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O real e a verdade do sofrimento
Sofrimento: das neuroses de caráter dos anos 1940 às depressões, pânicos e anorexias
dos anos 2000
TAGS: depressão, dossiê, filosofia, Jacques Lacan, neurose
O pensador Jacques Lacan
Christian Ingo Lenz Dunker
Há uma história das formas de sofrimento. Quando Freud desenvolve sua teoria do
inconsciente, na virada do século 19, ele privilegia a histeria como uma entidade clínica
unificadora. Na mesma época havia outro paradigma representado pela psicopatologia
de Beard, cujo quadro de referencia era a neurastenia, uma síndrome já então atribuída à
aceleração da vida moderna, com seus nervosismo, irritabilidade e cansaço. Também
neste período, a escola clínica de Pierre Janet procurava as causas do sofrimento
neurótico nas perturbações da função do real e na fragilidade da consciência, definida
como psicastênica. Talvez a psicanálise tenha se imposto as demais matrizes clínicas, e
com ela o paradigma histérico do sofrimento, porque enquanto a histeria reunia uma
lógica ampla de conflitos e divisões que atravessava a linguagem, o desejo e o trabalho,
a neurastenia parecia concernida ao universo do trabalho, ao passo que a psicastenia
ficava restrita a debilitação da consciência. Das neuroses de caráter dos anos 1940 as
personalidades narcísicas do pós-guerra, dos quadrosborderlines dos 1980 as
depressões, pânicos e anorexias dos anos 2000, há uma variação das modalidades
preferenciais de sofrimento.
Este é um problema social e clínico, para o qual a psicanálise de Lacan oferece um
ponto de partida crítico em psicopatologia. As doenças mentais não são nem doenças,
no sentido de um processo mórbido natural, que se infiltra no cérebro dos indivíduos
seguindo um curso inexorável e previsível; nem mentais, no sentido de uma deformação
da personalidade. As doenças mentais, ou melhor, seus sintomas, realizam
possibilidades universais do sujeito, que se tornam coercitivamente particulares ou
privativamente necessárias. Em outras palavras, um sintoma é um fragmento de
liberdade perdida, imposto a si ou aos outros. Por isso há algo que concerne a todos,
universalmente, em cada uma das formas particulares de sofrimento. Assim, a
normalidade é apenas normalopatia, ou seja, excesso de adaptação ao mundo tal como
ele se apresenta e, no fundo, um sintoma cuja tolerância ao sofrimento se mostra
elevada.
Um sintoma não pode ser separado de seus modos de expressão e reconhecimento
social, nem dos mitos que constrangem a escolha de seus termos, nem das teorias e
romances dos quais ele retém a forma e o sentido. É por isso que Lacan entendia a
neurose como um mito individual, postulava a tragédia como paradigma ético e
associava novos tipos de sintoma com a dissolução da forma romance, presente em
James Joyce. Isso não impede que os sintomas possuam uma transversalidade histórica
que mantém a pertinência de descrições como as que Hipócrates (300 a.c.) fez da
melancolia ou que Kraeplin (1883) fez da paranóia. Se há uma homologia entre o
sintoma e a obra de arte é preciso considerar cada novo sofrimento como invenção e
resposta as transformações no horizonte de uma época.
Alguns autores, sensíveis as ideias de Lacan, tem isolado não apenas novas formas de
sintomas, mas novas maneiras de sofrer com antigos sintomas. Por exemplo, se para
Freud a sexualidade possuía uma potencia traumática, violenta e informulada, para
Lacan a sexualidade, ela mesma, pode ser uma defesa contra algo muito pior, chamado
de Real. E o Real se mostra como mal-estar, como impossibilidade de dizer, de narrar e
de nomear. É nesta direção que poderíamos falar de uma forma de sofrimento que
generaliza a observação de Walter Benjamin sobre o retorno dos soldados que lutaram
na Primeira Guerra Mundial. A brutalidade do choque, o inominável da experiência
silenciava os combatentes. Eles saíam narrativamente lesados do conflito. Catherine
Malabou propõe para esta situação a noção de subjetividade pós-traumática, cuja
expressão de sofrimento seria semelhante a lesões cerebrais, como afasias e demências.
Seu paradigma literário são os zumbis ou mortos-vivos, seres funcionais que repetem
automaticamente uma ação, incapazes de reconstruir a história da tragédia que sobre
eles se abateu. Parecem seres que perderam a alma e cujo sofrimento aparece em meio a
mutismos seletivos, fenômenos psicossomáticos e alexetimias (dificuldade de perceber
sentimentos e nomeá-los).
Na direção inversa, um autor como Slavoj Zizek tem insistido no caso daqueles que
experimentam uma forma de vida que é sentida como monstruosa, animal e coisificada,
tal qual a antropologia do inumano proposta por Vladimir Safatle. Ao contrário dos que
não conseguem inscrever seu sofrimento em um discurso, temos aqui aqueles que
parecem viver em estado permanente de fracasso sistemático em dar nome à causa de
seu sofrimento. Procuram encontrar a razão de seu mal-estar no mundo, explorando para
isso a força de estranhamento, inadequação e fragmentação. Sentem-se
permanentemente fora de lugar, fora de tempo ou fora do corpo, como as sexualidades
estudadas por Judith Butler. É o drama daqueles que são habitados por experiências de
radical anomia e indeterminação, cujo maior exemplo literário é Frankenstein. Esta
desregulação sistêmica do mundo, teorizada por Lacan como separação entre real,
simbólico e imaginário, exprime-se como sentimento permanente de perda de unidade.
É por isso que seu sofrimento tematizado como exílio e isolamento, assemelhando-se
com a reconstituição da experiência tal como encontramos clinicamente no trabalho de
luto, são, antes de tudo, errantes da linguagem, depressivos do desejo e inadaptados do
trabalho. O espectro do ressentimento e do tédio rondam sua forma de vida.
Um terceiro tipo ascendente de sofrimento foi antecipado pela feliz expressão de
Baudelaire: heautontimorumenos, ou seja, aqueles que parecem experimentar prazer em
se atormentar. Aqui podemos incluir as pesquisas de Ernesto Laclau e Alain Badiou em
torno de sujeitos que são colhidos por um movimento social ou dos que se engajam num
percurso da verdade. Por exemplo, nas recentes pesquisas de Jessé de Souza sobre a
nova classe trabalhadora brasileira destacam-se vários predicados necessários para
ascensão social: senso de planejamento, espírito de colaboração, disciplina e
aperfeiçoamento. Mas esta nova classe social também traz consigo novas formas de
sofrimento, principalmente baseadas na divisão de fidelidades entre sua origem e
família e as exigências de sua nova condição. É o caso dos que fracassam quando
triunfam, dos que estão às voltas com o peso de seus laços de sangue e família, no
interior de uma trajetória de separação e autonomia. Tanto naquelas famílias europeias,
nas quais há duas ou três gerações a narrativa do trabalho se interrompeu, quanto nas
famílias brasileiras emergentes, ou ainda no temor de empobrecimento que assombra as
classes médias americanas, há o sentimento profundo de que um pacto foi violado. A
incerteza quanto as verdadeiras razoes do sucesso ou do fracasso engendram uma forma
de dívida difusa e de ansiedade flutuante. O sentimento é de que algo foi abolido sem
deixar testemunho ou história e que, cedo ou tarde, um fantasma virá cobrar sua parte
em vingança. Uma novela como Avenida Brasil é um marco para tais processos de
subjetivação. Lacan afirmava que a verdade do sofrimento neurótico é ter a verdade
como causa. Esta nova forma de masoquismo é antes de tudo um tipo de paixão pela
verdade, que no mais das vezes aparece como desamparo e insegurança.
O quarto tipo de sofrimento emergente pode ser descrito como uma nova forma de
paranóia. Paranóia benigna associada ao que chamo de vida em forma de condomínio,
com seus muros, síndicos e regulamentos. Trata-se de um tipo de sofrimento baseado no
medo permanente de um objeto intrusivo e anômalo, capaz de perturbar a paz
administrada, cujo preço é uma vida ascética e vigiada. A paranóia sistêmica floresce
abundante no mundo corporativo, institucional e nos estados de exceção descritos por
Giorgio Agamben. Ela cria e mantém o sofrimento derivado da segregação (como o
bullying), da purificação (como o higienismo do corpo belo ou saudável) e do controle
sobre o gozo do próximo (como nas homofobias e demais formas de intolerância). A
paranóia é um sintoma de excesso de identidade, por isso ela interpreta o gozo do outro
como perturbador, justificando a violência persecutória. É assim, por um processo de
autoconfirmação, que se criam o outro traidor do ciumento, o outro impostor do
erotomaníaco, o outro invejoso do megalomaníaco. Curiosamente, são estas as formas
de vida mais propensas ao uso de substâncias dopantes para aumentar a produtividade,
para anestesiar a experiência de si, para substituir a hermenêutica discursiva de si por
uma vivência sensorial individualizada. Por isso podemos associar esta quarta forma de
sofrimento às narrativas de vampiros, nas quais o tema da mistura e do domínio, da
sedução e do controle surge em primeiro plano.
Temos então dois grupos: os Zumbis e os Frankensteins sofrem com a falta de
experiências produtivas de indeterminação, pois para eles os processos de
racionalização aparecem como vazio indiferente ou como uma experiência caótica de si
e do mundo. Já os Fantasmas e Vampiros, ao contrário, sofrem com o excesso de
experiências improdutivas de determinação, ou seja, é como se acreditassem
demasiadamente nos processos de simbolização e subjetivação que regulam os
diferentes regimes de verdade. Tudo se passa como se para os primeiros o Real
aparecesse como impossível e para os segundos como contingência. Se os Fantasmas e
Vampiros estão questionando os fundamentos totêmicos da autoridade, os Zumbis e
Frankensteins estão mais próximos daquilo que o antropólogo brasileiro Viveiros de
Castro chamou de perspectivismo ameríndio (ou seja, uma cultura na qual a identidade
não é tratada como um fato de origem e onde a experiência de reconhecimento está
sujeita a elevados níveis de indeterminação).
Tais tipos clínicos sejam apenas identificações, ou seja, formas narrativas, mais ou
menos coletivas, pelas quais a experiência de sofrimento pode se incluir em discursos
constituídos. Questão relevante porque a inclusão discursiva de uma forma de
sofrimento é o que permite que ela seja reconhecida, tratada e localizada em um registro
moral ou jurídico, clínico ou político, literário ou religioso. Sofrimentos que não se
enquadram nos discursos constituídos são frequentemente tornados invisíveis,
derrogados de sua verdade, como uma palavra amordaçada.
Se toda forma de sofrimento encerra a teoria de sua própria causa podemos ver como a
narrativa da perda da alma é, no fundo, uma versão atualizada do que Lacan pensou
com sua tese do sintoma como alienação ao desejo do Outro, mas agora uma alienação
Zumbi, afeita a nossa forma mutante de produção e consumo. A narrativa
frankensteiniana da desregularão sistêmica e da perda da unidade retoma a tese
lacaniana de que o sintoma é efeito (e também causa) do desmembramento entre Real,
Simbólico e Imaginário. Também a narrativa neomasoquista da violação do pacto
simbólico de origem, com seu retorno fantasmático, retoma as teses sobre a negação em
curso no interior do drama edípico e, particularmente, da castração. Finalmente, a
narrativa paranoica, em torno da existência de objetos intrusivos, que se infiltram por
entre muros e regulamentos, confirma que todo sintoma contém uma satisfação
paradoxal, que Lacan chamou de gozo.
Quando a clínica lacaniana chegou ao Brasil nos anos 1980, um de seus motes
principais era a substituiçao das extensas narrativas realísticas sobre a infância e seus
meandros rememorativos pela agilidade simbólica dos significantes fundamentais. Hoje
parece haver um movimento pelo qual os psicanalistas se perguntam como facultar que
certos pacientes se tornem, novamente, capazes de bem narrar suas experiências de
sofrimento. A psicopatologia lacaniana prometia inicialmente distinções fortes e seguras
entre psicose, neurose e perversao. Hoje se pensa como organizar diagnósticos
envolvendo formas múltiplas e combinadas entre tipos de sofrimento, modalidades de
sintomas e formas de mal-estar. Lacan trouxe a antropologia estrutural e a teoria
dialética do reconhecimento para o centro da experiência psicanalítica. Hoje pensamos
como lidar com os tipos de mal-estar cuja nomeação é precária, incerta ou improvável e
com os tipos de sofrimento que escapam a lógica identitária do reconhecimento. Se o
sofrimento e o amor são os dois motivos de qualquer processo transformativo, é
fundamental reter que, no centro de qualquer experiência de sofrimento, há um grão de
Real e uma pitada de verdade, que aspira a uma nova forma de vida.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor livre-docente do Instituto de
Psicologia da USP