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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX Linda Salette Miceli Ferreira 2017

O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA · PDF file3 Ferreira, Linda Salette Miceli O Sagrado e o Profano na Divina Comédia: uma releitura das ilustrações de Alberto Martini

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS

ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX

Linda Salette Miceli Ferreira

2017

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O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS

ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX

Linda Salette Miceli Ferreira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

quesito para a obtenção do Título de Doutor(a) em

Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

3

Ferreira, Linda Salette Miceli

O Sagrado e o Profano na Divina Comédia: uma releitura das

ilustrações de Alberto Martini no século XX/ Linda Salette Miceli

Ferreira. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2017.

150f.: Il.: 1cm.

Orientadora: Sonia Cristina Reis

Coorientador: Fabiano Dalla Bona

Tese (Doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação

em Letras Neolatinas, 2017.

Referências Bibliográficas: f. 120-123.

1. Dante Alighieri e a época da escrita da Divina Comédia. 2.

A Divina Comédia e a sua relação com as artes do século XX. 3.

Sobre o Sagrado e o Profano na Divina Comédia. I. Reis, Sonia

Cristina. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de

Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III.

Título.

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O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS

ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a

obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Examinada por:

______________________________

Presidente, Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

______________________________

Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

______________________________ ______________________________

Profª. Drª. Flora Di Paoli Faria Prof. Dr. Mauro Porru

______________________________ ______________________________

Profª. Drª. Geysa Silva Profª. Drª. Maria Lizete dos Santos (Suplente)

______________________________ ______________________________

Profª. Drª. Cláudia Fátima M. Martins Prof. Dr. Frederico Liberal de Goes (Suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

5

DEDICATÓRIA

Esta Tese de Doutorado é dedicada a todos aqueles que permaneceram

incansavelmente ao meu lado. Foram tempos muito difíceis em que tudo me fazia

escapar deste término, porém, nestes últimos momentos, a força veio.

Deus, sempre em primeiro lugar, me carregou com seu braço forte me

amparando. Meus Guias me incentivaram a levantar a cabeça e seguir em frente, mesmo

com minhas fraquezas e dores. Nunca terei palavras para agradecê-los, isto vem do

coração.

Pai e Mãe, vocês sempre foram a minha base, minha fortaleza. Dedico também a

vocês este caminho lindo que segui, muitas vezes doloroso, mas o mais belo que

poderia ter escolhido.

Eric, meu companheiro, meu amigo, meu amor! Agradeço cada dia de

compreensão, cada incentivo, cada bronca, porque me fizeram seguir sempre em frente,

mostrando meu valor como profissional e como pessoa.

Agradeço aos meus orientadores espirituais Celso e Thalita, por cada palavra de

incentivo, de carinho e de paciência que tiveram comigo durante essa caminhada.

Obrigada pela presença constante em minha vida, vocês me ensinam a ser melhor e a

entender que jamais estarei sozinha, que tenho uma infinidade de amor ao meu redor!

Gisele, mais uma vez tenho que te agradecer por ter me apontado o caminho

certo a seguir. Hoje não somos mais aluna e professora, mas colegas de profissão e

amigas. O meu muito obrigada por tudo!

Gostaria de agradecer ainda ao Professor Doutor Fabiano Dalla Bona por todo

apoio acadêmico que tive em relação ao meu estudo de imagens e pelo seu carinho

comigo.

E como não agradecer a esta pessoa que me apoia desde sempre na Faculdade de

Letras, minha orientadora Professora Doutora Sonia Cristina Reis! Obrigada por estar

ao meu lado em cada momento da minha vida acadêmica, sabendo entender cada

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fraqueza e cada ponto forte meu. Nestes últimos momentos você foi maravilhosa, pois

quando achei que estava tudo acabado, você me amparou e me deu forças para

continuar. Não tenho palavras para te agradecer!

Enfim, termino esta dedicatória agradecendo ao meu filho de quatro patas, Tom,

aquele que permaneceu fiel ao meu lado e, mesmo sem saber falar, ele falava comigo,

me dava o apoio que necessitava e não saiu do meu lado nem um minuto sequer. Meu

companheiro, meu anjo e como digo: “meu primeiro filho”. Amor e gratidão eternos a

você!

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus e aos meus Guias pela minha vida e por tudo o

que Ele me concede juntamente com a espiritualidade.

Agradeço também aos meus queridos professores, mas, em especial, aos de

Italiano, com os quais sempre aprendo muito. E, em particular, meu agradecimento à

professora Sonia Cristina Reis, minha orientadora, ao meu Coorientador professor

Fabiano Dalla Bona e à professora Flora De Paoli Faria.

Segue, ainda, o agradecimento ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas e à CAPES, por financiar meus estudos no Doutorado como bolsista.

Meus sinceros agradecimentos aos meus familiares, ao meu noivo, meus amigos

Celso e Thalita, a minha primeira professora de Italiano Gisele e ao meu gatinho, Tom.

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“... onde houver trevas, que eu leve a luz”.

Francisco de Assis

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RESUMO

O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS

ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

Resumo da Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a

obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Estudo do Sagrado e do Profano no texto poético e na ilustração (Santaella e

Nöth: 2008) da Divina Comédia (1321) de Dante Alighieri (1265 – 1321), realizada na

edição (2008) da obra dantesca, por Alberto Martini (1876 – 1954). Como aporte

teórico para a construção discursiva é utilizado Maingueneau (2006) e para as questões

sobre a ilustração Barthes (1990) e Aumont (2008). O corpus se refere às três Cânticas

da Divina Comédia (as do livro Inferno, as do Purgatório e do Paraíso).

Especificamente, serão estudados os Cantos XXXIV do Inferno, XII do Purgatório, XI

e XXXIII do Paraíso. Nestes cantos serão verificados os pecados (luxúria, soberba e

avareza) e as beatitudes (castidade, humildade e generosidade).

Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Alberto Martini, texto, imagem,

ilustração.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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ABSTRACT

O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS

ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

Abstract da Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a

obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

A study of the Sacred and the Profane in poetic texts and illustrations (Santaella

and Nöth: 2008) from Divine Comedy (1321) by Dante Alighieri (1265 – 1321),

performed in the Dante’s work edition (2008), by Alberto Martini (1876 – 1954). As a

theoretical subsidy for the discursive construction, it was used Maingueneau (2006), and

for the matters about illustration, Barthes (1990) and Aumont (2008). The corpus refers

to the three Canticles from Divine Comedy (from the

canticas Inferno, Purgatorio and Paradiso). More specifically, the cantos XXXIV from

Inferno, XII from Purgatorio, XI and XXXIII from Paradiso will be studied. In these

cantos the sins lust, pride and greed will be analyzed, and the beatitudes (castity,

humility and generosity).

Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Alberto Martini, texto, imagem,

ilustração.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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RIASSUNTO

O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA: UMA RELEITURA DAS

ILUSTRAÇÕES DE ALBERTO MARTINI NO SÉCULO XX

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Coorientador: Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

Riassunto da Tese de Doutorado submetido ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a

obtenção do Título de Doutor(a) em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Studio del Sacro e del Profano nel testo poetico e nell’illustrazione (Santaella e

Nöth: 2008) della Divina Comédia (1321) di Dante Alighieri (1265 – 1321), fatta

nell’edizione (2008) dell’opera dantesca, da Alberto Martini (1876 – 1954). Come

appoggio teorico per la costruzione discorsiva viene usato Maingueneau (2006) e per le

questioni sulle illustrazioni Barthes (1990) e Aumont (2008). Il corpus si riferisce alle

tre Cantiche della Divina Comédia (quelle del libro Inferno, quelle del Purgatorio e

quelle del Paradiso). Specificamente, verranno studiati i Canti XXXIV do Inferno, XII

do Purgatorio, XI e XXXIII do Pardiso. In questi canti verranno controllati i peccati

(lussuria, superbia e avarizia) e le beatitudini (castità, humiltà e generosità).

Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Alberto Martini, texto, imagem,

ilustração.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES E ABREVIATURAS

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Na Tese serão utilizadas algumas siglas para facilitar a leitura, para evitar a

repetição de títulos e nomenclaturas, a saber:

DA Dante Alighieri

DC Divina Comédia (edição com as ilustrações de Alberto Martini)

Inf Inferno

Purg Purgatório

Par Paraíso

VN Vita Nova

DVE De vulgari eloquentia

AM Alberto Martini

TP Tradução própria

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES E ABREVIATURAS

INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 18

1. DANTE ALIGHIERI E A ÉPOCA DA ESCRITA DA COMÉDIA ___________ 25

1.1. Dante Alighieri e a Divina Comédia _______________________________ 35

1.2. A arquitetura da Divina Comédia __________________________________ 43

2. A DIVINA COMÉDIA E SUA RELAÇÃO COM AS ARTES DO SÉCULO XX _64

2.1. A produção de Alberto Martini ___________________________________ 65

2.2. A Divina Comédia ilustrada por Alberto Martini _____________________ 78

3. SOBRE O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA ____________ 84

3.1. A ilustração do Sagrado e do Profano do poema dantesco na visão de Alberto

Martini _____________________________________________________ 91

3.2. As cenas do sagrado e do profano na Divina Comédia ________________ 99

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ________________________________________ 118

5. REFERÊNCIAS __________________________________________________ 120

6. ANEXOS _______________________________________________________ 124

6.1. Produções artísticas de Alberto Martini _____________________________ 124

6.2. Cânticas da Divina Comédia de Dante Alighieri ______________________ 126

18

INTRODUÇÃO

A presente Tese tem como objeto de interesse o estudo do sagrado e do profano

na edição ilustrada da Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265 – 1321), com

desenhos de Alberto Martini (1876 – 1954). Tal temática justifica-se pelo fato de o texto

dantesco trazer, além de tantas outras questões históricas, filosóficas, teológicas, a

possibilidade de discutir a relação entre os discursos escrito e imagético.

Como pesquisadora, oriunda da área de Letras, sinto-me motivada a discutir as

ilustrações de Alberto Martini feitas para a edição ALIGHIERI, Dante. La Divina

Commedia. Illustrata da Alberto Martini. Milano: Mondadori Electa, 2008, tendo sido

publicada a primeira edição ilustrada em 1949. Como aporte teórico para a construção

discursiva é utilizado Maingueneau (2006) e para as questões sobre a memória Weinrich

(2001). Como corpus de pesquisa, será utilizada a Divina Comédia ilustrada por Alberto

Martini.

Esta investigação sobre a Divina Comédia ilustrada busca dar continuidade à

pesquisa sobre as relações imagéticas entre o texto poético e o texto imagético, visando

o aprofundamento da investigação realizada para a Dissertação de Mestrado

(FERREIRA: 2013)1, em que foram discutidas as cenas dos cantos I, III e VIII, da

cântica Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, no século XV, período

correspondente ao Renascimento italiano, por meio das ilustrações de Sandro Botticelli

(1445-1510).

O corpus se refere às três Cânticas da Divina Comédia (as do livro Inferno, as do

Purgatório e do Paraíso). Especificamente, serão estudados os Cantos XXXIV do

Inferno, XII do Purgatório, XI e XXXIII do Paraíso.

Vale acrescentar que a escolha por este artista, Alberto Martini, foi feita a partir

do fato de que o mesmo era italiano e de uma época em que a DC estava sendo

1 Dissertação de Mestrado defendida em 2013, disponível em:

http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/lindaferreiramestrado.pdf

19

revisitada por muitos artistas não só italianos, como o francês Gustave Doré (1832 –

1883).

A Divina Comédia, obra prima da Literatura Ocidental, mereceu, por esse

motivo, muitas traduções em vários idiomas, inclusive para o português do Brasil, e, foi

também motivo para uma série de revisitações artísticas. Uma obra que atravessou

séculos desde a sua escrita na Idade Média, merecendo leitores ilustres como é o caso de

Giovanni Boccaccio, tendo tido outros leitores menos célebres até o século XX.

No decorrer da historiografia literária, essa e outras obras dantescas caíram em

ostracismo, particularmente nos séculos XVI e XVII, tendo sido retomada no XVIII, por

GiambattistaVico (esta discussão será apresentada no capítulo 1).

A principal obra dantesca é estudada nesta Tese como um arquitexto, já que,

segundo Genette (1982), o objetivo da poética não é o texto por si só, mas sim o

arquitexto, quer dizer, tudo aquilo que ele possui, os tipos de discurso, os gêneros

dentro dele etc. Assim, é possível perceber que, dentro desse poema dantesco, existem

situações de enunciação, que toda obra literária possui que, segundo Maingueneau

(2006), permite uma análise em três cenas distintas (cena englobante, cena genérica e a

cenografia), que permitirá observar o discurso de Dante nas ilustrações de Alberto

Martini para a Divina Comédia com base na construção das cenas de enunciação

presentes na obra em análise, pois é essa construção enunciativa que possibilita o

entendimento das cenas em estudo.

É importante aqui retomar o fato de a obra dantesca ser uma produção do século

XIV e a mesma obra, com ilustração de Alberto Martini, ser do século XX. Isso

evidencia que várias cenas descritas na Divina Comédia recebem uma representação

ilustrativa diferente da concepção estética como, por exemplo, a concepção de pecado

(profano) e de beatitude (sagrado).

Por esse motivo, são problematizadas, em meu estudo, questões que investigam

como o discurso dantesco na Divina Comédia impõe uma cenografia quer profana quer

sagrada, tendo presente os distanciamentos no campo artístico de Dante Alighieri e

Alberto Martini; tratam de discutir como identificar as noções de memória e

esquecimento, respectivamente, para o pecado (profano) e a beatitude (sagrado), nas

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obras dos corpora (poema e ilustração), a partir dos discursos ligados ao

pecado/profano (luxúria, soberba e avareza) e dos discursos ligados ao

sagrado/beatitude (castidade, humildade e generosidade); e ainda apresentam a leitura

da obra dantesca, realizada pelo artista Alberto Martini em sua Divina Comédia

ilustrada, que me permite ver a sua ilustração como a criação de um texto de autoria

própria; indicando o tipo de ruptura estética que Alberto Martini constrói em sua edição

ilustrada em relação ao arquitexto da Divina Comédia.

A partir das questões propostas apresentadas no parágrafo anterior para a

investigação nesta Tese, hipotiza-se que a força do texto de Dante Alighieri imprimiria

um dado discurso nas ilustrações de Alberto Martini para a representação do profano e

do sagrado.

Martini, ao retomar as mesmas figuras retratadas por Dante em sua obra-prima

para referir-se diretamente às questões sagradas e profanas, trataria do pecado (profano)

e da beatitude (sagrado), bastante próximo dos discursos ligados ao pecado/profano

(luxúria, soberba e avareza) e dos discursos ligados ao sagrado/beatitude (castidade,

humildade e generosidade) na obra da Idade Média.

As ilustrações de Alberto Martini, no entanto, trazem uma interpretação que

paradoxalmente gera um texto autoral em relação à principal obra dantesca, devido ao

rompimento com a estética da sua época que havia sido construída em relação à Divina

Comédia, pois as suas ilustrações promoveriam um diálogo com a obra poética,

configurando-se como um texto visual a partir de um arquitexto.

No estudo realizado para esta Tese foi necessário rever outras obras de Dante

com relevância para o estudo dos modelos poéticos, a partir da era medieval, que são a

Vita Nuova e De vulgari eloquentia. Isso porque estas duas obras auxiliam bastante na

compreensão da Comédia dantesca, já que foram anteriores a grande obra do poeta,

onde ele pode tratar outras questões, como o amor, na primeira, dando prosseguimento

ao amor por Beatriz na DC.

Sendo assim, o autor dividiu sua principal obra, a Divina Comédia, em três

partes, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. A sua primeira cântica, o Inferno, foi

21

concluída, em 1308, quatro anos depois, em 1312, o Purgatório e, em 1321, ano de sua

morte, a última Cântica, a do Paraíso.

O interesse de artistas por ilustrar a obra dantesca ocorreu muito antes do século

XX, como por exemplo, as ilustrações de Alessandro Vellutello (1515 – 1544) para a

Divina Comédia, na Itália, no século XVI, de Francesco Scaramuzza (1803 – 1886),

sempre na Itália no século XIX e, na França, Paul Gustave Doré (1832 – 1883), ainda

no século XIX. As ilustrações para a cântica do Inferno da obra dantesca, feitas pelo

artista francês, foram objeto de minha pesquisa durante a Iniciação Científica. Tal fato

conduz para uma inquietação, que é, justamente, a motivação desses artistas, e aqui me

refiro ao interesse de ilustradores e pintores que realizaram trabalhos sob a temática da

obra-prima de Dante Alighieri.

A motivação dos artistas, nem sempre, era própria, uma vez que, até meados do

século XIX, se tem notícias de que os mecenas tinham um papel fundamental na arte, já

que eram eles que ditavam as regras de como as pinturas deveriam ser realizadas. O

estudioso de Literatura Italiana, Asor Rosa, afirma sobre o mecenato que:

Grande e crescente importância assume, portanto, neste quadro, o fenômeno

do mecenato, isto é a disponibilidade do príncipe a financiar a execução ou a

impressão de obras de arte ou literárias e a sustentar ao redor de si com

donativos e salários letrados, pintores, escultores, arquitetos, cientistas (Asor

Rosa: 1987, p. 108)2 (TP)

Distante da época dos principados na Itália, a Divina Comédia continua a

inspirar artistas, como é o caso de Alberto Martini. Por esse motivo, a presente

investigação se move em direção a averiguar as cenas do século XX, que favoreceram a

publicação dessa obra para poder então verificar como se deu a motivação da

revisitação e ilustração da obra de Dante.

2 “Grande e crescente importanza assume perciò in questo quadro il fenomeno del mecenatismo, cioè la

disponibilità del principe a finanziare l’esecuzione o la stampa di opere d’arte o letterarie e a sostentare

intorno a sé con donativi e stipendi letterati, pittori, scultori, architetti, scienziati. (Asor Rosa: 1987, p.

108)

22

O método de estudo para tratar desse objeto se debruçará sobre a noção de

memória (WEINRICH: 2001), objetivando mostrar como esta é importante para os três

universos da Comédia. Serão revisitadas concepções de memória, a partir dos diálogos

entre Dante (figura ficcional na Divina Comédia) e as almas do inferno, do purgatório e

do paraíso, representados nas ilustrações de Alberto Martini.

Já a discussão sobre texto e texto poético, no caso, específico da Divina

Comédia, de Dante Alighieri, será discutido o conceito de texto com base em Genette

(1982), uma vez que, para o estudioso, o objeto da poética não é o texto em si,

considerado dentro de uma singularidade, mas um arquitexto, um arquivo textual para

outras obras, ou seja, por meio do texto serão estudadas as suas partes, como já

mencionado.

Tratando do percurso metodológico, a relação texto poético e ilustração encontra

na teoria da cena de enunciação, descrita no Discurso Literário (2006), de Maingueneau

sua base, uma vez que a leitura ou interpretação de um texto passa por três cenas: a

englobante, a genérica e a cenografia, sendo a primeira necessária para o entendimento

global do texto, a segunda a divide em gêneros de discursos particulares e a terceira é

construída pelo próprio texto.

A cena de enunciação, no caso, reduz-se apenas às duas primeiras cenas, porém,

o discurso irá impor a sua cenografia de alguma maneira por meio de sua enunciação. É

importante ressaltar que a cena de enunciação de cada época em especial consegue fazer

com que o leitor entenda o que se passa por um específico modelo cultural.

Ainda relacionado à ilustração, será estudada a obra de Santaella e Nöth (2008),

os quais ajudam no entendimento da leitura que se pode fazer a partir da ilustração em

sua totalidade e em suas seções.

Já referente ao estudo da Divina Comédia, não são menos importante as questões

relativas à noção de profano/pecado – livros Inferno/ Purgatório e sagrado/beatitude -

livro Paraíso da Divina Comédia, e de memória e esquecimento, uma vez que, dentro

do Paraíso, as almas perdem a memória de vida negativas, permanecendo com as

positivas, e para a lembrança é importante a obra de Weinrich (2001), que trata dessa

memória que permanece com as almas.

23

Uma das questões que intrigam nas ilustrações de Alberto Martini para a Divina

Comédia é o seu caráter de criação autoral. Nesse sentido, busco entender esse aspecto

da obra martiniana a partir de seu campo artístico, para poder encaminhar a discussão

do entendimento do espaço social de interação entre artistas no século XX, e análise das

influências recebidas por Alberto Martini em relação às escolhas ou tendências de

períodos artísticos diferentes, como no caso do corpus da Tese de Dante e de Martini.

Naturalmente, será necessário buscar uma compreensão da época da Divina

Comédia, nesse sentido, com a obra de Eco (1989), que traz um estudo sobre modos de

ver a Idade Média, já que esse estudo possibilitará a aproximação ao texto dantesco.

A obra de Barthes (1990), O óbvio e o obtuso, também ajudará, no sentido da

leitura da imagem, visto que, a partir dela, será possível averiguar o sentido simbólico

que a imagem proporciona. Além disto, Aumont (2008), em A imagem, auxiliará a

verificar como é a relação entre o espectador e a ilustração e como a imagem da Divina

Comédia representa o mundo, tanto quando se trata da obra de Dante como para a

Divina Comédia de Alberto Martini.

Para o desenvolvimento deste trabalho, propomos uma organização em três

capítulos. Iniciando a discussão, trazemos, no primeiro deles, intitulado Dante Alighieri

e a época da escrita da Comédia, um estudo sobre as questões relativas ao poeta e a sua

grande obra literária, tendo como subcapítulos Dante Alighieri e a Divina Comédia e A

arquitetura da Divina Comédia. Será realizada uma biografia dantesca e também um

estudo sobre como, ainda hoje, a obra do poeta florentino é atual.

No segundo capítulo, A Divina Comédia e a sua relação com as artes do século

XX, apresentamos a relação do poema dantesco com as artes do século XX, no qual está

inserido o artista (ilustrador e pintor) que é o foco desta pesquisa, Alberto Martini. Tem-

se como subcapítulos A produção de Alberto Martini e A Divina Comédia ilustrada por

Alberto Martini. Será realizada uma biografia do artista, juntamente com suas obras, até

o momento em que ele fez sua edição ilustrada da Divina Comédia.

O terceiro capítulo dedica-se às questões do sagrado e do profano, com base em

Eliade, na obra poética de Dante, capítulo este, intitulado Sobre o sagrado e o profano

na Divina Comédia. Este capítulo subdivide-se em outros dois, sendo o primeiro A

24

ilustração do sagrado e do profano do poema dantesco na visão de Alberto Martini, e o

segundo As cenas do sagrado e do profano na Divina Comédia.

Para este capítulo serão utilizadas: a obra de Barthes (1990) que ajudará, no

sentido da leitura da imagem, visto que, a partir dela, será possível averiguar o sentido

simbólico que a imagem proporciona; além disto, Aumont (2008), que auxiliará a

verificar como é a relação entre o espectador e a ilustração e como a imagem representa

o mundo.

Posteriormente a isto, apresenta-se ainda uma lista com as principais obras de

Alberto Martini e também as cânticas completas dos cantos da DC aqui estudados.

Delineadas as considerações iniciais desta pesquisa, começamos, no primeiro

capítulo, a discutir as questões entorno de Dante Alighieri, sua principal obra, a Divina

Comédia e o encanto desta obra sobre outros escritores e artistas.

25

1. DANTE ALIGHIERI E A ÉPOCA DA ESCRITA DA COMÉDIA

Esse capítulo faz-se necessário para oferecer um percurso biográfico referente ao

período anterior à escrita da Comédia, uma vez que neste trajeto, Dante Alighieri

desenvolveu trabalhos literários e teve contato com intelectuais de sua época que foram

importantes para o seu crescimento como artista, fato que aponta diretamente para a

realização de sua maior obra literária que foi a Divina Comédia.

Os estudos de formação educacional de DA foram no Trivium e no Quadrivium,

cujos cursos eram compostos pela gramática (latim), lógica e retórica, seguidos pela

aritmética, geometria, astronomia e música. Após estes anos, ele prosseguiu seus

estudos frequentando palestras em escolas de franciscanos, em Santa Croce, e de

dominicanos, em Santa Maria Novella, em Florença, sua cidade natal. Esta formação foi

de grande importância para as futuras obras de DA, visto que, graças a esses estudos, ele

teve as bases para escrever um tratado inteiramente em latim, o De vulgare eloquentia,

como será tratado mais adiante neste capítulo.

Ainda jovem, depois da morte de seu pai (entre 1281 e 1283), por ser menor de

idade, foi-lhe imposto um tutor, e o escolhido foi Brunetto Latini (1220- 1294), que foi

um dos personagens de grande importância no século XIV italiano, responsável pela

criação da figura do intelectual civil. Provavelmente, Brunetto transmitiu alguns de seus

ensinamentos ao seu tutorando, DA, pois ele, assim como muitos de seus pares da

época, trabalhava como civil, ocupando um cargo administrativo na administração da

cidade de Florença, além de exercer a atividade que realmente lhe agradava, que era a

poesia. A esse respeito Ferroni afirma:

Brunetto cria a figura do intelectual «civil», que faz convergir o próprio fazer

literário (para o qual é essencial o apelo aos modelos dos antigos escritores)

com a existência individual e a atividade política. O homem culto se

reconhece assim no modo em que aplica o seu saber a um juízo e a uma

intervenção moral sobre o mundo: nisto consiste o senso do ensinamento

transmitido por Brunetto a Dante (que o recorda no canto XV do Inferno)3.

(FERRONI: 1992, p. 57) (TP)

3 “Brunetto crea la figura dell’intellettuale «civile», che fa convergere il proprio fare letterario (per il

quale è essenziale il richiamo ai modelli degli antichi scrittori) con l’esistenza individuale e l’attività

26

Desse contato de DA com seu tutor, pode ser notado o encontro do poeta de

Florença com a arte e também com a política, já que Brunetto mostrou-se um intelectual

que reunia em si a literatura e a política, ensinando-o que um intelectual devia possuir

um conhecimento global, amplo, não somente em relação à literatura, mas também à

sociedade. Esse fato ajudou ainda mais nas relações políticas e sociais que DA tinha

dentro de seu Comune, que era uma forma de governo autônomo existente na Península

Itálica naquele período.

Nesses comuni, os cargos administrativos eram fundamentais para o bom

desenvolvimento da cidade, e, portanto, eram os próprios cidadãos que os

administravam, é o que declara Ferroni (1992: p. 57) em: “Na sociedade comunal, a

administração pública requer uma direta participação dos cidadãos e as relações civis

são determinadas essencialmente pelo correto uso da palavra no interior das

instituições4”. (TP)

Ocupavam cargos nesses comuni, intelectuais formados e que tinham ideais que

superavam a simples função administrativa que exerciam. Florença, no século XIV, já

era uma cidade-estado livre e uma de suas principais atividades era a indústria têxtil, a

qual fornecia os manufaturados para vários locais da Europa.

Assim sendo, DA, mesmo ocupando um cargo administrativo no comune, aos 30

anos de idade, já tinha seus poemas lidos e recitados, e suas cópias eram realizadas até

externamente à Florença. Isto fez com que ele se associasse ao grêmio dos médicos,

farmacêuticos e pintores, fato muito comum entre os homens da sociedade da época que

tinham como objetivo trocar experiências intelectuais, visando à divulgação do próprio

trabalho. Associou-se a este grêmio devido ao estilo de trabalho que desenvolviam,

sendo esses trabalhos vendidos em lojas de farmacêuticos.

politica. L’uomo colto si riconosce così nel mondo in cui applica il suo sapere a un giudizio e a un

intervento morale sul mondo: in ciò consiste il senso dell’insegnamento trasmesso da Brunetto a Dante

(che lo ricorda nel canto XV dell’Inferno)”. (FERRONI: 1992, p. 57) 4 “Nella società comunale, l’amministrazione pubblica richiede una diretta partecipazione dei cittadini e i

rapporti civili sono determinati essenzialmente dal corretto uso della parola all’interno delle istituzioni”.

(FERRONI: 1992, p. 57)

27

Quando DA ainda estava principiando seu trabalho como poeta, uma figura teve

uma função muito importante para a sua formação artístico-literária que foi Guido

Cavalcanti (1255 – 1300), com quem estabeleceu uma relação estreita de amizade e

aprendizado, ou seja, relacionavam-se como mestre e aprendiz. Ele surgiu para DA, no

momento em que ele estava tentando entrar para um grupo de poetas e, nesta época,

esses intelectuais ainda escreviam como a tradição dos trovadores, de acordo com

Reynolds (2011: p. 46). A poesia de Cavalcanti era conflituosa, demonstrando um

embate entre idealismo e desejo, traços bem diversos da escritura dantesca. Cavalcanti o

ajudou inúmeras vezes, lendo e criticando seus poemas, auxiliando-o sempre na escrita.

DA, a princípio, sempre se opôs aos poetas que se enquadravam no perfil dos

Fedeli d’amore, uma vez que tinha uma visão mais terrena, ou seja, menos emocional,

menos sensível em relação ao amor. Esses fiéis de amor eram poetas que cultivavam o

Amor e rendiam obediência a ele. Em Florença, esses poetas constituíam um grupo de

alto nível cultural e social que trocavam experiências literárias; porém os mesmos não

eram bem aceitos pelos outros poetas, que eram contra esse modelo literário dos fiéis de

amor. DA, contudo que possuía um modelo de escrita diverso do deste grupo, queria

fazer parte desse grupo seleto, decidindo, portanto, colocar alguns de seus sonetos em

circulação, anonimamente, e, de acordo com a aceitação dos leitores, o poeta

conseguiria saber se se tornaria integrante desse grupo, uma vez que seu trabalho era

anônimo.

Conforme recebia retornos positivos relacionados a sua poesia, DA escrevia

poemas mais audaciosos e enviava-os para um grupo ainda maior de poetas, que os

interpretaram, sendo que, um desses sonetos foi o que DA incorporou como primeiro

poema de seu livro a Vita Nuova. Logo, aos 17 anos de idade, ele já pertencia a este

grupo que, com o passar do tempo e das trocas de experiências, o fez alcançar sua

maturidade literária.

O peso de seguir os modelos de seu mestre moveu DA a escrever textos

poéticos, muitas vezes, distantes de seu espelho que era Cavalcanti, conforme pode ser

observado na fase inicial dos trabalhos do poeta. Desta forma, com a finalidade de

28

mostrar um pouco de como era essa fase, ainda jovem, em relação aos seus trabalhos

literários, Reynolds declara:

O contraste entre a alegria e o horror se reflete nos aspectos contraditórios de

sua personalidade: por um lado, realista, terreno e sensual, por outro íntegro,

idealista e visionário. Sua formação responde por ele até certo ponto, mas não

pode explicar como, partilhando essas influências com seus contemporâneos,

ele foi capaz de superá-las, tornando-se um dos maiores poetas do mundo

ocidental. Não há nenhuma explicação para a sua genialidade, mas algumas

pistas da razão pela qual Dante se desenvolveu desta forma podem ser

encontradas nos eventos políticos em sua vida e em suas obras.

(REYNOLDS: 2011, p. 42)

De acordo com Reynolds, o poeta, ainda jovem, era uma pessoa complexa, com

ideais sempre além dos pensados normalmente pela sociedade do século XIV,

principalmente nas questões políticas. Possuía ainda um alto amadurecimento poético

em relação aos seus contemporâneos.

DA, no início de sua atividade como poeta, teve apoio ainda de um dos

principais poetas da época, Guido Guinizelli5, (1230 – 1276). Porém, ao longo do

tempo, devido aos posicionamentos políticos de cada um desses poetas, começaram a

haver rupturas, não literárias, mas sim políticas, posto que era impossível que pessoas

de diferentes partidos políticos pudessem permanecer juntas. Isso quer dizer que, ainda

que pertencessem a partidos diferentes, o que na época era muito comum, a experiência

poética continuava ocorrendo, mesmo porque, ainda que não pudessem se reunir, eles

tinha a possibilidade de trocar informações por meio de cartas, a respeito de seus

trabalhos poéticos. No caso de DA com seu amigo Guido Cavalcanti, houve essa

separação, porém eles continuaram trocando experiências relacionadas à poesia por

correspondência, uma vez que cada um era pertencente a um grupo político diverso.

Tendo presente um pouco da biografia social e política de DA, vale acrescentar

ainda um breve panorama sobre seus trabalhos literários, evidenciando seu percurso até

a realização da DC. Seguem abaixo algumas dessas obras.

5 Guido Guinizelli (1235 - 1276) foi um importante poeta italiano que foi o iniciador e o teorizador do

Dolce Stil Novo, a corrente literária do século XIII italiano.

29

O primeiro livro de DA, intitulado Vita Nuova, foi escrito, no período de 1292 a

1293, dois anos após a morte de Beatriz Portinari, em 1290, figura de mulher que

frequenta toda a obra de DA, representando a mulher-anjo, ou seja, a visão de mulher do

Dolce Stil Nuovo6, que é a figura de uma mulher contemplada, amada, intocada pelo

poeta, sublime. Ele tratou do amor, em sua obra, fazendo uma ligação entre ele e o

coração gentil que via na mulher, ou seja, a mulher era a dona da graça, da doçura e da

humildade, sendo esta uma visão idealizada do amor. Esta mulher encarna a figura de

anjo, sendo uma intermediária entre a terra e o céu, fazendo com que o homem se eleve,

aproximando-se de Deus.

DA dividiu esta obra em duas partes, sendo a primeira dedicada à narração dos

acontecimentos e dos sentimentos que motivaram a composição dos poemas e, a

segunda, a análise de cada um deles. A obra compõe-se de rimas (canções e sonetos) e

de 39 capítulos, em prosa, e seu título remete a uma experiência absoluta que modificou

sua vida. Ele dá início à obra narrando seu encontro, aos nove anos de idade, com

Beatriz, sua amada, e prossegue expondo os acontecimentos até encontrar-se novamente

com ela, nove anos depois.

Essa obra mostra a trajetória percorrida por DA na sua formação literária,

trazendo consigo elementos novos, de experimentações nunca antes feitas em textos

poéticos, optando pela escrita em vulgar florentino e não em latim, tendo em vista que

ele queria que sua obra pudesse atingir o público e não somente as altas camadas da

sociedade. Nota-se que a difusão da VN deu-se por meio das cópias manuscritas de

Giovanni Boccaccio, cuja primeira edição data de 1576.

Em 1290, aproximadamente, DA já era conhecido em Florença como um

competente poeta, tendo seus poemas cantados, decorados e recitados e, consciente

disto, começou a ousar em sua escritura. Primeiramente, ele escrevia como os

trovadores, sendo seus temas: o amor não correspondido, a personificação da morte, o

amor oculto, os desentendimentos com a mulher amada, entre outros.

6 Escola literária que se difundiu na Toscana e teve como precursor Guido Guinizelli. Dentre seus

principais poetas observamos DA e Guido Cavalcanti. A novidade desse movimento está justamente na

consciência filosófico-existencial e literária, ou seja, é um movimento que não é limitado culturalmente, o

que gera uma concepção existencial original. Mais informações sobre esta temática do amor, ver

CAVALCANTI, Guido. Rime.

30

Juntamente com Guinizelli, DA e Guido Cavalcanti foram os maiores expoentes

do Dolce stil novo, que foi uma tendência literária nascida na primeira metade do século

XIII italiano e que concebia o amor como uma experiência global do espírito. À medida

que DA amadurecia sua escritura, o já citado Guido Guinizelli criou um novo conceito

de cor gentile7, cuja temática referia-se a uma qualidade mental que possibilitava a

experimentação unicamente do efeito mais elevado do amor, ou seja, um amor sublime.

Em seu soneto presente em seu livro Rime, Dante mostra que esse amor se estendia não

somente à mulher amada, mas também aos amigos, é o que se observa em: “Guido,

queria que você, Lapo e eu/ fôssemos postos por encantamento,/ todos em um barco e

que todo vento/ nos levasse ao bel-prazer, vosso e meu. [...]”8 (Rime LII) (Reynolds:

2011, p. 37).

Naquela época, DA escreveu inúmeros poemas sobre Beatriz e sobre seu amor

sublime e oculto por ela. Deste modo, a partir desses poemas pode ser percebida a

importância que ela tinha para ele transcendia a sua própria imaginação. Em sua

concepção, Beatriz havia se tornado um ideal, um ser paradisíaco e de uma beleza

extraordinária. A partir dessa compreensão, por parte dele, Reynolds afirma:

Este foi o primeiro passo de Dante em direção a uma nova forma de alegoria:

não uma personificação, nem um simbolismo, mas a percepção de que as

pessoas reais podiam ser imagens de qualidades que estão além delas

mesmas, não só em festas de máscaras e cortejos, mas na vida real.

(REYNOLDS: 2011, p. 52)

De acordo com Reynolds, infere-se que DA superou a personificação do amor

por Beatriz, marcado desde a sua infância pela impossibilidade de ser concretizado, pois

os dois não poderiam se casar, visto que ambos eram, desde muito jovens, prometidos

em casamento para outros cônjuges. Porém, este amor tornou-se poesia, ou seja,

personificou-se para o poeta que se aproveitou deste seu amor sublimado para ir em

direção a uma nova forma de escrita.

7 “coração nobre”, “gentil”.

8 “Guido, i’vorrei che tu e Lapo ed io/ fossimo presi per incantimento/ messe in un vasel, ch’ad ogni

vento/ per mare andasse al voler vostro e mio, [...]”(Rime LII) (Reynolds: 2011, p. 36).

31

Posteriormente ao término da obra, DA ainda envolvido na política de Florença,

percebia o quanto seu comune era importante e sabia o quanto a cidade de Florença,

naquele momento histórico, era uma das cidades de grande poder em oposição ao Papa9.

Existia, naquela época, uma dicotomia política intensa: um partido a favor do

Papa, na época Bonifácio VIII (1235 – 1303), e outro em oposição à Igreja, a favor do

Império. O quadro político daquele momento em Florença dividia-se entre os Guelfos e

os Gibelinos, que, respectivamente, apoiavam a Igreja e o Império. Suas lutas eram

constantes e, na batalha de Montaperti, travada em 1260, na qual os Gibelinos,

comandados por Farinata degli Uberti (1212 – 1264) foram derrotados e todo o poder de

Florença passou, então, para as mãos dos Guelfos. Desta forma, o poder da cidade

permaneceu com os Guelfos a partir de 1266. Dante trata da questão desses grupos

políticos em:

À insígnia comum lírios amarelos/ um opõe, e outro a traz à sua parte:/ mal

se vê quem mais peca em tais duelos./ Façam os Gibelinos pois sua arte/ sob

outra insígnia; mal a segue quem/ dela sempre a justiça ora departe;/ e não a

abata o Carlos que lá vem/ cos Guelfos, mas que tema unhas hostis/ que

esfolado maior leão já tem.10

(Par VI, v. 100 – 108)

Entretanto, posteriormente a este fato político, o partido dos Guelfos dividiu-se

em Guelfos Negros e Guelfos Brancos. Novamente essa divisão política envolveu a

Igreja Católica, uma vez que os Negros eram seus partidários e os Brancos não. Os

comandantes dos Brancos eram da família dos Cerchi, os quais defendiam os interesses

do popolo grasso (financiadores e ricos mercantes); já quem comandava os Negros era a

família dos Donati, que fortaleciam o restabelecimento do poder da nobreza e apoiavam

incondicionalmente o Papa.

Dentre os Brancos estava DA, que era contrário à dominação do Papa/ Igreja

Católica, defendendo a autonomia da sua cidade. Devido às lutas ocorridas entre esses

9 Papa Bonifácio VIII, o então Papa na época de DA, foi responsável por seu exílio, já que era seu

inimigo político declarado, fato que impediu o retorno de DA à Florença até a sua morte em Ravena. 10

“L’uno al pubblico segno i gigli gialli/ oppone, e l’altro appropria quello a parte,/ sí ch’è forte a veder

chi piú si falli./ Faccian li Ghibellin, faccian lor arte/ sott’altro segno; ché mal segue quello/ sempre chi la

giustizia e lui diparte;/ e non l’abbatta esto Carlo novello/ coi Guelfi suoi; ma tema de li artigli/ ch’a piú

alto leon lo vello”. (Par VI, v. 100 – 108)

32

partidos políticos, a cidade de Florença foi palco de muitas execuções e exílios,

incluindo o exílio do próprio poeta italiano que foi banido juntamente com todos do seu

partido após perder uma de suas batalhas contra os Negros. A esse respeito Asor Rosa

declara:

[...] Dante, [...], não devia mais ter a possibilidade de retornar a sua pátria. O

exílio representa uma pausa clara e dolorosa na vida de Dante. Mudam

completamente as condições da sua existência: a férvida participação na vida

do Comune se modifica em um vagar difícil e atormentado (do qual é

possível seguir todos os traços) de cidade em cidade, a procura de

hospitalidade e de sustento.11

(ASOR ROSA: 1985, p. 51) (TP)

No exílio, DA permaneceu até sua morte em 1321. O poeta não pôde retornar a

sua cidade natal, passando por várias necessidades materiais, pois não tinha uma

residência, tinha de se mudar frequentemente e pedir hospitalidade nas regiões central e

setentrional da Itália. Devido a essa dificuldade, o poeta não tinha como levar consigo

seus livros; contudo não parou de exercer seu trabalho como poeta, continuando-o como

um ideal de justiça a ser alcançado, uma vez que já havia perdido tudo, inclusive a sua

família, com a qual não tinha mais contato. É o que pode confirmar a declaração de

Walter Mauro em:

«Deixados, então, a esposa e os pequenos filhos nas mãos da sorte, e saindo

daquela cidade, na qual nunca ele poderia voltar»: o doloroso testemunho de

Boccaccio esclarece em termos de magra nudez expressiva a condição do

exilado, já barco sem vela e sem governo, em dificuldades econômicas

sempre mais duras, depois que a sua casa florentina e os seus bens tinham

sido saqueados pelos Negros senhores da cidade. Começam assim as duras

humilhações do exilado: bater às ilustres duras portas, sofrer a amargura do

pão da esmola, ajudado num primeiro momento somente pelo meio-irmão

Francesco, não comprometido politicamente, e por isso, capaz de continuar o

seu comércio em Florença e de manter os contatos com o marginalizado12

.

(MAURO: 1990, p. 35-36) (TP)

11

“[...] Dante, [...], non doveva avere più la possibilità di tornare nella sua patria. L’esilio rappresenta una

cesura netta e dolorosa nella vita di Dante. Cambiano completamente le condizioni della sua esistenza: la

fervida partecipazione alla vita del Comune si muta in un girovagare difficile e tormentato (di cui è

possibile seguire tutte le tracce) di città in città, alla ricerca di ospitalità e di sostentamento”. (ASOR

ROSA: 1985, p. 51) 12

“« Lasciati adunque la moglie e i piccoli figliuoli nelle mani della fortuna, et uscito di quella città, nella

qual mai tornare non doveva »: la dolorosa testimonianza di Boccaccio chiarisce in termini di scarna

nudità espressiva la condizione dell’esule, già legno senza vela e senza governo, in ristrettezze

economiche sempre piú pesanti, dopo che la sua casa fiorentina e i suoi beni erano stati saccheggiati dai

Neri padroni della città. Cominciano cosí le dure umiliazioni dell’esiliato: battere le dure illustre porte,

subire l’amarezza del pane dell’elemosina, aiutato in un primo tempo solo dal fratellastro Francesco, non

33

Distante de Florença, DA passou longos períodos em várias cidades italianas e

estas estadas duravam muito ou pouco tempo; por exemplo, em 1306 ele permaneceu

em Lunigiana, região situada entre as regiões da Toscana e da Ligúria; de 1307 a 1311,

em Poppi, na região do Casentino, que se localiza na parte norte oriental da Toscana; de

1312 a 1318-20 esteve em Verona, como hóspede de Cangrande della Scala (1291 –

1329); e, em 1321, foi para Ravena, como hóspede de Guido Novello da Polenta (1275

– 1333), onde faleceu. Além dessas cidades, ele passou ainda por Treviso e Pádua.

Todavia, o exílio foi o período mais produtivo da vida de DA, marcando o seu

ingresso em outra etapa de sua vida, que acarretou a realização de sua maior obra

poética. É o que afirma Asor Rosa em:

[...] sem dúvida que o exílio representa o fato mais importante na vida de

Dante. Não queremos dizer que sem isso ele não teria escrito as suas obras

maiores. Certo, porém, a forçosa ruptura da carreira política e o afastamento

de Florença forçaram-no a exercitar o seu gênio em estradas diversas

daquelas cujo destino parecia tê-lo inicialmente encaminhado e o forçaram-

no a uma concentração intelectual absoluta em que permanecia aberto

somente o crescimento do compromisso literário e cultural.13

(ASOR ROSA:

1985, p. 52) (TP)

Logo, no início de sua peregrinação, DA deu início à composição do livro De

vulgari eloquentia (1303 – 1304). Escrito em latim, sobre o vulgar ‘ilustre’, esse

trabalho foi o seu primeiro tratado sobre a retórica e poesia, dentro da tradição católico-

filosófico medieval. Esse tratado é considerado pelos autores do século XX como sendo

o primeiro importante estudo linguístico e filosófico das línguas faladas na península

italiana na época. A intenção política e literária do autor foi a de apresentar a

superioridade do vulgar sobre o latim, com o intuito de estimular a sua regularização.

Além disto, ele a escreveu em latim para os eruditos da época, enfatizando a

expressividade do florentino por intermédio da recente poesia toscana.

compromesso politicamente, e perciò in grado di prosseguire il suo commercio a Firenze e di mantenere i

contatti con l’emarginato”. (MAURO: 1990, p. 35-36) 13

“[...] non v’è dubbio che l’esilio rappresenti il fatto più importante nella vita di Dante. Non vogliamo

dire che senza di esso egli non avrebbe scritto le sue opere pìù grandi. Certo, però, la forzata rottura della

carriera politica e l’allontanamento da Firenze lo costrinsero as esercitare il suo genio su strade diverse da

quelle cui il destino sembrava averlo inizialmente avviato e lo impegnarono ad una concentrazione

intellettuale assoluta cui restava aperto soltanto lo sfogo dell’impegno letterario e culturale.” (ASOR

ROSA: 1985, p. 52)

34

Asor Rosa (1985: p. 56) declara que a principal distinção do tratado do vulgar

ilustre dantesco é entre o vulgar e a gramática, uma vez que o primeiro é a língua em si,

e a segunda é a língua reduzida ao domínio de regras fixas. DA acreditava que a língua

falada era totalmente variável e, a depender das condições de tempo e de lugar, seria

improvável o entendimento da fala dos habitantes de um mesmo lugar que tivessem

vivido em períodos diferentes da história. A gramática, nesse sentido, é uma identidade

“inalterável” da língua, ou seja, ela serve como base para uma língua comum.

O projeto inicial, para a redação de DVE, foi o de compor quatro livros,

analisando os vários níveis estilísticos e as possíveis formas de uso literário da língua

vulgar. Entretanto, essa obra também foi interrompida, exatamente, no capítulo XIV, do

segundo livro, para que ele iniciasse sua maior obra, a DC.

Esse tratado não teve tanta notoriedade como as outras obras de DA, tendo sido

redescoberta na primeira metade do século XVI e publicada em tradução italiana.

Ainda que não tivesse obtido tanto sucesso e ter sido criticado, DA deu o passo

principal, através de vários estudos linguísticos, para a composição de sua obra maior

que foi a DC. Desta forma, pode-se afirmar que ele foi um escritor além de seu tempo.

Sua obra seguinte foi Convivio, escrita em língua vulgar, entre 1303 e 1304, ou

seja, essas duas obras foram realizadas praticamente no mesmo período. Esta última, em

seu projeto inicial, deveria conter quinze tratados e um capítulo introdutório; todavia,

DA interrompeu a sua composição no quarto tratado. Cabe observar que o quarto

tratado foi escrito anos mais tarde, entre 1306 e 1308.

No Convivio, DA, diversamente do que fez na VN, modificou novamente seu

estilo, dessa vez, em prol de outro mais argumentativo e expositivo, utilizando-se de

alguns dos temas da cultura filosófica do seu tempo, como, por exemplo, a vida do

homem, a juventude, etc. Deste modo, inaugurou uma prosa filosófica totalmente

diversificada, coerente e lúcida, em língua vulgar.

DA trata de um banquete de sabedoria, oferecido aos mais pobres e miseráveis.

No primeiro tratado, ele tem por foco seu amor por Beatriz e também seu pensamento

filosófico. No segundo tratado, discorre sobre a filosofia na vida do homem. Já no

35

terceiro, escreve sobre a nobreza e, finalmente, no último trata de amizade, felicidade,

fidelidade, velhice, juventude, ética etc. É importante evidenciar que DA interrompeu a

escritura desse livro para dar início à DC.

Posteriormente a esses três livros acima mencionados, escreveu a Monarchia,

entre 1311 e 1313. Esta é um tratado em latim, dividido em três livros, nos quais deixa

transparecer seus conhecimentos de filosofia e política. No primeiro livro, ele defende a

necessidade de se ter um único monarca para o governo mundial. No segundo, mostra a

origem divina do Império Romano e, no terceiro, trata da relação entre o Papado e o

Império.

DA escreveu ainda outras obras, igualmente importantes para o conhecimento de

seu estilo, porém não tão conhecidas, a saber: Rime, Il Fiore, Detto d’Amore, Egloghe,

Epistole e Quaestio de aqua et de terra.

Este capítulo delineou basicamente o principal percurso feito por DA até a

escrita de sua maior obra, a Commedia, que será estudada na primeira subseção deste

capítulo.

1.1. Dante Alighieri e a Divina Comédia

A Divina Comédia é uma das principais obras da Literatura Italiana. Esse é um

dos motivos que nos levam a tratar de sua estrutura nesta subseção. Outra motivação é o

fato de esta obra ter sido revisitada por Alberto Martini, no século XX.

Assim, iniciamos essa apresentação da estrutura da DC observando que DA a

organizou de uma forma muito minuciosa. Para o poeta, o número três tinha uma grande

importância, já que é o número da Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) e, assim,

escreveu três cânticas (Inferno, Purgatório e Paraíso), cada uma com 33 cantos, tendo

cada Canto entre 115 e 160 versos, havendo a cântica do Inferno um canto a mais,

36

introdutório, pois, no somatório das três cânticas, obtêm-se um total de cem cantos, que

representa o número perfeito para aquela época.

Além disto, existe ainda a terza rima (terzina) ou rima tripla, construída em três

estrofes, já utilizada desde a época da Escola Siciliana14

. Em sua obra, a terzina torna-se

uma unidade rítmica e também sintática. Deste modo, a rima composta por DA segue o

esquema ABA, BCB, CDC etc., que dará a principal rima no final da estrofe. Cada

verso possui 11 sílabas, ou seja, ele utilizava-se do hendecassílabo, recurso muito

utilizado na literatura italiana desde a Escola Siciliana, que elaboraram este modelo das

líricas provençal e francesa. No total, a DC foi formada por 14.233 hendecassílabos. A

respeito desta grande variedade utilizada na escrita de Dante, Cataldi e Luperini

declaram:

Ele conseguiu conferir (à Commedia) uma extraordinária variedade rítmica,

desfrutando assim ao máximo uma situação de liberdade, que, da li a pouco,

teria vindo a faltar, devido à institucionalização métrica do modelo

petrarchesco.15

(CATALDI E LUPERINI, 1994, p. VIII) (TP)

O fato de a obra dantesca ter sido divulgada em ambientes muito diversificados,

fez com que ela tivesse vários copistas, após a morte de seu autor. O principal

divulgador do poema dantesco, no século XIV foi Giovanni Boccaccio (1313 – 1375), o

qual realizou três cópias da mesma. A DC intitulada por DA como Commedia (em sua

forma mais antiga Comedía), teve acrescentado ao seu título o adjetivo Divina por

Boccaccio, que só foi integrado ao título oficial a partir do Cinquecento italiano.

Observa-se que no poema o título dantesco aparece somente duas vezes, de acordo com

Ferroni (1992: p. 110).

Boccaccio iniciou o processo de divulgação da obra, sendo principalmente oral,

tendo em vista que ele comentava cada Canto do poema, ainda hoje chamada Lectura

14

É um movimento literário cortês surgido, aproximadamente, nos anos 30 do século XIII, na corte de

Federico II. Era escrita em vulgar siciliano e sua poesia tinha uma função social. A temática amorosa se

transfere a um plano mais abstrato, tendo sua forma comunicativa mais nobre e elevada. Tal movimento

teve como maior expoente Giacomo da Lentini, chamado por Dante de “Il notaio” (Purg. XXXIV, v. 56). 15

“Egli riuscì a conferirgli una straordinaria varietà ritmica, sfruttando così al massimo una situazione di

libertà, che, di lì a poco, sarebbe venuta a mancare, in seguito alla istituzionalizzazione metrica del

modello petrarchesco”. (CATALDI E LUPERINI, 1994, p. VIII)

37

Dantis, fazendo suas considerações a respeito e, além disso, escreveu a primeira

biografia de Dante e também tratados sobre a DC. É possível afiirmar que graças à

iniciativa de Boccaccio, o público leitor da obra dantesca teve um grande incremento,

fato que fez com que se iniciasse um processo grande de análise e estudos da DC.

Essa estrutura da obra poética é de grande importância, uma vez que ela é

construída com base em modelos da realidade, em relação à imitação alegórica feita por

DA da criação de Deus, e, tendo por modelo a Bíblia, como livro de Deus, segundo

Cataldi e Luperini (1994, XXXI). O modelo estrutural de escrita poética, apoiado e

reelaborado por DA a partir do texto bíblico evidencia, primeiramente, o pensamento da

Filosofia Medieval pelo fato de Deus se revelar aos homens por meio da realidade, e

depois porque Ele, também, se revela por meio das Sagradas Escrituras. É, então, por

isso que o poeta segue esse arquétipo de representação da realidade.

A viagem realizada por DA ao outro mundo, o dos mortos, traduz,

alegoricamente, a viagem da humanidade na Terra, já que estruturalmente o mundo dos

mortos é similar ao terreno. Cataldi e Luperini afirmam que:

[...] Dante imita, na Commedia, a estrutura do mundo, no qual cada dado é ao

mesmo tempo real e simbólico. O realismo da Commedia está nesta dupla

mimese, pela qual representar o mundo realisticamente na sua objetividade

significa também representá-lo no seu significado, isto é no seu sistema de

signos e de símbolos.16

(CATALDI E LUPERINI: 1994, p. XXX)

(TP)

Assim, ao longo do estudo que se faz da obra do poeta florentino, observa-se que

ele se utiliza muito dos recursos dos símbolos e das alegorias para dar vida a seus

personagens. Até mesmo para a leitura são indicados quatro níveis, indicados pelo

próprio DA em carta enviada a Cangrande della Scala, conhecida como a Epístola XIII.

São eles o literal, o alegórico, o moral e o anagógico. O nível literal refere-se ao êxodo

do povo de Israel do Egito, na época de Moisés, de acordo com os preceitos de São

Tomás de Aquino. O alegórico mostra nossa redenção até o encontro com Cristo. É

16

“[...] Dante imita, nella Commedia, la struttura del mondo, in cui ogni dato è insieme reale e simbolico.

Il realismo della Commedia sta in questa doppia mimesi, per cui rappresentare il mondo realisticamente

nella sua oggettività significa anche rappresentarlo nel suo significato, cioè nel suo sistema di segni e di

simboli”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. XXX)

38

observado que, é por meio deste artifício que o poeta vai esconder sua verdadeira

intenção, segundo Malato (2015: p. 273). O moral é verificado na passagem do pecado à

Graça Divina e, por fim, o anagógico indica a liberação da alma da servidão da

corrupção terrena até a sua chegada à Glória eterna.

DA estruturou e subdividiu este outro mundo de acordo com a tradição da

Filosofia Escolástica medieval, a qual surgiu da necessidade de responder às exigências

da fé transmitidas pela Igreja. Pode-se afirmar, basicamente, que seu pensamento era o

de harmonizar a razão e a fé, principio fundamental da Escolástica que procurava,

exatamente, conciliar a fé cristã a um sistema de pensamento racional como era aquele

da filosofia grega.

A DC, apesar de tratar de reinos ultraterrenos, trata também de histórias de

personalidades que realmente viveram, ou seja, ela retrata um pouco do mundo

histórico, político e social desses personagens; vários estudiosos, como Gianfranco

Contini (1912 – 1990) e Charles S. Singleton (1909 – 1985), por exemplo, concluíram

que a obra possui um certo “realismo”. A esse respeito Sterzi afirma:

Tal força de convencimento de Dante sobre o leitor - a ficção de que não se

trata de ficção, conforme já se disse – é uma das bases daquilo que diversos

estudiosos chamaram de “realismo” de Dante: não apenas a capacidade de

capturar imagens vivas do mundo dos homens, do mundo histórico, ainda que

lidando, à primeira vista, com cenários ultraterrenos; mas também a

capacidade de transmitir essas imagens em toda a sua vivacidade para os

leitores. (STERZI: 2008, p. 107)

Inserido neste campo de realismo, como representação da realidade, Sterzi cita

Auerbach dizendo que ele:

[...] vê, aí, a realização mais plena do choque de duas tradições de

representação da realidade: a antiga (de origem grega, e depois latina),

baseada na separação dos estilos, e a cristã (de origem bíblica), baseada na

mistura dos estilos. Em nenhum outro autor, como em Dante, “a mistura de

estilos chega tão perto da ruptura dos estilos”. (STERZI: 2008, p. 110)

Essa ruptura de estilos, de acordo com Sterzi, criada por Dante na DC, gerou um

novo olhar sobre a poesia da época, visto que, enquanto escrevia o poema, Dante ia

publicando-o e assim fez com que houvesse um primeiro contato da obra, ainda

39

inacabada com o público. Sabe-se que a obra foi totalmente reunida depois da morte de

Dante, por um de seus filhos e que, somente depois da ênfase dada por Boccaccio à obra

dantesca, é que ela começou a ser realmente propagada.

Após tecer algumas informações gerais acerca da estrutura externa do poema

dantesco, é necessário ainda considerar a estrutura interna da DC. Logo, o poema

dantesco trata da viagem de Dante personagem ao além-túmulo, ou seja, ao mundo dos

mortos, onde ele viaja por três reinos: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Essa viagem

tem a duração de aproximadamente uma semana, com início no dia 8 de abril do ano de

1300, uma Sexta-feira Santa. Este foi o ano do Jubileu, instituído pelo então Papa

Bonifácio VIII, inimigo particular de DA. Tal viagem permite que DA conheça a

verdadeira condição das almas depois da morte, mas também permite que ele

compreenda melhor a estrutura do universo.

Quando entra neste outro mundo, o dos mortos, DA personagem passa

primeiramente pelo Anti-inferno, onde se encontram os indolentes e segue para o

primeiro círculo, o Limbo, local onde residem as almas dos não batizados na fé cristã e

também dos infiéis, aqueles que, principalmente, não acreditam em Deus. A partir deste

primeiro círculo, DA é acompanhado por seu guia Virgílio pelo Inferno e pelo

Purgatório, até a sua chegada ao Paraíso, onde é Beatriz quem o guiará pelos céus.

Virgílio (nascido na cidade italiana de Andes, atual Borgo Virgilio em 70 a.C. e falecido

em Brindisi em 19 a. C.) tem um papel fundamental nesta jornada de DA, uma vez que

simboliza, para ele, a razão humana. O poeta latino não pode guiá-lo pelo Paraíso

porque, segundo as regras daquele reino, uma alma que não foi batizada na fé cristã não

pode ter acesso a tal esfera celeste, portanto, Beatriz, que se encontra no Paraíso é quem

será sua guia pelos céus.

Nesta viagem, DA tem a possibilidade de deparar-se com almas em todas as

condições, ou seja, desde aquelas muito sofridas até as mais santificadas, de todas as

épocas e oriundas de todo o mundo. A ordem estabelecida no além-túmulo é dada por

Deus, que é o maior símbolo de justiça de acordo com a concepção cristã. Assim, esse

além-túmulo nada mais é do que uma imagem do que se vivia na Terra, naquela época

mediévica. Asor Rosa, a respeito desta viagem ao mundo dos mortos afirma:

40

[...] a estrutura tem uma enorme importância. Tal estrutura corresponde

exatamente, em linhas de máxima, à estrutura do mundo do além-túmulo na

visão cristã medieval: este mundo se divide em três reinos, aquele da eterna

perdição, aquele do arrependimento e da purificação e aquele da salvação

eterna.17

(ASOR ROSA: 1985, p. 58) (TP)

Na D.C., o personagem Dante, em sua peregrinação pelo mundo dos mortos,

adverte e oferece exemplos para a responsabilidade de uma vida terrena, ou seja, o que

se vive na Terra, refletirá sempre no além-túmulo, uma vez que os atos em vida têm

espelhamento naqueles do além. Isso significa que, a depender dos comportamentos

tidos em vida, as almas irão sofrer ou não. Portanto, no destino eterno é revelado o

sentido mais profundo e essencial da experiência humana. Ou seja, em vida as pessoas

podem encobrir as próprias ações; no mundo dos mortos, os atos são revelados e seus

autores submetidos à justiça divina.

Asor Rosa, a esse respeito acrescenta ainda que: “A profecia consiste em indicar

à humanidade a completa estrada da sua possível redenção (concretamente mostrando-

lhe a possibilidade através da sugestiva experiência de uma única alma, que é aquela

de Dante)”.18

(ASOR ROSA: 1985, p. 63) (TP). Ou seja, Dante personagem tem um

papel fundamental para o significado global da obra, haja vista sua missão de apresentar

e percorrer o mundo dos mortos, posto que essa obra mostra o caminho que se deve

seguir para a salvação, apontando para cada um dos pecados que qualquer ser humano

pode ter e de sua respectiva punição no além-túmulo.

O protagonista do livro, ou seja, Dante personagem, coloca-se como um cristão

exemplar que segue este longo caminho com o intuito de alcançar a salvação de sua

alma; isto quer dizer que ele, neste sentido, não representa somente o personagem, mas

a ele mesmo como pessoa, um ser pecador, mas que crê em sua salvação.

17

“[...] la struttura ha un’enorme importanza. Tale struttura corrisponde esattamente, nelle grandi linee,

alla struttura del mondo dell’oltretomba nella visione cristiana medievale: questo mondo si divide in tre

regni, quello dellla eterna perdizione, quello del pentimento e della purificazione e quello dellla

salvazione eterna”. (ASOR ROSA: 1985, p. 58) 18

“La profezia consiste nell’additare all’umanità tutta la strada della sua possibile redenzione

(concretamente mostrandone la possibilità attraverso la suggestiva esperienza di una singola anima, che è

quella di Dante)”. (ASOR ROSA: 1985, p. 63)

41

Dante personagem desempenha ainda duas funções específicas, sendo a primeira

a de “acordar” as almas, isto é, de fazê-las interagir com ele, e a segunda é que, por

meio da visão das almas, e de seus sofrimentos, Dante vai conseguindo, pouco a pouco,

livrar-se dos seus pecados e conforme vai mudando de reino, vai se aproximando mais

da salvação.

O fato de DA ser autor e personagem de sua obra auxilia no sentido dela ter um

sentido de maior realismo. É ele mesmo, personagem, que vai dialogar com os mortos,

uma vez que ele entra em contato com eles e, por vezes, sendo o portador das notícias

do outro mundo aos vivos. É o que Asor Rosa declara em:

[...] a presença de Dante em primeira pessoa, em função de protagonista

inclusive, dentro da obra, serve não apenas para assegurar-lhe uma unidade

estrutural, colocando-se como fio condutor entre episódio e episódio, mas dá

vida e força de persuasão e de autenticidade humana naquilo que nela se

desenvolve.19

(ASOR ROSA: 1985, p. 58) (TP)

Essa ideia é reforçada em sua obra, conforme afirmam Cataldi e Luperini, na

representação de uma história que contém um certo realismo:

O fato é que Dante apresenta a Commedia como uma história verídica. O

grande realismo da sua arte se liga antes de tudo a este fato. Dante apresenta

a história como verídica em um duplo sentido: como história de uma viagem

verdadeira realizada por Dante (por isso são verdadeiras as coisas as que ele

se cita quanto as condição do além) e como história alegórica de um

itinerário espiritual realizado por Dante, do pecado e da perdição ao

arrependimento e à salvação.20

(CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 3) (TP)

Dante, autor da DC faz seu personagem homônimo observar, no Inferno,

circunstâncias que ultrapassaram em muito a sua própria experiência humana. Isso

19

“[...] la presenza di Dante in prima persona, in funzione di protagonista addirittura, dentro l’opera,

serve non soltanto ad assicurarle una unità strutturale, ponendosi come filo conduttore tra episodio e

episodio, ma dà vita e forza di persuasione e di autenticità umana a quanto in essa si svolge”. (ASOR

ROSA: 1985, p. 58) 20

“Il fatto è che Dante presenta la Commedia come un racconto veritiero. Il grande realismo della sua arte

si lega innanzitutto a questo fatto. Dante presenta il racconto come veritiero in un duplice senso: come

racconto di un viaggio vero compiuto da Dante (per cui sono vere le cose che egli riferisce quanto alle

condizioni dell’aldilà) e come racconto allegorico di un itinerario spirituale compiuto da Dante, dal

peccato e dalla perdizione al pentimento e alla salvezza”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 3)

42

auxilia na compreensão de que o poema dantesco não se trata apenas de uma obra

autobiográfica, conforme afirmam Cataldi e Luperini a esse respeito:

Portanto o personagem-Dante é carregado de um sentido que vai além do seu

caráter biográfico ou autobiográfico. A Commedia não é, então, somente uma

obra autobiográfica: é também (e principalmente) a epopeia da humanidade

em marcha na direção da árdua meta da Graça e da Salvação.21

(CATALDI

E LUPERINI: 1994, p. 4) (TP)

A composição de cada uma dessas partes internas do poema dantesco é exposta a

seguir visando à reflexão sobre os elementos do enredo poético tecido por DA. Assim,

como dito anteriormente, Dante personagem é guiado por Virgílio e Beatriz, o poeta

latino simbolizando a razão e a sabedoria terrenas e a mulher-anjo de obras dantescas

anteriores à D.C. como, por exemplo, Vita Nuova simbolizando a fé. Virgílio é o guia

até seu ingresso para a salvação, ou seja, até o Paraíso, impedido de salvar a si próprio,

por não ser cristão, como mencionado anteriormente nesta subseção. Beatriz o

acompanha até o céu mais alto, ou seja, até seu encontro com Deus.

Deste modo, a trama tem seu início em uma selva escura, onde DA se vê

sozinho, tendo aproximadamente 35 anos de idade: “Nel mezzo del cammin di nostra

vita [...]”22

(Inf I, v. 1). Fato que se deve salientar é que até o Canto 3 do livro Inferno,

DA ainda não se concebe como um personagem.

Ele entra nessa selva, depara-se com três feras, a onça, o leão e a loba, as quais

representam, respectivamente, os símbolos da luxúria, da soberba, da avareza e da

inveja, que o estão olhando. Posteriormente, DA desmaia, enquanto passa pelo rio

Aqueronte: “e caddi come l’uom cui sonno piglia.”23

(Inf III, v. 136). Pode-se afirmar

que este desmaio sofrido por ele não foi somente um simples desmaio, mas sim um

desmaio moral, ou seja, o poeta percebe a semelhança entre seus próprios pecados e os

que ele está observando por onde passa; ele só pode encontrar a salvação para seus

21

“Il personaggio-Dante è dunque caricato di un senso che va al di là del suo carattere biografico o

autobiografico. La Commedia non è, allora, solo un’opera autobiografica: è anche (e soprattutto) l’epopea

dell’umanità in cammino verso la faticosa meta della Grazia e della Salvezza”. (CATALDI E LUPERINI:

1994, p. 4) 22

“No meio do caminho em nossa vida” (Inf I, v. 1) 23

“e caí como alguém que o sono apanha.” (Inf III, v. 136)

43

pecados se seguir por esse caminho desconhecido, passando pelos três reinos, o do Inf,

o do Purg e o do Par. Nesses reinos, ele pode observar: quais são as consequências dos

atos pecaminosos, no Inf, onde não se tem a possibilidade de redenção; de que modo

ocorre a purificação das almas que estão no Purg; e finalmente, como se dá a salvação

das almas do Paraíso.

Retornando ao desmaio de DA, o poeta romano Virgílio vem em seu socorro,

que é o guia da razão, que inicia junto ao poeta florentino o percurso pelo Inf. Visando

auxiliar o estudo, que será apresentado mais adiante, quando serão tratadas as

ilustrações e pinturas de Alberto Martini para a edição da DC, é oportuno explicar a

passagem de Dante pelos reinos representados nesse poema. Assim, explicarei como é a

viagem do personagem Dante, a estrutura do reino e também as punições às almas

condenadas; a purificação das almas no Purg, e, ainda, a bem-aventurança das almas no

Par. Assim, seguem abaixo as descrições do tema de cada um dos cantos dos reinos da

DC: Inf, Purg e Par, respectivamente.

1.2. A arquitetura da Divina Comédia

[...] Dante acredita firmemente, o valor exemplar de uma extraordinária

experiência humana imaginada e proposta como altíssimo testemunho de fé e

rigor moral, capaz de compreender os temores, as expectativas, as

inquietudes profundas do homem (não somente da Idade Média) e de sugerir

respostas que somente em uma primeira leitura podem parecer ligadas a uma

metafísica e a uma mística já distanciadas de nós. «O milagre da Comédia –

escreve Siro Chimenz -, único entre todas as obras poéticas de qualquer

literatura, é de ter dado voz e unidade poética a uma esfera de interesse

humano que parece imensurável». (MALATO: 2015, p. 255 - 256)24

(TP)

24

“[...] Dante fermamente crede, il valore esemplare di una straordinaria esperienza umana viene

immaginata e proposta come altissima testimonianza di fede e di rigore morale, capace di cogliere i

timori, le attese, le inquietudini profonde dell’uomo (non soltanto del Medioevo) e di suggerire risposte

che solo in prima lettura possono apparire legate a una metafisica e a una mistica ormai lontane da noi. «Il

miracolo della Commedia – scrive Siro Chimenz -, unico fra tutte le opere poetiche di qualsiasi

letteratura, è di aver dato voce e unità poetica a una sfera d’interessi umani che pare immensurabile»”.

(MALATO: 2015, p. 255 - 256)

44

É a partir desta epígrafe, que esta subseção inicia, apresentando como é a

estrutura arquitetônica desta obra poética de Dante Alighieri. Tal estrutura foi

extremamente pensada e vinculada com rigor em todas as suas partes. Por meio da

simbologia dos números, o poeta realizou uma simetria formal dentro desta estrutura,

onde o número 1 simboliza Deus, em sua unidade; indicando o sacro, o número 3

corresponde à Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo; o 7 refere-se aos dias da criação; e

ainda o número 10, com os múltiplos do primeiro e do terceiro, mas também o 4, o qual

somado ao 3 dá 7.

As três cânticas, Inferno, Purgatório e Paraíso, são divididas em 33 cantos,

somando um total de 99 completos, todavia, à primeira cântica foi adicionado um canto

introdutório, o que faz com que a obra inteira some 100 cantos, ou seja, o número

perfeito. Sabe-se que os versos de cada canto variam entre 130 e 151 versos, podendo

haver um mínimo de 115 e um máximo de 160 versos totais em cada canto, que cifrados

somam 7. Deste modo, a cântica do Inf possui 4720 versos, a do Purg 4755 e a do Par

4758, isto significa que a obra completa possui um total de 14.233 hendecassílabos.

A estrutura métrica desses hendecassílabos se dá da seguinte maneira: ABA

BCB CDC DED E..., forma esta que faz com que cada rima seja repetida três vezes em

cada canto, exceto com a primeira e a última, as quais são repetidas somente duas vezes.

Esta estrutura métrica é a terzina, inventada por DA e que assume, deste modo o

número sacro. Já de acordo com a simetria, o canto VI de cada cântica trata de uma

temática política com uma progressão, sendo a cidade de Florença no Inf, a Itália no

Purg e o Império no Par, onde cada uma dessas três cânticas terminam com a palavra

stelle (estrelas).

A estrutura da DC é composta por três sistemas que se incorporam e são

entendidos no modelo da ordem divina, que são os sistemas: físico, ético e histórico-

político. O sistema físico baseia-se na ordem do universo depois de Ptolomeu, a qual foi

adaptada aos dogmas da Igreja Católica por meio do aristotelismo. Deste modo, Dante

bebeu de várias fontes para inspirar-se e estruturar sua obra. O sistema ético mostra que

o homem possui o livre-arbítrio para fazer o que entende como certo ou errado em sua

45

vida, a opção é somente dele, e DA segue esta ética de acordo com Aristóteles, segundo

São Tomás de Aquino. Para um maior entendimento, Auerbach afirma:

Porque embora o homem como corpo, e aí entram também os poderes da

alma, está sujeito a inclinações por influência das estrelas, ele tem, na porção

racional da sua alma, a capacidade de orientar e limitar essa influência. E essa

capacidade é o seu livre-arbítrio. (AUERBACH: 1997, p. 132)

Isto posto, é possível compreender que este é um dos principais sistemas

utilizados por DA em seu poema, uma vez que é por meio desta ética que ele vai

organizar e dividir os pecados e as beatitudes de acordo com o que seus personagens

realizaram em vida. Já o terceiro sistema, o histórico-político será visto mais tarde nesta

subseção, quando Adão, no Par, relata a DA personagem o começo de seu drama.

Assim, os três reinos estruturam-se da seguinte maneira: o globo terrestre é

imóvel e circundado por uma esfera de fogo e ao seu redor giram nove círculos

concêntricos, constituídos de sete planetas (Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e

Saturno), onde existe ainda o Empíreo, ou seja, a morada de Deus, mais o céus das

estrelas fixas e o Primo mobile.

Este globo terrestre é dividido em dois hemisférios, o Norte e o Sul, quer dizer, o

boreal ou ártico, onde habitam os homens, e o austral ou antártico, desabitado e

submerso em água. No centro do hemisfério Norte, especificamente entre o rio Ganges

e as colunas de Hércules (Gibraltar), encontra-se Jerusalém, o centro do mundo. Abaixo

dela encontra-se o Inf, onde fica Lúcifer, o anjo caído, que quando caiu do céu, após a

Criação, enfiou-se no fundo da terra, em uma voragem em forma de cone, empurrando

para a superfície uma grande quantidade de terra, que é montanha do Purg. Já no cume

desta montanha fica o Paraíso Terrestre e o Par está nas esferas celestes que se

organizam nele.

A viagem dantesca pelo Inf, ainda, relacionada à questão estrutural da DC,

permite observar que Dante autor utiliza um estilo e um léxico que mudam de registro,

ou seja, se alternam entre o cômico e o trágico. Com isso, ele passa a ser um dos

maiores poetas experimentalistas, quer dizer, passa a fazer tentativas, experimentos

46

novos em sua poesia, mostrando, além disso, recursos de registro baixo, para poder

expressar a violência.

No Inf, DA fez a classificação dos pecados e de suas punições de acordo com a

ética de Aristóteles. Além disto, a lei do contrappasso é aplicada no Inf e, segundo

Auerbach (1997: 138) “[...] As punições são escolhidas com uma horripilante

inventividade [...]”. Esta lei implica que o pecador sofrerá punição com a mesma pena

que realizou ao próximo. A esse respeito Cataldi e Luperini afirmam que:

Em todo o caso o contrapasso e quanto outro determina a posição e a punição

dos danados coopera para definir a específica característica dramática dos

personagens e das situações infernais: os danados estão inteiramente

absorvidos na dimensão do próprio pecado, bloqueados naquele único

sentimento e naquela única disposição psicológica, em uma repetição infinita

(como em um mecanismo de coação reptícia) daquele único ato. Esta

petrificação das consciências constitui exatamente o modo substancial da

punição, a qual nas suas formas exteriores serve apenas para vincular, para a

eternidade, o pecador ao próprio pecado, retorcendo-o contra infinitamente e

mostrando-lhe o significado profundo da sua culpa.25

(CATALDI E

LUPERINI: 1994, p. 6) (TP)

A partir deste momento, serão tratados cada reino em particular, a fim de

evidenciar a estrutura e mostrar como são as punições de cada parte do Inf e do Purg e

as beatitudes do Par.

Conforme observado no poema, têm-se indícios de que o início desta viagem

deu-se em uma Sexta-feira Santa, dia 8 de abril do ano de 1300, como dito

anteriormente, ano do jubileu proclamado pelo então Papa Bonifácio VIII, tendo essa

jornada a duração de 7 dias. Tal data é compatível com os 35 anos de idade do poeta, ou

seja, a metade de sua vida, já que a expectativa de vida naquela época era de 70 anos,

“Nel mezzo del cammin di nostra vita/ mi ritrovai per una selva oscura,/ ché la diritta

25

“In ogni caso il contrappasso e quanto altro determina la posizione e la punizione dei dannati coopera a

definire la specifica carattistica drammatica dei personaggi e delle situazioni infernali: i dannati sono

interamente assorbiti nella dimensione del proprio peccato, bloccati in quell’unico sentimento e in

quell’unica disposizione psicologica, in una ripetizione infinita (come in un meccanismo di coazione a

ripetere) di quell’unico atto. Questa pietrificazione delle coscienze costituisce per l’appunto il modo

sostanziale della punizione, la quale nelle sue forme esteriori serve solo a vincolare per l’eternità il

peccatore al proprio peccato, ritorcendoglielo contro infinitamente e mostrandogliene il colpevole

significato profondo”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 6)

47

via era smarrita.”26

(Inf I, v. 1-3). DA, por meio de seu poema, apresenta a história de

todos os homens e o seu desmaio simboliza o de toda a humanidade que sofre até

conseguir ter a visão de Deus, que é a maior das bênçãos na vida do além-túmulo.

Deste modo, o Inf é dividido em 9 círculos, sendo que, a medida que se desce

esta cratera, os pecados tornam-se mais hediondos e os castigos mais severos. Enquanto

ainda está na selva escura, símbolo do pecado, DA depare-se com três feras, a onça,

símbolo da luxúria, o leão, símbolo da soberba, e a loba, símbolo da inveja ou da

avareza, que impedem a subida dele em direção ao “dilettoso monte” e que são os três

principais vícios do homem. A ameaça sofrida pelas feras quase fez com que o poeta

retornasse à selva, uma vez que as feras estavam na saída da mesma. Porém, um evento

o salvou, seu encontro com Virgílio, que será seu guia pelo Inf e pelo Purg, já que ele

pediu seu socorro para livra-se da loba, “Vedi la bestia per cu’io mi volsi;/ aiutami da

lei, famoso saggio,/ ch’ella mi fa tremar le vene e i polsi.»”27

(Inf I, v. 88-90). Assim,

DA e Virgílio seguem o caminho e adentram a porta do Inf, onde se lê uma escritura

ameaçadora e atravessam o vestíbulo, chegando ao outro lado, deparando-se com

Caronte, um demônio que atravessa as almas para o outro lado do rio Aqueronte. Ocorre

um terremoto e DA desmaia, como se estivesse em um sono profundo, enquanto eles

atravessam o rio, chegando ao primeiro círculo.

No primeiro círculo, o Limbo, é onde habitam os pagãos, ou seja, aqueles que

não foram batizados na fé cristã e os virtuosos, como Virgílio. Pode-se observar tal

explicação por meio da citação abaixo:

E o bom mestre me disse: «Nem demandes/ que espíritos são estes que tu

vês?/ Quero que saiba, antes que mais andes,/ que não pecaram e, se têm

mercês,/ não basta, pois ficaram sem baptismo,/ que é a porta da fé em que tu

crês./ E vindos antes do cristianismo,/ não prestaram a Deus devido rito,/ e eu

mesmo sou um deles neste abismo./ Por tais defeitos, não outro delito,/ sendo

perdidos, temos por ofensa,/ sem esperar, viver desejo aflito.28

(Inf IV, v. 31-

42)

26

“No meio do caminho em nossa vida,/ eu me encontrei por uma selva escura/ porque a direita via era

perdida.” (Inf I, v. 1-3) 27

“Olha esta fera por que me voltei;/ e me projete, ó sábia personagem,/ que em veias e em pulsos

vacilei.»” (Inf I, v. 88-90) 28

“ Lo buon maestro a me: «Tu non dimandi/ che spiriti son questi che tu vedi?/ Or vo' che sappi, innanzi

che piú andi,/ ch'ei non peccaro; e s'elli hanno mercedi,/ non basta, perché non ebber battesmo,/ ch'è porta

della fede che tu credi;/ E se furon dinanzi al cristianesmo,/ non adorar debitamente a Dio:/ e di questi

48

Além destes mencionados, estão presentes lá ainda aqueles que não tiveram coragem de

tomar partido da rebelião de Lúcifer, “che visser sanza ’nfamia e sanza lodo.” (Inf III,

v. 36)29

. É necessário frisar que nem o inferno os quis, uma vez que eles não tinham

comprometimento com nada.

A partir do segundo círculo tem início o reino do pecado propriamente dito e, até

o quinto círculo, estão as almas que pecaram por incontinência. No segundo círculo

estão presentes as almas dos luxuriosos, os das paixões terrenas, entre os quais estão

Paolo e Francesca, “Intesi ch'a cosí fatto tormento/ enno dannati i peccator carnali,/

che la ragion sommettono al talento.”30

(Inf V, 37-39). Lá também reside Minos, o juiz

infernal, o qual aplica a pena que cada alma merece, de acordo com o número de voltas

que sua cauda dá, como se nota em:

Minos lá era horrível que rangia:/ a examinar as culpas logo à entrada;/

conforme julga e manda, a cauda o estria./ Digo que a alma à desventura

nada,/ ante ele surge e toda se confessa;/ sabedor dos pecados a degrada/ e a

um lugar no inferno a arremessa;/ tantas voltas da cauda em si gravitam/

quantos graus mais abaixo a endereça.31

(Inf V, v. 4-12).

No terceiro círculo estão os gulosos, atingidos por uma chuva eterna e maldita,

“Io sono al terzo cerchio, della piova/ etterna, maladetta, fredda e greve;/ regola e

qualità mai non l'è nova./ Grandine grossa, acqua tinta e neve/ per l'aere tenebroso si

riversa;/ pute la terra che questo riceve.”32

(Inf VI, v. 7-12). Aqui se encontra ainda

outro demônio, Cérbero, encarregado de guardar o inferno, era um cão que possuía

cinco cabeças e uma cauda de dragão, e seu nome significa devorador de carne. No

quarto círculo estão os avaros e pródigos, colocados juntos pela sua oposição, assistidos

pelo demônio Pluto e condenados a carregar pesos enormes, “Questi fuor cherci, che

non han coperchio/ piloso al capo, e papi e cardinali,/ in cui usa avarizia il suo

cotai son io medesmo./ Per tai difetti, non per altro rio,/ semo perduti, e sol di tanto offesi,/ che sanza

speme vivemo in disio.»” (Inf IV, v. 31-42) 29

“que foram sem infâmia e sem louvor” (Inf III, V. 36) 30

“Entendi que a um assim feito tormento,/ pecadores danados são carnais,/ pois que a razão sometem ao

talento.” (Inf V, 37-39) 31

“ Stavvi Minòs orribilmente, e ringhia:/ essamina le colpe nell'intrata;/ giudica e manda secondo

ch'avvinghia./ Dico che quando l'anima mal nata/ li vien dinanzi, tutta si confessa;/ e quel conoscitor delle

peccata/ vede qual luogo d'inferno è da essa;/ cignesi con la coda tante volte/ quantunque gradi vuol che

giú sia messa.” (Inf V, v. 4-12). 32

“Sou no terceiro círculo, onde chove a/ eterna chuva, fria e nunca leve;/ sem regra ou qualidade nunca

nova./ Grosso granizo, água suja e neve,/ pelo ar tenebroso se dispersa;/ fede a terra que dentro em si a

teve.”32

(Inf VI, v. 7-12)

49

soperchio».”33

(Inf VII, 46-48). No quinto círculo residem os iracundos, “Lo buon

maestro disse: «Figlio, or vedi/ l'anime di color cui vinse l'ira;”34

(Inf VII, v. 115-116),

imersos na lama do rio Estige, o rio do inferno, e, em seu fundo, as almas preguiçosas

fazem com que a água lamacenta borbulhe na superfície.

DA e Virgílio atravessam o pântano na barca de Flégias, chegando na cidade de

Dite, a cidade do demônio (civitas diaboli). Encontram Filippo Argenti, e descem da

barca. Assim, entram no sexto círculo, onde é o cemitério dos hereges, “E io: «Maestro,

quai son quelle genti/ che, seppellite dentro da quell'arche,/ si fan sentir con li sospir

dolenti?»/ Ed elli a me: «Qui son li eresïarche”35

(Inf IX, v. 124-127), aqueles que não

acreditam na imortalidade do espírito, encontrando lá a alma de Farinata degli Uberti.

Na passagem para o sétimo círculo eles deparam-se com o Minotauro e também

com os Centauros. Neste círculo estão os violentos:

«Meu filho, nestas pedras dentro estamos»,/ começou, «em três círculos

pequenos/ de grau em grau, como os que já deixamos./ [...]/ De todo o mal a

que ódio em céu assista,/ a injúria é o fim, e todo o fim que é tal,/ ou com

força ou com fraude outrem contrista./ Mas porque a fraude é do homem

próprio mal,/ mas desagrada a Deus; e ao baixo hão ido/ os fraudulentos e

mais dor lhes val’.36

(Inf XI, v. 16-18; 22-27).

E são observadas três classes de violência: aquela contra o próximo, que são os

tiranos e homicidas, e que ficam imersos em água com sangue fervente do rio

Flegetonte; contra si mesmo, os suicidas, transformados em plantas laceradas pelas

harpias; e contra Deus, na pessoa, os blasfemadores, atingidos pela chuva de fogo que

recai sobre eles, na natureza os sodomitas, que correm sem pausa debaixo desta chuva, e

na arte, os usurários que ficam sentados debaixo da chuva.

33

“São clérigos os que o texto já não têm/ piloso em cima, e em papas e cardeais,/ usa avareza o seu

supérfluo bem».”33

(Inf VII, 46-48) 34

“O bom mestre me disse: «Filho, vês/ a alma dos que já venceu a ira;”34

(Inf VII, v. 115-116) 35

“E eu: «Mestre, quem são aquelas gentes/ que amortalhadas dentro dessas arcas,/ fazem ouvir suspiros

tão dolentes?»/ E ele a mim: «São os heresiarcas”35

(Inf IX, v. 124-127) 36

“ «Figliuol mio, dentro da cotesti sassi»,/ cominciò poi a dir «son tre cerchietti/ di grado in grado, come

que' che lassi./ [...]/ D'ogne malizia, ch'odio in cielo acquista,/ ingiuria è 'l fine, ed ogni fin cotale/ o con

forza o con frode altrui contrista./ Ma perché frode è dell'uom proprio male,/ piú spiace a Dio; e però stan

di sutto/ li frodolenti e piú dolor li assale.” (Inf XI, v. 16-18; 22-27).

50

DA e Virgílio descem ainda mais, chegando ao oitavo círculo, aonde chegam

montados nas costas de Gerião, um monstro alado. Neste círculo fica o Malebolge,

formado por dez valas:

Malebolge no inferno se nomeia/ lugar todo de pedra em tom ferrino,/ como a

cerca em seu torno que o rodeia./ No justo meio a tal campo malino/ há o vão

de um poço assaz largo e profundo,/ que em seu lugar direi como imagino./ O

cincho que ali fica é bem rotundo,/ entre o poço e o sopé da margem dura,/ e

em dez valas se lhe divide o fundo.37

(Inf XVIII, v. 1-9).

Lá é onde estão as almas dos impostores, como: os proxenetas que são os

sedutores constantemente atingidos por demônios com chifres; os aduladores que

permanecem imersos no esterco; os simoníacos que ficam com suas cabeças enterradas

em buracos circulares no solo; os adivinhos e magos que caminham com suas cabeças

viradas para trás; os trapaceiros que ficam imersos em água fervente e são massacrados

pelos demônios; os hipócritas que caminham lentamente, chorando, usando pesadas

capas de chumbo e douradas pelo lado de fora; os ladrões que correm entre serpentes,

sendo mordidos e transformando-se ora em serpentes ora em homens novamente; os

maus conselheiros que ficam envolvidos por uma chama de fogo em forma de língua,

dentre os quais estão presentes Guido da Montefeltro e Ulisses; os desordeiros, que são

dilacerados e mutilados pelos demônios; e os falsários que que sofrem de uma febre

ardente.

Deixando para trás o oitavo círculo, com suas dez valas, DA e seu guia chegam

finalmente ao último círculo do inferno, o nono, onde passa o último rio infernal

originário das lágrimas do Velho de Creta, o Cocito. Lá estão presentes os traidores, “Se

vuoi saper chi son cotesti due,/ la valle onde Bisenzo si dichina/ del padre loro Alberto

e di lor fue./ D'un corpo usciro; e tutta la Caina”38

(Inf XXXII, v. 55-58), divididos em

quatro zonas, a saber: Caína, onde se localizam os traidores de parentes (chamada assim

por causa de Caim, que traiu e matou seu irmão Abel); Antenora, onde estão os

37

“ Luogo è in inferno detto Malebolge,/ tutto di pietra di color ferrigno,/ come la cerchia che dintorno il

volge./ Nel dritto mezzo del campo maligno/ vaneggia un pozzo assai largo e profondo,/ di cui suo loco

dicerò l'ordigno./ Quel cinghio che rimane adunque è tondo/ tra 'l pozzo e 'l piè dell'alta ripa dura,/ e ha

distinto in dieci valli il fondo.” (Inf XVIII, v. 1-9). 38

“E se queres saber quem estes são,/ foi o vale onde o Bisenzo declina,/ do pai Alberto e deles

possessão./ Saíram de um só corpo; e a Caína” (Inf XXXII, v. 55-58)

51

traidores da pátria (possui essa nomenclatura devido ao troiano Antenor, que gerou a

ruína de Troia); Tolomeia, onde ficam os traidores dos amigos (nome este vindo de

Tolomeu, rei do Egito que traiu e matou Pompeu); e Judeca, onde estão os traidores dos

benfeitores (nome advindo de Judas, traidor de Cristo). Neste círculo encontra-se

Lúcifer imerso, do seu peito para baixo no gelo, sendo monstruoso e tendo três faces e

seis asas de morcego: “Con sei occhi piangëa, e per tre menti/ gocciava ‘l pianto e

sanguinosa bava./ Da ogni boca dirompea co’ denti/ un peccatore, a guisa di maciulla,/

sí che tre ne facea cosí dolenti.”39

(Inf XXXIV, v. 53-57). Dentre esses três pecadores

estão: Brutos, que matou César, Cássio, que traiu o Império, e Judas, o traidor de Cristo.

Judas é o que se encontra na boca central de Lúcifer, enquanto os outros dois estão nas

suas laterais. Posteriormente a esta terrível visão, DA e Virgílio completam toda a

descida e chega, finalmente, o momento de subir para o Purgatório.

Para a construção do Purg, DA utilizou-se da ordem ética tomista-aristotélica, ou

seja, os vícios são tidos como perversões do amor, além disto, tem-se que as

transgressões pessoais não são julgadas.

É no Purg que as almas têm a possibilidade de se arrepender e poder chegar, um

dia, a salvação, tendo purgado, primeiramente, seus pecados. Desta maneira, percebe-se

que o Purg é um local provisório, mas que faz parte de um sistema que interliga esses

três reinos, assemelhando-se muito com o mundo terreno.

A estrutura do Purg é a de um cone, virado para cima, elevando-se acima da

superfície terrestre. A constituição do Purg é antagônica a do Inferno, e isso se justifica

pelo fato de que no Inf se deve descer até a chegada em Lúcifer, porém, no Purg se deve

subir sempre mais em direção ao Par, em consonância com a estrutura harmoniosa da

DC.

No Purg, diferentemente do Inf, Dante personagem não é mais um observador,

ele tem uma história de purificações para seguir, e estas são lentas, para que pouco a

pouco as almas se purifiquem e possam ir subindo em direção à verdadeira luz. Nesse

espaço do poema, o poeta florentino não só observa, mas ele próprio vive esse momento

39

“Com seis olhos chorava e aos mentos rente/ baba sangrenta e ranho gotejava./ De cada boca esfacelava

a dente/ um pecador, ripando-lhe a medula,/ e a cada um de três punha dolente” (Inf XXXIV, v. 53-57)

52

de purificação da própria alma, já que realiza todos os percursos até a chegada ao Par.

Ou seja, primeiramente observou como é o sofrimento das almas desesperançadas do

Inf e agora, no Purg, tem a possibilidade de vivenciar as purgações. Assim, existem

jornadas diurnas e noturnas, como na jornada terrestre. Nesse reino, Dante, em

companhia de Virgílio, permanece por quatro manhãs e três noites.

Outra diferença a ser evidenciada entre o Purg e o Inf é que o primeiro possui

paisagens, enquanto o segundo somente apresentava locais trevosos e obscuros, sem

uma forma muito concreta. De tal diferença nos falam também Cataldi e Luperini em:

No Purgatório Dante nos apresenta um mundo mais semelhante àquele

terreno; e esta observação vale tanto para o aspecto físico da paisagem e do

transcorrer do tempo, quanto pela atmosfera psicológica e emotiva das almas

encontradas e do próprio Dante.40

(CATALDI E LUPERINI: 1994. p. 208)

(TP)

Isto é, aquele local onde a escuridão e as trevas faziam com que Dante,

personagem, se sentisse muito mal, desmaiasse, por ver o sofrimento daquelas almas, dá

lugar a um local onde ele consegue se sentir mais próximo da humanidade, tendo em

vista que o ambiente do Purg é similar ao terreno. Assim, ele consegue seguir seu

percurso com mais tranquilidade, uma vez que é como se os próprios pecados mais

graves que ele pudesse ter cometido, tivessem ficado para trás. Enquanto ele segue essa

caminhada, com a intenção de purificar ainda mais sua alma cristã, DA sente-se muito

próximo de sua vida, neste reino onde se pode errar e, assim como na Terra, é possível

corrigir as falhas.

Já as almas, presentes no Purg, possuem uma particularidade, uma vez que para

libertarem-se de seus próprios pecados, elas compreendem, primeiramente, os próprios

limites para, a partir disto, ir aos poucos se desvencilhando de suas culpas. Isso,

obviamente, é um processo lento, mas importante, já que faz com que as próprias almas

avaliem as próprias culpas, as compreendam e tentem modifica-las, esforçando-se para

não errar mais.

40

“Nel Purgatorio Dante ci presenta un mondo più simile a quello terreno; e questa osservazione vale

tanto per l’aspetto fisico del paesaggio e del trascorrere del tempo, quanto per l’atmosfera psicologica ed

emotiva delle anime incontrate e di Dante stesso”. (CATALDI E LUPERINI: 1994. p. 208)

53

Deste modo, quando DA e Virgílio chegam à praia da ilha onde fica a montanha

do Purg, deparam-se com Catão, cuja função é a de ser guardião deste reino em que se

cumpre a libertação do pecado. A manhã está chegando e vê-se o planeta Vênus, que é o

símbolo do amor divino, o qual anuncia a chegada do Sol que, com sua luz, ilumina a

constelação de Peixes. Nota-se ainda, “a l’altro polo, quattro stelle/ non viste mai fuor

ch’a la prima gente.”41

(Purg I, v. 23-24), que são astros invisíveis, visíveis somente

para Adão e Eva, quando estavam no Paraíso Terrestre. Tais estrelas simbolizam as

quatro virtudes cardiais: a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.

Os poetas seguem seu caminho nesta praia, quando avistam um pequeno barco

conduzido por um anjo, cuja função é a de transportar as almas da foz do Tibre e levá-

las para purgar seus pecados. Assim, já na entrada do Purg faz-se necessário uma

purificação, como nota-se em:

Quando chegámos lá onde a geada/ luta co sol e, por estar em parte / batida

ao vento, pouco se degrada,/ as mãos por essa ervinha já reparte/ suavemente

o mestre meu e as pousa:/ onde eu, apercebido de sua arte,/ lhe volvo minha

face lacrimosa:/ e ele aí pôs de todo a descoberto/ a cor que a infernal tapou

danosa.42

(Purg I, v. 121-129)

Ao entrar neste novo reino, DA, ao passar pelo portão de entrada e encontrar-se

com o anjo que abre essa porta, recebe, simbolicamente o sacramento da confissão.

Todavia, as almas somente se libertam da culpa terrena quando terminam de atravessar

este portão.

Igualmente ao Inf, o Purg também possui geograficamente suas divisões, que são

seis, a saber: o rio Tibre, o Anti-Purgatório, o Baixo Purgatório, o Médio Purgatório, o

Alto Purgatório e o Paraíso Terrestre, ou Éden. Dante então subiu para o Anti-

Purgatório que antecede o Purg propriamente dito. Nele estão as almas que se

arrependeram de seus pecados momentos antes de suas mortes: “Noi fummo tutti già per

forza morti,/ e peccatori infino all'ultima ora:/ quivi lume del ciel ne fece accorti,/ sí

41

“no outro pólo, e aí vi quatro estrelas,/ vistas apenas da primeira gente.” (Purg I, v. 23-24) 42

“Quando noi fummo là 've la rugiada/ pugna col sole, e, per essere in parte/ dove adorezza, poco si

dirada,/ ambo le mani in su l'erbetta sparte/ soavemente 'l mio maestro pose:/ ond'io, che fui accorto di

sua arte,/ porsi ver lui le guance lacrimose:/ ivi mi fece tutto discoverto/ quel color che l'inferno mi

nascose.” (Purg I, v. 121-129)

54

che, pentendo e perdonando, fora/ di vita uscimmo a Dio pacificati,/ che del disio di sé

veder n'accora».”43

(Purg V, v. 52-57).

DA e Virgílio vão, aos poucos, aproximando-se do monte, deparando-se com

almas, que estão divididas em quatro grupos: os excomungados, ou seja, os excluídos

pela Igreja, dentre os quais está Manfredi, filho de Federico II, que conseguiu se

arrepender verdadeiramente no seu último segundo de vida, sendo condenado a ficar no

Anti-purgatório; os negligentes, presentes na primeira balsa são os de morte natural; na

segunda balsa estão os mortos por violência; e os preguiçosos para fazer o bem. Passada

esta caminhada, anoitece e sem a luz divina não se consegue continuar o caminho,

sendo assim, os poetas esperam o outro dia para prosseguir e, enquanto isso não

acontece, DA adormece, sonhando com uma águia com penas de ouro, que representa a

graça divina e também a justiça imperial, símbolo utilizado por Santa Luzia.

No dia seguinte, Dante chegou ao Purg propriamente dito. Ele e seu guia

passaram pelo anjo porteiro, que guarda esta porta e que incide na testa de Dante as sete

letras P, que indicam os sete pecados capitais pelos quais ele passará no Purg, como

visto em: “Sette P ne la fronte mi descrisse/ col punton de la spada, e «Fa che lavi,/

quando se’ dentro, queste piaghe» disse.”44

(Purg IX, v. 112 -114). Este espaço do Purg

é dividido em sete cornijas, com seus pátios circulares, que diminuem de tamanho à

medida que se ascende sempre mais. As sete cornijas obedecem à seguinte ordem:

soberba, inveja e ira, que representam os amores a objetos errados; preguiça, que é o

amor abaixo do bem; avareza, gula e luxúria, que são os amores excessivos aos bens

relativos.

As penas, no Purg, são diferenciadas daquelas do Inf, pois não sofrem a punição

divina, uma vez que as almas têm a possibilidade de redenção dos pecados, por meio da

purificação. Tal fato ocorre porque Deus concedeu o perdão a essas almas que se

arrependeram antes da morte, todavia, é necessário que elas se arrependam

sinceramente. Este período de arrependimento é preciso para que as almas se

43

“Todos tivemos violentas mortes/ tendo pecado até a última hora;/ aí a luz do céu nos fez mais fortes,/

arrependendo e perdoando, fora/ da vida vindo a Deus pacificados,/ que o desejo de vê-lo em nós

demora».” (Purg V, v. 52-57) 44

“vezes. E como sete P sentisse/ marcar-me a fronte a espada, «Depois laves,/ sendo lá dentro, as

chagas», ele disse.”(Purg IX, v. 112-114).

55

purifiquem e possam ascender tranquilamente aos céus. DA afirma que: “e canterò di

quel secondo regno,/ dove l'umano spirito si purga/ e di salire al ciel diventa degno.”45

(Purg I, v. 4-6)

As penas a serem cumpridas neste reino não são simples, porém, também não

são terríveis como as do Inf. Assim, existem três maneiras para que a alma possa se

arrepender, a saber: as penas, a oração e os exempla. Como demonstração para os

exempla, temos: “Era intagliato lí nel marmo stesso/ lo carro e' buoi, traendo l'arca

santa,/ per che si teme officio non commesso.”46

(Purg X, v. 55-57)47

As penas são baseadas na lei do contrapasso:

Eu fiz que filho e pai revel se torne:/ Aquitófel não faz mais, que Absalão/ e

o pai David com más punções adorne./ Pois separei pessoas que eram tão/

juntas, oh dor!, oh cérebro deslaço/ de seu princípio que é neste troncão./

Assim se observa em mim o contrapasso.»48

(Inf XXVIII, v. 136-142)

Contudo, no Purg a lei do contrapasso atua de forma diferente que no Inf., jáá

que, no Purg a alma deve esforçar-se contrariamente a natureza de seu pecado, até o

momento dela poder se livrar completamente dele. Acrescenta-se que as almas do Purg

recebem suas penas com alegria, porque é através delas, ou melhor, do cumprimento

delas, que elas chegarão perto da Graça de Deus, por meio de uma espécie de

reabilitação. Cataldi e Luperini afirmam que:

A pena, no Purgatório, não atinge a alma por vontade divina a fim de puni-la

(como no Inferno), mas nasce, digamos, da própria alma como expressão de

sua vontade de reabilitação: as penas infernais desmascaram a alma do

pecador revelando a sua culpa, aquelas do Purgatório mostram as forças

positivas das almas, o esforço delas (insuficiente na Terra e aqui suficiente

45

“e do segundo reino cantar venho/ em que a alma humana purga e se habilite/ por digna de ir ao céu no

seu empenho.” (Purg I, v. 4-6) 46

“E na pedra talhada reconheço/ o carro e os bois trazendo essa arca santa/ porque encargo se teme não

expresso.” (Purg X, v. 55-57) 47

Exempla baseado na passagem de David e a Arca da aliança, narrado no livro de Samuel (II Livro dos

Reis, VI) e no primeiro livro Paralipômenos (XIII; XV; XVI). 48

“ Io feci il padre e 'l figlio in sé ribelli:/Achitofèl non fe' piú d'Absalone/ e di Davíd coi malvagi

punzelli./ Perch'io parti' cosí giunte persone,/ partito porto il mio cerebro, lasso!,/ dal suo principio ch'è in

questo troncone./ Cosí s'osserva in me lo contrapasso».”(Inf XXVIII, v. 136-142)

56

porque é assistido pela Graça) de liberar-se do pecado.49

(CATALDI E

LUPERINI: 1994, p. 209) (TP)

Já as orações recitadas por e para todas as almas: “Io mi rivolsi attento al primo

tuono,/ e 'Te Deum laudamus' mi parea/ udire in voce mista al dolce suono.”50

(Purg IX,

v.139 -141). Essas orações tem o intuito de invocar o socorro da Graça divina, não só

para elas mesmas, mas também para os vivos que vivem em pecado.

Os exempla são almas exemplares que se mostram as almas do Purg:

[...] lá entalhado num fazer suave,/ nem se diria imagem não loquaz./ Jurado

se teria se dissesse «Ave!»/ porque ali era imaginada aquela/ que a abrir o

alto amor rodou a chave;/ e no seu gesto impresso se revela/ «Ecce ancilla

Dei», propriamente/ como figura em cera se modela. 51

(Purg X, v. 38-45).

Os exempla são sempre de dois tipos, uma da virtude, oposta ao vício e outra que

sofre do mesmo pecado tolhido no momento da punição divina. Enfim, eles se mostram

para essas almas para que sirvam de exemplo e para que continuem a sua jornada

sempre em direção ao Par. Diferentemente do Inf, onde as almas permaneciam fixas em

seus círculos sem poder sair de lá, no Purg as almas, conforme a necessidade, deslocam-

se de cornija em cornija para se libertar de seus pecados.

Deste modo, na primeira cornija estão presentes os soberbos, curvados,

carregando pesos muito grandes enquanto recitam o pater noster, sendo obrigados a

verem exemplos de humildade esculpidos nas paredes do monte e os de soberba no

chão. Na segunda cornija estão os invejosos, com roupas esgarçadas, obrigados a

ouvirem exemplos de amor ao próximo e de inveja punida. Na terceira cornija estão os

49

“La pena, nel Purgatorio, non colpisce l’anima per volontà divina al fine di punirla (come nell’Inferno),

ma nasce, per così dire, dall’anima stessa come espressione della sua volontà di riabilitazione: le pene

infernali smascherano l’anima del peccatore rivelandone la colpa, quelle del Purgatorio mostrano le forze

positive delle anime, il loro sforzo (insufficiente sulla Terra e qui bastevole perché assistito dalla Grazia)

di liberarsi dal peccato”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 209) 50

“Voltei-me a escutar aquele trom,/ e «Te Deum laudamus» se diria/ ouvir em voz conjunta ao doce

som.”50

(Purg IX, v.139-141) 51

“ [...] quivi intagliato in un atto soave,/ che non sembiava imagine che tace./ Giurato si saría ch'el

dicesse 'Ave!';/ perché iv'era imaginata quella/ ch'ad aprir l'alto amor volse la chiave;/ e avea in atto

impressa esta favella/ 'Ecce ancilla Dei', propriamente/ come figura in cera si suggella.”51

(Purg X, v. 38-

45)

57

iracundos envoltos em uma nuvem de fumaça, cantando o Agnus Dei e tendo visões de

mansidão e de ira punida. Na quarta veem-se os preguiçosos que correm sem parar,

gritando exemplos de solicitude e de preguiça punida. Na quinta cornija estão os avaros

e pródigos que repetem sempre exemplos de liberdade, de dia, e de noite, de avareza.

Ao subirem em direção à sexta cornija, sentem um terremoto, acompanhado do

canto Gloria in excelsis Deo, fato que anuncia que uma alma conseguiu cumprir sua

purgação e seguirá para o Par. Esta alma era a do poeta romano Estácio.Passam, então,

à sexta cornija, a dos gulosos, enfraquecidos pela fome e pela sede, condenados a ficar

em meio a árvores frondosas e carregadas de frutos, enquanto uma alma grita exemplos

de temperança e de gula punida, entre as quais está Bonagiunta Orbicciani. Na sétima

cornija estão os luxuriosos, divididos em duas partes, a dos pecadores contra a natureza

e segundo a natureza, dentre os quais nota-se Guido Guinizzelli e Arnault Daniel, os

quais caminham entre chamas cantando hinos religiosos e exemplos de castidade. Vale

acrescentar que, a cada cornija superada, o anjo retira um P da testa de DA, absolvendo-

o do pecado relativo à cada uma das cornijas.

Os poetas, juntamente com Beatriz, passam por um muro de fogo e chegam ao

Paraíso Terrestre, local onde DA e Virgílio se despedem. E Virgílio diz a ele: “veduto

hai, figlio;e se’ venuto in parte/ dov’io per me piú oltre non discerno.”52

(Purg XXVII,

v. 128-129). A partir deste momento, DA continua seu caminho, já sem seu guia,

passando por um rio de águas límpidas, que corre a sua esquerda: é o Lete, o rio do

esquecimento, de grande importância para as almas que adentrarão ao Paraíso. Na

despedida de DA e Virgílio ele diz: “Ma Virgilio n’avea lasciati scemi/ di sé, Virgilio

dolcissimo patre,/ Virgilio a cui mia salute die’mi;”53

(Purg XXX, v. 49-51), e se

encontra com Beatriz: “continüò, come colui che dice/ e ’l piú caldo parlar dietro

reserva:/ «Guardaci ben! Ben son, ben son Beatrice.”54

(Purg XXX, v. 71-73), que,

junto dele, iniciará a jornada através do Par.

52

“filho, tu viste; e já chegaste a parte/ onde eu por mim mais longe não discerno.” (Purg XXVII, v. 128-

129) 53

“Mas já Virgílio em mingua nos pusera/ de si, Virgílio dulcíssimo padre,/ Virgílio a quem por salvação

me dera;” (Purg XXX, v. 49-51) 54

“ali continuou com quem diz/ e o mais quente falar ao fim reserva:/ «Olha-me bem! Sou bem, sou bem

Beatriz.” (Purg XXX, v. 71-73)

58

Do outro lado do rio está Matelda, que é uma figura misteriosa que precede todo

o rito de purificação das almas que irão para o Paraíso, pois simboliza a vida ativa

perfeita. Dando prosseguimento, o poeta florentino passa por uma procissão mística,

com candelabros de ouro e, em cujo centro, desfila uma carroça triunfal, puxada por um

grifo. Esta visão de DA representa alegoricamente a Igreja, enquanto os símbolos

misteriosos representam a fé. Neste momento, ele encontra-se com Beatriz: “sanza de li

occhi aver piú conoscenza/ per occulta virtú che da lei mosse/ d’antico amor sentí la

gran potenza.” (Purg XXX, v. 37-39), fato mágico para ele, todavia, ela não o recebe

com sentimentalismos. Beatriz que, para DA era uma mulher-anjo, mostra-se

exatamente desta maneira: “isplendor di viva luce etterna” (Purg XXXI, v. 139). É

importante salientar que para que DA possa ingressar no Par, deixando todas as suas

culpas para trás, Beatriz o faz confessar suas próprias culpas e pecados para que assim

eles pudessem ascender: “«dí, dí se questo è vero; a tanta accusa/ tua confession

conviene esser congiunta.»”55

(Purg XXXI, v. 5-6).

DA bebe da água do rio Lete e posteriormente do Eunoé, que lhe fornece a

purificação necessária para que possa ingressar ao Paraíso: “disposto a salire a le stelle”

(Purg XXXIII, v. 145). Do Paraíso Terrestre passam aos céus, chegando ao Céu da Lua.

Na parte mais alta da montanha do Purg, ou seja, em seu cume, fica o

nobilíssimo loco totius terrae, quer dizer, o mais nobre local da terra, onde é o Paraíso

Terrestre, lugar onde viveram Adão e Eva anteriormente a sua expulsão.

O Par é a cidade celeste, ou seja, um local perfeito, harmonioso, onde se

encontra a paz. Encontram-se nessa esfera celestial aqueles que morreram, mas que

eram justos, porém, o número de almas que podem estar neste lugar da DC é fixado por

Deus.

Entre outras coisas, o Par possui certa similaridade com o Inf devido a sua

divisão, e com o Purg pela divisão dos beatos, ou seja, apesar de serem tão diferentes,

os três reinos têm algo em comum uns com os outros, conforme informado

anteriormente, em conformidade com a estrutura das três cânticas da DC.

55

“«diz, diz se isto é verdade: e ao que te acusa/ a tua confissão já se confronta!»” (Purg XXXI, v. 5-6).

59

Pode-se afirmar que a ordem ética deste reino é mais complexa, do ponto de

vista que as almas aparecem sempre duas vezes, em hierarquias diversas, primeiramente

em uma esfera giratória e posteriormente na rosácea do Empíreo. Segundo Auerbach:

As esferas do Céu através das quais ele se eleva até a presença de Deus não

são, como os círculos do Inferno ou a gradação do Purgatório, a morada das

almas que Dante encontra pelo caminho. Elas se mostram aqui e ali em uma

das esferas apenas para dar a Dante uma idéia clara da posição que ocupam

na hierarquia celestial; o lugar onde efetivamente assistem, seu destino

último, está além, na congregação dos bem-aventurados, na rosa branca do

Empíreo. (AUERBACH: 1997: p. 146)

Essa ordem ética é representada por sete graus, a saber: Maria e João Batista;

Eva e Francisco de Assis; Beatriz, Raquel e São Bento; Sara e Santo Agostinho;

Rebeca; Judite e Rute. Deve-se atentar para o fato de que é comum a todas essas almas a

visio Dei, a visão de Deus, variada em grau, a depender da Graça Divina, ou seja, de seu

mérito.

É interessante notar que o número de almas que são salvas não é aleatório: as

almas precisam ser do mesmo número de anjos que se rebelaram contra Deus. Vale

acrescentar que esses anjos rebeldes somavam um décimo do total de anjos; isso leva a

intuir que o Par é composto por um décimo de homens e o restante, os nove décimos,

são constituídos de anjos.

A estrutura física do Par é dividida em nove céus, ou esferas concêntricas, todos

estão no Empíreo, que é como se fosse outro céu, contudo imóvel. É no Empíreo que

Deus reside:

[...] recomeçou: «Nós vamos do maior/ corpo saindo ao céu que é pura luz:/

luz intelectual, cheia de amor;/ amor do vero bem, cheia de letícia;/ letícia

que transcende o mais dulçor./ Aqui verás a uma e outra milícia/ do paraíso, e

uma nos aspectos/ de que o final juízo dá notícia.»56

(Par XXX, v. 38-45).

56

“ ricominciò: «Noi siamo usciti fore/ del maggior corpo al ciel ch'è pura luce:/ luce intellettüal, piena

d'amore;/ amor di vero ben, pien di letizia;/ letizia che trascende ogni dolzore./ Qui vederai l'una e l'altra

milizia/ di paradiso, e l'una in quelli aspetti/ che tu vedrai all'ultima giustizia».”(Par XXX, v. 38-45)

60

Obviamente, tem-se em mente que esta não é uma residência fixa, já que Deus é

onipresente.

O nono céu, chamado Primum Mobile fica dentro do Empíreo, e é ele que

transmite a potência divina através de movimentos rápidos. Esses movimentos se

irradiam pelos outros céus sempre comunicando algo, por meio da influência dos astros:

«A natura do mundo, que aquieta/ o centro e todo o resto em torno move,/

daqui começa como em sua meta;/ e um outro onde a este céu não prove/

mais que a mente divina, em que se acende/ o amor que o roda e tal virtude

chove./ Amor e luz de um círculo o compreende,/ tal como este os outros; e o

precinto/ esse que o cinge é que somente entende./ não é seu moto por outro

distinto,/ por ele se medindo os mais, de resto,/ tal como dez pela metade e

quinto;57

(Par XXVII, v. 106-117)

Fato importante é que todas as almas ficam em uma única parte do Par, no

Empíreo.

Estruturalmente, quando Dante passa do Paraíso Terrestre para o Par em si,

acompanhado por Beatriz, ele entra na esfera do foco e, logo depois, no primeiro Céu, o

da Lua, a mais baixa das esferas, porque é úmida, fria e sofre influências, por exemplo,

das águas; pode-se dizer que é um tipo de antecâmara do Par. Lá estão os espíritos que

faltaram com seus votos, como Piccarda Donati e Costanza d’Altavilla, mãe de Federico

II, os quais aparecem evanescentes: “per vetri trasparenti e tersi/ o ver per acque nitide

e tranquille,”58

(Par III, v. 10-11).

O segundo céu, o de Mercúrio, pode ser concebido como uma espécie de

antessala do Par. Este é um planeta que simboliza a fama e a influência e estão aqui os

espíritos que operam para a glória terrena, que aparecem como esplendores flamejantes,

dentre os quais está o imperador Justiniano.

57

“ La natura del mondo, che quïeta/ il mezzo e tutto l'altro intorno move,/ quinci comincia come da sua

meta;/ e questo cielo non ha altro dove/ che la mente divina, in che s'accende/ l'amor che il volge e la virtú

ch'ei piove./ Luce ed amor d'un cerchio lui comprende,/ sí come questo li altri; e quel precinto/ colui che 'l

cinge solamente intende./ Non è suo moto per altro distinto,/ ma li altri son misurati da questo,/ sí come

diece da mezzo e da quinto;”(Par XXVII, v. 106-117) 58

“Como por vidro transparente, ou cerce/ por águas assim nítidas, tranquilas,” (Par III, v. 10-11)

61

No terceiro céu, o de Vênus, que representa a temperança, estão os espíritos

amantes, que aparecem como luzes que se movem rapidamente em giro. Dentre essas

almas está Raab, a meretriz de Jericó. Vale acrescentar que do terceiro ao sexto céu são

representadas as formas de caritas, ou seja, das virtudes cardeais, mencionadas

anteriormente.

No quarto céu, o do Sol, estão os espíritos sábios, dos padres da Igreja e dos

teólogos, representando a sabedoria e a prudência. Aparecem dispostos em forma de

coroa, cantando e dançando em círculo, entre eles está São Tomás de Aquino, que irá

narrar a vida de São Francisco de Assis a DA.

No quinto céu, o de Marte, estão os espíritos militantes pela fé, guerreiros e

mártires, que aparecem como luz em forma de cruz grega. Dentre eles nota-se a

presença do trisavô de DA, Cacciaguida degli Elisei. Esse Céu simboliza a virtude da

fortaleza.

No sexto céu, o de Júpiter, estão os espíritos dos sábios príncipes e dos justos, os

quais voam cantando e formando a frase do livro da Sabedoria: Diligente iustitiam qui

iudicatis terram, quer dizer, Amais a justiça vós que a julgais na terra.

No sétimo céu, o de Saturno, estão os espíritos contempladores. Este é o patamar

maior na hierarquia ética e suas almas ficam envoltas pelo seu esplendor. Entre eles está

São Bento.

No oitavo céu, o das Estrelas Fixas, estão o triunfo de Cristo e a apoteose de

Maria que se manifesta como a Rosa Mística, em torno ao qual gira o anjo Gabriel,

formando uma coroa e os apóstolos, Pedro, Tiago e João Evangelista, que respondem

pela Fé, Esperança e Caridade, respectivamente, dizem: “Quivi è la rosa’n che ‘l verbo

divino/ carne si fece; quivi son li gigli/ al cui odor si prese il buon cammino.»”59

(Par

XXIII, v. 73-75).

No nono céu, o Primum Mobile, está o triunfo dos anjos, também chamado de

Céu de Cristal. Aqui ele consegue ter a primeira visão de Deus e diz: “La bellezza ch’io

59

“Aí é a rosa em que o verbo divino/ carne se fez; lá são também os lílios/ a cujo odor se teve o bom

destino.»” (Par XXIII, v. 73-75)

62

vidi si trasmoda/ non pur di là da noi, ma certo io credo/ che solo il suo fattor tutta la

goda.” (Par XXX, v. 19-21).

Logo acima deles está o Empíreo, onde estão Deus e a rosa dos beatos. Aqui a

visão de DA fica ainda mais potencializada, caso contrário não seria capaz de ver tudo

que estava vendo. Ele entra em êxtase quando percebe que Beatriz já não se encontra

mais com ele e sim na rosa dos beatos. Vê ainda a glorificação de Maria e, finalmente,

vê Deus: “veder voleva come si convenne/ l’imago al cerchio e come vi s’indova/ma

non eran da ciò le proprie penne/ se non che la mia fu percossa/ da un fulgore in che

sua voglia venne.”60

(Par XXXIII, v. 137-141) e diz ainda que Deus é: “l’amor che

move il sole e l’altre stelle”61

(Par XXXIII, v. 145).

Tendo em vista que as outras cânticas são mais movimentadas, devido aos

conflitos, encontros bons, ruins, entre outras coisas, pode-se perceber que no Par essa

dramaticidade não existe.

Ocorre que, normalmente, é o pecado que encerra essa carga de dramaticidade, e

o fato de tentar vencer o pecado, de purificá-lo, sempre mostra essa agilidade, ou

movimentação dentro da obra. Entretanto, no Par, os pecados já foram purgados e

removidos da alma, ou seja, não existe nem mesmo a recordação deles.

Sabendo que existiria essa perda de continuidade de ações, às vezes, sufocante

até mesmo para o leitor, DA, contrabalançou esta problemática, colocando toda a sua

atenção para a conquista da beatitude de Dante personagem, ou seja, no fato de ele

deparar-se com Deus. Cataldi e Luperini tratam desta questão difícil para Dante e

declaram que:

[...] no Paraíso, antes de tudo, Dante alcança o máximo nível de sabedoria

formal, conquistando uma definitiva segurança de relação entre lucidez, vigor

lógico-sintático e versificação. A estrutura métrica (verso, estrofe, rima) é

submetida às exigências do pensamento ou, melhor, utilizada em todas as

suas valências expressivas. No giro do período, na construção das

demonstrações, dos episódios, dos cantos dominam a circularidade (sinal de

perfeição e de equilíbrio) e o ímpeto vertical à ascensão. Ao vigor plástico, à

60

“ver desejava como se conveio/ ao círculo a imagem e onde encova;/ mas minhas penas eram curto

meio:/ que então a mente me era percutida/ por um fulgor em que seu querer veio.” (Par XXXIII, v. 137-

141) 61

“o amor que move o sol e as mais estrelas.” (Par XXXIII, v. 145)

63

riqueza dissonante, ao estilo e ao léxico baixo e violento do Inferno aqui se

substituem por um vigor interior eminentemente intelectual por uma riqueza

harmoniosa e potente juntas; às meias-tintas e às variedades tonais do

Purgatório se contrapõem aqui as cores seguras e um desenho incisivo e

luminoso na sua clareza.62

(CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 404) (TP)

62

“[...] nel Paradiso, innanzitutto, Dante raggiunge il massimo livello di sapienza formale, conquistando

una definitiva sicurezza di rapporto tra lucidità e vigore logico-sintattici e versificazione. La struttura

metrica (verso, strofe, rima) è piegata alle esigenze del pensiero o, meglio, utilizzata in tutte le sue

valenze espressive. Nel giro del periodo, nella costruzione delle dimostrazioni, degli episodi, dei canti

dominano da circolarità (segno di perfezione e di equilibrio) e lo slancio verticale all’innalzamento. Al

vigore plastico, alla dissonante ricchezza, allo stile e al lessico bassi e violenti dell’Inferno qui si

sostituiscono un vigore interiore eminentemente intellettuale ad una ricchezza armoniosa e potente

insieme; alle mezze-tinte e alla varietà tonale del Purgatorio si contrappongono qui i colori sicuri ed un

disegno incisivo e luminoso nella sua nettezza”. (CATALDI E LUPERINI: 1994, p. 404)

64

2. A DIVINA COMÉDIA E A SUA RELAÇÃO COM AS ARTES DO SÉCULO XX

A presente seção desta Tese de Doutorado apresenta os entrelaçamentos que

existem entre o poema dantesco e as artes figurativas do século XX, pois A Divina

Comédia foi não só relida por muitos intelectuais, como também recebeu

ressignificações em obras artísticas dentro e fora da Itália.

No arco do complexo século XX é possível observar um artista dentre tantos que

ilustrou com seus desenhos uma edição da DC no século XX. Trata-se de Alberto

Martini que, mesmo não tendo obtido reconhecimento da crítica italiana daquelas

primeiras décadas do século XX não recuou e ficou indiferente àquela avalição negativa

de seus desenhos para a obra dantesca, valorizando a herança artística familiar trazida

do século XIX.

É fato que o século XIX passou por muitas transformações que afetaram

sobremaneira a forma das representações artísticas para aquele século e para as

primeiras décadas do XX. Basta pensar, nesse sentido, no surgimento da fotografia e do

cinema, por exemplo. Isso fez com que os artistas modificassem o seu modo de

conceber o fazer artístico, uma prova disso é a participação de vários artistas nos

movimentos vanguardistas que abrem o século XX.

Dentre estes grupos de jovens artistas italianos, como eram reconhecidos em

Paris daqueles anos, está Alberto Martini, que pôde beber de muitos movimentos, como

o Futurismo, o Simbolismo, o Racionalismo e também do Surrealismo nas artes. AM,

como os demais artistas, atravessou esses movimentos vanguardistas e trouxe marcas

estéticas indeléveis na própria obra, sendo, por esse motivo, difícil ligar a produção a

um único movimento artístico de determinado artista. No caso de AM, mesmo tendo

tido experiências em várias estéticas ligadas às vanguardas, é possível verificar que ele

tem seu maior suporte no Simbolismo.

Talvez esse forte traço simbolista na produção de AM seja a herança do processo

pelo qual passou em sua formação artística. Primeiramente, ele atuou na pintura e

somente depois de já ter reconhecimento, ilustrador dedicou-se à ilustração, como seu

pai. Esse último traço da formação artística da AM é que motivou a escolha por este

artista italiano, ou seja, pela maneira como ele ressignificou a Divina Comédia.

65

Para um melhor encaminhamento da discussão desses traços ligados à produção

de AM, foi necessário subdividir essa segunda seção em duas subseções. Na primeira, é

apresentado um panorama da produção desse artista, com uma breve biografia que

aponta para as técnicas utilizadas por ele para a realização de obras, indicando os

lugares e países visitados ou habitados que influenciaram a sua produção, bem como os

campos artísticos por ele frequentados e ainda os artistas e intelectuais com os quais ele

manteve algum diálogo.

É válido acrescentar que no final da primeira subseção é explicado como a

Pinacoteca de Martini foi criada e qual a sua finalidades no que se refere à divulgação

da obra de AM.

Já, na segunda subseção, é apontado o processo utilizado por AM para a

realização da ilustração de A Divina Comédia, que se transformou, por fim, na obra de

sua vida, pois para a realização dos desenhos para essa obra dantesca,o artista levou

mais de quarenta anos.

2.1. A produção de Alberto Martini

Este subcapítulo traz um panorama da produção de Alberto Martini, sendo

deixado de lado, na presente subseção a dedicação desse artista à Divina Comédia.

AM nasceu em 24 de novembro de 1876, em Oderzo, Treviso, região do Vêneto,

no norte da Itália. Seu nome de batismo é Alberto Giacomo Spiridione e seus pais foram

Maria dei Conti Spineda de Cattaneis e Giorgio Martini (? – 1910). Ele teve ainda uma

irmã mais velha chamada Corinna, nascida em 20 de julho de 1870, da qual também não

se tem muitas notícias.

Martini, assim como seu pai, inclinou-se para as artes muito jovem, tendo em

vista que seu pai era pintor, ligado à estética naturalista e também professor de desenho.

Em 1879, a família transferiu-se para Treviso, local onde seu pai lecionara desenho, no

Instituto Técnico Riccati. Logo, AM teve como primeiro professor seu próprio pai, o

66

que favoreceu ao jovem AM a iniciação na pintura e no desenho, já a partir de 1890.

Vale acrescentar que a família paterna do artista tinha uma tradição na arte da decoração

e naquela dos mosaicos venezianos.

Nos anos de sua formação, que compreenderam o período de 1890 a 1895, AM

teve realizou inúmeros desenhos, o que já indiciava algumas de suas preferências

gráficas. Dedicou-se ainda a pinturas a óleo, desenhos a lápis, aquarelas etc. Apesar de

serem técnicas diversas, ele, neste período, tinha conseguido experimentar um pouco de

cada uma destas diferentes técnicas.

Neste período entre 1890 e 1895, os principais temas para seus trabalhos, ligados

a arte figurativa foram o campo de Treviso e também os camponeses que lá

trabalhavam. É possível citar, como exemplo ligado a essa temática, um de seus quadros

intitulado Antica gualchiera trevigiana (1895). Nessa obra, o artista apresenta a relação

entre o homem e a natureza. Ele, naquele momento, trabalhou com flores e conchas, o

que indicava o interesse voltado para a arte figurativa, não somente italiana, mas

europeia, de gosto tardo romântico e popular.

Nesta fase, é perceptível em sua produção artística a marca da estética

simbolista, evidenciando o seu pensamento em relação à representação da vida. Pode-se

ainda acrescentar que este foi para a sua produção um período caracterizado pela

ilustração de obras clássicas, realizadas até, aproximadamente, 1898. Ainda nos últimos

anos do século XIX,, deu início a realização de catorze nanquins aquarelados do Albo

della morte (1896 – 1897), onde é possível observar alguns de seus diálogos com a

estética nórdica.

Em 1895, AM iniciou a primeira série de ilustrações em nanquim para o

Morgante Maggiore63

di Luigi Pulci (1432 – 1484). Todavia, ele não chegou a terminar

esta série, pois resolveu dedicar-se as cento e trinta ilustrações para a Secchia rapita

(1895-1935) de Alessandro Tassoni, terminadas somente em 1903. Essa produção se

refere a:

63 Poema épico-cavalheiresco escrito em oitavas que retoma o ciclo carolíngio;

67

Os cento e trinta desenhos heroico-cômicos para La secchia rapita (1895 –

1935), em grande parte obra juvenil, [que] são ao invés um curioso desfile de

soldadinhos piolhentos e devorados pela fome e que blasfemavam, [...], e de

tremendos, grotescos e soberbos heróis cômicos cuja gesta fazem

empalidecer os mais audazes heróis cavaleirescos.64

(MARTINI: 1988, p.

144) (TP)

Em relação a essa obra, percebe-se a grande habilidade gráfica do artista

italiano, ainda muito jovem naquele momento. Nestes trabalhos, ele demostrou sua

influência nórdica e ainda aquela da gráfica maneirista alemã, com seu interesse pelas

obras de Dürer (1471 – 1528), Luca di Leida (1494 – 1533), Urs Graf (1485 – 1529) e

Baldung Grien (1485-1545). Tais influências foram estudadas a partir de uma releitura

simbolista realizada pelo próprio artista, segundo a qual é preciso retratar somente

aquilo que não se vê, seguindo exclusivamente a visão do próprio olho interior.

Entre os anos de 1896 e 1897, AM realizou uma outra série de desenhos em

nanquim, chamada La corte dei miracoli, onde mostrou figuras com detalhes grotescos.

Neste período, ilustrou também um ciclo gráfico para o Poema del lavoro, com um total

de nove desenhos em nanquim.

Em 1897, expôs de sua produção pela primeira vez na II Bienal de Veneza.

Nesse certame expôs suas obras durante muitos anos, até a XXVI edição em 1952.

Desta vez, apresentou catorze desenhos sobre La corte dei miracoli. E nos anos

seguintes apresentou-se em Munique e, em Turim. Na exposição internacional, expôs

seus desenhos sobre Il Poema del lavoro. Em Munique, trabalhou para as revistas

Dekorative Kunst (1897 – 1929) e Jugend (1896 – 1940).

Este período de mostras de arte foi de grande importância para Martini, pois na

Exposição Internacional de Turim, conheceu Vittorio Pica (1864 – 1930). A partir deste

encontro com o escritor e crítico de arte, AM passou a ser auxiliado na divulgação de

suas obras, não somente em ambiente nacional, mas, principalmente, europeu, tendo

recebido esse apoio até morte de Pica.

64“I centotrenta disegni eroicomici per La secchia rapita (1895 - 1935), in gran parte opera giovanile,

sono invece una curiosa sfilata di soldatacci mangiati dalla fame e pidocchiosi che bestemmiano, [...], e di

tremendi, grotteschi e superbi eroi comici le cui gesta fanno impallidire i più fieri eroi cavallereschi.”

(MARTINI: 1988, p. 144)

68

Uma dessas promoções foi a participação de AM na III Bienal de Veneza (1899)

com seus desenhos sobre Il poema del lavoro, que já tinham sido apresentados em

Berlim e Munique.

Seguindo seu percurso de se fazer conhecer, AM empreendeu o estudo nas

ilustrações, desta vez tendo sido realizada uma série de dezenove cromolitografias de

inspiração ‘liberty’ (art noveau), demonstrando seu gosto artístico pela arte pré-

rafaelista inglesa. Isso evidencia como Pica dialogou com AM a ponto de sugerir-lhe

como ilustrador para a revista Emporium (1895 – 1964) e para os fascículos Attraverso

gli Albi e le Cartelle. Esta foi a fase em que Martini trabalhou bastante com a

cromolitografia, basicamente até 1903.

O ano de 1901 foi de extrema acuidade, uma vez que AM deu início ao primeiro

ciclo de dezenove desenhos para a edição ilustrada da Divina Comédia, promovida pelo

concurso Alinari de Florença. Esta foi uma obra comissionada por Vittorio Alinari a

pedido de seu intercessor Vittorio Pica. Essas ilustrações foram apresentadas no

fascículo II de Attraverso gli Albi e le Cartelle.

Naquele mesmo ano, participou da IV Bienal de Veneza com os desenhos La

secchia rapita. Nessa mostra dentre as obras expostas trinta e oito delas foram

adquiridas pela Galeria de Arte Moderna de Roma. Dois anos mais tarde, havia

terminado as ilustrações para o poema de Tassoni apresentadas na IV Bienal,

perfazendo um total de cento e trinta desenhos, que foram expostos na V Bienal de

Veneza.

Entre os anos de 1904 a 1907, AM iniciou seu percurso pelas principais capitais

europeias. Em 1904, foi a Paris, onde começou seus desenhos para os ex libris para

Antonio Fogazzaro (1842 – 1911), Vittorio Pica, Gerolamo Rovetta (1851 – 1910) e

Tom Antongini (1877 – 1967), dedicando-se ainda a outro ciclo gráfico chamado La

lotta per l'amore, completado no ano seguinte, com um total de oitenta e seis desenhos.

Ainda no mesmo ano e, no seguinte, 1905, iniciou as ilustrações de La parabola

dei celibi, com as quais participou na VI Bienal de Veneza. Martini deu início ainda às

ilustrações para os contos de Edgar Allan Poe (1809 – 1849), tendo sido concluídas

somente em 1909. Contudo, neste ambiente artístico parisiense, conheceu o casal Cesare

69

(? – 1924) e Margherita Sarfatti65

(1883 – 1961), que atuavam no campo da crítica de

arte da época.

As ilustrações realizadas por Martini para os poemas de Poe foram elaboradas

com perfeição pelo artista. Nesses desenhos é possível perceber o simbolismo,

determinando, assim, os traços iconográficos da arte de Martini. Ele, leitor de Poe, criou

um poema gráfico de intensa escuridão, por meio da técnica do branco e preto.

Em 1907, foi para Londres, movido pela divulgação de sua obra em uma mostra

individual na Leicester Gallery. Naquela cidade, conheceu um grande editor da época,

chamado William Heinemann com quem, posteriormente, organizou outra mostra

individual na Galeria Goupil. Nesse mesmo ano, participou ainda da VII Bienal de

Veneza, na qual expôs suas obras pictóricas L’arte del sogno (duas telas em óleo, uma

chamada Notturno e outra Nel sonno; e alguns desenhos como La bellezza della donna)

e depois retornou a Paris, onde, por intermédio de Pica, pôde conhecer outros

intelectuais da época, como Gabriel Mourey (1865 – 1943), escritor e colaborador da

revista francesa Emporium.

Já no final da primeira década do século XX, (1908 e 1909), participou de uma

mostra de arte em Faenza, na sessão bianco e nero. Nessa exposição apresentou alguns

desenhos da Parabola dei celibi, algumas ilustrações para Edgar Allan Poe e ainda

outras obras com inspiração na cidade de Veneza. A partir desses dados apresentados,

pode-se observar que até 1911, Martini se dedicara regulamente ao desenho gráfico para

ilustrar obras literárias.

Na VIII Bienal de Veneza, em 1909, participou com seus desenhos referentes à

obra de Poe, tendo sido realizados outros desenhos para a obra Album de verse et de

prose (1887) de Mallarmé (1842 – 1898) e também para a obra Macbeth (1608) de

Shakespeare (1564 – 1616).

65 De origem judaica, aderiu ao fascismo em 1925, tendo sido citada no Manifesto degli intelletuali

fascisti. Apoiou Mussolini na primeira fase do fascismo, antes das campanhas étnicas, e foi sua primeira

biógrafa, tendo publicando originalmente na Inglaterra o trabalho intitulado The life of Benito Mussolini e

logo após na Itália com o nome Dux. Em 1937, com a promulgação das leis raciais, decidiu então ir para a

América do Sul, mais especificamente Argentina e Uruguai.

70

Entre 1910 e 1911 trabalhou ilustrando outra obra de Shakespeare, Hamlet

(1602); realizou também cinquenta e cinco desenhos (pena colorida e pastel) para

poesias de Paul Verlaine (1844 – 1896); e ainda uma série de pontas secas (La sirena

dormiente, Le figlie di Leda, La sirena e il mostro). Durante esses mesmos anos realizou

ilustrações para o poema trágico de E. A. Butti Il castello del sogno, de 1910, cuja

edição esteve a cargo dos irmãos Treves de Milão.

O ano seguinte 1910 foi complicado na vida pessoal de Martini. Esse ano é

marcado para o artista pelo falecimento de seu pai, fato que o fez retornar para Itália,

para viver com sua mãe em São Zeno, na província de Treviso.

Apenas dois anos mais tarde, 1912, retoma a vida de exposições, participando da

X Bienal de Veneza. Nessa mostra, AM expôs desenhos em nanquim, e, também, um

autorretrato. Nesse retorno, Martini fora incentivado por Pica a voltar a pintar, já que

havia passado por período extenso dedicando-se às gravuras e ilustrações. E assim, o

artista dedicou-se então à técnica do pastel nos dois anos que se seguiram, até 1914.

Durante esse tempo fez algumas obras como: Sinfonie del sole (L’Aurora, La notte, I

fiumi) e o pastel Farfalla gialla.

Em 1914, iniciada a Primeira Guerra Mundial, AM havia realizado cinquenta e

quatro litografias com tema bélico, intituladas Danza Macabra (1914 – 1916), com um

sentimento anti-alemão. A respeito deste trabalho, Martini escreveu:

Para a grande guerra mundial que estourou em 1914, desenhei sobre a pedra

La danza macabra europea, cinquenta e quatro pequenas litografias originais

que os Editores de Treviso preferiram lançar em cartões postais, algo que,

então, estava na grande moda. Uma primeira série de doze pequenas

impressões foi sequestrada por razões políticas e foram vendidas

posteriormente, não pelo autor, debaixo dos panos.66

(MARTINI: 1988, p.

144) (TP)

66

“Per la grande guerra mondiale che scoppiò nel 1914, disegnai sulla pietra La danza macabra europea,

cinquantaquattro piccole litografie originali che gli Editori trevisani preferirono lanciare su carte postali,

ciò che era allora di gran moda. Una prima serie di dodici piccole stampe fu sequestrata per ragioni

politiche e fu poi venduta, non dall’autore, sotto il mantello.” (MARTINI: 1988, p. 144)

71

Após ter realizado esse trabalho, ainda durante a guerra, Martini participou da

XI Bienal de Veneza, expondo os retratos da marquesa Luisa Casati e da condessa

Revedin e o pastel Arlecchino.

Entre os anos de 1915 e 1918, AM dedicou-se às litografias. Realizou a série

chamada Farfalle, tema com o qual já havia trabalhado anos anteriores, quando, em

1912, o artista fizera seis ilustrações para o poema gráfico Misteri (Amore, Morte,

Infinito, Follia, Sogno, Nascita).

Em 1916, retomou suas exposições no exterior, na Inglaterra. Esse momento do

artista foi considerado como sendo o período bélico martiniano que terminou em 1918,

com o fim da Primeira Guerra. Nessa ocasião, AM expôs quatro desenhos em Londres,

na Leicester Gallery, ocorrida em 1907, e mais seis outros desenhos para o poema de

Poe e as litografias Avanti Italia. Ainda em 1916, na mesma galeria de arte londrina,

expôs sua série de litografias intituladas Farfalle e Bocche.

Entre os anos de 1917 e 1918, começou a fazer nanquins aquarelados para a

balada Les Orientales (1829) de Victor Hugo (1802 – 1885), tendo realizado também

oitenta e quatro desenhos intitulados Il cuore di cera, em Bolonha.

O artista, após a série e exposições, passou a interessar-se pela ilustração para o

teatro. Essa motivação de AM teve início em 1919, quando ele realizou oitenta e quatro

desenhos à pena e em aquarelas coloridas. Esse fascínio pela ilustração teatral se

manteve até, aproximadamente, 1928.

Na década de 1920, teve início o ciclo gráfico de Trentun fantasie bizzarre e

crudeli. Essas obras foram expostas na XIII Bienal de Veneza (1922). Dois anos mais

tarde, essa produção de AM foi publicada pelas edições Bottega di Poesia, que fora

intermediada pelo conde Emanuele di Castelbarco (1884-1964). Foi ainda, por

intermédio deste conde, que o artista passou a fazer parte de grupos sociais ligados à

aristocracia, como aquele da princesa Paola d’Ostheim, por exemplo. Passou também a

frequentar um círculo de artistas de Veneza.

72

O ano de 1923 foi de grande importância para o artista, tendo em vista que teve a

ideia de criar o Tetiteatro, ou seja, um teatro sobre a água que fora dedicado à deusa do

mar Tetis. A este respeito, Martini declara:

Foi na primavera de 1923 que inventei o Tetiteatro, uma invenção teatral que

deu uma volta ao mundo permanecendo intacta, porque a volta ao mundo não

foi feita com o autor. Um arquitetônico teatro terráqueo, um instrumento

gigante pela ressonância de uma nova voz e pelas novas plásticas teatrais. [...]

O palco do Tetiteatro se compõe..., mas este é um segredo que, como as sete

notas e as cores se prestam a infinitas composições, e a minha nova

cenografia que chamei de Tetiscenografia, nasce deste mecanismo

transformador.67

(MARTINI: 1988, p. 151 – 152) (TP)

Esse mecanismo transformador, mencionado acima, é o que origina a grande

diferença das obras de Martini em relação às demais obras, de outros artistas de sua

época, uma vez que ele não se restringia a utilizar somente uma única técnica para a

realização de uma obra.

No ano seguinte, na XIV Bienal de Veneza (1924), apresentou o pastel A

Venezia, onde retrata sua futura esposa, Maria Petringa. Vale acrescentar que ela foi sua

musa inspiradora durante muito tempo, em muitos trabalhos. Na XV Bienal de Veneza

(1926) expôs retratos justamente dedicados à Maria.

Após ter realizado essa série de obras e ter participado de muitas exposições, em

1927, AM resolveu criar, junto de amigos artistas, uma comissão em homenagem a

Vittorio Pica. Para essa homenagem realizou desenhos e pinturas para ilustrar a revista

L’eroica, no número de novembro/dezembro daquele mesmo ano.

Em 1928, AM mostrou-se completamente desiludido com as avaliações

negativas feitas pelos críticos de arte italianos. Para ele, tais avaliações não entendiam a

originalidade e a autonomia estilística de sua obra, que apresentava uma grande

heterogeneidade criativa. Assim, após ter recebido tantas críticas contrárias na Itália,

67

“Fu nella primavera del 1923 che inventai i Tetiteatro, un’invenzione teatrale che ha fatto il giro del

mondo rimanendo intatta, perché il giro del mondo non l’ha fatto con l’autore. Un architettonico teatro

terracqueo, uno strumento gigante per le risonanze di una nuova voce e per nuove plastiche teatrali. [...] Il

palcoscenico de Tetiteatro si compone..., ma questo è un segreto che, come le sette note ed i colori si

presta ad infinite composizioni, e la mia nuova scenografia che ho chiamato Tetiscenografia, nasce da

questo meccanismo trasformatore.” (MARTINI: 1988, p. 151 – 152)

73

decidiu voltar a morar em Paris. Na capital francesa, encontrou amigos que valorizaram

suas obras. Permaneceu naquela cidade por seis anos, até 1934, encontrando-se por

vezes com sua esposa, que permanecera na Itália. Neste período, pôde aproveitar e

frequentar ambientes de críticos de arte e de literatura, bem como muitos artistas, como

Solito de Solis, musicista famoso na época. Tais artistas juraram a AM que apagariam a

obra dele da memória dos italianos. Em relação a este período em que retornou a Paris,

Martini declarou:

Quando sentia que o meu Eu artístico estava cansado, descia nos Bulevares,

nos barulhentos terraços frequentados por milhares de pequenos e grandes

artistas de todo o mundo. Montparnasse era a babel da arte, a moderna

bohème, herdeira daquelas do Quarteirão latino e de Montmartre. [...] Me

sentava, espectador apartado, para observar a interessante comédia da arte

que se desenvolvia ao redor. Os atores eram jovens artistas à espera do

sucesso, velhos célebres de uma expressão satisfeita ou agonizantes na

desilusão, no álcool, na loucura.68

(MARTINI: 1988, p. 164 – 165) (TP)

Esta citação explicita bem qual era a sensação vivida por este artista que não

fora compreendido em seu país, como tantos outros, mostrando um pouco de sua

amargura frente às críticas severas.

Neste interim, começou a pintar a maneira-negra, seguindo imposições

surrealistas em obras como Conversazione con i miei fantasmi, Fiore dello scoglio e La

prigione sotteranea.

Em 1930, realizou uma série de pinturas à maneira-clara, ou seja, contrária à

maneira que estava acostumado, que era a negra. Neste novo modo, segundo o artista,

os olhos tornam-se o espelho da alma. Ainda neste mesmo ano, ele voltou a se dedicar

às ilustrações em preto e branco para obras literárias, com desenhos a lápis aquarelados

como: Une saison en enfer (1873) de Rimbaud (1854 – 1891), Les fleurs du mal (1857)

de Baudelaire (1821 – 1867), Poèmes (1899) de Mallarmé, L'homme qui rit (1869) de

68

“Quando sentivo che il mio Io artistico era stanco, scendevo nei Boulevards, nelle rumorose terrazze

frequentate da migliaia di piccoli e grande artisti di tutto il mondo. Montparnasse era la babele dell’arte,

la moderna bohème, erede di quelle del Quartiere latino e di Montmartre. [...] Mi sedevo, spettatore

appartato, per osservare la interessante commedia dell’arte che si svolgeva intorno. Gli attori erano

giovani artisti in attesa del successo, vecchi celebri dall’espressione soddisfatta o agonizzanti nella

disillusione, nell’alcool, nella follia.” (MARTINI: 1988, p. 164 – 165)

74

Victor Hugo, La croix de bois (1919) de Dorgelès (1885 – 1973), La danse macabre de

M. Orland, Les destinées (1864) de Alfred de Vigny (1797 – 1863). Além disto,

participou da XVII Bienal de Veneza com L’uomo che crea.

Dois anos mais tarde, já em 1932, começou a trabalhar com as artes aplicadas,

ou seja, realizou projetos de escultura em vidro, cuja inspiração foi no estilo decorativo

art déco, ainda em voga naqueles anos. Essa obra de AM fora financiada pelo industrial

têxtil Adolfo Bogoncelli.

Em 1934, retornou à Itália, pois se encontrava em dificuldades financeiras,

estabelecendo-se em Milão, permanecendo ali até 1953. Nos dois anos seguintes a 1934,

Martini publicou desenhos, legendas e vinhetas satíricas, na revista Perseo. Neste meio

tempo, terminou sua série de ilustrações iniciada em Paris. Essas atividades foram

realizadas por AM até 1940, tendo ainda, nesse mesmo período, ilustrado o livro Cuore

(1936) de Edmondo De Amicis (1846 – 1908), e realizado um desenho em nanquim

para I Fioretti de São Francisco.

Entre os anos 1941 e 1952, Martini executou uma série de litografias coloridas

denominada La vita della Vergine e outras para as poesias de Rilke. Realizou ainda, em

1943, um ciclo gráfico conhecido como La vita di Cristo e, em dezembro de 1946,

participou da Exposição internacional de ex libris, onde recebeu um diploma em

homenagem à sua obra. No ano seguinte fez doze pontas secas intituladas Poema

mitografico, além de continuar as suas atividades como pintor.

Dentre suas últimas obras, vale recordar aquelas feitas a óleo: Anime gemelle,

Corteo di Venere e La valle di Cleopatra, respectivamente dos anos 1945, 1949 e 1950.

Dando prosseguimento a isto fez a sua última participação na XXVI Bienal de Veneza

em vida, onde apresentou desenhos feitos em pena e nanquim coloridos intitulados La

realtà e i sogni di gloria e La finestra di Psique nella casa del poeta.

Em um breve retorno no tempo cronológico, vale ressaltar que entre os anos de

1939-40, AM redigiu uma autobiografia, intitulada Vita d’artista. Este trabalho foi

realizado juntamente com seu primo, Alessandro Tischer.

75

Neste seu trabalho, ele mostra como se sentia invejado e temido pelos seus

adversários, porém era extremamente encorajado pelos seus amigos, uma vez que uma

batalha não pode ser vencida quando não se tem inimigos. Ele apresentou sua obra de

forma a alertar o leitor de que um artista se expõe tanto e que se presta a correr até

mesmo perigos na tentativa de defender a arte nacional.

A referida autobiografia, AM, fora escrita não por um homem das Letras, mas

sim por um artista que com seu pincel e seus lápis realizou seus desenhos e pinturas da

mesma forma que um cirurgião utiliza seu bisturi, ou seja, com a sutileza e com os

detalhes que são extremamente importantes.

Nas páginas dessa obra é possível observar como AM acreditava que o sono

fosse um sonho de olhos fechados, enquanto para ele a vida era um sonho de olhos

abertos. Isto porque a vida, na sua visão, era plena de contratempos, situações ruins,

mortificantes, tragédias, etc. Todavia, a Providência Divina, segundo AM lhe dera a

oportunidade de sonhar com os olhos abertos, já que no sonho, as pessoas podiam

consolar-se da triste realidade. Pode-se observar isto em:

A minha vida é um sonho a olhos abertos. O sono é um sonho a olhos

fechados falseado pelo pesadelo da realidade. [...] Quem vive no sonho é um

ser superior, quem vive na realidade, um escravo infeliz. Dante foi

certamente o maior poeta do sonho da vida, do sono e da morte.69

(MARTINI: 1988, p. 158) (TP)

A partir da citação anterior, pode-se observar como AM entendia o poema maior

de Dante Alighieri. Para ele, DA foi o maior poeta do sonho da vida, do sono e da

morte, tendo presente que, para Martini, aquele que vive no sonho é um ser superior e o

que vive na realidade é um escravo infeliz, dependente da mesma. Dante, na DC,

dormiu e seu sonho tornou-se uma realidade, era um sonho de vida, com personagens

reais para ele, porém este sonho era a própria morte, uma vez que todos estavam no

universo ultraterreno.

69

“La mia vita è un sogno ad occhi aperti. Il sonno è un sogno ad occhi chiusi falsato dall’incubo della

realtà. [...] Chi vive nel sogno è un essere superiore, chi vive nella realtà, uno schiavo infelice. Dante fu

certamente il maggiore poeta del sogno della vita, del sonno e della morte.” (MARTINI: 1988, p. 158)

76

Martini sentia-se muito atraído pela biografia de Dante, obviamente num sentido

mais psicológico. Ele por três vezes seguiu fielmente a partir de suas ilustrações o autor

do divino poema pelos três mundos (Inferno, Purgatório e Paraíso). Outras três vezes

ele desenhou aqueles mundos criados pelo grande poeta italiano do século XIV que foi

três vezes condenado à morte pela inveja e pela maldade dos homens. Com isto, ele

demonstra o quanto este poema sempre esteve muito presente na sua vida e foi para ele

de grande conforto.

Durante este período em que AM compôs sua autobiografia, estava ainda

realizando suas ilustrações para a Divina Comédia, que fora finalizada no ano de seu

falecimento, em 1954. Este ano foi complexo, devido à conclusão de sua edição

ilustrada da DC, pois fora um trabalho muito longo. Ele, infelizmente, faleceu no dia 8

de novembro daquele ano, no hospital Fatebenefratelli, em Milão.

Após a sua morte, o arquivo da produção artística e epistolar de AM foi

transferido para a casa de sua esposa Maria Petringa, em Milão, com exceção dos

trabalhos que tinham sido já vendidos. Maria deu início à organização dos trabalhos do

marido, com a finalidade de valorizar e promover a obra martiniana. Quando Maria

faleceu, anos depois, em 1971, o arquivo foi transferido para o sobrinho Luigi Tischer.

Atualmente, a obra de AM está reunida na Fundação Oderzo Cultura, que é uma

organização sem fins lucrativos, onde são mantidas grandes coleções de livros e a

Pinacoteca Alberto Martini, na qual ficam expostas suas obras de arte. Todos os

arquivos de Martini estão na pinacoteca, organizados em álbuns e suas publicações

inéditas também podem ser encontradas lá, como a correspondência dele com amigos,

familiares e críticos de arte, por exemplo.

Para exemplificar melhor as informações acima mencionadas, na pinacoteca de

Oderzo constam 458 obras realizadas por Martini, onde é possível ver em exposição um

total de 150 delas, sendo todas catalogadas, possibilitando aos estudiosos de acessá-las

sempre que possível, no banco de dados da instituição italiana.

Graças ao trabalho inicial de sua esposa e, posteriormente, de seus parentes, hoje

é possível conhecer e admirar a obra pictórica e gráfica deste artista que

77

incompreendido em vida pelos seus contemporâneos, é atualmente ainda pouco

conhecido e estudado.

Pode-se notar que a obra de Martini nunca foi extremamente conhecida e

divulgada, porém, principalmente fora da Itália, em Paris, na primeira metade do século

XX, ele foi mais compreendido e admirado. Os traços de seus desenhos, ilustrações e

pinturas foram sempre de grande sutileza, refinamento, e de muita expressividade.

AM foi considerado um dos melhores desenhistas da Itália nas três primeiras

décadas do século XX, sendo peculiar o seu estilo simbolista. Ele tinha por gosto

trabalhar com o nanquim, era um expert na técnica do branco e preto, com o qual

mostrava as nuances das sombras, realizava imagens cruéis, entre outras características.

Foi considerado ainda um dos precursores do Surrealismo, porém, como André

Breton (1896 – 1966) não o nomeou, tal fato ficou em suspenso, como se nota em:

Precursor do surrealismo Martini o é apenas simbolista e da mesma forma de

todos os outros simbolistas, ainda se como tal não foi reconhecido por

Breton, que não o nominou nas suas famosas listas; mas verdadeiro

surrealista ele nunca foi, foi ao contrário um fantástico iluminado e

perverso.70

(LA REPUBBLICA 01/09/1986) (TP)

De fato, AM realmente fora um simbolista e isto sim os críticos afirmam,

entretanto, o fato de ele ter sido surrealista é uma incógnita. Sabe-se que Martini

recusou fazer parte d grupo de surrealistas por não concordar inteiramente com suas

características, uma vez que nele havia um espírito religioso que não era uma marca do

surrealismo.

Depois de passar por esta grande trajetória artística de AM, será apresentada

nesta próxima subseção, seu trabalho sobre a Divina Comédia.

70

“Precursore del surrealismo Martini lo è solo in quanto simbolista e allo stesso modo di tutti gli altri

simbolisti, anche se come tale non viene riconosciuto da Breton, che non lo nomina nei suoi famosi

elenchi; ma vero surrealista non è mai stato, è stato invece un fantastico illuminato e perverso.” (LA

REPUBBLICA 01/09/1986)

78

2.2. A Divina Comédia por Alberto Martini

A presente subseção visa a apresentar os percursos realizados por Alberto

Martini durante a composição de sua edição ilustrada da Divina Comédia, apontando os

pontos cruciais vividos pelo artista enquanto ilustrava a referida obra literária.

Em 1900, Vittorio Alinari (1859 – 1932) promoveu um concurso, que levava o

seu nome, para uma nova versão da DC ilustrada; contudo, os artistas deveriam ser

italianos. Quando Vittorio Pica soube deste concurso, avisou AM para que ele

inscrevesse seus trabalhos no concurso Alinari.

Participaram do concurso e tiveram suas obras selecionadas para a edição de La

Divina Commedia di Dante Alighieri novamente illustrata da artisti italiani os

seguintes artistas: Pietro Senno (Inferno, Canto I), Alfredo De Karolis (Inferno, Canto

IV), Adolfo Magrini (Inferno, Canto V), Vincenzo La Bella (Inferno, Canto IX), Silvio

Bicchi (Inferno, Canto X), Pietro Senno (Inferno, Canto XIII), Alberto Martini (Inferno,

Canto XIX), Ernesto Bellandi (Inferno, Canto XXIII), Pietro Senno (Inferno, Canto

XXIV), Duilio Cambellotti (Inferno, Canto XXXI), Alberto Zardo (Inferno, Canto

XXXIV), Adolfo Magrini (Purgatorio, Canto III), Pietro Senno (Purgatorio, Canto

V), Alberto Zardo (Purgatorio, Canto VI), Plinio Nomellini (Purgatorio, Canto

VII), Giuseppe Miti-Zanetti (Purgatorio, Canto VIII), Duilio Cambellotti (Purgatorio,

Canto IX), Pietro Chiesa (Purgatorio, Canto XI), Silvio Bicchi (Purgatorio, Canto

XII), Ezio Marzi (Purgatorio, Canto XIII), Riccardo Galli e Adolfo Magrini (Purgatorio,

Canto XX), Pietro Senno (Purgatorio, Canto XXI), Lionello Balestrieri (Purgatorio,

Canto XXIX), Carlo Muccioli (Purgatorio, Canto XXX), Adolfo Magrini (Purgatorio,

Canto XXXI), Osvaldo Tofani (Purgatorio, Canto XXXI), Osvaldo Tofani (Paradiso,

Canto II), Cesare Laurenti (Paradiso, Canto III), Giorgio Kienerk (Paradiso, Canto

IV), Alberto Zardo (Paradiso, Canto VII), Giuseppe Mentessi (Paradiso, Canto

XI), Giovanni Fattori (Paradiso, Canto XV), Serafino Macchiati (Paradiso, Canto

XXVI), Carlo Muccioli (Paradiso, Canto XXXI), Pietro Chiosa (Paradiso, Canto

XXXII). (ALIGHIERI, 1902) Esta edição conta com texto criticamente reconstruído

pelo filólogo Giuseppe Vandelli (1865 – 1937) e com cem pranchas ao longo do texto e

outras trinta e seis, em colotipia, em anexo, ocupando páginas inteiras. Os originais das

79

ilustrações que compõem a referida edição foram expostos em mostra na Academia de

Belas Artes de Florença, em novembro de 1902 com a curadoria de Vittorio Alinari.

AM foi o vencedor do concurso. Alberto Sgarbi, no prefácio da edição Alinari

afirmou que Martini era um artista que havia nascido para ilustrar a DC.

O ciclo de desenhos para a primeira edição da DC, em 1902, que AM

apresentara era a sua primeira leitura, sob encomenda, da obra dantesca. Quarenta anos

separaram seus primeiros trabalhos comissionados daqueles realizados autonomamente.

A sua proposta de perseverar na produção de ilustrações das cânticas da DC veio

da semelhança que observou entre ele próprio e Dante como um personagem guerreiro,

humano, mas com valores morais. Além disso, AM identificou-se com as tristezas

vividas pelo poeta no exílio. A esse respeito, Bonifácio declara:

Escrevia Martini na sua autobiografia: «três vezes na minha vida segui

religiosamente o divino Poeta através dos três mundos. Três vezes desenhei

aqueles mundos, criados pelo gênio de um italiano, três vezes condenado à

morte, pela ambição e pela covardia dos homens. O Poema Sacro sempre me

foi de grande conforto, às vezes me acalmou e viveu paradisíaco ou infernal

nos meus sonhos».71

(BONIFACIO: 2008, p. 27) (TP)

Martini vivendo sua vida como um sonho, sabia que o sono era um sonho de

olhos abertos. Como mencionado na subseção anterior, AM afirmava que viver no

sonho evidenciava o ser superior, ao contrário daquele que vive na realidade, pois este

último é um escravo infeliz. Assim, cria ter sido Dante o maior poeta do sonho da vida,

do sono e da morte.

Passados muitos anos, o artista, entre dezembro de 1940 e janeiro de 1941,

enviou seus desenhos para o poema DC para o editor milanês Arnoldo Mondadori, o

qual apreciou bastante seu trabalho, tendo se interessado na sua publicação. Todavia,

como a situação financeira da editora não era estável, graças à crise gerada pela

Segunda Guerra Mundial, o editor italiano resolveu negar a publicação da obra de AM,

porém não deixou de incentivá-lo para que não desistisse deste trabalho tão valoroso.

Tal resposta fez com que AM ficasse bastante frustrado, uma vez que gostaria muito

71

“Scriveva Martini nella sua autobiografia: «Tre volte nella mia vita seguii religiosamente il divino

Poeta attraverso i tre mondi. Tre volte disegnai quei mondi, creati dal genio di un italiano, tre volte

condannato a morte, dalla cupidigia e dalla viltà degli uomini. Il Poema Sacro mi fu sempre di grande

conforto, a volte mi placò e visse paradisiaco o infernale nei miei sogni». (BONIFÁCIO: 2008, p. 27)

80

que a editora publicasse sua edição. É o que afirma Bonifácio em: “[...] o lamento de

não ter podido ver a minha obra por Vós realizada, pela vossa grande casa [...]”.72

(BONIFÁCIO: 2008, p. 25)

Após anos de trabalho, AM decidiu abandonar seu envolvimento psicológico e

emocional com a DC, resolvendo, então, produzir outras obras a partir de uma nova

perspectiva, mais abstrata e voltada para a poética surrealista.

Na Fundação Oderzo Cultura, em Oderzo, é possível encontrar também algumas

das ilustrações feitas por AM para a DC, parte das quais foram vendidas. Assim, dentre

todos os desenhos para a DC, 297 foram realizados a lápis, nanquim e guache. Sabe-se

que vinte nove desenhos foram realizados entre 1900 e 1901 e que as versões

definitivas, aquareladas em vinte e dois exemplares foram publicadas pela Alinari, na

edição de 1902 da DC. Acrescenta-se ainda que algumas imagens foram adicionadas e

outras modificadas em uma outra versão da DC de 1922.

Na primeira edição de 1902, devido problemas desconhecidos dos estudiosos da

obra de AM, foram perdidos alguns desenhos, porém, restaram: Le anime dei dannati

traghettate da Caronte (Inferno, III), Il messo celeste (Inferno, XI), I violenti contro Dio

(Inferno, XIV), Brunetto Latini profetizza l’esilio di Dante (Inferno, XV), Belacqua

(Inferno, IV).

Para cada canto da DC, Martini realizou de duas a cinco ilustrações. Com o

intuito de apresentar algumas dessas ilustrações, segue a lista preparada por Bonifácio

(2008), em que ela trata de alguns nanquins aquarelados, tendo sido seguido o critério

dentre os “mais belos” feitos por AM para a edição da DC, são eles: Acheronte (Inf, III),

Minòs (Inf, V), Cerbero (Inf, VI) o, ancora, Pape Satan, pape Satan Aleppe (Inf, VII),

Stecchi con tosco... (Inf, XIII), I demoni (Inf, XXII), Fui ladro a la sagrestia (Inf,

XXIV), Lucifero (Inf, XXXIV), Gerion (Inf, XVII), Il conte Ugolino e l’arcivescovo

Ruggieri (Inf, XXXII); e poi Manfredi (Purg, III), Belacqua (Purg, IV), Maria ora per

noi (Purg, XIII), Io sono Aglauro che divenni sasso (Purg, XIV), Imperio del buon

72

“[...] il rammarico di non aver potuto vedere la mia opera realizzata da Voi, dalla vostra grande casa

[...]”. (BONIFÁCIO: 2008, 25)

81

Barbarossa (Purg, XVIII), Cornice dei golosi (Purg, XXII), L’ultimo lavoro; enfim,

Paradiso, I, Cielo della luna – Piccarda Donati (Par, III), Ultima notte - Resurrezione

(Par, VII), Fiorenza (Par, XXV), Il maledetto (Par, XXIX).

Em suma, é possível perceber que a DC assumiu um papel importante na

produção artística de Martini. O artista se interessou sobremaneira na viagem ao mundo

dos mortos, e no personagem dessa viagem, Dante Alighieri. Assim, é possível notar

que esta viagem pelos três reinos não foi empreendida somente por Dante, mas por

Martini que também a realizou por intermédio de suas ilustrações, mostrando seu

próprio modo de observar a viagem de Dante, ou seja, sua ressignificação da obra

dantesca tantos séculos depois não distanciando o observador das ilustrações do poema

de Dante, mas AM buscou atualizar a visitação ao mundo dos sonhos que apresenta em

suas ilustrações.

Essas questões acima mencionadas sobre as ilustrações de AM para a DC serão

o tema da próxima seção, em que serão analisadas as ilustrações desse artista.

Dentre as ilustrações realizadas na obra ilustrada por Martini, foram

selecionadas quatro delas a serem analisadas nesta Tese, a saber: Inf. XXXIV, Purg.

XII, Par. XI e XXXIII. Tais análises serão apresentadas no próximo capítulo, entretanto,

nesta subseção eles também serão brevemente apresentadas.

No canto XXXIV do Inferno, Dante, personagem, na companhia de Virgílio

entra na quarta zona do nono círculo do inferno, chamada Giudecca. Lá é onde residem

as almas dos traidores dos benfeitores que são obrigados a ficar submersas no gelo e

privadas de qualquer contato com vida.

No centro deste poço infernal encontra-se Lúcifer, o qual vem anunciado e surge

do gelo. Ele se apresenta como um monstro gigantesco, com três cabeças e seis asas de

morcego e que, ao agitá-las gera um vento frio que gela o pântano do Cocito. Suas faces

são: uma amarelada, outra preta e outra vermelha, que é a da frente. Há um simbolismo

por trás destas cores que é de extrema relevância para o entendimento do poema, uma

vez que representam, respectivamente, a impotência, a ignorância e o ódio, sentimentos

contrários aqueles da Trindade, que são a divina Potestade, o supremo Saber e o

primeiro Amor.

82

Lúcifer, por sua vez, representa o rei do inferno, o anjo caído que se rebelou

contra Deus, sendo ele a encarnação do mal universal. A descrição de Lúcifer por DA

baseia-se na visão medieval do Catolicismo.

Alegoricamente, percebe-se que Lúcifer mastiga continuamente em cada uma de

suas três bocas, a cabeça de um traidor, são eles: Judas, o principal deles por ter sido o

traidor de Cristo, seguidos por Brutos e Cássio, traidores de César e do Império. Pode-se

observar neste momento, a concepção religiosa e política de DA, quando ele escolhe

tais traidores para estarem lado a lado.

Além desta figura gigantesca, não é possível identificar nenhuma outra alma,

pois elas encontram-se afundadas no gelo, sendo assim, Virgílio segue conduzindo

Dante às costas. Eles transpõem o centro da Terra e da gravidade, onde fica Lúcifer e

atravessam o buraco estreito formado pela queda do anjo, chegando a superfície da

terra, no hemisfério austral, de onde podem ver as estrelas.

Já no Purgatório, no canto XII, há a descrição da primeira cornija, aquela dos

soberbos, onde são mostrados vários exemplos de punição às almas que foram soberbas

na Terra. Dante e Virgílio continuam sua caminhada, porém Dante insiste em seguir o

miniaturista Oderisi da Gubbio, mas logo, Virgílio consegue convencê-lo a seguirem em

frente.

Desta maneira, antes de chegarem à segunda cornija, eles se deparam com um

anjo guardião que apaga da testa de Dante uma das sete letras P, referentes aos sete

pecados capitais, neste caso, aquela letra referente à soberba.

Neste momento, Dante sentiu imensa leveza, pois um dos pecados lhe foi

purgado, faltando-lhe outros seis a purgar. Este anjo é carregado de um grande

simbolismo, uma vez que é um enviado de Deus para cumprir seus desígnios, isto é,

somente pela graça divina, a primeira letra P pode ser removida da testa de Dante.

No paraíso, canto XI, Dante encontra-se acompanhado por Beatriz no céu do

Sol. Ele já está liberto de todos os pecados e goza de todas as sensações de bem-estar

que o paraíso lhe oferece.

Eles se deparam com São Tomás de Aquino, que logo percebe que Dante ainda

possui algumas dúvidas no que se refere a São Domingos e a Salomão. Entretanto,

primeiramente, ele narra a Dante a trajetória de vida de São Francisco de Assis e sobre

sua ordem, a dos Franciscanos. Depois, discorre ainda sobre São Domingos e a sua

83

ordem, a dos Dominicanos e, em relação a Salomão, ele somente o cita, pois somente

em cantos posteriores discorrerá sobre o rei judeu.

São Tomás afirma a Dante que a Providência divina enviou a Terra dois santos,

Francisco e Domingos, para que eles promovessem o bem pela Igreja. Porém, a ordem

dos Dominicanos afastou-se das regras principais da Igreja, diferenciando-se ainda mais

dos Franciscanos. Todavia, Dante mostra que no céu, estas diferenças já não existem

mais.

Dante descreve ainda a figura de São Francisco, como um heroico combatente,

enviado pela Providência divina. Sua luta foi contra a corrupção advinda das riquezas da

Igreja e dos homens e por isso tinha como principal voto a pobreza, que na realidade era

uma riqueza espiritual, com valor para Deus e não para o Homem.

Já o canto XXXIII do paraíso mostra São Bernardo finalizando sua oração em

louvor à Virgem Maria e, nesta oração, em um segundo momento, ele pede que Dante

consiga obter a graça da visão de Deus, ou seja, da Luz Divina.

Dante consegue alcançar tal graça e vê a Trindade santa. Neste meio tempo, ele

observa três círculos de cores diferentes, mas que ocupam o mesmo espaço, é a

Trindade. Esta se apresentou a ele e, depois de satisfeita a vontade de Dante, Deus passa

a controlar sua vontade de acordo com a lei universal do Amor.

84

3. SOBRE O SAGRADO E O PROFANO NA DIVINA COMÉDIA

Neste capítulo será tratada a questão do sagrado no período medieval, ou seja, no

momento em que Dante Alighieri escreve seu poema, apontando para as diferenças

existentes entre esse período e o período no qual Alberto Martini realiza a sua edição

ilustrada da obra dantesca.

Este estudo faz-se importante, uma vez que, como há uma grande diferença entre

os séculos XIV e XX, DA, na composição de sua obra, estava impregnado de outros

modelos de moral a serem seguidos, obviamente, já bastante distintos no momento em

que AM ilustrou a obra. Sendo assim, observa-se a dificuldade no entendimento do

momento histórico vivido por DA, tendo em vista o avanço de leis e regras sociais.

A discussão acerca do que venha a ser o Sagrado e o Profano é bastante rica e

variada, interessando a uma série de saberes da teologia à antropologia. Corrobora ainda

para essa questão o fato de os conceitos ligados a estas palavras terem sofrido alterações

com o passar dos séculos, tendo em vista que, com o avançar das tecnologias e,

principalmente, do pensamento do Homem, o mundo passa sempre por um processo de

transformação. Logo aproximação dessa argumentação, a priori, não é nada fácil, tendo

em vista que o foco desta tese é tratar destes temas a partir da Divina Comédia.

Na época de DA, no século XIV, tinha-se uma Igreja extremamente rígida, com

sua moral e conduta, apesar de ser notório que nem sempre essa conduta moral era

seguida, mesmo dentro da Igreja. Deste modo, DA possuía uma forma particular em

relacionar pecados e beatitudes, advinda de sua educação dentro deste modelo Católico

daquela época.

Logo, percebe-se em seu poema, que a base de sua escrita é ligada à ciência

teológica ou jurídica daquela época, tendo como método a discussão e a argumentação

racional, com base na escolástica. Dante como indicado no capítulo segundo vivenciara

cada uma daquelas situações históricas descritas na DC, como, por exemplo, a

corrupção do então Papa Bonifácio XIII. Por isso, como autor conseguiu separar bem

aqueles personagens que para ele mereciam a salvação daqueles que mereciam

punições, como base nas noções de profano sagrado, sendo os pecados e as beatidudes

85

eternas, ou ainda, alguns pecados podendo ser purgados em prol de uma purificação da

alma.

A aproximação, de uma breve definição do que seria o Sagrado é encontrada em

Eliade (1992: 13) que informa que “Ora, a primeira definição que se pode dar ao

sagrado é que ele se opõe ao profano”. Logo, será por meio da oposição entre os dois

termos que se poderá chegar ao entendimento de um e outro termo. O profano, então,

tem por significado aquilo que transgride as regras sagradas, tornando-se contrário ao

respeito que deve ser dado aquilo que é sagrado. Deste modo, numa época medieval,

onde tudo que contradizia ou contrariava o que a Igreja tinha como dogma era pecado, é

possível entender porque tantos dos pecados, que nos dias atuais nem são considerados

pecados, eram punidos com tanta severidade anteriormente.

O sagrado é, então aquilo que tem um valor de importância para quem tem fé, e

DA, tendo sido criado dentro da fé Católica, apresenta, na sua visão, aquilo que para ele

era sagrado ou não. Desta maneira, colocou-se numa posição de juiz, ou de Deus, se é

possível fazer esta comparação, já que era ele, como poeta, a julgar cada personagem de

acordo com seus pecados, tendo em mente, ainda, que existiam diversos personagens

com suas histórias reais ali narradas e avaliadas.

Eliade acrescenta ainda sobre este assunto que

[...] os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que

o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao

filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões

possíveis da existência humana. [...] O homem das sociedades tradicionais é,

por assim dizer, um homo religiosus, mas seu comportamento enquadra-se no

comportamento geral do homem e, por conseguinte, interessa à antropologia

filosófica, à fenomenologia, à psicologia. (ELIADE: 1992, p. 15)

A esse propósito, pode ser observado que os termos sagrado e profano têm

bastante relação com os questionamentos da suposta essencialidade humana natural ou

cultural de a natureza humana estar ligada ou não às experiências religiosas e, portanto

ao sagrado, como é o caminho indicado na Divina Comédia desse ‘homo religiosus’.

86

DA mostrou, por meio dos pecados e das beatitudes descritos na DC, os

benefícios de se viver uma vida correta e os malefícios de seguir erroneamente, visto

que:

[...] o homo religiosus acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o

sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando e o

tornando o real. Crê, além disso, que a vida tem uma origem sagrada e que a

existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é

religiosa, ou seja, participa da realidade. [...] Reatualizando a história

sagrada, imitando o comportamento divino, o homem instala-se e mantém-se

junto dos deuses, quer dizer, no real e no significativo. (ELIADE: 1992, p.

97)

Logo, tem-se que essa realidade absoluta, para o homo religiosus é a busca pela

perfeição no seu caminho, tentando fugir das tentações e dos pecados para chegar o

mais próximo de Deus. Dante, como personagem de sua maior obra, é esse tipo de

homem, aquele que busca essa salvação para si e para a humanidade daquela época.

Percebe-se, então, que a questão do sagrado e do profano tem grande

importância na Divina Comédia: basicamente ela é fundamentada nestas questões, em

que, tudo que se faz em vida tem um reflexo no outro mundo, o dos mortos, conforme já

assinalado anteriormente nesta Tese.

O catecismo da Igreja Católica aponta que são sete pecados capitais: a soberba, a

gula, a avareza, a ira, a luxúria, a preguiça e a inveja. Entretanto, para esta investigação

serão estudados somente três deles, que são: a luxúria, a soberba e a avareza, contrários

diretamente às beatitudes da castidade, humildade e generosidade, que são três das

qualidades mais defendidas pela Igreja, além de serem aquelas pregadas por São

Francisco de Assis. Para um melhor entendimento, esses pecados e beatitudes possuem

relação direta com as ilustrações dos cantos a serem analisados mais adiante. A

luxúria é um dos pecados considerados dos mais tentadores e sua parte positiva é o

prazer. Não é que ela seja completamente um pecado: ela torna-se pecado quando se

transforma em vício, em excesso. De acordo com Savater:

[...] o limite da luxúria é o ponto em que causa dano a outro. Fazer sexo com

crianças é ruim pelo dano que lhes faz. Não é mau desfrutar, mas é, sim,

censurável causar mal a outro. Antes se condenava o prazer, e agora o dano e

87

a dor que são produzidos. É a visão progressista dos pecados. (SAVATER:

2005, p. 101)

Esta citação, até mesmo forte, aponta para um caso extremo, aquele do sexo

praticado com crianças. Contudo, se tal pecado for transportado para a época medieval

de DA, este fato seria absurdo, ademais como o é também hoje. Sabe-se que este pecado

foi apresentado por DA na DC, como um caso de traição, aliás, de suposta traição,

envolvendo Paolo e Francesca, no canto V do Inferno. Ou seja, o ato do adultério,

naquele momento histórico, era tão pecaminoso, sendo colocado no inferno, que quer

dizer que estas almas não teriam nem ao menos a possibilidade de se purgarem disso,

eram verdadeiros condenados.

Dentro dos limites da religião Católica, a qual DA professava, dizia-se, segundo

Savater (2005: 102) que “[...] a educação católica impunha a frase: “Isso não se faz

porque é pecado””. Então, não somente para este pecado, como para todos os outros, a

Igreja era muito rígida e DA seguia esses preceitos.

É preciso deixar claro ainda que este pecado foi subdividido em outros pela fé

cristã, e são eles: a polução voluntária, a sodomia, a fornicação, o rapto, o estupro, o

bestialismo, o incesto, o sacrilégio, e o adultério.

Mas, por que esse pecado é tão repudiado pela Igreja? A resposta é simples: a

cópula, para a Igreja, é a maneira de se reproduzir a espécie e nada mais e, portanto, os

atos de prazer relacionados ao sexo são extremamente condenáveis. Savater afirma a

esse respeito que:

Deve-se renunciar ao sexo como instrumento de dominação, imposição,

maus-tratos e exigência, mas não se abster dele como elemento prazeroso.

[...] A castidade só é boa por aquilo a que se renuncia, então não existe mais

virtude do que “ter deixado de...”. [...] a única coisa que dá prestígio à

castidade é aquilo que não se faz, quer dizer, a não-ação. (SAVATER: 2005,

p. 104)

Ou seja, no episódio mencionado anteriormente, os personagens Paolo e

Francesca, não teriam como ser julgados por DA de outra maneira, uma vez que eles,

supostamente, enquadravam-se nesta situação de adultério.

88

O segundo pecado estudado é a soberba, ou seja, aquele que “é, basicamente, o

desejo de colocar-se acima dos demais” (SAVATER: 2005, p. 35). A soberba é

considerada um pecado supra-capital, a escolástica o situava como o primeiro

na lista dos vícios capitais. Isso porque princípio básico do pecado é o desvio

da reta da apropriação do bem, que é a semelhança com a bondade divina.

Quando, ao contrário dessa semelhança, ocorre a busca da desordem, da

distorção da excelência divina é a soberba. Isso porque a soberba, é entendida

como a recusa da superioridade de Deus, que fornece uma norma, a sua

recusa é a projeção da soberba ou de qualquer outro pecado aliado a esta. A

soberba, conforme afirma (AQUINO, Santo Tomás de. Sobre o Mal. Tradução

Carlos Ancêde Nougué; Apresentação Paulo Faitanin. Rio de Janeiro: Sétimo Selo,

2005. Tomo I. ________. Suma de Teología. Tradução José Martorell Capó. Madrid:

Biblioteca de Autores Cristianos, 2001. v. I.) é mais do que um pecado capital é a

matriz de todos os pecados.

Neste pecado também existem as gradações, que vão desde pequenos momentos

de soberba até os mais extremos, quando se humilha o outro. Uma das principais

características do soberbo na DC é exatamente aquela de sofrer aquilo que ele provocou,

ou seja, a vergonha. Eles têm profundo horror de passarem vergonha, no entanto,

adoram envergonhar.

A maneira mais simples de evitar a soberba é tentar, ao máximo, ser realista.

Comparar-se ao seu semelhante e ver que é igual a ele é demais para o soberbo, porém,

para aquele que quer vencer este vício, é um caminho, pois se está chegando perto do

que é a humildade, onde todos são iguais perante o ser maior que é Deus.

Já o terceiro pecado, a avareza, consiste em dar mais importância ao dinheiro do

que a qualquer outra coisa. Uma pessoa avara não consegue dar valor à relação humana,

pois só pensa em guardar seu dinheiro, como forma de acúmulo e não para usá-lo em

algum momento. Savater afirma que:

O avaro era aquele que levava a poupança a situações grotescas. Não atendia

bem a seus seres queridos, nem a si próprio. A única coisa que o interessava

89

era acumular um capital que não usava para nada. A característica do avaro é

a de esterilizar o dinheiro, que, em lugar de estar em movimento, fica parado.

Dessa maneira ele transforma um elemento fluido e útil em algo totalmente

inservível. (SAVATER: 2005, p. 59)

O termo avareza, de acordo com a significação originária, se refere a

uma desordenada ambição de dinheiro. Logo, por ser o dinheiro uma matéria

específica, a avareza é também um vício específico, conforme a imposição

originária dessa palavra. É ainda o vício da avareza tomado como

desordenada cobiça de quaisquer bens. Sendo assim se trata de um um pecado

genérico, pois todo pecado é um voltar-se desordenadamente a algum bem

passageiro, conforme em Agostinho (Super Gen. XI, 5), que afirma ser a

avareza um pecado ‘genérico’, visto que se deseja mais do que o devido

alguma coisa, ou ainda sendo avareza quando esse desejo se refere

especificamente usual amor ao dinheiro.

Pode-se afirmar também que a usura faz parte da avareza, uma vez que os

usurários são aqueles que usam do dinheiro para conseguir ainda mais dinheiro. Sabe-se

que a Igreja, desde sempre foi bastante rígida com os usurários, condenando-os. A usura

é um fator muito sério, visto que ela produz a miséria, que por sua vez ocasiona a fome

e até mortes.

O pecado da avareza é também reconhecido a partir de sue oposto, ou seja, da

beatitude da generosidade ou mais ainda à falta de justiça, em reter ou receber algo em

bens e dinheiro.

Assim, depois de apresentarmos o que é o sagrado e o profano na visão de DA e

quais são os pecados a serem estudados nesta tese, é imprescindível apresentar a forma

como DA, em seu poema, realiza o diálogo entre Dante personagem e seus outros

personagens. Esse diálogo ocorre por meio da memória deles.

Sabe-se que no inferno, todas as memórias de vida ainda estão preservadas na

mente das almas que residem lá e que, no purgatório, antes da chegada ao paraíso,

atravessam pelos rios Letes e Eunoé, onde são purificadas, preservando, apenas, aquelas

90

memórias positivas do que vivenciaram. Desta maneira, o personagem Dante fala com

várias almas trazendo à tona informações sobre eles. É o que declara Weinrich:

O poema trata de uma imaginária errância pelos três reinos do Além –

Inferno, Purgatório e Paraíso. Portanto, essa peregrinação é uma visita aos

mortos; o próprio Dante é o único vivo com acesso a esse outro mundo.

Consequentemente, é também o único a carregar todo o peso dessa lembrança

dos mortos, para que nós, os vivos deste mundo, sejamos informados de tudo.

(WEINRICH: 2001, p. 50)

Tal citação permite compreender a importância da questão da memória para esta

obra poética. Segundo Santo Agostinho (2011: 218) são nos “vastos palácios da

memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda

espécie”. Ou seja, a qualquer momento, é possível acessar esse palácio de memórias,

porém, como já mencionado, DA deixa isto bem claro enquanto as almas estão no

inferno e em parte do purgatório.

Este rio Letes é de grande importância para aquelas almas que já estão em um

estágio de evolução e necessitam esquecer-se de determinados momentos de suas vidas

terrestres, é o que afirma Weinrich:

[...] “Lete” (ele ou ela) é sobretudo nome de um rio do submundo, que

confere esquecimento às almas dos mortos. Nessa imagem e campo de

imagens o esquecimento está inteiramente mergulhado no elemento líquido

das águas. Há um profundo sentido no simbolismo dessas águas mágicas. Em

seu macio fluir desfazem-se os contornos duros da lembrança da realidade, e

assim são liquidados. (WEINRICH: 2001, p. 24)

Esta afirmação confirma o que foi mencionado anteriormente. Tal fato será

explicado, posteriormente, na análise do canto com a ilustração. Um fator de

relevância ainda é a questão da reevocação, que é o esforço realizado pelas almas para

lembrar o que ocorreu em suas vidas. De acordo com Rossi (2010: 16) isso é uma

escavação da memória, onde ela rememora o que viu ou experenciou.

Assim, é possível ter uma melhor compreensão em relação aos diálogos que irão

ocorrer entre Dante e os outros personagens de seu poema. Dando continuidade, segue a

visão de Alberto Martini sobre o sagrado e o profano na obra poética.

91

3.1. A ilustração do Sagrado e do Profano do poema dantesco na visão de Alberto

Martini

Nesta subseção será apresentada a visão de Alberto Martini sobre o sagrado e

profano no poema dantesco, já que sua técnica para a realização das ilustrações foi

apresentada no capítulo 2. Será mostrada ainda a questão teórica acerca da análise das

ilustrações, tema da próxima subseção.

Martini quando começou seu trabalho de ilustração da Divina Comédia, já no

início do século XX, tinha uma visão de mundo, obviamente, bastante diferenciada

daquela de Dante, tendo em vista o tempo que os separava, afinal, eram decorridos já

seis séculos.

Em todo esse tempo, a sociedade foi se modificando e muitos dos dogmas

católicos já haviam sido alterado ou não eram mais tratados com tanta rigidez. Logo,

para um pintor e ilustrador, ler aquele poema e conseguir se aproximar de um universo

tão distante era uma questão complexa.

Martini não era um homo religiosus, porém diferenciava-se da maioria dos seus

contemporâneos neste sentido, pois acreditava em Deus e, por este motivo, não se

enquadrava nos modelos do Surrealismo, como já mencionado anteriormente. O mundo

em que AM vivia era um mundo dessacralizado, como declara Eliade em:

[...] a dessacralização caracteriza a experiência total do homem não religioso

das sociedades modernas, o qual, por essa razão, sente uma dificuldade cada

vez maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das

sociedades arcaicas. (ELIADE: 1992, p. 14)

Com esta citação é possível confirmar a dificuldade do processo pelo qual AM

passou, para transporta-se do século XX para o XIV, haja vista tantas mudanças, não

somente no sentido religioso, mas da vida da sociedade em si. Na época de Martini, o

sagrado era um obstáculo, diferentemente do que se observava em Dante; já o profano

era o resultado desta dessacralização da existência.

Pode-se afirmar, de acordo com Eliade (1992: 98) que “em outras palavras, o

homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do

92

homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos”. É bastante clara esta

situação na época de Martini, tendo em vista que não se buscava a religião como na

Idade Média, e, portanto, afastava-se dela e de seus dogmas. Todavia, estes preceitos

não eram esquecidos: somente não faziam sentido para aqueles que não acreditavam.

Assim, tem-se um AM que, dentro de seu contexto histórico, diferenciava-se dos

demais, porque ainda se ligava a uma estrutura de dogmas que o auxiliaram na

compreensão do poema dantesco. E não somente isto. Como visto no segundo capítulo,

Martini se identificava bastante com a história de Dante, fato que os aproximou ainda

mais. Decorrente disto é que a questão do sagrado e do profano para AM foi

apresentada com as minúcias apresentadas por DA no poema.

Em sua versão da DC Alberto Martini utilizou-se da técnica do nanquim, que

consiste em um material corante preto, oriundo da China, composto por nanopartículas

de carvão suspensas em uma solução aquosa. Com esse material, ele preencheu o fundo

e, para a representação das formas, utilizou a ilustração com alguns pontos em

sombreado e outros onde há incidência da luz, fazendo com que o observador consiga

perceber a iluminação dentro do desenho.

Além desta técnica que, para a época de Martini, era considerada extremamente

difícil, ele utilizava-se ainda de um outro recurso: o da legenda, bastante explorado por

ele, e que aponta para a necessidade de uma explicação que ultrapassava os limites da

leitura visual (da ilustração). Assim, Santaella e Nöth (2008: 55), citam Moles (1978:

22), o qual afirma que “a legenda comenta a imagem que, sozinha, não é totalmente

entendida. A imagem ou a figura comenta o texto e, em alguns casos, a imagem até

comenta sua própria legenda.”.

Entende-se, desta maneira, que, a legenda usada por Martini comenta a

ilustração e, além disto, a completa, ou seja, elas estão estritamente vinculadas,

tornando possível para o observador, um primeiro entendimento global e um posterior

entendimento específico. A imagem vai revelar ao observador, primeiramente, uma

mensagem, cuja substância é linguística, mas que possui suportes, que são as legendas,

as etiquetas etc. Por meio da legenda, que direciona o observador para um determinado

ponto, o ilustrador não deixa prováveis dúvidas em relação à leitura imagística.

93

No século XIX, quando AM nasceu, havia já uma tradição na Itália, em que a

pintura ou a ilustração serviam como comentário à literatura; elas abriam o campo das

possibilidades de entendimento das imagens que, com a leitura dos textos, tornava-se

mais específica, de acordo com Eco (1989: 72).

Ao se juntar a ilustração e suas legendas ao poema, estes formam uma tríade que

se conecta à maior parte do poema, uma vez que ele não trata somente de uma questão

específica, porém, configurando-se como uma escolha do ilustrador. Santaella e Nöth

(2008: 54), citam a diferenciação feita por Kalverkämper (1993: 207) sobre a relação

texto-imagem, em que ele apresenta três casos diversos: o primeiro, quando a imagem é

inferior ao texto, somente sendo um complemento dela, ou seja, é uma imagem

redundante; a segunda, a imagem é superior ao texto, isto é, ela é uma imagem

informativa; e a terceira, a imagem e o texto possuem a mesma importância, quer dizer,

se completam, sendo chamada então de complementaridade.

Com base na citação de Santaella e Nöth (2008: 53) que indicam que “a relação

entre a imagem e seu conteúdo verbal é íntima e variada. A imagem pode ilustrar um

texto verbal ou o texto pode esclarecer a imagem na forma de um comentário”, é

possível inferir que, por vezes, o texto verbal e a imagem são independentes entre si;

porém, observa-se também que eles podem ser dependentes um do outro, no caso de

não ser possível o entendimento completo da imagem sem a leitura prévia do texto.

Sabe-se que muitos teóricos defendem a ideia de que a imagem visual depende

sempre daquela textual. Isso porque a abertura interpretativa da imagem pode ser

mutável, específica, mas pode ser ainda geral. Assim, a linguagem verbal por detrás da

imagem tem muita importância, haja vista a polissemia da própria imagem, como afirma

Barthes (1990: 32): “[...] toda imagem é polissêmica e pressupõe, subjacente a seus

significados, uma ‘cadeia flutuante’ de significados, podendo o leitor escolher alguns e

ignorar outros”. Para o leitor, ou o observador, é de extrema importância, para o

entendimento total, conhecer o texto escrito; porém, não é impossível o entendimento

sem uma leitura prévia do mesmo, sendo possível uma leitura da imagem diversificada

em relação ao texto, devido à citada polissemia da imagem.

94

Marin, citado por Santaella e Nöth (2008: 101), trata de uma questão de grande

relevância para a interconexão entre o texto visual e o escrito, que é o papel da

linguagem na análise pictorial. Para ele, “o abismo aparente entre o objeto visual de

estudo e sua articulação verbal, [...], tem como ponte seu axioma da ‘indissociabilidade

do visível e do nomeável como fonte de significado’.”. Nesta citação, em que ele afirma

que somente a verbalização possui um significado, observa-se que a ilustração também

é uma linguagem, porém, visual, e isso nos permite afirmar que ela também possui um

significado. Ou seja, apesar de não ser escrita, ela também possui seus significados por

meio da descrição visual. Ele ainda assevera que “[...] é o discurso verbal sobre a

pintura que ‘permite sua articulação e a constitui como um todo significante’.”.

Levando-se em consideração que as imagens são analisadas também como linguagem,

esta citação não procede desta forma, uma vez que a ilustração pode muito bem ser lida,

por meio de sua descrição pictórica sem nenhum tipo de linguagem verbal; neste

sentido, a linguagem verbal somente acrescenta um maior entendimento para o

observador.

Portanto, a verbalização é apenas um dos meios de linguagem que se pode

utilizar. Já em relação à indissociabilidade entre o visível e o nomeável, nota-se que

nem sempre isso ocorre, visto que nem toda imagem necessita estar associada a um

texto ou vice-versa. Assim tem-se que “o mundo dos significados não é nada além do

mundo da linguagem”(Santaella e Nöth, 2008: 101), e por linguagem, aqui, entendemos

também a linguagem visual.

Santaella e Nöth (2008: 57), em seu livro, citam Schapiro (1973), no momento

em que ele trata da questão da pintura medieval. Assim, ele assevera que “[...]

ilustrações de texto eram ou ‘reduções extremas de um conto complexo’, ou ‘uma

extensão do texto, através do qual detalhes, figuras e um contexto situativo, que faltam

no texto, são acrescentados’.” Afirma ainda que “a ilustração se refere tanto ao sentido

literal como ao sentido espiritual do texto”. Contudo não é possível concordar que a

visão que hoje se tem das ilustrações sejam a redução de um conto complexo, como

eram na Idade Média. A este ponto é verdadeiro afirmar que AM leva em consideração,

certas vezes, muito mais o sentido espiritual apontado por Schapiro que o próprio

sentido literal do texto dantesco.

95

Todavia, pode-se dizer sim que as ilustrações são uma extensão do conto, por

vezes complementando-o ou não, ou apenas referindo-se a ele, como escolhas

pessoais/autorais do artista. Um artista pode apenas selecionar parte daquiloo que

realmente deseja ilustrar ou que considera mais relevante para realizar seu trabalho,

levando em consideração os pontos descritos no texto, ou mesmo alterando-os em sua

totalidade, apresentando, deste modo, sua própria visão sobre a leitura. A esse respeito

Barthes declara que

[...] a imagem já não ilustra a palavra; é a palavra que, estruturalmente, é

parasita da imagem; essa inversão tem seu preço: nos moldes tradicionais de

“ilustração”, a imagem funcionava como uma volta episódica à denotação, a

partir de uma mensagem principal (o texto), que era sentido como conotado,

já que necessitava precisamente de uma ilustração. [...] Ontem, a imagem

ilustrava o texto (tornava-o mais claro); hoje, o texto torna a imagem mais

pesada, impõe-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação; no passado,

havia redução do texto à imagem; no presente, há uma amplificação

recíproca. (BARTHES: 1990, p. 20)

Nesse sentido, percebe-se o que foi mencionado anteriormente, ou seja, a não

necessidade do texto escrito para o entendimento da imagem, mas sim de uma

integração entre ambas as linguagens.

No caso da Divina Comédia, seu texto, necessariamente não necessita ser

ilustrada para ser compreendida. Contudo, as ilustrações feitas sobre ela proporcionam

uma nova maneira de vê-la, e de lê-la, uma vez que, através da leitura formam-se

imagens mentais que podem ser completamente diversas daquelas que foram propostas

pelos artistas, já que cada um possui o seu próprio olhar e interpreta o texto a seu

próprio modo. Desta forma, as ilustrações ajudam sim em uma melhor maneira de

(re)interpretar, mas não são “necessárias” para este entendimento, já que realizamos

nossas próprias imagens quando lemos um texto.

Nota-se ainda que as ilustrações de Martini são muito simbólicas, tendo em vista

que o poema também é extremamente simbólico e alegórico. Em relação a isto Eco

afirma que

A alegoria transforma o fenômeno num conceito e o conceito numa imagem,

mas de tal modo que o conceito na imagem deva ser considerado sempre

circunscrito e completo na imagem, e deva ser dado e expresso através desta.

96

O simbolismo transforma o fenômeno em idéia, a idéia numa imagem, de tal

modo que a idéia na imagem permaneça sempre infinitamente eficaz e

inacessível e, ainda que pronunciada em todas as línguas, fique todavia

inexprimível. (ECO: 1989, p. 209)

Deste modo, ambos os recursos são utilizados, porém, o verdadeiro simbolismo

é verificado quando o elemento específico representa aquele mais geral. Por ele mesmo,

o símbolo não identifica as coisas às quais se refere, entretanto, a relação existente entre

o símbolo e o objeto a que se refere é estabelecida através de uma associação de ideias

que fazem com que ele seja interpretado.

Então, pode-se averiguar, de acordo com as definições de imagem de Santaella e

Nöth, que uma imagem simbólica, apesar de ter as características de uma imagem

figurativa, representa algo de caráter abstrato e geral ao mesmo tempo. (ANO, p. XX) A

imagem figurativa é aquela que se materializa no plano bidimensional ou que cria no

espaço tridimensional uma cópia fiel de objetos já existentes.

Sendo uma imagem simbólica, ainda de acordo com os autores, tem-se, na

questão do tempo, que as imagens figurativas e as simbólicas são fortemente e

fracamente marcadas pelo tempo, sendo esta última caracterizada até pela

atemporalidade.

Com isto, a imagem simbólica é marcada ainda com as características daquela

figurativa, ela é uma imagem que traz consigo um referencial que aponta para uma

situação existente e, tal situação, é marcada ainda por uma historicidade própria.

Para as representações, os artistas utilizam-se de dispositivos que, segundo

Santaella e Nöth (2008: 76) são “[...] o meio através do qual a imagem é produzida,

transmitida e apresentada ao receptor. Os dispositivos são históricos e se transformam

historicamente”. No caso das ilustrações aqui estudadas, seus dispositivos são uma

imagem registrada sobre um suporte fixo, diferentemente do cinema, do vídeo, etc., que

possuem um movimento e só podem se desenvolver no tempo.

A depender do dispositivo utilizado, o tempo irá agir de maneira diversificada. A

percepção do espaço/tempo na ilustração é notada por meio do tempo intrínseco, no

97

qual a imagem é produzida, transmitida e apresentada ao receptor; neste tempo, leva-se

em consideração o tempo da realização da imagem, de sua enunciação e da estrutura da

mesma, ou seja, é uma imagem constituída de tempo.

Já o tempo extrínseco leva em consideração o tempo exterior à imagem, ou seja,

o tempo que age sobre ela. Deste modo, as imagens ficam temporalmente marcadas

quando são figurativas ou não-marcadas quando são simbólicas ou abstratas.

Até o presente momento, foi descrita a ilustração e seus componentes técnicos

importantes para o entendimento da constituição da imagem. Todavia, parte

fundamental desta análise é o espectador, pois é através do olhar dele que tal descrição

será apreendida. Tem-se, deste modo, que a percepção visual deste

espectador/observador é um processo que, de acordo com Aumont

[...] é o processamento, em etapas sucessivas, de uma informação que nos

chega por intermédio da luz que entra em nossos olhos. Como toda

informação, esta é codificada [...]. Falar de codificação da informação visual

significa, pois, que nosso sistema visual é capaz de localizar e de interpretar

certas regularidades nos fenômenos luminosos que atingem nossos olhos.

(AUMONT: 2008, p. 22)

Esta citação aponta para o aquilo se consegue perceber e de que maneira é

percebido. Ou seja, é a luz que permite ativar nossos sistemas visuais para que se

consiga ver tais imagens e, posteriormente, analisá-las. Sabe-se, contudo, que além da

capacidade de percepção, outros fatores como religião, crenças, afetos, cultura, classe

social, entre outros, são muito importantes para o entendimento e a interpretação

imagética.

Nota-se que os elementos da percepção, que são bordas, cores e a luminosidade,

devem ser observados juntamente, uma vez que a percepção de alguns afeta a dos

outros. Sendo assim, quando se olha uma imagem, não se observa, primeiramente, o

global, mas são realizadas fixações sucessivas, que formam um todo. A esse respeito

Aumont (2008: 68) declara que “[...] a imagem é percebida, quase de modo automático,

por uma interpretação em termos espaciais e tridimensionais.”.

98

Entretanto, existe um problema em relação à percepção da forma da imagem,

uma vez que ela pode tornar-se bastante complexa quando é abstrata, e quanto mais

abstrata, mais simbólica; assim, o entendimento se processa de acordo com a bagagem

intelectual do observador. Retomando a questão da relação entre texto e imagem, para

que esta relação aconteça, são necessários alguns conceitos que facilitam o

entendimento dos mesmos. Sabe-se que uma obra literária possui, necessariamente, uma

situação de enunciação. Logo, a cena de enunciação é um processo interior a ela, sendo

dividida em cena englobante, cena genérica e cenografia. Dentro de um texto, têm-se as

três cenas.

A cena englobante é o tipo de discurso. Ela diz sobre o que trata a cena, situando

o leitor para interpretá-lo. Todo enunciado literário possui uma cena englobante

literária, segundo Maingueneau (2006: 251). Deste modo, a cena englobante não

consegue especificar as atividades verbais do texto, uma vez que somente o identifica

para o leitor, explicando se é, por exemplo, um texto político ou religioso.

Para uma melhor compreensão do texto é necessário entender o que é a cena

genérica, pois é ela que mostra quem são os participantes, o lugar, o tempo, ou seja, a

maioria as informações necessárias para a leitura do texto.

Já a cenografia é, segundo Maingueneau (2006: 252) “[...] a cena na qual o

leitor vê atribuído a si um lugar é uma cena narrativa construída pelo texto, uma

‘cenografia’.”. Isso quer dizer que, em muitas ocasiões, o texto chega ao leitor por meio

de sua cenografia e não de suas cenas englobante e genérica. Deste modo, a cenografia

não é somente uma base, uma forma de transmitir conteúdos, mas sim o fundamento da

enunciação.

Com isto, será possível averiguar todas as quatro ilustrações com base no poema

dantesco, relacionando as cenas e a imagens de autoria de AM. Dando prosseguimento

ao capítulo, segue a próxima subseção com as análises.

99

3.2. As cenas do Sagrado e do Profano na Divina Comédia

As análises realizadas abaixo apresentam a composição das ilustrações, ou seja,

tudo aquilo que o observador consegue ver. A técnica utilizada pelo ilustrador para a

realização delas já foi descrita no subcapítulo anterior, deste modo sendo dispensável

aqui. Posteriormente a isto, é feito um estudo mais minucioso, verificando os pontos em

que o artista retoma a obra literária, e, por último é analisada a representação da questão

religiosa na ilustração.

Inferno XXXIV

A ilustração do Canto XXXIV do Inferno apresenta Lúcifer ao centro da

imagem, com suas três cabeças e suas seis asas de morcego. Dentro da boca da sua face

principal, a do meio, está Judas, o traidor de Cristo e nas outras duas Brutos e Cássio,

traidores de César e do Império. Desta sua boca do meio, escorre muita secreção, que

desliza pelo seu peito até chegar ao gelo, onde ele está preso dos pés atéa cintura. Seu

corpo é forte, musculoso, suas mãos e pés são grandes e com unhas pontiagudas, em

forma de garras.

Observa-se abaixo de seus pés um outro caminho, que é a subida ao purgatório,

onde se vê o sol e uma subida e lê-se a legenda Saímos voltando a ver as estrelas73

,

escrita de cabeça para baixo. Este detalhe refere-se especificamente à arquitetura do

mundo ultraterreno na concepção medieval. Nota-se ainda, acima da figura de Lúcifer, a

legenda em italiano, Lucifero.

No campo exterior à ilustração, no quadro de papel lê-se uma outra legenda:

Judeca – Vexilla regis prodeunt inferni – há um moinho que ao longo ao vento gira – O

imperador do doloroso reino – Três faces – por seis olhos chorava e por três queixos

mastigava – Judas Iscariotes – Brutos e Cássio – De velo em velo desce – volta como

73

Uscimmo a riveder le stelle

100

quem escale – O guia e eu –

subimos e saímos voltando a

ver estrelas74

. E ainda uma

seta indicando o sentido da

localização do purgatório.

Essas legendas

resumem todo o canto,

oferecendo ao leitor uma

carga muito grande de

informações a respeito do

poema. Elas resumem todo o

canto, desde o início até seu

último verso. Portanto, para

maiores informações a

respeito do canto, ver nos

anexos.

A profundidade desta

ilustração pode ser percebida

através dos efeitos de

iluminação e da perspectiva da crosta de gelo e da subida da montanha do Purgatório e

do mar, com o sol no horizonte, ao fundo. O uso dos meio-tons e da superfície negra

chapada por detrás de Lúcifer conferem o ar de tenebrosidade necessário para a

representação de um demônio no inferno.

Observa-se a luz incidindo na figura do anjo caído, na parte superior da imagem,

e a luz do sol poenta na parte inferior, auxiliam o entendimento de ambas as cenas, fato

que, todavia, diferencia completamente as duas ambientações cenográficas. A luz

confere a eles níveis de dramaticidade diferentes: sobre a figura do demônio ela é

74

Giudecca – Vexilla regis prodeunt inferni – un molin che il vento gira parve – L’imperator del

doloroso regno – Tre facce – per sei occhi piangea e per tre menti maciulla – Giuda Scariotto – Bruto e

Cassio – Di vello in vello discese – Volse com uom che sale – Lo duca e io – Salimmo su e quindi uscimo

a riveder le stelle.

101

carregada da própria dramaticidade do inferno, e sobre a montanha do Purgatória se

atenua, indicando um local de mais serenidade em relação ao Inferno

Em relação aos simbolismos, além da figura central de Lúcifer, o anjo caído,

símbolo do mal por definição, vê-se a de Judas Iscariotes, um dos doze apóstolos de

Cristo, que o traiu por dinheiro, de Brutos que por sua ambição matou seu benfeitor e de

Cássio, traidor maior do império.

Todos esses símbolos nos mostram que neste último patamar do inferno estão

aqueles cujos pecados são imperdoáveis e que simbolizam o mal do mundo, o mal para

a Igreja e para a sociedade.

A questão religiosa apresenta-se aqui de forma bastante clara, uma vez que

Dante coloca todos os traidores juntos, porém, a maior traição de todas é a aquela contra

Jesus, concretizada por Judas. Esta é a razão pela qual o apóstolo se encontra na boca

principal do demônio

Martini imprime nesta ilustração seu traço autoral, apesar de sua ilustração ser

bastante aderente ao texto poético de Dante. Na mesma imagem ele consegue mostrar

como se passa da escuridão à luz utilizando diferentes planos e invertendo-os, quase que

a convidar o expectador a girar a imagem e admirá-la em posições diferentes.

Purgatório XII

A ilustração do canto XII do Purgatório apresenta um anjo no centro da imagem;

com seu pé direito ele pisoteia uma serpente, símbolo do pecado, e seu pé esquerdo se

apoia sobre o primeiro degrau de uma escadaria talhada nas encostas de uma montanha,

sugerindo um movimento de ascensão, movimento este reforçado pela posição da mão

esquerda que aponta em direção ao alto da escadaria. Está vestido com uma túnica Está

coberto por uma túnica possuindo duas asas e uma auréola, sendo que dentro dela existe

uma letra P. seus dois braços estão abertos como os de Cristo na cruz.

102

Nota-se, dentro da moldura a

inscrição que diz Beati pauperes spiritu,

e ainda, fora da moldura: um anjo – Os

braços abriu e as asas afinal – disse: os

degraus são perto ora venhais – bateu-

me de asas pela fronte – e os P serão –

como um serão se apague o resto à

frase75

.

Estas legendas ajudam no

sentido de que, uma pessoa que não

conhece o texto poético, não consegue

entender o sentido de se ter um anjo

com um P escrito em sua auréola.

Observa-se que a incisão de luz

no purgatório já é bem mais utilizada,

devido a não estar mais nas trevas,

assim, além do anjo ser bastante

iluminado, a escada por onde ele sobe também é e a inscrição acima dele também.

Nesta ilustração Martini restringiu bastante sua imagem para caracterizar o canto

de Dante. Porém, pela legenda, é possível dimensionar o quanto ele trouxe do canto,

que é o referente aos versos 73 a 123.

75

Piú era già per noi del monte volto

e del cammin del sole assai piú speso

che non stimava l'animo non sciolto,

quando colui che sempre innanzi atteso

andava, cominciò: «Drizza la testa;

75

Mas do monte nos era desoculto

e o caminho do sol mais se estendia

que o ânimo pensava não estulto,

quando o que sempre à frente ali seguia

atento, começou: «Levanta a testa;

75

Un angel – le braccia aperse e indi aperse l’ale – disse: venite qui son presso i gradi – mi battè l’ali

per la fronte – e i P saranno – come l’un del tutto rasi.

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non è piú tempo di gir sí sospeso.

Vedi colà un angel che s'appresta

per venir verso noi; vedi che torna

dal servigio del dí l'ancella sesta.

Di reverenza il viso e li atti adorna,

sí che i diletti lo 'nviarci in suso;

pensa che questo dí mai non raggiorna!»

Io era ben del suo ammonir uso

pur di non perder tempo, sí che 'n quella

matera non potea parlarmi chiuso.

A noi venía la creatura bella,

bianco vestito e nella faccia quale

par tremolando mattutina stella.

Le braccia aperse, e indi aperse l'ale:

disse: «Venite: qui son presso i gradi,

e agevole-mente omai si sale.

A questo invito vegnon molto radi:

o gente umana, per volar su nata,

perché a poco vento cosí cadi?»

Menocci ove la roccia era tagliata:

quivi mi batté l'ali per la fronte;

poi mi promise sicura l'andata.

Come a man destra, per salire al monte

dove siede la chiesa che soggioga

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99

não é mais tempo de ir em fantasia.

Vês acolá um anjo que se apresta

para vir até nós; e vê que torna

do serviço do dia a serva sexta.

De reverência o acto e o gesto adorna,

que em mandar-nos acima tenha agrado;

e pensa que este dia não retorna!»

Era eu a tal aviso habituado

que tempo não perdesse, e assim naquela

materia o seu falar não é cerrado.

A nós já vinha a criatura bela,

de vestes brancas na face qual

tremeluzindo matutina estrela.

Braços abriu e as asas afinal;

disse: «Os degraus são perto: ora venhais,

que mais fácil subir agora val’.

A tal convite vêm mui poucos mais:

ó gente humana, ao voo ao céu fadada,

porque é que a pouco vento logo cais?»

Levou-nos onde a rocha era talhada;

aí bateu-me de asas pela fronte;

então me prometeu boa jornada.

Como à direita, por subir o monte

Lá onde assenta a igreja que domina

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la ben guidata sopra Rubaconte,

si rompe del montar l'ardita foga

per le scalee che si fero ad etade

ch'era sicuro il quaderno e la doga;

cosí s'allenta la ripa che cade

quivi ben ratta dall'altro girone;

ma quinci e quindi l'alta pietra rade.

Noi volgendo ivi le nostre persone,

'Beati pauperes spiritu!' voci

cantaron sí, che nol dir'ia sermone.

Ahi quanto son diverse quelle foci

dall'infernali! ché quivi per canti

s'entra, e là giú per lamenti feroci.

Già montavam su per li scaglion santi,

ed esser mi parea troppo piú leve

che per lo pian non mi parea davanti.

Ond'io: «Maestro, di', qual cosa greve

levata s'è da me, che nulla quasi

per me fatica, andando, si riceve?»

Rispuose: «Quando i P che son rimasi

ancor nel volto tuo presso che stinti,

saranno come l'un del tutto rasi,

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A bem guiada sobre Rubaconte,

se modera a falésia que se empina

por escada já feita nessa idade

que caderno e medida certa afina;

tal se atenua a escarpa que este invade

do outro giro e abrupta se amontoa,

e os lados da alta pedra rasar á-de.

E nós voltando ali nossa pessoa,

“Beati pauperes spiritu!” vozes

melhor cantam que a fala o apregoa.

Ah, como são diversas estas fozes

das infernais! cá nos acolhe o canto

e lá se têm lamentos só, ferozes.

Já nós subíamos o escadório santo,

e já se parecia ser bem mais leve

do que no chão em que eu fora entretanto.

E eu então: «Mestre, diz que cousa deve

perder o peso em mim, que é nula quase

a fadiga que em meu andar se inscreve?»

Respondeu: «Quando dos P de apraze,

que ainda tens no rosto, que delidos

como um serão, se apague o resto à frase;

105

Enfim, o simbolismo referente a este anjo é o fato de ele dar os P, que significam

os sete pecados capitais e tirá-los, conforme a alma for avançando e livrando-se deles.

Dante personagem, neste caso, sentiu-se bastante leve quando descobriu que esta leveza

era oriunda da retirada de um dos P, o do pecado da soberba.

A auréola vista nesta ilustração é um halo circular que simboliza o céu, um

atributo dos anjos e dos santos. Suas asas emplumadas simbolizam a natureza celestial,

mostrando-se como mensageiros de Deus.

Percebe-se, portanto, que a seleção de Martini, dentro da sua leitura deste canto,

foi bastante particular, apontando para o que ele considerava mais importante dentro do

mesmo. Todavia, esta é uma ilustração que depende inteiramente de seu complemento

textual para a compreensão de que aquele anjo não é um simples anjo, e sim o anjo

guardião da DC.

Paraíso XI

A ilustração do Canto XI76

do Paraíso apresenta São Francisco de Assis,

centralizado na cena e em seu lado inferior esquerdo há uma mulher em posição de

oração. Ele está com suas vestes talares franciscanas rasgadas, ascendendo aos céus,

sendo possível verificar em suas mãos e pés os estigmas, as chagas de Cristo que ele

recebeu após uma visão no Monte Alverne e o lado transpassado, como representado

habitualmente, segundo a iconografia canônica.

Observa-se que a ilustração apresenta traços da originalidade martiniana que

fogem à representação iconográfica canônica de Giotto di Bondone (1267 – 1337), a

partir do ciclo de afrescos na Basílica de São Francisco de Assis (século XIV) na cidade

natal do santo. Facchinetti assevera que além de Giotto

76

Neste Canto, Dante encontra-se no Céu do Sol. Neste Céu encontra-se São Tomás de Aquino (1225 –

1274), com quem Dante dialoga a respeito de São Francisco de Assis (1182 – 1226) e de São Domingos

(1170 – 1221). Primeiramente, São Tomás conta a Dante sobre a vida de São Francisco e sobre a

fundação da ordem franciscana e depois trata da grandeza de São Domingos, fundador da ordem dos

dominicanos.

106

o pintor franciscano por excelência – o qual, como já notamos, pintou com a

sua escola, nos vinte e oito afrescos da igreja superior, os principais episódios

da vida de Francisco, enquanto naquela inferior tornou-se imortal pelas três

alegorias, assim merecidamente famosas da Castidade, da Obediência e da

Pobreza, e o seu Franciscus gloriosus que triunfa na ábside da basílica,

superado porém, me parece, em beleza artística por aquele de Sassetta —

antes dele, digo, já haviam trabalhado em Assis Giunta Pisano, Mino da

Turrita e Cimabue, enquanto seguia depois dele uma plêiade de artistas, de

Simone Memmi e Pietro Cavallini até Puccio Capanna, Giottino, Taddeo

Gaddi, Bonamico Buffalmacco, Stefano Fiorentino, Giovanni da Milano,

Nicola e Pier Antonio da Foligno, Francesco Vannozzo, Martelli, Giorgetto,

Martinelli, os Sermei, Adoni Doni, estes dois últimos de Assis, Spagna,

Domenichino, Lamparelli di Spello, Benedetto Fargnoni d'Imola, Giulio

Danti de Perugia, todos assaz renomados no campo da pintura. (FACCHINETTI, 1921, p. 523-524)

77

Já na opinião de Germain “Giotto, dando continuidade ao trabalho de seu

mestre, finalmente conseguiu se livrar dos entraves bizantinos e de fazer nascer a arte

italiana. O genial debutante realizou, ao mesmo tempo, uma manifestação

verdadeiramente franciscana de arte religiosa.” (GERMAIN, 1903, p. 54)78

Seguindo o

raciocínio do crítico de arte francês parece natural pensar na escolha de AM em

representar o santo de Assis como figura principal da ilustração do Canto XI.

O franciscano Facchinetti registra, também, que além de pintores, escultores e

arquitetos, também a poesia “de modo especial com o autor anônimo da Legenda

Versificata, com Dante Alighieri e Jacopone da Todi, quis depor as suas coroas de

77

Il pittore francescano per eccellenza — il quale, come già abbiamo notato, dipinse con la sua scuola,

nei ventotto affreschi della chiesa superiore, i principali episodi della vita di Francesco, mentre in quella

inferiore si è reso immortale per le tre allegorie, così meritamente famose, della Castità, dell'Obbedienza e

della Povertà, e il suo Franciscus gloriosus che trionfa nell'abside della basilica, superato però, a me pare,

in bellezza artistica, da quello del Sassetta — prima di lui, dico, già ad Assisi avevano lavorato e Giunta

Pisano e Mino da Turrita e Cimabue, mentre seguiva dopo di lui una vera pleiade d'artisti, da Simone

Memmi e Pietro Cavallini fino a Puccio Capanna, al Giottino, a Taddeo Gaddi, a Bonamico Buffalmacco,

a Stefano Fiorentino, a Giovanni da Milano, a Nicola e Pier Antonio da Foligno, a Francesco Vannozzo,

al Martelli, al Giorgetto, al Martinelli, al Sermei, a Adoni Doni, questi due ultimi d'Assisi, allo Spagna, al

Domenichino, al Lamparelli di Spello, a Benedetto Fargnoni d'Imola, a Giulio Danti di Perugia, tutti assai

rinomati nel campo della pittura. 78

Giotto, en continuant l’oeuvre de son maître, réussit enfin à se débarrasser des entraves bizantines et à

donner naissance à l’art italien. Le génial débutant réalisait en même temps une manifestation vraiment

franciscaine d’art religieux.

107

louros sobre a tumba do místico saltimbanco do bom Deus”. (FACCHINETTI, 1921, p.

524)79

Sua cabeça está coroada por uma auréola luminosa e abaixo de seus pés observa-

se outro grande foco luminoso; dentro desse halo, nota-se a legenda Ascese80

. Ao seu

lado, a mulher nua e de mãos postas em oração representa a Pobreza, mencionada em

outra legenda, escrita no canto inferior direito da ilustração Francisco e Pobreza81

Observa-se ainda, outra legenda, fora da ilustração em si que diz: Nascera no

mundo um sol – Francisco e Pobreza – o esposo – a esposa – De Cristo tomara o

último sigilo – dirigira-se ao Seu reino82

. Nesta legenda, Martini utiliza trechos de

alguns versos do canto, os quais não são necessários para a compreensão da ilustração,

já que se sabe quem são os personagens ilustrados; contudo, em pouquíssimas palavras,

consegue apresentar a história de São Francisco de Assis, o que, sim, auxilia no

entendimento contextual da cena.

79

In modo speciale con l'autore anonimo della Legenda Versificata, con Dante Alighieri e Jacopone da

Todi, ha voluto deporre le sue corone d'alloro sulla tomba del mistico giullare del buon Dio. 80

Ascesi. 81

Francesco e Povertà. 82

Nacque al mondo un sole – Francesco e Povertà – lo sposo - la sposa – Da Cristo prese l’ultimo sigillo

– si volse al Suo regno.

108

Essa ilustração apresenta

profundidade, porém, como o

fundo é monocromático e

chapado, na cor negra, Martini

direciona toda a percepção

visual para as figuras principais,

dando maior relevo a São

Francisco e menor à Pobreza.

A iluminação observada

na cabeça e nos pés de São

Francisco também é de grande

importância: ambos os focos de

luz apontam para o alto,

sugerindo o movimento de sua

ascese. Esta auréola simboliza a

potência divina, o ser divino que

ele se tornou, e como é

composta de raios, denota a sua

condição de beatitude. Este halo

circular simboliza o céu, sendo

atribuído aos anjos e santos.

No canto XI do Paraíso, Dante Alighieri descreve a vida de São Francisco por

meio das memórias de São Tomás de Aquino, dos versos 40 a 117, como pode-se

observar:

42

Dell'un dirò, però che d'amendue

si dice l'un pregiando, quale uom prende,

perch'ad un fine fuor l'opere sue.

Intra Tupino e l'acqua che discende

del colle eletto dal beato Ubaldo,

42

De um já direi, mas de ambos dois porém

dando louvour a um, qualquer se intende

porque a só fim a obra sua vem.

Entre Tupino e a água que descende

do monte eleito do beato Ubaldo,

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fertile costa d'alto monte pende,

onde Perugia sente freddo e caldo

da Porta Sole; e di retro le piange

per grave giogo Nocera con Gualdo.

Di questa costa, là dov'ella frange

piú sua rattezza, nacque al mondo un sole,

come fa questo tal volta di Gange.

Però chi d'esso loco fa parole,

non dica Ascesi, ché direbbe corto,

ma Orïente, se proprio dir vole.

Non era ancor molto lontan dall'orto,

ch'el cominciò a far sentir la terra

della sua gran virtute alcun conforto;

ché per tal donna, giovinetto, in guerra

del padre corse, a cui, come alla morte,

la porta del piacer nessun diserra;

e dinanzi alla sua spirital corte

et coram patre le si fece unito;

poscia di dí in dí l'amò piú forte.

Questa, privata del primo marito,

millecent'anni e piú dispetta e scura

fino a costui si stette sanza invito;

né valse udir che la trovò sicura

con Amiclate, al suon della sua voce,

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fértil a costa de alto monte pende,

onde Perugia tem frio e rescaldo

de Porta Sole; e por detrás lhe plange

por grave jugo Noccera com Gualdo.

E desta costa, lá onde mais frange

a rispidez, nasceu ao mundo um sol,

como este faz alguma vez no Gange.

E assim desse lugar quem termo arrolhe,

não diga Ascesi, fora curto e torto,

mas Oriente, por dizer de escol.

Não era ainda mui longe do orto,

que começou e fez sentir a terra

de sua grã virtude algum conforto;

que por tal dama, rapazinho, em guerra

do pai incorre, à qual, tal como à morte,

a porta do prazer ninguém descerra;

e então perante a sua espritual corte

et coram patre se lhe fez unido;

depois de dia em dia a amou mais forte.

Esta privada do anterior marido,

mas de anos mil e cem, mesuqinha e escura,

até ele ficou sem prometido;

pouco valeu ouvir que a achou segura

com Amiclas, ao som da sua voz,

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colui ch'a tutto 'l mondo fe' paura;

né valse esser costante né feroce,

sí che, dove Maria rimase giuso,

ella con Cristo pianse in su la croce.

Ma perch'io non proceda troppo chiuso,

Francesco e Povertà per questi amanti

prendi oramai nel mio parlar diffuso.

La lor concordia e i lor lieti sembianti,

amore e maraviglia e dolce sguardo

facíeno esser cagion di pensier santi;

tanto che 'l venerabile Bernardo

si scalzò prima, e dietro a tanta pace

corse e, correndo, li parve esser tardo.

Oh ignota ricchezza! oh ben ferace!

Scalzasi Egidio, scalzasi Silvestro

dietro allo sposo, sí la sposa piace.

Indi sen va quel padre e quel maestro

con la sua donna e con quella famiglia

che già legava l'umile capestro.

Né li gravò viltà di cor le ciglia

per esser fi' di Pietro Bernardone,

né per parer dispetto a maraviglia;

ma regalmente sua dura intenzione

ad Innocenzio aperse, e da lui ebbe

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esse que o mundo em medo desfigura;

pouco valeu ser tão firme e feroz,

que onde Maria ao pés ficou, ou abuso

na cruz com Cristo ela a chorar se pois.

Mas por que eu não pareça assaz escuzo,

Francesco e a Pobreza por amantes

entendas ora em meu falar difuso.

Sua concórdia e seus ledos semblantes,

amor e maravilha e doce esguardo

de santos pensamentos são constantes;

tanto que um venerável qual Bernardo

antes se descalçou e atrás da paz

correu, e a correr, jugou ser tardo.

Oh ignota riqueza! oh bem feraz!

E descalça-se Egídio com Silvestre

atrás do esposo, tanto a esposa apraz.

Então se vai o pai e aquele mestre

co a dama e co a família que se humilha

ligada assim por quem silício a destre.

Nem peito vil seus olhos encarquilha

por ser de Bernardoni geração,

nem por ser desdenhado maravilha;

mas realmente assim dura intenção

a Inocêncio abriu, e este lhe deu

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primo sigillo a sua religïone.

Poi che la gente poverella crebbe

dietro a costui, la cui mirabil vita

meglio in gloria del ciel si canterebbe,

di seconda corona redimita

fu per Onorio dall'Etterno Spiro

la santa voglia d'esto archimandrita.

E poi che, per la sete del martiro,

nella presenza del Soldan superba

predicò Cristo e li altri che 'l seguiro,

e per trovare a conversione acerba

troppo la gente, per non stare indarno,

reddissi al frutto dell'italica erba,

nel crudo sasso intra Tevere e Arno

da Cristo prese l'ultimo sigillo,

che le sue membra due anni portarno.

Quando a colui ch'a tanto ben sortillo

piacque di trarlo suso alla mercede

ch'el meritò nel suo farsi pusillo,

a' frati suoi, sí com'a giuste rede,

raccomandò la donna sua piú cara,

e comandò che l'amassero a fede;

e del suo grembo l'anima preclara

mover si volse, tornando al suo regno,

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primeiro selo a sua religião.

Quando a pobrinha gente então cresceu

e o foi seguir, cuja vida bendita

cantaria melhor glória do céu,

a coroa redime e deposita

Honório, e o Esprito Santo inspire-o,

na ânsia santa deste arquimandrita.

E pois que pela sede de martírio,

pregou Cristo e os que o seguem à proterva

presença do Sultão em país sírio

porque de mais azeda já observa

a gente à fé, por não ficar em vão,

ao fruto regressou da ítala erva

e entre Arno e Tibre em cru penedo então

foi ter de Cristo o último sigilo,

que dois anos seus membros levarão.

Quando ao que em tanto bem quis investi-lo

Aprouve de trazê-lo a tal mercê,

por se fazer humilde, de alto asilo,

a tanto irmão, que herdeiro justo é,

recomendou a sua dama cara

e encomendou que lhe tivessem fé;

e de seu colo a alma assim preclara

de voltar ao seu reino teve empenho,

112

117 e al suo corpo non volse altra bara.

117

e ao corpo outra mortalha não tomara.

É possível notar, pela descrição da ilustração, que Martini abarcou algumas das

principais cenas descritas na obra literária, e que suas legendas completam o sentido da

imagem se as colocarmos uma diante da outra. Entretanto, o observador, aqui, tem um

papel importante, já que ele pode ser de três tipos distintos: como aquele observador que

desconhece tanto texto como imagem; aquele que desconhece a imagem, mas conhece o

texto e aquele que conhece ambas.

Assim, o observador que somente vê a ilustração, não tendo conhecimento nem

da imagem, nem do texto, consegue entender que se trata de São Francisco. Portanto é

difícil imaginar quem seria a mulher nua a seu lado, neste caso, levando em

consideração uma referência religiosa de quem seria o Santo. Desta maneira, Martini,

consciente disto, fornece pistas nas legendas que fazem com que a completude da

imagem seja entendida; ou seja, é como se o observador estivesse fazendo uma leitura,

só que imagística. Por inferência, mas esta não é uma qualidade de todos os tipos de

observador, poderia se pensar na mulher como a pobreza, pois ela está nua, numa alusão

ao total desprendimento dos bens materiais, em total consonância com o pensamento e

com a própria biografia de Francisco.

Logo, para o segundo tipo de observador, a leitura desta ilustração torna-se mais

facilmente compreensível, pois, se se possui uma leitura prévia da Divina Comédia, e

especificamente do Canto XI do Paraíso, a compreensão da leitura visual é completa,

uma vez que Martini retira do poema partes específicas e as transpassa ao texto visual,

ou seja, à ilustração.

Ao se juntar a ilustração e suas legendas ao poema, forma-se uma tríade de

significados, como mencionado anteriormente, que se conecta à maior parte do poema,

uma vez que ele não trata somente de São Francisco; aqui reside a escolha autoral do

ilustrador.

113

Deste modo, nota-se nesta ilustração que a imagem não pode ser considerada

inferior ao poema e nem superior a ele, mas sim que há uma relação de

complementaridade entre elas, pois, apesar de Martini não ter ilustrado todo o Canto, e

sim somente a parte referente a São Francisco, essas partes se completam quando se

coloca uma ao lado do outro, pois, como mencionado anteriormente, o espectador tem a

possibilidade de ter um entendimento global e mais específico da ilustração por meio da

leitura da legenda da imagem.

Essa ilustração traz consigo ainda o sentimento religioso ligado à figura de São

Francisco de Assis, que foi um exemplo para a humanidade de castidade, bondade,

generosidade e, principalmente, de humildade. Este sentimento religioso é retratado na

imagem, quando ele ilustra as suas vestes rasgadas com seus braços abertos seguindo na

direção de seu amor maior que era Deus e ainda com as marcas das chagas de Cristo, de

acordo com as representações icônicas e canônicas desse Santo. Tavares indica que

iconograficamente o santo pode ser representado

vestido de franciscano, crucifixo nas mãos, estigmas nas mãos e nos pés e,

ocasionalmente, um rasgão no hábito mostra-nos a chaga do lado. Por vezes

aparece com barba, outras imberbe. Umas vezes loiro, outras de cabelos

escuros. Outras vezes, ainda, aparece-nos vestido de capuchinho, com uma

caveira ao lado, ou então recebendo o Menino Jesus das mãos da Virgem

Maria. Também aparece a receber nos seus braços Cristo meio despregado da

cruz. (TAVARES, 1990, p. 60-61)

Um pequeno rasgo lateral na veste seria suficiente para demonstrar a presença da

chaga no dorso, mas a escolha martiniana de apresentar o santo com a veste dilacerada,

deixando todo o seu peito à mostra, denota a intenção de retratar o santo exatamente

com o peito aberto à sua religião, aos seus preceitos e ao seu Deus. Também, no fundo,

alude ao episódio biográfico do jovem Francisco que se despe das vestes aristocráticas

que costumava usar para abraçar a vida religiosa.

A linguagem verbal, neste caso, não é um elemento fundamental para a

construção da percepção das imagens de Martini; contudo, muitas vezes, ela é

necessária para um entendimento mais completo das mesmas, como por exemplo,

quando ele nos diz, por meio da legenda, quem é a mulher que está ajoelhada abaixo de

114

São Francisco de Assis, a Pobreza, cuja personificação é impossível, para não

especialistas em iconografia, de ser compreendida sem a legenda.

Observando a ilustração, a representação imagética de Martini não se faz auto-

suficiente destacada do texto poético, tendo em vista que a legenda, que é parte do texto

poético, e que auxilia na compreensão da imagem; porém o entendimento completo,

somente se dá com a leitura do poema dantesco. Isso ocorre, uma vez que essa

interconexão existente entre os textos é bastante significativa. Entendemos que seja

possível uma leitura superficial da ilustração sem a leitura prévia do texto, porém, sabe-

se que a leitura profunda necessita do auxílio do texto poético para dar a totalidade da

imagem.

Todavia, sua criação imagética traz traços autorais que não equivalem ao texto

completo, mas que o ressignifica de maneira bastante consistente, alguns deles já

apontados. Na sua interpretação, uma vez que ele trabalha elementos do texto que são

fundamentais para a sua criação, levando em consideração que ele retira de cada canto

da Divina Comédia aquelas partes que considera mais relevantes para sua composição.

A expressividade é de suma importância para a imagem, como para a literatura e para as

artes, em geral. Assim, a conjunção das palavras e também das imagens (ilustrações)

nos fornece a totalidade da arte, formando um todo de sentido.

No caso do Canto em análise, há uma descrição completa da vida de São

Francisco de Assis, compondo essa totalidade, que é observada na ilustração de maneira

subjetiva pelo artista, apontando para o que seria, para ele, a maior expressividade do

Canto.

Um artista pode apenas selecionar parte do que realmente deseja ilustrar ou que

considera mais relevante para realizar seu trabalho levando em consideração os pontos

descritos no texto, ou mesmo alterando-os em sua totalidade, apresentando, deste modo,

sua própria visão sobre a leitura.

Desta forma, as ilustrações ajudam sim em uma melhor maneira de

(re)interpretar, mas não são “necessárias” para este entendimento, já que realizamos

nossas próprias imagens quando lemos um texto.

115

Assim, na ilustração selecionada, o Santo é retratado com muitas características

biográficas e também daquelas de seu processo post-mortem. Tal representação aponta

para uma historicidade particular, ou seja, para a hagiografia e a iconografia canônica

do santo, o que caracteriza essa imagem como figurativa. Entretanto, ela também possui

um caráter abstrato em torno dela, pois São Francisco de Assis representa a humildade,

a caridade e a generosidade, o que faz dessa imagem também simbólica. Deste modo,

Santaella e Nöth (2008: p. 83) afirmam que “[...] ao representar o referente, a imagem

acaba inevitavelmente por trazer para dentro de si a historicidade que pertence ao

referente”; assim, é possível confirmar que nesta ilustração de Martini há uma

historicidade latente, tendo em vista que conseguimos perceber a ilustração e entender

sobre o que ela trata, fato que nos reporta, automaticamente, a esta historicidade,

obviamente, se se possui um conhecimento prévio e mínimo sobre o referente.

Em relação a isto, os autores asseveram ainda que “[...] as imagens figurativas

podem funcionar como documentos de época”. Neste caso, Martini realiza esta

ilustração de acordo com as informações do poema. Contudo, nota-se que a sua

tentativa é a de apresentar as vestimentas e o cenário da própria época do santo; sendo

assim, apesar de ter sido realizada no século XX, esta ilustração nos remete a um

documento de época do século XI, pois toda a composição da ilustração indica

inequivocamente a época do Santo.

Pode-se observar ainda a questão da atemporalidade deste símbolo que é

representado por São Francisco de Assis, pois não somente Martini, mas também outros

tantos artistas, como Giotto e os tantos outros enumerados por Facchinetti, por exemplo,

o representaram, mostrando suas virtudes.

Nesta imagem, em particular, não temos como tratar do aspecto extrínseco, uma

vez que trabalhamos com a ilustração da edição ilustrada da Divina Comédia, e não com

a imagem original, por ser irrelevante a essa pesquisa. É possível sim tratar do tempo

intrínseco a esta ilustração, já que ele fica bem marcado pela real existência de São

Francisco de Assis, ou seja, de sua época, o século XI.

Dentro deste tempo, temos ainda o estilo utilizado pelo artista. A esse respeito

Santaella e Nöth (2008: p. 81) afirmam que “aquilo que o artista recebe da tradição e o

116

modo como ele readaptar o usual ao não-familiar imprime à obra o sinal do estilo. É

em função disso que todo estilo já nasce inelutavelmente marcado pelo tempo”. Deste

modo, Martini emprega um estilo particular em sua ilustração apontando para rupturas

com os estilos de sua época e imprimindo a sua identidade a essa obra. Por exemplo,

Martini transitava pela estética Surrealista no momento em que realizava suas

ilustrações sobre a Divina Comédia. Todavia, não fez efetivamente uma ilustração

surrealista sobre o Canto estudado e sim uma imagem com o seu toque autoral, em que

mostra um São Francisco bastante diferente do canônico, com suas vestes rasgadas e

principalmente nos dando a personificação da pobreza em forma de mulher. Também

não optou pela representação do santo como um novo evangelista e com sua cabeça

coberta pelo capuz franciscano – como foi representado nas primeiras pinturas, em geral

de anônimos italianos do século XIII; tampouco optou por aqueles episódios biográficos

de Francisco, já presentes nas primeiras representações e eternizados por Giotto na

Basílica de Assis, como a prédica aos pássaros e a realização de milagres e de curas.

Finalmente, também não optou por um terceiro arquétipo de representação que é aquele

onde se vê o santo de joelhos aos pés da cruz e beija a chaga dos pés do Cristo.

O Francisco de AM é um Francisco do século XX e não um santo medieval, da

mesma forma que a sua Divina Comédia é uma obra de leitura contemporânea e não

uma obra impregnada de sentimentos sagrados da Idade Média.

Paraíso XXXIII

Na ilustração do canto XXXIII do Paraíso, Martini apresenta a figura de Dante,

de joelhos, com a face virada para cima, olhando para o alto. Uma forte luz incide sobre

ele que está vestido com uma túnica e seu gorro.

Acima dele é possível observar três figuras, a do lado esquerdo é São Bernardo,

com sua auréola e do lado direito a Virgem Maria sentada e um anjo na frente dela que

117

diz: Ave Maria gratia plena. Ao lado de São Bernardo nota-se ainda um olho iluminado

com a inscrição de Beatriz e,

abaixo de Dante lê-se: A alta

fantasia83

, em um livro.

Fora da moldura lê-se

ainda: Empíreo – Esta flor – Vê

Beatriz – A minha visita –

entrava pelo raio – de alta luz –

depois o sonho – minha visão –

luz eterna84

.

Neste canto, obviamente

que as legendas complementam

o sentido da imagem, porém,

não são extremamente

necessárias para o entendimento

da ilustração.

Nota-se aqui o

simbolismo deste livro, que

remete ao livro escrito por

Dante, a Divina Comédia. Diz que é uma alta fantasia, a qual realmente é, uma vez que

é uma viagem ao mundo dos mortos.

Pode-se dizer que esta posição em que se encontra Dante é uma posição de quem

está rezando e, neste caso, ele está vendo Deus, a pedido de São Bernardo. A presença

Virgem Maria simboliza aqui o amor divino. Neste caso, Martini não separou um trecho

do poema para ilustrar, mas utilizou-se de todo ele.

Deste modo, nota-se que a questão religiosa mostrada aqui é que, de acordo com

Dante, todos aqueles que seguirem um caminho reto, de virtudes, consegue ter esse

encontro com Deus. E Martini conseguiu abarcar este sentimento dando vida ao

abstrato, uma vez que não se sabe a forma de Deus.

83

L’alta fantasia 84

Empireo – Questo fiore – Vedi Beatrice – La mia visita – intrava per lo raggio –de l’alta luce – dopo il

sogno – mia visione – luce eterna.

118

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente Tese teve como objetivo o estudo do sagrado e do profano na edição

ilustrada da Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265 – 1321), com desenhos de

Alberto Martini (1876 – 1954).

Por meio do estudo minucioso das cenas descritivas tanto do texto poético

quanto das ilustrações, foi possível averiguar as questões sagradas e profanas nas

ilustrações de Alberto Martini.

Para o desenvolvimento desta Tese, foram realizados três capítulos.

Primeiramente, no primeiro, Dante Alighieri e a época da escrita da Comédia, foi feito

um estudo sobre as questões relativas ao poeta florentino e a sua grande obra literária,

tendo tido como subcapítulos Dante Alighieri e a Divina Comédia e A arquitetura da

Divina Comédia. Com a finalidade de esclarecer um pouco sobre as obras e a vida do

poeta foi realizada uma breve biografia dantesca e também um estudo sobre a atualidade

da obra.

No segundo capítulo da presente Tese, A Divina Comédia e a sua relação com

as artes do século XX, foi feita uma relação do poema dantesco com as artes do século

XX, período este no qual está inserido o artista (ilustrador e pintor) que foi o foco desta

pesquisa, Alberto Martini. Como subcapítulos foram realizados A produção de Alberto

Martini e A Divina Comédia ilustrada por Alberto Martini. Assim como no primeiro

capítulo, neste segundo também foi feita uma breve biografia do artista, juntamente com

algumas de suas principais obras, até o momento em que ele fez sua edição ilustrada da

Divina Comédia.

O terceiro capítulo foi dedicado às questões sobre o sagrado e o profano, com

base em Eliade, na obra poética de Dante. Intitulado Sobre o sagrado e o profano na

Divina Comédia, este capítulo subdividiu-se em outros dois, o primeiro A ilustração do

sagrado e do profano do poema dantesco na visão de Alberto Martini, e o segundo As

cenas do sagrado e do profano na Divina Comédia.

Para o desenvolvimento deste capítulo foram utilizadas a obra de Barthes

(1990) que embasou esta Tese no sentido da leitura da imagem, uma vez que, a partir

119

dela, foi possível averiguar o sentido simbólico que a imagem proporciona. Outro

teórico utilizado foi Aumont (2008), o qual auxiliou a verificar como é a relação entre o

espectador e a ilustração e como a imagem representa o mundo.

Posteriormente aos capítulos, foi realizada ainda uma lista com as principais

obras de Alberto Martini e também as cânticas completas dos cantos (Inf XXXIV; Purg

XII; Par XI; e Par XXXIII) estudados.

Nesse sentido, pode-se afirmar que em sua obra, Martini mostra que seu lado

autoral sempre está muito presente, oferecendo sempre uma questão particular em cada

um dos cantos. Em cada canto que o artista buscou ilustrar são vistas duas ou três

ilustrações, porém existe aquela de maior relevância para ele e que explicita melhor o

que quis demonstrar do canto selecionado.

Um dos recursos utilizados por Martini e que, sem dúvida, acrescenta um estilo

autoral a sua obra ilustrada é o recurso da legenda, onde ele passa a contar a história a

seu modo, utilizando ainda, nesse caso, os versos da Divina Comédia. Deste modo, ele

transforma o texto de Dante Alighieri em uma releitura própria, fazendo uma

ressignificação a partir imagética da obra prima de Dante Alighieri, que já passa a ser a

Divina Comédia de Alberto Martini.

120

5. REFERÊNCIAS

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124

6. ANEXOS

6.1. Produções artísticas de Alberto Martini

Lista de volumes presentes na Pinacoteca:

1899 La bocca de la maschera, numero unico, edizione del Comitato di

Beneficienza, Treviso.

1904 I canti delle stagioni di Luigi Orsini, Libreria Editrice Lombarda, Milano s.d.

1905 Le commedie di Terenzio, maschere di Alberto Martini, Libreria Editrice

Lombarda A. De Mohr, Antongini e C., Milano, 3 voll.*

1906-07 Copertina per Poesia, rassegna internazionale diretta da F.T. Marinretti,

Milano, anno II, n. 9-10-11-12.

1907 Per la Rinascita, di Luigi Coletti, testate di Alberto Martini, Editrice Zoppelli,

Treviso.

1909 The Life of Edgar Poe di George E. Woodberry, vol. I, illustrazioni di Alberto

Martini, Houghton Mifflin Company, Boston e New York.

1910 Il castello del sogno di C.A. Butti poema tragico, illustrazioni di Alberto

Martini, Edizioni Treves, Milano 1910 Asse terrestre di Valerij Brjusov, Edizioni

Scorpion, Mosca. *

1915-16 Danza macabra europea, cinque serie di cartoline edite dallo Stabilimento

Longo, Treviso.*

1916 Carezze, cartella di otto litografie edita dallo stabilimento Longo, Treviso.

1920 Les Orientales di Victor Hugo, illustrazioni di Alberto Martini, Editore I.

Hetzel, Parigi.

1922 Eliodoro, romanzo d'Etiopia, versione italiana di Umberto Limentani,

frontespizio e copertina di Alberto Martini, A.F. Formiggini Editore, Roma. *

1923 I Misteri di Alberto Martini, cartella di sei litografie originali precedute da un

commento di Emanuele di Castelbarco, Edizioni Bottega di Poesia, Milano.*

1924 Trentun fantasie bizzarre e crudeli, precedute dalla diabolica immagine di

Niccolò Paganini e dall'autoritratto dell'Uomo pallido di Alberto Martini, Edizioni

125

Bottega di Poesia Milano. I primi 165 esemplari contengono la puntasecca

Paganini.*

1924 Il Tetiteatro ovvero il teatro sull'acqua di Alberto Martini, testo di Emanuele di

Castelbarco, Edizioni Bottega di Poesia, Milano.*

1935 La secchia rapita di Alessandro Tassoni, nella redazione più antica secondo la

lezione del codice Sassi, prefazione di Renato Simoni ai 52 disegni eroicomici di

Alberto Martini, testo curato da Cesare Angeli, Modena.

1936 Il Titano liberato di Guido Stacchini illustrazioni di Alberto Martini, Edizioni

de "L'Eroica", Milano. I primi 100 esemplari contengono la puntasecca ll Titano

liberato.*

1937 L'ora mattutina, antologia ad uso delle scuole medie, di Luigi Russo

illustrazioni di Alberto Martini, Editore Giuseppe Principato. Edizione numerata. *

1944 Alberto Martini di Mario Milani, Editore SADEL, Milano. Nel volume sono

inserite le litografie La famiglia del pescatore, Il conte Ugolino e l'arcivescovo

Ruggeri.

1945 La vita della Vergine e altre poesie di Rainer Maria Rilke, litografie originali a

colori di Alberto Martini. Editoriale Italiana, Milano.*

1945 Un mago del bianco e nero di Giorgio Balbi, Editoriale Italiana, Milano. I

primi 25 esemplari contengono l'acquaforte Il boscaiolo e le puntesecche Le figlie di

Leda, Banchetto e Ninfale.

1946 La vita di Cristo, poema grafico di Alberto Martini, Edizioni Cenobio, Milano.

I primi 250 esemplari contengono l'acquaforte Cristo prigione.*

1947 Miti, cartella di dodici puntesecche edita da Il Camino, Milano. * (non tutte)

1949 La Divina Commedia di Dante Alighieri, illustrazioni di Alberto Martini

presentazione di Ettore Cozzani, Edizioni Cenobio, Milano. Alcuni esemplari

contengono le acqueforti Il divino poeta, Vanni Fucci ladro, Pia dei Tolomei e Quel

che d'ogni colpa vince la bilancia. *

1954 Le avventure di Pinocchio, interpretazione di A. Negri, illustrazioni di Alberto

Martini, Edizioni Convivio Letterario, Bergamo.

15 Ex libris di Alberto Martini, cartella di ex libris, Editore Luigi Filippo Bolaffio,

Lenno. Nella cartella è inserita la puntasecca Ex libris Carlo d 'Alessio.

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6.2. Cânticas completas

Inferno XXXIV

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«Vexilla regis prodeunt inferni

verso di noi; però dinanzi mira»

disse 'l maestro mio «se tu 'l discerni».

Come quando una grossa nebbia spira,

o quando l'emisperio nostro annotta,

par di lungi un molin che 'l vento gira,

veder mi parve un tal dificio allotta;

poi per lo vento mi ristrinsi retro

al duca mio; ché non li era altra grotta.

Già era, e con paura il metto in metro,

là dove l'ombre tutte eran coperte,

e trasparíen come festuca in vetro.

Altre sono a giacere; altre stanno erte,

quella col capo e quella con le piante;

altra, com'arco, il volto a' piè rinverte.

Quando noi fummo fatti tanto avante,

ch'al mio maestro piacque di mostrarmi

la creatura ch'ebbe il bel sembiante,

d'innanzi mi si tolse e fe' restarmi,

«Ecco Dite» dicendo, «ed ecco il loco

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«Vexilla regis prodeunt inferni

a nós direitas; pois em frente mira»

disse o mestre «se o teu olhar discerne». E

qual quando espessa névoa se revira

ou, quando o hemisfério nosso anouta,

há moinho que ao longo ao vento gira,

cri de ver um edifício nessa rota;

de vento tal me refugio então

atrás do guia; nem vi outra grota.

Já estava, e o ponho a medo na canção,

lá onde tanta sombra era coberta,

e transparece qual palha em boião.

Muita que jaz; de pé muito se aperta,

esta do cabo, aquela em pé se plante;

outra, como arco, o rosto aos pés concerta.

Quando tínhamos ido tão avante

Que ao mestre meu aprouve de mostrar-me

A criatura que houve o bel semblante,

tirou-se-me da frente e foi parar-me,

«Esta é Dite», dizendo, «e eis o cabouco

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ove convien che di fortezza t'armi».

Com'io divenni allor gelato e fioco,

nol dimandar, lettor, ch'i' non lo scrivo,

però ch'ogni parlar sarebbe poco.

Io non mori', e non rimasi vivo:

pensa oggimai per te, s'hai fior d'ingegno,

qual io divenni, d'uno e d'altro privo.

Lo 'mperador del doloroso regno

da mezzo il petto uscía fuor della ghiaccia;

e piú con un gigante io mi convegno,

che giganti non fan con le sue braccia:

vedi oggimai quant'esser dee quel tutto

ch'a cosí fatta parte si confaccia.

S'el fu sí bello com'elli è or brutto,

e contra 'l suo fattore alzò le ciglia,

ben dee da lui procedere ogni lutto.

Oh quanto parve a me gran maraviglia

quand'io vidi tre facce alla sua testa!

L'una dinanzi, e quella era vermiglia;

l'altr'eran due, che s'aggiugníeno a questa

sovresso 'l mezzo di ciascuna spalla,

e sé giugníeno al luogo della cresta:

e la destra parea tra bianca e gialla;

la sinistra a vedere era tal, quali

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onde convém que a fortaleza te arme».

Como eu fiquei então gelado e rouco,

não perguntes, leitor, que o não derivo

de escrever, que falar seria pouco.

Eu não morri e não me fiquei vivo:

pensa agora por ti, à flor de engenho,

no que fiquei, disto e daquilo esquivo.

Imperador do reino em dor tamanho

saía a meio peito ao gelo baço;

e mais com um gigante eu me convenho

do que os gigantes co ele em cada braço:

já vês como era o todo no reduto

de parte assim formada a tal compasso.

Se belo foi como é agora bruto

e contra quem o fez olhar lhe brilha,

bem deve proceder só dele o luto.

Oh, quanto me pareceu grã maravilha

quando três faces vi em sua testa!

A da frente vermelha se encorrilha;

a cada uma das outras, junta a esta,

em meio a cada ombro se encavala,

e as três se vão juntar na crista em festa:

e amarelece a destra em branco rala;

a sinistra de ver era tal, quais

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vegnon di là onde 'l Nilo s'avvalla.

Sotto ciascuna uscivan due grand'ali,

quanto si convenía a tanto uccello:

vele di mar non vid'io mai cotali.

Non avean penne, ma di vispistrello

era lor modo; e quelle svolazzava,

sí che tre venti si movean da ello:

quindi Cocito tutto s'aggelava.

Con sei occhi piangea, e per tre menti

gocciava 'l pianto e sanguinosa bava.

Da ogni bocca dirompea co' denti

un peccatore, a guisa di maciulla,

sí che tre ne facea cosí dolenti.

A quel dinanzi il mordere era nulla

verso 'l graffiar, che tal volta la schiena

rimanea della pelle tutta brulla.

«Quell'anima là su c'ha maggior pena»

disse 'l maestro, «è Giuda Scarïotto,

che 'l capo ha dentro e fuor le gambe mena.

Delli altri due c'hanno il capo di sotto,

quel che pende dal nero ceffo è Bruto

- vedi come si storce! e non fa motto -!;

e l'altro è Cassio che par sí membruto.

Ma la notte risurge, e oramai

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os que o Nilo percorrem vala a vala.

De cada uma sai par de asas tais,

quanto o pássaro há-de carecê-lo:

velas do mar assim não vi jamais.

Não tinham penas, mas a modo o pêlo

seria de morcego; e as agitava,

do que três ventos dava em atropelo:

e já Cocito todo enregelava.

Com seis olhos chorava e aos mentos rente

baba sangrenta e ranho gotejava.

De cada boca esfacelava a dente

um pecador, ripando-lhe a medula,

e a cada um de três punha dolente.

Era ao da frente a mordedura nula

à esfola comparada, que acarena

sem pele em carne viva toda ondula.

«É a alma que há no cimo maior pena»

o mestre diz, «Judas Iscariote:

cabeça a dentro, as penas desordena.

Das duas que debaixo têm garrote,

Bruto pende do negro focinhudo

- vê como ele se estorce! e não dá morte! -;

e é Cássio o que parece tão membrudo.

Mas a noite regressa e a hora se faz

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è da partir, ché tutto avem veduto».

Com'a lui piacque, il collo li avvinghiai;

ed el prese di tempo e luogo poste;

e quando l'ali fuoro aperte assai,

appigliò sé alle vellute coste:

di vello in vello giú discese poscia

tra 'l folto pelo e le gelate croste.

Quando noi fummo là dove la coscia

si volge, a punto in sul grosso dell'anche,

lo duca, con fatica e con angoscia,

volse la testa ov'elli avea le zanche,

e aggrappossi al pel com'uom che sale,

sí che 'n inferno i' credea tornar anche.

«Attienti ben, ché per cotali scale»

disse 'l maestro, ansando com'uom lasso,

«conviensi dipartir da tanto male».

Poi uscí fuor per lo foro d'un sasso,

e puose me in su l'orlo a sedere;

appresso porse a me l'accorto passo.

Io levai li occhi, e credetti vedere

Lucifero com'io l'avea lasciato;

e vidili le gambe in su tenere;

e s'io divenni allora travagliato,

la gente grossa il pensi, che non vede

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de partirmos, porquanto vimos tudo.»

Seu colo abraço então como lhe apraz;

e ele em tempo e lugar as mãos têm postas;

e quando as asas vão abrindo assaz,

vai agarrar-se a tão felpudas costas:

de velo em velo desce e não afrouxa

por rodopelo e por geladas crostas.

E quando nós chegamos onde a coxa

vai encontrar o lado grosso da anca,

o guia, de fadiga e de congoxa

volta a cabeça onde a perna lhe estanca,

e o pelô agarra já como quem escale,

e eu creio que de novo ao inferno atranca.

«Bem te segures numa escada tal»,

me disse o mestre arfando de cansaço,

«é preciso partir de tanto mal».

E um buraco na pedra fez-lhe espaço

de sair e me foi na orla pousar;

e veio ter comigo a certo passo.

Alcançando os olhos, cri que ia avistar

Lucifer como o eu tinha deixado;

e então o vi de gâmbias para o ar;

e se eu fiquei um tanto perturbado,

a rude gente o pense, que não vê

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qual è quel punto ch'io avea passato.

«Lévati su» disse 'l maestro «in piede:

la via è lunga e 'l cammino è malvagio,

e già il sole a mezza terza riede».

Non era camminata di palagio

là 'v'eravam; ma natural burella

ch'avea mal suolo e di lume disagio.

«Prima ch'io dell'abisso mi divella,

maestro mio», diss'io quando fui dritto,

«a trarmi d'erro un poco mi favella:

ov'è la ghiaccia? e questi com'è fitto

sí sottosopra? e come, in sí poc'ora,

da sera a mane ha fatto il sol tragitto?»

Ed elli a me: «Tu imagini ancora

d'esser di là dal centro, ov'io mi presi

al pel del vermo reo che 'l mondo fora.

Di là fosti cotanto quant'io scesi;

quand'io mi volsi, tu passasti 'l punto

al qual si traggon d'ogni parte i pesi.

E se' or sotto l'emisperio giunto

ch'è opposito a quel che la gran secca

coverchia, e sotto 'l cui colmo consunto

fu l'uom che nacque e visse sanza pecca:

tu hai i piedi in su picciola spera

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que ponto é esse que eu tinha passado.

«Ergue-te», disse o mestre, «fica em pé:

a via é longa e o caminho estreito,

e já o sol na meia-terça é.»

Não era caminhada de preceito

a nossa ali, mas natural viela

de lume fraco e solo assaz desfeito.

«Antes que do abismo onde enregela

me tires», disse eu quando fui erecto,

«tirando-me erros ora me revelo:

o que é do gelo? e este em tal aspecto

posto ao invés? e como em pouca dura,

entre tarde e manhã fez seu tragecto

o sol?» E ele: «Pensas nesta altura

que estás além do centro onde eu prendia

a pele ao verme vil que o mundo fura.

De lá tu foste enquanto eu me descia;

mas quando me voltei tinhas passado

ponto que a todo o peso atrai a via.

E ao hemisfério ora te eis chegado

o oposto ao que recobre a grande seca,

sob o tecto da qual sacrificado,

foi quem nasceu, viveu e em nada peca:

os pés tem postos na pequena esfera

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che l'altra faccia fa della Giudecca.

Qui è da man, quando di là è sera:

e questi, che ne fe' scala col pelo,

fitto è ancora sí come prim'era.

Da questa parte cadde giú dal cielo;

e la terra, che pria di qua si sporse,

per paura di lui fe' del mar velo,

e venne all'emisperio nostro; e forse

per fuggir lui lasciò qui luogo voto

quella ch'appar di qua, e su ricorse».

Luogo è là giú da Belzebú remoto

tanto quanto la tomba si distende,

che non per vista, ma per suono è noto

d'un ruscelletto che quivi discende

per la buca d'un sasso, ch'elli ha roso,

col corso ch'elli avvolge, e poco pende.

Lo duca e io per quel cammino ascoso

intrammo a ritornar nel chiaro mondo;

e sanza cura aver d'alcun riposo

salimmo su, el primo e io secondo,

tanto ch'i' vidi delle cose belle

che porta 'l ciel, per un pertugio tondo;

e quindi uscimmo a riveder le stelle.

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que a outr face faz da vil Judeca.

Se é cá manhã, já lá anoitecera:

e este que a nós co pêlo escada deu,

tão cravado inda está como antes era.

Desta parte tombou vindo do céu;

e a terra que aqui antes se estendia,

do medo que lhe vem fez do mar véu,

vindo ao nosso hemisfério; e então seria

que fugindo, lhe esvaziou ignoto

lugar a que a que ali vês e que ascendia».

Há um lugar a Belzebu remoto

tanto quanto esta gruta já se estende,

que, não por vista, mas por som é noto

de um regato que por ali descende

da boca de um rebordo pedregoso,

rói o curso que faz e pouco pende.

Nesse caminho pouco luminoso

entrámos por voltar ao claro mundo;

e sem cuidar de ter algum repouso,

subimos, antes que ele e eu segundo,

tanto que eu vi enfim as cousas belas

que tem o céu, por um buraco ao fundo;

e saímos voltando a ver estrelas.

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Purgatório XII

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Di pari, come buoi che vanno a giogo,

m'andava io con quell'anima carca,

fin che 'l sofferse il dolce pedagogo;

ma quando disse: «Lascia loro e varca;

ché qui è buon con la vela e coi remi,

quantunque può, ciascun pinger sua barca»;

dritto sí come andar vuolsi rife' mi

con la persona, avvegna che i pensieri

mi rimanessero e chinati e scemi.

Io m'era mosso, e seguía volentieri

del mio maestro i passi, ed amendue

già mostravam com'eravam leggieri;

ed el mi disse: «Volgi li occhi in giúe:

buon ti sarà, per tranquillar la via,

veder lo letto delle piante tue».

Come, perché di lor memoria sia,

sovra i sepolti le tombe terragne

portan segnato quel ch'elli eran pria,

onde lí molte volte si ripiagne

per la puntura della rimembranza,

che solo a' pii dà delle calcagne;

sí vid'io lí, ma di miglior sembianza

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A par, como bois vão à canga, logo

co a alma vou que com tal fardo arca,

enquanto o sofre o doce pedagogo

mas quando ele diz: «Deixa-o, passa, embarca;

aqui é bom com asa e remo, a eito,

quanto pode, cada um levar a barca»;

já para andar o meu corpo endireito,

embora me ficasse o pensamento

vergado, a magicar em vário jeito.

De bom grado seguia em tal momento

os passos de meu mestre, os dois mostrando

como íamos em ágil movimento;

e ele me disse: «Ao solo vás olhando:

bom te será que a via se assegure

vendo o leito que aos pés tu vais pisando.»

Como, por que memória deles dure,

nas tumbas dos sepultos nos lugares

dizer quem foram antes se procure,

e lá regressam choros e pesares,

acicatados já pela lembrança

que só aos pios dá de calcanhares;

assim lá vi, melhor em semelhança

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secondo l'artificio, figurato

quanto per via di fuor del monte avanza.

Vedea colui che fu nobil creato

piú ch'altra creatura, giú dal cielo

folgoreggiando scender da un lato.

Vedea Brïareo, fitto dal telo

celestïal, giacer dall'altra parte,

grave alla terra per lo mortal gelo.

Vedea Timbreo, vedea Pallade e Marte,

armati ancora, intorno al padre loro,

mirar le membra de' Giganti sparte.

Vedea Nembròt a piè del gran lavoro

quasi smarrito, e riguardar le genti

che 'n Sennaàr con lui superbi foro.

O Niobè, con che occhi dolenti

vedea io te segnata in su la strada,

tra sette e sette tuoi figliuoli spenti!

O Saúl, come su la propria spada

quivi parevi morto in Gelboè,

che poi non sentí pioggia né rugiada!

O folle Aragne, sí vedea io te

già mezza ragna, trista in su li stracci

dell'opera che mal per te si fe'.

O Roboam, già non par che minacci

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de engenhoso artifício, figurado

quanto fora do monte a via avança.

Via aquele que foi nobre criado

mais que a outra criatura, vir do céu,

descendo fulgurante sobre um lado.

Via, a um dardo celeste, Briareu

atravessado, caído a outra parte,

do mortal gelo, em terra, que lhe deu.

Via Timbreu, vi Palas e vi Marte,

inda em armas, co pai, a ver o ror,

de membros que aos Gigantes se reparte.

Via Nemrod ao pé do grão lavor

em desvario e a fitar as gentes

soberbas que em Sennnar se lhe hão-de opor.

O Niobè, com que olhos tão dolentes

te via a imagem, a chorar, na estrada,

teus sete e sete mortos inocentes!

O Saul, como sobre a própria espada

aqui surgias morto em Gelboè,

que mais não teve chuva nem geada!

O louca Aracne, assim te via até

que meia aranha, triste se espedace

a obra que ao teu mal já feita é!

O Roboão, imagem que ameace,

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quivi 'l tuo segno; ma pien di spavento

nel porta un carro, sanza ch'altri il cacci.

Mostrava ancor lo duro pavimento

come Almeon a sua madre fe' caro

parer lo sventurato adornamento.

Mostrava come i figli si gettaro

sovra Sennacheríb dentro dal tempio,

e come morto lui quivi lasciaro.

Mostrava la ruina e 'l crudo scempio

che fe' Tamiri, quando disse a Ciro:

«Sangue sitisti, e io di sangue t'empio».

Mostrava come in rotta si fuggiro

li Assiri, poi che fu morto Oloferne,

e anche le reliquie del martiro.

Vedea Troia in cenere e in caverne:

o Ilïòn, come te basso e vile

mostrava il segno che lí si discerne!

Qual di pennel fu maestro o di stile

che ritraesse l'ombre e' tratti ch'ivi

mirar farieno uno ingegno sottile?

Morti li morti e i vivi parean vivi:

non vide mei di me chi vide il vero,

quant'io calcai, fin che chinato givi.

Or superbite, e via col viso altero,

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já não te creio; e cheia de spavento

a leva um carro sem que um outro a cace!

Mostrava ainda o duro pavimento

como Alcméon a sua mãe fez caro

pagar desventurado adornamento.

Mostrava como os filhos, caso raro,

matam Senaqueribe no templo, e o

seu corpo ali deixando ao desamparo.

Mostrava a queda e o massacre impio

de Ciro, a quem Tamira no delírio

diz: «Pedes sangue e dele eu te sacio.»

Mostrava que em derrota foge o Assírio,

depois que Holofernes se assassina,

e também as relíquias do martírio.

Eu via Tróia, em cinzas e ruína;

Ilíon, como tu eras baixa e vil,

vista ali no sinal que te imagina!

Qual de pincel foi mestre ou de buril,

sombras e traços retratando esquivos,

para espanto do engenho mais sutil?

Os mortos, mortos, e os vivos, quais vivos:

não viu mais que eu quem viu por verdadeiro

o que eu calquei a ir de olhos furtivos.

Enchei-vos de soberba, e ide, altaneiro

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figliuoli d'Eva, e non chinate il volto

sí che veggiate il vostro mal sentero!

Piú era già per noi del monte volto

e del cammin del sole assai piú speso

che non stimava l'animo non sciolto,

quando colui che sempre innanzi atteso

andava, cominciò: «Drizza la testa;

non è piú tempo di gir sí sospeso.

Vedi colà un angel che s'appresta

per venir verso noi; vedi che torna

dal servigio del dí l'ancella sesta.

Di reverenza il viso e li atti adorna,

sí che i diletti lo 'nviarci in suso;

pensa che questo dí mai non raggiorna!»

Io era ben del suo ammonir uso

pur di non perder tempo, sí che 'n quella

matera non potea parlarmi chiuso.

A noi venía la creatura bella,

bianco vestito e nella faccia quale

par tremolando mattutina stella.

Le braccia aperse, e indi aperse l'ale:

disse: «Venite: qui son presso i gradi,

e agevole-mente omai si sale.

A questo invito vegnon molto radi:

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o olhar, ó filhos de Eva, alçando o vulto,

para não verdes vosso mau roteiro!

Mas do monte nos era desoculto

e o caminho do sol mais se estendia

que o ânimo pensava não estulto,

quando o que sempre à frente ali seguia

atento, começou: «Levanta a testa;

não é mais tempo de ir em fantasia.

Vês acolá um anjo que se apresta

para vir até nós; e vê que torna

do serviço do dia a serva sexta.

De reverência o acto e o gesto adorna,

que em mandar-nos acima tenha agrado;

e pensa que este dia não retorna!»

Era eu a tal aviso habituado

que tempo não perdesse, e assim naquela

materia o seu falar não é cerrado.

A nós já vinha a criatura bela,

de vestes brancas na face qual

tremeluzindo matutina estrela.

Braços abriu e as asas afinal;

disse: «Os degraus são perto: ora venhais,

que mais fácil subir agora val’.

A tal convite vêm mui poucos mais:

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o gente umana, per volar su nata,

perché a poco vento cosí cadi?»

Menocci ove la roccia era tagliata:

quivi mi batté l'ali per la fronte;

poi mi promise sicura l'andata.

Come a man destra, per salire al monte

dove siede la chiesa che soggioga

la ben guidata sopra Rubaconte,

si rompe del montar l'ardita foga

per le scalee che si fero ad etade

ch'era sicuro il quaderno e la doga;

cosí s'allenta la ripa che cade

quivi ben ratta dall'altro girone;

ma quinci e quindi l'alta pietra rade.

Noi volgendo ivi le nostre persone,

'Beati pauperes spiritu!' voci

cantaron sí, che nol dir'ia sermone.

Ahi quanto son diverse quelle foci

dall'infernali! ché quivi per canti

s'entra, e là giú per lamenti feroci.

Già montavam su per li scaglion santi,

ed esser mi parea troppo piú leve

che per lo pian non mi parea davanti.

Ond'io: «Maestro, di', qual cosa greve

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ó gente humana, ao voo ao céu fadada,

porque é que a pouco vento logo cais?»

Levou-nos onde a rocha era talhada;

aí bateu-me de asas pela fronte;

então me prometeu boa jornada.

Como à direita, por subir o monte

Lá onde assenta a igreja que domina

A bem guiada sobre Rubaconte,

se modera a falésia que se empina

por escada já feita nessa idade

que caderno e medida certa afina;

tal se atenua a escarpa que este invade

do outro giro e abrupta se amontoa,

e os lados da alta pedra rasar á-de.

E nós voltando ali nossa pessoa,

“Beati pauperes spiritu!” vozes

melhor cantam que a fala o apregoa.

Ah, como são diversas estas fozes

das infernais! cá nos acolhe o canto

e lá se têm lamentos só, ferozes.

Já nós subíamos o escadório santo,

e já se parecia ser bem mais leve

do que no chão em que eu fora entretanto.

E eu então: «Mestre, diz que cousa deve

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levata s'è da me, che nulla quasi

per me fatica, andando, si riceve?»

Rispuose: «Quando i P che son rimasi

ancor nel volto tuo presso che stinti,

saranno come l'un del tutto rasi,

fier li tuoi piè dal buon voler sí vinti,

che non pur non fatica sentiranno,

ma fia diletto loro esser sospinti».

Allor fec'io come color che vanno

con cosa in capo non da lor saputa,

se non che cenni altrui sospecciar fanno;

per che la mano ad accertar s'aiuta,

e cerca e truova e quello officio adempie

che non si può fornir per la veduta;

e con le dita della destra scempie

trovai pur sei le lettere che 'ncise

quel dalle chiavi a me sovra le tempie:

a che guardando il mio duca sorrise.

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perder o peso em mim, que é nula quase

a fadiga que em meu andar se inscreve?»

Respondeu: «Quando dos P de apraze,

que ainda tens no rosto, que delidos

como um serão, se apague o resto à frase;

e os teus pés de bom querer vencidos,

não só nem a fadiga sentirão,

mas o deleitará serem movidos.»

Então eu fiz como alguns quando vão

com cousa na cabeça sem saber,

salvo pelos sinais que os outros lhes dão;

e que a mão tacteante vão meter

que busca e acha e cumpre aquele empenho

que não se conseguia por não ver;

e abrindo os dedos da mão destra estranho

achar seis letras só da que me abriu

nas fontes o das chaves, num desenho:

ao que o meu guia, olhando, então sorriu.

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Paraíso XI

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O insensata cura de' mortali,

quanto son difettivi sillogismi

quei che ti fanno in basso batter l'ali!

Chi dietro a iura, e chi ad aforismi

sen giva, e chi seguendo sacerdozio,

e chi regnar per forza o per sofismi,

e chi rubare, e chi civil negozio;

chi nel diletto della carne involto

s'affaticava, e chi si dava all'ozio,

quando, da tutte queste cose sciolto,

con Beatrice m'era suso in cielo

cotanto glorïosa-mente accolto.

Poi che ciascuno fu tornato ne lo

punto del cerchio in che avanti s'era,

fermossi, come a candellier candelo.

E io senti' dentro a quella lumera

che pria m'avea parlato, sorridendo

incominciar, faccendosi piú mera:

«Cosí com'io del suo raggio resplendo,

sí, riguardando nella luce etterna,

li tuoi pensieri onde cagioni apprendo.

Tu dubbi, e hai voler che si ricerna

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Ó cuidar insensato dos mortais,

por quantos defectivos silogismos

fazem que asas ao fundo a dar tu vais!

Quem já por jus e quem por aforismos

porfiava, quem seguiu por sacerdócio,

ou, por força ou sofisma, despotismos,

quem por roubar, quem por civil negócio;

quem no carnal deleite então envolto

se afadigava, e quem se dava ao ócio,

quando, de todas essas cousas solto,

eu acolhido em glória sou no céu,

que Beatriz em tal subida escolto.

Depois que foi cada um tornado a seu

Ponto do círculo em que antes já era,

candeio em candeeiro ali pendeu.

E eu escutei lá dentro essa lumera

que primeiro falara, ora dizendo

a sorrir, pela luz que mais se esmera:

«Assim como eu do raio seu resplendo,

também, olhando agora a luz eterna,

a causa aos pensamentos teus aprendo.

Tens dúvidas e em tal cousa é mister na

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in sí aperta e 'n sí distesa lingua

lo dicer mio, ch'al tuo sentir si sterna,

ove dinanzi dissi 'U' ben s'impingua ',

e là u' dissi 'Non surse il secondo';

e qui è uopo che ben si distingua.

La provedenza, che governa il mondo

con quel consiglio nel quale ogni aspetto

creato è vinto pria che vada al fondo,

però che andasse ver lo suo diletto

la sposa di colui ch'ad alte grida,

disposò lei col sangue benedetto,

in sé sicura e anche a lui piú fida,

due principi ordinò in suo favore,

che quinci e quindi le fosser per guida.

L'un fu tutto serafico in ardorel'altro

per sapïenza in terra fue

di cherubica luce uno splendore.

Dell'un dirò, però che d'amendue

si dice l'un pregiando, quale uom prende,

perch'ad un fine fuor l'opere sue.

Intra Tupino e l'acqua che discende

del colle eletto dal beato Ubaldo,

fertile costa d'alto monte pende,

onde Perugia sente freddo e caldo

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Tão aberta e tão extensa língua,

a teu sentir torná-la mais externa,

“Onde é bem pingue” de entender à mingua,

e onde antes disse “Não surgiu segundo”;

e por ser útil cousa, aqui distingo-a.

A providência, que governa o mundo

com conselho no qual é todo o aspecto

criado vencido antes de ir ao fundo,

por que já fosse ter com seu dilecto

a esposa de quem gritos alto envia

e em bento sangue a desposou de afecto,

segura em si, que dele mais se fia,

dois príncipes ordena em seu favor,

que daqui e dali lhe sejam guia.

Um foi todo seráfico em ardor;

outro por sapiência em terra tem

de querubinea luz um esplendor.

De um já direi, mas de ambos dois porém

dando louvour a um, qualquer se intende

porque a só fim a obra sua vem.

Entre Tupino e a água que descende

do monte eleito do beato Ubaldo,

fértil a costa de alto monte pende,

onde Perugia tem frio e rescaldo

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da Porta Sole; e di retro le piange

per grave giogo Nocera con Gualdo.

Di questa costa, là dov'ella frange

piú sua rattezza, nacque al mondo un sole,

come fa questo tal volta di Gange.

Però chi d'esso loco fa parole,

non dica Ascesi, ché direbbe corto,

ma Orïente, se proprio dir vole.

Non era ancor molto lontan dall'orto,

ch'el cominciò a far sentir la terra

della sua gran virtute alcun conforto;

ché per tal donna, giovinetto, in guerra

del padre corse, a cui, come alla morte,

la porta del piacer nessun diserra;

e dinanzi alla sua spirital corte

et coram patre le si fece unito;

poscia di dí in dí l'amò piú forte.

Questa, privata del primo marito,

millecent'anni e piú dispetta e scura

fino a costui si stette sanza invito;

né valse udir che la trovò sicura

con Amiclate, al suon della sua voce,

colui ch'a tutto 'l mondo fe' paura;

né valse esser costante né feroce,

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de Porta Sole; e por detrás lhe plange

por grave jugo Noccera com Gualdo.

E desta costa, lá onde mais frange

a rispidez, nasceu ao mundo um sol,

como este faz alguma vez no Gange.

E assim desse lugar quem termo arrolhe,

não diga Ascesi, fora curto e torto,

mas Oriente, por dizer de escol.

Não era ainda mui longe do orto,

que começou e fez sentir a terra

de sua grã virtude algum conforto;

que por tal dama, rapazinho, em guerra

do pai incorre, à qual, tal como à morte,

a porta do prazer ninguém descerra;

e então perante a sua espritual corte

et coram patre se lhe fez unido;

depois de dia em dia a amou mais forte.

Esta privada do anterior marido,

mas de anos mil e cem, mesuqinha e escura,

até ele ficou sem prometido;

pouco valeu ouvir que a achou segura

com Amiclas, ao som da sua voz,

esse que o mundo em medo desfigura;

pouco valeu ser tão firme e feroz,

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sí che, dove Maria rimase giuso,

ella con Cristo pianse in su la croce.

Ma perch'io non proceda troppo chiuso,

Francesco e Povertà per questi amanti

prendi oramai nel mio parlar diffuso.

La lor concordia e i lor lieti sembianti,

amore e maraviglia e dolce sguardo

facíeno esser cagion di pensier santi;

tanto che 'l venerabile Bernardo

si scalzò prima, e dietro a tanta pace

corse e, correndo, li parve esser tardo.

Oh ignota ricchezza! oh ben ferace!

Scalzasi Egidio, scalzasi Silvestro

dietro allo sposo, sí la sposa piace.

Indi sen va quel padre e quel maestro

con la sua donna e con quella famiglia

che già legava l'umile capestro.

Né li gravò viltà di cor le ciglia

per esser fi' di Pietro Bernardone,

né per parer dispetto a maraviglia;

ma regalmente sua dura intenzione

ad Innocenzio aperse, e da lui ebbe

primo sigillo a sua religïone.

Poi che la gente poverella crebbe

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que onde Maria ao pés ficou, ou abuso

na cruz com Cristo ela a chorar se pois.

Mas por que eu não pareça assaz escuzo,

Francesco e a Pobreza por amantes

entendas ora em meu falar difuso.

Sua concórdia e seus ledos semblantes,

amor e maravilha e doce esguardo

de santos pensamentos são constantes;

tanto que um venerável qual Bernardo

antes se descalçou e atrás da paz

correu, e a correr, jugou ser tardo.

Oh ignota riqueza! oh bem feraz!

E descalça-se Egídio com Silvestre

atrás do esposo, tanto a esposa apraz.

Então se vai o pai e aquele mestre

co a dama e co a família que se humilha

ligada assim por quem silício a destre.

Nem peito vil seus olhos encarquilha

por ser de Bernardoni geração,

nem por ser desdenhado maravilha;

mas realmente assim dura intenção

a Inocêncio abriu, e este lhe deu

primeiro selo a sua religião.

Quando a pobrinha gente então cresceu

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dietro a costui, la cui mirabil vita

meglio in gloria del ciel si canterebbe,

di seconda corona redimita

fu per Onorio dall'Etterno Spiro

la santa voglia d'esto archimandrita.

E poi che, per la sete del martiro,

nella presenza del Soldan superba

predicò Cristo e li altri che 'l seguiro,

e per trovare a conversione acerba

troppo la gente, per non stare indarno,

reddissi al frutto dell'italica erba,

nel crudo sasso intra Tevere e Arno

da Cristo prese l'ultimo sigillo,

che le sue membra due anni portarno.

Quando a colui ch'a tanto ben sortillo

piacque di trarlo suso alla mercede

ch'el meritò nel suo farsi pusillo,

a' frati suoi, sí com'a giuste rede,

raccomandò la donna sua piú cara,

e comandò che l'amassero a fede;

e del suo grembo l'anima preclara

mover si volse, tornando al suo regno,

e al suo corpo non volse altra bara.

Pensa oramai qual fu colui che degno

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e o foi seguir, cuja vida bendita

cantaria melhor glória do céu,

a coroa redime e deposita

Honório, e o Esprito Santo inspire-o,

na ânsia santa deste arquimandrita.

E pois que pela sede de martírio,

pregou Cristo e os que o seguem à proterva

presença do Sultão em país sírio

porque de mais azeda já observa

a gente à fé, por não ficar em vão,

ao fruto regressou da ítala erva

e entre Arno e Tibre em cru penedo então

foi ter de Cristo o último sigilo,

que dois anos seus membros levarão.

Quando ao que em tanto bem quis investi-lo

Aprouve de trazê-lo a tal mercê,

por se fazer humilde, de alto asilo,

a tanto irmão, que herdeiro justo é,

recomendou a sua dama cara

e encomendou que lhe tivessem fé;

e de seu colo a alma assim preclara

de voltar ao seu reino teve empenho,

e ao corpo outra mortalha não tomara.

Pensarás quem lhe foi por seu engenho

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collega fu a mantener la barca

di Pietro in alto mar per dritto segno;

e questo fu il nostro patrïarca;

per che, qual segue lui com'el comanda,

discerner puoi che buone merce carca.

Ma 'l suo peculio di nova vivanda

è fatto ghiotto, sí ch'esser non puote

che per diversi salti non si spanda;

e quanto le sue pecore remote

e vagabunde piú da esso vanno,

piú tornano all'ovil di latte vote.

Ben son di quelle che temono 'l danno

e stringonsi al pastor; ma son sí poche,

che le cappe fornisce poco panno.

Or se le mie parole non son fioche

e se la tua audienza è stata attenta,

se ciò ch'è detto alla mente rivoche,

in parte fia la tua voglia contenta,

perché vedrai la pianta onde si scheggia,

e vedra' il corregger che argomenta

'U' ben s'impingua, se non si vaneggia'».

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Digno colega no manter da barca

de Pedro em alto mar qual recto lenho;

e esse foi o nosso patriarca,

do que, quem o seguir como comanda,

poderás ver quão boas mercês arca.

Mas seu rebanho já de outra vianda

se fez guloso, assim que não se enjeite

que por diversos saltos não se expanda;

e quanto mais ovelhas dele deite,

e a ir mais longe vagabundas, há no

ovil quando elas voltam menos leite.

Bem dessas há porém que temem dano

e chegam-se ao pastor; mas são tão poucas,

que capa se lhes faz de pouco pano.

E se as minhas palavras não são roucas

e se tua audição há sido atenta,

se quanto dito foi à mente evocas,

tua vontade em parte se contenta,

pois verás onde a planta se ilaqueie

e o corrigir verás porque argumenta:

“Onde é bem pingue quem não devaneie”.»

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Paraíso XXXIII

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«Vergine madre, figlia del tuo figlio,

umile e alta piú che creatura,

termine fisso d'etterno consiglio,

tu se' colei che l'umana natura

nobilitasti sí, che 'l suo fattore

non disdegnò di farsi sua fattura.

Nel ventre tuo si raccese l'amore

per lo cui caldo nell'etterna pace

cosí è germinato questo fiore.

Qui se' a noi meridiana face

di caritate, e giuso, intra i mortali,

se' di speranza fontana vivace.

Donna, se' tanto grande e tanto vali,

che qual vuol grazia ed a te non ricorre,

sua disïanza vuol volar sanz'ali.

La tua benignità non pur soccorre

a chi domanda, ma molte fiate

liberamente al dimandar precorre.

In te misericordia, in te pietate,

in te magnificenza, in te s'aduna

quantunque in creatura è di bontate.

Or questi, che dall'infima lacuna

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«Virgem e mãe, que és filha de teu filho,

humilde e alta mais que criatura,

de eterno querer termo fixo e brilho,

aquela és que a humanal natura

tanto nobilitasse, que o factor

não desdenhou fazer de si feitura.

No ventre teu reacendeu-se amor

e em paz eterna fez que germinasse

a seu calor assim tão bela flor.

Aqui nos és meridiana face

de caridade, e lá, entre os mortais,

és de esperança a fonte mais vivace.

Dona, és tão grande e tanto sobressais,

que quem a ti por graça não recorre,

sua ânsia quer voar sem asas tais.

Benignidade em ti não só socorre

quem pede, e quantas vezes na verdade

liberalmente antes da prece acorre.

Em ti misericórdia, em ti piedade,

em ti magnificência, em ti se aduna

quanto em criatura exista de bondade.

Ora este que dá ínfima lacuna

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dell'universo infin qui ha vedute

le vite spiritali ad una ad una,

supplica a te, per grazia, di virtute

tanto, che possa con li occhi levarsi

piú alto verso l'ultima salute.

E io, che mai per mio veder non arsi

piú ch'i' fo per lo suo, tutti miei preghi

ti porgo, e priego che non sieno scarsi,

perché tu ogni nube li disleghi

di sua mortalità co' prieghi tuoi,

sí che 'l sommo piacer li si dispieghi.

Ancor ti priego, regina, che puoi

ciò che tu vuoli, che conservi sani,

dopo tanto veder, li affetti suoi.

Vinca tua guardia i movimenti umani:

vedi Beatrice con quanti beati

per li miei preghi ti chiudon le mani!»

Li occhi da Dio diletti e venerati,

fissi nell'orator, ne dimostraro

quanto i devoti prieghi le son grati;

indi all'etterno lume si drizzaro,

nel qual non si dee creder che s'invii

per creatura l'occhio tanto chiaro.

E io ch'al fine di tutt'i disii

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do universo viu nesta altitude

cada vida espritual como se auna,

te suplica, por graça, de virtude

tanto, que com os olhos se elevara

mais alto até a última saúde.

E eu peço, e por meu ver não me incendiara

mais do que pelo seu, que não esqueças

a minha prece, e que ela lhe bastara,

por que tu toda a nuvem desvaneças

de tal mortalidade com a prece,

e assim sumo prazer lhe ofereças.

Inda peço, rainha, por benesse,

pois podes o que queres, guardes sãos,

se tanto viu, afectos que professe.

Venças na guarda humanos gestos vãos:

vê Beatriz ali com tanto beato

por minha prece a ti erguendo as mãos!»

Fitando o orador em seu recato,

o olhar que Deus venera e lhe é tão caro

mostra o rogo devoto quão lhe é grato;

então o ergueu a luz do eterno amparo,

ao qual crer não se pode que se envie

por criatura olhar assim tão claro.

E eu que ao termo da ânsia toda vi

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appropinquava, sí com'io dovea,

l'ardor del desiderio in me finii.

Bernardo m'accennava e sorridea

perch'io guardassi suso; ma io era

già per me stesso tal qual ei volea;

ché la mia vista, venendo sincera,

e piú e piú intrava per lo raggio

dell'alta luce che da sé è vera.

Da quinci innanzi il mio veder fu maggio

che 'l parlar nostro, ch'a tal vista cede,

e cede la memoria a tanto oltraggio.

Qual è colui che somnïando vede,

che dopo il sogno la passione impressa

rimane, e l'altro alla mente non riede,

cotal son io, ché quasi tutta cessa

mia visione, ed ancor mi distilla

nel core il dolce che nacque da essa.

Cosí la neve al sol si disigilla;

cosí al vento nelle foglie levi

si perdea la sentenza di Sibilla.

O somma luce che tanto ti levi

da' concetti mortali, alla mia mente

ripresta un poco di quel che parevi,

e fa la lingua mia tanto possente,

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me aproximava, tal como devia,

o fim de tal ardor em mi senti.

Bernardo me acenava e me sorria

por que eu olhasse ao alto; mas eu era

já por mim mesmo como ele queria;

que minha vista vinha assim sincera,

e mais e mais no raio se entranhava

da alta luz que só por si é vera.

Desde então o meu ver mais aumentava

que o falar nosso, que a tal vista cede;

como à memória tal excesso agrava.

Como a quem vê sonhando então sucede

após sonho ficar paixão impressa

e à mente já mais nada retrocede,

assim sou eu que quase toda cessa

minha visão, e ainda me distila

ao coração dulçor que lhe começa;

Assim a neve ao sol se dessigila;

assim ao vento pelas folhas leves

se perdia a sentença de Sibila.

Ó suma luz que já tanto te eleves

dos conceitos mortais, à minha mente

um pouco dês do que mostraste, e a atreves,

língua lhe dando mais eloquente,

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ch'una favilla sol della tua gloria

possa lasciare alla futura gente;

ché, per tornare alquanto a mia memoria

e per sonare un poco in questi versi,

piú si conceperà di tua vittoria.

Io credo, per l'acume ch'io soffersi

del vivo raggio, ch'i' sarei smarrito,

se li occhi miei da lui fossero aversi.

E' mi ricorda ch'io fui piú ardito

per questo a sostener, tanto ch'i' giunsi

l'aspetto mio col valore infinito.

Oh abbondante grazia ond'io presunsi

ficcar lo viso per la luce etterna,

tanto che la veduta vi consunsi!

Nel suo profondo vidi che s'interna

legato con amore in un volume,

ciò che per l'universo si squaderna;

sustanze e accidenti e lor costume,

quasi conflati insieme, per tal modo

che ciò ch'i' dico è un semplice lume.

La forma universal di questo nodo

credo ch'i' vidi, perché piú di largo,

dicendo questo, mi sento ch'i' godo.

Un punto solo m'è maggior letargo

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que uma centelha só da tua glória

possa ficar para a futura gente;

que, por um pouco a ter minha memória,

e por soar um pouco nestes versos,

mais se conceberá tua vitória!

E creio, pois vivi transes imersos

no vivo raio, me perdera assim,

se dele os olhos meus fossem dispersos.

E me recordo mais audaz em mim

ao sustê-los por isso, que acresci

o aspecto meu com o valor sem fim.

Ó abundante graça, presumi

fitar meu viso em tua luz eterna,

enquanto nela a vista consumi!

No seu profundo vi como se interna,

ligado com amor num só volume,

o que no mundo se desencaderna;

substâncias, acidentes, seu costume,

quase em fusão conjunta, e em tal feição

que quanto eu digo é só um simples lume.

A forma universal desta união

creio ter visto assim, porque em mais largos

voos, dizendo-o, gozo a sensação.

Um ponto só me causa mais letargos

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che venticinque secoli alla 'mpresa,

che fe' Nettuno ammirar l'ombra d'Argo.

Cosí la mente mia, tutta sospesa,

mirava fissa, immobile e attenta,

e sempre di mirar facíesi accesa.

A quella luce cotal si diventa,

che volgersi da lei per altro aspetto

è impossibil che mai si consenta;

però che 'l ben, ch'è del volere obietto,

tutto s'accoglie in lei, e fuor di quella

è defettivo ciò ch'è lí perfetto.

Omai sarà piú corta mia favella,

pur a quel ch'io ricordo, che d'un fante

che bagni ancor la lingua alla mammella.

Non perché piú ch'un semplice sembiante

fosse nel vivo lume ch'io mirava,

che tal è sempre qual s'era davante;

ma per la vista che s'avvalorava

in me guardando, una sola parvenza,

mutandom'io, a me si travagliava.

Nella profonda e chiara sussistenza

dell'alto lume parvermi tre giri

di tre colori e d'una contenenza;

e l'un dall'altro come iri da iri

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que vinte e cinco séculos à empresa

em que admirou Neptuno a sombra de Argos.

Assim a mente minha, já represa,

mirava fixa, imóvel e atenta

e sempre de mirar se punha acesa.

Aquela luz assim tanto acrescenta,

que dela desviar por outro aspeito

consenti-lo impossível se apresenta;

porque sendo o querer ao bem sujeito,

todo se acolhe a ela, e fora dela

é defectivo o que aí é perfeito.

Ora mais curta a fala se modela,

só a quanto eu recordo, que a de infante

que na mama da mãe co a língua anela.

Não porque mais do que um simples semblante

fosse no vivo lume que eu mirava,

que tal foi antes qual será adiante;

mas pela vista que, se valorava,

em mim olhando, uma única aparência,

mudando-me eu, em mim se trabalhava.

E na profunda e clara subsistência

do alto lume três círculos vi vir

de três cores e de uma continência;

tal como íris a íris reflectir

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parea reflesso, e 'l terzo parea foco

che quinci e quindi igualmente si spiri.

Oh quanto è corto il dire e come fioco

al mio concetto! e questo, a quel ch'i' vidi,

è tanto, che non basta a dicer 'poco'.

O luce etterna che sola in te sidi,

sola t'intendi, e da te intelletta

e intendente te ami e arridi!

Quella cinculazion che sí concetta

pareva in te come lume reflesso,

dalli occhi miei alquanto circunspetta,

dentro da sé, del suo colore stesso,

mi parve pinta della nostra effige;

per che 'l mio viso in lei tutto era messo.

Qual è 'l geomètra che tutto s'affige

per misurar lo cerchio, e non ritrova,

pensando, quel principio ond'elli indige,

tal era io a quella vista nova:

veder volea come si convenne

l'imago al cerchio e come vi s'indova;

ma non eran da ciò le proprie penne:

se non che la mia mente fu percossa

da un fulgore in che sua voglia venne.

All'alta fantasia qui mancò possa;

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dois eram, e o terceiro era qual foco

que de um e de outro por igual respire.

Como é curto o dizer e como é rouco

a meu conceito! e este, a quanto vi,

é tanto que não basta a dizer «pouco».

Luz eterna que só tens sede em ti,

e a ti entendes, e por ti intelecta

e entendente, te amas, ris assi!

Nessa circulação que assim concepta

parecia em ti lume reflectido,

dos olhos meus um pouco circunspecta,

dentro de si, do próprio colorido,

me apareceu pintada nossa efígie;

do que meu viso nela era embebido.

Qual geómatra todo se corrige

um círculo a medir, e não comprova,

pensando, esse princípio que se exige,

tal era eu naquela vista nova:

ver desejava como se conveio

ao círculo a imagem e onde encova;

mas minhas penas eram curto meio:

que então a mente me era percutida

por um fulgor em que seu querer veio.

Foi a alta fantasia aqui tolhida;

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ma già volgeva il mio disio e 'l velle,

sí come rota ch'igualmente è mossa,

l'amor che move il sole e l'altre stelle.

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mas ânsias e vontade era a movê-las,

já como roda por igual movida,

o amor que move o sol e as mais estrelas.