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8/7/2019 O que um meme na Internet - ABCiber 2009
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O que um meme na Internet? Proposta para uma problemtica da memesfera1
Fernando Fontanella2
Universidade Catlica de PernambucoUniversidade Federal de Pernambuco
Resumo
Este artigo sintetiza algumas perspectivas para um estudo sobre os memes na Internet, propondo uma abordagem que enfatize as relaes entre os memes com contexto cultural esocial em que se inserem. Para isso, inicialmente realizada uma anlise crtica da teoria dosmemes, proposta por Richard Dawkins e desenvolvida por um conjunto de seguidores,
buscando avaliar sua adequao para o estudo especfico dos memes da Internet. Em seguida, discutido o conceito de memesfera como proposta que visa dar conta da conexes dosmemes dentro de uma perspectiva culturalista, na tentativa de abrir caminhos que permitamuma aproximao emprica do fenmeno.
Palavras-chave
Meme; Internet; cultura digital trash; cibercultura.
Proposta geral do artigo
A enorme quantidade de contedo gerado pelo usurio que caracteriza o advento da
chamada Web 2.0 muitas vezes parece se constituir de uma vasta quantidade de piadas
internas de mau gosto, vdeos mal produzidos, fotos mal batidas e mensagens pessoais um
conjunto de produtos que raramente atingiria qualidade e relevncia mnimas para circular
alm de um grupo mais prximo de amigos. No entanto, como bem nota Clay Shirky (2008,
p. 83-84), esse contedo no compreende somente a produo de pessoas comuns facilitada
pelo acesso s ferramentas criativas de novas tecnologias, mas tambm a ferramentas de
recriao, de produo colaborativa e de distribuio. Shirky assim advoga que a idia de
contedo gerado pelo usurio demandaria no apenas uma teoria das capacidades criativas,
mas uma teoria social de relaes mediatizadas.
III Simpsio Nacional ABCiber - Dias 16, 17 e 18 de Novembro de 2009 - ESPM/SP - Campus Prof. FranciscoGracioso
1 Artigo cientfico apresentado ao eixo temtico Entretenimento, prticas socioculturais e subjetividade, do IIISimpsio Nacional da ABCiber.
2
Professor da Universidade Catlica de Pernambuco, mestre e doutorando em comunicao pela UniversidadeFederal de Pernambuco. Email: [email protected].
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Nesse sentido, Jos Van Djick (2009, p. 44) defende que crucial identificar os
diferentes nveis de participao para obter uma idia mais precisa da cultura participatria. A
internet atrai uma combinao complexa de produes profissionais e amadoras, o que
presumiria que por trs da imagem de uma cultura caracterizada pela igualdade de
possibilidades de expresso criativa h na verdade diferentes articulaes de capacidades que
geram possibilidades desiguais de agncia cultural. Indivduos que, mesmo sendo
amadores, possuiriam maior domnio das tcnicas para a realizao desses contedos teriam
mais chance de ver suas produes circularem mais e ganharem mais relevncia.
Mas diversos fenmenos caractersticos da cibercultura, de produo coletiva annima
ou semi-annima, fundamentados no que Shirky chama de diviso do trabalho no-
gerenciada (2008, 117-122) oferecem uma perspectiva relativizada da anlise de Van Djick,
ao desestabilizar a noo de um autor. Por outro lado, grande parte dos contedos que ganham
relevncia na web so de qualidade tcnica duvidosa, sendo que talvez o maior exemplo disso
so os memes.
Os memes so o contedo mais prolfico e infeccioso da Internet. Se espalhando de
forma viral, memes como os lolcats, rage guy,failou a brasileira tenso j se incorporaram ao
panorama cultural da web, e a cada dia novos memes emergem de cantos escuros para seremcompartilhados atravs de redes sociais. Mais recentemente, verifica-se a crescente tendncia
de emergncia das memes para o mundo real (HWANG, 2009): enquanto que as memes dos
primeiros anos da Internet raramente saam daquele universo freqentado por entusiastas da
tecnologia, hoje possvel observar memes aparecendo na mdia de massa, apropriadas por
programas de humor ou mesmo por campanhas publictrias.
Nas prximas pginas ser apresentada uma proposta de estudo para os memes, no
entendimento que eles so uma ocorrncia que oferece perspectivas centrais, mas ainda pouco
exploradas, sobre as dinmicas da cibercultura. Para isso, ser realizada inicialmente uma
explorao crtica da teoria geral dos memes como proposta originalmente por Richard
Dawkins, buscando avaliar suas vantagens e desvantagens para o estudo dos memes no
contexto especfico da Internet. Em seguida se tentar construir uma ciso contextual do
fenmeno das memes ciberculturais a partir da noo de uma memesfera. Por fim, sero
apontados algumas concluses obtidas a partir de anlises empricas.
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Memes e a memtica como cincia
O conceito de meme surge no contexto da proposta revolucionria do etlogo Richard
Dawkins em sua obra O Gene Egosta (2001). Darwinista entusiasta, e buscando uma soluo
para contradies que permaneciam no seio da teoria da evoluo, Dawkins props enxergar a
seleo natural como uma competio entre os genes, chamados por ele de replicadores.
Dawkins descreve esses replicadores como moldes ou modelos relativamente estveis
que competem entre si em um ambiente de recursos limitados, atravs da capacidade de fazer
cpias de si mesmos (2001, p. 36-39). O autor originalmente fala de molculas estveis que,
formadas acidentalmente em um caldo primitivo, tenderiam a multiplicar-se por replicao,
sendo que as mais bem sucedidas se tornariam mais numerosas na terra. Eventualmente
surgiriam formas primitivas molculas de DNA que compem os genes, para os quais os seres
vivos no seriam mais do que mquinas de sobrevivncia, utilizadas para aumentar as
chances de perpetuao nas unidades genticas (ibidem, p. 43). Dessa forma, a teoria do gene
egosta consiste na perspectiva que a seleo natural na verdade uma competio pela
sobrevivncia no entre espcies ou indivduos, mas entre os genes.
A teoria de Dawkins revolucionria, pois resolve uma srie de impasses da teoriaoriginal de Darwin, como por exemplo a contradio da constatao de diversos exemplos de
egosmo e de altrusmo em diferentes espcies, que sugeriria por um lado a tendncia a uma
luta pela perpetuao gentica do indivduo, e por outro a perpetuao de seu grupo ou
espcie (2001, p. 23 a 25). Ao localizar disputa pela sobrevivncia nos genes, Dawkins
soluciona esse problema, pois os genes agiriam atravs de quais meios fossem necessrios -
inclusive em detrimento do indivduo - para reproduzirem-se.
O conceito de meme surge quando Richard Dawkins, acreditando ser a teoria
Darwiniana da seleo natural boa demais para limitar-se ao campo dos genes, sugere o
surgimento de um novo tipo de replicador, surgido no caldo primordial da cultura humana
(2001, p. 214). O autor prope o nome meme ressaltando entre suas vantagens ser uma
abreviao do grego para imitao (mimeme) e por se aproximar da sonoridade de gene.
Dawkins oferece como exemplos de memes melodias, idias, slogans, modas do vesturio,
maneiras de fazer potes ou de construir arcos (ibidem, p. 214).
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Mas por quais recursos os memes competem? Para Dawkins, os memes disputam a
nossa ateno e o limitado espao de armazenamento de informaes em nossos crebros
(2001, p. 218). Essa noo importante para o entendimento da atratividade oferecida pela
teoria dos memes para uma srie de pesquisadores, preocupados com as razes pelas quais
algumas informaes tem maior apelo para a circulao do que outras. E especialmente no
caso da Internet e do contexto de saturao da ateno do ambiente miditico contemporneo,
alegadamente a memtica seria capaz de oferecer razes empricas para os fenmenos virais,
possibilitando inclusive o desenvolvimento de tcnicas produzir mensagens com maior
probabilidade de espalhamento. Para os publicitrios, seria como achar uma mina de ouro.
A hiptese de Dawkins angariou um conjunto de seguidores, que buscaram dar
continuidade a ela na forma de uma cincia dos memes, ou a memtica. Uma das maiores
maiores defensoras dessa nova cincia Susan Blackmore. Para ela, o meme tudo aquilo
que voc aprendeu de outra pessoa atravs da imitao (2000, p. 6).
Quando voc imita algum, algo passado adiante. Esse algo pode ento ser passado adiantede novo, e de novo, e assim ganha uma vida prpria. Ns podemos chamar essa coisa umaidia, uma instruo, um comportamento, um pedao de informao... mas se ns vamosestud-la ns precisamos dar a ela um nome (BLACKMORE, 2000, p. 06)
Blackmore reproduz assim a definio de Daniel Dennett, outro importante defensorda hiptese, que descreve o meme como uma idia que passada adiante (apud
BLACKMORE, 2000, p. 63).
O conceito de replicador e a analogia entre o meme e o gene esto na base das
formulaes da memtica. Um exemplo disse est na afirmao de que o algoritmo
evolucionrio da variao, seleo e reteno se aplica para o entendimento dos memes
(BLACKMORE, 2000, p. 14). No caso das memes, a variao se refletiria no fato de que as
cpias de uma meme no seriam sempre perfeitas, gerando mutaes que aumentam a
chance de a idia permanecer viva, mesmo que modificada. Por seleo, o fato de que
algumas memes atraem a ateno e so retransmitidas, enquanto outras falham. Por fim, a
reteno envolve a permanncia de algumas idias ou comportamentos em uma meme
retransmitida, de forma que o processo possa ser considerado uma imitao.
Da mesdma forma, considerando que a razo de ser dos replicadores produo de
cpias por imitao, Dawkins sugere que os trs critrios para identificar um meme bem
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sucedidos so os mesmos apontados para os genes: longevidade, fecundidade e fidelidade de
cpia (2001, p. 216), embora muitas vezes haja nfases em um ou outro dos trs
(BLACKMORE, 2000, p. 58). Dessa forma, os memes poderiam ser comparados com base
em sua maior ou menor capacidade de permanncia na memria coletiva (longevidade), sua
probabilidade de propagao (fecundidade) e a capacidade de reter caractersticas do meme
original (fidelidade de cpia).
A possibilidade de comparar memes dentro de valores de replicao poderia facilitar a
identificao de causas para o sucesso ou fracasso de memes. Kate Distin uma das que
seguem por esse caminho. Recusando a afirmao de Daniel Dennett e de Susan Blackmore
de que as pessoas seriam apenas veculos para as memes (ou mquinas de memes, como
fala Blackmore), Distin procura construir uma abordagem que a evoluo memtica
consistente com a ao consciente, intencional e responsvel de agentes livres (2005, p.
04-05).
Para Distin, memes sobrevivem por mutao (2005, p. 50). A cultura vasta e diversa,
ento memes tero diferentes nveis de variabilidade (mutabilidade). Diferente da mutao
randmica dos genes, no entanto, Distin afirma que os memes podem ter sua mutao
determinada por decises humanas conscientes. Segundo a autora, possvel constatar que asmemes so mais facilmente lembradas quando so idias novas, se so melhor absorvidas em
uma rede de idias aceitas pr-existente ou se so teis em um contexto (ibidem, p. 44-45).
Tentando dar conta a agncia humana nesses critrios de seletividade, Distin identifica
trs fatores dos quais depende o sucesso de um meme: o contedo do meme e o apelo por ele
produzido; a maneira com a qual o meme se relaciona com uma rede de outros memes j
aceitos pelos indivduos e pelo grupo; e a capacidade do meme em se relacionar com o
ambiente externo em que vivem as pessoas que entram em contato com ele (2005, p. 57).
Dessa forma, para Distin a seleo favorecer memes que so mais capazes de aproveitar o
ambiente cultural em que se inserem (ibidem, p. 59).
Problemas com a memtica
Sintetizados alguns conceitos centrais que orientam a memtica, cabe agora o
questionamento sobre qual a contribuio que ela poderia oferecer para o estudo dos memes
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na Internet. Embora o uso coloquial do termo na Web tenha de certa forma se desconectado
do contexto acadmico original, os preceitos da hiptese formulada por Dawkins e seus
sucessores parece ser um ponto de partida natural. No entanto, sero levantados dificuldades e
limitaes da memtica para a abordagem de fenmenos culturais, para ento partirmos para o
caso especfico das memes ciberculturais.
O antroplogo Maurice Bloch (2005, p. 87-101) enxerga problemas conceituais e
prticos na teoria dos memes que comprometem seriamente a sua validade para o
entendimento de fenmenos culturais. O primeiro ponto apontado por Bloch o fato de que,
ao contrrio do conceito de gene, no h uma defino precisa para o que seria uma meme
(ibidem, p. 91). O que seria essa unidade de informao?
Como foi apontado anteriormente, a grande vantagem da teoria da replicao gentica
de Dawkins est no fato de que ela soluciona srios impasses da teoria da evoluo de Darwin
passando a focar nos genes identificado como unidades replicadoras. Para aplicar a mesma
lgica para os memes preciso identificar de forma consistente qual seria essa unidade
replicadora na esfera das idias. Nas definies estabelecidas so vagas, e a opo quase que
invariavelmente sustentar a idia de meme a partir de exemplos que na prtica no permitem
um entendimento preciso. No caso de uma piada de papagaio que se difunde, o que seria ameme? A piada em sim, o uso de papagaios, a prtica de contar piadas? Dawkins (2001, p.
220-221) e Blackmore (2000, p. 19-20) buscam resolver esse problema atravs da idia de
memeplexos, ou combinaes de memes que aumentam o seu potencial replicador. No
entanto essa uma tentativa frustrada, pois como afirma Bloch (2005, p. 92), no possvel
estabelecer os contornos de um memeplexos mais do que de um meme.
As memes precisam ter uma forma definida no mundo, e no podem permanecer como
uma forma arbitrria de anlise. Sem a existncia de uma unidade replicadora definida, a
memtica perde sua fora, pois passa a limitar-se a oferecer uma alternativa estril para a
explicao dos fenmenos de difuso cultural e o que pior, ignorando compreenses sobre
o fenmeno da cultura desenvolvidos e debatidos por dcadas em disciplinas como a
antropologia e a sociologia.
Ao oferecer avanos e novos modelos de anlise que claramente tornassem defasadas
hipteses anteriores, a memtica poderia argumentar com facilidade a sua validade (e sua
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vantagem como explicao fenomenolgica). No entanto, depois de anos desde sua
proposio, a memtica pouco produziu alm de um conjunto de taxonomias e constataes
que j haviam sido atingidas antes por outras teorias.
Um segundo grande problema da teoria dos memes apontado por Bloch est no fato de
que a analogia entre memes e genes busca enfatizar a semelhana entre os dois (2005, 90-91).
Embora os defensores da memtica afirmem que as duas coisas so diferentes, pois seriam
feitos de diferentes substncias (BLACKMORE, 2000, p. 16-18), a questo sempre volta ao
que semelhante entre os dois: o fato de ambas serem replicadoras e estarem submetidas
portanto ao algoritmo Darwinista. Essa a novidade da memtica, a base que sustenta a sua
promoo como uma hiptese revolucionria e vantajosa em relao a explicaes anteriores.
No entanto, a conseqncia dessa analogia a tendncia a enxergar a cultura como sendo
composta por um conjunto de unidades de informao distinguveis que teriam uma vida
prpria. Tambm nessa perspectiva, o desenvolvimento cultural s teria sentido se visto do
ponto de vista de um sucesso replicador dos memes (BLACKMORE, 2000, p. 37-38).
H problemas flagrantes nessa proposta, pois no enxergar a cultura como sendo mais
do que um conjunto de unidades (BLOCH, 2005, p. 98) significa, por exemplo, ignorar o
papel as prticas culturais no fluxo da vida cultural cotidiana. Alm disso, h o risco constantede minimizar a capacidade do indivduo de criar diferena no curso de eventos (GIDDENS,
2003, p. 17). Como foi visto anteriormente nas anlises de Kate Distin, dentro dos prprios
defensores da memtica h a emergncia de um incmodo com essa omisso em relao
questo da agncia das pessoas.
Um sintoma dos problemas encontrados pela memtica em produzir resultados est no
encerramento do Journal of Memetics em 2005. A publicao, considerada uma referncia
entre os entusiastas dessa teoria, aps oito anos no teria conseguido resolver desafios
considerados cruciais, e definidos pelos prprios memeticistas, para a sobrevivncia da
memtica como teoria cientfica (EDMONDS, 2005), especialmente a necessidade de
ofecerer algum entendimento realmente novo para o fenmenos culturais, no mximo se
limitando a redescrever fenmenos dentro do modelo da memtica.
Memes na Internet
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Como foi visto, um dos problemas da memtica est em sua dependncia de um
conceito preciso sobre o que a unidade replicadora. Uma tentativa de se aplicar as bases da
memtica aos memes da Internet experimentaria a mesma dificuldade, tendo em vista que na
web o termo meme usado de forma coloquial para definir um conjunto bastante
heterogneo de fenmenos.
Raquel Recuero oferece um exemplo notrio de uma proposta de estudo das memes
fortemente baseada na memtica, ao formular uma classificao que permita o estudo das
memes (2009, p. 122-134), A inteno de Recuero claramente conectar a difuso de memes
produo de capital social pelos indivduos conectados atravs de redes sociais. Embora seja
sem dvida uma perspectiva interessante, o objetivo de Recuero somente pode ser atingido
pelo fato de ela visualizar a agncia dos sujeitos envolvidos, ao adotar a noo de que estes
que seriam os replicadorespara as memes (ibidem, p. 123).
Da mesma forma que Dawkins e Blackmore, Recuero mantm a avaliao dos memes
com base nas trs caractersticas relacionadas competio pela memria: longevidade,
fecundidade e fidelidade de cpia, acrescentando uma dimenso de alcance (se so memes
locais ou globais), fundamentando sua classificao nessas variveis. No entanto, no fica
claro como esses aspectos determinam o sucesso de um meme apenas oferecida umametodologia para a constatao do sucesso ou no da meme nos aspectos apontados.
De forma no intencional, Recuero mostra que a teoria dos memes talvez no deva ser
completamente descartada quando se trata de estudar os memes da Internet. A idia de
replicadores atraente: ela permite visualizar um fenmeno caracterizado pela constante
emergncia e difuso viral desses memes ciberculturais. No entanto, necessrio desenvolver
um modelo analtico que busque claramente superar as limitaes da memtica, especialmente
na sua perspectiva sobre a cultura e sobre a agncia humana.
Convm iniciar pela proposio de um conceito mais ou menos claro para as memes
da Internet que permita tratar de suas especificidades. Se abandonarmos a insistncia na
analogia entre genes e memes, a adoo de uma definio abrangente torna-se menos um
problema e mais uma vantagem nesse momento exploratrio inicial. No entanto, o desafio de
uma conceituao mnima permanece.
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Coloquialmente os memes so entendidos como idias, brincadeiras, jogos, piadas ou
comportamentos que se espalha atravs de sua replicao de forma viral, e caracterizados pela
repetio de um modelo formal bsico a partir da qual as pessoas podem produzir diferentes
verses da mesma meme3. Dessa forma, os memes de diferenciam dos vdeos virais, pois
presumem que, medida em que a meme se espalhe pela rede, surjam verses alteradas da
idia original.
A vantagem para a utilizao da idia de replicador no contexto especfico da Internet
est no fato de que torna-se possvel identificar qual seria a unidade replicadora, na forma de
um molde comum (ou templates, como so chamados algumas vezes) a partir do qual so
geradas as diferentes verses das memes.
A meme conhecida como rage guy (tambm conhecida como ffffuuuu) bastante
popular a partir do final de 2008, oferece um exemplo til sobre como isso ocorre. A
brincadeira por trs da meme bem simples: a partir de um modelo comum (figura 1),
facilmente encontrado atravs de uma busca de imagens no Google.
Figura 1: Modelo bsico para meme rage guy4
A partir do modelo, pode-se produzir uma pequena histria em quadrinhos, cujo final
sempre o mesmo o quadrinho com o rosto desesperado, desenhado de forma tosca, gritando
ffffuuu (a primeira metade da palavra inglsa fuck e de sua equivalente brasileira
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3 As definies para memes da Internet propostas aqui so uma tentativa de delinear um conceito a partir dediversos usos do termo, constatados no curso de uma pesquisa emprica sobre memes.
4 Todas as verses da meme rage guy reproduzidas neste artigo foram obtidas no 4chan (www.4chan.org), que asmantm disponvel por um perodo curto de tempo antes de apag-las, e portanto no sero oferecidas
referncias para as imagens. No entanto, centenas de verses da meme podem ser facilmente encontradas noendereo http://knowyourmeme.com/memes/rageguy-fffuuuu.
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fudeu). As histrias invariavelmente se referem a situaes frustrantes, que podem ser
cotidianas ou fruto de uma criatividade que s a inteligncia coletiva pode oferecer.
Figura 2 e 3: Exemplos do meme rage guy
Se no caso de rage guy o replicador o modelo bsico da histria em quadrinhos, no
caso de outros memes ele pode tomar formas variadas, mas que no apresentam problemas
para sua identificao. Por exemplo, no caso dos chamados image macros, imagens s quais
adicionado um texto que compe o efeito humorstico, o modelo pode ser a combinao
entre a imagem de um gato com um texto mal escrito (como no caso dos famosos lolcats) ou
de uma imagem de um acidente adicionado da palavra fracasso (como no caso da meme
fail).
Como foi mencionado, a apropriao do conceito de replicadores aqui realizada
pretende manter em vista uma perspectiva da agncia dos indivdos que interagem com a
meme. Seguindo a perspectiva de Kate Distin anteriormente apresentada, possvel
identificar como as verses de rage guy dependem da ao criativa e consciente das pessoas,
dentro de uma enorme gama possibilidades oferecidas pelo replicador original. Alm disso,
alguns usurios se permitem variaes no inicialmente previstas (figuras 3 e 4), podendo
assumir formas extremamente distintas do modelo original e eventualmente gerando novos
memes. A noo de uma competio pela ateno dos usurios no abandonada, j que
possvel constatar que alguns modelos e verses de memes claramente tornam-se mais
populares e duradouros. No entanto, essa competio diretamente determinada pelos agentes
no processo de produo e difuso do meme.
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Figura 3 e 4: Exemplos do meme rage guy
A identificao de uma unidade replicadora que compreende a agncia humana por si
s no elimina completamente os riscos apontados na hiptese dos memes. preciso dar
conta tambm das prticas culturais que se do a partir da apropriao ttica desses
replicadores, no mesmo sentido apontado por Michel de Certeau (1994, p. 39) sobre os usos
que as pessoas fazem de materiais culturais.
Nesse sentido, foi apontado que os memes se diferenciam dos vdeos virais por serem
orgnicas, cada um faz sua verso. Os vdeos virais so passados adiante, mas geram poucoenvolvimento (DUTTA, 2009). Paradoxalmente, no caso dos memes da Internet os
replicadores so justamente um elemento que estimula a participao das pessoas comuns,
pois como o modelo bsico simples e a qualidade demandada para as intervenes no
muito exigente, torna-se muito fcil participar produzindo uma verso original, ao invs de
apenas retransmitir um j existente.
Memes e Memesfera
Mas ainda resta a tarefa de propor uma problemtica de anlise para os memes da
Internet que d conta da diversidade prevista no conceito, e da agncia humana descrita e ao
mesmo tempo do seu carter replicador. Essa problemtica torna-se possvel atravs do
conceito de memesfera.
Memesfera tem a vantagem de ser um conceito j presente na cibercultura
(PICKARD, 2008), e de se aproximar do bastante difundido termo blogosfera. Como foi
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afirmado, preciso buscar alternativas conceituais e metodolgicas que evitem ver a cultura
como um simples ajuntado de memes. Nesse sentido, h indcios de que os memes formam
uma subcultura, estabelecendo relaes dinmicas entre si medida em que sujeitos
interagem atravs delas. Portanto, a inteno aproveitar a noo de um ambiente integrado,
permitindo o estudo dos memes dentro de sua relao complexa com fatores tecnolgicos,
sociais, econmicos e polticos, evitando tanto o determinismo tecnolgico e ao mesmo tempo
que considerando os impactos culturais da tecnologia. Alm disso, o conceito permite pensar
em pessoas ativas na memesfera, ou seja, essa metfora de ambiente facilita tambm
problematizar a agncia. Em sntese, trata-se de um conceito que abre caminho para uma
abordagem contextual dos memes.
A proposta geral de memesfera se aproxima do que o pesquisador americano Tim
Hwang chama de memescape5 (2009). Hwang parte do princpio de que h uma ligao entre
os memes da internet tanto entre memes que esto circulando em um dado momento, quanto
entre memes de diferentes perodos. Os memes no so fenmenos culturais aleatrios, e so
coletivamente articulados com outras esferas da vida social.
Mais especificamente, podemos abordar a memesfera a partir dos artefatos,prticas e
arranjos sociais envolvidos (LIEVROUW e LIVINGSTONE, 2007). O estudo dos artefatosenvolve o entendimento de como as memes emergem estimuladas por novas tecnologias de
produo e distribuio. Por um lado, bastante provvel que a produo e difuso de memes
afetada pela popularizao de computadores que possibilitam a sua produo e difuo, assim
como de softwares que facilitam a edio de imagens, vdeos e textos, de forma que um
nmero cada vez maior de pessoas pode produzir suas memes de formas cada vez mais
diversas. Alm disso, o aumento do nmero de equipamentos que permitem produzir imagens
(cmeras fotogrficas e de vdeo, scanners) tambm oferece um nmero maior de matria
prima para a emergncia de novos memes. fcil constatar que o nmero de memes vm
aumentando com o crescimento da rede mundial de computadores, assim como aumentam
ssuas formas e canais de interao. Tambm interessante notar a relao das possibilidades
conbinatrias das memes, fundamentadas em modelos bsicos facilmente conectveis a
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5 De fato, memespherepode ser tomado como um sinnimo do que Hwang chama de memescape, inclusive emdiversas definies conceituais feitas pelo americano. Mas como o conceito do americano ainda no tem uma
formulao estvel, foi feita a opo de manter o uso do termo memesfera, que alm do mais se adapta melhorao uso na lngua portuguesa.
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imagens, sons e vdeos para a produo de mashups, ao conceito de modularidade das novas
mdias identificado por Lev Manovich (2001, p. 51-52).
Quanto s prticas, compreende-se as atividades nas quais as pessoas se envolvem
quando interagem com os memes e atravs delas. Essa uma forma tambm de dar conta da
agncia das pessoas, de sua tentativa de construir subjetividades atravs dos memes. Os
memes se incorporam a prticas culturais j existentes (LIVINGSTONE, 1999, p. 61). Nesse
sentido, preciso contextualizar a sua articulao com os ambientes sociais em que elas se
inserem: o espao privado do lar, o ambiente do trabalho, as diferentes relaes sociais
estabelecidas entre as pessoas que trocam memes entre si.
Por fim, porarranjos sociais entende-se as organizaes e instituies que se formam
em torno das memes. Subculturas inteiras so criadas em torno de memes especficas, como
o caso dos lolcats, que originaram uma comunidade persistente voltada para eles em torno do
blogI Can Has Cheezburger6, administrado por uma empresa completamente voltada para a
explorao comercial de cultura dos memes atravs da venda de espao publicitrio no blog e
a venda de produtos temticos (PICKARD, 2008).
Perspectivas para o estudo da memesfera
A maior parte dos memes bem sucedidas surge longe dos lugares mais conhecidos da
web, nos cantos escuros e pouco regulados da Internet, como os caticos frums de discusso
ou os chans7, onde a maioria dos freqentadores permanece annima. A partir dali que eles
emergem para circular atravs de blogs e de redes sociais como o Myspace, Facebook, Orkut
ou Twitter.
curioso observar como esse que o ambiente catico e de recursos extremamente
limitados fomenta a criatividade das memes. Tim Hwang (2009) chama de paradoxo do
4chan o fato de que grande parte das memes da Internet surge no website, o mais conhecido
chan do mundo ocidental, e no nas redes sociais mais populares. Buscando uma razo para
esse fato, Hwang formula a hiptese de que os chans, paradoxalmente por oferecerem um
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6 Endereo: www.icanhazcheezburger.com.
7 Os chans so uma espcie de frum para o compartilhamento de imagens conhecidos em ingls como imageboards, originalmente populares no Japo e difundidos no ocidente pelos amantes da cultura japonesa. Entre as
caractersticas dos chans est o fato de que a maioria dos participantes permanece annima (o que estimula acompleta liberdade de expresso) e que os tpicos so apagados depois de algum tempo.
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nmero menos de ferramentas para interao, acabam estimulando interaes mais
espontneas e envolventes para seus participantes. Enquanto que no 4chan existem duas
formas gerais de interagir atravs do uso de imagens ou de textos em uma postagem em
um rede social como o Facebook h diversas formas embutidas na prpria mecnica do
website. Da mesma forma que a baixa qualidade esttica exigida nos memes permite que
qualquer pessoa realize sua verso, minimizando o papel da habilidade tcnica individual, os
poucos recursos de interao do 4chan abre espao para um nmero maior de possibilidades
de expresso das memes.
Alm disso Hwang diz que as memes do 4chan de multiplicam de forma derivativa.
Cada verso criada de uma meme uma modificao da original, e medida em que vo
aparecendo novas verses a meme vai ganhando vida prpria, assumindo formas
impossveis de se prever originalmente; novamente, o caso dos j citados lolcats, surgida
originalmente no 4chan.
No entanto, as redes sociais tambm apresentam suas memes tpicas, como aquelas
chamadas por Raquel Recuero de memes mimticas (2009, p. 126). No entanto, tratam-se
de memes com muito menor variao e riqueza, e que embora se espalhem com mais rapidez,
tambm tendem a ter uma vida mais curta, j que esgotam facilmente suas possibilidades e sedesgastam em seu contexto social de uso. O mesmo ocorre com os memes que emergem no
Twitter na forma de hashtags, como os boatos falsos sobre a morte de celebridades, que
muitas vezes no conseguem perdurar por mais de um dia.
Alm de diferentes memes que se espalham pelos diferentes canais, possvel tambm
constatar o surgimento de gneros entre as memes. Tim Hwang (2009) enxerga nisso
indcios de que as memes estariam criando seu prprio universo auto-referente de contedo.
Os memes estabelecem entre si uma srie de relaes intertextuais que desestabilizam a
concepo de um autor, e talvez por isso a forte associao da memesfera com canais que
privilegiam o anonimato como os chans.
Essa constatao certifica a coerncia da memesfera com a cultura digital trash
(FONTANELLA, 2009), caracterizada pela esttica tosca, a ironia e a pardia. De fato,
possvel afirmar que os fluxos da memesfera so os principais definidores das dinmicas
dessa cultura, sendo assim o estudo das memes crucial para a sua compreenso.
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