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Leandro Konder O QUE É DIALÉTICA 25ª edição editora brasiliense

O que é dialética -Leandro Konder

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  • Leandro Konder

    O QUE DIALTICA

    25 edio

    editora brasiliense

  • NDICE

    - Origens da Dialtica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 - O Trabalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

    - A Alienao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 - A Totalidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

    - A Contradio e a Mediao. . . . . . . . . . . . 43 - A "Fluidificao" dos Conceitos. . . . . . . . . 50 - As Leis da Dialtica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 - o. Sujeito e a Histria. . . . . . . . . . . . . . . . . 63 - o. Indivduo e a Sociedade. . . . . . . . . . . . . 75. - Semente de Drages. . . . . . . . . . . . . . . . . 83

    "A dialtica, como lgica viva da ao, no pode aparecer a uma razo contemplativa. (...) No curso da ao, o indivduo

    descobre a dialtica como transparncia racional enquanto ele a faz, e como necessidade absoluta enquanto ela lhe escapa, quer

    dizer, simplesmente, enquanto os outros a fazem. "

    Sartre, Crtica da Razo Dialtica.

  • ORIGENS DA DIALTICA

    Dialtica era, na Grcia antiga, a arte do dilogo. Aos

    poucos, passou a ser a arte de, no dilogo, demonstrar uma tese

    por meio de uma argumentao capaz de definir e distinguir

    claramente os conceitos envolvidos na discusso.

    Aristteles considerava Znon de Ela (aprox. 490-430

    a.C.) o fundador da dialtica. Outros consideram Scrates (469-

    399 a.C.). Numa discusso sobre a funo da filosofia (que

    estava sendo caracterizada como uma atividade intil), Scrates

    desafiou os generais Lachs e Ncias a definirem o que era a

    bravura e o poltico Calicls a definir o que era a poltica e a

    justia, para demonstrar a eles que s a filosofia - por meio da

    dialtica - podia lhes proporcionar os instrumentos

    indispensveis para entenderem a essncia daquilo que faziam,

    das atividades profissionais a que se dedicavam.

    Na acepo moderna, entretanto, dialtica significa

    outra coisa: o modo de pensarmos as contradies da

    realidade, o modo de compreendermos a realidade como

    essencialmente contraditria e em permanente transformao.

    No sentido moderno da palavra, o pensador dialtico

    mais radical da Grcia antiga foi, sem dvida, Herclito de

    Efeso (aprox. 540-480 a.C.). Nos fragmentos deixados por

    Herclito, pode-se ler que tudo existe em constante mudana,

    que o conflito o pai e o rei de todas as coisas. L-se tambm

    que vida ou morte, sono ou viglia, juventude ou velhice so

    realidades que se transformam umas nas outras. O fragmento n

    91, em especial, tornou-se famoso: nele se l que um homem

    no toma banho duas vezes no mesmo rio. Por qu? Porque da

    segunda vez no ser o mesmo homem e nem estar se

    banhando no mesmo rio (ambos tero mudado).

    Os gregos acharam essa concepo de Herclito muito

    abstrata, muito unilateral. Chamaram o filsofo de Herclito, o

    Obscuro. Havia certa perplexidade em relao ao problema do

    movimento, da mudana. O que que explicava que os seres se

    transformassem, que eles deixassem de ser aquilo que eram e

    passassem a ser algo que antes no eram? Herclito respondia

    a. essa pergunta de maneira muito perturbadora, negando a

    existncia de qualquer estabilidade no ser. Os gregos preferiram

    a resposta que era dada por um outro pensador da mesma

    poca: Parmnides.

    Parmnides ensinava que a essncia profunda do ser era

    imutvel e dizia que o movimento (a mudana) era um

    fenmeno de superfcie.

  • Essa linha de pensamento - que podemos chamar de

    metafsica - acabou prevalecendo sobre a dialtica de Herclito.

    A meta fsica no impediu que se desenvolvesse o

    conhecimento cientfico dos aspectos mais estveis da realidade

    (embora dificultasse bastante o aprofundamento do

    conhecimento cientfico dos aspectos mais dinmicos e mais

    instveis da realidade).

    De maneira geral, independentemente das intenes dos

    filsofos, a concepo metafsica prevaleceu, ao longo da

    histria, porque correspondia, nas sociedades divididas em

    classes, aos interesses das classes dominantes, sempre

    preocupadas em organizar duradouramente o que j est

    funcionando, sempre interessadas em "amarrar" bem tanto os

    valores e conceitos como as instituies existentes, para

    impedir que os homens cedam tentao de querer mudar o

    regime social vigente.

    A concepo dialtica foi reprimida, historicamente: foi

    empurrada para posies secundrias, condenada a exercer uma

    influncia limitada.

    A metafsica se tornou hegemnica. Mas a dialtica no

    desapareceu. Para sobreviver, precisou renunciar s suas

    expresses mais drsticas, precisou conciliar com a metafsica,

    porm conseguiu manter espaos significativos nas idias de

    diversos filsofos de enorme importncia.

    Aristteles, por exemplo, um pensador nascido mais de

    um sculo depois da morte de Herclito, reintroduziu princpios

    dialticos em explicaes dominadas pelo modo de pensar

    metafsico.

    Embora menos radical do que Herclito, Aristteles

    (384-322 a.C.) foi um pensador de horizontes mais amplos que

    o seu antecessor; e a ele que se deve, em boa parte, a

    sobrevivncia da dialtica.

    Aristteles observou que ns damos o mesmo nome de

    movimento a processos muito diferentes, que vo desde o mero

    deslocamento mecnico de um corpo no espao, desde o mero

    aumento quantitativo de alguma coisa, at a modificao

    qualitativa de um ser ou o nascimento de um ser novo. Para

    explicar cada movimento, a gente precisa verificar qual a

    natureza dele. .

    Segundo Aristteles, todas as coisas possuem

    determinadas potencialidades; os movimentos das coisas so

    potencialidades que esto se atualizando, isto , so

    possibilidades que esto se transformando em realidades

    efetivas. Com seus conceitos de ato e potncia, Aristteles

    conseguiu impedir que o movimento fosse considerado apenas

  • uma iluso desprezvel, um aspecto superficial da realidade;

    graas a ele, os filsofos no abandonaram completamente o

    estudo do lado dinmico e mutvel do real.

    Nas sociedades feudais, entretanto, durante os sculos

    da Idade Mdia, a dialtica sofreu novas derrotas e ficou

    bastante enfraquecida. No regime feudal, a vida social era

    estratificada, as pessoas cresciam, viviam e morriam fazendo as

    mesmas coisas, pertencendo classe social em que tinham

    nascido; quase no aconteciam alteraes significativas. A

    ideologia dominante - a ideologia das classes dominantes - era

    monoplio da Igreja, elaborada dentro dos mosteiros por padres

    que levavam uma vida muito parada. Por isso, a dialtica foi

    sendo cada vez mais expulsa da filosofia. A prpria palavra

    dialtica se tornou uma espcie de sinnimo de lgica (ou ento

    passou a ser empregada, em alguns casos, com o significado

    pejorativo de "lgica das aparncias").

    No regime de cidade-Estado, da Grcia antiga, embora

    houvesse estratificao social, havia uma ampla circulao

    tanto de mercadorias como de idias: o comrcio e a discusso

    sobre os problemas de interesse coletivo faziam parte da vida

    dos cidados. No regime feudal, a vida nas cidades' sofreu um

    esvaziamento; e no campo havia pouco comrcio e poucas

    oportunidades para discutir organizadamente. O nmero dos

    cidados que debatiam era reduzido e as idias debatidas

    ficaram meio desligadas da vida prtica.

    A dialtica ficou sufocada. Para sobreviver, ela precisou

    lutar para assegurar filosofia um espao prprio, que no

    ficasse diretamente dominado pelo imperialismo da teologia

    (ideologia dominante, na poca). Um dos idelogos mais

    famosos do Sculo XI, Petrus Damianus (1007-1072), dizia

    que, para o ser humano, a nica coisa importante era a salvao

    da sua alma;

    que a maneira mais segura de salvar a alma era se tornar

    monge; e que um monge no precisava " de filosofia. O rabe

    Averres e o francs Abelardo' procuraram, por caminhos

    muito diferentes, defender o espao da filosofia, sem desafiar a

    teologia. Averres (1126-1198), apoiando-se em Aristteles,

    afirmou que a verso filosfica da Verdade no precisava

    coincidir, de maneira imediata e total, com sua verso

    teolgica. E Abelardo (1079-1142) conseguiu discutir

    longamente sobre as relaes entre as categorias universais e as

    coisas singulares em termos de pura lgica, -mostrando assim,

    na prtica, que existiam problemas importantes cuja abordagem

    no precisava da teologia. ' No Sculo XIV, a vida comeou a

    se modificar, o comrcio se desenvolveu e sacudiu os hbitos

    da sociedade feudal. 'Os filsofos refletem isso.

  • Guilherme de Occam (aprox. 1285-1349) tpico da

    nova situao que estava surgindo; sua vida bem mais

    movimentada que a da maioria dos filsofos medievais: ele

    estudou na Inglaterra (em Oxford), viveu na Frana (em

    Avignon), andou s turras com o Papa, fugiu para Pisa (na

    Itlia) e acabou morrendo em Munique (na Alemanha). Occam

    sustentava que, exatamente porque Deus todo-poderoso e

    porque a vontade de Deus no pode ter limites, tudo no mundo

    contingente, tudo poderia ser diferente do que (se Deus

    quisesse); por isso, a teologia (que tratava de Deus) no devia

    interferir - segundo Occam - no estudo das coisas contingentes

    do mundo emprico.

    A chamada "revoluo comercial", esboada no Sculo

    XIV, deflagrou-se no Sculo XV e suas conseqncias

    marcaram profundamente o Sculo XVI. Foi a poca do

    Renascimento e da descoberta da Amrica. As artes e as

    cincias se insurgiram contra os hbitos mentais da Idade

    Mdia: mostraram que o universo era muito maior e mais

    complicado do que os idelogos medievais pensavam; e

    mostraram que o ser humano era potencialmente muito mais

    livre do que eles imaginavam.

    O movimento voltou a se impor reflexo e ao debate,

    tornou-se outra vez um tema fundamental. O astrnomo

    polons Nicolau Coprnico (1473-1543) descobriu que

    Ptolomeu tinha-se enganado, que a Terra nem era imvel nem

    era o centro do universo, que ela girava em torno do Sol.

    Galileu (1564-1642) e Descartes (1596-1650) descobriram que

    a condio natural dos corpos era o movimento e no o estado

    de repouso.

    A maneira de conceber o ser humano tambm sofreu

    importantes alteraes. Pico de Ia Mirandola (1463-1494)

    sustentou que o fato de o homem ser "inacabado" e, portanto,

    poder evoluir lhe conferia uma dignidade especial e lhe dava

    at certa vantagem em comparao com os deuses e anjos (que

    so eternos, perfeitos e por isso no mudam). E Giordano

    Bruno (1548-1600) exaltou o homo faber, quer dizer, o homem

    capaz de dominar as foras naturais e de modificar

    criadoramente o mundo.

    Com o Renascimento, a dialtica pde sair dos

    sobterrneos em que tinha sido obrigada a viver durante vrios

    sculos: deixou o seu refgio e veio luz do dia. Conquistou

    posies que conseguiu manter nos sculos seguintes. O carter

    instvel, dinmico e contraditrio da condio humana foi

    corajosamente reconhecido por um pensador mstico e

    conservador, como Pascal (1623-1654). Outro filsofo

    conservador, o.

  • italiano Giambattista Vico (1680-1744), tambm ajudou

    a dialtica a se fortalecer. Vico achava que o homem no podia

    conhecer a natureza, que tinha sido feita por Deus e s por

    Deus podia ser efetivamente conhecida; mas sustentava que o

    homem podia conhecer sua prpria histria, j que a realidade

    histrica obra humana, criada por ns. Essa formulao

    constituiu um poderoso estmulo busca de um mtodo

    adequado correta compreenso da realidade histrica (quer

    dizer, elaborao do mtodo dialtico).

    Elementos de dialtica se encontram no pensamento de

    diversos filsofos do Sculo XVII, como Leibniz (1646-1716),

    Spinoza (1632-1677), Hobbes (1588-1679) e Pierre Bayle

    (1647-1706).

    Elementos de dialtica se achavam j, tambm, nas

    reflexes do inquieto Montaigne (1533-1592), no Sculo XVI.

    Montaigne dizia, por exemplo:

    "Todas as coisas esto sujeitas a passar de uma

    mudana a outra; a razo, buscando nelas uma subsistncia real,

    s pode frustrar-se, pois nada pode apreender de permanente, j

    que tudo ou est comeando a ser - e absolutamente ainda no

    - ou ento j est comeando a morrer antes de ter sido"

    (Essais, 11, 12). Mas tanto Montaigne como os pensadores do

    Sculo XVII viviam e pensavam, de certo modo, numa situao

    de isolamento em relao dinmica social, em relao aos

    movimentos polticos da poca. Os contatos que eles

    mantinham eram com personalidades e no com organizaes

    ou tendncias que pudessem refletir alguma coisa do que se

    passava nas bases da sociedade. Por isso, a viso que tinham da

    histria - isto , do processo transformador da condio humana

    e das estruturas sociais - ou era gratuitamente otimista,

    superficial, ou ento assumia um tom melanclico, um

    contedo conservador negativista.

    S na segunda metade do Sculo XVIII que a situao

    dos filsofos comeou a mudar. O amadurecimento do processo

    histrico que desembocou na Revoluo Francesa criou

    condies que permitiram aos filsofos uma compreenso mais

    concreta da dinmica das transformaes sociais. O movimento

    que refletiu esse processo de preparao da Revoluo Francesa

    no plano das idias se chamou Iluminismo. Os filsofos

    iluministas acompanharam; de perto as reivindicaes plebias,

    as articulaes da burocracia, as manifestaes polticas nas

    ruas, a rpida mudana nos costumes; perceberam que o que

    restava do mundo feudal devia desaparecer e pretenderam

    contribuir para que o mundo novo, que estava surgindo, fosse

    um mundo racional.

  • Em 'sua maioria, os iluministas se contentaram com

    uma viso mais ou menos simplificada do processo de

    transformao social que viam realizar-se e apoiavam: no

    procuraram refletir aprofundadamente sobre suas contradies

    internas. Por isso, no trouxeram grandes Contribuies para o

    avano da dialtica. H, porm, uma exceo; maior dos

    filsofos iluministas tambm o autor de uma obra rica em

    observaes de grande interesse para a concepo dialtica do

    mundo: Denis Diderot (1713-1784).

    Diderot compreendeu que o indivduo era condicionado

    por um movimento mais amplo, pelas mudanas da sociedade

    em que vivia. "Sou como sou" - escreveu ele - "porque foi

    preciso que eu me tornasse assim. Se mudarem o todo,

    necessariamente eu tambm serei modificado." E acrescentou:

    "O todo est sempre mudando".

    No Sonho de D'Alembert, imaginou que D'Alembert,

    seu amigo, sonhando dizia coisas tais como:

    "Todos os seres circulam uns nos outros. Tudo um

    fluxo perptuo. O que um ser? A soma de um certo nmero

    de tendncias. E a vida? A vida uma sucesso de aes e

    reaes. Nascer, viver e passar mudar de formas". D'

    Alembert ficou chocado com a "loucura" que Diderot tinha

    escrito e o texto, redigido em 1769, acabou s sendo publicado

    em 1830.

    No Suplemento Viagem de Bougainville, publicado

    em 1796, Diderot aconselhava seus leitores: "Examinem todas

    as instituies polticas, civis e religiosas; ou muito me engano

    ou vocs vero nelas o gnero humano subjugado, a cada

    sculo mais submetido ao jugo de um punhado de meliantes", E

    recomendava: "Desconfiem de quem quer impor a ordem".

    Uma das obras mais famosas de Diderot O Sobrinho

    de Rameau, que relata uma conversa entre o filsofo e um

    jovem vigarista, sobrinho de um msico clebre: Diderot se

    coloca, habilmente, numa posio moderada, mas coloca na

    boca do seu interlocutor uma argumentao brilhante, uma

    defesa altamente perturbadora da vigarice, de modo que a

    moral vigente fica bastante abalada em seus fundamentos, no

    fim do dilogo. Diderot assume os elementos conservadores

    que sabe existirem no seu pensamento, mas permite ao jovem

    vigarista que desenvolva seus pontos de vista com

    extraordinria desenvoltura; o resultado um confronto

    fascinante, que Hegel e Marx consideraram um primor de

    dialtica.

  • Ao lado de Diderot, quem deu a maior contribuio

    dialtica na segunda metade do Sculo XVIII foi Jean-Jacques

    Rousseau (1712-1778).

    Ao contrrio dos iluministas, Rousseau no tinha

    confiana na razo humana: preferia confiar mais fia natureza.

    Segundo ele, os homens nasciam livres, a natureza lhes dava a

    vida com liberdade, mas a organizao da sociedade lhes tolhia

    o exerccio da liberdade natural. O problema com que Rousseau

    se defrontava, ento, era o de assegurar bases para um contrato

    social que permitisse aos indivduos terem na vida social uma

    liberdade capaz de compensar o sacrifcio da liberdade com que

    nasceram.

    Observando a estrutura da sociedade do seu tempo e

    suas contradies, Rousseau concluiu que os conflitos de

    interesses entre os indivduos tinham-se tornado exagerados,

    que a propriedade estava muito mal distribuda, o poder estava

    concentrado em poucas mos, as pessoas estavam escravizadas

    ao egosmo delas. Rousseau considerava necessria uma

    democratizao da vida social; para ele, as comunidades

    efetivamente democrticas no poderiam basear-se em critrios

    formais, puramente quantitativos (a vontade de todos):

    precisariam apoiar-se numa vontade geral criada por um

    movimento de convergncia que levaria os indivduos a

    superarem a estreiteza do egosmo deles, que os levaria a se

    reconhecerem concretamente uns nos outros e a adotarem uma

    perspectiva universal (verdadeiramente livre) no

    encaminhamento de solues para seus problemas.

    Os caminhos que deveriam ser seguidos para que os

    homens chegassem a essa "convergncia", a essa

    "universalidade", exigiriam a remoo de muitos obstculos.

    Rousseau sabia que as mudanas sociais profundas, realizadas

    por sujeitos coletivos, no costumam ser tranqilas; sabia que

    as transformaes necessrias por ele apontadas deveriam ser

    um tanto tumultuadas. Mas achava que "um pouco de agitao

    retempera as almas; e o que faz avanar a humanidade menos

    a paz do que a liberdade". Embora divergisse de Diderot em

    vrias coisas, ele concordava num ponto cru dai: nenhum dos

    dois se deixava intimidar pela "ideologia da ordem", de

    contedo nitidamente conservador.

    Por isso se entende que no Sculo XX um conservador

    radical - Maurice Barres - tenha escrito que Diderot e Rousseau

    (duas "foras de desordem") so responsveis por muitos dos .

    males que nos afligem.

  • O TRABALHO

    No final do Sculo XVIII e no comeo do Sculo XIX, os

    conflitos polticos j no eram mais abafados nos corredores

    dos palcios e estouravam nas ruas. As lutas que precederam e

    desencadearam a Revoluo Francesa envolveram muita gente,

    entraram na vida de milhes de pessoas; as guerras

    napolenicas tambm mobilizaram as massas populares e os

    homens do povo foram obrigados a pensar sobre questes

    polticas que antes eram discutidas apenas por uma elite

    reduzida, mas que naquele perodo estavam invadindo a esfera

    da vida cotidiana de quase todo mundo.

    Essa situao se refletiu na filosofia. Se refletiu at na filosofia

    que se elaborava na longnqua cidade de Knigsberg, na

    Prssia oriental (hoje a cidade se chama Kaliningrado e fica na

    Unio Sovitica), onde nasceu, viveu, escreveu e morreu aquele

    que provavelmente o maior dos pensadores metafsicos

    modernos: Imanuel Kant (1724-1804). Pessoalmente, Kant

    viveu na mais rigorosa rotina; at seus passeios tinham hora

    marcada (o poeta Heine conta que os vizinhos do filsofo

    acertavam seus relgios quando ele saa de casa, s 15h30m,

    para dar uma volta). sua volta, porm, as rotinas estavam

    sendo quebradas, a histria da Europa estava pondo a nu muitas

    contradies e Kant no pde deixar de pensar sobre a

    contradio, em geral. Kant percebeu que a conscincia

    humana no se limita a registrar passivamente impresses

    provenientes do mundo exterior, que ela sempre a conscincia

    de um ser que interfere ativamente na realidade; e observou que

    isso complicava extraordinariamente o processo do

    conhecimento humano. Sustentou, ento, que todas as filosofias

    at ento vinham sendo ingnuas ou dogmticas, pois tentavam

    interpretar o que era a realidade antes de ter resolvido uma

    questo prvia: o que o conhecimento?

    O centro da filosofia, para Kant, no podia deixar de ser a

    reflexo sobre a questo do conhecimento, a questo da exata

    natureza e dos limites do conhecimento humano. Fixando sua

    ateno naquilo que ele chamou de "razo pura", o filsofo se

    convenceu, ento, de que na prpria "razo pura" (anterior

    experincia) existiam' certas contradies - as "antinomias" -

    que nunca poderiam ser expulsas do pensamento humano por

    nenhuma lgica.

    Outro filsofo alemo, de uma gerao posterior, demonstrou

    que a contradio no era apenas uma dimenso essencial na

    conscincia do sujeito do conhecimento, conforme Kant tinha

    concludo; era um princpio bsico que no podia ser suprimido

    nem da conscincia do sujeito nem da realidade objetiva. Esse

  • novo pensador, que se chamava Georg Wilhelm Friedrich

    Hegel (1770-1831), sustentava que a questo central da

    filosofia era a questo do ser, mesmo, e no a do conhecimento.

    Contra Kant, ele argumentou: se eu pergunto o que o

    conhecimento, j na palavra est em jogo uma certa

    concepo de ser; a questo do conhecimento, daquilo que o

    conhecimento , s pode ser concretamente discutida a partir da

    questo do ser. .

    Hegel concordava com Kant num ponto essencial: no

    reconhecimento de que o sujeito humano essencialmente'

    ativo e est sempre interferindo na realidade. Na poca da

    Revoluo Francesa, entusiasmado com a tomada da Bastilha

    pelo povo e com a derrubada de instituies antiqssimas (que

    pareciam eternas), Hegel - ento com 19 anos - plantou uma

    "rvore da liberdade" em Tbingen, onde morava, em

    homenagem Frana.

    Naquele momento, o poder humano de intervir na realidade lhe

    pareceu quase ilimitado; o sujeito humano lhe pareceu quase

    onipotente.

    Logo, porm, a vida se encarregou de jogar gua fria no

    entusiasmo do filsofo. A Revoluo Francesa atravessou uma

    fase de terror, com a guilhotina cortando inmeras cabeas, e

    depois veio a ser controlada por Napoleo Bonaparte (mas o

    prprio Napoleo foi derrotado e a Europa se viu dominada

    pela poltica ultraconservadora da Santa Aliana). Alm disso,

    a Alemanha, pas onde o pensador vivia, era to atrasada que

    nem sequer tinha conseguido alcanar a sua unidade como

    nao estava dividida em governos regionais, cada um mais

    reacionrio que o outro. Hegel descobriu, ento, com amargura,

    que o homem transforma ativamente a realidade, mas quem

    impe o ritmo e as condies dessa transformao ao sujeito ,

    em ltima anlise, a realidade objetiva.

    Para avaliar de maneira realista as possibilidades do sujeito

    humano, Hegel procurou estudar seus movimentos no plano

    objetivo -- das atividades polticas e econmicas. Dedicou-se

    leitura e ao exame dos escritos de Adam Smith e dos tericos

    da economia poltica inglesa clssica.

    Lukcs mostrou, em seu livro sobre O Jovem Hegel, que na

    base do pensamento de Hegel est no s uma reflexo

    aprofundada sobre a Revoluo Francesa como tambm uma

    reflexo radical sobre a chamada revoluo industrial, que

    vinha se realizando na Inglaterra. Hegel percebe que o trabalho

    a mola que impulsiona o desenvolvimento humano; no

    trabalho que o homem se produz a si mesmo; o trabalho o

    ncleo a partir do qual podem ser compreendidas as formas

    complicadas da atividade criadora do sujeito humano. No

  • trabalho se acha tanto a resistncia do objeto (que nunca pode

    ser ignorada) como o poder do sujeito, a capacidade que o

    sujeito tem de encaminhar, com habilidade e persistncia, uma

    superao dessa resistncia.

    Foi com o trabalho que o ser humano "desgrudou" um pouco da

    natureza e pde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito

    ao mundo dos objetos naturais. Se no fosse o trabalho, no

    existiria a relao sujeito-objeto.

    O trabalho criou para o homem a possibilidade de ir alm da

    pura natureza A natureza, como tal, no cria nada de

    propriamente humano", observa o filsofo sovitico Evald

    Ilinkov. O homem no deixa de ser um animal, de pertencer

    natureza; porm j no pertence inteiramente a ela. Os animais

    agem apenas em funo das necessidades imediatas e se guiam

    pelos instintos (que so foras naturais); o ser humano,

    contudo, capaz de antecipar na sua cabea os resultados das

    suas aes, capaz de escolher os caminhos que vai seguir para

    tentar alcanar suas finalidades.

    A natureza dita o comportamento aos animais; o homem, no

    entanto, conquistou certa autonomia diante dela. O trabalho

    permitiu ao homem dominar algumas das energias da natureza;

    permitiu-lhe - como escreveu o brasileiro Jos Arthur Giannotti

    - ter "parte da natureza sua disposio".

    O trabalho conceito-chave para ns compreendermos o que

    a superao dialtica. Para expressar a sua concepo da

    superao dialtica, Hegel usou a palavra alem aufheben, um

    verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem trs

    sentidos diferentes. O primeiro sentido o de negar, anular,

    cancelar (como ocorre, por exemplo, quando a gente suspende

    um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante

    suspenso das aulas e no pode comparecer escola durante

    algum tempo). O segundo sentido o de erguer alguma coisa e

    mant-la erguida para proteg-la (como a gente v, por

    exemplo, num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala

    do quarto onde morou h muitos anos e diz que ele foi

    preservado porque ficou "intacto, suspenso no ar"). E o terceiro

    sentido o de elevar a qualidade, promover a passagem de

    alguma coisa para um plano superior, suspender o nvel.

    Pois bem: Hegel emprega a palavra com os trs sentidos

    diferentes ao mesmo tempo. Para ele, a superao dialtica

    simultaneamente a negao de uma determinada realidade, a

    conservao de algo de essencial que existe nessa realidade

    negada e a elevao dela a um nvel superior.

    Isso parece obscuro, mas fica menos confuso se observamos o

    que acontece no trabalho: a matria-prima "negada" (quer

    dizer, destruda em sua forma natural), mas ao mesmo tempo

  • "conservada" (quer dizer, aproveitada) e assume uma forma

    nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (quer

    dizer, "elevada" em seu valor). o que se v, por exemplo, no

    uso do trigo para o fabrico do po: o trigo triturado,

    transformado em pasta, porm no desaparece de todo, passa a

    fazer parte do po, que vai ao forno e - depois de assado - se

    torna humanamente comestvel.

    Boa parte da obscuridade de Hegel resultava do fato de ele ser

    idealista. Hegel subordinava os movimentos da realidade

    material lgica de um princpio que ele chamava de Idia

    Absoluta; como essa Idia Absoluta era um princpio

    inevitavelmente nebuloso, os movimentos da realidade material

    eram, freqentemente, descritos pelo filsofo de maneira

    bastante vaga.

    No caminho aberto por Hegel, entretanto, surgiu outro pensador

    alemo, Karl Marx (1818-1883), materialista, que superou -

    dialeticamente - as posies de seu mestre. Marx escreveu que

    em Hegel a dialtica estava, por assim dizer, de cabea para

    baixo; decidiu, ento, coloc-la sobre seus prprios ps.

    Marx teve uma vida muito atribulada: ligou-se bem cedo ao

    movimento operrio e socialista, lutou na poltica do lado dos

    trabalhadores, viveu na pobreza e passou a maior parte de sua

    vida no exlio (na Inglaterra). A solidariedade ativa que o ligou

    aos trabalhadores contribuiu, certamente, para que ele tivesse

    do trabalho uma compreenso diferente daquela que tinha sido

    exposta pelo velho Hegel, cuja existncia transcorrera quase

    toda entre as quatro paredes da biblioteca e da sala de aulas.

    Marx concordou plenamente com a observao de Hegel de que

    o trabalho era a mola que impulsionava o desenvolvimento

    humano, porm criticou a unilateral idade da concepo

    hegeliana do trabalho, sustentando que Hegel dava importncia

    demais ao trabalho intelectual e no enxergava a significao

    do trabalho fsico, material. "O nico trabalho que Hegel

    conhece e reconhece" observou Marx em 1844 - " o trabalho

    abstrato do esprito. Essa concepo abstrata do trabalho

    levava Hegel a fixar sua ateno exclusivamente na criatividade

    do trabalho, ignorando o lado negativo dele, as deformaes a

    que ele era submetido em sua realizao material, social.

    Por isso Hegel no foi capaz de analisar seriamente os

    problemas ligados alienao do trabalho nas sociedades

    divididas em classes sociais (especialmente na sociedade

    capitalista).

  • A ALIENAO

    O trabalho - admite Marx - a atividade pela qual o

    homem domina as foras naturais, humaniza a natureza; a

    atividade pela qual o homem se cria a si mesmo. Como, ento,

    o trabalho - de condio natural para a realizao do homem -

    chegou a tornar-se o seu algoz?

    Como ele chegou a se transformar em "uma atividade

    que sofrimento, uma fora que impotncia, uma procriao

    que castrao"?

    Uma primeira causa dessa deformao monstruosa se

    encontra na diviso social do trabalho, na apropriao privada

    das fontes de produo, no aparecimento das classes sociais.

    Alguns homens passaram a dispor de meios para explorar o

    trabalho dos outros; passaram a impor aos trabalhadores

    condies de trabalho que no eram livremente assumidas por

    estes. Introduziu-se, assim, um novo tipo de contradio no

    interior da comunidade humana, no interior do gnero humano.

    A partir da diviso social do trabalho, a humanidade

    passava a ter uma dificuldade bem maior para pensar os seus

    prprios problemas e para encar-los de um ngulo mais

    amplamente 'universal: mesmo quando eram sinceros, os

    indivduos se deixavam influenciar pelo ponto de vista dos

    exploradores do trabalho alheio, pela "perspectiva parcial

    inevitvel" das classes sociais (conforme a caracterizao da

    ideologia por Lucien Goldmann).

    "Diviso do trabalho e propriedade privada" - escreveu

    Marx - "so termos idnticos: um diz em relao explorao

    do trabalho escravo a mesma coisa que o outro diz em relao

    ao produto da explorao do trabalho escravo." As condies

    criadas pela diviso do trabalho e pela propriedade privada

    introduziram um "estranhamento" entre o trabalhador e o

    trabalho, na medida em que o produto do trabalho, antes

    mesmo de o trabalho se realizar, pertence a outra pessoa que

    no o trabalhador. Por isso, em lugar de realizar-se no seu

    trabalho, o ser humano se aliena nele; em lugar de reconhecer-

    se em suas prprias criaes, o ser humano se sente ameaado

    por elas; em lugar de libertar-se, acaba enrolado em novas

    opresses.

    O vigor e a coerncia da argumentao de Marx foram

    reconhecidos mesmo por escritores que no concordam com o

    ponto de vista dele. O padre Henri Chambre, por exemplo,

    admitiu que, partindo da concepo do homem como um ser

    que se cria atravs do trabalho, no se pode negar validade

    crtica de Marx propriedade privada: "Se o homem fosse

    apenas atividade criadora e produtora de si mesmo e do mundo

  • que o cerca, certo que toda apropriao privada seria fonte de

    violncia e dominao do homem sobre o homem" para um

    cristo, como Chambre, a idia de que o homem se faz a si

    mesmo e humaniza o mundo pelo trabalho sacrifica a espiritual

    idade do ser humano e o rebaixa condio animal, alm de ser

    uma manifestao de auto-suficincia, um pecado de orgulho.

    Mas os marxistas tm boas razes para replicar que, na medida

    em que rejeitam a dialtica, os cristos se privam de um

    instrumento eficientssimo na anlise dos problemas humanos,

    perdem boas possibilidades de agir com eficcia no plano

    poltico e acabam desperdiando energias na retrica dos bons

    conselhos, na pregao moralista e em projetos ingnuos

    ("idealistas") de reforma dos costumes e das "mentalidades".

    Os marxistas acham que a nica maneira de superar a

    diviso da sociedade em classes e dar incio a um processo de

    "desalienao" do trabalho levarem conta realidade da luta

    de classes para promover a revoluo socialista.

    Marx no inventou a luta de classes: limitou-se a

    reconhecer que ela existia e procurou extrair as conseqncias

    da sua existncia. Antes de Marx, diversos autores j tinham

    enxergado a questo. James Madison, ex-Presidente dos

    Estados Unidos, por exemplo, escreveu, em 1787:

    "Proprietrios e no proprietrios sempre formaram interesses

    diversos dentro da sociedade". Marx, porm, foi mais longe do

    que Madison; com a ajuda de Friedrich Engels (1820-1895),

    Marx reexaminou a histria social da humanidade e concluiu,

    em 1848, no Manifesto Comunista, que toda a histria

    transcorrida at ento tinha sido uma histria de 14tas de

    classes.

    As lutas de classes assumem formas

    extraordinariamente variadas: s vezes so fceis de ser

    reconhecidas, so mais ou menos diretas; s vezes, contudo,

    elas se tornam extremamente complexas e no cabem em

    interpretaes simplistas. Nas sociedades capitalistas, as lutas

    de classes tendem a assumir formas polticas cada vez mais

    complicadas.

    Examinando o modo de produo capitalista, em seu

    livro O Capital, Marx notou que com ele se criou uma situao

    poltica nova, sem precedentes, na histria das lutas de classes.

    O capitalismo como aquele aprendiz de feiticeiro que colocou

    em movimento foras que em seguida escaparam ao seu

    controle: com o capitalismo, desenvolveu-se notavelmente a

    tecnologia, as foras produtivas tiveram um crescimento

    excepcional e o capitalismo vem tendo dificuldades cada vez

    maiores para aproveit-las. A competio desenfreada dos

    capitalistas uns com os outros, em torno da busca do maior

  • lucro, acarreta um grave desperdcio de recursos. Na

    competio, os empresrios mais poderosos vo impondo a lei

    deles, os mais fracos vo sendo sacrificados e acabam

    prevalecendo os monoplios. Por outro lado, para poder

    explor-los, o capital rene os operrios em suas indstrias,

    mas essa massa trabalhadora aglomerada se organiza, toma

    conscincia de sua fora, passa a reivindicar com maior firmeza

    as coisas que lhe convm, at poder liderar uma revoluo

    social e criar uma organizao socialista para a sociedade.

    "A socializao do trabalho e a centralizao de seus

    recursos materiais" - escreve Marx "chegam a um ponto no

    qual no cabem mais no envoltrio capitalista."

    Nunca tinha sido criada na histria da humanidade,

    antes do capitalismo, uma situao como essa: pela primeira

    vez existe uma classe social - o proletariado moderno - que no

    lidera um movimento destinado a substituir um modo de

    produo baseado numa -forma de propriedade privada por

    outro modo de produo baseado em outra forma de

    propriedade privada. Pela primeira vez os anseios e ideais

    igualitrios, coletivistas, socialistas, comunistas, dispem de

    um portador material capaz de coloc-los em prtica, atravs de

    uma prolongada luta poltica. A superao da diviso social do

    trabalho deixou de ser um sonho: passou a ser um programa

    que - em princpio - pode ser executado.

    E essa , na anlise de Marx, a segunda causa da

    deformao que ele viu na situao do trabalho (que, em vez de

    servir para o ser humano realizar-se, servia para alien-lo). Se a

    primeira causa da "anomalia" era antiga - a propriedade

    privada, a existncia das classes sociais -, a segunda, mais

    recente, estava no agravamento da explorao do trabalho sob o

    capitalismo. O mercado capitalista vive em permanente

    expanso, o capital tende a ocupar todos os espaos que possam

    lhe proporcionar lucros. E as leis do mercado vo dominando a

    sociedade inteira: todos os valores humanos autnticos vo

    sendo destrudos pelo dinheiro, tudo vira mercadoria, tudo pode

    ser comercializado, todas as coisas podem ser vendidas ou

    compradas por um determinado preo. A fora de trabalho do

    ser humano - claro - no podia deixar de ser arrastada nessa

    onda; ela tambm se transforma em mercadoria e seu preo

    passa a sofrer as presses e flutuaes do mercado.

    Os trabalhadores, alm de viverem sob a ameaa da

    perda do emprego, so obrigados a se organizar e a lutar para

    defender seus salrios; e o fato de tomarem conscincia de que

    j existe uma alternativa socialista e de que a organizao da

  • produo poderia ser diferente um fato que s pode agravar o

    mal-estar que sentem no trabalho.

    O agravamento da alienao do trabalho sob o

    capitalismo, contudo, no afeta apenas os operrios; os

    capitalistas tambm so atingidos. A mesma busca desenfreada

    do lucro que leva o capitalista a explorar o trabalho do operrio

    leva-o tambm a procurar tirar vantagem de suas relaes -

    competitivas - com os outros capitalistas. Por isso, o mercado,

    que funciona em proveito da burguesia como classe, sempre

    uma realidade. incerta, inquietante, e s vezes ameaadora, para

    os burgueses individualmente considerados.

    Mesmo quando desenvolve tcnicas cada vez mais

    aperfeioadas para controlar o funcionamento de suas empresas

    e as operaes de seus negcios, a burguesia carece da

    capacidade de continuar a controlar a sociedade como um todo.

    Como classe, na atual etapa histrica, ela no consegue elevar

    seu ponto de vista a uma perspectiva totalizante.

    A TOTALIDADE

    Para a dialtica marxista, o conhecimento totalizante e a

    atividade humana, em geral, um processo de totalizao, que

    nunca alcana uma etapa definitiva e acabada. Mas o que quer

    dizer exatamente isso? O que significa totalizante?

    E o que significa totalizao? Vamos trocar a coisa em midos.

    Qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar parte

    de um todo. Em cada ao empreendida, o ser humano se

    defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por

    isso, para encaminhar uma soluo para os problemas, o ser

    humano precisa ter uma certa viso de conjunto deles: a partir

    da viso do conjunto que a gente pode avaliar a dimenso de

    cada elemento do quadro. Foi o que Hegel sublinhou quando

    escreveu: A verdade o todo". Se no enxergarmos o todo,

    podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada

    (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa

    compreenso de uma verdade mais geral.

    Exemplo disso: algum observa que o capitalista X um

    homem generoso, progressista, sinceramente preocupado com

    seus operrios. Essa observao pode ser correta. No entanto,

    necessrio entend-la dentro de seus limites, para no

    perdermos de vista o fato de que ela nunca pode ser usada para

  • pretender invalidar outra observao mais abrangente: a de que

    o sistema capitalista, por sua prpria essncia, impele os

    capitalistas em geral, quaisquer que sejam as qualidades

    humanas deles, a extrarem mais-valia do trabalho de seus

    operrios.

    A viso de conjunto - ressalve-se - sempre provisria e nunca

    pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere. A

    realidade sempre mais rica do que o conhecimento que a

    gente tem dela. H sempre algo que escapa s nossas snteses;

    isso, porm, no nos dispensa do esforo de elaborar snteses,

    se quisermos entender melhor a nossa realidade. A sntese a

    viso de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura

    significativa da realidade com que se defronta, numa situao

    dada. E essa estrutura significativa - que a vis de conjunto

    proporciona - que chamada de totalidade.

    A totalidade mais do que a soma das partes que a constituem.

    No trabalho, por exemplo, dez pessoas bem entrosadas

    produzem mais do que a soma das produes individuais de

    cada uma delas, isoladamente considerada. Na maneira de se

    articularem e de constiturem uma totalidade, os elementos

    individuais assumem caractersticas que no teriam, caso

    permanecessem fora do conjunto.

    H totalidades mais abrangentes e totalidades menos

    abrangentes: as menos abrangentes, claro, fazem parte das

    outras. A maior ou menor abrangncia de uma totalidade

    depende do nvel' de generalizao do pensamento e dos

    objetivos concretos dos homens em cada situao dada. Se eu

    estou empenhado em analisar as questes polticas que esto

    sendo vividas pelo meu pas, o nvel de totalizao que me

    necessrio o da viso de conjunto da sociedade brasileira, da

    sua economia, da sua histria, das suas contradies atuais. Se,

    porm, eu quiser aprofundar a minha anlise e quiser entender a

    situao do Brasil no quadro mundial, vou precisar de um nvel

    de totalizao mais abrangente: vou precisar de uma viso de

    conjunto do capitalismo, da sua gnese, da sua evoluo, dos

    seus impasses no mundo de hoje. E, se eu quiser elevar a minha

    anlise a um plano filosfico, precisarei ter, ento, uma viso

    de conjunto da histria da humanidade, quer dizer, tia dinmica

    realidade humana como um todo (nvel mximo de abrangncia

    da totalizao dialtica).

    evidente que, na prtica, a vida coloca diante de mim

    problemas que eu tenho de resolver, em geral, sem necessidade

    de recorrer a cada passo a consideraes de filosofia da histria

    (isto , ao nvel de totalizao mais abrangente). De certo

    modo, contudo, mesmo no dia-a-dia, ns estamos sempre,

  • implicitamente, totalizando; estamos sempre trabalhando com

    totalidades de maior ou menor abrangncia.

    Para trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade,

    muito importante sabermos qual o nvel de totalizao exigido

    pelo conjunto de problemas com que estamos nos defrontando;

    e muito importante, tambm, nunca esquecermos que a

    totalidade apenas um momento de um processo de totalizao

    (que, conforme j advertimos, nunca alcana uma etapa

    definitiva e acabada). Afinal, a dialtica - maneira de pensar

    elaborada em funo da necessidade de reconhecermos a

    constante emergncia do novo na realidade humana - negar-se-

    ia a si mesma, caso cristalizasse ou coagulasse suas snteses,

    recusando-se a rev-las, mesmo em face de situaes

    modificadas.

    A modificao do todo s se realiza, de fato, aps um acmulo

    de mudanas nas partes que o compem. Processam-se

    alteraes setoriais, - quantitativas, at que se alcana um ponto

    crtico que assinala a transformao qualitativa da totalidade.

    a lei dialtica da transformao da quantidade em qualidade.

    Voltaremos a falar dessa lei. Por enquanto, o que devemos

    sublinhar que a modificao do todo mais complicada que a

    modificao de cada um dos elementos que o integram. E

    devemos sublinhar outra coisa: cada totalidade tem sua maneira

    diferente de mudar; as condies da mudana estariam

    dependendo do carter da totalidade e do processo especfico

    do qual ela um momento. Vejamos um exemplo. Observemos

    a sociedade brasileira. Podemos analis-la em trs nveis

    distintos. Num primeiro nvel, podemos estudar seu regime

    jurdico-poltico, suas leis, suas instituies, seu sistema

    administrativo, a estrutura do seu Estado. Num segundo nvel,

    podemos mergulhar mais fundo e procurar examinar a histria

    da sociedade brasileira, a relao existente entre sua vida

    poltica, seus problemas sociais e sua economia; podemos

    encar-la como formao scio-econmica. E, finalmente, num

    terceiro nvel, mais geral e mais abstrato, podemos fixar nossa

    ateno no modo de produo que se acha na base da formao

    scio-econmica existente. Na prtica, no possvel separar

    inteiramente as questes que se apresentam num desses nveis

    das questes que se manifestam nos outros dois; afinal,

    concretamente, elas so elementos de uma mesma realidade

    global, que a sociedade brasileira. No entanto, focalizada no

    plano de cada uma das diversas totalizaes mencionadas, essa

    realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a

    compor sua verdadeira fisionomia e a orientar de maneira mais

    realista nossa atividade tendente a transform-la.

  • Em 1964, quando foi deposto o Presidente Joo Goulart, e em

    1968, quando foi editado o AI-5, o Brasil sofreu uma

    importante modificao (em dois episdios): mudou o seu

    regime jurdico-poltico. Era necessrio reconhecer a mudana

    qualitativa dessa totalidade, para extrair todas as conseqncias

    que se impunham, no plano estratgico (e no ficar se iludindo

    com a idia de que tinha ocorrido uma mera "quartelada" cujos

    efeitos seriam passageiros). Ao mesmo tempo, porm, era

    preciso observar que, como formao scio-econmica, o

    Brasil no sofrera nenhuma alterao significativa em 1964.ou

    em 1968.' A formao scio-econmica, como totalidade, no

    muda no mesmo ritmo que o regime jurdico-poltico.

    Ao longo destas ltimas dcadas, num ritmo bem mais lento

    que o do regime jurdico-poltico, a nossa formao scio-

    econmica est-se modificando; em certos aspectos, com o

    crescimento econmico, com o avano da industrializao, com

    a modernizao conservadora (promovida de "cima" para

    "baixo"), a nossa formao scio-econmica j mudou bastante

    e assumiu, inclusive, caractersticas qualitativamente novas. O

    que se passa, entretanto, com o modo de produo capitalista,

    no Brasil? Ele apresenta sinais de que est na iminncia de

    sofrer alguma alterao qualitativa? Est na iminncia de ser

    modificado como totalidade,? Em vo, os revolucionrios

    impacientes, acicatados pela pressa pequeno-burguesa, cansam-

    se na busca de indcios de que a "grande crise" do modo de

    produo capitalista no Brasil est prxima; tudo indica que

    esse modo de produo continua bastante forte.

    Temos, ento, trs totalidades, elaboradas em trs nveis

    diversos, exprimindo trs processos diferentes de totalizao e

    nos revelando trs aspectos distintos (todos trs

    importantssimos) da mesma realidade brasileira.

  • A CONTRADIO E A MEDIAO

    A esta altura da nossa exposio, o leitor pode indagar:

    como que eu posso ter certeza de que estou trabalhando com a

    totalidade correta, de que estou fazendo a totalizao adequada

    situao em que me encontro? A nica resposta possvel a

    esta pergunta se arrisca a ser decepcionante: no h, no plano

    puramente terico, soluo para o problema. A teoria

    necessria e nos ajuda muito, mas por si s no fornece os

    critrios suficientes para ns estarmos seguros de agir com

    acerto. Nenhuma teoria pode ser to boa a ponto de nos evitar

    erros. A gente depende, em ltima anlise, da prtica -

    especialmente da prtica social - para verificar o maior ou

    menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as

    totalizaes).

    A teoria nos ajuda, fornecendo importantes indicaes.

    Em relao totalidade, por exemplo, a teoria dialtica

    recomenda que ns prestemos ateno ao "recheio" de cada

    sntese, quer dizer, s contradies e mediaes concretas que a

    sntese encerra.

    Na investigao cientfica da realidade, a gente comea

    trabalhando com conceitos que so, ainda, snteses muito

    abstratas. Marx d o exemplo da populao. A populao um

    todo, mas o conceito de populao permanece vago se ns no

    conhecemos as classes de que a populao se compe. S

    podemos conhecer concretamente as classeS, entretanto, se

    estudarmos os elementos sobre os quais elas se apiam, na

    existncia delas, tais corno o trabalho assalariado, o capital, etc.

    Tais elementos, por sua vez, supem o comrcio, a diviso do

    trabalho, os preos, etc. "Se comeo pela populao, portanto,

    tenho uma representao catica do conjunto; depois, atravs

    de uma determinao mais precisa, por meio de anlises, chego

    a conceitos cada vez mais simples. Alcanado tal ponto, fao a

    viagem de volta e retorno populao. Dessa vez, contudo, no

    terei sob os olhos um amlgama catico e sim uma totalidade

    rica em determinaes, em relaes complexas." Esse texto de

    Marx de grande interesse para ns. O ponto de partida -

    observemos - no um conceito rudimentar: uma expresso

    que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A

    anlise, portanto, s pode ser orientada com base em uma

    sntese (mesmo precria) anterior. Uma certa compreenso do

    todo precede a prpria possibilidade de aprofundar o

    conhecimento das partes.

    Mas o texto ainda diz mais: por anlise, eu decomponho

    e recomponho o conhecimento indicado na expresso que me

    serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais

  • complexo (ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do

    mais simples ao mais complexo (j concreto), a expresso

    populao passa a ter um contedo bem determinado. O

    concreto, portanto, o resultado de um trabalho. "0 concreto" -

    insiste Marx - " concreto porque a sntese de vrias

    determinaes diferentes, unidade na diversidade." A

    concepo de Marx, segundo a qual o conhecimento no um

    ato e sim um processo, desenvolveu-se em polmica contra a

    concepo irracionalista. Os irracionalistas consideram a

    intuio um instrumento privilegiado do conhecimento

    humano; para eles, o que "sacado" intuitivamente j possui

    valor de verdade, de modo que no existe nenhum motivo para

    ns trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: a

    impresso genrica obtida no ponto de partida j nos basta. O

    irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o paciente

    esforo de ir alm da aparncia, em busca da essncia dos

    fenmenos.

    E as "totalidades" dos irracionalistas permanecem um

    tanto vazias, no tm um "recheio" definido. A dialtica

    muito mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer

    as totalidades em que a realidade est efetivamente articulada

    (em vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a

    realidade), o pensamento dialtico obrigado a um paciente

    trabalho: obrigado a identificar, com esforo, gradualmente,

    as contradies concretas e as mediaes especficas que

    constituem o "tecido" de cada totalidade, que do vida a cada

    totalidade.

    "A dialtica" - observa Carlos Nelson Coutinho - "no

    pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstradas

    do todo. Ela pensa tanto as contradies entre as partes (a

    diferena entre elas: a que faz de uma obra de arte algo distinto

    de um panfleto poltico) como a unio entre elas (o que leva a

    arte e a poltica a se relacionarem no seio da sociedade

    enquanto totalidade)". Os irracionalistas, implicitamente,

    dispensam-nos desse esforo. Quem achar que j "saciou"

    intuitivamente o todo no precisar examinar cuidadosamente

    as partes. Mas tambm no ter uma compreenso clara das

    conexes e conflitos internos e ficar com uma totalidade um

    tanto nebulosa.

    J Hegel criticava a concepo irracionalista que seu ex-

    amigo Schelling adotara da totalidade (do absoluto), dizendo

    que se tratava de uma noite na qual todas as vacas eram pardas.

    Para que o nosso conhecimento avance e o nosso laborioso (e

    interminvel) descobrimento da realidade se aprofunde - quer

    dizer: para ns podermos ir alm das aparncias e penetrar na

    essncia dos fenmenos - precisamos realizar operaes de

  • sntese e de anlise que esclaream no s a dimenso imediata

    como tambm e, sobretudo, a dimenso mediata delas.

    A experincia nos ensina que em todos os objetos com

    os quais lidamos existe uma dimenso imediata (que ns

    percebemos imediatamente) e existe uma dimenso mediata

    (que a gente vai descobrindo, construindo ou reconstruindo aos

    poucos). Vejamos, por exemplo, este livrinho sobre a dialtica

    que est nas mos do leitor: uma realidade imediata, palpvel,

    legvel; um conjunto de folhas impressas com smbolos

    grficos. Mas no s isso. Se o leitor parar um pouco para

    pensar sobre ele, verificar que o fato de p livro estar em suas

    mos passa por uma srie de mediaes, um fato que est

    mediatizado por outros fatos e por diversas aes humanas.

    A mediao mais prxima a ser reconstituda a do

    deslocamento do livro: como foi que ele veio parar nas mos do

    leitor? O leitor comprou-o numa livraria? Recebeu-o de

    presente? Est lendo o volume numa biblioteca? H tambm

    uma mediao subjetiva: qual foi o motivo que levou o leitor a

    se interessar pelo livrinho? Por que este livro e no outro?

    Quando e como o leitor passou a ter a impresso ou a

    convico de que o assunto do livro era digno de ateno e

    valia a pena l-lo? Quais foram as experincias pessoais e os

    condicionamentos culturais que o levaram a isso?

    Somente levando em conta essas (e outras) mediaes

    que poderemos avaliar corretamente toda a significao do fato

    de o livro estar, agora, neste imediato momento, nas mos' do

    leitor.

    As mediaes, entretanto, obrigam-nos a refletir sobre

    outro elemento insuprimvel da realidade: as contradies. H

    muita confuso em torno da palavra contradio. Desde que

    Hegel exps pela primeira vez os fundamentos do mtodo

    dialtico, uma das principais objees formuladas contra ele -

    uma objeo at hoje repetida - a de que o conceito de

    contradio usado pelos dialticos estaria errado.

    Durante sculos, a hegemonia do pensamento

    metafsico nos acostumou a reconhecermos somente um tipo de

    contradio: a contradio lgica. A lgica, como toda cincia,

    ocupa-se da realidade apenas em um determinado nvel; para

    alcanar resultados rigorosos, ela limita o seu campo e trata de

    uma parte da realidade.

    As leis da lgica so certamente vlidas, no campo

    delas; e - nesse campo de validade - a contradio a

    manifestao de um defeito no raciocnio. Existem, porm,

    dimenses da realidade humana que no se esgotam na

    disciplina das leis lgicas. Existem aspectos da realidade

    humana que no podem ser compreendidos isoladamente: se

  • queremos comear a entend-los, precisamos observar a

    conexo ntima que existe entre eles e aquilo que eles no so.

    Henri Lefebvre escreveu, com razo: "No podemos dizer ao

    mesmo tempo que determinado objeto redondo e quadrado.

    Mas devemos dizer que o mais s se define com o menos, que a

    dvida s se define pelo emprstimo".

    As conexes ntimas que existem entre realidades

    diferentes criam unidades contraditrias. Em tais unidades, a

    contradio essencial: no um mero defeito do raciocnio.

    Num sentido amplo, filosfico, que no se confunde com o

    sentido que a lgica confere ao termo, a contradio

    reconhecida pela dialtica como princpio bsico do movimento

    pelo qual os seres existem. A dialtica no se contrape

    lgica, mas vai alm da lgica, desbravando um espao que a

    lgica no consegue ocupar.

    Para desbravar esse novo espao, a dialtica modifica os

    instrumentos conceituais de que dispe: passa a trabalhar,

    freqentemente, com determinaes reflexivas e procura

    promover uma "fluidificao dos conceitos". No se assuste

    com essas expresses, leitor; vamos explic-las no prximo

    captulo.

    A "FLUIDIFICAO" DOS CONCEITOS

    Marx pretendia escrever um livro, explicando sua concepo da

    dialtica. Chegou a anunciar o projeto, em dezembro de 1875,

    numa carta a Joseph Dietzgen. Mas os trabalhos de preparao

    e redao de O Capital no lhe deixaram tempo para isso.

    O Capital contm muitos elementos preciosos para ns

    estudarmos como Marx entendia e aplicava a dialtica. H,

    inclusive, estudos importantes sobre a dialtica no Capital:

    podemos lembrar, por exemplo, os estudos dos soviticos

    Rudin, Rosental e Ilinkov, do polons Rosdolsky, do tcheco

    Zeleny e do sueco Helmut Reichelt.

    Por mais importantes que sejam, contudo, esses estudos so

    interpretaes polmicas, que no podem substituir a exposio

    da dialtica como mtodo, anunciada em 1875 a Dietzgen e

    jamais escrita. compreensvel, portanto, que at hoje existam

    muitas discusses sobre a dialtica de Marx. Quais so,

    precisamente, suas caractersticas essenciais? Quais so,

    precisamente, suas relaes com a dialtica de Hegel? Alguns

    pontos foram devidamente esclarecidos pelo prprio Marx,

    quando ele falou de diferenas fundamentais entre seu mtodo e

    o de Hegel, decorrentes do fato de Hegel ser idealista e ele ser

    materialista. Hegel descrevia o processo global - da realidade

  • da seguinte maneira: a Idia Absoluta assumiu a imperfeio (a

    instabilidade) da matria, desdobrou-se em uma srie de

    movimentos que a explicitavam e realizavam, para, afinal, com

    a "trajetria ascensional do ser humano, iniciar enriquecida -

    seu retorno a si mesma. Essa descrio - que claramente

    idealista - supe o conhecimento do ponto de partida e do ponto

    de chegada do movimento da realidade. Quer dizer: a

    descrio do processo da realidade como uma totalidade

    fechada, "redonda". Marx, como materialista, no podia aceitar

    essa descrio: para ele, o processo da realidade s podia ser

    encarado como uma totalidade aberta, quer dizer, atravs de

    esquemas que no pretendessem "reduzir" a infinita riqueza da

    realidade ao conhecimento.

    Para dar conta do movimento infinitamente rico pelo qual a

    realidade est sempre assumindo formas novas, os conceitos

    com os quais o nosso conhecimento trabalha precisam aprender

    a ser "fluidos". Hegel, com a dialtica dele,lanou as bases para

    a "fluidificao" dos conceitos; em Hegel, no entanto, a

    "fluidificao" ficava limitada pelo carter excessivamente

    abstrato do quadro global (totalidade) da histria humana. Isso

    se v, por exemplo, no uso do conceito de natureza humana: em

    Hegel, o ser humano que promovia o movimento da histria era

    uma abstrata "autoconscincia", ligada tal da Idia Absoluta,

    praticamente desvinculada dos problemas que afetam o corpo

    dos homens, de modo que a "natureza humana", tal como Hegel

    a entendia, era idealizada, tinha muito pouco de "natureza" e

    por isso lhe faltava uma dimenso histrica mais concreta.

    Marx, por sua vez, conseguiu "fluidificar muito mais

    radicalmente o conceito de natureza humana. Para Marx, o

    homem tinha um corpo, uma dimenso concretamente

    "natural", e por isso a natureza humana se modificava

    materialmente, na sua atividade fsica sobre o mundo: "ao atuar

    sobre a natureza exterior, o homem modifica, ao mesmo tempo,

    sua prpria natureza". O movimento autotransformador da

    natureza humana, para Marx, no um movimento espiritual

    (como em Hegel) e sim um movimento material, que abrange a

    modificao no s das formas de trabalho e organizao

    prtica de vida, mas tambm dos prprios rgos dos sentidos:

    o olho humano passou ver coisas que no enxergava antes, o

    ouvido humano foi educado pela msica para ouvir coisas que

    no escutava antes, etc. "A formao dos cinco sentidos"

    escreveu Marx - " trabalho de toda a histria passada." A

    natureza humana, por conseguinte, conforme o conceito que

    Marx tem dela, s existe na histria, num processo global de

    transformao, que abarca todos os seus aspectos. E a histria,

    em seu conjunto, "no outra coisa seno uma transformao

  • contnua da natureza humana" (conforme se l na Misria da

    Filosofia).

    A essa altura da nossa explicao do conceito marxista de

    natureza humana, entretanto, uma pergunta se impe: se a

    natureza humana se transforma globalmente e de modo

    contnuo ao longo da histria, por que continuar a empregar o

    conceito de natureza humana? Como ele poderia corresponder a

    algo de constante, capaz de justific-lo? Como poderia haver

    algo em comum entre ns, homens do Sculo XX, e, por

    exemplo, os gregos do Sculo V antes de Cristo?

    Marx no reconhece a existncia de nenhum aspecto da

    realidade humana situado acima da histria ou fora dela; mas

    admite que determinados aspectos da realidade humana

    perduram na histria.

    Exatamente porque o movimento da histria marcado por

    superaes dialticas, em todas as grandes mudanas h uma

    negao, mas ao mesmo tempo uma preservao (e uma

    elevao a nvel superior) daquilo que tinha sido estabelecido

    antes. Mudana e permanncia so categorias reflexivas, isto ,

    uma no pode ser pensada sem a outra. Assim como no

    podemos ter uma viso correta de nenhum aspecto estvel da

    realidade humana se no soubermos situ-lo dentro do processo

    geral de transformao a que ele pertence (dentro da totalidade

    dinmica de que ele faz parte), tambm no podemos avaliar

    nenhuma mudana concreta se no a reconhecermos como

    mudana de um ser (quer dizer, de uma realidade articulada e

    provida de certa capacidade de durar).

    Marx no era Herclito, o Obscuro. Ele sabia que, quando um

    homem se banha duas vezes num determinado rio, inegvel

    que ~a segunda vez o homem ter mudado, o rio tambm ter

    sofrido alteraes, mas apesar das modificaes o homem ser

    o mesmo homem (e no um outro indivduo qualquer) e o rio

    ser o mesmo rio (e no um outro rio qualquer). Por isso, Marx

    empregou o conceito de natureza humana.

    Para Marx, a "fluidificao" dialtica dos conceitos no tinha

    nada a ver com o "relativismo e no podia, em nenhum

    momento, ser confundida com ele. Num escrito de 1857, Marx

    lembrou o caso da arte grega do Sculo V a.C. que refletia as

    condies sociais de Atenas, naquele momento, e no entanto

    continuava a ter algo a dizer a seres humanos que viviam em

    outros pases, em outros tempos, com outro nvel de

    desenvolvimento das foras produtivas, outras relaes de

    produo, vinte e quatro sculos mais tarde. O exemplo da

    epopia e da tragdia dos antigos gregos mostrava que a

    dimenso histrica de certas criaes humanas no as impede

    de perdurar e nem as reduz a uma eficcia momentnea,

  • limitada. A mesma vitalidade demonstrada pela arte grega,

    alis, pode ser encontrada em certas idias e observaes de

    Aristteles, em alguns dos conceitos criados por ele: as criaes

    mais significativas do esprito humano e da atividade prtica do

    homem se incorporam ao processo da histria da humanidade e

    so capazes, por assim dizer, de continuar "vivas" (mudam as

    condies histricas, muda a nossa maneira de avali-las, mas

    so elas - e no outras criaes do passado que permanecem

    presentes no nosso horizonte).

    Em certo sentido, por conseguinte, podemos dizer que nessas

    criaes excepcionalmente bem-sucedidas dos seres humanos

    h alguma coisa de verdade absoluta; por isso, o

    desenvolvimento posterior do conhecimento humano no deixa

    que elas caiam no esquecimento (porque precisa delas).

    Nenhuma dessas criaes pode ser adequadamente

    compreendida e assimilada pelas pocas que vieram depois

    delas sem um exame das condies especficas em que cada

    obra foi elaborada; cada uma delas possui uma ligao

    essencial com o momento da sua gnese; mas, na maneira de

    expressarem o momento histrico em que nasceram, elas

    conseguem acrescentar algo ao processo histrico como um

    todo.

    A "fluidificao" dos conceitos destinados a tratar dos dois

    lados dessa realidade s pode ocorrer atravs da determinao

    reflexiva: os conceitos funcionam como pares inseparveis.

    Por isso a dialtica no pode admitir contraposies

    metafsicas, tais como mudana/permanncia, ou

    absoluto/relativo, ou finito/infinito, ou singular/universal, etc.

    Para a dialtica, tais conceitos so como "cara" e "coroa": duas

    faces da mesma moeda.

  • AS LEIS DA DIALTICA

    Nos ltimos anos de vida de Marx, enquanto ele se

    esforava para tentar acabar de escrever O Capital, seu amigo

    Engels redigiu diversas anotaes sobre questes que nos

    interessam, relativas dialtica. Marx apoiou Engels nas

    observaes que este desenvolvia. (e que continuou a

    desenvolver aps a morte do autor do Capital).

    A grande preocupao de Engels era defender o carter

    materialista da dialtica, tal como Marx e ele a concebiam. Era

    preciso evitar que a dialtica da histria humana fosse analisada

    como se no tivesse absolutamente nada a ver com a natureza,

    como se o homem no tivesse uma dimenso irredutivelmente

    natural e no tivesse comeado sua trajetria na natureza. Uma

    certa dialtica na natureza (ou pelo menos uma pr-dialtica)

    era, para Marx e para Engels, uma condio prvia para que

    pudesse existir a dialtica humana.

    Engels concentrou, ento, sua ateno no exame dos

    princpios daquilo que ele chamou de "dialtica da natureza" e

    chegou concluso de que as leis gerais da dialtica (comuns

    tanto histria humana como natureza) podiam ser reduzidas,

    no essencial, a trs:

    1) lei da passagem da quantidade qual idade (e vive-

    versa);

    2) lei da interpenetrao dos contrrios;

    3) lei da negao da negao.

    A primeira lei se refere ao fato de que, ao mudarem, as

    coisas no mudam sempre no mesmo ritmo; o processo de

    transformao por meio do qual elas existem passa por perodos

    lentos (nos quais se sucedem pequenas alteraes quantitativas)

    e porr perodos de acelerao (que precipitam alteraes

    qualitativas, isto , "saltos", modificaes radicais), Engels d o

    exemplo da gua que vai esquentando, vai esquentando, at

    alcanar cem graus centgrados e ferver, quando se precipita' a

    sua passagem do estado lquido ao estado gasoso.

    A segunda lei aquela que nos lembra que tudo tem a

    ver com tudo, os diversos aspectos da realidade se entrelaam

    e, em diferentes nveis, dependem uns dos outros, de modo que

    as coisas no podem ser compreendidas isoladamente, uma por

    uma, sem levarmos em conta a conexo que cada uma delas

    mantm com coisas diferentes. Conforme as conexes (quer

    dizer, conforme o contexto em que ela esteja situada),

    prevalece, 'na coisa, um lado ou o outro da sua realidade (que

  • intrinsecamente contraditria). Os dois lados se opem e, no

    entanto, constituem uma unidade (e por isso esta lei j foi

    tambm chamada de unidade e luta dos contrrios).

    A terceira lei d conta do fato de que o movimento geral

    da realidade faz sentido, quer dizer, no absurdo, no se

    esgota em contradies irracionais, ininteligveis, nem se perde

    na eterna repetio do conflito entre teses e antteses, entre

    afirmaes e negaes. A afirmao engendra necessariamente

    a sua negao, porm a negao no prevalece como tal: tanto a

    afirmao como a negao so superadas e o que acaba' por

    prevalecer uma sntese, a negao da negao.

    Essas leis j se achavam em Hegel; Engels procurou

    resgat-las do idealismo hegeliano e dar-lhes um sentido

    claramente materialista. Expondo, simplificadamente, algumas

    das noes bsicas da dialtica, Engels teve um imenso xito e

    exerceu uma influncia notvel no pensamento de vrias

    geraes de operrios conscientes e militantes socialistas. A

    polmica de Engels contra Dhring se tornou um marco na

    histria das idias do movimento operrio.

    A experincia que foi sendo adquirida pelo movimento

    socialista ao longo do Sculo XX mostrou que as formulaes

    de Engels - embora brilhantes e didticas - possuem certas

    limitaes.

    As leis da dialtica no se deixam reduzir a trs e essa

    reduo, tal como Engels a realizou, tem algo de arbitrrio. Os

    princpios da dialtica se prestam mal a qualquer codificao.

    Um cdigo, por definio, articula as leis, fixa as leis em

    artigos (artigo primeiro... artigo segundo... etc.). Como

    poderiam, porm, ser fixadas em artigos as leis de uma filosofia

    da mudana, de uma concepo do mundo segundo a qual

    existe sempre alguma coisa de novo sob o sol?

    Outra limitao: os exemplos usados por Engels para

    esclarecer o funcionamento das leis da dialtica eram todos

    extrados das cincias da natureza.

    Por qu? Porque nas cincias exatas - dizia ele as

    quantidades podem ser medidas e a demonstrao pode se

    tornar mais convincente. Esse procedimento, entretanto, acabou

    sendo aproveitado por tendncias polticas e ideolgicas que,

    no interior do movimento socialista, sabotaram o

    aprofundamento da dialtica (por exemplo, as tendncias das

    quais Stlin foi o representante mais poderoso). Falaremos,

    mais adiante, dos problemas que vieram a se manifestar, ao

    longo do Sculo XX, na histria da dialtica. Por ora, vamos

    nos limitar, aqui, a lembrar que a dialtica parte do

    reconhecimento do fato de que o processo de auto-criao do

    homem introduziu na realidade uma dimenso nova, cujos

  • problemas exigem um enfoque tambm novo. O terreno em que

    a dialtica pode demonstrar decisivamente aquilo de que

    capaz no o terreno da anlise dos fenmenos quantificveis

    da natureza e sim o da histria humana, p da transformao da

    sociedade.

    Evidentemente, o que acaba de ser dito a respeito das

    limitaes das formulaes de Engels sobre as leis da dialtica

    no significa que as referidas leis sejam falsas e devam ser

    esquecidas; significa apenas que elas devem ser utilizadas com

    as devidas precaues. Engels era um pensador dialtico de

    grandes mritos. Em sua obra existem elementos que podemos

    invocar em favor da advertncia que fizemos, quanto

    profunda diferena que existe entre a dialtica na natureza e a

    dialtica na histria humana.

    No Anti-Dhring, por exemplo, Engels d um caso de

    passagem da quantidade qualidade ocorrido na histria (um

    caso observado por Napoleo Bonaparte). Napoleo analisou as

    lutas entre a cavalaria francesa, bem organizada e disciplinada,

    e a cavalaria dos mamelucos (que eram hbeis cavaleiros,

    dispunham de excelentes cavalos, mas eram indisciplinados). E

    tinha dito: "Dois mamelucos derrotavam seguramente trs

    franceses; cem mamelucos enfrentavam, em igualdade de

    condies, cem franceses; 300 franceses venciam 300

    mamelucos; e mil franceses derrotavam, inevitavelmente, 1.500

    mamelucos".

    Esse exemplo de enorme utilidade para ns. Se o

    compararmos ao exemplo da gua que ferve aos 100 graus e

    passa do estado lquido ao gasoso, perceberemos que ambos

    so casos de passagem da quantidade qualidade, porm so

    fenmenos de natureza muito diferente. No caso da gua, temos

    um fenmeno fsico, que no depende da vontade humana. No

    caso do confronto das duas cavalarias, temos um processo que

    depende da organizao, isto , depende de fatores subjetivos,

    de decises e escolhas. Um processo que comporta alternativas

    e depende de iniciativas.

  • O SUJEITO E A HISTRIA

    Depois da morte de Marx (em 1883) e de Engels (em 1895), o

    desenvolvimento do pensamento dialtico no se interrompeu e

    prosseguiu seu acidentado caminho. No final do sculo

    passado, o socialista alemo Eduard Bernstein (1850 -1932)

    passou a criticar os escritos de Marx, sustentando que o

    capitalismo estava mais forte do que nunca, que as previses do

    Manifesto Comunista (de 1848) tinham falhado, de modo que

    era preciso submeter a uma rigorosa reviso os princpios que

    Marx tinha defendido. E a dialtica, segundo o revisionista

    Bernstein, era "o elemento prfido na doutrina marxista, o

    obstculo que impede qualquer apreciao lgica das coisas".

    Bernstein preconizou, ento, um abandono da dialtica, da

    herana "hegeliana do marxismo, e um retorno a Kant.

    Na ocasio, as posies de Bernstein foram criticadas e

    recusadas pela direo do principal partido socialista do

    comeo do nosso sculo: o Partido Social-Democrtico

    Alemo. As posies que venceram no debate foram as de Karl

    Kautsky (1854-1938). Mas Kautsky tambm no era um

    autntico dialtico: ele confundia a dialtica com o

    evolucionismo e s vezes se mostrava muito mais um discpulo

    de Darwin do que um discpulo de Marx (e tendia a considerar

    a histria da humanidade uma mera parte da histria global da

    natureza).

    A primeira gerao de tericos socialistas que veio depois da

    gerao de Marx e Engels no conseguiu assimilar a dialtica.

    O prprio genro de Marx, o cubano Paul Lafargue (1842-1911),

    publicou um livro intitulado O Determinismo Econmico de

    Karl Marx, que contribuiu para o fortalecimento, na

    conscincia dos socialistas, de uma verso antidialtica da

    concepo materialista da histria.

    Nas' duas primeiras dcadas do Sculo XX, difundiu-se entre os

    socialistas a idia - falsa - de que, segundo Marx, os "fatores

    econmicos" provocavam, de maneira mais ou menos

    automtica, a evoluo da sociedade (sem que os homens -

    sujeitos do efetivo movimento da histria tivessem um espao

    significativo para tomarem suas iniciativas). Essa concepo

    facilitava a infiltrao de tendncias polticas oportunistas no

    movimento socialista: quem no enxerga nada que dependa da

    sua ao tende facilmente a instalar-se na passividade (tende a

    contemplar a histria, em vez de faz-la). Houve

    revolucionrios que reagiram contra a deformao da

    concepo marxista da histria.

    Rosa Luxemburgo (1871-1919) e Lnin (1870-1924) se

    destacaram na revalorizao da dialtica. Invocando uma frase

  • de Engels no Anti-Dhring, Rosa sustentou que a histria

    mundial se achava em face de um dilema: ou o socialismo

    vencia ou o imperialismo arrastaria a humanidade (corno na

    Roma antiga) decadncia, destruio, barbrie. possvel

    que os termos do dilema tenham sido exagerados por Rosa, por

    influncia da situao, do momento em que ela escrevia (Rosa

    estava presa, em 1915, e a primeira guerra mundial tinha

    comeado). De qualquer maneira, o dilema ajudou os militantes

    socialistas a compreenderem que a concepo marxista

    (dialtica) da histria no assegurava nenhum resultado

    preestabelecido.

    Lnin, por seu lado, desde 1902, no livro Que Fazer?,

    empenhou-se apaixonadamente, no plano da teoria poltica, em

    abrir espaos para a iniciativa do sujeito revolucionrio (e

    especialmente para a iniciativa da vanguarda do proletariado).

    Em seus estudos da obra de Hegel, em 1914, Lnin atribuiu

    imensa importncia herana hegeliana do marxismo e

    advertiu que, sem assimilar plenamente os ensinamentos

    contidos na Lgica de Hegel, nenhum marxista poderia

    entender inteiramente O Capital de Marx.

    Os estudos da obra de Hegel e as reflexes sobre o mtodo

    dialtico foram de grande valia para Lnin em' sua anlise do

    imperialismo e na elaborao. estratgica que o levou a liderar

    a tomada do poder na Rssia, em 1917, pelos bolchevistas. O

    novo poder sovitico despertou entusiasmo em crculos

    revolucionrios e progressistas do mundo inteiro: era uma

    demonstrao prtica das possibilidades concretas que estavam

    ao alcance do sujeito humano disposto a transformar o mundo.

    Importantes marxistas dos anos vinte e trinta encontraram nas

    idias de Lnin e sobretudo em suas realizaes prticas

    elementos que os impulsionaram em seus esforos para levar

    adiante o desenvolvimento da dialtica. Esboou-se um

    vigoroso movimento terico que pretendia superar

    definitivamente as deformaes antidialticas a que tinham sido

    submetidas certas concepes de Marx no comeo do nosso

    sculo. As tentativas de confundir o marxismo com o

    "materialismo vulgar" ou com o "determinismo econmico"

    foram inteligentemente criticadas. .

    O hngaro Georg Lukcs (1885-1971) advertiu:

    "No a predominncia dos motivos econmicos na explicao

    da histria que distingue decisivamente o marxismo da cincia

    burguesa: o ponto de vista da totalidade". Somente o ponto de

    vista da totalidade, segundo Lukcs, permite dialtica

    enxergar, por" trs da aparncia das "coisas", os processos e

    inter-relaes de que se compe a realidade. Somente o ponto

  • de vista da totalidade permite que se veja no real um "jorrar

    ininterrupto de novidade qualitativa".

    O italiano Antonio Gramsci (1891-1937) caracterizou o

    marxismo como um "historicismo absoluto", Para ele, o

    fatalismo determinista pode se tornar uma fora de resistncia

    moral, pode ajudar o revolucionrio a perseverar na luta, pode

    ajudar a organizao revolucionria a manter a sua coeso

    interna, nos perodos marcados por uma sucesso de graves

    derrotas". Nesse sentido, Gramsci se dispe at a fazer-lhe um

    "elogio fnebre", reconhecendo a funo histrica do

    determinismo, porm "enterrando-o com todas as honras", pois

    se o determinismo persistir dificultar sempre o

    desenvolvimento do esprito crtico e da criatividade entre os

    revolucionrios.

    O materialismo histrico de Marx e Engels constatativo e no

    normativo: ele reconhece que, nas condies de insuficiente

    desenvolvimento das foras produtivas humanas e de diviso da

    sociedade em classes, a economia tem imposto, em ltima

    anlise, opes estreitas aos homens que fazem a histria. Isso

    no significa que a economia seja o sujeito da histria, que a

    economia vai dominar eternamente os movimentos do sujeito

    humano. Ao contrrio: a dialtica aponta na direo de uma

    libertao mais efetiva do ser humano em relao ao

    cerceamento de condies econmicas ainda desumanas.

    O alemo Walter Benjamin (1892 -1940), alis, lembrou que a

    histria, tal como ela veio se desenrolando at o presente, est

    impregnada de violncia, de opresso, de barbrie; e

    exatamente por isso que a tarefa do terico do materialismo

    histrico no pode ser pensar uma espcie de prolongamento

    "natural" dessa histria, no pode ser promover a continuidade

    daquilo que essa histria produziu, limitando-se a transmitir

    seus produtos de mo em mo. Um esprito dialtico escreveu

    Benjamin, atravs de uma sugestiva imagem - insiste em

    "escovar a histria a contrapelo".

    Infelizmente, os esforos de Lukcs, Gramsci, Walter Benjamin

    e vrios outros intelectuais marxistas dos anos vinte e trinta

    foram contrariados por uma tendncia antidialtica que avanou

    muito no interior do movimento comunista aps,;' a morte de

    Lnin, em 1924. O principal representante dessa tendncia

    antidialtica foi Josef Stlin (1879-1953), que assumiu a

    direo do PC da URSS e do Estado sovitico e exerceu uma

    enorme influncia sobre o movimento comunista mundial.

    Stlin era um poltico de grande talento, mas desprezava a

    teoria, no a levava a srio: instrumentalizava O trabalho

    terico, com esprito pragmtico, cnico. Em Marx, Engels e

  • Lnin,_ a prtica exigia um reexame da teoria e a teoria servia

    para criticar a prtica em profundidade, servia para questionar e

    corrigir a prtica. Em Stlin, isso mudou: a teoria perdeu sua

    capacidade de criticar a prtica e o trabalho terico ficou

    reduzido a uma justificao permanente de todas as medidas

    prticas decididas pela direo do partido comunista.

    Stlin considerava Hegel uma expresso "sociolgica" do

    atraso da Alemanha na poca da Revoluo Francesa e de

    Napoleo. Ao contrrio de Lnin, que estudava Hegel, Stlin

    tinha uma antipatia imensa pelo patrimnio da herana

    hegeliana. Em seu raciocnio, Stlin ignorava freqentemente

    as mediaes, cuja importncia tinha sido sublinhada tanto por

    Hegel como por Marx. Stlin pensava da seguinte maneira:

    Znoviev, Kamenev, Trtsky, Bukhrin e outros tm opinies -

    "erradas" a respeito, de questes importantes; expondo suas

    opinies, defendendo-as, eles produzem efeitos daninhos,

    objetivamente to nocivos como os efeitos que seriam

    provocados pela ao de sabotadores, espies, agentes contra-

    revolucionrios e traidores; portanto, objetivamente, eles so

    sabotadores, espies, traidores, agentes inimigos - e precisam

    ser objetivamente tratados como tais. Nas coisas que Stlin

    dizia ou escrevia apareciam, volta e meia, o advrbio

    "objetivamente" e o adjetivo "objetivo" (ou "objetiva"),

    precisamente porque ele no encarava dialeticamente a questo

    do papel da subjetividade: na histria e tendia a identificar (de

    modo positivista) "subjetivo" com "arbitrrio" e. "objetivo"

    com "cientfico". Para se ter uma idia de como esse modo de

    pensar e de agir era diferente do de Lnin, basta lembrarmos

    que Znoviev, Kamenev, Trtsky e Bukhrln divergiram de

    Lnin em questes importantssimas e nem por isso Lnin os

    liquidou.

    Tal como Engels, Stlin tinha talento para as simplificaes

    didticas; faltava-lhe, entretanto, a slida base cultural e terica

    de Engels. Stlin retomou de Engels o esquema das "trs leis"

    da dialtica, mas "corrigiu-o". Em seu trabalho Sobre Q

    Materialismo Dialtico e o Materialismo Histrico (1938),

    Stlin sustentou que o mtodo dialtico no possua

    propriamente trs leis gerais e sim "quatro traos

    fundamentais", que eram: 1) a conexo universal e

    interdependncia dos fenmenos; 2) o movimento, a

    transformao e o desenvolvimento; 3) a passagem de um

    estado qualitativo a outro; e 4) a luta dos contrrios como fonte

    interna do desenvolvimento. Para Stlin, a expresso "negao

    da negao", usada por Engels, era muito hegeliana, muito

    abstrata: no correspondia claramente a um processo que se

    realizava sempre "do simples ao complexo, do inferior ao

  • superior". No bastava que a sntese (a "negao da negao")

    fosse qualitativamente distinta tanto da afirmao (tese) como

    da negao (anttese): ela devia assumir um contedo

    nitidamente positivo, para poder ser aproveitada

    propagandisticamente, na luta poltica. Nos esquemas de Stlin

    era assim mesmo: as categorias da reflexo, do estudo e da

    investigao cientfica deveriam estar sempre preparadas para

    ser postas a servio da propaganda.

    A deformao antidialtica do marxismo, caracterstica dos

    tempos de Stlin, influiu poderosamente na educao

    ideolgica de pelo menos duas geraes de comunistas, no

    mundo inteiro.

    Essa influncia est longe de ter sido suficientemente analisada

    em suas origens e suprimida em suas conseqncias. Nikita

    Khruschov, quando era secretrio-geral do PC da URSS,

    denunciou, em 1956, o sistema do "culto personalidade" e as

    "graves violaes da legalidade socialista", mas no contribuiu

    em nada para a elaborao de uma interpretao marxista das

    causas e da exata natureza dos fenmenos que abordava. Os

    mtodos de Stlin foram condenados em termos ticos e

    passaram a ser combatidos em termos polticos pragmticos.

    Como, porm, eles se baseiam numa crassa subestimao da

    teoria, nunca podero ser efetivamente superados enquanto no

    for plenamente recuperada a seriedade do trabalho terico; e

    essa seriedade s estar comprovada no dia em que as

    deformaes impostas dialtica marxista no perodo de Stlin

    tiverem sido submetidas a uma anlise cientfica e filosfica, a

    uma investigao historiogrfica profunda e convincente.

  • O INDIVDUO E A SOCIEDADE

    As deformaes que se desenvolveram na poca de

    Stlin no constituem a nica fonte de modos de pensar

    antidialticos que se difundem entre os marxistas. Num mundo

    to dividido como este em que ns vivemos, a mera adeso aos

    princpios tericos do marxismo nunca pode, evidentemente,

    funcionar como vacina, imunizando as pessoas contra os males

    decorrentes de concepes estreitas, unilaterais,

    preconceituosas. O gnero humano est excessivamente

    fragmentado, muito difcil compreend-lo como totalidade

    concreta (e muito difcil tom-lo como base para uma

    abordagem verdadeiramente universal de certos problemas

    humanos gerais): os marxistas - da mesma forma que os

    representantes de outras correntes de pensamento - acabam,

    assim, muitas vezes, misturando interesses nacionais ou

    convenincias particulares com a universalidade do autntico

    ponto de vista marxista. O ingresso do movimento comunista

    mundial em uma nova fase, na qual se tornou impossvel a

    manuteno da unidade monoltica dos tempos da

    Internacional. Comunista ( 1919-1943), tornou igualmente

    muito difcil para os marxistas apoiarem-se numa compreenso

    do movimento comunista como totalidade concreta para

    resolverem todos os seus problemas tericos.

    Mesmo os indivduos mais empenhados na luta pela

    .transformao da sociedade se confundem, com freqncia,

    quando falta coeso unidade deles. A falta de coeso diminui,

    para eles, as possibilidades de fazerem histria de modo

    consciente. Diminui as possibilidades de se organizarem e de se

    reconhecerem na ao da comunidade organizada a que se

    integraram.

    O indivduo isolado, normalmente, no pode fazer

    histria: suas foras so muito limitadas. Por isso, o problema

    da organizao capaz de lev-lo a m