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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015
ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015
O RESGATE DO SAPATO DOLCE&PRADA: A BIOGRAFIA CULTURAL DE UM HÍBRIDO
SAVING DOLCE&PRADA SHOES: THE CULTURAL BIOGRAPHY OF A HYBRID
Aline Lopes Rochedo1 e Carolina Dalla Chiesa 2
[email protected] e [email protected]
Resumo: Este artigo objetiva contar a história de um par de sapatos fabricado na Itália cujo erro de fabricação acaba por trazê-lo ao Brasil após ser resgatado de sua fábrica. Abordamos significados, discursos, materialidades e provocações que o sapato evoca em nossos interlocutores considerando sua condição peculiar de híbrido em suas marcas: ao mesmo tempo Dolce&Gabbana e Prada. A falta de identidade cede lugar a um estatuto exótico a ser posto em exposição que, ao invés de reduzir o status do sapato, o coloca em condições inesperadas.
Palavras-Chave: biografia; materialidade; híbrido.
Abstract: This article aims at telling the story of a pair of shoes, made in Italy, whose manufacturing error finishes bringing it to Brazil, after being rescued from its factory. We approach meanings, discourses, materialities and provocations that the shoes evoke in our interlocutors bearing in mind its peculiar condition of being a brand-hybrid: at the same time a Dolce&Gabbana and a Prada. The lack of identity gives place to an exotic status to be exposed and that, in spite of reducing the status of the shoes, puts it in unexpected conditions.
Keywords: biography; materiality; hybrid.
INTRODUÇÃO
Cor, dimensão, forma, textura, brilho, profundidade, peso... Objetos são bons
para tocar, agir, olhar. Sua materialidade nos provoca os sentidos, o
1 Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), orientanda da Dra. Maria Eunice Maciel, bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), graduanda em Ciências Sociais/Bacharelado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-UFRGS) e pesquisadora do Núcleo de Antropologia Visual (Navisual-UFRGS). 2 Mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), graduanda em Ciências Sociais/Bacharelado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-UFRGS), mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS-UFRGS.
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pensamento. O que é o objeto, o que nos faz pensar, o que nos faz ver ou
apreender do outro, daquele que o produz, o usa, o transforma? (DIAS, 2013,
p. 193).
“Queria um sapato Prada... Já tinha um Dolce&Gabbana.3” Por isso Cláudia4 tentou
arrancar a etiqueta de um dos sapatos dourados de “salto 12” que comprara de uma amiga havia
mais de dois anos. O vestígio do “atentado” é discreto, quase imperceptível, mas está lá. Nossa
interlocutora diz ter sido aquele um ato impulsivo diante da “confusão” provocada pela presença
de duas grifes num só objeto, este híbrido que não é cópia nem falsificação. Foi rejeitado pelo
controle de qualidade do fabricante porque ganhou, num erro de produção, a marca Prada no
solado e a D&G na palmilha.
Como erro de fabricação – as duas grifes italianas usam instalações e mão-de-obra de
uma mesma unidade fabril –, o par idealizado para experimentar o luxo foi condenado ao lixo. De
acessório marcado para brilhar em festas entre outros calçados bem-nascidos, tornou-se
indesejável, impuro, incerto, um perigo para as reputações das grifes. Sua destruição era
necessária. Mas o destino do Dolce&Prada – denominação que atribuímos ao artefato por ele
portar as duas grifes – mudou quando alguém o resgatou da fábrica. Quem? Como? Não sabemos,
e aqui não responderemos a esta pergunta. Interessa-nos nesta comunicação o fato de o par
híbrido ter chegado às mãos e aos pés de Cláudia através de uma transação mediada por algumas
poucas notas de euro.
Cumpre observar, antes de prosseguir, que estudos que partem de artefatos, os quais
podem ser uma indumentária, devem evocar o mundo tátil, emocional, da cor e do fluxo dos
detalhes que estão presentes no material (MILLER, 2013). Buscamos explorar neste breve –
porém revelador – exercício etnográfico algumas transitoriedades de um par de sapatos. Em
nossas considerações, traremos algumas linhas que discutem a possibilidade desse objeto forjado
como um bem de consumo singular ser alçado à categoria de arte, como nos foi sugerido por
interlocutores ao proporem a exposição da peça em museus. No processo de pesquisa,
identificamos sensações, emoções e percepções diversas.
3 Tanto Prada quanto Dolce&Gabbana são marcas italianas que produzem moda e acessórios de luxo. 4 O nome foi modificado a pedido da interlocutora.
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“PENSEI QUE PODERIA ESCOLHER A MARCA QUE QUISESSE”
Apresentada ao artefato, Cláudia percebeu imediatamente a presença das duas marcas
e, conhecendo os bastidores da fabricação, compreendeu o motivo da rejeição. De acordo com
nossa interlocutora, a existência de um “defeito de fábrica” não foi omitida em nenhum momento
pela pessoa que lhe ofereceu o objeto – Cláudia apenas fora desafiada a encontrar “o erro”. “Vi
que o sapato era as duas coisas: Prada e Dolce&Gabbana, dois em um. Pensei que poderia
escolher a marca que quisesse”, contou, rindo. “Eu comprei esse sapato porque o achei
maravilhoso, mesmo sendo dois números abaixo do meu.”
Cláudia estreou o acessório revestido por pequenas lantejoulas arranjadas como escamas
de peixe num almoço de batizado oferecido por uma amiga num vilarejo onde reside. “Aqui [na
Itália], nós usamos coisas brilhantes durante o dia.” A experiência, porém, é rememorada mais
pela dor provocada pela incompatibilidade de tamanhos entre calçados e pés. “Quase perdi os
dedos”, recordou-se a interlocutora. “Tenho até uma foto dele [do par] ao lado do Dolce&Gabbana
da mãe da criança... Porque tive que ficar de pés descalços, não dava.”
Da festa, o Dolce&Prada retornou nas mãos da dona e foi direto para sua caixa, lá
permanecendo durante cerca de dois anos. Pequeno que era, não voltou aos pés de Cláudia –
mesmo quando ela o exibia a alguém contando sua trajetória em prosa anedótica. E foi assim,
embalada por uma narrativa divertida, exagerada e performática proferida pela dona, que uma de
nós conheceu o objeto, numa viagem à Itália.
Nossa interlocutora abriu uma caixa com as iniciais D&G, retirou de dentro um pé do par
e lançou o velho desafio: “Vê se acha o defeito”. Passando os olhos externa e internamente,
medindo os saltos, acariciando as lantejoulas, nada parecia fora da ordem. É verdade que o fato
de ter saído de uma caixa onde se lia D&G e de trazer a etiqueta desta grife presa à palmilha
chegou a levantar a suspeita de que poderia ser uma falsificação. Mas não parecia ser este o caso
– Cláudia comentou que o par era feito “na fábrica”. O problema estava embaixo, entre a base e o
salto: a marca Prada.
Então aquela de nós na Itália resolveu experimentar o sapato, e este lhe serviu. Calçou
os dois pés, caminhou pelo ambiente e o sentiu “confortável”. E Cláudia lhe ofereceu o
Dolce&Prada. “Leva pra ti”, disse. “Levar” o sapato significava embarcar com ele num avião em
Milão e desembarcar em Porto Alegre, no sul do Brasil. “Imagina esse sapato com jeans e uma
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camisa branca. Não precisa de mais nada.” Para nós, autoras, que não estamos habituadas a
esse tipo de calçado e a brilhos, ainda é um exercício de imaginação difícil. Mesmo assim, o
calçado híbrido foi para a mala: uma ação motivada pela possibilidade de inspirar reflexões sobre
a biografia das coisas – conceito cunhado por Kopytoff (2008) – e a ideia de pensar artigos da
indumentária como não sendo objetos triviais, mas como coisas nada superficiais dentro de uma
exploração das dinâmicas implicadas nas relações entre pessoas e coisas.
Figura 1: Marca Prada em evidência. Foto: arquivo pessoal, 2014.
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Figura 2: Marca D&G em evidência. Foto: Arquivo pessoal, 2014.
TENTANDO A SORTE NA AMÉRICA
O artefato “maldito” foi resgatado primeiramente do descarte, e, mais recentemente, da
vida pacata no interior de uma caixa na Itália. Agora que encontrara pés para calçá-los, talvez
tenham a oportunidade de rodopiar numa pista de dança, de sair à noite, de brilhar como um
sapato de festa “de verdade”, confortável, de viver sua plenitude “na América”.
Dias depois, por e-mail, a antiga dona do par reconheceu a dificuldade de repassar o
objeto adiante, mesmo que ele não lhe servisse. “Precisei trabalhar o desapego”, comentou.
Cláudia preferiu guardar o par na caixa durante dois anos porque não considerava “justo” um
sapato tão bonito não lhe servir. No período, não chegou a investigar a origem do design do objeto,
e quem o trouxe da Europa suspeitou que fosse um Prada, porque a logomarca cravada na sola
parecia mais “firme”. Nesse mundo do luxo, no entanto, as aparências enganam. Com ajuda de
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um site de busca na internet, descobrimos que o objeto deveria ter sido um D&G que perdeu sua
pureza ao receber o selo da concorrência5.
As aventuras do sapato Dolce&Prada poderiam ficar no âmbito da sátira, mas decidimos
usá-las para iniciar uma reflexão sobre questões relacionadas ao dado sensível, refletindo sobre
as capacidades interpretativas compartilhadas em diferentes meios por onde circulamos e como
os significados dos objetos se transformam na medida em que eles ingressam em novos campos
e sistemas simbólicos para além do mundo da moda e do mercado de bens de luxo (BOURDIEU,
1983). Por que não pensá-lo a partir das artes, uma vez que pessoas que conheceram o par nos
sugeriram colocá-lo “na estante”, como um “enfeite”, como “arte”? Uma vez expressa esta
possibilidade na biografia do sapato, este muda seu estatuto de objeto que, deslocando-se e
hibridizando-se, possibilita que o identifiquem como uma peça de arte a ser exposta para
contemplação.
Como observam Baxandall (1991) e, mais tarde, Geertz (1999), somos todos dotados das
mesmas capacidades de apreensão cognitiva, mas apreendemos de maneiras diferentes, uma
vez que a experiência prévia é relevante para a interpretação, é um processo complexo que lida
com capacidades visuais que nos são ensinadas e que tendem a obedecer a regras e categorias.
Olhar para um sapato de grife e compreendê-lo como tal implica dominar um léxico singular e estar
munido de um conjunto de habilidades que permitem a identificação e a compreensão de um
determinado sistema. A experiência geral afeta nossas convenções representativas, que têm um
impacto sobre nossas capacidades de reconhecer e interpretar.
Ao conter as duas marcas, a percepção do sapato perdeu a proteção do efeito oculto, a
invisibilidade da illusio (BOURDIEU, 1983, 2008), que promove a adesão coletiva do campo ao
jogo. Pode-se colocar em suspensão a ideologia carismática da criação que é a expressão visível
dessa crença tácita e constitui o obstáculo a uma ciência da produção de valor dos bens culturais.
Os estilistas que fazem a obra são eles próprios feitos, lembra-nos Bourdieu (1983, 2008). São
5Disponível em: <www.shoeperwoman.com/2010/08/dg-gold-sequin-peep-toe-stilettos.html>;
<www.amazon.co.uk/Gold-Sequin-Peep-Leather-High/dp/B009IMFAGU>;
<www.exoticexcess.com/shoes/shoe-of-the-day-dg-carla-paillette-ocelot-peeptoe-pumps>. Acessos em
20 nov. 2014.
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feitos no campo de produção por todos os que contribuem para suas consagrações enquanto
artistas.
Refletindo a partir dos pontos extraídos por Geertz (1999) do trabalho de Baxandall (1991),
podemos atentar para o que ele chama de sistema formado por capacidades interpretativas
(conjunto de formas que interpretamos); convenções representacionais, e, hipóteses tiradas da
experiência geral. Aqui pensaremos a relação dos objetos materiais em suas dimensões sociais,
a compreensão da dinâmica social engendrada pelo consumo e pela circulação do sapato. É um
objeto de consumo que pertence a um sistema de circulação e que estimula diferentes
intervenções em momentos e locais distintos.
A vida social é permeada por objetos materiais que circulam “enquanto algo praticado e
ritualizado” (LIMA FILHO; SILVEIRA, 2005, p. 38), produzindo identidades, sensações e
expressões de estilos de vida. Carregado de simbolismo, vemos o sapato Dolce&Prada
participando de relações sociais e provocando ações e emoções em seu deslocamento na medida
em que fala sobre pessoas e lugares.
Portanto, perceber o objeto integrado ao seu contexto significa perceber a sistemática das condutas e das relações humanas que resultam das relações dos homens com os objetos que constroem e que compartilham em sua experiência histórica. Relações que constroem redes de significação na quais a função dos objetos é determinada pelo seu pertencimento em um conjunto, em um sistema, não existindo em si. Sistemas de relações produzem significados. Esses objetos são essencialmente localizados, seu sentido continua sendo coletivo e o modo de fazer, a arte de fazer, é a expressão de sua permanência, ou não. Portanto, no estudo dos objetos é fundamental que se pense em quem faz; o que implica pensar em como se faz; ou para quem se faz; ou mesmo para que se faz; onde se faz; quando e por que se faz; e, principalmente, como essas questões se modificam no tempo. Os bens devem se envolvidos em trocas, que são produtoras das relações sociais. Conhecer o contexto, o ambiente, o espaço, o território ocupado também pelo objeto, possibilita conhecer o contexto sociocultural no qual a fabricação se dá para entender o lugar da experiência estética (DIAS, 2013, p. 205).
Bens por si somente são nulos de significado – só agregam valor e autenticidade dentro
de determinado contexto social. Nesse sentido, o valor de um objeto não está em propriedades
intrínsecas, mas é um ato simbólico e social de grupos que dominam um conjunto de símbolos e
legitimam esses artefatos. Seguindo um objeto em si, chegamos a lugares inusitados e nos
deparamos com bens de luxo desviados para um consumo generalizado. Não falamos nesta
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reflexão sobre falsificações, mas sobre um sapato que foi “vítima” de um erro no processo de
produção e que, em função de receber marcas de duas grifes valorizadas num mercado de bens
específico, o das elites, teve seu pretenso valor monetário esvaziado a ponto de ser descartado e
condenado à destruição.
Não se trata de consumo de pirataria, mas de outra categoria de objeto, que não é nem a
grife nem a imitação, simplesmente a hibridização de um sapato a partir de suas marcas, que,
separadas, são veneradas por quem compartilha seus símbolos. Podemos pensar o Dolce&Prada
como uma aberração envolta numa aura de distinção (BOURDIEU, 2008), resguardada pelas
grifes de luxo e desejada de alguma maneira por quem gostaria de portá-la. É dúbia, mas é
desejada. Sua aura de sedução, sonho e distinção social se desloca novamente no momento em
que o sapato é sugerido como obra de arte. Ora, esta é uma solução para retomar a aura de
superioridade e resolver o impasse da “aberração” seria converter o erro em arte.
Se as roupas obedecem às nossas ordens e nos representam (MILLER, 2013), a ordem
de dotá-las com o sentido de uma obra de arte ou de uma aberração da fábrica irá variar também
conforme o local onde se inserem. Não é coincidência o fato de a sugestão de o sapato ser “obra
de arte” tenha acontecido fora de seu contexto de origem. Quanto mais próximo de seu local de
fabricação ou dos sujeitos para os quais o objeto se destinava originalmente em sua fase mercantil,
mais os aspectos do erro e da aberração sobressaem. Deslocado de seu contexto inicial e
ressignificado por sujeitos que não integram o conjunto de consumidores de sapatos Prada ou
Dolce&Gabbana “originais”, o sapato assume outras representações.
DUAS DINÂMICAS, MUITAS SENSAÇÕES
Para ilustrar, trazemos dois exemplos de dinâmicas realizadas em sala de aula, em turmas
distintas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), instituição à qual estamos
vinculadas como pesquisadoras. A primeira foi durante uma aula de idiomas oferecida a
estudantes de graduação e pós-graduação de ciências exatas, humanas e biológicas. O
Dolce&Prada passou de mão em mão e um dos alunos identificou a etiqueta D&G violada. A
presença das duas marcas logo foi apontada e direcionou a discussão para a combinação num
mesmo artigo de duas grifes reconhecidas por todos os participantes. Em seguida, a conversa se
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centrou na desconfiança sobre a autenticidade do objeto. A biografia do sapato foi narrada no final
do exercício, mas não desviou a atenção da discussão sobre pirataria e preço.
A segunda dinâmica se realizou na disciplina de Antropologia da Arte, desta vez com
estudantes de graduação do curso de Ciências Sociais. Primeiramente, sem discorrer sobre o
histórico do Dolce&Prada, uma das autoras colocou o par sobre uma classe, no centro da sala –
as cadeiras estavam dispostas em círculo – e sugeriu que os presentes, cerca de 20 pessoas,
ficassem à vontade para interagir com o sapato. Houve constrangimento inicial, com sussurros e
comentários tímidos sobre o brilho da peça, a altura do salto, a ideia de riqueza, luxo, poder, classe
e gênero. Uma pessoa perguntou: “Aonde se vai com isso?”. Outra sussurrou: “Mas até que é
bonito”. O professor, então, caminhou até o par, segurou um dos pés pelo salto e pela base, olhou
por dentro, por fora. Avistando o desgaste da sola, alguém constatou o uso.
Em seguida, o professor repassou o Dolce&Prada aos alunos, e estes o levaram de mão
em mão. E o sapato seguiu seu trajeto no sentido anti-horário, provocando comentários, risos e
entreolhares. O outro pé passou no sentido contrário. Alguém constatou a presença das duas
marcas, falou-se rapidamente na possibilidade de ser uma cópia, mas a conversa retornou para
temas de gênero, poder e conforto.
Em ambos os exercícios, a ruptura com o ordinário, com as atividades cotidianas da sala
de aula, evidenciou lentamente elementos até então “invisíveis” nas incontáveis formas de
percepção do mundo entre sujeitos que se reuniam semanalmente havia alguns meses. O
Dolce&Prada se revelava pelas formas, texturas, marcas de distinção e de uso, apesar dos rumos
diferentes das discussões. Alguns participantes conseguiram perceber à distância informações
sobre o objeto por compartilharem alguns indicadores visíveis. Outros se mantiveram em silêncio,
olhando e tocando. “Quem manuseia um objeto com os dedos indiferentes, com deselegância nos
dedos, dedos que não envolvem amorosamente, é um homem que não é apaixonado pela arte”,
diz Edmund de Waal em A lebre com olhos de âmbar (2011, p. 56), em seu relato sobre a trajetória
de uma coleção de miniaturas japonesas que passava havia gerações em sua família e que
finalmente a ele chegara. No caso do sapato, os dedos eram leves sobre as escamas. “Se fizer
um carinho, ele muda de cor”, observou uma aluna de Ciências Sociais, mostrando aos colegas
que o sapato dourado se tornava prateado quando as lantejoulas eram viradas. “Que prático, dois
em um”, disse outra. Assim, duas marcas e duas cores se revelavam na medida em que revelavam
nossos interlocutores.
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Figura 3: Duas cores em evidência. Foto: Acervo pessoal, 2014.
Na turma de Antropologia, uma colega calçou o sapato e ouviu: “Fiu fiu”. Era o salto alto
remetendo à mulher, ao glamour, à classe econômica que dispõe de recursos financeiros para
obtê-lo (em sua versão não-híbrida), ao poder da sua imponência. O fetichismo associado ao
gênero feminino também veio à tona, mas como algo negativo: “Salto estraga o corpo”. Diante do
duelo “artefato confortável” versus “artefato bonito”, uma das autoras atestou o conforto do
Dolce&Prada.
Desafiada, uma das alunas calçou a peça. Sentiu os pés apertados, mas não deixou de
criar uma personagem evocando um repertório de lembranças, percepções, trejeitos e
representações do mundo da moda e inventar-se como modelo, desfilando, gesticulando e
representando. Naquilo que momentaneamente se tornara plateia, ouviam-se risos e aplausos. Os
sapatos interferiram no espaço e modificaram inclusive a paisagem corporal da então performer.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme reitera Miller (2013, p. 22-23) “as roupas não são superficiais, elas são o que
faz de nós o que pensamos ser.” Pensamos ser diversas pessoas, diversos papéis em variados
momentos, porém, o papel que o sapato revela ao ser colocado é pensar que somos algo diferente
do que nossa real condição, em dado espaço-tempo. Ao ser deslocado, sua aberração se esvai e
resta o glamour de sua aparência que, em alguns, evoca performances imaginadas: expressões
de um estilo imaginado e presentificado por meio do sapato. Nada importa o que evoca, o
Dolce&Prada passa a ser simbolizado não apenas por ele em si, mas por gestos, expressões e
sensações que contam de um estilo de vida posto em alteridade. Nesse sentido, cabe retomar
Garfinkel (2006) ao falarmos de gestos e expressões compartilhadas que revelam tanto sobre as
pessoas que tiveram contato com o sapato em aula, quanto sobre as autoras deste trabalho que
reconhecem as expressões dos demais, sejam de admiração ou questionamentos sobre o estatuto
do sapato. Existe um intercâmbio constante entre um sujeito e outro revelando compreensões e
linguagens compartilhadas, embora elas se modifiquem conforme os locais por onde o sapato
transita, e este também se modifica.
A falta de uma identidade reconhecida de marca cede lugar a um estatuto de exótico e
diferente que merece ser colocado para exposição. Nesse sentido, a aberração e o hibridismo, ao
invés de enterrarem a posição social do objeto, alçam-no a uma condição inesperada. Conforme
Appadurai (2008), o objeto adquire biografias muito específicas conforme se move de um lugar
para outro, de uma mão para a outra, na medida em que circula e vai construindo memória e
reputações.
REFERÊNCIAS
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social na Itália da Renascença. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 37-80.
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Janeiro: Marco Zero, 1983, p.154-161.
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________________. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos.
Porto Alegre, RS: Zouk, 2008.
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SANT’ANNA, Sabrina Parracho (org.). Manifestações artísticas e ciências sociais: reflexões sobre
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Etnometodologia. Mexico: Anthropos Editorial, 2006.
GEERTZ, Clifford. A arte como um sistema cultural. In.: ___________. O saber local: novos
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KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In.:
APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural.
Niterói, RJ: Eduff, 2008, p. 89-142.
LIMA FILHO, Manuel Ferreira; SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da. Por uma antropologia do objeto
documental: entre a “alma das coisas” e a coisificação do objeto. In.: Horizontes Antropológicos,
Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 37-50, jan/jun 2005.
MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.
WALL, Edmund de. A lebre com olhos de âmbar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.