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O QUE É PAISAGEM? por Aline Carneiro (conversações com a orientação Clara Miranda do Trabalho Final de Graduação de 2006/01 DAU/UFES) "Antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de extratos de rochas." Simon Shama, 1996. “Uma cidade não serve apenas de cenário (...) ela é território de confronto de olhares”. Henri-Pierre Jeudy, 2005. ETIMOLOGIA O termo paisagem originou-se do latim pagus (país), com sentido de lugar, unidade territorial. Nas línguas derivadas do latim surgiram termos como paisaje (espanhol), paysage (francês), paesaggio (italiano) etc. Nas línguas germânicas o termo land deu origem a landschaft (alemão), landscape (inglês), landsschap (holandês) entre outros com o sentido daquele termo em latim. Citado em A Paisagem e o Ensino da Geografia. Carlos Arthur Souza e Leandro Faber Lopes. Editora Universo. A palavra landscape (paisagem) entrou na língua inglesa junto com herring (arenque) e bleached linen (linho alvejado) no final do século XVI, procedente da Holanda. E landschap, como sua raiz germânica, Landschaft, significa

o Que é Paisagem

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O QUE É PAISAGEM?

por Aline Carneiro (conversações com a orientação Clara Miranda do Trabalho Final de

Graduação de 2006/01 DAU/UFES)

"Antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se

tanto de camadas de lembranças quanto de extratos de rochas."

Simon Shama, 1996.

“Uma cidade não serve apenas de cenário (...) ela é território de confronto de olhares”.

Henri-Pierre Jeudy, 2005.

ETIMOLOGIA

O termo paisagem originou-se do latim pagus (país), com sentido de lugar, unidade

territorial. Nas línguas derivadas do latim surgiram termos como paisaje (espanhol),

paysage (francês), paesaggio (italiano) etc. Nas línguas germânicas o termo land deu

origem a landschaft (alemão), landscape (inglês), landsschap (holandês) entre outros

com o sentido daquele termo em latim. Citado em A Paisagem e o Ensino da Geografia.

Carlos Arthur Souza e Leandro Faber Lopes. Editora Universo.

A palavra landscape (paisagem) entrou na língua inglesa junto com herring (arenque) e

bleached linen (linho alvejado) no final do século XVI, procedente da Holanda. E

landschap, como sua raiz germânica, Landschaft, significa tanto uma unidade de

ocupação humana – uma jurisdição, na verdade – quanto qualquer coisa que pudesse

ser o aprazível objeto de uma pintura (SHAMA, 1996).

CONCEITOS

A paisagem possui uma dimensão morfológica – é um conjunto de formas pela

natureza e pela ação humana; uma dimensão funcional – apresenta relações entre

suas diversas partes; uma dimensão histórica – é produto da ação do homem ao longo

do tempo; e uma dimensão espacial – ocorre em certa área da superfície terrestre.

Mas além de tudo isso, a paisagem é portadora de significados, expressando valores,

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crença, mitos e utopias: tem assim uma dimensão simbólica. Ela pode ser, portanto,

definida como uma área composta por uma associação distinta de formas, ao mesmo

tempo físicas e culturais (CORRÊA & ROSENDAHL, 1998).

A paisagem, embora seja um dos termos mais antigos e de uso comum, talvez “se

coloque entre aqueles sobre cujo significado seja mais difícil de alcançar um

consenso”. (AMORIM,1998). A conceituação de paisagem aceita várias acepções,

apresentando diversos significados ou sentidos, dependendo da abordagem que se

adote.

Espaço do território que está ao alcance do nosso olhar, é a imagem apreendida

visualmente, sendo em determinado lugar e momento, resultado de uma combinação

dinâmica de elementos físicos, biológicos e humanos que, reagindo uns com os outros,

fazem dela um conjunto único e inseparável, em constante transformação e evolução.

A paisagem destaca-se por suas propriedades visuais, contudo sua análise para além

da visualização é primordial. Seus aspectos também englobam características físico-

ambientais, naturais, artificiais, culturais, simbólicas. Sua produção e transformação

contínuas estão associadas, basicamente, a fatores sociais, os quais produzem e

reproduzem, em diferentes contextos históricos, as contradições próprias aos

interesses humanos.

A paisagem é um espetáculo de imagens e de metáforas, constituída por vários outros

fatores.

Paisagem de fato é uma maneira de ver, uma maneira de compor e harmonizar o

mundo externo numa cena. "Está associada a uma nova maneira de ver o mundo,

como criação racionalmente ordenada, cuja estrutura e mecanismo é acessível à

mente humana e ao olhar" (Cosgove apud CORREA & ROSENDAHL, 1998).

A PAISAGEM COMO TERRITÓRIO

A paisagem como território refere-se neste trabalho ao meio físico onde o homem vive

e atua, onde desenvolve seu cotidiano e suas relações com as outras pessoas. É o

instrumento da materialização da paisagem, o espaço que será apreendido,

interpretado e compreendido como tal.

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Território - O termo advém das ciências naturais (da botânica mais especificamente),

sendo introduzido na Geografia por Friedrich Ratzel (1989), que o conceitua como uma

parte da superfície terrestre, passível de apropriação por uma comunidade, por um

povo e/ou pelo Estado. Sánchez (1992) revela-nos que desde 1897, em que Friedrich

Ratzel publicou a obra Politische Geographie (Geografia Política), como uma “geografia

dos estados, do comércio e da guerra”, a geografia passa a dispor de um novo ramo,

que tomará como centro do interesse o Estado e as relações espaciais de poder. [...]

Será assumido como campo do político na geografia todas aquelas relações sociais de

domínio, controle e gestão que adotam uma forma pública, com séculos de conflito, as

quais o espaço-território se faz presente como âmbito essencial destas relações.

Segundo Mário Ceniquel (Ceniquel apud MACEDO, 1992) a paisagem é o habitat do

homem, onde ele vive. E esse habitat seria o campo real da existência da paisagem, o

objeto que a designa, em meio aos significados metafóricos e simbólicos que a

definem.

Todo território traz consigo, além dos acidentes geográficos, outras fronteiras

delimitadas pelas características culturais, socioeconômicas, ambientais e de vida da

população que nele vive. A ocupação do território é vista como algo gerador de raízes

e identidade: um grupo não pode ser compreendido sem o seu território, posto que

sua identidade sociocultural estaria inarredavelmente ligada a ele. O espaço possuindo

uma carga emotiva, que faz parte da história de quem vive nele. Antônio Carlos

Diegues (1998) escreve que em nenhuma sociedade as realidades naturais se reduzem

somente aos seus aspectos físicos.

A PAISAGEM NO TEMPO

Considerando um ponto determinado no tempo, uma paisagem representa diferentes

momentos de desenvolvimento, sendo resultado de uma acumulação de tempos. Para

cada lugar, cada porção do espaço, essa acumulação é diferente: os objetos não

mudam no mesmo lapso de tempo, na mesma velocidade ou na mesma direção. A

paisagem assim no espaço se altera continuadamente para poder acompanhar as

transformações da sociedade. “A forma é alterada, renovada, suprimida para dar lugar

à outra forma às necessidades novas da estrutura social” (SANTOS, 1991).

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Nada em termos de paisagem pode ser considerado eterno, pois ela é dinâmica e de

evolução constante. Um contínuo processo de alteração ocorre em função das

necessidades da sociedade. Que em diferentes períodos de tempo poderá utilizá-la de

diferentes maneiras, renovando, alterando ou até mesmo suprimindo-a, dando origem

a novas paisagens. (Neves apud MACEDO, 1992).

Paisagem é transtemporal, juntando objetos do passado e do presente, uma

construção transversal (SANTOS, 1996).

PAISAGEM, CULTURA E SÍMBOLO

As paisagens se mostram diferentes em função de quem as observa, dada a carga

cultural simbólica, maneira e freqüência da observação. A paisagem não é apenas

aquilo que se encontra defronte aos olhos, mas pelo que se encontra dentro das

mentes, ou seja, somos capazes de ver aquilo que conseguimos interpretar.

Cosgove refere-se à paisagem como natureza transformada pelo homem, estando

intimamente ligada à cultura e com a idéia de formas visíveis sobre a superfície da

terra e com sua composição. Espaço percebido e construído simbolicamente,

constituindo o aspecto visível do espaço, organizado por dados sensoriais e simbólicos

do indivíduo. “É o conjunto de formas, que num dado momento, exprime as heranças

representadas pelas sucessivas relações entre o homem e a natureza”, diz Milton

Santos (1997).

O aspecto estético é cultural e está ligado ao nosso mundo particular de valores e

conhecimentos, são muito pessoais, variando de indivíduo para indivíduo, o que leva a

graus de valorizações atribuídos em função do gosto de cada um. Um alto valor

conferido a uma paisagem em determinado espaço de tempo poderá ser alterado em

outro momento, onde os padrões culturais e valores estéticos sejam diferentes.

A paisagem é, então, resultado de uma leitura e construção do sujeito que a lê,

enquanto espaço físico e cultural, pensando-a como condensação simbólica e material,

em busca de significação.

PAISAGEM: FRAGMENTOS DE TODO

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“ A configuração interna de uma cidade só pode ser apreendida como um todo de

maneira abstrata, a partir de sua própria invisibilidade. A adoção de um ponto de vista

é uma maneira de constituir um ponto cego da percepção” (JEUDY, Henri-Pierre,

2005).

A imagem da paisagem se apresenta de forma fragmentada para cada observador,

derivando de uma dimensão maior. Dependendo da escala nem sempre conseguimos

visualizar sua totalidade com um olhar. Podemos apreendê-la à maneira de cartões

postais, ou voltarmos para objetos isolados, mas, de um modo ou de outro, temos a

tendência a negligenciar o todo. Mesmo as paisagens que se encontram em nosso

campo de visão nada são mais do que frações do todo.

A paisagem sempre vai extrapolar e/ou superar a representação que cada pessoa faz

dela. O ponto de vista (ou a modalidade do olhar), que inclusive depende da evolução

da representação técnica das imagens, interfere na maneira de ver, conceber e

representar a paisagem.

Geograficamente a paisagem também assume uma qualidade orgânica. Roberto

Corrêa e Rosendahl Zeny em Paisagem, Tempo Cultura (1998), falam da relação

genérica que a paisagem possui com outras paisagens, constituindo um sistema geral,

sendo sua estrutura e função determinadas por formas integrantes e dependentes

entre si. Podemos seguir Bluntschli ao dizer que não se entende completamente a

natureza de uma área até que se “tenha aprendido a vê-la como uma unidade orgânica

para compreender a terra e a vida em termos recíprocos".

A impossibilidade de apreensão do todo e a esta relação orgânica entre paisagens

citada acima, do mesmo modo, podem situar a paisagem como um mosaico de

imagens.

O ESPELHO DA PAISAGEM

"O mundo é que nos pensa, é o objeto que nos pensa” Jean Baudrillard

Da mesma maneira que nós, seres humanos interferimos na paisagem, ela também

nos determina, influencia. É a relação com a reversibilidade do espelho, uma relação

mútua. CORRÊA e & ROSENDAHL (1998) assumem essa posição quando compreendem

a paisagem de dois modos: se por um lado ela é vista por um olhar, apreendida por

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uma consciência, valorizada por uma experiência, julgada (e eventualmente

reproduzida) por uma estética e uma ética, gerida por uma política, etc. Por outro lado

ela é matriz, ou seja, determina em contrapartida, esse olhar, essa consciência, essa

experiência, essa estética, essa ética e essa política, etc. A paisagem é marca, pois

expressa uma civilização, mas também uma matriz porque participa de esquemas de

percepção, de concepção e ação, canalizando em um certo sentido, a relação de uma

sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno. E

assim, sucessivamente, por infinitos laços de co-determinação. Como marca, a

paisagem pode e deve ser descrita e inventada.

Apoderar-se da imagem de uma paisagem significa, para Walter Benjamin , flagrar sua

própria imagem. O mapa da memória do eu e o da paisagem se sobrepõem, não é

possível desenhar um sem o outro. Diríamos com E. Hall que o homem e suas

extensões constituem um sistema inter-relacionado. É um erro agir como se os

homens fossem uma coisa e suas casas, suas cidades, suas paisagens, sua tecnologia,

ou sua língua, fossem algo diferente.

A noção de reflexibilidade relaciona-se à ordem simbólica (JEUDY, 2005), no aspecto

do símbolo que “representa sempre mais do que o significado evidente e imediato de

algo”, que reitera a noção de transmissão de sentido, assim como a multiplicidade e

circularidade dos signos.

CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL, Zeny. Paisagem, tempo e cultura. Rio de

Janeiro: Ed. UERJ, 1998.

DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e Mares: Simbolismo e Imaginário, 1998.

JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.

SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Hucitec, 1982.

SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.

SANTOS, Milton. A Natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória . São Paulo: Companhia das Letras, 1996.