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O recado do morro

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Page 1: O recado do morro

2ª edição

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© Agnes Guimarães Rosa do Amaral, Vilma Guimarães Rosa e Nonada Cultural Ltda.

Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela Ediouro Participações. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

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Texto revisto pelo novo Acordo Ortográfico. Há inúmeros nomes próprios paroxítonos e com os ditongos abertos éi e ói neste livro. Formadas ou não por neologismo, decidimos manter os acentos dessas palavras, de forma a preservar o som pretendido pelo autor.

CIP-Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

R694r Rosa, João Guimarães, 1908-19672ª ed. O recado do morro / João Guimarães Rosa. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Ediouro Participações, 2009.

ISBN 978-85-000-2628-7

1. Conto brasileiro. I. Título.

CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

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O recado do morro

Sem que bem se saiba, conseguiu- -se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte, extraordinariamente comum, que se armou com o enxadeiro Pedro Orósio (também acudindo por Pedrão Chãbergo ou Pê-Boi, de alcunha), e teve aparente princípio e fim, num julho-agosto, nos fundos do município onde ele residia; em sua raia noroesteã, para dizer com rigor.

Desde ali, o ocre da estrada, como de costume, é um S, que começa grande frase. E iam, serra-acima,

— Morro alto, morro grande,me conta o teu padecer.— Pra baixo de mim, não olho;p’ra cima, não posso ver…(Contracanção. Peça pseudofolclórica.)

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cinco homens, pelo espigão divisor. Dia a muito menos de meio, solene sol, as sombras deles davam para o lado esquerdo.

Debaixo de ordem. De guiador — a pé, des-calço — Pedro Orósio: moço, a nuca bem-feita, graúda membradura; e marcadamente erguido: nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça de um marruás, com um soco em sua cabeloura, e de levantar do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilô-metro, esquivando-se de seus côices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego de ar que Deus empresta a todos.

Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessôa. Um, de fora, a quem tratavam por seo Alquiste ou Olquiste — espi-go, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo

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feitío; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu- -de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho atôa, uma môita de carra-picho, um ninhol de vêspos.

Segundo, um frade louro — frei Sinfrão — desses de sandália sem meia e túnica marrom, que têm casa de convento em Pirapora e Cordisburgo. Também trazia, sobre o hábito, um guarda-pó, creme; e punha chapéu branco, de pano mole. Relia o breviário, assim mesmo montado, e fumava charuto. Falava completo a língua da gente, porém sotaqueava.

Com eles, seo Jujuca do Açude, fazendeiro de gado, e filho de fazendeiro, de seu Juca Vieira, com apelido seu Juca do Açude, da Fazenda do Açude, para lá atrás do Saco do Sãjoão.

Derradeiro, outro camarada — a cavalo esse, e tangendo os burros cargueiros —: um Ivo, Ivo de Tal, Ivo da Tia Merência.

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De seu, o guia Pedro Orósio preferisse mesmo viajar a pé, ou talvez, culpa de seu tamanho, nem acharia cavalgadura que lhe assentasse. Mas ele era um sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e li-geiro, e, tão forçoso, de corpo nunca se cansava. Por mais, aqueles ali não estavam apurados, iam jornada vagarosa. O louraça, seo Alquiste, parecia querer remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas, os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato. Por causa, esbarravam a toda hora, se apeavam, meio desertavam desbandando da estrada-mestra.

De feito, diversa é a região, com belezas, mara-vilhal. Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corovocas. Serras e serras, por prolonga-ção. Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo cal-cáreo. E elas se roem, não raro, em formas — que nem pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés, guaritas, grades, campanários, parados animais, destroços de estátuas ou vultos de criaturas. Por lá, qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-íris, cor por cor, vivente longo ao solsim, feito um pavão. Umas redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando

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com vapor e empurram enxurradas mão de rios, se engolfam descendo por funis de furnas, antros e grotas, com tardo gorgôlo musical. Nos rochedos, os bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus se foram. Pelas abas das serras, quantidades de ca-vernas — do teto de umas poreja, solta do tempo, a aguinha estilando salôbra, minando sem-fim num gotêjo, que vira pedra no ar, se endurece e dependu-ra, por toda a vida, que nem renda de torrõezinhos de amêndoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera santa, e grossas lágrimas de espermacete; enquanto do chão sobem outras, como crescidos dentes, como que aquelas sejam goelas da terra, com boca para morder. Criptas onde o ar tem corpo de idade e a água forma pele muito fria, e a escuridão se pega como uma coisa. Ou lapinhas cheias de morce- gos, que juntos chiam, guincham, porfiam. Largos ocos que servem de malhador ao gado, no refrio das noites, ou de abrigo durante as tempestades. Lapas, com salitrados desvãos, onde assiste, rodeada de silêncios e acendendo globos olhos no escuro, a coruja-branca-de-orêlhas, grande mocho, a estrige cor de pérolas — strix perlata. Cafurnas em que as andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho, pondo e tirando cria, depois se somem em bandos

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por este mundo, deixaram lá dentro só a ruiva mo-lêja, às rumas, e sua ardida cheiração. Fim do campo, nas sarjetas entremontãs das bacias, um ribeirão de repente vem, desenrodilhado, ou o fiúme de um riachinho, e dá com o emparedamento, então cava um buraco e por ele se soverte, desaparecendo num emboque, que alguns ainda têm pelo nome gentio, de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrão, travessando para o outro sopé do morro, ora adiante, onde re-brota desengulido, a água já filtrada, num bilo-bilo fácil, logo se alisando branca e em leves laivos se azulando, que qual polpa cortada de cajú. E mesmo córregos se afundam, no plão, sem razão, a não ser para poderem cruzar intactos por debaixo de rios, e remanam do túnel, ressurtindo, longe, e depressa se afastam, seguindo por terem escolhido de afluir a um rio outro. E lagôazinhas, em pontos elevados, são ao contrário de todas: se enchem na seca, e tempo-das-águas se esvaziam, delas mal se sabe. E nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice, de bichos sem estatura de regra, assombração deles — o me-gatério, o tigre-de-dente-de-sabre, a protopantera, a monstra hiena espélea, o páleo-cão, o lobo espéleo, o urso-das-cavernas —, e homenzarros, duns que não há mais. Era só cavacar o duro chão, de laje

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branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos, de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou que massas d’água afogaram, quebrando-os contra as rochas, quando às manadas eles queriam fugir, se escondendo do Dilúvio. Agora, pelas penedias, escalam cardos, cactos, parasitas agarrantes, gravatás se abrindo de flores em azul-e-vermelho, azagaias de piteiras, o páu-d’óleo com raízes de escultura, gameleiras manejando como alavancas suas sapope-mas, rachando e estalando o que acham; a bromélia cabelos-do-rei, epífita; a chita — uma orquídea; e a catleia, sofredora, rosíssima e rôxa, que ali vive no rosto das pedras, perfurando-as. Papagaios rouco gritam: voam em amarelo, verdes. Vez em vez, se esparrama um grupo de anús, coracoides, que piam pingos choramingas. O caracará surge, pousando perto da gente, quando menos se espera — um gaviãoão vistoso, que gutura. Por resto, o mudo passar alto dos urubús, rodeando, recruzando —; pela guisa esses sabem o que-há-de-vir.

Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem. Tomava nota, escrevia na ca-derneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande está estrangulando com as raízes a paineira pequena! — ele apreciava, à exclama. Colhia com duas mãos a

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ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, joão-da-costa, unha-de-vaca-rôxa, olhos-de-porco, copo-d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambú. Outramão, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava traço e figura leal. Daquelas cumeeiras, a vista vai de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze, vinte, trinta léguas lonjura. — “Dá açôite de se ajoelhar e rezar…” — ele falou. Dava. E sorria de ver, singular, elas trepando pela reigada da verten-te, as labaredas verdes dum canavial. Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço? Mas bastantemente assentava no caderno, à sua satisfação. Quando não provia melhor coisa, especulava perguntas; frei Sinfrão, que se entendia na linguagem dele, repetia:

— Quer saber donde você é, Pedrão. Se você nasceu aqui?