40
“o que MEU PAI não me disse” de Paulo Fernando Góes CONTATO: [email protected] OUTROS TEXTOS: paulofernandogoes.blogspot.com

o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

“o que MEU PAI

não me disse”

de Paulo Fernando Góes CONTATO: [email protected]

OUTROS TEXTOS: paulofernandogoes.blogspot.com

Page 2: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

2  

Personagens

PAI

Viúvo de 62 anos, vive uma aposentadoria confortável. Teve uma juventude reprimida e, somente agora, pode usufruir da liberdade que tanto almejou. Está sempre revendo seus conceitos e se permitindo a experimentar novos prazeres. Tem muito orgulho do seu Filho e ama-o incondicionalmente.

FILHO

Jovem universitário, responsável e católico. Foi criado pela vó depois que sua mãe faleceu de câncer. Ainda vive este luto e entra em conflito com seu Pai por ele não fazer o mesmo. Sonha em constituir uma família da forma mais tradicional possível. É um rapaz sensível, de poucos e bons amigos.

S inopse

O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar sua independência. Seu Pai, por sua vez, busca outro tipo de liberdade. Viúvo e aposentado, sente-se disposto como um adolescente para fazer tudo o que a vida ainda não lhe permitiu. Em “O que meu pai não me disse” acontece um embate de gerações às avessas, onde o Filho, prudente em excesso, critica severamente seu Pai por querer aproveitar na velhice uma juventude tardia. No decorrer da ação, o Pai revela fatos surpreendentes sobre o passado da sua família que abalam a imagem sagrada que o Filho tinha dos seus pais. Desnorteado, o rapaz mergulha fundo em sua história e se vê obrigado a rever seus valores. Uma história envolvente, extremamente contemporânea, que aborda temas profundos e universais de forma leve e bem humorada.

Page 3: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

3  

CENA 1

(O Filho dorme no sofá da sala com o controle da TV na mão. O Pai entra com um bolo de aniversário.)

FILHO – Que horas são?

PAI – Dez horas!

FILHO – Cheguei de manhã.

PAI – Quer um café?

FILHO – Não!

PAI – Por que não foi dormir no seu quarto?

FILHO – Me deixa dormir!

PAI – Apaga as velas! Vinte e três!

(O Filho apaga as velas com má vontade.)

PAI – Fez o pedido?

FILHO – Vários! Um: paz e sossego! Dois: emprego pra que eu possa me sustentar e me livrar da

mesada! Três: que eu jamais tenha filhos! Só cachorros!

PAI – Que besteira!

FILHO – Posso ter esse direito?

PAI – Se eu tivesse usufruído desse direito, você não estaria aqui!

FILHO – Era um direito seu.

PAI – Malcriado!

FILHO – Pai, me deixa dormir?

PAI – Vai, vai dormir!

FILHO – Valeu! Boa noite.

PAI – Bom dia!

(O Filho vai saindo e o telefone toca. Pai insinua que ele deve atender.)

FILHO – Já estou dormindo!

Page 4: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

4  

PAI (atendendo o telefone) – Alô. Oi, minha filha! Tudo bem? Saudade! Só assim você me liga, não é?

(Tempo.) Tá no quarto com a macaca! Eu, essa besta, caí na asneira de acordá-lo com um bolo! Ele

resmungou, grunhiu e foi pro quarto dormir. Digo pra ele que você ligou. (Tempo.) Ele não ligou? E como

é que ela vai? Aprontando muito? Criança saudável é assim! É bom mesmo que ela apronte pra que você

saiba o que eu passei com vocês! (Risos.) Outro grande pra você. Tchau!

(Assim que o Pai desliga o telefone, o Filho entra.)

FILHO – Perdi o sono.

PAI – Era sua irmã.

FILHO – Depois eu ligo.

PAI – Ela me disse que você não telefonou pra sua sobrinha no dia das crianças.

FILHO – É só mais uma data pro comércio. Assim como o Natal.

PAI – Mas qual é a criança que não gosta de ganhar presentes? Lembra das vergonhas que me fez

passar nos seus aniversários? Quando os convidados chegavam com o presente, você apalpava o

embrulho e se fosse brinquedo, ótimo! Se fosse roupa, largava num canto e saía sem agradecer.

(Tempo.) Capetinha. Lembra quando te expulsaram da escola na segunda série? A diretora me telefonou

pedindo pra pegar de volta você e o cheque que eu tinha deixado.

FILHO – Lembro! Um garoto pentelho veio me dizer que era ele quem mandava na turma inteira e que eu

tinha que pagar pedágio pra ir ao pátio da escola. Eu disse que mandasse no que quisesse, menos em

mim. Partiu pra cima e eu quebrei o nariz dele.

PAI – Sua mãe ficava maluca! Eu dizia, deixa o menino. Ela dizia que eu te criava solto demais.

FILHO – Sinto muita falta dela.

PAI – Ela está melhor do que nós, meu filho.

FILHO – Doença maldita!

PAI – Foi muito rápido! Tem gente que sofre meses, anos com câncer.

FILHO – Me sinto órfão.

Page 5: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

5  

PAI – Você não é órfão e nem criança!

FILHO – Amor de mãe e filho não tem idade.

PAI – Amor de pai e filho também não.

(Silêncio.)

PAI – Ah, não! Nada de tristeza! É seu aniversário! Vamos ouvir o bom e velho Sinatra! (Coloca ‘All Of

Me’). Dá um abraço no seu pai. Vinte e três anos, hein? Um adulto! Até parece! Hoje em dia a infância

está acabando cada vez mais cedo e a adolescência, indo até os trinta! Na minha época, criança vestia

roupa de criança. Maquilagem, então, nem pensar! E os adolescentes não perdiam horas no computador

como essa garotada de hoje, não. Minha geração começou a trabalhar muito cedo!

FILHO – É uma indireta?

PAI – Claro que não! Eu sei que as coisas não estão fáceis por aí. Mas, graças a Deus, eu posso ajudar!

Qualquer coisa...

FILHO – Acabo minha faculdade no fim do ano e eu tô feliz com isso.

PAI – É o que importa! Mas, se você descobrir que não é Direito que você quer, jogue tudo pro alto!

FILHO – Tá doido, pai? Tenho juízo!

PAI – Até demais! Podia jogar um pouco fora!

FILHO – Desde quando ter juízo é ruim?

PAI – Tudo em excesso é! A vida só tem graça se você se permitir fazer certas loucuras que o juízo, às

vezes, impede.

FILHO – Tipo?

PAI – As minhas são as minhas. Descubra as suas.

FILHO – Quais seriam as suas! Só fico imaginando.

(Silêncio. O filho liga a TV em um desenho animado japonês.)

PAI – Você vai tomar café ou vai esperar o almoço?

FILHO – Tô sem fome.

Page 6: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

6  

PAI – Você viu que eu comprei torta de prestígio?

FILHO – Vi, depois eu como.

(Silêncio.)

PAI – E a farra ontem, como foi?

FILHO – Legal.

PAI – Foi com quem?

FILHO – A galera de sempre.

PAI – Onde?

FILHO – Numa boate, você não conhece.

PAI – Talvez conheça.

FILHO – Peraí, pai, me deixa ver...

PAI – Desenho?

(O Filho desliga a TV e se levanta.)

PAI – Você tá chateado? Aconteceu alguma coisa?

FILHO – Vinte e três anos e sou tratado como se tivesse doze! Tenho que dizer pra onde fui ou deixei de

ir toda vez que chego em casa?

PAI (sem dar confiança, em tom de brincadeira) – Não rosne pro seu pai!

FILHO – Ah, que saco!

(O telefone toca.)

PAI – É pra você.

FILHO – Alô? Opa, tudo bem? Ah, obrigado! Você não esquece, hein? Vinte e três. Pois é. Obrigado, pra

nós! Adorei você ter ligado. Valeu, tá, obrigado mesmo. Tchau!

PAI – Quem era, meu filho?

FILHO – O Guilherme.

PAI – Ah, como vai ele? Ainda trabalhando como modelo?

Page 7: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

7  

FILHO – Tá.

PAI – Nunca mais ele veio dormir aqui. Vocês já foram bem mais próximos. Andaram brigando?

FILHO – Não, pai. Nós não brigamos. O Guilherme tá namorando uma menina chata e muito ciumenta e,

por isso, acabou se afastando um pouco dos amigos.

PAI – Você chegou primeiro, devia ter prioridade!

FILHO – Cada um faz o que quer da vida, pai! Deixa o Guilherme lá, vivendo a vida dele. Eu tô vivendo a

minha. E você não tem nada a ver com isso!

PAI – Pra quê essa grosseria gratuita?

FILHO – Eu estou de saco cheio dos seus interrogatórios! Eu tenho vin...

PAI – Ah, já sei, já sei! Você já tem vinte e três anos! Meu Deus, não sabia que essa idade ia pesar tanto

pra você. Eu, com meus sessenta e quatro, sou muito mais leve!

FILHO – Não gosto que fiquem tomando conta da minha vida, só isso!

PAI – Perguntei por curiosidade! Quando um filho quer se envolver com coisas erradas, não tem pai nem

mãe que segure! E você teve liberdade pra fazer suas escolhas. Sua profissão, seus namoros, sua vida!

FILHO – Só me envolvo com pessoas de bem e vou me formar em Direito na Federal! Satisfeito?

PAI – Tá, tá, tá certo!

FILHO – E é claro que eu faço minhas besteiras por aí.

PAI – Ainda bem! A gente aprende e muito quando erra.

FILHO – Toda vez que eu erro é tentando acertar.

PAI – Faz parte da vida. Não tenha medo, nem culpa.

FILHO – Às vezes, tenho medo. De me decepcionar com as pessoas.

PAI – Mas é claro que você vai se decepcionar com as pessoas! E quer saber mais? Você também vai

decepcionar outros tantos! É natural.

FILHO – No meu último namoro, eu não gostava mais da pessoa e não tive coragem de acabar. Traí e,

nossa, me senti muito mal depois.

Page 8: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

8  

PAI – Quem foi, eu conheço?

FILHO – Deixa pra lá, pai.

PAI – Ok, não quer falar, tudo bem. O importante é que você reconheceu seu erro. Tirou uma lição disso,

não tirou?

FILHO – Claro! Acho que a culpa é o pior sentimento que já experimentei.

PAI – É, é horrível. Mas você ainda vai sentir seu gosto outras vezes. E outras lições virão! O ser humano

tem uma coisa engraçada: memória curta! A gente erra, se arrepende, passa um tempo, a gente esquece

e erra de novo, o mesmo erro!

FILHO – Eu já errei o mesmo erro várias vezes.

PAI – Então, pare pra pensar se o que você está fazendo é mesmo um erro. Às vezes, a gente acha que

é, mas não é!

FILHO – Ai, pai, acho que eu tô na crise dos vinte e três anos!

PAI – Quando você estiver na crise dos cinquenta, vai rir da sua crise dos vinte e três! Agora, venha cá.

Deixa o teu pai te dar um abraço e um beijo de feliz aniversário.

(O Pai abraça o Filho.)

PAI – Feliz aniversário, meu filho.

FILHO – Obrigado, pai.

CENA 2

(Filho entra em casa eufórico para falar com o Pai.)

FILHO – Pai! Pai!

PAI (entrando) – O que foi?

FILHO – Consegui um estágio num dos melhores escritórios de advocacia da cidade!

PAI – Que ótimo, parabéns!

Page 9: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

9  

FILHO – Começo amanhã! É um ótimo lugar! Eu posso fazer carreira lá dentro se me destacar! É um dos

escritórios que pagam melhor! Todo estudante de Direito sonha em conseguir um estágio lá, pai, e eu

consegui! Tenho certeza de que eles vão gostar de mim! Em no máximo três meses eu já vou ser

efetivado, você vai ver!

PAI – Calma, meu filho, calma! Não fique criando muitas expectativas que é pra não se frustrar depois.

FILHO – O que é isso, pai? Você não acredita que eles vão gostar de mim, que eu vá ser efetivado?

PAI – Eu só estou te dizendo que quanto menos a gente espera da vida, mais ela nos dá.

FILHO – Tenho ambições e não quero pensar diferente. Não vejo a hora de ganhar o meu dinheiro pra

poder morar sozinho.

PAI – Então, toda essa alegria é pra poder sair de casa? Se for esse o caso, eu posso ajudar! FILHO – O

seu dinheiro é o seu dinheiro! Só saio de casa quando estiver ganhando o meu. E acho que falta pouco

pra isso!

PAI – Eu devo mesmo ser uma companhia muito desagradável! Aqui você tem toda liberdade pra entrar e

sair a hora que quiser, com quem você quiser... Pra quê essa pressa de sair de casa?

FILHO – Você me deixa fazer tudo, mas fica me vigiando o tempo todo! Não fico à vontade! E não é só

isso.

PAI – É o quê, então?

FILHO – Desde que a mamãe morreu... Você mudou muito.

PAI – Mudo todo dia.

FILHO – Você era outra pessoa! Outra!

PAI – Ninguém é um só, meu filho. Você é um comigo, é um na sua faculdade, é outro quando faz sexo...

E é isso que nos torna pessoas interessantes! A quantidade de pessoas que vivem dentro de nós, os

monstrinhos que habitam nossa cabeça e que poucos tem coragem de botar pra fora, é essa a graça!

FILHO – Mas... Você...

(O Filho não consegue encontrar palavras para se expressar.)

Page 10: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

10  

PAI – Fala, filho!

FILHO – Deixa pra lá, pai. Esquece.

PAI – Eu acho que você precisa botar seus monstrinhos pra fora.

FILHO – Que monstrinhos? Não tem monstrinho nenhum, pai.

PAI – Você não vai mais voltar a fazer teatro, meu filho? Aquele curso lhe fazia bem, sabia? E você fez

tão bem o papel do Lobo Mau naquele infantil, lembra?

FILHO – Ridículo!

PAI – Estava ótimo!

FILHO – Babão!

(O Filho pega as correspondências que estão no chão em frente à porta e as entrega ao Pai.)

FILHO – Correspondência.

PAI – Temporada do Theatro Municipal. (Lendo.) Os meninos cantores de Viena, a orquestra sinfônica da

Rússia, Carmem, de novo! O Cisne Negro, Aida e, olha, Parsifal.

FILHO – Quando vai ser Parsifal?

PAI – Sábado. Não sei se eu tenho mais saco pra Wagner. E cinco horas de ópera no Brasil... A platéia

fica inquieta, desconfortável, tem até uns mal educados que saem no meio, nem esperam o intervalo pra

ir embora.

FILHO – Você sempre foi fã de Wagner, pai.

PAI – Os clássicos também cansam, meu filho. Até os grandes músicos, Villa-Lobos, Mozart, Bach,

Bethoveen, Tchaikovsky, depois de um tempo, entediam. As grandes orquestras executam as obras com

tanta maestria e perfeição que você tem a impressão de estar vendo sempre a mesma orquestra. Dá

vontade até de vê-los errando, só pra acontecer alguma coisa diferente. Os clássicos são sempre os

mesmos, chega uma hora em que você já conhece todos os crescentes da música e sabe até quando

cada instrumento vai entrar.

Page 11: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

11  

FILHO – Cada orquestra é uma coisa, pai. Que besteira de se dizer! Nunca pensei que um dia fosse te

ouvir falar assim de música clássica.

PAI – O tempo passa, meu filho, as pessoas mudam. Você deixa de achar graça em umas coisas e passa

a achar graça em outras...

(O Filho percebe uma filmadora perto da TV.)

FILHO – Estava filmando alguma coisa, pai?

PAI – Não, não. Só estava catalogando as fitas das nossas filmagens.

(O Filho olha algumas das fitas que já foram catalogadas.)

FILHO – Berlim, aniversário da netinha, Chapeuzinho Vermelho, férias na região dos lagos... Eu nunca vi

esse vídeo! Foi a última viagem que eu fiz com a mamãe.

(O Filho hesita em assistir a fita e o Pai interrompe seus pensamentos.)

PAI – Tem uma carta pra você.

FILHO – Cadê?

PAI – É de Lídia Ramos.

FILHO (contente e surpreso) – Da Lídia!?

(O Filho pega a carta da mão do Pai e a lê.)

PAI – Eu adoro esse nome. Me lembra aquela poesia de Fernando Pessoa que eu vivia falando pra sua

mãe.

FILHO (desligado, lendo a carta) – Que poesia?

PAI – Aquela que fala de duas pessoas que, simplesmente, se amam. Um amor tranqüilo, sereno, leve e,

ao mesmo tempo, intenso. Um amor ingênuo, quase infantil e, por isso, sem dor. Ela adorava essa

poesia.

(O Filho coloca o vídeo. A Mãe e o Pai estão na praia.)

PAI – Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

Page 12: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

12  

FILHO – Lembro quando vocês falavam dessa poesia.

PAI – É... (Continua.) Amemo-nos tranqüilamente, pensando que podíamos, se quiséssemos, trocar

beijos e abraços e carícias, mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro ouvindo correr o

rio e vendo-o.

FILHO – Saudade...

PAI – ...nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos nem fomos mais do que crianças. E se antes do

que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás

suave à memória lembrando-te assim – à beira do rio, pagã triste e com flores no regaço.

(Mais alguns segundos de imagens e a TV fica ‘fora do ar’, fazendo um chiado horrível. O Filho desliga a

TV.)

PAI – Ricardo Reis. Não lembro da poesia inteira mas é linda.

FILHO – É... Ele era grande demais pra caber em um nome só.

PAI – Acho que ninguém cabe em um nome só! A Constituição brasileira deveria nos garantir o direito de

ter no mínimo, dez carteiras de identidade! Cada uma com um nome! Já pensou? Hoje, eu vou ser

Tertuliano Steinbruck! Amanhã, José dos Santos! Depois de amanhã, Gilda Hepburn!

(Ambos riem.)

FILHO – Só não poderia mudar a data de nascimento, não é? Ou todos seriam aquele que tivesse a

menor idade!

PAI – Pois eu acho que em qualquer documento devia ter somente a idade mental! Esse negócio de data

de nascimento é um porre! É sempre a mesma, do dia em que nasce ao dia em que morre! Eu tenho

sessenta e quatro anos. Mas eu ia colocar lá nos meus documentos que minha idade mental era de uns

trinta e poucos!

FILHO – Trinta e poucos? Você não acha que está forçando um pouco a barra, não, pai?

PAI – A sua eu ia colocar... Deixe-me ver, uns oitenta e dois!

FILHO – Oitenta e dois?!

Page 13: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

13  

PAI – Sim, senhor. Seu caretão!

FILHO – Eu não sou caretão!

PAI – É e quer que eu seja também!

FILHO – Não é verdade! Eu só tenho vinte e três e a maturidade de um cara de vinte e três!

PAI – Você tem uma sensibilidade diferente dos caras de vinte e três.

FILHO – Você que pensa! Curto tudo que os caras da minha idade curtem. Vou pras minhas baladinhas,

dou uns beijinhos por aí...

PAI – Ah, esse negócio de ficar, não dá. É muito superficial! Um beijo na boca é algo tão íntimo quanto

sexo, é uma espécie de penetração entre línguas e bocas!

FILHO – Não acho que seja tão profundo assim.

PAI – Claro que é! São suas salivas que estão se misturando, a distância entre os dois é zero, é quando

nós ficamos completamente desarmados, entregues, a ponto de fechar os olhos!

FILHO – Ah, nem todos os beijos são assim, pai.

PAI – Não, só os que têm alma, envolvimento. É por isso que não dá pra sair por aí beijando só por

beijar.

FILHO – Ih, seu caretão!

(O Filho volta a ler a carta que está em suas mãos.)

PAI – E essa carta? Pensei que a sua geração só escrevesse e-mails.

FILHO – Pensou certo. Mas a Lídia é diferente. Ela diz que nada substitui uma carta escrita com sua

própria letra, com borrões e tudo mais.

PAI – Já gostei dessa Lídia. Quem é ela?

FILHO – Foi minha colega de teatro. Vinha sempre aqui em casa. Não lembra?

PAI – Uma bem branca, bonitona, é ela?

FILHO – Anham...

PAI – Lembro, lembro, sim.

Page 14: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

14  

FILHO – Olha só essa foto.

PAI – Uau! Como ela mudou! Mulherão! Eu lembro que vocês ficavam aí ensaiando cenas de Nelson

Rodrigues. Que peça era mesmo? O beijo no asfalto!

FILHO – Eu não levo jeito nenhum pra teatro.

PAI – Todo advogado leva jeito pra teatro. (Outra foto.) Ela está morando em Paris?

FILHO – Não, em Londres.

PAI – O que você acha de fazermos uma viagem pra comemorar seu emprego?

FILHO – Estágio!

PAI – Ah, é só uma desculpa pra curtirmos! Londres seria o lugar perfeito. Lá temos as melhores opções

de vida cultural, você ia poder ver a Lídia e ainda iríamos aos pubs e às danceterias de Londres!

FILHO (censor) – Você quer ir comigo às boates de Londres?

PAI – Acha que eu sou velho demais pra ir à boate?

FILHO (com uma sinceridade impiedosa) – Acho.

PAI – Velho é o mundo. Enquanto eu gozar da saúde que gozo, vou aproveitar minha vida! E não estou

nem aí pra censura de quem quer que seja.

FILHO – Tá, pai. Boa viagem, então.

(O telefone toca. Nenhum dos dois se prontifica para atender.)

FILHO – Vai atender?

PAI – Atende você.

FILHO – Alô. Quem quer falar com ele? Dudão?

(Pai se levanta para atender o telefone.)

FILHO – Um momento.

(O Pai pega o telefone sem dar importância à expressão de estranhamento do Filho.)

PAI – Alô. Olá, Dudão, como vai? Beleza! Não, não, foi o meu filho quem atendeu. Sim, tenho um casal. A

outra é casada e mora em Palmas, no Tocantins. Você está onde? Que praia? É mesmo? Vou ver se te

Page 15: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

15  

acho, só um minuto. Ah, estou vendo! Está com uma turma grande, hein? Claro, desço, sim. Adoro a

praia nesse horário. Daqui a pouco o sol se põe, é um espetáculo sem igual. Vou por um calção e já

chego aí. Até logo! Outro.

(O Pai sai para vestir um calção de banho. O Filho vai até a janela para procurar a pessoa com quem o

Pai conversava.)

FILHO – Pai...

PAI (do quarto) – Diga.

FILHO – Quem era no telefone?

PAI – Um amigo.

FILHO – Que amigo é esse? Dudão? Quantos anos ele tem?

PAI – Vinte e quatro.

FILHO – E onde você conheceu esse cara, pai?

PAI – Na praia.

(O Pai sai do quarto sem camisa e de bermudão.)

PAI – Depois sou eu quem tomo conta da sua vida, não é?

FILHO – Você vai descer sem camisa?

PAI – Vou. Mas não se preocupe, eu não vou cometer a deselegância de entrar no elevador assim. Vou

descer pela escada e sair pela garagem. Quer ir?

FILHO – Vou ficar por aqui.

PAI – Tá bom. Eu vou indo, não quero perder o pôr-do-sol.

FILHO – Tá. Tchau.

PAI – Tchau.

(O Pai sai e o Filho vai até a janela para ver quem são as pessoas que ele vai encontrar. O Filho telefona

para Lídia.)

Page 16: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

16  

FILHO – Please, I’d like to talk with Lídia. Ok, thank you. I’m waiting. Lídia? Não acredito! Que saudades!

Como é que estão as coisas por aí? O que é pior, o frio de Londres ou a frieza dos londrinos? É, eu sei,

você não nasceu pros Trópicos! Mas você deve estar morrendo de saudades do calor do Brasil e do jeito

caliente dos latinos, não é? Que saudades de você... Quando você vem? Jura? Que maravilha! Me liga

assim que chegar. Tenho uma coisa pra te contar!

CENA 3

(O Pai está na sala colocando um CD no som. Toca a música ‘Maimbê Dandá’ de Daniela Mercury. O filho

acorda com o som alto e vai atordoado para a sala.)

FILHO – O que é isso, pai? Que música alta é essa?

PAI – Bom dia, meu filho! Olha só o CD que eu comprei ontem.

(O Pai canta com empolgação tentando contagiar o Filho, porém, em vão.)

PAI (cantando) – Meu look e laquê, mandei cachear. Me alise pra ver, meu forte é beijar. Eu vou cantar

Maimbê, pra você se acabar. Maimbê, Maimbê Dandá, Maimbê, Maimbê Dandá, Maimbê...

FILHO (abaixando o som) – Tá doido, pai? Desde quando você gosta de música baiana?

PAI – Ontem eu fui a um show da Daniela Mercury, comprei lá esse CD. Você não imagina o que é estar

no meio daquela multidão. Quando a gente vê na TV, parece que não tem espaço nem pra levantar o

braço, não é? Que nada! Tem espaço pra todo mundo. E todo mundo brinca numa boa, é uma alegria

contagiante, você precisa ver.

FILHO – Esse show foi ontem?

PAI – Foi.

FILHO – Com quem você foi?

PAI – Com o Dudão e a turma dele, um pessoal bem animado.

FILHO – Não era ontem que ia ter Parsifal no Municipal?

PAI – Era.

Page 17: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

17  

FILHO – Você trocou uma ópera por um show de axé?

PAI – Ah, eu já vi Parsifal no mundo inteiro, toda montagem nova promete algo diferente que nunca

acontece e em um show de axé, com certeza, seria tudo novidade. Nunca tinha ido a nenhum! Adorei!

Vou virar freguês do carnaval de Salvador.

FILHO – Daqui a pouco você está em um baile funk na favela.

PAI – Amanhã.

FILHO – Tá brincando?!

PAI (rindo) – Mas é algo a se pensar. Já fui convidado.

FILHO – O que foi que te deu, hein, pai? Que amigos são esses que você arrumou?

PAI – Você precisa se permitir mais!

FILHO – Eu permito que meus ouvidos apreciem a boa música! Que, aliás, foi você quem me ensinou a

gostar. Todos os dias, de manhã cedo, você me acordava com um compositor diferente. Esse bimestre

você vai conhecer Johan Sebastian Bach. No próximo, será Heitor Villa-Lobos. E enquanto eu tomava

café, você me falava sobre a vida desses músicos, sobre a obra que eu estava ouvindo...

PAI – Pois, muito bem. A partir de amanhã, você acordará com Daniela Mercury. No próximo bimestre,

Ivete Sangalo! (aumenta o som e canta) Maimbê, Maimbê Dandá, Maimbê...

FILHO (desligando o som) – Pai, estou falando sério! Eu não reconheço mais você.

PAI (enfrentando o Filho) – Não me reconhece mais? O que você vê, um velho?

FILHO – Eu quero de volta o pai que eu tinha antes da mamãe morrer!

PAI – E eu quero aquele garoto que não me julgava e não me condenava, só se preocupava em brincar.

FILHO – Eu não sou mais criança e nem vou voltar a ser! Quando é que você vai enxergar isso?

PAI – Não são os seus vinte e três anos que vão lhe tornar um adulto, é a sua cabeça! Assim como não é

a minha idade que vai fazer de mim um velho. Nem os seus olhares que recriminam o meu

comportamento! Mas essa sua visão quadrada do mundo eu sei de onde veio. Não foi de mim nem da

sua mãe. Foi da minha sogrinha amada, tenho certeza! Ah, se existe um erro na minha vida do qual eu

Page 18: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

18  

me arrependo amargamente, foi o de ter deixado você ir morar com a sua avó depois que sua mãe

morreu. Na época, eu achava que não tinha condições psicológicas de te criar e eu aceitei que você

fosse morar com a velha. Estou pagando caro por esse erro!

FILHO – Pois eu agradeço por tudo que ela me ensinou!

PAI – E eu lamento por você nunca ter aprendido nada comigo.

(Silêncio. O Pai pega um pano para limpar seus santos. O Filho vai até a mesa do telefone e vê um

recado anotado.)

FILHO – Esse recado aqui é de quando?

PAI – Qual? Ah, de ontem. Já ia me esquecendo. A Lídia ligou de madrugada. Eu tinha acabado de

chegar do show, ela se confundiu com o fuso horário de Londres. Ela está no Brasil. Te ligou do

aeroporto.

FILHO – E por quê você não me acordou?

PAI – Pra poupar a coitada do seu mau humor quando acorda.

FILHO – Ela está nesse número?

PAI – Está. Mas ela deve estar dormindo.

(O Filho liga pro número que está no recado.)

FILHO – Ocupado.

PAI – Tenta mais tarde.

FILHO – Pai, você teve muitas namoradas?

PAI (parando de limpar os santos) – Não, meu filho. Não tive muitas namoradas. Por quê?

FILHO – Curiosidade. Quantas?

PAI – Sinceramente, não sei.

FILHO – Se não foram muitas, você devia se lembrar.

PAI – Caíram no esquecimento. E você?

FILHO – Mais ou menos... Mas eu não tenho a sua idade.

Page 19: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

19  

PAI – Os rapazes de vinte e três anos de hoje não são como os de vinte e três do meu tempo.

FILHO – Eu não sou como todos.

PAI – E isso quer dizer o quê?

FILHO – Sabe aquilo que você me falou sobre ficar?

PAI – Sei.

FILHO – Acho que tô passando dessa fase de sair, beber e beijar só por beijar.

PAI – Você quer se envolver num relacionamento mais sério, é isso?

FILHO – Acho que sim.

PAI – Eu conheço?

FILHO – Não tô falando de alguém específico. Às vezes, eu sinto que eu não sou desse mundo. Fico

tentando me encaixar em algum grupo, achar minha turma... Mas, sei lá, acho todo mundo tão chato. Na

minha turma da faculdade mesmo, tem várias panelinhas, como sempre acontece todos os anos, desde a

escola.

PAI – Claro, é normal. As pessoas se aproximam por afinidades.

FILHO – Mas eu sinto que, ao mesmo tempo que estou em todas panelinhas, não estou em nenhuma.

Falo com todo mundo, sou sempre simpático com as pessoas mas eu não tenho uma turma que possa

chamar de minha, você entende?

PAI – Entendo.

FILHO – Quando o professor manda fazer algum trabalho em grupo, por exemplo, sempre fico na turma

dos que sobraram, sabe? Sou sempre aquele número ímpar que tem que se encaixar.

PAI – Mas isso é porque você é especial, meu filho, você não é aquele tipo comum, que pensa igual a

todo mundo e fica repetindo frases de efeito que ouve por aí.

FILHO – Ah, mas às vezes eu queria ser como todo mundo.

PAI – Você se sente sozinho?

FILHO – E quem não é?

Page 20: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

20  

PAI – Mas a sua solidão é uma opção ou uma falta de opção? Se for a sua opção, eu respeito. Mas falta

de opção não pode ser.

FILHO – Vou tentar falar com a Lídia de novo.

(O Filho telefona para Lídia e o Pai volta a limpar os santos.)

FILHO – Alô, por favor, a Lídia está? Obrigado. Lídia! Você chegou, que coisa boa! Quero te ver! Claro

que posso, agora! Tá, sei onde é. Tô indo pra lá, então. Outro grande! Tchau, até já.

(O Filho sai para trocar de roupa.)

PAI – Convide a Lídia pra fazer um lanche aqui, qualquer dia desses.

FILHO (do quarto) – Tá, convido.

PAI – Ela vai ficar até quando no Brasil?

FILHO – Não sei. (Retorna.) Prepara o interrogatório pra volta.

PAI – Quer dinheiro?

FILHO – Não precisa! Tchau.

PAI – Tchau...

CENA 4

(O Pai está cochilando na sala quando o Filho chega.)

PAI – Filho?

FILHO – Sou eu.

PAI – E então, como foi?

FILHO – Maneiro.

PAI – Maneiro?

FILHO – É.

PAI – Aconteceu alguma coisa?

FILHO – Você está falando que nem a mamãe.

Page 21: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

21  

PAI – É instinto paterno. E eu gostaria muito que você se abrisse comigo como você se abria com a sua

mãe.

FILHO – É que... Nós transamos. Sem camisinha. A gente transou sem camisinha.

PAI – Puta que pariu. Meu filho. Onde é que você estava com a cabeça? Não, não. Não precisa

responder, eu já sei. Meu filho, a Lídia, ela se protege? Você sabe? Ninguém sabe, não é?

FILHO – Calma, pai. Você está me deixando ainda mais aflito!

PAI (correndo ao telefone) – Vamos ligar pro médico da família. Vamos marcar exames!

FILHO – Eu sei, a gente já conversou sobre isso. Nós dois vamos fazer exames.

PAI (desligando o telefone) – Mas ela não há de ter nada, meu filho. Fique tranquilo. Isso não vai passar

de um susto. E vai servir de lição pra que você jamais cometa tamanha asneira. Ouviu?

FILHO – Ouvi, pai. E chega desse assunto, por favor! Não há nada que se possa fazer agora. Vamos

fazer os exames e pronto! Não vou sofrer por antecipação.

PAI (percebendo que se descontrolou) – Eu fiquei nervoso, não fiquei?

FILHO – Ficou.

PAI – Eu me descontrolei um pouco, é verdade. Desculpe, meu filho. Mas essa idéia de que algo ruim

pode lhe acontecer, me tirou do sério. Você é tudo o que eu tenho nessa vida. Mas nada vai lhe

acontecer. Nada. O máximo que pode lhe acontecer é... Será? Você, papai e eu, vovô?

FILHO – Não. Isso, não.

PAI – Um filho é a melhor coisa que pode acontecer.

FILHO – Não adianta, pai, eu não gosto de criança, não tenho paciência! Dê-se por satisfeito com a neta

que a minha irmã te deu. E se quiser outro, peça a ela! Eu não quero ser pai.

PAI – Quando eu tinha vinte e três, dizia a mesma coisa!

FILHO – Se eu quiser ser pai, pego a minha sobrinha emprestada, passeio no parque e quando cansar,

devolvo pra mãe. Eu não seria um bom pai.

PAI – Se aprende!

Page 22: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

22  

FILHO – Eu não quero ser pai.

PAI – Eu também não queria.

FILHO – Eu não vou ser pai.

PAI – Isso, Deus é quem sabe.

(Silêncio. Filho hesita, pensando na possibilidade de ser pai.)

FILHO – Vou ver um filme.

PAI – Sim, senhor.

(O Filho remexe nos DVD’s que estão espalhados.)

FILHO – Pai. O que é isso aqui?

PAI – O quê? Ah, um filme pornô, ué.

FILHO – É seu esse DVD? Estava na capa do ‘Casablanca’.

PAI – É meu, sim. Este também é um clássico do pornô! ‘Meu marido, meu cavalo’. Nunca viu?

FILHO – Não.

PAI – Os títulos desses filmes são ótimos, cada um pior que o outro. (Pega um DVD.) Pequenos Pêlos,

Grandes Negócios!

(Ambos gargalham.)

FILHO – Deve ser muito educativo!

PAI – Me Atirei no Pau do Gato! Gatas, Cachorros e Cavalos!

FILHO – Ah, quanta bobagem!

PAI – É um pecado não assistir aos clássicos! De ‘Cidadão Kane’ a ‘Meu marido, meu cavalo’, todos os

clássicos merecem respeito!

FILHO – Não sabia que você era tão entendido nessa área.

PAI – Ué, a idade mínima pra ver filmes pornôs é dezoito anos, mas idade máxima, não tem!

FILHO – É, pai, mas você já tá com sessenta e quatro anos, daqui a pouco vai ficar feio pra você chegar

na locadora e pedir um filme desses.

Page 23: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

23  

PAI – Feio por quê?

FILHO – Ah, pai, com dezoito anos se entende, é a fase em que os hormônios explodem, mas... Você não

vai querer ficar como aqueles velhos babões e tarados, vai?

PAI – É só você que tem um pau no meio das pernas? Hoje em dia, a tecnologia prolonga nossa vida

sexual até os oitenta anos!

FILHO – Oitenta? Não acha muito?

PAI – Não! Já passei dos sessenta e sabe como eu me sinto? Numa nova adolescência! A vida pra mim é

isso, ciclos que se repetem! Quando eu estiver bem gagá, vou ser como uma criança, um bebê! Mas hoje,

eu quero mais é saracotear!

FILHO – Saracotear!? Não sei o que é mais ridículo, você querer saracotear na sua idade ou você usar

esta palavra jurássica em pleno 2010.

PAI – Eu vou bombar na balada, então! Pronto, melhorou?

FILHO – RI-DÍ-CU-LO.

PAI – Você quer o quê, que eu saia por aí de bengala, que eu vá até a praça pra dar comida aos

pombos, jogar dominó... É isso? Eu não atrapalho sua vida, meu filho, portanto, me deixe viver a minha!

FILHO – Eu me preocupo com você.

PAI – Pois se preocupe mais com você!

FILHO – É que... Pai, as pessoas com quem você está andando... Aquele Dudão e aquela turma dele... Eu

não confio naquela gente. Você sabe que existem quadrilhas que são formadas por caras de classe

média e boa aparência, não sabe? Eu temo pela nossa segurança, pai, de verdade. Acho que você devia

se preocupar mais com você e comigo também.

PAI – Eu sei o que eu faço da minha vida. E eu me preocupo com você desde que eu soube que a sua

mãe estava grávida, antes de você vir ao mundo! E você já é um homem feito, sabe muito bem como

cuidar de si próprio.

FILHO – Só estou tentando ajudar.

Page 24: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

24  

PAI – Como você pode ajudar alguém com esses seus olhares preconceituosos que julgam e condenam?

FILHO – Eu tenho o direito de ter opiniões!

PAI – Suas opiniões precisam ter fundamento!

FILHO – Essa casa também é minha! Eu não gosto dessa gente circulando aqui.

PAI – Você não tem o direito de reclamar de nada na vida! Eu não lhe privo de nada, você vai querer

privar a mim? Você não teve a criação rígida que eu tive, não passou pelas privações que eu passei! Eu

não podia nem pensar em desobedecer aos meus pais, que dirá confrontá-los, como você está fazendo

comigo.

FILHO – Eu...

PAI – Você, sim! Ora, querendo me dizer com quem eu devo andar, o que eu posso fazer! Olhe mais

para o seu umbigo e me deixe viver minha vida.

FILHO (aos gritos) – Pois viva a sua vida! Saia por aí fazendo merda como se fosse um adolescente!

Continue trazendo essa gente estranha pra dentro da nossa casa! Até eles te roubarem! Eu lavo minhas

mãos. Se acontecer alguma coisa com você, pelo menos, eu te avisei! E se eu estiver em alguma boate e

encontrar você saracoteando por aí, finja que não me conhece! (À parte.) Ah, meu Deus, por que a

mamãe não escolheu um pai melhor pra mim?

PAI (colérico) – Os pais também não escolhem os filhos! Mas, se você quiser, fique à vontade pra

procurar um pai melhor pra você! Um que te ame menos, que seja menos idiota!

FILHO – Eu dispenso esse amor, essa obsessão por mim! Vai dar isso pra outro que também goste de

você porque eu te odeio! Tenho vergonha de você!

PAI – Você.

FILHO – Dormi com você na sua cama até os 12 anos de idade! Não acha muito?

PAI – Era.

FILHO – Eu tenho nojo de você! Asco!

PAI – É amor de pai pra filho! Se pequei, foi pelo excesso!

Page 25: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

25  

FILHO – Você sempre me criou pra ficar debaixo da sua asa. Você e a vovó! E tudo que eu mais quero é

viver longe de você!

PAI – Pois vá! O que está esperando? Mal agradecido! Você não merece todo o amor e conforto que lhe

dei, você merece ir pra rua, sofrer, ver o que é o mundo lá fora!

FILHO – Qualquer coisa vai ser melhor do que ficar nessa casa com você!

PAI – Vá embora! Já! Com a roupa do corpo! Suma! Antes que eu lhe dê a lição que você merece!

(O pai ensaia um gesto de agressão e, de repente, fica sem ar. Ele coloca a mão no peito e tem um

princípio de infarto.)

FILHO – Pai? Pai? Senta, respira, vai, respira fundo! (O Filho corre para o telefone. O Pai está ofegante.)

Por favor, uma ambulância. É urgente!

CENA 5

(Filho sozinho em cena.)

FILHO (ao telefone) – Não... Ele está bem. O médico disse que foi angina, um princípio de infarto. A

gente teve uma discussão, ele se exaltou e deu nisso. Eu sei... Aliás, a discussão era essa. Aos sessenta

e quatro anos, é , um comportamento adolescente! Eu sei que a adolescência dele não foi como a nossa!

Mas tem horas que a irresponsabilidade dele é tanta...

(O Pai entra, de repente.)

PAI – Ainda aí?

FILHO – Depois nos falamos. É. Outro, tchau.

PAI – Pensei que já tinha tomado seu rumo.

FILHO – Você está em observação, pai. Eu não vou te deixar sozinho.

PAI – Posso chamar uma enfermeira.

FILHO – Se quiser, chame. Mas não vou embora.

PAI – Quem era no telefone?

Page 26: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

26  

FILHO – Minha irmã.

PAI – Já imagino suas queixas. Quando é que ela vem?

FILHO – Não falou.

PAI – Ai daquele que acredita que os filhos vão fazer companhia na velhice. Vocês vão cada um pra um

canto e eu vou ficar aqui até ser devorado pelas traças dos meus livros.

FILHO – Deixa de drama, pai.

PAI – A sua irmã já se casou com aquele fazendeiro lá do Tocantins. Mora na filial do inferno, numa vida

de dona de casa que ela não merece.

FILHO – Foi a escolha dela.

PAI – Eu sei. Sei respeitar as escolhas alheias. No meu tempo, eu não escolhia nada. Os tempos

mudaram e eu mudei junto com ele.

(O telefone toca e o Filho atende.)

FILHO – Alô? A cobrar. Alô, quer falar com quem? Peraí. Pra você.

PAI – Alô? Sim? Oi, Lipe. Tudo bem, querido? O que aconteceu? Sei, sei. Ah, entendi. Que susto, pensei

que fosse uma coisa mais séria. Tenho, eu tenho dinheiro. Que nada! Quem quebra galho é macaco

gordo. Vou só colocar uma roupa e já chego aí. Outro grande! Tchau.

FILHO – Quem é Lipe, pai?

PAI – Da turma do Dudão.

FILHO – É aquele tatuado que esteve aqui ontem?

PAI – Ele.

FILHO – O que é que ele queria?

PAI – Tá num bar aqui perto com uns amigos. Na hora de pagar a conta, o sistema de cartão de crédito

ficou fora do ar e ele não levou dinheiro.

FILHO – E daí?

PAI – E daí que ele sabe que eu moro perto e... Amigo é pra essas coisas, não é?

Page 27: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

27  

FILHO – Você não conheceu esse cara outro dia na praia? Quantos anos ele tem?

PAI – Uns vinte e dois.

FILHO – O que é que um cara de vinte e dois anos quer andando com um... Com um de sessenta e

quatro?

PAI – Será que eu sou tão chato assim? Eu não posso ter um espírito jovem e me divertir com gente

jovem? Muitos rapazes da sua idade dariam tudo pra ter um pai como eu.

FILHO – E eu daria tudo pra ter minha mãe de volta.

(Silêncio. O Pai reage mal e telefona para Lipe.)

PAI – Lipe? Olha, eu vou me atrasar um pouco. (Ouve.) Ah, já resolveu aí? Tá bem. (Ouve.) Obrigado

pelo convite, se der, eu apareço. (Ouve.) Outro grande! Tchau. (Desliga.)

PAI (retomando a reação anterior) – É uma pena que eu não consiga te fazer feliz. Sempre fiz todas as

suas vontades. Já sua mãe, sempre jogou duro com você. Talvez tenha sido esse meu erro: um pai muito

besta. Eu me esforcei pra te dar a infância que não tive.

FILHO – O que passou, passou, pai. Se não pôde ser criança na infância, já era. Se não aproveitou a

adolescência...

PAI (exaltando-se) – Pode parar por aí! Precisei trabalhar muito cedo, as coisas não foram fáceis pra

mim. Tudo que eu conquistei foi com muito trabalho, muito suor, não ganhei nada de mão beijada. O

tempo que eu tinha pra brincar, eu estudava ou descansava do trabalho. E se não fosse assim, eu não

teria o patrimônio que tenho hoje. Patrimônio esse que você vai herdar sem fazer esforço nenhum!

FILHO – Pai, por favor, fica calmo.

PAI – Você é um mal agradecido.

FILHO – Pai...

PAI – Vive me criticando! O dinheiro que eu tenho hoje, posso emprestar ou mesmo dar, é fruto de anos

de trabalho! De uma infância perdida, de uma adolescência reprimida, coisa que você não faz idéia do

que seja. Mais que dinheiro, eu te dou liberdade. Você não sabe o que é viver sem liberdade. Eu não

Page 28: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

28  

mereço ouvir críticas por acreditar que ainda dá tempo de viver a minha liberdade! Tenho sessenta e

quatro anos, sim, nunca menti minha idade pra ninguém e junto com a minha idade eu carrego uma

enorme vontade de viver! Não acredito em tempo perdido! Sempre é tempo de viver!

FILHO – Eu vou pro meu quarto.

PAI (puxando o Filho pelo braço e sentando-o no sofá) – Não vai, não. Você vai ficar aí e vai ouvir o que

o seu pai tem pra te dizer.

FILHO – Pai, pelo amor de Deus, você tem pressão alta. O médico disse que seu coração é uma bomba-

relógio. Você não pode ficar nervoso.

PAI – Eu quero saber o que é que você tem contra os meus amigos que vêm aqui?

FILHO – Nada.

PAI – É contra mim, então? Hein?

(Silêncio.)

PAI – Responde!

FILHO – Eu não acredito que eles sejam seus amigos, só isso! Acho que eles vêm pra cá só pra beber do

seu whisky e acho também que eles só saem com você porque é sempre você quem paga a conta de

todo mundo!

PAI – E se você estiver certo? De quem é o dinheiro? Quem foi que sacrificou a juventude pelo trabalho?

Não é justo que eu aproveite os frutos do meu trabalho pra curtir com a juventude?

FILHO – Então, você não se incomoda em sair com pessoas interesseiras?

PAI – Tudo na vida tem interesse, meu filho. O que pesa é o grau do interesse. E é sempre uma troca.

Um tem um interesse e o outro também. O meu é apenas me divertir com gente jovem, dar risada. E isso

acontece! Já o interesse deles, é problema deles.

FILHO – Mas, pai, o nível dessas pessoas... Uma gente sem cultura, sem educação. Falam alto... São

pessoas vulgares. Você nunca andou com gente assim.

Page 29: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

29  

PAI – Você acha que todos tiveram a sua sorte, meu filho? Você pensa que o mundo é feito somente

pelos riquinhos com quem você estudou? Aliás, você já trouxe muitos colegas mal educados pra casa.

Você sabe qual é a diferença entre o luxo e o lixo?

FILHO – Qual?

PAI – A segunda letra. Só, meu filho, só. Palavra de quem já transitou nesses dois mundos. E digo mais:

as pessoas mais simples, muitas vezes, são as mais sinceras, as mais espontâneas, as mais autênticas!

Não precisam se preocupar em ser políticas, não precisam fingir ter uma cultura que não têm pra

impressionar os outros, nada! Elas assumem descaradamente seus gostos, suas vontades e suas

opiniões! Não sofrem a censura que nós sofremos por gostar disso ou daquilo.

FILHO – Como você mudou, pai. Eu admirava você, mas hoje... E se a mamãe fosse viva? Você teria

essas amizades? Se comportaria assim? Eu tenho certeza que ela reprovaria tudo isso!

PAI – Eu pensei que você conhecesse melhor a sua mãe.

FILHO – É você quem eu não conheço! Nunca sei com que tipo de gente você vai entrar por essa porta.

Teve um dia que quando eu saí, tranquei a porta do meu quarto com medo de que sumisse alguma

coisa, era uma turma esquisita! Pai, você está comprando roupas em lojas de surfista. Você não acha

isso ridículo?

PAI – O ridículo está no olho de quem vê. E não em quem veste. E eu não quero mais ouvir nada sobre

mim. Eu sou essa metamorfose ambulante, sim. Muito melhor do que parar no tempo ou me prender a

regras e conceitos que não me servem mais. E você devia fazer o mesmo. Mudar, abrir seus horizontes,

amadurecer. Já está na hora!

FILHO – Eu não quero chegar à sua idade como você.

PAI – Ah, muito bem, muito bem. Estamos progredindo! Então, é esse o seu medo. Você me enfrenta por

temer que eu seja o espelho do seu futuro. Você vai ser o que você quiser ser! Não sou como seu avô

que quis fazer de mim um modelo dele! Aquele velho, como se ele fosse modelo de alguma coisa!

FILHO – O vovô está morto, não fala mal dele!

Page 30: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

30  

PAI – Ah, desculpa! Falar mal, só de mim!

FILHO – Chega! Vou sair. O médico recomendou repouso absoluto. Não quero me sentir culpado se você

tiver um infarte.

(Filho sai.)

PAI (gritando à porta) – Você não sabe o que significa essa palavra, CULPA! Filhos!

(O Pai vai até uma gaveta, retira uma caixa e dela, um revólver que estava envolto em um pano. Olha

para a arma e vê um filme passar em sua frente. Chora e desaba.)

CENA 6

(O Pai está deitado de bruços com a arma nas mãos. O Filho chega e se apavora com a cena.)

FILHO – Pai? Pai! (Sacudindo o pai) Acorda!

PAI (atordoado) – O que foi que houve?

FILHO – Eu que pergunto! Pra quê pegou esse revólver?

PAI – Está sem bala. Ainda não vai ser hoje que você vai se ver livre de mim.

FILHO – Começou o drama.

PAI – Ainda não. Mas vai começar.

FILHO – O que foi?

PAI – Chegou a hora de te contar algumas coisas sobre nossa família.

(Tempo.)

FILHO – Fala.

PAI – Filho, eu e sua mãe... Nosso casamento foi um arranjo.

FILHO – Como assim?

PAI – A minha família era tradicional e a família de sua mãe tinha poucos recursos. Seus avôs arranjaram

esse casamento.

FILHO – Não é possível! Em que século foi isso? Não havia amor entre vocês?

Page 31: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

31  

PAI – Eu e a sua mãe nos amávamos muito. Nós tivemos sorte, nos dávamos muito bem. Não era amor

de marido e mulher. Você sabe quantas vezes eu e a sua mãe fizemos amor?

FILHO – Você contou? Eu não acredito.

PAI – Apenas o suficiente para que ela engravidasse de você e da sua irmã. Sua mãe e eu só queríamos

um filho. E tinha de ser homem. Planejamos tudo, até a data em que você nasceria. Fizemos todo o

enxoval em azul. E, pra nossa surpresa, nasceu sua irmã. Três anos depois, decidimos tentar mais uma

vez. E veio você. Nasceu feio, uma cabeça enorme, orelhudo... Você era o predileto dela, tenho certeza.

FILHO – E vocês nunca mais... Nunca... Você e ela...

PAI – Se nós nunca mais transamos?

FILHO – É, é isso.

PAI – Não, nunca mais.

FILHO – Como vocês passaram todo esse tempo casados? Você traía a mamãe?

PAI – Respeito foi uma coisa que nunca faltou entre eu e a sua mãe.

FILHO – Você não me respondeu.

PAI – Respondi, sim.

FILHO – Traiu ou não traiu?

PAI – O que é traição pra você?

FILHO – Nós dois sabemos o que é traição.

PAI – Eu e sua mãe sempre conversamos muito sobre nós. Nossas preferências, nossos gostos... Sua

mãe nunca quis se casar com outra pessoa. Ela dizia que o melhor que um marido pode dar pra uma

esposa, eu dava pra ela. Filhos, amor, companheirismo...

FILHO – Mas... E o sexo? Vocês passaram todo esse tempo sem sexo? Não estou entendendo, pai,

aonde você quer chegar?

PAI – Éramos livres pra expressar nossas opiniões e para colocá-las em prática também.

FILHO – Você não tá querendo dizer que...

Page 32: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

32  

PAI – Nós éramos livres pra nos relacionar com quem quiséssemos.

FILHO – Acho que eu não entendi. Você e a mamãe tinham um relacionamento aberto?

PAI – Anham.

FILHO – Mas... Meu Deus, realmente, eu não conhecia a mamãe! Eu não quero saber de mais nada. Não

quero mudar a imagem de santa que eu tenho da mamãe.

PAI – Santa? Que bobagem! Acho que você devia ser padre, viu? O tempo que você passou morando

com a sua avó lhe fez mesmo muito mal. Abra essa cabeça, meu filho!

FILHO – A vovó sabe que vocês viviam dessa forma?

PAI – Claro que não! A minha sogra sempre me adorou e a sua mãe fazia questão de dizer pra ela que

nossa vida era uma maravilha. Nas reuniões de família, a velha me olhava torto, com um olho deste

tamanho, imaginando, certamente, todas as barbaridades íntimas que sua mãe contava pra ela. A gente

se divertia!

FILHO – Mas... Por que vocês não tinham uma vida sexual? Às vezes, no começo, não é bom. Mas depois

de um tempo, com a intimidade, o amor, o sexo melhora. Vocês nem tentaram se entender na cama?

(Silêncio.)

PAI – Ela fazia suas escolhas e eu, as minhas...

FILHO – Você tinha outras parceiras?

PAI – Parceiros.

FILHO – Parceiros?

PAI – Sua mãe sempre respeitou minhas preferências e eu também soube respeitar as dela.

FILHO – Você não vai me dizer que a mamãe era...

PAI – Sem rótulos, por favor.

FILHO – Eu tô confuso. Não sei mais o que pensar de você, da mamãe. É como se a minha vida inteira

tivesse sido uma mentira!

Page 33: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

33  

PAI – Não fale besteira! Nós só omitimos algumas coisas que você não estava pronto pra saber. Nós

planejávamos contar quando você fizesse dezoito anos. Só que veio a sua maioridade e a maturidade,

não.

FILHO – Eu preferia acreditar que você e a mamãe viveram um grande amor!

PAI – Nós vivemos um grande amor! Ao nosso modo. Éramos mais felizes que muitos casais que se

casaram apaixonados e que depois, viviam brigando. Nosso casamento era muito divertido, diferente dos

casais que caíram na rotina e só continuaram casados pra manter as aparências! Nós éramos muito mais

honestos que muitos casais que, às vezes, até doenças levam pra casa. O que é que você pensa? Que

os grandes amores são somente como nos filmes? Felicidade não tem cartilha!

(O Pai tenta se aproximar do Filho.)

PAI – Filho...

(O Filho levanta uma das mãos e o Pai recua. O Filho se senta no sofá e abraça uma almofada.)

CENA 7

(O Filho está dormindo no sofá. O Pai entra e ele acorda.)

FILHO – Que horas são?

PAI – Hoje é domingo.

FILHO – Pai...

PAI – Sim?

FILHO – Vem cá.

(O Pai senta-se ao lado do Filho.)

FILHO – Tudo isso é muito novo pra mim.

PAI – Eu sei.

FILHO – Não dá pra digerir tantas informações novas assim, sabe?

PAI – Claro.

Page 34: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

34  

FILHO – É que, de repente, meu mundo, tudo em que eu acreditava...

PAI – Não seja escravo do seu tempo.

FILHO – Não é tão fácil como você diz.

PAI – O primeiro passo pra mudar é querer, meu filho. Eu só te disse aquilo por um motivo. Quero que

você seja feliz. Que você se sinta livre pra buscar sua felicidade, onde quer que ela esteja.

FILHO – Eu estou feliz! Consegui um trabalho, vou fazer concurso pra promotor, juiz...

PAI – Nós não viemos ao mundo para ser doutores, meu filho. Viemos pra ser felizes. Vem cá, ainda

temos muito o que conversar. Quando eu fiz dezoito anos, eu queria muito sair de casa pra ganhar o

mundo. Mas o seu avô teve um câncer no pulmão, você sabe. Foram cinco anos sofrendo, até morrer. Eu

queria ir embora, mas sua avó me pediu pra ajudá-la a cuidar dele.

FILHO – Você teria coragem de deixá-lo doente?

PAI – Eu não tive essa coragem. Seu avô me disse que era minha a culpa pelo câncer dele. Que aquele

câncer era raiva, desgosto.

FILHO – Por quê?

PAI – Eu tinha um namorado, um colega do colégio. Seu avô começou a desconfiar e me chamou no

quarto para uma conversa. Ele me perguntou, sem rodeios, se eu era homossexual. Eu fiquei assustado

e não respondi. Ele entendeu meu silêncio como um sim, tirou o cinto pra me bater e eu fechei os olhos

pra esperar a surra. Só que a surra não veio. Quando tomei coragem e abri os olhos, não tinha ninguém

no quarto. Não sabia se chorava, se fugia, eu tinha dezoito anos e estava me sentindo como uma criança

de seis. De repente, ele voltou com essa arma na mão. Eu achei mesmo que fosse morrer naquele dia.

Ele carregou a arma e a colocou em minhas mãos trêmulas, dizendo: lava com teu sangue a honra da

minha família. Sua avó entrou no quarto e impediu que uma tragédia maior acontecesse. Eu não

consegui amá-lo depois disso. Consegui perdoá-lo, a muito custo. Mas amá-lo de novo, nunca mais.

FILHO – Que louco!

Page 35: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

35  

PAI – Ele só voltou a falar comigo depois que eu me casei com a sua mãe. A família da sua mãe, claro,

não soube de nada disso. E eu só não fugi de casa pra ganhar o mundo sozinho por causa da sua avó.

Ela me convenceu de que casar com sua mãe era a melhor saída. Assim, eu poderia sair de casa com

tranqüilidade e o seu avô acreditaria na mentira em que ele queria acreditar. Para ele, minhas

experiências homossexuais não passaram de aventuras de adolescente.

FILHO – E a vovó?

PAI – Ela foi muito compreensiva comigo. Não posso dizer que ela me apoiou, mas, pelo menos, me

aceitou. As mães sempre sabem das coisas. No dia do meu casamento, quando a mamãe veio me dar os

parabéns, ela cochichou no meu ouvido: a felicidade está onde nós a colocamos. Mas só nós sabemos

onde colocá-la. Ela sabia que aquele casamento não mudaria minha essência e que tudo continuaria

como antes.

FILHO – E ela não tentou conversar com o vovô?

PAI – Naquele tempo as mulheres não tinham muita voz ativa. Mesmo contra as decisões do seu avô,

não havia nada que a sua avó pudesse fazer.

FILHO – Quer dizer, então, que o vovô teve a coragem de fazer isso com você? Ele te deu uma arma

carregada pra você se matar? É muita crueldade!

PAI – Ele era apenas um escravo do seu tempo. Como eu posso condenar o seu avô por pensar igual a

maioria dos homens de sua época? Ninguém precisa pensar como a maioria da sua geração. Não

importa se você está sozinho no que acredita, o que importa é em que você acredita.

FILHO – Obrigado. (Beija-o) E me perdoe por... Seria até justificável se você fosse um péssimo pai.

PAI – É papo furado essa história de que a gente só pode dar o amor que recebe. O amor que eu dou a

você, certamente, não recebi do seu avô. É você quem desperta em mim esse amor.

FILHO – Desculpe por não ter retribuído esse amor nos últimos tempos. Confesso que, por um tempo, eu

deixei de admirar você. Me perdoe por todo o tempo que eu não disse isso, pai: eu te amo.

(Pai e Filho se abraçam calorosamente.)

Page 36: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

36  

FILHO – E a viagem pra Londres? Ainda tá de pé?

PAI – No próximo voo, se você quiser.

FILHO – A Lídia volta pra lá no mês que vem. Quero ir com vocês dois.

PAI – Ótimo! Filho, me diga uma coisa. Você está apaixonado pela Lídia?

FILHO – É mais que isso. A certeza que eu tenho é que ela me faz feliz. Só isso. Não parei ainda pra

pensar em nada. No que estou sentindo, no que vai acontecer.

PAI – Just let it flow, baby.

FILHO – Eu não sei o que estou sentindo, mas sei que é bom.

PAI – Rótulos são para produtos de supermercado! (Visualizando a gôndola de um supermercado)

Mostarda, catch-up. Shampoo, condicionador. É inútil querer dar nome aos nossos sentimentos, eles são

muitos, se misturam e mudam com muita facilidade, é uma loucura! Vou ligar pra agência. Temos que

reservar nossas passagens!

FILHO – Vamos na Internet antes. Quero saber da programação cultural da cidade!

PAI – Mas já? Não é daqui há um mês?

FILHO – É, mas temos que garantir os melhores lugares nas peças e nos musicais.

PAI – Será que ‘Sunset Boulevard’ ainda está em cartaz?

FILHO – Não, pai. Já saiu de cartaz há mais de dez anos.

PAI – Já tem tudo isso? Meu Deus, o tempo voa! Podemos ver a continuação do ‘Fantasma da Ópera’,

‘Love Never Dies’!

FILHO – Maravilha! E os pubs londrinos, as boates. Você vai comigo?

PAI – Lógico! Quero ver se você agüenta meu pique.

FILHO – Quero ver se você agüenta o meu!

(O Pai e o Filho saem de cena rindo e fazendo planos ao som da introdução de ‘London, London’.

Projeção de fotos de ambos em Londres com Lídia.)

Page 37: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

37  

CENA 8

(O Pai e o Filho estão chegando em casa com malas e sacolas do Duty Free.)

PAI – There’s no place like home! Ah, eu tenho inveja da Dorothy que bate três vezes aqueles sapatinhos

vermelhos e volta pra casa em vez de enfrentar doze horas de voo e aqueles trogloditas da alfândega.

FILHO – Mas valeu, a viagem foi maravilhosa! Naquela última noite na boate, a Lídia disse que queria que

o pai dela fosse assim que nem você.

PAI – Naquela noite em que você ficou bocejando o tempo todo enquanto eu me acabava de dançar com

ela?

FILHO – Não é verdade, eu não bocejei o tempo todo!

PAI – Eu sabia que você não ia agüentar o meu pique.

FILHO – Eu só não dancei mais porque não curto muito música eletrônica.

PAI – Nem eu. Mas é aquela coisa que o Dudão diz, tá no inferno, abraça o capeta!

(Ambos riem.)

FILHO – Olha quanta correspondência.

PAI – Propagandas e contas, tenho certeza.

FILHO – É, mas tem uma propaganda aqui que eu acho que você vai gostar.

PAI – O que é?

FILHO – Uma micareta com a Daniela Mercury.

PAI – Mentira! Quando? Como? Onde?

FILHO – Vai ser domingo e é naquele esquema do Carnaval de Salvador. Um trio elétrico e o povo doido

correndo atrás com aqueles abadás.

PAI – Que maravilha!

FILHO – Eu nunca fui mas faço idéia da loucura que seja.

PAI – Imaginar só é pouco...

FILHO – Isso é um convite?

Page 38: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

38  

PAI – Uma intimação!

FILHO – Eu, numa micareta? Seja o que Deus quiser!

PAI (Puxa o Filho para dançar) – Ô, coisinha tão bonitinha do pai. Ô, coisinha tão bonitinha do pai...

(Pai e Filho saem de cena dançando e se divertindo.)

CENA 9

(Pai e Filho estão vestidos de abadá. Os dois estão animadíssimos.)

PAI – Olha, filho, quanta gente!

FILHO – Queria que a Lídia estivesse aqui.

PAI – Ela, com certeza, iria adorar! Vamos ligar pra ela?

(O Pai tira um celular do bolso.)

FILHO – Pai, você é louco! Você trouxe celular pra cá?

PAI (digitando) – Se levarem, levaram! Fala.

FILHO – Me dá que eu ligo.

PAI – A bateria está no fim.

FILHO – Lídia, sou eu! Tudo bem?

PAI (gritando ao telefone) – Beijo, Lídia!

FILHO – A gente tá numa micareta! Meu pai que me trouxe!

PAI – Zum, zum, zum, zum, zum, baba...

FILHO – O quê? Resultado de quê?

PAI – Traga a avenida com você...

FILHO – Você tem certeza? Alô?

(‘Maimbê Dandá’ começa a tocar. O Pai arrasta o Filho para dançar.)

PAI – Vamos lá, filho, começou!

FILHO – Acabou a bateria. Pai! A Lídia...

Page 39: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

39  

PAI – Depois você fala com ela, meu filho. Vamos curtir!

(O Pai contagia o Filho e os dois dançam.)

FILHO – Pai!

PAI – O quê, filho?

FILHO – A Lídia... Eu vou ser pai!

PAI – Fala mais alto!

FILHO – Você vai ser vovô! A Lídia está grávida!

(O Pai finalmente entende e pára de dançar, estupefato. Sua expressão é um misto de choro e riso. Eles

se abraçam e o Filho, de repente, sente o corpo do Pai pesar sobre o seu.)

FILHO – Pai? Pai? Pai!

(O Pai, sorrindo, coloca a mão no coração. Ele perde as forças nas pernas e cai ajoelhado.)

FILHO – Pai! Pelo amor de Deus, pai. Agora, não! Pai, por favor, pai. Força! Eu vou chamar um médico,

uma ambulância. Alguém me ajuda, por favor! Socorro! Espera, pai, vou trazer um médico, vai ficar tudo

bem, viu?

(O Pai segura o Filho pelo braço.)

PAI – Fica aqui, meu filho. Eu não quero morrer sozinho.

FILHO – Não fala besteira, pai, você vai ficar bem! Alguém chama um médico!

PAI – Cuide bem do seu filhinho, viu? Tenha paciência.

FILHO – Você vai ficar e vai me ajudar a cuidar dele, pai.

PAI – Eu já fiz a minha parte. Você é um adulto, não precisa mais de mim.

FILHO – Preciso, sim! Fica comigo, pai!

(O Pai falece.)

FILHO (numa dor incomensurável) – Pai! Pai. Pai... Pai, eu te amo!

(Pai e Filho dão-se o abraço final. O Filho fecha os olhos do Pai.)

Page 40: o que MEU PAI não me dissestatic.recantodasletras.com.br/arquivos/3583999.pdf · O personagem do Filho completa 23 anos e manifesta o desejo de trabalhar, sair de casa e conquistar

   

40  

CENA 10

(O Filho lê um livro de Fernando Pessoa e embala o berço onde está seu filho. A criança chora e ele

percebe que precisa trocar a fralda do neném.)

FILHO (carinhoso) – Você tinha que ter conhecido o seu avô, rapaz. Ele estaria babando por você, tenho

certeza! E, numa hora dessas, ele tomaria a frente pra trocar sua fralda. Pelo menos, assim, eu aprendo.

Que sujeira, hein? (Brincando) Sujão, seu sujão! (O bebê pára de chorar.) Você tá rindo, é? Tá rindo de

quê, hein? Você não tem vergonha de sorrir com essa boca desdentada, não? Hein, rapaz!? (Quando vai

voltar a ler o livro, ele conversa com seu filho.) Esse aqui é Fernando Pessoa, viu? Quando você estiver

maiorzinho, te apresento às poesias dele. Tenho um montão de coisas pra te apresentar. E quase tudo

veio do seu vovô. Se eu for um bom pai, agradeça a ele. Seu vovô me criou da melhor forma possível. E é

o que eu vou fazer com você. Quero repetir até os erros. Pra gente crescer junto.

(O Filho percebe que o bebê dormiu. Ele se senta para ler o livro. O Pai reaparece em cena, invisível.)

PAI – Quando vier a Primavera, se eu já estiver morto, as flores florirão da mesma maneira e as árvores

não serão menos verdes que na Primavera passada. A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria

enorme ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma. Se soubesse que amanhã morria e

a Primavera era depois de amanhã, morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o

seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja

certo; e gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro

contente, porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se

quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter

preferências.

PAI e FILHO – O que for, quando for, é que será o que é.

FILHO – Alberto Caeiro. É... Boa noite, filho. Boa noite, pai.

(O Pai sorri e sai. O Filho dorme.)

Fim.