se produz. Isto nos leva ao complexo, sistema de
avaliação de periódicos da CAPES o sistema QUALIS55
, o qual analisa o nível de impacto de
determinada publicação em sua área de conhecimento e demais áreas. Contribuindo para o
estimulo à publicação em categorias de periódicos mais valorizadas pela sua avaliação, o que
por sua vez indicaria os veículos de mais relevância em suas respectivas áreas, conduzindo
assim a um hierarquização progressiva dos centros de produção e divulgação do
conhecimento que por sua vez estariam atrelados ou não a determinados programas de pós-
graduação.
A extensão dos critérios de avaliação e fomento da produção científica contribui para a
regulação, consolidação e conseqüente demarcação científica de diversas maneiras. Ao
sancionar programas a se adequarem a determinados modelos pré-estabelecidos (embora
discutíveis) de práticas de produção do conhecimento. Ao reconhecer qualidades, estipuladas
progressivamente e também interessadamente, a determinados modos de produção do
conhecimento. Reconhecendo espaços de prestigio e competência para a produção e a
veiculação do conhecimento científico. Definindo assim o caráter distintivo da prática
científica, por um vasto e criterioso sistema de índices e variáveis que estruturam práticas do
mesmo modo que são estruturadas pelos atores.
Agora a produção do conhecimento interdisciplinar pode valer-se de critérios similares
àqueles adotados pelo sistema de avaliação e fomento de pesquisa que regulava o já criticado
modelo disciplinar. Há aí a incorporação de inúmeras características de distinção e
55 O Qualis é uma classificação de veículos de divulgação da produção intelectual (bibliográfica) dos programas de pós-graduação stricto sensu utilizada pela Capes para a fundamentação do processo de avaliação da pós-graduação nacional por
ela promovido.(CAPES: DIRETORIA DE AVALIAÇÂO,2004:149). Os critérios de avaliação da produção intelectual vem
se modificando a amplificando no decorrer dos anos, avaliação produções técnicas, e artísticas. Além de estarem sendo
elaborados critérios QUALIS para editoras que publicariam livros dos referidos programas e um outro QUALIS para eventos acadêmicos o que incorporaria também as produções acadêmicas nestes espaços (Doc. área 2007-2009).
105
reconhecimento de condições necessárias para a produção e crescente regulação de um
conhecimento científico interdisciplinar. Os regimes de validação do conhecimento são postos
em funcionamento progressivamente e para que tenham eficácia devem passar por estas
instancias de avaliação. Existem, contudo, dois momentos que completam de certa maneira
este movimento de demarcação.Um momento aquém destes espaços que é fundamental para
este momento além que completará o movimento que permitirá à construção do enunciado
científico fabricar a sua identidade de diferença em relação às demais modalidades práticas e
discursivos do mundo. Quem sabe aí, neste retorno não encontremos outros regimes de
validação e objetivação dos enunciados científicos.
106
Considerações finais: intervenções especulativas em torno da ciência por fazer...
O movimento de demarcação da prática científica em relação a qualquer outra
atividade humana é o que pretendi caracterizar com a escrita deste texto. Tive a peculiaridade,
de acompanhar um conjunto de práticas científicas que se identificam pela sua diferença em
relação às práticas científicas tradicionais. Tratei então de seguir, a partir de um numero
restrito de fontes, alguns elementos que caracterizariam esta autonomeada diferença e, por
conseguinte, as características de seu processo de institucionalização e legitimação. Tratava-
se de apresentar em grande medida, aquele movimento que descrevi como de
autonomia/autoridade na primeira parte do trabalho.
Seguindo a intuição dos science studies, tratei de partir do momento de construção do
conhecimento interdisciplinar às suas condições de circulação e validação. Poderiam dizer
que deixei de lado, justamente o que disse ser a distinção dos estudos de sociólogia e
antropologia da ciência; a construção do conteúdo do conhecimento, a relação deste conteúdo
com as suas condições de produção. De fato, não pude executar a tarefa de descrever o
processo de construção do conhecimento e avaliar o final deste processo na
interdisciplinaridade. A prática a que tive a oportunidade de acompanhar foi a prática-escrita e
não as práticas-práticas de interdisciplinaridade.
Desse modo, eu precisaria escolher entre uma avaliação dos resultados dos
programas interdisciplinares; suas teses, recortar a análise por temas de teses e etc.,ou decidir
acompanhar o movimento de autonomia/autoridade que este conjunto de práticas promovem
no interior da comunidade cientifica e de que modo passam a delimitar condições para a
produção de seu conhecimento. A questão do conteúdo do conhecimento não deixou de ser o
meu interesse. Não obstante, são os atributos do tal ―conteúdo‖ que me interessam, suas
condições de qualificação como produto científico e conseguintemente seus modos de
circulação com este atributo. É por isso que ao final do último capítulo, após ter apresentado
regimes de avaliação e controle da produção científica, afirmei que o problema da autoridade
do conhecimento científico ainda se encontrava aquém daqueles registros e além deles. Falta
ainda a questão chave da relação de autonomia/autoridade da ciência. Autonomia em relação
a que? E autoridade sobre o que?
Em grande parte do capítulo dois, tratei de descrever o que a prática interdisciplinar
em questão supõe; quais condições os atores apresentam como justificativas de suas ações. Ao
107
que parece a estratégia de argumentação presente na justificativa do livro-relatório, mas que
também estão presentes em diversos textos do campo, caminha muito próxima da leitura de
uma sociologia simétrica, ainda que por vezes possa ser vista pelo viés da sociologia dos
campos de Bourdieu56
. O que quero salientar é que há, ou ao menos havia no período de
publicação dos textos analisados, uma certa ambivalência em relação à prática científica
tradicional e suas correspondências sócio-culturais, é o que quis salientar ao dizer que o
discurso era ambíguo; ora impelia à condenação ora à absolvição da prática científica
disciplinar.
Do mesmo modo que o argumento historicista serviu para desestabilizar a autoridade
científica na explicação sociológica, como apresentei na primeira parte do trabalho; do mesmo
modo que a proposta de simetria pretende fazer passar verdade e erro científico pela
explicação social; a estratégia dos atores é historicizar o modelo de produção científica
disciplinar. Ao dizê-lo construído historicamente sob um contexto social específico, o
discurso interdisciplinar passa a poder traçar a sua diferença. Trata-se, aliás, de uma reflexão
de ordem retrospectiva que possuí motivações contemporâneas bem marcadas.
Os problemas ambientais são o mote para a reflexão e conseqüente tomada de posição
de que a prática científica deve incorporar questões políticas. Estes mesmos problemas
ambientais que tem seu início ( um marco histórico) na divulgação do que se chamou o
relatório The Limits to Growth (os limites do crescimento), na década de setenta, elaborado
por um grupo de cientistas e pesquisadores intitulado Clube de Roma. A crítica que enlaça
ciência e política consiste em associar o recorte da produção do conhecimento disciplinar, sua
produção técnica e tecnológica às características produtivas do modelo capitalista, enfim de
um modelo societal utilitarista, produtivista. Pautando-se, então, na ressonância entre a noção
de uma ―natureza‖ mecanicista separada do ser humano e um desenvolvimento técnico e
científico pautado na intervenção e controle da natureza, perfeitamente afinado com o viés das
relações sociais de nossa sociedade.
Este cenário é tido como responsável pela presente crise ambiental e aliado a alguns
questionamentos de ordem epistemológica no interior da comunidade científica passa a ser o
pano de fundo no qual as práticas interdisciplinares em questão procurarão estabelecer a sua
identidade e diferença. O que chamei de uma proximidade em relação à simetrização, foi esta
característica de atribuição de uma dependência da natureza da produção científica, suas
56 Obviamente esta aproximação é feita por mim, do pontos de vista da minha interpretação. Ainda que estes autores possam estar sendo usados pelos próprios atores para a compreensão de suas práticas.
108
instituições e etc. a um contexto sócio-cultural, o que por sua vez denota uma conseqüente
posição valorativa, política, do modelo de produção do conhecimento. Além, é claro, da
caracterização dos recortes disciplinares como representações da realidade e, portanto
arbitrárias.
Assim, o questionamento político que atravessa as práticas interdisciplinares, com a
intenção de uma reconciliação entre ciência-política, é a resposta a uma prática de produção
científica que se dizia isenta de valor, mas que não conseguiu passar dos limites e valores de
suas próprias condições sociais de produção. Deste modo as escolhas ―corretas‖ do passado,
passam a ser os equívocos do presente, pontos de inflexão para a diferença de posturas. Se o
recorte disciplinar é arbitrário, se ele somente produziu representações sobre a realidade,
então simetricamente podemos modificá-lo para melhor responder aos problemas
contemporâneos; a interdisciplinaridade passará então a conduzir a outras representações
acerca da realidade.
A ambivalência que relatei fica mais clara quando se trata de pensar as práticas
interdisciplinares e, por conseguinte suas estratégias de institucionalização. Apontar as
práticas disciplinares como representações não isentas de influências de seu contexto, são
argumentos que se levados ao limite poderiam provocar o questionamento da validade do
conhecimento, de sua objetividade, conforme vimos na primeira parte do trabalho, o que de
certa forma mina a pretensão de autoridade que outro possa vir a estabelecer. No que se refere
ao discurso interdisciplinar voltado aos problemas socioambientais, esta crítica ao ser
efetuada não aparece como negação das práticas científicas, tampouco como recusa de sua
autoridade sobre o conhecer. Antes, parece uma caracterização de um ponto de fuga para a
afirmação da possibilidade de uma outra maneira de organizar as perguntas e os problemas
que orientam a pesquisa científica. Existe uma crítica da autoridade científica, mas não uma
recusa de um projeto de ciência nem dos frutos de sua história. Pois para que se possam trazer
outras formas de questionamentos e suas conseqüentes maneiras de organização da prática
científica faz-se necessário um profundo conhecimento de disciplinas científicas. Os
pesquisadores que buscarem orientar-se para pesquisas interdisciplinares com enfoque nas
relações entre meio-ambiente e sociedade precisam possuir um domínio de suas respectivas
disciplinas de origem.
Estas condições orientam, a meu ver a maneira como os programas interdisciplinares
passam a se adequar à instituição Científica, conduzindo modificações nas modalidades de
109
organização, de produção e avaliação do conhecimento 57
. As estratégias de produção do
conhecimento por serem coletivas, exigem, por exemplo, modificações no modo de
organização dos departamentos acadêmicos; para serem legitimadas exigem a construção de
uma rede de avaliação da organização e produção acadêmica na área. Por se tratarem de
programas que trazem como tema de convergência as relações entre meio ambiente e
sociedade – no caso do MADE as relações entre desenvolvimento social e o meio ambiente –
passa a produzir indagações acerca das condições de produção do conhecimento, sobre
ciência, política, autonomia científica e etc..
Este problema da autonomia científica é cunhado pelas estratégias de produção,
avaliação e circulação do conhecimento. Conforme apresentei no tópico sobe ―como fazer a
realidade ter escalas‖, a prática interdisciplinar apresenta grande semelhança com
características de formalização e produção do conhecimento das demais ciências, conforme
inúmeros exemplos de Bruno Latour. A organização de dados por inscrições; a amplitude de
informações coletadas num espaço condensado; o resultado do conhecimento representando
determinado objeto, realidade e etc.. As condições de produção também são reguladas por
agencias avaliadoras, ainda que estas tenham que se adequar às modalidades de organização
destes programas. E o campo em sua recente constituição também erige sua organização
representativa (ANPPAS), onde de início circulam e se afinam interesses temáticos,
metodologias, modelos de organização, conhecimentos etc..
Esta adequação ou incorporação ao modelo acadêmico, diz sim, que a prática de
produção científica interdisciplinar passa a constituir um campo autônomo, legítimo e cada
vez mais consolidado. O modo com que se passa a reconhecer isto e lidar com estas questões
é o que aproxima da visão Bourdieusiana do campo científico. Em se tratando de estabelecer
críticas e limites às condições de produção do conhecimento científico moderno e disciplinar,
o discurso recorre à uma crítica sócio histórica, simetrizando aos poucos o produto do olhar
científico como representação acerca da realidade para que a prática interdisciplinar se torne
ao menos equivalente em relação àquilo que pretende dividir espaço. Caberia então à
interdisciplinaridade associar a sua prática de produção do conhecimento às condições sócio
históricas de sua emergência. E ao conduzir o seu processo de institucionalização existe uma
certa adequação a algumas condições institucionais de existência, uma construção progressiva
de um modelo diferente de pratica de produção do conhecimento científico, que em grande
57 Isto do meu ponto de vista a partir de uma interpretação e sua conseqüente generalização, a partir das referencias aqui utilizadas, para explicação do modo de institucionalização do campo interdisciplinar
110
medida embasa a sua autoridade nas formas de reconhecimento da legitimidade das práticas
de produção disciplinares.
Ora, não quero aqui prover um tom de denuncia à leitura do texto, de contradição, ou,
sejam lá quais forem os termos acusativos. Quero apontar apenas, uma ambivalência
característica da dinâmica de institucionalização, um jogo discursivo que transita por críticas
contundentes ao modelo de organização de nossas práticas de produção científica à uma
horizontalização das modalidades de produção do conhecimento, o que atenua o tom de
ruptura e recusa que possa vir a sofrer diante de um espaço de práticas disciplinares e faz com
que as instituições acadêmicas e de avaliação e fomento passem a incorporar e regular o
crescimento e a autonomização do campo interdisciplinar.
Associar ciência e política implica em pensar as maneiras de produzir e qualificar o
conhecimento científico. Conforme vimos em Latour, a criação de uma ciência livre de
qualquer política e de uma política distante de qualquer ciência é um artefato político fruto do
acordo modernista. Ao historicizar e culturalizar as ciências disciplinares os atores
repolitizam a ciência, a tornam constituída por valores, e é partindo daí, desta equalização
entre proposições, que os desdobramentos na produção do conhecimento podem e devem
trabalhar neste vínculo ciência-política.
O olhar de relance que apresento no trabalho me incita a crer em outras possibilidades de
organização e produção da prática científica. No caso da Interdisciplinaridade, no entanto, um
caminho institucional mais ou menos homogêneo parece ter sido traçado. A crescente
consolidação frente as instâncias avaliadoras e reguladoras pode vir a enraizar um espaço de
autonomia interdisciplinar em relação aos outros campos disciplinares. Fazendo sim com que
o campo produza seus próprios pares e seja efetivamente incorporado como instância legitima
no interior da academia. Porém, poderíamos nos perguntar se esta autonomia, e aqui penso na
autonomia do campo conforme Bourdieu, não produziria em si uma disciplinarização das
práticas interdisciplinares; uma subárea do conhecimento especializada em
interdisciplinaridade. Ou de outro modo, não poderia ser incorporada, pelo seu caráter
político, no âmbito de uma produção científica aplicada que divide espaço institucional com
as ciências, ditas, puras, servindo assim, como um filtro de autonomia relativa da universidade
e da comunidade cientifica em relação às demandas sociais. Talvez... Talvez...
E aqui, volto com o problema do par aquém-além da ciência. Ao associar ciência e
política atravessando a produção acadêmica com os questionamentos da problemática
111
ambiental, o objetivo dos programas interdisciplinares, em particular o MADE, é pensar o
desenvolvimento social e sua relação com o meio ambiente. A relação de conhecimento
implica que exista algo que antecede o momento da relação, este algo pode ser designado de
diversas maneiras: mundo, realidade, crise ambiental. A peculiaridade deste momento é que
existe algo que está aquém da produção científica e que mesmo no meio do procedimento de
pesquisa, pode ainda estar alheio ao próprio procedimento. O que não quer dizer, por
exemplo, que os atores entrevistados não tomem consciência daquilo que estão a fazer, mas
sim que o procedimento de pesquisa sempre exigirá um nível na formalização da inscrição,
que estará aquém do sujeito da entrevista. Enfim, o importante é termos em conta que a
ciência se faz sempre nessa relação em que pede algo a mais dos dados58
. Assim, a prática
científica produzirá um conhecimento sobre determinada realidade e forjará a aparente ruptura
da ciência com o senso comum, conduzindo-se assim a um grau crescente de autonomia e
autoridade sobre a experiência real.
Esta autoridade sobre a experiência e suas conseqüências é o que designo por além da
ciência. São todas as translações que podem e serão executadas, tanto pelos cientistas, quantos
por outros, em dadas ocasiões, justamente pelo atributo que a informação carrega em si, pela
qualidade de seus registros, enfim por este algo ser um conhecimento produzido
cientificamente. No caso do produto interdisciplinar com ênfase em meio ambiente e
desenvolvimento, devemos ter em conta os objetivos da produção do conhecimento. No que
se refere ao MADE, é a compreensão e manejo de complexas situações ambientais, como
vimos nos relatos de Paulo Lana. Há uma preocupação com a proposição de políticas de
desenvolvimento sustentável; de produzir reflexões acerca do que vem a ser o
desenvolvimento sustentável, conforme já vimos nos relatos dos Raynaut e outros.
É que no fundo desta prática de produção interdisciplinar, como já disse, existe uma
crítica à concepção de natureza (mecanicista) e uma progressiva incorporação de outra
concepção de natureza, estas duas concepções parecem ter implicações distintas para os
objetivos do conhecimento e sua associação ciência-política, por conseguinte tem
conseqüências para o trato dos problemas aquém-além da ciência. Segundo Raynaut comenta
no último capítulo do livro-relatório:
Nos países industrializados e nas faixas mais bem sucedidas dos países em desenvolvimento, os
debates sobre a sustentabilidade são fortemente influenciados por representações de uma Natureza
58 Como no caso do uso dos dados estatísticos para a confecção de índices e variáveis na construção do quadro de pesquisa comum.
112
intocada, dispensadora de benefícios, testemunha da ordem original do mundo, hoje ameaçada
pelas danosas atuações dos homens (RAYNAUT et al.,2002:242)
Esta concepção, segundo o autor, é tributária de uma fraca fundamentação teórica e
científica acerca do conhecimento sobre os sistemas ecológicos e sociais. O que acaba por
conduzir a desdobramentos políticos coercitivos, fomentando a criação de políticas ambientais
conservacionistas que visam restituir à natureza o seu equilíbrio perdido pela influência da
ação humana. As conseqüências são, por exemplo, os efeitos negativos que as restrições
exigidas às áreas de proteção ambiental produzem em populações indígenas. O argumento de
autoridade cientifica nestes casos nunca é deixado de lado, é a natureza fazendo política,
calando a política (LATOUR, 2004).
No entanto, o conhecimento interdisciplinar que tem como base a finalidade da
compreensão das relações entre ambiente e sociedade, procura trabalhar, com uma noção de
natureza e conseqüentemente de equilíbrio natural diferente. O conceito de resiliência surge
como um ponto integrador. Trata-se de um conceito da física, que diz respeito à ―capacidade
de um sistema responder à choques externos recompondo-se, reestruturando-se (RAYNAUT
et al.,2002:243)‖. Esta noção, quando utilizada em sistemas biológicos, traduz a necessidade
de se pensar a organização, o equilíbrio ambiental, nos termos de sua variabilidade, de sua
capacidade de mudança e resposta a mudanças. Trata-se de incorporar uma dimensão histórica
ao estudo do meio ambiente e por conseguinte de incorporar a relação do ser humano com o
ambiente. Segundo Raynaut, estas conclusões no âmbito da física e da ecologia aproximam
estas ciências das conclusões dos estudos sobre as dinâmicas dos nossos sistemas sociais
(ibidem:244). Neste sentido, parece haver uma certa articulação epistêmica por trás dos
objetivos de se pensar a sustentabilidade que integra modelos explicativos, ao menos nesta
relação entre mudança e estabilidade.
Se uma concepção de natureza estática, de um equilíbrio primeiro que foi maculado
com a presença humana, produz políticas conservacionistas, demasiadamente restritivas,
prejudicando grupos sociais que estão em relação com determinado espaço. Uma outra
concepção das dinâmicas ambientais, muito próxima, das explicações históricas das ciências
humanas, tende a levar em conta em seus objetivos de sustentabilidade, o conhecimento
destas relações de definição recíproca entre o meio ambiente e o ser humano, bem como a
possibilidade de se conduzir à manutenção de um equilíbrio ambiental nas condições de uso e
influência humana. Se no primeiro caso teríamos um ―equilíbrio natural perdido‖ na proposta
113
presente no livro-relatório temos a ideia de um ―equilíbrio dinâmico‖, dependente sempre das
condições locais, conjunturais de sua problematização.
Parece que a maneira como o conhecimento produzido interdisciplinarmente, ao
menos tendo em vista esta descrição do MADE, terá para além de seu espaço de produção,
uma circulação diferenciada. Esta, ao que parece, concepção de natureza presente na noção de
resiliência, associada à ideia de crise ambiental, conjuga de modo interessante a ideia de
contingência e liberdade e impõe um limite à objetividade, ou à concretude que possa vir a ter
o conhecimento aqui produzido. Ou melhor dizendo, apresenta as condições construtivistas
desta objetividade e que terá que associar de maneira ou outra a política na produção do
conteúdo do conhecimento.
Se a ideia de resiliência consiste na compreensão da capacidade de um sistema em
equilíbrio retornar a um estado de equilíbrio após uma perturbação, esta ultima tende a ser
contingente; ou causada por agente externo ao sistema em equilíbrio ou por uma contingência
interna ao sistema que em dado momento esteve em equilibro. Em se tratando de uma
situação de crise ambiental, a simples constatação de que o sistema perturbado tende a
reequilibrar-se não ―implica que políticas gerais e medidas particulares para controlar os
impactos ambientais das atividades humanas não sejam necessárias (ibidem,244)‖. O
equilíbrio dinâmico de um sistema dependerá da intensidade da perturbação e de sua
capacidade de reação à mesma. A manutenção do equilíbrio está sujeita à contingência da
perturbação assim como a crise está sujeita à liberdade dos indivíduos de se prestarem à
manutenção, reorganização do equilíbrio de seus sistemas. Não há como afirmar com toda a
certeza do retorno ao equilíbrio do ambiente, pois se quisermos tirar a prova, poderemos não
mais estar aqui para a verificação! Em contrapartida, a exteriorização desta noção de natureza
em equilibro dinâmico, a concretude que ela possa vir a ter, dependerá do grau de translação
que os produtores do conhecimento conseguirão produzir, incidirá na possibilidade ou não de
seus argumentos, de seu conhecimento ser levado a diante, enfim, de ser reconhecido como
legítimo.
Isto, porém, pode implicar na necessidade de outras modalidades de validação do
conhecimento. Conforme nos lembra Latour ―o destino das coisas que dizemos e fazemos está
nas mãos de quem as usar depois‖ (2000:52). E se o desafio da prática interdisciplinar em
meio ambiente , a partir da noção multicentrada de equilíbrio dinâmico, é conseguir produzir
reflexões e proposições sobre sustentabilidade e desenvolvimento sustentável. E se estes
114
conceitos devem necessariamente passar por uma negociação entre a diversidade de posturas
e opiniões entre os atores (citação p. 91). Temos então uma bifurcação produzida pela
possibilidade de se encarar a natureza do conhecimento científico de modo distinto.
Se reconhecermos que a autoridade do conhecimento científico é semelhante à aquele
do pequeno grupo que fala em nome dos fatos mudos ou das pessoas, poderíamos manter os
níveis crescentes de consolidação do campo e de sua autonomização. Se, porém, atentarmos
para a gravidade dos problemas aventados nas pesquisas, a maneira como são colocadas as
questões referentes à ciência e política, poderemos conduzir esta ―ultima fronteira de
translação‖ de modo diferente. Será mesmo que teríamos que dispor de outra natureza ou
mudar as modalidades de produção do conhecimento se o problema/solução é associar
ciência/política. Teríamos mesmo que fazê-lo apontando outra exterioridade, com a
justaposição de inúmeros casos? A natureza e a sociedade seria então a justaposição daqueles
temas presentes nos GTs da ANPPAS? Teríamos que falar em nome de outrem sobre as
coisas que lhes dizem respeito?
A grande questão para Bruno Latour é desatar o nó que une paradoxalmente ciência
(fatos) e Política (valores). Os primeiros demonstráveis pelo método científico os últimos
demonstradores da idiossincrasia humana e sua impossível solução. A maneira de desatar
este nó é que pode conduzir ao efeito desestabilizante dos atuais regimes de validação.
Talvez o tal parlamento das coisas de que nos fala Bruno Latour. Ou ainda na proposta de
Ciência Pós-Normal de Funtowicz (1997) com a proposição de uma ―comunidade ampliada
dos pares‖.
Ainda que esta última possa parecer incipiente, seus desdobramentos alcançam a
intuição do par em vias de refundir-se: ciência e política. Em que pese o uso discutível do
termo ―pós-normal‖, menção ao pensamento de Kuhn que segundo Funtowicz caracteriza ―a
ultrapassagem de uma era em que a norma para a prática científica eficaz podia ser a rotineira
resolução de quebra-cabeças (Kuhn, 1962), ignorando-se as questões mais amplas de natureza
metodológica, social e ética suscitadas pela atividade e por seus produtos(ibidem)‖. A
proposta de uma ―comunidade estendida dos pares‖ traduz de maneira interessante –a
abordagem dos problemas ambientais, ou da bioética, por exemplo – na medida em que
admite que a gravidade das questões, não podem ser limitadas a decisão de alguns poucos
especialistas, devem passar pelo crivo de outras instâncias sociais. Contudo, a postura parece
lembrar aquilo que Isabelle Stengers afirma sobre os limites da crítica às tecnociências (ver p.
115
41). Não parece haver uma simetrização da ciência ao mundo, mas uma adequação do mundo
aos problemas do desenvolvimento científico. Tratar as problemáticas científicas como se
fossem inexoráveis, irreversíveis, frutos da ruptura provocada pelas ciências, pesados fardos
da modernização do mundo, os quais cabe a todos compartilhar, não implica uma mudança
de postura em relação à natureza do conhecimento científico e sim com seus usos.
Se levarmos em consideração a explicação construtivista dos Scince Studies, a relação
com o conhecimento científico pode passar a ser outra. Torna-se reversível, passível de
questionamento, ao menos em tese, na medida em que se podem reconhecer os limites da
extensão de suas redes, seus pontos de tração, caixas-pretas e etc. .Torna-se mesmo passível
de recusa, sob a alegação da diferença de metafísicas. Mas a intenção, creio eu, é escancarar
as portas do edifício que reúne a assembléia de sábios, simetrizá-los ao mundo, conduzir sim
a outros regimes de validação do conhecimento e por conseguinte seus modos de circulação,
organização e avaliação, fazer enfim uma ecologia política, ou cosmopolítica. Os problemas
ambientais referentes a conhecimentos tradicionais, populações tradicionais, indígenas dentre
outros, são lócus fundamentais para este exercício de recomposição dos modos de produção
do conhecimento.
Temos, enfim, um processo de diferenciação no interior do campo científico brasileiro.
E conforme pude notar, pelos caminhos percorridos nas fontes que utilizei; a
institucionalização das práticas interdisciplinares em meio ambiente segue uma lógica de
produção e legitimação semelhante às práticas tradicionais. Pude notar uma ambivalência
entre uma imagem de ciência próxima daquela que representa algo ou outrem e uma outra,
que tem em si a potência de exorcizar os modelos acadêmicos tomados pelo espírito que as
enrijece. Com a incorporação de uma problemática que implica novas estratégias de produção
do conhecimento, uma outra imagem de ciência parece despontar. Se por um lado pode-se
acompanhar uma política da ciência dos representantes do mundo, vejo a possibilidade de
outra política da ciência, aquela política da natureza de que nos fala Latour. Talvez outra
exterioridade, progressiva, por que decentralizada. Sujeita aos problemas específicos que cada
situação fará emergir, tornar exigente. Se os Science studies conseguiram produzir o efeito
desejado por Hurssel na epígrafe deste trabalho; se a afirmação Latouriana, de que o nosso
futuro político consiste na questão de decidir o que nos liga a todos, nos causar algo mais do
que meras inquietações; então, talvez, possamos estar no limiar de outras fenomenologias e a
ciência ou o conhecimento estará todo por fazer.
117
Referências Bibliográficas
ANDRIGUETTO FILHO et al. Metodologia de um diagnóstico preliminar in:
RAYNAUT,Claude (Org.). Desenvolvimento e Meio Ambiente: em busca da
interdisciplinaridade. Curitiba: EDUFPR, 2002
____________________ e MARCHIORO N. Diagnóstico e problemática de pesquisa in:
RAYNAUT,Claude (Org.). Desenvolvimento e Meio Ambiente: em busca da
interdisciplinaridade. Curitiba: EDUFPR, 2002
BACHELARD, G. A Formação do Espírito Científico. Rio de Janeiro: Ed.
Contraponto,1996
BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico
São Paulo: Editora UNESP, 2003
_____________ Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições 70, 2004
BORGES, J. L. Funes, o memorioso. In: Ficções. São Paulo: Globo, 2001
BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social, São Paulo: Editora UNESP, 2009
BURSZTYN, M. Interdisciplinaridade: é hora de institucionalizar! IN: Ambiente e
Sociedade ano 2 no. 5,1999
COSTA FERREIRA L. Idéias para uma sociologia da questão ambiental teoria social,
sociologia ambiental e interdisciplinaridade in: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 10,
p. 77-89, jul./dez. 2004. Editora UFPR
COSTA FERREIRA L. A centralidade da interdisciplinaridade nos estudos sobre
ambiente e sociedade in: Política e Sociedade, n. 07, p.185-201, dez. 2005
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) Documento de
avaliação continuada –Área Multidisciplinar. Brasília,1999 Disponível em:
www.capes.gov.br
_______ Documento de Área Multidisciplinar 2000. Brasília,2000 Disponível em:
www.capes.gov.br
_______. Documento de Área Multidisciplinar 2001/2003. Brasília,2003 Disponível em:
www.capes.gov.br
118
_______. Documento de Área Comissão de Área Multidisciplinar Avaliação Trienal
2007. Brasília,2007. Disponível em: www.capes.gov.br
_______. CAInter (Comissão de Área Interdisciplinar). Documento de Área
Interdisciplinar Triênio 2007-2009. Brasília, 2008. Disponível em: www.capes.gov.br
DELEUZE, G. e GUATARRI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia V.5. São Paulo,
Ed.34,1997
_________________________ Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia V.1. São Paulo,
Ed.34,1996
MAUSS,M. e DURKHEIM, E. Algumas formas primitivas de classificação. In:
_____. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001
FLORIANI D. Diálogos interdisciplinares para uma agenda socioambiental: breve
inventário do debate sobre ciência, sociedade e natureza Desenvolvimento e Meio
Ambiente, n. 1, p. 21-39, jan./jun. 2000. Editora da UFPR
___________ et all. Panorama preliminar da pós-graduação interdisciplina brasileira
em meio ambiente e desenvolvimento: 2004-2006 in: RBPG, Brasília, v. 7, n. 14, p. 523 -
555, dezembro de 2010
FUNTOWICZ, S. e RAVETZ, J.: ‘Ciência pós-normal e comunidades ampliadas de pares
face aos desafios ambientais’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, IV(2): 219-230
jul.-out. 1997.
GUATARRI F. Caosmose. Editora 34, Rio de Janeiro, 1992
KUHN, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Perspectiva,2007.
LANA, P. Cátedra Unesco para o desenvolvimento sustentável: o exemplo da
Universidade Federal do Paraná (UFPR) IN: Desenvolvimento e meio ambiente ano 1
No.1, 2000
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1994
_________ Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade a fora, São
Paulo, Editora UNESP:2000
_________ A esperança de Pandora. Bauru, EDUSC:2001
119
_________ O culto moderno dos deus Fe(i)tiches. Bauru, EDUSC:2002
_________Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, SP, Edusc, 2004
_________ Reensamblar lo social. Buenos Aires, Manancial,2005.
LIMA. R Da crítica ao modelo de desenvolvimento à gestão dos problemas ambientais: o campo
de pesquisa sobre as relações entre ambiente e sociedade no Brasil (1992-2002), Tese apresentada
ao CDS/UNB
MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003
POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.
RAYNAUT, C.; LANA, P.; e ZANONI, M. Pesquisa e formação na área do meio
ambiente e desenvolvimento: novos quadros de pensamento, novas formas de avaliação.
In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n.1, p. 71-81, 2000
RAYNAUT, Claude (Org.). Desenvolvimento e Meio Ambiente: em busca da
interdisciplinaridade. Curitiba: EDUFPR, 2002
RODRIGUES JÚNIOR, Léo. Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da
Sociologia do Conhecimento: é possível uma solução construtivista? In: Episteme. Porto
Alegre: nº14, jan./jul. 2002 p.115-138.
SOKAL, A., BRICMONT, J. Imposturas intelectuais : o abuso da ciência pelos filósofos
pós-modernos. Rio de Janeiro : Record, 1999.
STENGERS, I. A invenção das ciências modernas. Rio de Janeiro: Editora 34, 2002.
VIVEIROS de CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, Rio de Janeiro, abril,
2002
ZANONI et al. A construção de um curso de pós-graduação interdisciplinar em meio
ambiente e desenvolvimento:princípios teóricos e metodológicos in: Desenvolvimento e
Meio Ambiente: em busca da interdisciplinaridade. Curitiba: EDUFPR, 2002
124
ANEXO 5
ENCONTROS ANPPAS-QUADRO TEMÁTICO DE SEUS GRUPOS DE TRABALHO (GTs)
ANO 2002 2004
TE
MA
S
Teoria e Meio Ambiente. Teoria e meio ambiente
Biodiversidade e Recursos Naturais. Biodiversidade e recursos naturais
Energia e Meio Ambiente. Energia e meio ambiente
Conhecimento Local e Meio Ambiente. Conhecimento local e meio ambiente
Agricultura, Consumo Alimentar e Meio Ambiente. Agricultura, riscos e conflitos ambientais
Sociedade do Conhecimento, Educação e Meio Ambiente. Meio ambiente, sociedade e educação
Manejo comunitário de recursos naturais
Sustentabilidade e Cidades. Cidade e sustentabilidade
Recursos Hídricos: atores sociais, gestão e territorialidade.
Recursos hídricos: atores sociais, gestão e territorialidade
Sustentabilidade, Técnica e Risco Ambiental. Modernidade, riscos e meio ambiente
Gestão ambiental, Inclusão social , Tecnologia e Design. Saúde e Ambiente
Dimensões sócio-políticas da Sustentabilidade. Relações internacionais e ambiente
Meio ambiente construído
Turismo, ambiente e sociedade
História, sociedade e meio ambiente no Brasil
Justiça ambiental, conflito social e desigualdade
Natureza, técnica e violência
GT presente nas cinco edições ANPPAS GT presente em quatro edições ANPPAS GT presente em três edições ANPPAS GT presente em uma edição ANPPAS Não constam GTs
125
ANEXO 6
ENCONTROS ANPPAS-QUADRO TEMÁTICO DE SEUS GRUPOS DE TRABALHO (GTs)
ANO 2006 2008
T
EM
AS
Teoria e ambiente Teoria e ambiente
Conflitos relativos ao uso de recursos naturais Conflitos relativos ao uso de recursos naturais
Energia e meio ambiente Energia e meio ambiente
Conhecimento local e meio ambiente Conhecimento local e meio ambiente
Agricultura, riscos e conflitos ambientais Agricultura, riscos e conflitos ambientais
Meio ambiente, sociedade e educação Meio ambiente, sociedade e educação
Manejo comunitário de recursos naturais Manejo comunitário de recursos naturais
Recursos hídricos: atores sociais, gestão e territorialidade Água: atores sociais, gestão e territorialidade
Modernidade, riscos e meio ambiente Modernidade, riscos e meio ambiente
Saúde e Ambiente Saúde e ambiente
Relações internacionais e ambiente Relações internacionais e ambiente
Meio ambiente construído Meio ambiente construído
Turismo, ambiente e sociedade Turismo, ambiente e sociedade
História, sociedade e meio ambiente no Brasil História, sociedade e meio ambiente no Brasil
Justiça ambiental, conflito social e desigualdade
Justiça ambiental, conflito social e
desigualdade
Mídia e Ambiente Mídia e ambiente
GT presente nas cinco edições ANPPAS GT presente em quatro edições ANPPAS GT presente em três edições ANPPAS GT presente em uma edição ANPPAS
Não constam GTs
126
ENCONTROS ANPPAS-QUADRO TEMÁTICO DE SEUS GRUPOS DE TRABALHO (GTs)
ANO 2010
TE
MA
S
Teoria Social e Meio Ambiente: avanços e desafios
Alternativas comunitárias de conservação da bio e sociodiversidade
Energia e Meio Ambiente
Espaços socioambientais, mediação e conflitos rurais
Sociedade, Ambiente e Educação
Mudança climática e as cidades
Água: território, democracia e governança
Mudanças ambientais e agravos à saúde humana
Relações Internacionais e Meio Ambiente
Turismo, Ambiente e Sociedade
Direito Ambiental e Ordenamento Territorial
Mídia e Ambiente
Meio Ambiente e Consumo
Sociedade, Mercado e Sustentabilidade
Governança e conservação dos biomas brasileiros à luz da Teoria dos Comuns
Desenvolvimento, Meio Ambiente e População
Políticas públicas e meio ambiente
Sistema de uso comum de Recursos Naturais: dinâmica social e política
GT presente nas cinco edições ANPPAS
GT presente em quatro edições ANPPAS
GT presente em três edições ANPPAS
GT presente em uma edição ANPPAS
Não constam GTs
ANEXO 7