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www.nead.unama.br 1 Universidade da Amazônia O que é o Casamento? de José de Alencar de José de Alencar de José de Alencar de José de Alencar NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal CEP: 66060-902 Belém – Pará Fones: (91) 210-3196 / 210-3181 www.nead.unama.br E-mail: [email protected]

O Que é o Casamento? · 2012-09-20 · O que é o Casamento? de José de Alencar ... Miranda — Lendo o teu nome, duvidei que estivéssemos em outubro. Alves — Como passas?

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    Universidade da Amaznia

    O que oCasamento?

    de Jos de Alencarde Jos de Alencarde Jos de Alencarde Jos de Alencar

    NEAD NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIAAv. Alcindo Cacela, 287 Umarizal

    CEP: 66060-902Belm Par

    Fones: (91) 210-3196 / 210-3181www.nead.unama.br

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    O Que o Casamento?de Jos de Alencar

    Comdia em Quatro Atos1861

    PersonagensAugusto Miranda, 36 anos.Henrique, 21 anos, sobrinho de Miranda.Sales, 25 anos.Siqueira, 50 anos, sogro de Miranda.Alves, 33 anos, negociante.Joaquim, 45 anos, preto escravo.Isabel, 23 anos, mulher de Miranda.Clarinha, 17 anos, prima de Isabel.Rita, 38 anos, parda escrava.Iai, 3 anos.A cena no Rio de Janeiro e Petrpolis, de 1859 a 1860.

    ATO PRIMEIROEm casa de Miranda Sala de visitas.

    CENA PRIMEIRAMiranda e Alves(Alves entrega o carto a Joaquim e espera)

    Miranda Lendo o teu nome, duvidei que estivssemos em outubro.Alves Como passas? Por qu?...Miranda No s pelo Natal que temos o prazer de ver de ano em ano o teucarto de visitas?... Quanto tua pessoa, essa apenas de passagem em algumareunio.Alves Tens razo! Mas acredita que sou o mesmo.Miranda Devias dar-me ocasies de verific-lo. Dois velhos amigos como nssentem de tempos a tempos necessidade de conversar.Alves Que queres?... A fortuna teve inveja de nos ver to unidos, e separou-nos.Ests brilhando na poltica.Miranda E tu enriquecendo no comrcio.Alves Ests casado.Miranda Por que no fazes o mesmo? tempo.Alves Confesso-te que j me sinto gasto para esta vida de celibatrio. s vezesnem sei o que fazer de minha liberdade. Mas quando me lembro do casamento, s aidia me assusta.Miranda Pouco a pouco te irs habituando a ela, e um belo dia, quando menospensares, estars casado.Alves Duvido. Fazer a felicidade de duas criaturas de gnios, de ocupaes, deidades diversas um problema social que na minha opinio ainda no foi resolvido,e no me sinto com foras de o tentar.

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    Miranda So idias que todos temos quando profanos. O casamento, Alves, oque foi entre ns h algum tempo a maonaria, de que se contavam horrores, e queno fundo no passava de uma sociedade inocente, que oferecia boa palestra, boasceias. H dois prejuzos muito vulgares: uns supem que o casamento aperpetuidade do amor, a troca sem fim de carcias e protestos; e assustam-se comrazo diante da perspectiva de uma ternura de todos os dias e de todas as horas.Alves (rindo) Na verdade desanimadora; sobretudo nesta poca de vapor eeletricidade.Miranda Justo!... O outro prejuzo daqueles que supem o casamento umaguerra domstica, uma luta constante de caracteres antipticos, de hbitos, e deidias. Esses, como os outros mas por motivo diferente, tremem pela suatranqilidade, Entretanto a realidade est entre os dois extremos. O casamento no nem a potica transfuso de duas almas em uma s carne, a perpetuidade doamor, o arrulho eterno de dois coraes; nem tambm a guerra domstica, a luta emfamlia. a paz, firmada sobre a estima e o respeito mtuo; o repouso daspaixes, e a fora que nasce da unio.Alves Concordo. Mas que dificuldade para conservar essa paz matrimonial... No preciso que o homem sacrifique a sua individualidade e se dedique todo famlia?Miranda Como te iludes! quando o homem goza da plena tranqilidade do seuesprito; quando lhe sobra todo o tempo para as ocupaes srias da vida... julgopor mim.Alves E o tempo para amar a sua mulher e fazer a sua felicidade?Miranda No me compreendeste ento, Alves. O amor conjugal calmo e srio;vive pela confiana recproca, e alimenta-se mais de recordaes do que de desejos.Um exemplo: ns j no somos os companheiros inseparveis de estudos e deprazeres que fomos outrora; apenas nos encontramos de longe em longe, etrocamos rapidamente uma palavra, ou um aperto de mo. Entretanto isto basta:nenhum duvida da amizade do outro. Ambos temos a certeza de que possumos umamigo dedicado; e essa certeza um gozo superior a qualquer demonstrao frvolae banal. Pois bem: perfuma essa amizade com a graa e a ternura inseparvel damulher, e ters a imagem perfeita de um casamento feliz. Vou te fazer umaconfidncia... (Entra Isabel) minha mulher... j a conheces...Alves Conheo-a; mas ainda no tive o prazer de falar-lhe.

    CENA IIOs mesmos e Isabel

    Miranda Bela!... Apresento-te um ingrato, sim, porque nos desdenha. o Alves,meu mais ntimo amigo, a quem devo tudo... sabes?Isabel Ah! foi o senhor que salvou Henrique!Alves Apenas ajudei-o a salvar-se.Miranda Lanando-te ao mar com risco de tua vida. Chamas a isto ajudar?Alves Perdo! Augusto estava me convertendo ao casamento, minha senhora.Isabel lisonjeiro para mim.Miranda Queres saber o que mais o horrorizava, Bela? Era a idia de ficarhipotecado corpo e alma sua mulher.Alves No; no isso que me assusta, mas o receio de no poder ou no saberfaz-la feliz.

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    Miranda No te hs de casar com uma mulher que no tenha inclinao por ti eque no te estime. Portanto que receio este?Isabel Decerto, Sr. Alves. No nos suponha to difceis. Fazer a felicidade deuma mulher cousa que custa to pouco, queles que o desejam!Alves Enfim, tratarei de seguir o teu conselho, Augusto.Miranda J nos deixas?... Nem por serem to raras as tuas visitas?...Alves Esta de despedida. Por isso desculpa.Miranda Como assim?...Alves Vou a S. Paulo e de l a Minas. (Entra Clarinha)Miranda D. Clarinha, prima de minha mulher. O Sr. Alves, meu amigo.(Cumprimentos)Alves Talvez possa te ser til nesta viagem. Tenho amigos que no duvidarointeressar-se pela tua candidatura.Miranda Quando partes?Alves Nestes dois dias.Miranda Bem; havemos de nos ver ainda. Eu te procurarei. Pretendes demorar-teat o tempo das eleies? (Clarinha e Isabel conversam)Alves Talvez seja obrigado a ficar por l um ano.Miranda Que resoluo to repentina foi esta?Alves Eu te digo. Os meus negcios no andam bem; tenho-me visto em sriosembaraos. Se no conseguir at o fim do ano prximo realizar o nosso ativo, nosei o que suceder. Por isso resolvi deixar a casa sob a direo de meu scio; e ireu mesmo fazer essas cobranas.Miranda Sinto que estejas em dificuldades. Lembra-te que nessas ocasies queservem os amigos. O meu casamento trouxe-me alguma fortuna. Far-me-sobsquio dispondo dela.Alves Obrigado, Augusto, obrigado. No ser necessrio; tenho f nos meusdevedores. At amanh. Minhas senhoras!Isabel Boa viagem, senhor Alves! Dizem que as paulistas so bonitas; naturalque o convertam.Alves No creia. minha senhora! Quem resistiu s fluminenses, um herege quej no tem salvao.

    CENA IIIIsabel e Clarinha(Isabel sentada, Clarinha em p)

    Clarinha Vers que ele ainda no vem esta noite.Isabel Quem?Clarinha Onde ests com a cabea, Bela? de quem falvamos ns?Isabel Ah! De Henrique?Clarinha Dele mesmo.Isabel E dizias que ele no vir esta noite?Clarinha o mais certo. Com o pretexto da chuva... Tu no quiseste mand-lochamar para que nos acompanhasse ao teatro... Era o nico meio de faz-lo passara noite conosco.Isabel Sabes que eu no gosto de sair sem Augusto!

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    Clarinha Se formos a esperar por ele, no sairemos nunca! Ento agora que lhemeteram na cabea ser deputado! O verdadeiro ires te habituando. Quem nosacompanhava quando estivemos em Petrpolis, no era Henrique?Isabel Sim... mas hoje no estava com disposio de sair, Clarinha.Clarinha Quem te obrigava a sair? Ele vinha... Dava-se uma desculpa...Isabel Ele vir independente disso.Clarinha O que perdes?Isabel O qu?... Perco o teu vestido de noiva.Clarinha Deveras, minha senhora?... Tambm quer zombar de mim? (Beijando-a)Ah! Se a dificuldade estivesse no vestido!Isabel No h dificuldade alguma.Clarinha Ah! para ti como se estivesse feito.Isabel E h de fazer-se, Clarinha, eu te prometo.Clarinha Ora! Se ele no quiser, menos eu.Isabel Ele quer; no te tenho dito tantas vezes!Clarinha Tu, muitas; mas Henrique nem uma s.Isabel Se foges dele!Clarinha Ento eu que lhe hei de fazer a corte?Isabel Fazer, no; mas aceitar, Clarinha.Clarinha Ora, Bela, o tal sonso do senhor Henrique bem sabe que uma moaquando se esquiva para ser perseguida.Isabel Nem sempre. (Joaquim traz luzes)Clarinha Eu falo das moas; no falo das senhoras casadas. (Olhando apndula) Mais de oito horas!Isabel No tarde.Clarinha Querem ver que foi ao teatro?Isabel Ests impaciente.Clarinha No sabes a razo?... que hoje isso se decide.Isabel Com toda essa pressa!Clarinha Pois hei de estar gastando toa o meu corao? Que contas dareidepois a meu marido? Eu s pretendo querer bem uma vez... Mas essa h de valerpor todas.Isabel Se no encontrares a indiferena e o abandono!...Clarinha Asseguro-te que no hei de sofr-lo por muito tempo.Isabel Ser ele?Clarinha Ah! (Afastando-se)Isabel Que isso? Em que ficou a resoluo de h pouco?Clarinha (Gesto de silncio) Queres que ele suspeite que o estava esperando?(Folheia as msicas no piano)

    CENA IVAs mesmas e Henrique

    Henrique Boa noite, Clarinha!Clarinha Ah! que susto que eu tive! No o vi entrar. (Aperta-lhe a mo)Henrique Bela!Isabel Adeus, Henrique! (Clarinha na janela)Henrique (Meia voz) Incomodo?Isabel Clarinha!

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    Clarinha O que ?Isabel Vem conversar!Clarinha Quem me quer, me procura, minha senhora.Isabel (a Henrique) Sabe com quem aquilo.Henrique Clarinha gosta dos girassis. (A Isabel, baixo) Desejo falar-lhe.Clarinha Tenho esse mau gosto.Henrique Pois eu prefiro as saudades. (Olha Isabel)Isabel (meia voz) No!Clarinha J sabia disso.Henrique (a meia voz) Pela ltima vez!...Isabel (idem) Lembre-se do seu tio!Henrique (idem) Espere-me nesta sala!Isabel (idem) Que loucura esta?Clarinha Se de mim, podem falar alto.Henrique Estvamos to longe daqui!Clarinha No mundo da lua talvez.Henrique Tem razo, Clarinha. Eu sou um louco. (Ergue-se)Isabel Henrique!Clarinha Zangou-se por um gracejo!Isabel Est hoje triste; v se o consolas.Clarinha cousa para que no tenho jeito, Bela.Isabel E dizes que o amas! (Afasta-se)Clarinha (a Henrique) Ainda est mal comigo?Henrique Por qu?Clarinha Pelo que lhe disse.Henrique Nem j me lembro o que foi.Clarinha Muito obrigada!... No esperava tanto da sua amabilidade. (Afasta-se)Isabel (a Clarinha) Vamos jogar!Clarinha Joga com o Sr. Henrique!Henrique verdade! Faamos alguma cousa para passar o tempo.Clarinha Ele passa to devagar nesta casa!Henrique (a Isabel) No quer jogar?Isabel Clarinha est arrufada. No tem graa (Vai ao piano)Henrique Toque um pouco.Isabel J esqueci o que sabia.Henrique Que desculpa, Bela!Isabel No ouve? Iai est chorando. (Sai)

    CENA VClarinha e Henrique

    Clarinha Chamou-me?Henrique No.Clarinha Parecia-me ter ouvido o meu nome...Henrique Foi engano seu.Clarinha Logo vi que no era possvel.Henrique Que eu a chamasse?Clarinha Sim! Est para ser a primeira vez.Henrique Podia ser hoje.

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    Clarinha Como ontem.Henrique Se eu tivesse alguma cousa de agradvel a dizer-lhe!Clarinha E no tem, Henrique? (Entra Isabel)Henrique A minha conversa aborrece de ordinrio.Clarinha A mim?Henrique A todos. No ouve Iai que est chorando?Clarinha Est mas brincando.Henrique Ora! est chorando: v acalent-la, Clarinha.Clarinha No precisa procurar pretextos para afastar-me, meu senhor! Fao-lhe avontade.

    CENA VIOs mesmos, Isabel e Miranda

    Isabel Henrique, eu lhe suplico!Miranda At logo... Como ests, Henrique?Henrique Boa noite, meu tio!Miranda Que tens?Henrique Nada.Miranda Desejo falar-te amanh. (Vai sair)Isabel Augusto! (Dirige-se a ele) Queria pedir-lhe uma cousa.Miranda Dize!Isabel Tens muita necessidade de sair hoje?Miranda Muita.Isabel Podias passar a noite conosco.Miranda impossvel, Bela! As eleies esto prximas, e hoje deve decidir-se aminha candidatura.Isabel Todo o teu tempo agora tomado pela poltica.Miranda Ainda assim tens a melhor parte dele. No sabes quem me faz toambicioso?Isabel Pois bem; toma ch conosco esta noite; e eu te prometo nunca maisqueixar-me.Miranda De todo no posso, Bela; acredita-me. Clarinha e Henrique te farocompanhia.Isabel Sim! Mas eu fico s!Miranda Pouco me demoro.

    CENA VIIOs mesmos e Sales

    Sales D. Isabel!... Doutor Miranda!Miranda Como passou, Sr. Sales?Clarinha (a Miranda) Vai passear na forma do costume?Miranda No d licena?Clarinha Se eu fosse Bela, decerto que no.Isabel Ele precisa sair.Clarinha No se acabam mais essas malditas eleies?Miranda Oh! no pense que me esqueo daquela nossa conversa. Amanh...

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    Clarinha O que tem?Miranda Pretendo falar a Henrique.Clarinha A respeito?...Miranda Como est esquecida! At logo, (a meia voz) minha linda sobrinha! (Vaisair)Clarinha Engraado!... olhe! Faa-se deputado depressa para que Bela fiquedescansada; e quando for Ministro, lembre-se que tenho um favor a pedir-lhe.Miranda Loterias para teatro lrico?Sales Realmente uma necessidade!Clarinha No, senhor; um hbito da Rosa aqui para o senhor Sales.Miranda (rindo-se) Ah! (Sai)Sales Agradeo muito, minha senhora!Clarinha Se h de ter o trabalho de comprar todos os dias uma flor para deitar nagola do casaco...Sales Esta flor vale mais para mim do que uma fita.Clarinha E de longe faz o mesmo efeito!Sales Nunca reparei nisso, D. Clarinha!Clarinha Acredito! O senhor no se v seno no espelho! muito justo. (EntraSiqueira)Sales Confesso que no entendo.Clarinha pena! O senhor Siqueira que lhe explique.Siqueira O qu, D. Clarinha?Clarinha O Sr. Sales no compreende como a gente se pode ver sem ir aoespelho.Siqueira Ah! Facilmente, Sr. Sales! Nos olhos dos outros...Clarinha Aprendeu?... Estimo muito!

    CENA VIIIIsabel, Clarinha, Henrique, Sales e Siqueira

    Siqueira (a Isabel) Miranda saiu?Isabel Neste momento.Siqueira J no pra em casa.Isabel Tem muito que fazer agora!Siqueira Sei; a maldita poltica. O pior vcio que h em nossa terra.Isabel Os homens como Augusto, meu pai, precisam de uma vida agitada.Siqueira verdade. As honras e as altas posies seduzem, mas fazemesquecer um tanto os amigos e at a famlia.Isabel Que quer? Ele tem necessidade de uma ocupao sria. (Joaquim colocadiante de Isabel uma banca volante e a bandeja de ch)Siqueira E a educao dos filhos, e a felicidade domstica?Isabel, (Fazendo o ch) Que tem?Siqueira No so ocupaes srias e dignas mesmo de uma grande inteligncia?Isabel Ah! Mas no bastam para o homem de talento. Estar sempre junto damulher, vivendo para a sua famlia... Isso seria ridculo at.Siqueira No digas isso!Isabel (com ironia) Ns as mulheres, sim, a nossa obrigao!... Enquantosolteiros justo que faam sacrifcios por ns, mas depois! No sabemos que nosamam? No se casaram conosco? Algumas queixam-se porque ficam isoladas e

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    tristes; mas a culpa delas. Para que inventaram os bailes, seno para nosdivertirem enquanto eles tratam dos seus negcios? Clarinha vem tomar ch.Clarinha Obrigada! No quero (Vai ao piano)Siqueira Tens razo, Bela! no no que dizes mas no que sentes. Atualmente umamoa deixa a famlia, separa-se dos pais, com o homem a quem ama para ter umcompanheiro de sua vida; e o que ela encontra no casamento a solido e a viuvezde todas as afeies.Isabel Estava gracejando, meu pai. No tenho razo de queixa. Meu maridocerca-me de tantas atenes. (Pausa)Siqueira Que da minha afilhada? No me esqueci dela. (Tira balas do bolso)Isabel Est l dentro. Joaquim, dize a Rita que traga Iai. (Joaquim vai porta.Tomam ch)Clarinha Sr. Sales!Sales Minha senhora!Clarinha O senhor no canta?Sales No, D. Clarinha.Clarinha Mas eu creio que j o ouvi na Campesina.Sales Nem sou scio.Clarinha Ento seria algum que se parece com o senhor.Isabel Canta com Henrique.Henrique Estou rouco.Clarinha No faz mal. o seu estado natural.Henrique Excelente razo. Serve para hoje e para outra vez.Clarinha Oh! Guarde na carteira, que eu terei o cuidado de no convid-lo mais.Isabel Esto sempre brincando.Siqueira J me parecem casados.Joaquim Iai est dormindo, sim senhora.Siqueira Deixe-a dormir.Clarinha (a Sales) Deveras o Sr. no canta?Sales No tenho voz, D. Clarinha.Clarinha Pois ensaiemos o dueto conversando. A vai o acompanhamento.(Pausa)Siqueira (a Henrique) Est jogando a pacincia? jogo de velho.Henrique Ao contrrio. Os velhos j no esperam; e por isso no precisam depacincia.Siqueira Oh! se precisam! Sobretudo neste tempo de cosmticos e chins, emque j no se tolera o desleixo daquele que parece velho.Clarinha Ento, Sr. Sales, no diz nada?Sales Estou ouvindo.Clarinha O Sr. dava um bom deputado. Por que no se apresenta agora?Sales A senhora tem lembranas!Clarinha Seriamente! No dizem que todas as opinies e todas as classes devemser representadas no parlamento?Pois a moda ainda no tem o seu rgo; pelomenos uma vez que fui Cmara no vi l nenhum figurino. Quanto ao Senado, nose fala; so quarentes. Ora, se o senhor se apresentasse, era sem contestaocandidato pela Provncia da Rua do Ouvidor.Sales Est brincando, D. Clarinha? Pois olhe; no me faltam elementos. Se ogoverno quiser!Clarinha Ora se quiser! Assim achasse ele uma dzia como o Sr.

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    Siqueira (a Henrique que baralha as cartas) E negam que este mundo no andas avessas! Quando eu tinha sua idade, deixava o baralho s velhas que seferravam na bisca, e ns os rapazes armvamos um joguinho de prendas, ainda queno fosse seno para ter o prazer de abraar uma moa bonita como Clarinha, e pro tal senhor Sales de lampio de esquina.Henrique Ele representa melhor de candeeiro de sala. No v como est tolustroso!Sales Estava admirando o seu vestido. realmente de muito bom gosto.Clarinha Sinto no poder lhe agradecer... Foi um presente.Sales No importa. A senhora que lhe d realce.Clarinha Desta vez, sim senhor, obrigada. Mas agora reparo. Est com umasluvas muito lindas.Sales Quer zombar de mim.Clarinha No sou capaz. Deveras so muito elegantes.Sales Talvez a senhora no acredite! Atualmente no se encontra um par destasluvas em todo o Rio de Janeiro. Pode correr toda a Rua do Ouvidor.Clarinha So to raras assim?Sales uma cor muito distinta. No acha?Isabel Que conversa to animada!Sales D. Clarinha no quer cantar.Clarinha O Senhor Sales estava contando-me a histria de suas luvas gris-perle.(Deixa o piano)Isabel Ah! devia ser interessante.Sales D. Clarinha tem muito esprito.Clarinha Parece-lhe?... Estou quase duvidando. (Henrique ergue-se e consulta orelgio)Siqueira Que horas tem?Henrique Quase dez.Siqueira Boa noite!Isabel Ainda cedo, meu pai!Siqueira Vou amanh para Petrpolis...Isabel To depressa! Eu tenho muitas queixas suas. Agora quando vem cidade,apenas passa conosco um ou dois dias. J no nos quer bem!Siqueira Estou velho... Custa-me a passar muito tempo fora de casa.

    CENA IXHenrique, Sales, Isabel e Clarinha

    Henrique Ainda fica, Sr. Sales?Sales No, senhor. Vamos juntos.Isabel muito cedo. Para serem amveis, deviam ficar fazendo-nos companhiaat que Augusto voltasse.Henrique No posso. So mais de dez horas.Clarinha To tarde. Deve estar caindo de sono!Sales Na sua presena?... No possvel, D. Clarinha.Clarinha Isto quer dizer que a minha presena produz o mesmo efeito que o chverde! Ataca os nervos. Obrigada pela fineza, Sr. Sales.Sales Perdo! Eu no tive inteno de dizer semelhante cousa.Henrique Bela!

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    Isabel Adeus!Henrique (baixo) At logo!Isabel (alto) At amanh!Henrique (baixo) Eu voltarei, Bela! Para v-la uma ltima vez!Isabel No! No volte! Eu lhe suplico.Sales D. Isabel!Isabel Passe bem, Sr. Sales.Henrique Adeus, Clarinha!Clarinha Adeus! Pode voltar amanh, que j no ter o desgosto de encontrar-me aqui.Henrique Nem amanh, nem depois, Clarinha. Talvez nunca mais. Quem sabe oque pode suceder? Adeus!Sales Minhas senhoras!

    CENA XIsabel e Clarinha

    Clarinha Tu me emprestas o teu carro?Isabel Onde queres ir? Est s tuas ordens.Clarinha Vou para o Andara.Isabel Que quer dizer isto?Clarinha H oito dias no vejo minha tia. Demais tu j deves estar aborrecida demim.Isabel Henrique te disse alguma cousa?Clarinha Pois no viste?Isabel O que? que te disse ele?Clarinha No disse nada! o seu costume.Isabel Mas escuta...Clarinha Faa-me um especial favor, minha prima. No falemos mais disto.Isabel Ests agastada e no tens razo.Clarinha Nenhuma. Eu j sabia.Isabel No tens razo, no, Clarinha. Se Henrique te trata com indiferena, aculpa tua.Clarinha Cada vez a melhor.Isabel Que necessidade tinhas de chamar o Sales para junto de ti, e conversarcom ele daquele modo?Clarinha Havia de estar muda?Isabel Anda l! Querias te vingar de Henrique. No sabes quanto isso perigoso.Clarinha (rindo-se) Com o Sales? (Toma o leno no piano e acha uma rosa)Isabel Com qualquer. Dessas conversas inocentes nasce muitas vezes umainclinao.Clarinha No calunies o pobre moo. Coitado! Ficou to atrapalhado que deixoucair a rosa da casaca. (Atira a rosa ao cho)Isabel Talvez Henrique se ressentisse de ver a intimidade com que o tratavas.Clarinha No faz mal. J no me inquieto com isso.Isabel Falas srio?Clarinha (beijando-a) Est tudo acabado, Bela. Vou dormir tranqila.Isabel Olha para mim, Clarinha!Clarinha Deixa-me!

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    Isabel Ests chorando!Clarinha Eu, no!... at amanh. (Foge)Isabel Vem c! Ouve!

    CENA XIIsabel e Joaquim(Isabel toca o tmpano e entra no seu toucador)

    Isabel (de dentro) Joaquim!Joaquim Minha senhora!Isabel Vai fechar a porta; teu senhor volta mais tarde.Joaquim Eu posso esperar por ele.Isabel No! Fecha a porta. Quero deitar-me.Joaquim Minha senhora est doente?Isabel Estou me sentindo constipada. Se Henrique vier... Talvez ele volte parafalar com teu senhor... Se ele vier, tu lhe dirs que j esto todos recolhidos.Ouviste?Joaquim Sim, senhora. (Fecha as janelas e apaga as luzes. Isabel sai de roupode dormir, trazendo uma luz)Isabel Toma o dinheiro para as compras. V se nos do amanh melhor jantar.Teu senhor hoje passou mal.Joaquim Eu reparei, sim senhora!Isabel Est bem. Vai!Joaquim Deus d boa noite minha senhora.Isabel Obrigada! (Pausa)

    CENA XIIIsabel e Henrique(Isabel vai recolher; Henrique aparece)

    Henrique Perdo, Bela!Isabel Fuja desta casa, Henrique!Henrique O que receia?Isabel Oh! no por mim, por ele, pelo senhor que eu receio... que eu temo.O amor de uma mulher encontra-se a cada momento; a afeio de um amigo comoele, de um pai, s Deus a pode dar.Henrique Onde vai? oua-me por compaixo.Isabel Vou mandar abrir as portas e trazer luzes.Henrique Bela, a mulher de meu tio, devia saber que para mim sagrada.Isabel No pareceHenrique No tenho fugido da sua presena? H quantos dias no vinha aqui?Isabel No devia vir a esta hora.Henrique to grande ofensa v-la pela ltima vez!Isabel No o compreendo.Henrique Amanh...Isabel Acabe!Henrique Amanh parto para Montevidu. Deixo a paz e a felicidade nesta casa,na qual nunca mais devo entrar.

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    Isabel E Clarinha?Henrique Que tenho eu com ela? Que me esquea.Isabel Mas ela o ama!Henrique Ela!...Isabel (severa) Henrique!Henrique Ah! Eu sinto que sou um miservel. No v? A vergonha me queima asfaces.Isabel Ame Clarinha! Aceite esse primeiro amor de um corao puro. Ela lhe dara felicidade.Henrique Pede-me um impossvel. No lhe basta deixar de ver-me e parasempre, Bela!Isabel Mas esse projeto uma loucura.Henrique Que importa, se a sua tranqilidade.Isabel Comprada com a desgraa do seu tio. A afeio que Augusto lhe tem, seu a conheo. uma ternura de me, disfarada pela severidade de um pai. Comosofrer essa ausncia?Henrique Se ele pudesse suspeitar o que se passa em mim, seria o primeiro aexigir que partisse. H muito o devia ter feito.Isabel Reflita, Henrique!Henrique No posso arrancar minh'alma aos pedaos e atir-la para longe demim. preciso que eu a arraste comigo, Bela: e a desterre deste lugar onde cadaum dos seus pensamentos uma infmia. No devia ter vindo... Mas partir semdizer-lhe uma palavra, sem dizer-lhe adeus... o ltimo adeus..Isabel Ainda nos veremos um dia!Henrique Nunca!Isabel (comovida) No me roube essa esperana, Henrique!Henrique (terno) Bela!Isabel (recobrando-se) Adeus! (Estende-lhe a mo com frieza e esforo)Henrique Tem razo! Adeus, minha irm.Isabel (ouvindo bater porta da rua) Meu marido! Eis o que eu temia, Henrique!Henrique (quer sair) No posso v-lo!Isabel (com imprio) Fique!Henrique No sei fingir, Bela!Isabel Mas esse mistrio pode condenar-me, Henrique!Henrique A ti, a mais pura e a mais santa das mulheres!... Impossvel. (Abre umajanela) Ningum me ver. A noite est escura e o jardim deserto.Isabel Mas uma imprudncia...Henrique (na janela, j oculto pelas cortinas) Lembre-se alguma vez do mseroque enlouqueceu porque teve a desgraa de am-la mais do que a um pai...Isabel Adeus! E esquea-me...

    (Miranda entra e ouve as ltimas palavras de Isabel que enxuga uma lgrima evoltando-se acha-se em frente do marido que se tendo precipitado, a arredaviolentamente e corre janela)

    CENA XIIIIsabel e Miranda(Miranda corre janela e j no v o vulto; luta, perplexidade entre o mpeto delanar-se pela janela e dirigir-se mulher)

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    Miranda (rindo convulso) Que importa! um homem qualquer... o instrumento dadesonra! O pretexto do crime!Isabel (espanto) Ah! (Pausa)Miranda (toma a luz e esclarece o rosto de Isabel) Ainda cora!Isabel De indignao, senhor!Miranda Nem uma palavra!Isabel Oh!. no me defendo... Se eu fosse criminosa, j estava morta devergonha a seus ps.Miranda Quem era esse homem?Isabel Oh! No! Nunca!Miranda Quem era esse homem, senhora? (Pausa) escusado o silncio.Isabel Que diz, senhor?Miranda (mostrando a rosa, que apanha aos ps de Isabel) Por quem, meuDeus!... Por um Sales!... (Cobre o rosto com as mos e solua. Isabel olha-o comdesespero)Isabel Eu sou inocente, Augusto!Miranda Vi tudo, senhora!... Vi... No cuide que a espiei. Oh no! minhaconfiana era cega. Mas disseram-me que se tinha recolhido incomodada, e euabafei os meus passos para no perturbar o seu sossego! (Ri-se) Imbecil! (Mirandafecha as portas, vai ao gabinete; traz um par de pistolas. Isabel, enquanto ele sai,ajoelha)Isabel D-me coragem... meu Deus!Miranda Ele vai julgar-nos. (Carrega as pistolas)Isabel um crime intil, senhor. Sei respeitar a sua e a minha honra.Miranda Intil a vida que me deixou depois de calcar aos ps a minhafelicidade. (Aponta)Isabel Oh! (Grito de pavor. Iai bate na porta, chamando: papai)Miranda Minha filha! Ah! preciso viver para ela... e para o mundo! Quanto avos... morremos um para o outro.

    ATO SEGUNDOEm casa de Miranda Varanda interior.

    CENA PRIMEIRARita e Joaquim(Joaquim deita jornais e cartas sobre a mesa. Rita sai da janela)

    Rita O carro j est pronto, Joaquim?Joaquim Quem mandou aprontar?Rita Ningum. Iai no passeia todos os dias?Joaquim Passeia com voc.Rita Pois ento?Joaquim Ningum deu ordem.Rita Se a gente for esperar por isso, no se faz nada. Voc v quando paradeitar o jantar; pergunta-se ao Senhor, ele diz: "Se a Senhora mandar". Vai-seperguntar Senhora, ela diz: "Se o Senhor mandar". E assim tudo.Joaquim Que tem voc com isso?Rita que se a gente no fizer as cousas, ningum manda fazer.

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    Joaquim Branco l se entende. V vivendo sua vida, Rita, que Senhor muitobom.Rita Quem no sabe disto? Minha Senhora, essa mesmo uma santa. Olhe,Joaquim! Tenho uma pena de ver como ela se amofina. E por causa de seuSenhor!Joaquim Cale a sua boca, Rita. No se meta onde no chamada.Rita Mas, diga uma cousa! Antes de Nhanh Clarinha casar, no andava tudo todireito?Joaquim Tal e qual, como agora.Rita Que histria! Esta casa era uma alegria!... Sinh brincava que parecia umamocinha: Nhanh estava sempre rindo e cantando; e Senhor moo Henrique essenem se fala. Depois daquela doena grande de meu Senhor que tudo mudou.Joaquim A vem Senhora; bico!

    CENA IIOs mesmos, Isabel e Iai

    Isabel (trazendo Iai pela mo) Senhor j saiu?...Joaquim No Senhora. Est no gabinete falando com um caixeiro do Sr. Souto.Isabel Agora Iai vai passear, sim?... Passear no carro com Rita!Rita Venha, Iai!Isabel Olhe, Rita est chamando. No d um beijo na sua Mame, no?... beija.Ah!... Agora v dar um em Papai para Iai ficar bonita. (Rita toma a menina)Rita Diga Mame adeus!... Diga... Ora Iai feia.Isabel Tem cuidado com o vento! Ela no est boa.Rita Eu abaixo sempre as vidraas do carro.Joaquim O tempo est muito bom, sim Senhora.Rita Vamos tomar a beno a Papai?Isabel Adeus!... (a Rita) no te demores muito.

    CENA IIlIsabel e Joaquim

    Joaquim Esta carta para minha Senhora.Isabel Entrega a teu Senhor.Joaquim Mas ele no gosta.Isabel Rena com as outras.Joaquim Minha Senhora quer ler os jornais?Isabel Depois, se ficarem a.Joaquim Mando pr o almoo?Isabel Teu Senhor j pediu?Joaquim Ainda no, Senhora.Isabel Escuta! ele anda doente?Joaquim No, Senhora.Isabel Ontem estava to plido...Joaquim Meu Senhor trabalha muito.Isabel Passa as noites a escrever! E isso faz-lhe tanto mal!Joaquim Esta noite ele dormiu cedo!

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    Isabel Cedo! s trs horas ainda estava trabalhando.Joaquim E minha Senhora viu?Isabel No lhe digas isto. Acordei por acaso; pareceu-me ouvir gemer... Vimescutar naquela porta...Joaquim Quem sabe se no foi minha Senhora que passou ali a noite chorando.Isabel Chorando por qu?... No tenho motivos de chorar. Vivo to satisfeita! Tuno vs?...Joaquim Minha Senhora me perdoa. Eu no disse.Isabel Sabes o que me aflige? que falte alguma cousa a teu Senhor. Ele nuncase queixa! Mas deves ver o que ele deseja, para se fazer imediatamente. A roupaest pronta: vou dar-te daqui a pouco. Por que no trazes a outra?Joaquim A outra?...Isabel Sim; para mandar lavar.Joaquim A outra... j foi, sim, Senhora.Isabel Joaquim!... Que ordem te dei eu?Joaquim Que minha Senhora mesma que queria tomar conta da roupa de meuSenhor.Isabel E no fizeste caso?...Joaquim Meu Senhor a semana passada me disse: "Joaquim, no quero quetua Senhora tenha motivo de afligir-se. Ela no deve se amofinar com tantas cousas.Manda lavar minha roupa fora".Isabel E tu mandaste?Joaquim Que havia de fazer, minha Senhora?Isabel Tens razo. (Enxuga a furto uma lgrima)

    CENA IVOs mesmos e Miranda(Joaquim afasta-se vendo o Senhor. Miranda cumprimenta friamente Isabel: senta-se e l as cartas)

    Miranda Joaquim! Esta carta de tua Senhora.Joaquim Veio com as outras. (Entrega a Isabel)Isabel (a meia voz) Espera!... (Alto, lendo) uma carta de Nhanh D. Clarinha!...Ah! Ela vem hoje de Petrpolis.Joaquim Ento no pode tardar.Isabel Talvez venha almoar aqui. (Deita a carta aberta sobre o aparador)Miranda (a Joaquim) Esse bilhete de camarote... a tua Senhora. O carto doClube... hoje!... Hs de preparar o carro!Joaquim Mando aprontar o carro do Senhor moo Henrique?Miranda J pediste licena a tua Senhora? Faze o que ela mandar. (Isabel acenaa Joaquim que sim)

    CENA VIsabel e Miranda

    Miranda Senhora!... Nesta carteira encontrar toda a sua legtima.Isabel No entendo! Que significa isto?

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    Miranda Quando nos... Quando seu pai ma entregou, ela estava em aplices eprdios. Foi necessrio vender tudo, vender pelo seu justo preo. Por isso espereiquase um ano!... S agora acabo de receb-la. Deus sabe quantos amargores mecustou cada dia que demorei esta restituio.Isabel Senhor! Esta riqueza lhe pertence e nossa filha! Eu no a quero, no aaceito.Miranda verdade que uma lei me daria o direito metade dela, se ainda fosseseu marido. No o sou!... Esta riqueza sua, unicamente sua. Pode dispor delacomo entender: est em vales ao portador. Para minha filha e para mim basta o meutrabalho.Isabel Mas, Senhor! Quer isto dizer... que me despede?Miranda No lhe merecia semelhante suposio! Isto quer dizer que no minhainteno conden-la a sofrer-me. Nesta casa sabe que Senhora; todos lheobedecem. Como Senhora viver nela enquanto for de sua vontade; como Senhoraa deixar quando lhe aprouver.Isabel Senhora, verdade!... E antes me queria escrava, do que sofrer o luxodesse generoso desprezo que me cerca de tantos cuidados... E eu no o mereo,no, Senhor!Miranda No falemos do passado. (Apontando para a carteira) Acabo de resgat-lo.Isabel Oh! No h razo que me faa consentir neste sacrifcio.Miranda H uma, Senhora, que a far consentir: e que eu no recebo esmolasde estranhos.Isabel De estranhos!Miranda Se no aceita seu dote, neste caso sou eu que me vejo obrigado adeixar esta casa.Isabel D-me, Senhor! No tivesse eu uma filha, sei o que faria desse papel.

    CENA VIOs mesmos e Sales

    Sales Desculpe-me se usei da antiga liberdade!Miranda Oh! o Senhor Sales, minha mulher! (A Sales) Esta casa sua.(Apertando a mo)Sales Obrigado. Vossa Excelncia tem passado bem? D. Isabel! (Cumprimenta)Miranda uma surpresa agradvel a sua visita.Sales H quase um ano que no tinha o prazer de v-lo.Miranda Quase um ano! Oh! lembro-me perfeitamente (A Isabel) Falamos tantasvezes do Senhor; no verdade?Isabel Ah!...Sales Est incomodada, D. Isabel?Miranda Sofre agora dos nervos. No nada.Sales Deve passar algum tempo em Petrpolis com seu cunhado. D. Clarinhaest to corada!Miranda Esteve com eles?Sales Vejo-os todos os dias. Logo que cheguei da Europa, aconselharam-me quefosse passar l o vero.Miranda Ah! Foi Europa! No sabia.

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    Sales Pois eu despedi-me! verdade que no tive a honra de encontrar a VossaExcelncia.Miranda (sorrindo) Mas encontrou a Senhora.Sales Tambm no. Disseram-me que Vossa Excelncia estava gravementedoente, e que a Senhora no recebia. Deixei um carto. No lho entregaram?Miranda natural.Sales Depois soube que tinham ido para a fazenda.Miranda Estivemos algum tempo, logo depois do casamento de Henrique.Sales Que se fez to de repente!Miranda Como todos os casamentos!... Pois agora est de volta, Senhor Sales,espero que continue a honrar esta casa.Sales Com muito gosto.Miranda Minha... mulher aprecia infinitamente a sua amvel companhia. E eu...sabe quanto o estimo... meu amigo... (Aperto de mo)Sales Tanta bondade!Miranda Ia sair... D-me licena. (Isabel ergue-se)Sales Pois no! Sem cerimnia.Miranda Fique conversando com minha mulher... Ela estimar muito sabernotcias... de Petrpolis. Use nesta casa de toda a franqueza.Isabel O almoo...Miranda Ah! no esperem por mim. (Sai)

    CENA VIISales, Isabel, Clarinha e Henrique

    Sales Sua filhinha est muito crescida, D. Isabel?Isabel Oh! como sofro, meu Deus! Sinto-me realmente doente.Sales Deve tratar-se.Isabel (a sair) Desculpe-me; mas eu no posso!...Sales Desejo que se restabelea. (Corteja)Clarinha Abraa-me outra vez. Que saudades, ingrata!Isabel E tu?Clarinha Queixa-te de Henrique.Henrique Adeus, Bela. No creia.Isabel So desculpas.Henrique Augusto?Isabel Saiu.Clarinha Eu te contarei tudo. Temos muito que conversar; como est meu tio?...E Iai?...Isabel Todos bons. (Afastam-se)Sales Voltou ontem muito tarde?Henrique Era noite j.Sales Foi feliz?Henrique Oh! uma batida cheia!... Os ces levantaram uma anta, a maior quetenho visto! Os outros atalharam no rumo em que vinha a caa: mas eu fiquei juntode um crrego. "E aqui a espera!" Nisto vejo relampear entre folhas. Mal tive tempode faiscar. Um tiro soberbo!Sales a sua paixo!

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    Henrique quando vivo. Quem no caador, no pode compreender asemoes de uma espera.Sales Mas D. Clarinha anda sempre assustada.Henrique Mulheres!...Clarinha J est por aqui?Sales Vim ontem mesmo.Clarinha E retira-se com a nossa chegada!Sales Ia sair, quando entravam. D. Isabel est incomodada.Clarinha Ah! que tens?Isabel No sei, sinto-me melhor.Sales A Senhora tambm deve estar fatigada da viagem. Voltarei noite.Clarinha At logo. J notaste, Bela, o Senhor Sales, depois que foi Europa,perdeu o hbito da rosa!...Sales A minha rosa abandonou-me, D. Clarinha.Henrique Onde deitariam a nossa mala?Isabel Est no seu quarto. Quer entrar?

    CENA VIIIIsabel e Clarinha

    Clarinha Agora que reparo. Ests realmente plida.Isabel No faas caso! Ando muito nervosa.Clarinha Ser algum irmozinho de Iai?Isabel Coitadinha! Este prazer nunca h de ela sentir.Clarinha Srio?... Mas vamos a saber. Que vida a tua?Isabel Sempre a mesma.Clarinha No o que me disseram em Petrpolis.Isabel O que te disseram?Clarinha Que j no sais, no passeias, e ests sempre metida em casa. Depoisque me casei, nunca mais foste ao teatro.Isabel No tenho tempo agora! Preciso cuidar de minha casa, vivo para minhafilha...Clarinha Ora no vejam esta me de famlia com 23 anos e com este rostinho demenina... Est me parecendo uma cousa.Isabel Podes acreditar...Clarinha Est me parecendo que o Senhor meu tio depois que se viu deputado,comendador e no sei que mais, j no se lembra que tem uma mulherzinha tobonita, e deixa-a ficar em casa enquanto ele anda por a todo repimpado na suafarda.Isabel Como s injusta! No h divertimento no Rio de Janeiro em que ele seesquea de mim. Quando fores sala vers... Os vasos esto cheios de cartes debailes, concertos e teatros. Olha! (mostra os cartes) ficam a porque j no tenhogosto.Clarinha Ou porque no tens com quem ir?Isabel Como no tempo em que estavas aqui!Clarinha Parecia de propsito. No havia noite de baile, em que no se tratassede eleies.Isabel Agora no e assim... Antes fosse!Clarinha Por que razo?

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    Isabel No sai noite alguma, sem primeiro saber se eu quero ir a alguma parte.Clarinha Bravo! Assim que eu entendo. Est tomando jeito.Isabel Mas isso aflige-me. Deixa de distrair-se por minha causa.Clarinha No faz mal. Um marido bem procedido no se diverte quando suamulher fica em casa. Nem sei donde te vieram semelhantes idias.Isabel Tu amas teu marido, Clarinha?Clarinha Que pergunta!Isabel Ento deves compreender que ele tem necessidade de alguma cousa quepreocupe o seu esprito. Um homem no vive s pelo corao como ns.Clarinha O que eu compreendo que eles tm de obrigao de nos fazer felizes.

    CENA IXAs mesmas e Henrique

    Isabel Est ouvindo?Henrique comigo?Clarinha Chegou muito a propsito, meu Senhor.Henrique Cousa rara nos maridos.Clarinha Participo-lhe que estes oito dias passo com Bela.Henrique No eram trs?Clarinha Mudei de opinio.Isabel Fizeste muito bem.Henrique Neste caso virei busc-la na segunda-feira.Clarinha Que tem a fazer l? Deixe que os pssaros e as pacas descansem estetempo.Henrique E que fico eu fazendo aqui?Clarinha Fazendo-me companhia.Henrique Ora! H oito meses no fao outra cousa.Clarinha Era bom que tomasse algumas lies com seu irmo, e visse como ummarido deve tratar sua mulher.Henrique Ah! por isso que deseja que eu fique?Clarinha No se lhe pode ocultar cousa alguma.Henrique Pois eu fao-lhe a vontade, mas com uma condio.Clarinha Conforme for ela.Henrique H de pedir a Bela, que lhe ensine como a mulher deve amar seumarido, desculpar-lhe todas as faltas...Isabel Eu dispenso o meu elogio, Henrique.Clarinha Acrescente: porque ele lhe faz todas as vontades.Henrique Oh! ela merece tudo.Clarinha Muito obrigada. Eu no mereo nada.Isabel Deixem-se disso.Henrique Ento est decidido. Ficamos oito dias.Isabel Nem os deixo ir antes.Clarinha E quando for levo-te comigo: j vou te avisando!Isabel Se Augusto quiser.Henrique At j.Clarinha Onde vai?Henrique Vou dar um passeio, enquanto meu tio no chega.

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    CENA XIsabel e Clarinha

    Clarinha Viste?Isabel Vi, Clarinha! Vi que Henrique no feliz. E no foi isto o que meprometeste.Clarinha Que posso eu fazer, Bela? Fomos felizes nos primeiros meses. Tusabes como ele me amava, quando nos casamos.Isabel Sei e no fazes idia do alvio que eu sentia durante a molstia deAugusto vendo nascer esse amor.Clarinha No pensavas decerto que havia de acabar to cedo? Henrique j nome ama, Bela.Isabel Porque no queres.Clarinha Sou eu que no quero?Isabel Uma mulher bonita e inteligente como tu, Clarinha, que no teve adesgraa de perder a estima de seu marido, s o no obriga a am-la, quando noquer.Clarinha Gosto de te ouvir falar!... Henrique no pra em casa: anda sempre emcaadas, ou passeios. Volta fatigado e aborrecido; tudo lhe enjoa; tudo o contraria.Isabel E tu em vez de agrad-lo, e satisfazer-lhe todos os caprichos, ficasarrufada, no ?Clarinha Quem pode suportar isto, Bela?Isabel Foi por esta razo, que eu te perguntei se amavas teu marido.Clarinha Quem o sabe melhor do que tu?Isabel No me compreendeste. No te perguntei se amavas Henrique; porm, seamavas teu marido. Parece-te uma extravagncia, no assim?Clarinha Deveras no te entendo.Isabel Como amamos ns o homem que escolhemos e com quem nos casamos?Como moas que no conhecem o mundo, e apenas sabem da vida os sonhosdoirados. um bonito romance que fazemos, todo cheio de emoes, de sorrisos, ede flores. Foi assim que eu amei Augusto e que tu amaste Henrique.Clarinha E ainda no mudei.Isabel Ests bem certa disso?... O casamento mata esse primeiro amor que duraalguns meses, o primeiro ano quando muito. Desaparece a iluso: o marido no mais um heri de um bonito romance, torna-se um homem como qualquer outro, es vezes mais ridculo, porque o vemos de perto. Ento sente-se n'alma um vcuoimenso que preciso encher.Clarinha Porm tu me justificas.Isabel Ouve. Nesse momento preciso toda a coragem seno o tdio e amonotonia de uma vida j sem esperanas nos invade. A imaginao procura nomundo o que no acha na famlia! E sabes o que se encontra?... Pelo menos omartrio de uma vida inteira.Clarinha E tu sentiste isso, Bela?Isabel Eu?... Oh! no o digas a ningum! Senti os desenganos das minhas maisdoces esperanas, senti morto o meu primeiro amor, e tive medo que uma afeioestranha se insinuasse em meu corao. Via fugir a pouco e pouco esse amor deque tinha vivido tanto tempo e ao qual dedicara toda a minha existncia. Achava-meto s no mundo, longe da famlia que eu tinha deixado, e mais longe da novafamlia que eu ainda no sabia compreender. Era um deserto, em que minha alma

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    vagava sem abrigo. Oh! nunca sofras, tu, Clarinha, o que eu sofri!... Mas Deussalvou-me. Amei meu marido.Clarinha Como?Isabel Amando minha filha. Refugiei-me nessa afeio. A encontrei de novo ohomem que eu tinha amado: associei-me a essa vida que outrora me parecia toseca e to egosta: acompanhei-o de longe, e vi quanta generosidade e quantadelicadeza encobre a sua reserva. A minha solido foi-se povoando: o governo dacasa, os cuidados domsticos, o desejo de tornar doce e cmoda a existnciadaquele que se dedicava felicidade da famlia, deram-me as emoes maisagradveis e mais puras que tenho sentido. Queres que te confie uma cousa? Omeu maior prazer ler os discursos de Augusto. No te rias!Clarinha (rindo) Hs de entend-los perfeitamente!Isabel No os entendo, no! Mas no modo de dizer, na maneira digna por que eleataca um adversrio, no generoso entusiasmo com que defende uma idia, nafirmeza e sinceridade de sua palavra, aprendo a conhecer a nobreza de seu carter;e descubro muitas vezes uma qualidade que ainda no se me tinha revelado. Olha,Clarinha: um erro nosso, muito comum. Admiramos os estranhos pelaconsiderao de que eles gozam na sociedade; e entretanto uma mulher, em vez deacompanhar o marido em seus trabalhos, em suas empresas, em suas glrias, querach-lo tal qual ela o sonhou, na obscuridade e no repouso da vida domstica!Clarinha Assim tu tens hoje por teu marido uma verdadeira paixo.Isabel Mais do que paixo; porque tambm estima, respeito e admirao.Clarinha E teu marido te paga com o mesmo amor?Isabel Ele?... No sei, Clarinha... Nunca lhe perguntei...Clarinha Ah! no sabes!... Sentes tudo isto, dizes que uma mulher bonita einteligente basta querer para ser amada por seu marido, e no sabes se teu maridote ama?... Pois minha rica prima, a tua histria muito bonita, mas no me agrada!Isabel Asseguro-te que sou mais feliz do que mereo.Clarinha Ora, pois no est se vendo nos teus olhos! Se a felicidade domstica no e assim que se chama? tem esse sorriso triste, e esse rosto plido, podesficar certa que no a deixo entrar na minha casa. No! Prefiro mil vezes asespingardas, os ces de caa e os aborrecimentos de Henrique.Isabel Escuta!Clarinha Vamos ver se Augusto j veio. (Pausa) Ento no vens?Isabel No!... Inda no chegou!Clarinha No importa! Quero correr a casa! H tanto tempo!... Eu tambm tenhoaqui as minhas recordaes! Vou te mostrar o lugar onde Henrique confessou aprimeira vez que me amava... quando os mdicos declararam que Augusto estavasalvo! Vem!Isabel No! No posso agora... No gosto de entrar l.Clarinha Por que motivo?Isabel Ele pode suspeitar que desejo conhecer os seus segredos!...Clarinha Meu Deus! Quanto mistrio para se amar seu marido. Deste modoHenrique pode ficar descansado.

    CENA XIAs mesmas e Miranda

    Miranda (entrando) Adivinhei que j estava aqui.

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    Clarinha Oh! Excelentssimo!Miranda Sempre bonita e sempre alegre!Clarinha o que me vale!... Se eu no trouxesse a alegria comigo, morria detristeza naquele desterro de Petrpolis.Miranda Como est Henrique?Clarinha Bom; j anda passeando. Mas que isto, meu tio? Cabelos brancos?...Miranda Estou velho, Clarinha.Clarinha Com trinta anos!... E de repente!... Quando aqui estava, no tinhanenhum!Miranda Tinha e muitos.Clarinha No, Senhor. Nunca vi.Miranda Porque os pintava! Era uma fraqueza minha... Ainda fazia a corte a...Bel... a sua prima. No queria parecer velho.Clarinha Mas, agora est homem srio: j no se ocupa com essas ninharias. Strata de ser ministro!Isabel (a meia voz a Clarinha) E h de ser!Miranda No tenho semelhantes aspiraes! A poltica faz-me s vezes de umvcio. D-me as emoes que os outros encontram no jogo, ou na embriaguez.Atordoa-me: nada mais!...Clarinha No lhe gabo o gosto.Miranda Este mundo, Clarinha, um precipcio que todos devemos atravessarpelo estreito passo da vida. O imprudente pra no meio e olha o fundo, vacila e cai. preciso fechar os olhos e correr, para no sentir a vertigem.Clarinha Mas essa teoria s para os homens.Miranda (sorrindo) No a aconselho a ningum.Clarinha O que verdade que a poltica tem-no feito velho, magro, feio, e atdistrado.Miranda Sei que tenho todos os defeitos, mas ainda no tinha reparado nesseltimo.Clarinha Pois no, sempre que vinha da rua apertava a mo de Bela.Miranda No apertei agora! Ah! foi realmente uma distrao. Outra vez no caireinesta falta.Clarinha Ainda est em tempo.Miranda Minha mulher...Clarinha Minha mulher?... Diga a Senhora. mais aristocrtico!Miranda Be...la dispensa. (Afasta-se)Clarinha Mas eu no dispenso.Isabel (gesto implicante) Deixa-te disso.Clarinha Se uma cousa que eu achava to bonito! E tinha pedido a Henriqueque tomasse com o Senhor umas lies de bom marido!... Mas estou vendo que omestre desaprendeu!...Miranda No diga isto. (Vai a Isabel) Est satisfeita? (Estende a mo e tocaapenas a de Isabel)Clarinha Deveras, meu Senhor!... Era assim que apertava a mo de Bela? Tenhaa bondade! (Miranda recua vivamente)Isabel Clarinha!Clarinha Ora! No vejam que sacrifcio beijar uma testa to bonita?Miranda J estamos velhos: essas ternuras so ridculas.Clarinha Diga o que quiser. H aqui alguma cousa que eu hei de descobrir.

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    Miranda Que lembrana... Por uma ninharia?... Fao-lhe a vontade. (Acena quebeija)Isabel (a meia voz) Perdo!... Eu no tenho culpa!Clarinha Assim que se acabam com esses arrufos... Agora, Bela, d-me dealmoar que estou caindo de fome. Henrique que almoce onde estiver!Isabel No queres mudar o vestido?... Teu quarto est pronto! (Vai saindo, entraHenrique da rua)Clarinha Vamos. (A Miranda) Vossa Excelncia permite. (Chegando-se a meiavoz) No me queira mal. Sei que os homens nunca devem ceder; mas, no possov-lo agastado com Bela! E por qu? Por alguma zanguinha! Alguma teima quenada vale...Miranda Justamente!... Ela teima em no dar uma ordem, com receio decontrariar-me; e o que me contraria que esperem por mim. Tudo quanto elamandar acho bem feito!Clarinha Delicadeza da parte de Bela... No repare nisso... Ela lhe quer muitobem!Miranda Muito! Eu tenho provas!Isabel (na porta) No vens, Clarinha?Clarinha Aqui me tens! (A Henrique) Oh! depressa voltou!

    CENA XIIMiranda e Henrique (abraam-se)

    Miranda Com ests?Henrique De sade, bem.Miranda E do resto?Henrique Vive-se.Miranda Falas de um modo! Acaso no s feliz?Henrique Feliz?... No sei.Miranda No o s decerto. A felicidade sente-se, e com tal exuberncia, quederrama-se em torno por quanto nos cerca.Henrique Segue-se que ainda no me chegou; mas tambm asseguro-lhe, meutio, que no tenho o mau gosto de considerar-me desgraado.Miranda Na tua idade, casado com uma bonita moa, to prendada pelanatureza, como pela fina educao que recebeu; possuidor de uma abastana quete poupa a humilhao do servio mercenrio; sem entorpecer os nobres estmulosdo trabalho; amado pelos teus, estimado por todos, que te falta para ser feliz,Henrique?Henrique (a rir) Nada, meu tio! Eu sou, e o confesso para minha confuso, o filhoprdigo da fortuna. Essa deidade caprichosa, guiada pela mo do melhor doshomens, de um pai extremoso (aperta a mo de Miranda) encheu-me de benefcios;e o ingrato, apesar de todos os carinhos da sorte, ainda deseja.Miranda Mas em suma, que desejo esse? No poderemos satisfaz-lo?Henrique o meu sonho. No meio dessa ventura, que lhe devo, meu tio, sinto svezes um grande vcuo dentro d'alma: e esse vcuo vem ench-lo o tdio e odesnimo... Lembro-me que sou um ente intil, que as horas e os dias montonosgastos em consumir a existncia, podia eu dar-lhes um emprego til, na cincia, nasletras, em qualquer outra ocupao. Minha distrao a caa; no podia ser apoltica?

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    Miranda (a rir) Que ainda uma espcie de caa, a de alteneria. (Srio) Meuquerido Henrique, caste na mesma iluso que infelizmente nos arrasta a todos ns,os filhos prdigos da fortuna, como disseste h pouco.Henrique Qual?Miranda Na mocidade, a vida abre-se diante de ns como um jardim; entramospor essa manso risonha com a alma cheia de desejos e esperanas. Uns, famintosde riqueza, divisam o pomo de ouro, e arrojam-se por entre abrolhos e fraguedospara alcan-lo. Outros, sedentos de glria, deslumbram-se com os esplendoresdessa rosa mgica riada de espinhos, que desabrocha nos cimos inacessveis dosrochedos, borda dos abismos.Henrique Meu tio um desses!Miranda (com expresso) Fui!... Outros finalmente caminham dia e noite,extenuados de fadiga, rompendo a espessura, para descobrirem o fruto da cincia.Entretanto, l est logo entrada do jardim, rasteira e oculta, a flor modesta, avioleta celeste que Deus plantou na terra para derramar sobre a alma o blsamodivino. Alguns a olham de longe, desdenhosamente; muitos aproximam-se uminstante atrados pelo suave perfume; mas todos passam alm; nenhum pe a otermo dessa jornada que se chama a vida; nenhum faz dessa flor agreste o seuprimeiro cuidado e o seu melhor tesouro.Henrique Quanto a mim, no tem razo, meu tio!Miranda Ouve! Quando chega o inverno, que os expulsa do jardim encantado, lvoltam os viajantes alquebrados, com a alma seca e rida como um deserto; ummordeu o pomo de ouro, e viu que estava cheio de cinza; outro quando pensavacolher a rosa, ela transformou-se em chama que o abrasou e desfez-se em fumo; oterceiro, mal tocava no fruto da cincia, este se desfazia em p. Todos ao passarempela moita rasteira, buscam com os olhos a florzinha; e j no a acham; murchou.Henrique No h de murchar para mim, como no murchou para o Senhor.Miranda Oh! para mim, no, decerto! Essa flor, j compreendeste, Henrique, afelicidade conjugal; que embalsama com sua divina fragrncia o seio da famlia, queadorna de festes e grinaldas o lar domstico, e cobre de uma eterna primavera anossa existncia. Hs de ter visto, em tuas excurses pelas matas de Petrpolis,esses troncos decepados e carcomidos, verdadeiros ancios da floresta; rebentam-lhe os renovos pelas razes, e a folhagem brilhante do jovem arvoredo os veste degalas. assim o velho que sonha cultivar a felicidade conjugal; os filhos e asfamlias que lhe crescem em torno o cobrem de sorrisos e carinhos.Henrique E cuida meu tio que eu no tenho as mesmas idias?Miranda Tu, Henrique, s daqueles que se aproximam da flor, aspiram-lhe ummomento o perfume, mas passam, deixando-a agreste como nasceu. Noconfessaste que, ao lado de tua mulher, sentes um vcuo n'alma; e to grande quepassas dias longe de casa, pelos matos a caar? Queres ocup-lo com a poltica!Isto , queres encher o corao de cascalho.Henrique No vivemos unicamente para a famlia; o esprito carece de umaocupao.Miranda Decerto; devemo-nos todos ptria e humanidade. Mas, acredita-me,a primeira ocupao e a mais sria do homem a sua felicidade domstica. No hneste mundo mais sagrado sacerdcio do que seja o do pai de famlia; eleassemelha-se ao Criador, no somente quando reproduz a sua criatura, mas quandodesses anjos (entra Rita com IAI) que Deus lhe envia, ele prepara as futuras mese os futuros cidados. s depois de cumprida esta santa misso, que temos odireito de dar a outros misteres as sobras da nossa alma.

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    Henrique No haver exagerao nesse modo to exclusivo de considerar afamlia, sobretudo no sculo em que vivemos, meu tio?Miranda (confuso) possvel. Fui daqueles que se deixaram arrastar pelavertigem; felizmente esbarrei a tempo; mas, por isso mesmo talvez influa em mim operigo que ameaou a minha felicidade.Henrique Mas hoje nada a perturba?Miranda Nada.Henrique Quanto isso me alegra! E eu disse que no sabia se eu era feliz. Possono s-lo, vendo-o cercado de todas as venturas, e coberto das glrias conquistadasna poltica?Miranda Quando te brotarem essas vergnteas, Henrique, (mostra Iai que temnos braos) ento me hs de compreender; ters uma alma nova sada da refusoda alma velha; a alma do pai.Henrique Como est bonita, Iai! Ento j no conhece o primo Henrique?

    CENA XIIIOs mesmos, Rita, IaI e Joaquim

    Joaquim O almoo est pronto.Miranda (para Henrique) Vai almoar, tarde. No te h de faltar apetite.Henrique E meu tio, no vem?Miranda J tomei alguma cousa.Henrique At j. (Sai)Miranda (senta-se com a menina no colo) Ento, minha filha, passeou muito?Estava bonito o passeio? Por que no convidou Mame? Olhe! sempre que Iai forpassear, h de convidar Mame, sim?Rita Sinh no quer sair nunca, por mais que eu lhe diga...Miranda Agora como Clarinha est aqui...Rita Ah! Nhanh D. Clarinha chegou?Miranda Pode ser que ela a acompanhe. Se precisar de alguma cousa... Talvezos vestidos j no estejam bons.Rita Esto novinhos em folha no guarda-roupa.Miranda Naturalmente porque no so do gosto dela. Tambm tu no lheperguntas o que ela deseja.Rita Sinh acha tudo bom! Tudo lhe agrada mas no quer que se compre...Aquelas jias, meu Senhor no sabe ainda, esto por abrir.Miranda No teve a curiosidade de v-las?Rita Viu, sim, Senhor, e achou muito bonitas. Mas de que serve?... Ningum vSinh com elas. Esto guardadas. Diz que ho de ser para Iai quando ficar moa.(Pausa. Miranda brinca com a menina)Miranda Quem sabe se ela no est aborrecida do Rio de Janeiro. Talvez desejefazer uma viagem, ir Europa; e no me diz por acanhamento.Rita Qual, meu Senhor.Miranda Nunca a ouviste falar nisto?Rita Nunca, no, Senhor!Miranda Mas preciso que faas com que tua Senhora se divirta um pouco. Elaanda muito triste e muito abatida: no tem distrao!Rita Nem uma mesmo. Ela no quer sair: tambm aqui ningum vem, senoquando meu Senhor...

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    Miranda Basta! No te perguntei por isso. (Amimando a menina que tira ochapu) No desmanche os seus cachos! Quem foi que penteou Iai? Foi Rita?No. Foi Mame? Foi! E quem vestiu?... Tambm foi Mame? (A RITA) Outra cousa!Por que deixas que tua Senhora se mate a coser a roupa de Iai? No tem vindoconstantemente roupa feita da casa da Cretin?Rita Sinh no quer! Diz que isso o seu divertimento!...Miranda O que , minha filha? (Entra Isabel sem ser vista) Quer Rita?... No.Rita o brinquedo!Miranda Ah! Iai trouxe o seu brinquedo!... Quer que d corda?... Muito bonito!...Quem deu a Iai?... Quem?... Senhor... diga... diga no ouvido do Papai!...Rita Foi aquele moo que encontramos na rua... No se lembra... que beijouIai... Senhor Sales.Miranda Senhor Sales... Ah! Foi ele!... (Afastando a menina)

    CENA XIVMiranda e Isabel

    Miranda (voltando-se, v Isabel) Senhora! Eu lhe suplico! Uma dvida horrvel!Isabel Oh! Por piedade!Miranda Esta menina...Isabel Cale-se!... no v que me est matando?Miranda ... minha?...Isabel Eu sou pura, Senhor! Juro!Miranda (respira) Ah!... (Angustiado) Mas que vale o juramento de quemesqueceu o mais santo!...

    ATO TERCEIRONa casa de Henrique, em Petrpolis.

    CENA PRIMEIRAIsabel, Clarinha, Siqueira e Sales(Sales entra quando os outros tm chegado do passeio. Formam-se dois gruposseparados Clarinha e Sales Isabel e Siqueira).

    Sales Como andam depressa!... Desde Vila Teresa que os sigo sem poderalcanar. Minha Senhora. (Cumprimenta Isabel)Clarinha Ora! Por que tomou tanto incmodo!Sales Permite que lhe oferea estas flores?Clarinha O meu mdico no permite, no, Senhor: fazem-me dor de cabea!Sales vista disso condeno-as priso. (Esconde no peito)Clarinha Era melhor que lhes desse a liberdade!Isabel O passeio fatigou-me.Siqueira Ento j viste o lucro que se tira da poltica?Isabel Fala comigo, meu pai?Siqueira No leste o jornal de ontem?Isabel No, j veio?

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    Siqueira Estava sobre a mesa. Traz uma correspondncia bem forte contraAugusto. Entre outras cousas, diz que ele esbanjou a sua fortuna e de tua filha, e foiobrigado a vender quanto tinha para pagar dvidas de jogo.Isabel Mas, uma calnia, meu pai.Siqueira Quem o sabe melhor do que eu, Bela, que conheo Augusto, como amim mesmo? um homem de bem, na extenso da palavra!Isabel Como lhe h de ter dodo, meu Deus! Ver-se insultado assim, e por qu?Siqueira Ele j deve estar habituado! So as flores da carreira poltica.Isabel No! S eu sei o que ele ter sofrido.Siqueira O melhor no dar valor a isso! No vale a pena chorar por to pouco.Estou arrependido de ter falado nisso.Isabel Por qu? Eu lhe agradeo. Podia no ler o jornal e escapar-me.Siqueira No perdias nada.Isabel justo que tenha a minha parte nesse desgosto. No sou eu a causadele?Siqueira A causa?... E de que modo?...Isabel Foi para satisfazer um desejo meu; talvez um capricho, que meu maridovendeu os nossos bens. Se no me fizesse a vontade no o caluniariam agora.Siqueira Achariam outro pretexto. No faltam!Clarinha Meu tio!... O Senhor nunca teve cimes de sua mulher?Siqueira Como, Clarinha? No ouvi.Clarinha Pergunto se o Senhor nunca teve cimes de sua mulher.Siqueira Ah! Estou vivo h tanto tempo!... A falar verdade, no me lembro.Clarinha Ora! no quer responder.Sales O Sr. Siqueira j no entende desta matria.Siqueira Confesso que nunca fiz profisso dela.Clarinha Pois querendo, pode tomar lies com o Senhor Sales.Sales Comigo! Ainda estou solteiro!Clarinha Felizmente para sua futura mulher.Sales Explique-me a razo, D. Clarinha.Clarinha No quero ofender a sua modstia. (A Siqueira) Decididamente noresponde?... Meu tio tem na conscincia algum pecado...Siqueira O de ter querido bem a minha mulher.Clarinha No se pode querer bem, sem ter cimes.Siqueira Conforme! Quando se est a merecer, natural; mas depois que se tema certeza de uma estima recproca, me parece at uma ofensa.Sales No concordo!.Clarinha Ns j sabamos a sua opinio, Senhor Sales, antes do Senhor diz-la.E tu; Isabel, pensas como meu tio?Isabel Perdoa, Clarinha! Estou to aflita agora.Clarinha Que foi! O que sucedeu? (Correndo a ela)Isabel Recebi uma notcia bem desagradvel.Clarinha De quem? De Augusto? E no me dizias! (Sales aproveita o momentoem que Clarinha se afasta para deitar no chapu dela o ramo de flores)Siqueira No nada! Uma calnia annima contra Augusto.Clarinha No ds importncia a isto! tudo inveja!...Sales Em minha opinio o cdigo s devia admitir o annimo nascorrespondncias amorosas...Siqueira Essas esto fora da lei. (A Isabel). Augusto vir hoje?Isabel Estou esperando por ele.

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    Siqueira Ento no pode tardar.

    CENA IIIsabel, Clarinha e Sales

    Clarinha Est bom! No quero que meu tio te ache triste!Isabel Augusto!... E este homem aqui!Clarinha No te importes com ele.Isabel Tu sabes que eu no posso suport-lo.Clarinha Mas, que te fez ele, que no tens querido dizer-me!Isabel Nada... uma repugnncia invencvel... Uma dessas antipatias que no seexplicam... No posso v-lo.Clarinha Espera. (Alto). Senhor Sales!Sales Estava admirando esta cabana! muito potica!Clarinha Pois deixe a cabana tranqila, e faa-me o favor de ir at a Rua doImperador.Sales Com muito gosto. Fazer o qu?Clarinha Fazer-me a vontade.Sales A Senhora est gracejando.Clarinha Ora! Por gracejo, no o obrigava a ir to longe. muito srio.Sales Ento no percebo.Clarinha Porque no lhe faz conta. Tenha a bondade de ir at l e contar quantasjanelas tem o Hotel de Bragana. Foi uma aposta que fiz com Henrique e queroganhar.Sales O seu desejo ordem para mim.Clarinha Por saber disto que tomei a liberdade.Sales Quantas janelas a Senhora disse que tinha?Clarinha No me lembro.Sales Ento intil!Clarinha No h meio de lhe fazer compreender as cousas. Henrique teimoso,Sr. Sales, mas acredita no que lhe digo.Sales Perdo! Vou imediatamente: hoje mesmo venho lhe trazer a resposta!Clarinha Enfim... O Senhor muito amvel... Mas escusado vir hoje... Vamossair.Sales Ento... ser amanh. (Com inteno) Uma e outra cousa.

    CENA IIIIsabel e Clarinha

    Clarinha Ests sossegada?Isabel Tu me prometeste que eu nunca o encontraria aqui; e sem isso no vinhaa Petrpolis.Clarinha Henrique e teu marido que so os culpados. No h dia em que o noconvidem.Isabel Se o tratasses secamente!Clarinha Trato-o como tens visto. s vezes me aborrece; outras confesso que, nainsipidez em que vivo, me serve de divertimento! to ingnuo!

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    Isabel Zombas dele, bem sei! Mas tu no vs que esse moo no te compreende,e supe que o distingues? No vs que ele s vem aqui por tua causa?Clarinha Reparaste nisto?Isabel No de agora: quando solteira j ele te fazia a corte.Clarinha Com uma rosa no peito: agora traz-me ramos de violetas. Vai emprogresso.Isabel Mas, Clarinha, bastava esse motivo para no consentires que elefreqentasse a tua casa.Clarinha Quem governa aqui? No sou eu? Henrique tem olhos como tu.Isabel Talvez ainda no tenha percebido.Clarinha Tu percebeste?Isabel Eu sou mulher, Clarinha!Clarinha Qual, Bela. No essa a razo. porque ele me estima.Isabel Porque confia em ti.Clarinha Confiana que se parece tanto com indiferena, no me agrada.Preferia que ele me julgasse uma cabecinha de vento!...Isabel Ah! que no avalias o que agora desprezas.Clarinha Pode ser!... Mas dize!... Que grande merecimento tem uma virtude daminha idade, que no acham muito feia, quando o marido entende que ela inabalvel?Isabel Essa virtude tem o gozo imenso de inspirar a f e a serenidade n'almadaquele que escolhemos para companheiro de nossa existncia. Tem a satisfaontima que lhe d a conscincia de sua fora para resistir a qualquer desvario. Oamor que produz o cime e as contrariedades, Clarinha, uma excitao, que passadeixando a fadiga, o tdio e s vezes a dvida: o amor que vive da confiana umaafeio calma e doce. H ocasies em que parece fugir; mas volta sempre pelaatrao irresistvel das recordaes puras.Clarinha J me disseste tudo isto; mas o que eu sei que se as perdizesviessem sem cerimnia passear neste jardim, Henrique no teria as tais emoes decaador!... Pois eu valho menos do que uma perdiz, Bela!Isabel No ests hoje com o teu bom humor. O que tens?Clarinha O que eu tenho?... Tenho um marido que no se importa comigo. Tenhodezoito anos que no voltaro: e tenho a fraqueza de querer bem a quem no mequer. Achas que pouco?Isabel Est bom! Tudo isto passa com um abrao de Henrique. No Joaquim?L... (Aponta)Clarinha Parece. (Afasta-se) Ests vendo! O Senhor Sales no fez a gracinha dedeixar o seu ramo de flores no meu chapu!Isabel (sem voltar-se) a conseqncia de teus gracejos! Quando te digo quele no compreende...Clarinha No de admirar! Outros que deviam... (Vai atirar o buqu, cai umbilhete que l rapidamente e esconde) Que isto? (Pausa)Isabel O que dizias?Clarinha (comovida) Nada; no falei contigo.Isabel (chegando-se) preciso acabar com este brinquedo! Aquele moo pode tecomprometer!Clarinha Oh! Fique descansada! Vai acabar.

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    CENA IVAs mesmas e Joaquim

    Isabel Teu Senhor no veio?Joaquim Veio, sim, Senhora. Ficou na estao.Isabel Ele est bom? Passou bem na cidade? No achou a casa muitodesarranjada, no?Joaquim Sempre faltava minha Senhora l; mas ele no sentiu nem umincmodo, no, Senhora. (Apresenta uma cestinha)Isabel O que isto?Joaquim So umas frutas que meu Senhor mandou trazer.Isabel Para Iai?Joaquim Para minha Senhora.Isabel Ah! Ele no se esqueceu de mim!Joaquim E isto s?... Quando minha Senhora voltar para a cidade h de ver!...A casa nem se parece!... A sala de minha Senhora est que faz gosto!Isabel Antes no lhe tocassem!... Vivi feliz ali por tanto tempo.Clarinha ( a Joaquim) Quem te perguntou por isso? (A Isabel) Era uma surpresaque Augusto queria te fazer. Agora j no segredo! Foste tu mesma queescolheste os trastes, a cor do papel, as cortinas, tudo, at as perfumarias!Isabel Ests sonhando, Clarinha; nunca falei de semelhante cousa.Clarinha Deveras! No te lembras do meu projeto?... E dos conselhos que medeste para arranjar a minha casa?... Pois era da tua, que se tratava!Isabel Que maldade!Clarinha (a Joaquim) J est tudo pronto?Joaquim Est quase. Hoje foi o armador deitar os retratos.Isabel Quais retratos?Joaquim O da minha Senhora, o de Iai, o de Nhanh e o de Senhor mooHenrique.Isabel E o dele?Joaquim O de meu Senhor?... Esse no vi, no, Senhora.Clarinha Quer que tu o peas!... Faceirice desses meus Senhores: gostam de sefazer desejados!Isabel (a Joaquim) Dize a Rita que traga Iai.Clarinha Joaquim, ouve! Logo que escurecer hs de rondar pela parte de foradesta grade para que ningum se aproxime. Esto-me roubando as flores.Joaquim Deixe estar, Nhanh. Eu descobrirei quem .

    CENA VIsabel e Clarinha

    Clarinha Ficas esperando por mano?Isabel E tu por que no esperas tambm por Henrique?Clarinha No merece destas finezas! No se deixou ficar ontem, por l?... Quevenha quando quiser!Isabel Fez mal; porm vinga-te com generosidade. Se o receberes com meiguice,se te mostrares alegre, e carinhosa, ele ter remorsos, e outra vez no passarassim dois dias fora de casa, sem necessidade.Clarinha No passar dous no! Passar oito! Nada. Este sistema no me serve.

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    Isabel Experimenta-o.Clarinha H outro melhor!Isabel E no se pode saber?Clarinha No, Senhora! Tambm tenho os meus segredos!Isabel Guarda-os: no sou curiosa seno da tua felicidade.Clarinha No te demores, este jardim muito mido. E tu ainda no ests boa...Isabel Quem fechou isto?... (Na porta da cabana)Clarinha Fui eu! Que vais fazer a?Isabel Meu chapu!...Clarinha Ah! No vi. Toma. (Fecha de novo e guarda a chave)

    CENA VIIsabel e Miranda

    Miranda (cortejando de longe) Boa tarde, est melhor?Isabel Melhor, muito obrigada. O Senhor passou bem?Miranda Passo sempre bem na cidade.Isabel Decerto. Est mais tranqilo: no obrigado a constranger-se a todomomento. Mas foi o Senhor quem exigiu que eu viesse a Petrpolis!Miranda Perdo! No exigi. Clarinha convidou-a.Isabel Se eu no percebesse o seu desejo teria vindo?Miranda Este passeio deve fazer bem sua sade: uma distrao. Emcompanhia da sua prima, ao menos a Senhora no est to s e to triste.Isabel A minha tristeza natural; gnio. Ningum j repara nela. Mas oSenhor... Joaquim me disse... Tem feito tantas despesas em preparar a casa.Miranda Ah! Mandei fazer alguns consertos... Desculpe-me se no a preveni.Pensei que a casa como estava podia trazer-lhe lembranas desagradveis...Isabel Guardava as mais doces recordaes de minha vida! No importa!... Nelaviverei sempre feliz! O que sinto que tome tanto incmodo por minha causa.Miranda No, Senhora. A nossa posio exige uma certa decncia, mesmo comsacrifcio.Isabel E por que no consente que sua filha tenha uma parte nessessacrifcios?... A glria de seu nome, os seus servios, a estima pblica que o cerca,no deve pertencer a ela algum dia? Por que no usa de sua fortuna?... Ela rica!Miranda Minha filha pobre... Quanto a essa fortuna, acredite-me, no a coloquenunca entre ns ambos... Se a felicidade de uma menina, e a sua honra, Senhora,s pudessem ser compradas por tal preo... No teria a fora.Isabel E tem a fora de se ver caluniado, de ver pesar sobre a sua probidadeuma suspeita infame! Quando podia destru-la com uma palavra!Miranda Injrias annimas! Quem est livre delas?... Ah! Se fossem esses osespinhos de minha vida! Cuida que ainda resta sensibilidade para esses pequenosdissabores nas almas devastadas pelas grandes dores!Isabel Se eu pudesse restituir-lhe a felicidade a custo de minha vida inteira... Mastenho medo de morrer deixando-lhe essa idia... o que ainda me tem conservadoneste mundo. Nunca, at hoje, o Senhor me quis ouvir uma palavra...Miranda Para qu?... melhor no revolver esta cinza... seria mais umahumilhao para ambos, para o iludido, e para o que iludisse.Isabel Senhor!... Sinto que pouco tenho a viver!... O que eu lhe digo agora, direicom meu ltimo suspiro, quando Deus j no deixa mentir!... Sou inocente!...

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    Miranda E eu no o sei?...Isabel Ah!...Miranda A todo o momento o repito a mim mesmo... Estou ouvindo sempre,sempre, dentro de minha alma, essa palavra que j me disse uma vez... E querocrer... quero enganar-me a mim mesmo! Mas... no posso!Isabel H em tudo isto um mistrio que me condena!... Mas acredite! uma mulhercriminosa, por mais vil que fosse, no vivia assim atada sua vergonha, eesmagada por esse desprezo to cruel, que a procura colocar a cada passo em facede um homem ridculo, que supe seu amante! Oh! essa coragem s a dconscincia pura.Miranda Tenho-a feito sofrer muito! Por que no me deixou a mim s essemartrio!...Isabel No cumpro o meu dever?Miranda Dever!... A Senhora no tem deveres para comigo!

    CENA VIIOs mesmos e Alves

    Alves Permisso para um viajante!Miranda Oh! Alves!... Quando chegaste?Alves Esta manh. (A Isabel) Minha Senhora! Soube agora que estavas aqui!Miranda Foste feliz na tua viagem? Gozaste sempre sade?Alves Por esse lado no tenho razo de queixa. Passa-se perfeitamente emMinas: mas os negcios no correm bem.Miranda Creio que agora correm mal por toda a parte.Alves verdade!... Mas, por l no fazes uma idia... Vai para um ano, hs de telembrar, que ando nas minhas cobranas, e de oitenta contos de ris no cheguei aarrecadar vinte!.Miranda No desanimes por isso! Continua a trabalhar, e espera por melhorestempos.Alves Sim; porm os meus credores, a quem passei letras ao prazo de um ano,no esperam mais! Meu scio j me escreveu, participando-me isso, e eu no sei oque fazer... Acho-me como vs numa situao bem crtica.Miranda Realmente para um homem do teu carter a posio terrvel. Faltaraos seus compromissos.Alves Ver declarar-se a falncia da sua casa, e apesar de sua boa f, fica sujeitoa suspeitas injustas! Isso tem-me feito sucumbir! O prejuzo enfim, v feito. Tenhoforas para suportar a pobreza.Miranda Oh! A pobreza no assusta aos homens honestos. D-lhes estmulo aocontrrio. Mas, dize-me que posso eu fazer em teu favor?Alves Obrigado por esta palavra! No esqueci o oferecimento sincero que mefizeste na ocasio de minha partida; mas, se no o lembrasses, no teria nimo.Miranda Sim, eu te disse que podias recorrer a mim, no caso de qualquerembarao...Alves o que eu fao e com bastante acanhamento. Nestes negcios vexo-memais em dirigir-me a um amigo, do que a um estranho, a quem obrigo a minha firma,e no o meu reconhecimento.Miranda No devias ter acanhamento comigo. A minha fortuna estava toda tuadisposio...

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    Alves s um verdadeiro amigo.Miranda Atende! No mereo os teus elogios. O que eu te oferecia h um anono o posso agora.Alves Perdeste a fortuna?Miranda No a tenho.Alves Mas tuas propriedades, tuas aplices.Miranda Vendi-as todas.Alves E o produto?Miranda No sei!...Alves Roubaram-te?...Miranda No.Alves Mas como se consome assim mais de cem contos de ris em um ano!...Miranda A vida cara na atualidade... A poltica faz descuidar os negcios... Milcousas que fora longo dizer!Alves Ah! Desculpa-me! Vejo que te incomodo!Miranda No! O que sinto no poder servir-te.Alves Por isso no deixaremos de ser amigos... Nada valho e agora menos; massou sempre o mesmo: na fortuna como na adversidade. Ao menos a franquezaachars sempre em mim.Miranda Agradeo-te. Se alguma vez recorresse aos meus amigos, no lhes fariaa injria de duvidar de sua palavra; nem exigiria deles os motivos de seuprocedimento. H reservas que se respeitam.Alves Acabemos com isso, Miranda. Perca-se tudo embora; mas o que eu noquero perder a tua amizade.Isabel Senhor Alves.Alves Perdo, minha Senhora.Isabel Atenda-me um instante. Eu lhe explico!Alves No necessrio.Isabel - No posso deixar que o Senhor conserve uma queixa de seu amigo e porminha causa... Foi um erro meu; as mulheres so s vezes to imprudentes...Miranda No se trata disso agora.Isabel Tive a fraqueza de falar na riqueza de meu pai, uma vez que meu maridono quis satisfazer um capricho meu, uma extravagncia... Ele perdoou-me; masjurou que no tocaria nessa fortuna... Compreende agora... um escrpulo... umasusceptibilidade... Dele pois, ou de mim, aceite, Senhor Alves.Alves No devia duvidar de ti!... (A Isabel) Eu admiro e agradeo, minhaSenhora. Mas no posso aceitar sem o consentimento de Miranda. (Entra Henrique)Miranda Ela pode dispor livremente do que lhe pertence, Alves.Isabel Ouve? No deve recusar.Alves Mas, D. Isabel, eu tenho escrpulos... Luto com embaraos; posso serinfeliz, e causar-lhe graves prejuzos.Isabel Que importa!... Ento deverei tudo a meu marido. um orgulho de mulher,Senhor Alves.Alves Pois bem, se for absolutamente necessrio, aceitarei. Vou amanh Corte!verei o estado dos meus negcios e me resolverei.

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    CENA VIIIOs mesmos e Henrique

    Henrique Oh! Ests de volta enfim.Alves verdade! E venho achar-te casado e feliz. O que so protestos dehomem solteiro! (A Miranda) Na vspera de minha partida disse-me que nunca secasaria; e isso com um tom que me Convenceu.Miranda E um ms depois estava casado!Henrique Todos fazemos o mesmo. Quando se protesta porque j o negcioest decidido.Alves Fizeste bem; o casamento uma necessidade.Henrique Aos trinta anos: antes um luxo. (Vo se afastando)Alves Estars arrependido?Henrique No! Minha mulher vive satisfeita de seu lado, eu gozo de toda aliberdade... Nem um aborrece ao outro. Compreendemos o casamento, no achas?Alves Teu tio me parece que o compreende de outra maneira!Henrique Temos gnios to diferentes! J sei que ficas conosco alguns dias.Alves No posso nem passar a noite aqui; tenho que pr em ordem as contas deminhas cobranas para amanh seguir. (Afastam-se)Miranda (a Isabel) Obrigado, Senhora. (Aperta a mo)Isabel Me agradece, meu Deus!... Mas eu sinto no possuir outra fortuna para tera felicidade de perd-la, Senhor!

    CENA IXIsabel e Clarinha(No fundo do porto v-se Henrique, Augusto e Alves)

    Clarinha Bela!... No viste Henrique?Isabel Est a conversando com o Senhor Alves.Clarinha No sei quem ?Isabel Um amigo de Augusto. Vamos ter com ele?Clarinha o que faltava!... Chegou depois de dois dias e ainda nem meprocurou!...Isabel Chegou agora mesmo!... Olha! ali vem ele.Clarinha Deixa-me s! Se estiveres aqui, ele nada me dir!Isabel Tens razo. (A meia voz a Henrique) Clarinha est zangada: abraa-a.Henrique Adeus, Clarinha!Clarinha Ah! J no o esperava!Henrique Tambm era demais. Duas noites pode-se passar fora de casa, pormtrs... Era um escndalo!Clarinha Ora! que tinha isso! Podia se divertir! No reparo nestas cousas.Henrique Ento no est zangada comigo?Clarinha Zangada por qu? No nos casamos para aborrecermo-nos todos os365 dias do ano... Divertiu-se muito?Henrique Nem por isso!... Perdi o meu tempo e o melhor perdigueiro.Clarinha Que desgraa!... Pois ns brincamos e passeamos muito. Mano ficou nacidade; porm o Senhor Sales fez-nos sempre companhia. Esteve muito amvel.Henrique Fao idia! Quantas vezes falou da viagem Europa?

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    Clarinha Uma vez s! No sabes! Confessou-me que tinha feito essa viagem porcausa de um desgosto que sofrera. Um casamento... No sei o qu!...Henrique Estou muito fatigado para ouvir agora as histrias de Sales, Clarinha.Manda-me preparar alguma cousa para jantar... Venho morto de fome e de sono.Clarinha Pode dormir estes dois dias... Amanh temos um passeio ajustado paraa Cascatinha; a casa fica bem sossegada. Ah! Guarda-me esta chave! No perca!Henrique Que passeio esse to fora de propsito?Clarinha J convidei Bela, o tio Siqueira, e o Senhor Sales. Cuidei que noviesse hoje.Henrique Se eu soubesse disso decerto que no vinha c.Clarinha Foi pena!... Quando quiser, chame Augusto e venha jantar. (Saicorrendo, e deixa o leno com o bilhete de Sales, que Henrique apanha)

    CENA XMiranda, Henrique, Isabel e Iai(Alves despede-se no fundo e sai. Miranda dirige-se a Henrique, enquanto Isabelrecebe de Rita a menina e senta-se com ela porta)

    Isabel (a Rita) Podes ir. (A Iai) Vamos ver papai!... Minha filha h de dizer queteve muitas saudades de Papai! Diga sim! Para Mame lhe querer bem!...Miranda (Vendo o papel que Henrique lhe apresenta) Que papel este?Henrique Leia! (Isabel atende)Miranda Est to escuro j!... (Lendo) "Se me ama..espere-me ao escurecer... na...Henrique Na cabana do jardim!... Ah!... (Aponta)Miranda Mas que isto?Henrique Uma carta de amor! No v?Miranda Onde a achaste?Henrique Neste lugar: ela deixou-a cair quando saiu!Miranda Ela quem?Henrique No adivinha?... Minha mulher!Miranda impossvel, Henrique!Henrique O seu leno, veja.Miranda Conheces esta letra?Henrique Perfeitamente! do Sales. (Isabel corre para a casa)

    CENA XIHenrique e Miranda

    Miranda Do Sales?...Henrique verdade!... Um ente desprezvel!Miranda Esta carta ser realmente para tua mulher, Henrique... Quem sabe!Henrique Eu vi-a cair. Ela a tinha no seio.Miranda Que fatalidade, meu Deus!Henrique Se ouvisses o que me dizia h pouco, no duvidarias. Traa-se semquerer... O nome desse homem lhe vinha constantemente aos lbios! A infame!...Cuspia-me na face a desonra!... Mas enganou-se! (Deita dois quartos de bala noscanos da espingarda)

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    Miranda Que vais fazer?Henrique O miservel no tarda!... Se ele vier... Se o esperar... Tenho dois tiros ea minha honra salva!Miranda A honra no se discute!... Mas, Henrique, tens a certeza de que tuamulher seja criminosa?Henrique E estas provas?Miranda No bastam.Henrique E se ela vier?Miranda Ainda assim! Pode no ser criminosa; pode cometer apenas uma falta,uma falta bem grave no nego! Porm a tua conscincia est calma e tranqilaneste momento?... No te acusa ela de teres deixado entregue s suas prpriasforas sem apoio e sem proteo a virtude de uma menina inexperiente?...Responde! Se cumpriste o teu dever, cruzo os braos e calo-me.Henrique No h razo que justifique semelhante falta, meu tio!Miranda Decerto nada a justifica. Mas qual a razo que justifica o marido quetrai seus deveres?Henrique H uma grande diferena...Miranda Sei o que pretendes dizer! No dessa fidelidade material do homem,que eu falo. O nosso grande dever o de proteger e fazer a felicidade da mulherque nos sacrificou tudo, que a me de nossos filhos, e a companheira inseparvelda nossa existncia. Como procedemos ns depois que passam os primeiros gozosde um amor partilhado? Voltamos s ocupaes habituais. No nosso orgulho dehomens, entendemos que a inteligncia da mulher no pode acompanhar-nos nessaporo mais importante de nossa vida, e s deve ocupar-se dos arranjosdomsticos, das modas e dos bailes. Deixamos no isolamento esses entes fracos aquem arrancamos da casa de seus pais, s festas da famlia, ternura materna, safeies dos seus!... Gastos pelos amores fceis nem um se lembra que a alma,ainda virgem, de sua mulher, tem necessidade de viver!... Esquecemos enfim otesouro que nos foi confiado, e cujo valor s sentimos nos momentos de sua perda!Henrique Nunca deixei de amar Clarinha... Tinha toda a confiana nela, esupunha que era feliz...Miranda Caste no erro de todos os maridos. No associaste completamente tuamulher tua vida, no a interessaste nos teus projetos e sonhos do futuro... No hnada que a mulher no compreenda pelo corao; nas cousas as mais ridas, elasacham o encanto que d o amor e a imaginao. Tu gostas da caa, por exemplo.Se Clarinha partilhasse contigo, mesmo de longe, as tuas emoes e os teusprazeres, no se julgaria abandonada quando a deixas por este passatempo. O seuesprito te acompanharia.Henrique noite!... Eu lhe peo... Retire-se!Miranda Quando estiveres mais calmo.Henrique Agora, perdoe-me, no o atendo.Miranda agora que me deves ouvir!Henrique Deixe-me s!...Miranda No!... No posso deixar-te nesse estado.Henrique Pois bem, fique! Mas no me contenha... H ocasies em que ohomem no se domina.Miranda Uma ltima vez, Henrique...Henrique debalde... A minha resoluo est tomada! (Henrique arma aespingarda. Augusto medita)

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    Miranda (lento) Vou te revelar o segredo de um amigo. Tambm ele amava suamulher, tambm ele cometera o mesmo erro. Recolhendo-se alta noite, entrou nasala no momento em que um homem que ele no pode conhecer se despedia desua mulher e saltava pela janela.Henrique Que fez ele?...Miranda (idem) Chorou a sua felicidade perdida. Agarrou uma arma como agorafizeste... Uma menina... sua filha, balbuciou seu nome, e salvou-os a ambos!...Salvou-os da morte, mas que vida, Henrique! A sociedade, a reputao imps aestas duas criaturas um suplcio horrvel! Viveram no mesmo teto, odiando-se oudesprezando-se. (Anima-se) Desprezando-se? No!... Porque o marido amava amulher culpada! E como nunca a amara... Amor odiento, paixo vergonhosa, que orebaixava aos seus prprios olhos, Que tortura, Henrique!Henrique No sucederia isto, se tivesse seguido o seu primeiro impulso!Miranda E quando ele visse essa mulher que julgou criminosa dar o exemplo davirtude a mais austera! Quando visse o herosmo e a dignidade com que essa almanobre suportou todas as afrontas; no estremecia lembrando-se que podia terassassinado a inocente? Oh! Quantas vezes depois de a haver insultado vilmente,no estive quase lanando-me a seus ps, e pedindo-lhe perdo!...Henrique Que diz? O Senhor?Miranda Eu?... Disse eu?... Falava-te como esse amigo me falou... Eleduvidava!... Que provas tinha? Sua mulher guardava o silncio, verdade! Mas, nohavia nisso algum mistrio?... Demais tambm sentia-se culpado! Aquela primeirafalta foi irreparvel? Quem sabe se ela no pura ainda e se no houve precipitaoem cavar o abismo que nos... que os separa!... E agora... Henrique, julgas que sejaimpossvel? (Isabel aparece do lado da cabana)Henrique Silncio!... No ouve? Ali por entre as rvores... 0 seu vestido!... No?Miranda Espera! Cuidas que apesar de tudo esse homem de quem te falei tinha odireito de matar sua mulher?... Onde vais?Henrique No me siga, meu tio! Se me preza no se coloque entre mim e aminha honra.Miranda No consentirei nunca, Henrique! (Henrique foge entre as rvores.Miranda corre a Isabel)

    CENA XIIIsabel e Miranda, (depois Clarinha)Isabel (dirige-se cabana em voz baixa) Clarinha!... (Na porta da cabana)Clarinha!...

    Miranda ( meia voz) No se perca!... Seu marido, Clarinha.... (Ouve-se um tiro.Isabel cai nos braos de Miranda que a tem arrebatado)Isabel Ah!...Miranda Minha mulher!...Isabel Ouvi a carta... Era preciso salvar..Miranda A quem?... A seu amante?...Isabel Por que no me deixou morrer! (Clarinha aparece)Clarinha Que foi isto? Ouvi um tiro!Miranda Nada! Henrique descarregou a espingarda e... e... ela assustou-se.

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    ATO QUARTOEm casa de Siqueira em Petrpolis. Sala interior.

    CENA PRIMEIRASiqueira, Rita e Iai(Iai brinca no jardim acompanhada de Rita. Siqueira aparece como quem vai apasseio)

    Rita A bno?Siqueira No me dirs o que h de novo nesta casa, desde ontem noite?Rita Nada, no, Senhor. (A Iai) Tome a bno a vov.Siqueira Ora! H aqui alguma cousa necessariamente. Clarinha e Henriquefogem um do outro. Bela no aparece; e Augusto, esse no diz palavra.Rita Nhanh D. Clarinha est zangada com Senhor moo Henrique, porque eleficou muito tempo caando!Siqueira Arrufos de namorados! Bem, disso j sabia eu. E os outros?Rita Meu Senhor?... Esse j veio maado ontem da cidade.Siqueira E tua Senhora?Rita Vosmec no sabe que Sinh no anda boa? Esta noite passou muito mal;no dormiu.Siqueira E foi ela s? Creio que ainda ningum dormiu nesta casa. Toda a noiteouvi Augusto passear nesta sala. Clarinha s duas horas ainda estava no pianofazendo um concerto com os ces que ladravam desesperadamente; Henrique, essedeu-lhe a vontade de passear de madrugada com a chuva. Parece que estavamorrendo de calor. J voltaria?Rita Ainda no vi ele hoje, no Senhor.Siqueira Talvez tenha armado outra caada. muito capaz, s para fazer pirraa mulher.

    CENA IIIsabel e Siqueira(Rita e Iai no jardim; s vezes aparecem)

    Isabel Bom dia, meu pai.Siqueira Passou mal a noite; j sei.Isabel Perdi o sono, no sei porqu.Siqueira Tambm eu. Com o rebulio que havia nesta casa, no de admirar.Que tem Augusto? Acho-o triste.Isabel Uma contrariedade... os seus negcios. Ele contou-me ontem quandochegou. Talvez seja obrigado a voltar amanh.Siqueira Amanh, domingo?Isabel Quis ir hoje; mas creio que Joaquim j no achou bilhete.Siqueira Para isso no valia a pena ter vindo. Quer dar um passeio? A manhest to bonita!Isabel No posso, no, meu pai.Siqueira Vamos at a Vila Teresa; em caminho tomas um copo de leite; h defazer-te bem. No me desacredites os ares de Petrpolis. Andas to plida, e euquero que voltes corada para a corte. Rita, vai ver o chapu de tua Senhora.

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    Isabel (a Rita) Deixa estar. (A Siqueira) Desculpe-me, no tenho disposio.Depois, quando o sol abrir. (Toma Iai)Siqueira Fica muito tarde; mas eu posso esperar.Isabel No, Senhor, v, meu pai. Se me dispuser, eu irei com Clarinha. (Ritaafasta-se)

    CENA IIIIsabel, Iai e Miranda

    Isabel Minha filha!... Onde esteve?... J viu Papai?... Ele beijou Iai hoje?...Beijou: onde? aqui! (Beija com efuso a face da menina) Iai vai ficar sem suaMame... Vai... Ela no pode viver muito tempo no!... J lhe faltam as foras.(Pausa) Quando Mame morrer, Iai chora?... No?... Inocente. (Entra Miranda).No sabes, no sabers nunca, o que tua me sofreu neste mundo, minha filha! Porque Deus consentiu que me salvasses a vida, naquela noite fatal?...Miranda Por que, Senhora? Eu respondo por ela.Isabel No o tinha visto; desculpe-me, Senhor.Miranda Deus, salvando-nos a vida naquela noite, queria que aqueles que j nopodiam viver um para o outro, vivessem ao menos para esta menina inocente; que ame respeitasse a pureza de sua filha, j que a mulher no tinha respeitado o nomede seu marido. Mas assim no aconteceu.Isabel preciso, meu Deus, que eu tenha descido muito para que o meujuramento, as minhas lgrimas, os meus protestos, tudo, at o meu suplcio nopossa destruir uma simples suspeita. (Deixa IAI)Miranda O que eu vi h um ano, o que tornei a ver ontem uma simplessuspeita, Senhora?Isabel Viu aquele homem?... No, no possvel. Viu uma flor que ele deixaracair por acaso, quando ali estvamos todos; uma flor que Clarinha atirara ao chogracejando. Ah! eu no podia pressentir que espinhos tinha aquela rosa para minhaalma. a prova que. me condena; e eu no posso dizer contra ela, uma palavra,sem mentir!Miranda Mas, ali, naquela noite, estava um homem. Vi-o, desta vez no umasuspeita; vi-o saltar da janela; no ouvi as palavras que lhe disse; creio, porm, quelhe apertou a mo, e a Senhora tinha lgrimas nos olhos. Aquele homem no era oftuo desprezvel..Isabel Pelo que h...Miranda O ftuo que apesar de a haver esquecido, a Senhora quis ontem salvarcom risco de sua vida?...Isabel Pelo que h de mais sagrado para mim neste mundo, por sua honra, e porminha filha, Senhor... Aquele homem no era o Sales.Miranda Quem era ele ento?... Quem?... (Pausa) No responde!... a terceiravez que lhe pergunto, que lhe peo... E sempre a mesma mudez. O nome dessehomem, Senhora?Isabel No exija isto de mim. Esse nome, nunca, nunca o ouvir de minha boca.Prefiro morrer julgando-me o Senhor culpada, a defender-me por tal preo.Miranda E quer que a acredite?... Meu esprito no pode compreendersemelhante enigma. A Senhora inocente: o que eu vi foi apenas iluso, umaaparncia, um fato sem significao. Que motivo pode haver para ocultar o nomedesse homem? Para que esse mistrio? (