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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES O SAGRADO NO MUNDO MEGALÍTICO PARA UMA META-NARRATIVA Pedro Nuno Machado da Silva Dissertação Mestrado em Museologia e Museografia 2014

o sagrado no mundo megalítico para uma meta-narrativa

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE BELAS-ARTES

    O SAGRADO NO MUNDO MEGALTICO

    PARA UMA META-NARRATIVA

    Pedro Nuno Machado da Silva

    Dissertao

    Mestrado em Museologia e Museografia

    2014

  • 1

    UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE BELAS-ARTES

    O SAGRADO NO MUNDO MEGALTICO

    PARA UMA META-NARRATIVA

    Pedro Nuno Machado da Silva

    Dissertao orientada pelos Professores Doutores:

    Jorge dos Reis e Luis Jorge Gonalves

    Mestrado em Museologia e Museografia

    2014

  • 2

    AGRADECIMENTOS

    Aos meus orientadores:

    Prof. Doutor Jorge dos Reis e Prof. Doutor Lus Jorge Gonalves

    Por tornarem possvel o projecto,

    Ao Prof. Doutor Miguel Ramalho, Director do Museu do LNEG

    Pela disponibilidade e simpatia,

    Ao Prof. Doutor Antnio Jos Coelho

    Pela amizade, pelo constante incentivo e por acreditar,

    Aos meus companheiros da Fundao

    Pela pacincia,

    Patrcia

    Pela reviso do texto,

    A meu Pai,

    Por tudo.

  • 3

    RESUMO

    Partindo da constatao de que no existe no panorama museolgico portugus

    um enquadramento expositivo narrativa - que se assuma como uma histria inteira-

    mente ficcional; partindo ainda do princpio de que a descontextualizao do objecto

    exposto e sua recontextualizao numa histria um recurso museolgico to vlido

    como qualquer outro, se se observarem certos princpios, este trabalho pretende consti-

    tuir essa meta-narrativa: uma pea literria enquanto narrativa museolgica. Parte-se de

    um acervo de Arqueologia Pr-Histrica do Museu do Laboratrio Nacional de Energia

    e Geologia e transmutam-se peas selecionadas em protagonistas de uma histria.

    O esplio considerado compe-se de artefactos de mobilirio fnebre de origem

    megaltica, maioritariamente de carcter ritual e votivo. Foi a partir dele que se optou,

    como temtica a ilustrar, pelo Sagrado, dimenso eminentemente antropolgica a-

    geogrfica e atemporal. Por fim conclui-se com a presuno de que esta proposta se

    possa constituir, no como alternativa necessria abordagem cientfica, mas como um

    complemento museolgico, um outro recurso, em museus de Arqueologia e cincias

    afins e tendo em vista um pblico heterogneo.

    Palavras-chave: Antropologia; Simblico; Sagrado; Megalitismo; Calcoltico; Narrati-

    va; Museologia

  • 4

    ABSTRACT

    Starting from the fact that the Portuguese museum panorama lacks a framework of

    exhibition - narrative which is portrayed as an entirely fictional story; and stemming

    from the idea that, provided certain principles are observed, the decontextualization of

    exhibited objects and their recontextualization as part of a story is a museum resource

    which is as valid as any other, this work seeks to embody this meta-narrative: a literary

    piece as a museum narrative. It starts with a Prehistoric Archaeology collection from the

    Museum of the National Laboratory of Energy and Geology - the selected pieces are

    transmuted into the protagonists of a story.

    The collection in question comprises articles of megalithic burial furniture, mostly

    ritual and votive in character. On this basis, the Sacred was chosen as the theme to be

    illustrated, having an eminently anthropological, a-geographical and timeless dimen-

    sion. Finally we conclude with the presumption that this proposal may be constituted,

    not only as an alternative to the necessary scientific approach, but as a complement in

    the museum context, an additional resource, in museums of archaeology and related

    sciences and with a view to a heterogeneous public.

    Key-words: Anthropology; Symbolic, Sacred; Megalithism; Chalcolithic; Narrative;

    Museology

  • 5

    DEDICATRIA

    memria do meu Av

  • 6

    NDICE

    INTRODUO ............................................................................................................ 10

    ENQUADRAMENTO GERAL .................................................................................. 10

    METODOLOGIA ....................................................................................................... 13

    QUADRO CONCEPTUAL E MODELO TERICO ................................................ 15

    ESTADO DA ARTE ................................................................................................... 16

    1. ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA .............................................................. 18

    1.1 A IMAGTICA TRANSCENDENTAL PR-HISTRICA .......................... 18

    1.2. RITOS SEPULCRAIS NO UNIVERSO MEGALTICO ................................. 21

    1.3. ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O SIMBLICO ........................... 24

    1.4. O SAGRADO .................................................................................................. 27

    2. A NARRATIVA MUSEOLGICA EM MUSEUS DE ARQUEOLOGIA ...... 30

    2.1 INTRODUO ............................................................................................... 31

    2.2. MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA ............................................... 32

    2.3. MUSEU MONOGRFICO DE CONMBRIGA ............................................ 32

    2.4. MUSEU DE ARTE PR-HISTRICA DE MAO .................................... 33

    3. MUSEU GEOLGICO ......................................................................................... 34

    3.1. BREVE APONTAMENTO HISTRICO ....................................................... 35

    3.2. A COLECO DE ARQUEOLOGIA ............................................................ 37

    3.3. THOLOS DO MONGE ................................................................................... 39

    3.4. PEAS INTEGRADAS NA NARRATIVA ................................................... 40

    3.5. SOBRE A TIPOLOGIA FUNCIONAL ......................................................... 41

    3.6. FOTOGRAFIAS DAS PEAS ..................................................................... 42

    4. TEMTICAS CENTRAIS .................................................................................... 49

    4.1. O MEGALITISMO FUNERRIO .................................................................. 49

    4.2. O MOBILIRIO FNEBRE ........................................................................... 52

    4.3. O XAMANISMO ........................................................................................... 53

    CONCLUSO ............................................................................................................... 57

    BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 61

    ANEXOS ....................................................................................................................... 67

  • 7

    NDICE DE IMAGENS

    Fig. 1. Reconstituio de enterramento de Homen de Neandertal. [Acedido em Setembro de 2014]

    http://archaeoethnologica.blogspot.pt/2011/02/as-mumias-de-escocia.html

    Fig. 2. Museu Geolgico, Lisboa [Fonte prpria]

    Fig. 3. Actividade no Museu do LNEG. A Arqueologia como pretexto para a escultura. [Acedido em Agosto de 2014] http://fotoarchaeology.blogspot.pt/2011/10/arqueologia-como-pretexto-para.html

    Figs. 4 a 21. Fotografias das peas da Coleco do Museu Geolgico a integrar na Narrativa [Fonte

    prpria]

    Fig. 22 dolos antropomrficos decorados, destacando-se a meio uma lnula. [Acedido em Agosto

    de 2014]

    http://www.celtiberia.net/articulo.asp?id=2943

    Fig. 23. Xam siberiano actual num ritual do fogo, na presena de dois assistentes.Tambor deco

    rado com smbolos csmicos. [Acedido em Agosto de 2014] https://www.google.pt/search?tbm=isch&q=xam%C3%A3~siberiano+atual&ei=W4IUVaO2IcPbUdTJg9

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    siberiano_10.html%3B323%3B436

    Fig. 24. Gravura de Xam maupeche (Chile) debruado sobre um paciente. [Acedido em Outubro de 2014] https://ancientamerindia.files.wordpress.com/2013/04/mapuches-5.jpg

    Figs. 25-28. Vistas parciais dos expositores da Sala de Arqueologia Pr-Histrica do Museu do

    LNEG. Vista parcial de expositor com artefactos exumados em monumentos megalticos. Reserva

    visitvel ao pblico (com cerca de 150.000 peas) do Museu Geolgico [Acedido em Julho de 2013] http%253A%252F%252Falenteverde.blogspot.com%252F2012%252F03%252Fo-museu-

    geologico.html%3B1600%3B1201

    Fig. 29. Carlos Ribeiro (1818-1882) [Acedido em Agosto de 2014].

    http://www.lneg.pt/CienciaParaTodos/edicoes_online/biografias/carlos_ribeiro

    Figs. 30. Caderno de Campo manuscrito do Prof. Carlos Ribeiro [Acedido em Agosto de 2014] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702013000300865

    https://www.google.pt/search?tbm=isch&q=carlos+ribeiro+arqueologo&ei=cYMUVff2EIjbU-

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    http://archaeoethnologica.blogspot.pt/2011/02/as-mumias-de-escocia.html.%20http:/fotoarchaeology.blogspot.pt/2011/10/arqueologia-como-pretexto-para.htmlhttps://ancientamerindia.files.wordpress.com/2013/04/mapuches-5.jpghttps://www.google.pt/search?q=museu+do+LNEG&rlz=1C1ASUT_enPT601PT601&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=tJ0_VMDRCMjgaKHdgGA&ved=0CAcQ_AUoAg#tbm=isch&q=arqueologia+pre-historica+do+museu+geologico&facrc=_&imgdii=_&imgrc=D9CgRpxtAbczTM%253A%3BbHfD2AtiwSJk7M%3Bhttp%253A%252F%252F2.bp.blogspot.com%252F-NA7DZ0-Fsgw%252FT1Jepuxf4-I%252FAAAAAAAAB-U%252FyYu2MApD6HU%252Fs1600%252FP1000650W.jpg%3Bhttp%https://www.google.pt/search?q=museu+do+LNEG&rlz=1C1ASUT_enPT601PT601&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=tJ0_VMDRCMjgaKHdgGA&ved=0CAcQ_AUoAg#tbm=isch&q=arqueologia+pre-historica+do+museu+geologico&facrc=_&imgdii=_&imgrc=D9CgRpxtAbczTM%253A%3BbHfD2AtiwSJk7M%3Bhttp%253A%252F%252F2.bp.blogspot.com%252F-NA7DZ0-Fsgw%252FT1Jepuxf4-I%252FAAAAAAAAB-U%252FyYu2MApD6HU%252Fs1600%252FP1000650W.jpg%3Bhttp%

  • 8

    Fig. 31. Museu de Mao (artigo no Dirio dos Aores) [Acedido em Agosto de 2014] .http%253A%252F%252Fwww.museuarqueologia.pt%252Fimages%252F2009.11.10_Diario_dos_Acres_pag_12_m.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Fwww.museuarqueologia.pt%252F%253Fa%253D11%252

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    Fig. 32. Museu Quai Branly. Exposio sobre Claude Lvi-Strauss. [Acedido em Outubro de 2014] .http://perso.mediaserv.net/alimanen/PC/ABA/Expos/ExpoLeviStrauss.html

    Fig. 33. Palais de Tquio, Japo. Exposio inspirada na obra de Lvi-Strauss:O Cru e o Cozinhado. [Acedido em Outubro de 2014] http://www.dezeen.com/2013/08/09/baitogogo-by-henrique-oliveira-at-palais-de-tokyo/

    Fig.34. Monumento megaltico, de uma srie de desenhos, blog: Capil. [Acedido em Outubro de 2014] http%253A%252F%252Fcapilecomsoda.blogspot.com%252F2010_10_01_archive.html%3B1600%3B10

    70

    Fig. 35 . dolos calcolticos. [Acedido em Julho de 2013]

    . http%253A%252F%252Fsibulquez.blogspot.com%252F2013%252F10%252Fidolos-calcoliticos-de-el-

    atalayon.html%3B512%3B306

    Fig. 36. Um dia na Pr-Histria (h 5000 anos). Actividade do Museu Arqueolgico de Portimo.

    [Acedido em Agosto de 2014]

    http%253A%252F%252Fwww.sulinformacao.pt%252F2014%252F03%252Fmuseu-de-portimao-

    convida-%2525E2%252580%25259Cvamos-trabalhar-numa-horta-pre-

    historica%2525E2%252580%25259D%252F%3B470%3B705

    Fig. 37. Xam. Museu do Quai Banly, Paris. Exposio: Mestres da Desordem. [Acedido em Julho de 2013]. http://veja.abril.com.br/multimidia/galeria-fotos/mestres-da-desordem-2012 Fig. 38 Xam da Manchria, de 1928. Trabalho de Bin Garten. Museu Ubersee. [Acedido em Julho de 2013] Http%253A%252F%252Fogumexubaraxoroque.no.comunidades.net%252Findex.php%253Fpagina%253

    D1171381053%

    Fig. 39. Ensaio Mulher Yanomami. Claudia Andujar. Exposio: Imigrao helvtica no Brasil,

    S. Paulo, 2003.. [Acedido em Julho de 2013]

    http://www.swissinfo.ch/por/imagens-da-imigra%C3%A7%C3%A3o-su%C3%AD%C3%A7a-ao-

    brasil/15344000

    Fig. 40. Canto dos Xams, blog [Acedido em Julho de 2013] Http%253A%252F%252Fwww.xamanismoancestral.com.br%252Fxamanismo.html%3B400%3B12

    Fig. 41.Canto dos Xams, blog [Acedido em Julho de 2013] .http%253A%252F%252Fwww.cantodosxamas.com.br%252F%3B960%3B465

    Fig. 42.Caractersticas da cultura xamnica [Acedido em Agosto de 2014]

    http%253A%252F%252Fjoyasecovilla.blogspot.com%252F2011%252F10%252Fcaracteristicas-de-la-

    cultura.html%3B646%3B342

    Figs. 43. Monumento Megaltico Tholos do Monge. [Acedido em Julho de 2013] http%253A%252F%252Fwww.panoramio.com%252Fuser%252F6471813%252Ftags%252FMonge%3B

    500%3B312 Fig. 44. Mapa Cartogrfico do Exrcito (1:25000; nr 415;416;429) [Acedido em 2010]

    .hjjklh.hjjklh.hjjklh.hjjklhhttp://www.dezeen.com/2013/08/09/baitogogo-by-henrique-oliveira-at-palais-de-tokyo/http://www.dezeen.com/2013/08/09/baitogogo-by-henrique-oliveira-at-palais-de-tokyo/http://www.swissinfo.ch/por/imagens-da-imigra%C3%A7%C3%A3o-su%C3%AD%C3%A7a-ao-brasil/15344000http://www.swissinfo.ch/por/imagens-da-imigra%C3%A7%C3%A3o-su%C3%AD%C3%A7a-ao-brasil/15344000https://www.google.pt/search?q=museu+quais+branly,+EXPOSI%C3%87AO+MESTRES+DA+DESORDEM&rlz=1C1ASUT_enPT601PT601&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=FzVAVL5XzLVpt_uA4AQ&ved=0CAYQ_AUoAQ#tbm=isch&q=canto+dos+xam%C3%A3s&facrc=_&imgdii=_&imgrc=1z8kc7lz0i6ZEM%253A%3BVg9IRSMm8obO6M%3Bhttp%253A%252F%252Fwww.cantodosxamas.com.br%252Fimg%252Fnav_alt.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Fwww.cantodosxamas.com.br%252F%3B960%3B465https://www.google.pt/search?q=museu+do+LNEG&rlz=1C1ASUT_enPT601PT601&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=tJ0_VMDRCMjgaKHdgGA&ved=0CAcQ_AUoAg#tbm=isch&q=+tholos+do+monge%2C+sintra&facrc=_&imgdii=_&imgrc=W84YqYDaocxjcM%253A%3BXN6_AEyZZVfLEM%3Bhttp%253A%252F%252Fmw2.google.com%252Fmw-panoramio%252Fphotos%252Fmedium%252F63219829.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Fwww.panoramio.com%252Fuser%252F6471813%252Fthttps://www.google.pt/search?q=museu+do+LNEG&rlz=1C1ASUT_enPT601PT601&espv=2&biw=1366&bih=667&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=tJ0_VMDRCMjgaKHdgGA&ved=0CAcQ_AUoAg#tbm=isch&q=+tholos+do+monge%2C+sintra&facrc=_&imgdii=_&imgrc=W84YqYDaocxjcM%253A%3BXN6_AEyZZVfLEM%3Bhttp%253A%252F%252Fmw2.google.com%252Fmw-panoramio%252Fphotos%252Fmedium%252F63219829.jpg%3Bhttp%253A%252F%252Fwww.panoramio.com%252Fuser%252F6471813%252Ft

  • 9

    Au-del des apparences, allons chercher la joi, le sens cach et sacr

    de tout ce qui est dans cette terre enchenterrese et terrible

    J. Chevalier

    necessrio que haja na representao o recesso

    sempre possvel da imaginao.

    Michel Foucault

  • 10

    INTRODUO

    ENQUADRAMENTO GERAL

    O objectivo deste trabalho a elaborao de uma narrativa museolgica, porm

    diferente da dos moldes clssicos. Trata-se de um conto, um conto que se assume como

    inteiramente ficcional; e, portanto, de uma meta-narrativa, isto , uma narrativa ficcio-

    nal como narrativa museolgica. De facto, como nota Luis J. Gonalves a propsito do

    papel da narrativa na gnese da criatividade simblica activa, hoje, sobre qualquer

    suporte, tal como para o primeiro homem, junto ao fogo, o mais importante uma boa

    histria. (GONALVES, 1998)

    Atravs do facilitamento da exposio com o universo vivencial do visitante, por

    analogia e empatia temticas, o binmio conto-peas prope-se promover a refleco

    sobre o Homem intemporal, enquanto productor, usufruidor e produto da sua relao

    com a matria, a memria, os ritmos, o gesto, a linguagem, o Sagrado, a Religio; no

    fundo, a dicotomia incontornvel e perene do Sagrado e do profano.

    O trabalho incidir sobre um acervo selecionado de entre a Sala de Arqueologia

    Pr-Histrica do Museu do Laboratrio Nacional de Energia e Geologia. Tem, como

    objectos, artefactos rituais, votivos e quotidianos das pocas pr e proto-histricas (Neo-

    ltico Mdio Calcoltico), exumadas pelos cientistas desta Instituio em territrio

    nacional.

    Ao mesmo tempo, a um nvel mais pessoal, gosto de ver neste trabalho um mo-

    desto tributo a uma gerao de percursores do mais profcuo e dedicado trabalho cient-

    fico e ainda ao Museu, ele prprio, cujo valor tantas vezes menosprezado, nesta vora-

    gem da museologia franshising e museografia ciberntica. De facto, subir a escadaria da

    Antiga Academia das Cincias situada no Convento de Jesus e espraiar o olhar pela

    imensa sala de mobilirio quase centenrio e luz maioritariamente zenital, albergando as

    mais de cento e cinquenta mil peas arqueolgicas exumadas pelos cientistas pioneiros

    das Comisses Geolgicas do Reino, foi para mim uma experincia de circunspeco e

    assombro.

  • 11

    A minha formao de base enformou a minha inquietao e perspectiva: O que

    que um antroplogo poder fazer com isto? Ou melhor: O que que esta coleco po-

    der dizer a um dado pblico atravs do olhar de um antroplogo?

    Expr e comunicar uma parte deste acervo de acordo com uma narrativa, e com

    uma narrativa radicalmente diversa da museologia do objecto (da tipologia, da crono-

    geografia), integrando as peas numa simblica, foi tomando forma no meu esptito. De

    facto, trata-se de uma seco subsidiria do Museu em que, como o nome Coleco

    Visitvel (na actual nomenclatura legislativa) indica, o material, quase em bruto, apre-

    senta um enorme potencial, permitindo, assim, um grande leque de abordagens. Uma

    leitura mais atenta lana-me o desafio: Por que no contar uma histria?, fazer de uma

    narrativa-conto a narrativa museolgica expositiva? Quem e como eram estas persona-

    gens por detrs dos objectos, no irreductvel recenso das cincias histricas e arqueo-

    lgicas? Por ltimo, esta estratgia comunicacional afigurou-se-me interessante como

    contraponto ao panorama museal da Arqueologia Pr-Histrica atrs descrito.

    Partimos da hiptese de que a descontextualizao voluntria do objecto museal e

    sua recontextualizao numa narrativa a meta-narrativa uma estratgia museol-

    gica to vlida como qualquer outro recurso museolgico e expositivo.

    Como pergunta hipottica, pretendemos saber se esta proposta dar lugar a um

    aport novo em termos de abordagens no panorama da museologia pr-histrica e arque-

    olgica e a uma interaco enriquecedora destes dados com a narrativa museolgica

    pretendida; e ainda se tal no resultar num discurso hbrido, mas num meta-dilogo

    criativo que possa corresponder, de modo complementar a outros discursos, s expecta-

    tivas de um pblico heterogneo e no-especialista.

    Antropologicamente, parto da concepo de Ernest Cassirer (bem resumida por

    Augusto Mesquitela-Lima) que designa o Homem por animal simbolicum (MES-

    QUITELA-LIMA, 1983: 26), isto , capaz de significar, de atribuir sentido, conceber

    abstractamente e ter conscincia da sua prpria finitude, qui do alm. Esta sua facul-

    dade apresenta pontos de contacto com a teoria da complexidade humana, na obra de

    referncia de Edgar Morin1, em que o autor se debrua sobre a evoluo bio-scio-

    cultural do Homem, sem descurar o tema do Sagrado.

    Acontece que estamos a lidar, na tipologia de Mesquitela-Lima, com artefactos,

    mentefactos e sociofactos (MESQUITELA-LIMA, 1983: 14), - de que nos chegam

    1 Tema central de Edgar Morin na obra: O Paradigma Perdido: a natureza humana. (1973). V. Biblio-grafia.

  • 12

    os vestgios materiais, por vezes esparos, truncados e fragmentrios - isto , obras do

    Homem, e, portanto, passveis de se converterem em objecto museal, se trabalhados,

    fazendo apelo aos patrimnios, tanto material, como imaterial.

    Marcel Mauss, em Ensaio sobre a Ddiva, j em 1922 introduzia o conceito de

    factos sociais totais, ou seja, dados culturais que, pela pluralidade simblica numa

    cultura dada, apelam a uma panplia de dimenses, pelo que, na sua interpretao, se

    tornam irreductiveis a perspectivas disciplinares unas. (MAUSS, 1960)

    Penso que isto tem implicaes nas narrativas museolgicas e solues museogr-

    ficas, cujos museus versem, por vocao, as Humanidades e, no caso vertente, a Arque-

    ologia Pr-Histrica (baseada, ou no, na controversa Etno-Arqueologia). A contextua-

    lizao na museologia j existe, certo, e atravs de variadas solues, da simples le-

    gendagem minimalista, ao mundo interactivo. O repto est pois, para l desta contextua-

    lizao que informa o visitante.

    O que se pretende que, neste tipo de museus, o pblico tenha ao seu dispor uma

    multiplicidade de leituras, em vez do interessante, mas confinante, discurso

    uni/transdisciplinar j acabado e que, tal como um filme feito a partir de uma obra lite-

    rria, constitui apenas a viso da obra por parte do realizador. claro que h opes a

    assumir e subjectividades inevitveis dos muselogos/conservadores (excluo aqui os

    comissrios de exposies temticas muito especficas). Mas deve deixar-se aos pbli-

    cos a oportunidade de optarem, e no o inverso.

    Posto isto, lcito colocar este projecto em forma pergunta: Por que que, num

    Museu de Arqueologia Pr-Histrica, uma das dimenses do discurso narrativo propos-

    to, no h-de ser uma narrativa literria?

  • 13

    METODOLOGIA

    Para a prossecuo deste trabalho, adoptmos as fontes a seguir se apresentam:

    Documentao do Museu do Laboratrio Nacional de Energia e Geologia (LNEG)

    (no existem fichas de inventrio desta coleco na Instituio); publicaes e catlo-

    gos;

    Bibliografia geral e especfica, com destaque para a de Arqueologia e Antropolo-

    gia;

    Estudo presencial em Museus, em especial o do Museu do LNEG, mas ainda o

    Museu Nacional de Arqueologia, o Museu Etnogrfico, o Museu de Mao, o Museu de

    Conmbriga e o Museu de Mrtola;

    Entrevistas (exploratria e centradas) ao Director do Museu do LNEG; entrevista

    livre ao director do Museu de Mao e questionrios no presenciais aos directores e

    responsveis pelas seces de Arqueologia dos restantes museus atrs citados;

    Consulta de documentao no Instituto de Gesto do Patrimnio Arquitectnico e

    Arqueolgico (IGESPAR).

    Tentei saber, sobretudo: Qual o destaque atribudo temtica do Sagrado no dis-

    curso museolgico?

    No entanto, pelas caractersticas do trabalho a construo de uma narrativa - tra-

    ta-se de uma metodologia qualitativa. O argumento desta meta-narrativa ser funo dos

    contedos a ilustrar e estes, por sua vez, pelas peas mais representativas do acervo,

    tendo em conta essencialmente a sua funcionalidade original e segundo um critrio, para

    todos os efeitos, subjectivo; trata-se, portanto, de uma atitude indutiva, este percurso do

    objecto ao conto.

    Parto de um tratamento cientfico dado, conreto com a particulidade vantajosa

    da sua no contextualizao (nos moldes em que hoje a conhecemos), de acordo com a

    museologia oitocentista - e proponho, em lugar dele, um discurso radicalmente oposto,

    isto , no tcnico-cientfico. Da simples legendagem sumria, salto as etapas e objecti-

    vos da Museologia convencional, rejeitando essa direco e pretendendo chegar ao do-

    mnio da imaginao pura, neste caso, a fico. Evidentemente no um trabalho a-

    cientfico, no prescinde da Cincia, nomeadamente da Antropologia e da Arqueologia,

    mas as peas, no sendo objecto de uma reconstituio cientfica, tero apenas um

    enquadramento narrativo, tendo por critrio e princpio orientador as balizas do do pos-

  • 14

    svel. Em todo o caso, basear-me-ei em autores de referncia, se bem que preenchendo

    com a liberdade da imaginao alguns vazios de interpretao, mas, mais geralmente,

    propostas de caminhos alternativos. Re-contextualizarei ainda dados objectivos (por

    vezes cronolgica e/ou geograficamente) tendo em vista um cenrio idealizado e mais

    rico, tal como explanarei mais adiante.

    Tendo em conta o objectivo e catactersticas do trabalho, particularmente o peso

    da subjectividade e da intuio, as etapas da sua elaborao so relativamente reduzidas

    e, a despeito da investigao necessria, so simples:

    De acordo com a informao disponibilizada sobre cada pea principalmente a

    funo e a provenincia (e ainda, da minha formao e interesses) chego uma temti-

    ca: o Sagrado no mundo megaltico; com este critrio, elejo um conjunto provisrio de

    peas;

    Num segundo momento, procedo investigao:

    - Das peas;

    - Dos temas gerais: Antropologia do Simblico; Arqueologia da Morte

    Sagrado-Profano;

    - Dos temas particularas: Megalitismo Funerrio; Calcoltico; Xamanis-

    mo; e o local e data da Narrativa;

    Em terceiro lugar, reajusto a coleco de peas, de acordo com a investigao;

    Num quarto momento, uso um critrio museolgico: Que peas sero mais sus-

    ceptveis de suscitar um interesse de um pblico/leitor?, e que pblico?;

    Tendo em conta o ponto anterior, fao uma ltima depurao da minha coleco.

    Finalmente (e de acordo com o exposto no captulo Introduo), opto pela Novela,

    enquanto narrativa museolgica.

    Portanto, este processo foi entretecido de subjectividade e feito de balanos; do

    equilbrio entre estas etapas, da interaco - que no se mistura, nem se confunde, mas

    se complementa entre a parte cientfica e a parte literria-ficcional.

  • 15

    QUADRO CONCEPTUAL E MODELO TERICO

    Embora este trabalho trate da concepo de uma narrativa ficcional, importante

    baliz-la conceptualmente dentro de certos parmetros. Tais parmetros, embora no a

    transformem, por opo, num relato cientfico, importante, contudo, que lhe atribuam,

    a estrutura da verosimilhana e coerncia internas.

    Assim, em termos tericos basear-me-ei no quadro conceptual da Paleoantropolo-

    gia Cultural2, paradigma e perspectivao na qual, mais alm da transdisciplinaridade,

    se podem, a meu ver, quase fundir, estas perspectivas cientficas de encarar o ser pre-

    sente e o ser passado: a Antropologia Hermenutica/Interpretativa e a Arqueologia Ps-

    Processual/Simblica (ambas bebem, alis, da Antropologia Estrutural e do relativis-

    mo). Portanto, no geral, as invariantes psquico-mentais finitas na origem da multiplici-

    dade das manifestaes culturais observveis no tempo e no espao, a hierarquia dos

    smbolos, o dado arqueolgico enquadrado na teia de significados veiculados pela sua

    qualidade de smblica, a metfora da sociedade enquanto texto (de meta-texto para o

    cientista/observador).

    Como autores de referncia privilegiarei: C. Lvi-Strauss (Simblico, Mito, Rito),

    M. Eliade (Sagrado, Religio), E. Morim (Hominizao), R. Barthes (Narrativa), Ian

    Hodder (Arqueologia Interpretativa), M. Foucauld (Semiologia), V. Propp (Conto), A.

    Leroi-Gourhan (Linguagem, Tcnica, Religio), C. Geertz (Antropologia Simblica), E.

    Cassirer (Teoria Simblica da Cultura), V. Oliveira Jorge (Arqueologia, Pr-Histria,

    Paleoantropologia Cultural, Megalitismo) e V. Gonalves (Neoltico, Calcoltico).

    Neste trabalho recorrerei a conceitos gerais operacionalizados na narrativa e que

    divido da seguinte forma: para a estrutura do conto, a Linguagem, a Semiologia e a Nar-

    rativa; e para o enquadramento temtico, a Cultura, o Simblico, o Sagrado e o profa-

    no. Quanto s temticas especficas da narrativa-conto destacarei, em sentido lato, o

    culto dos mortos e o Xamanismo.

    Cincia cabe analizar, teorizar, prever (como Filosofia, elaborar conceitos,

    Teologia, fundamentar dogmas, Arte, em geral, proporcionar a fruio); ao Museu,

    ilustrar e integrar tudo isto, atravs da magia e da interrogao; mas por parte de todos

    os seus actores muselogos, musegrafos, pblico apelar tambm imaginao.

    2 A Paleoantropologia Cultural foi uma disciplina cientfica teorizada por Victor Oliveira Jorge nos anos Setenta e a que dedicou diversas obras e artigos. V. Bibliografia.

  • 16

    Sem esta dimenso, expectvel por ambos os lados, quer o projecto, quer a visita no

    esto cabalmente conseguidos.

    ESTADO DA ARTE

    A fico literria, baseada na Cincia (no caso a Arqueologia) no deve confun-

    dir-se com o gnero fico cientfica. , decerto, um discurso imaginrio, mas que pode

    at ser contraditrio a tais factos e princpios e que, embora baseado em dados reais, a

    plausibilidade baseada na Cincia no um dos requisitos obrigatrios.

    A literatura sobre o final da Pr-Histria esgota-se entre o discurso acadmico,

    hermtico e necessariamente especializado, alguns livros e captulos de divulgao cien-

    tfica, a ilustrao didtico-juvenil e a efabulao megaltica New-Age. O panorama

    museolgico portugus reflecte, compreensvel e at meritoriamente este estado de coi-

    sas. o que Zapatero chama a Arqueologia em verses acadmicas, divulgativas [mas

    tambm] esotricas e fantasiosa (ZAPATERO, 2012: 37), que extravasam, alis, a lite-

    ratura e o museu. Na verdade um texto no sempre escrito, e considero, pois, o Museu

    como um suporte comunicativo de um qualquer texto.

    , parcialmente, o que acontece em discursos museolgicos que sendo de certa

    forma hbridos, oferecem diferentes narrativas, tendo em conta o pblico infantil e juve-

    nil. So o caso, por exemplo dos excelentes museus de Arqueologia de Mrtola, com os

    seus filmes projectados no interior de uma gruta, do Ca Parque, com os filmes anima-

    dos, seguidos de actividades pedaggicas, e ainda os dos museus do Sagrado, de Mao

    e o de Arqueologia, de Portimo, onde so narradas histrias pelos seus tcnicos.

    Contudo no existe uma proposta narrativa consistente que se assuma como intei-

    ramente ficcional. E no entanto, um pouco a contrarium, cabe-me destacar dois autores,

    alheios Museologia, cujas obras de algum modo me influenciaram neste trabalho, quer

    pelas teses slidas, arrojadas e incmodas apresentadas, quer, sobretudo, por todo o po-

    tencial que encerram em desejveis transposies para o Museu, e que, em minha opini-

    o, permitiriam sedutoramente a histria e a viagem subjectiva mais livres: Lewis-

    Williams, num livro: The Mind In The Cave, de recenso bibliogrfica muito vasta e

    actualizada, que foca o papel central da cultura xamnica na elaborao das pinturas

    rupestres do Paleoltico Superior; e Jacques Cauvin, no livro: Nascimento das Divinda-

    des, Nascimento da Agricultura, onde o autor, com grande rigor intelectual e atravs de

  • 17

    uma profuso impressionante de dados arqueolgicos, destaca (qui de modo definiti-

    vo) a dimenso simblica como motor das mudanas estruturais do Neoltico.

    Vale a pena referir, para terminar, o que escreveu o director artstico do Museu

    Coleco Berardo na Exposio: O Narrador Relutante:

    A narrativa aqui significa sobretudo fico, entendida como processo de conjectura

    sobre as possibilidades do real e das suas legibilidades, apropriaes e interpreta-

    es. A fico emerge () como uma estratgia de configurao da mutabilidade

    das realidades e da sua contnua sobreposio. (LAPA, 2014)

  • 18

    1. ANTROPOLOGIA E MUSEOLOGIA

    Para a prossecuo do meu objectivo importante apresentar, de modo resumido,

    algumas temticas antropolgicas intimamente relacionadas com o modo como concebo

    e enquadro a minha narrativa enquanto discurso museolgico, pea literria e leitura

    das peas arqueolgicas que elegi e que so, por assim dizer, as protagonistas do conto.

    Antropologia, Arqueologia e Museologia, so disciplinas tcnicas, mas tambm

    so Cincias Sociais e Humanas. No caberia neste trabalho avaliar todas as suas rela-

    es. Em todo o caso, julgo importante referir alguns pontos de contacto, sempre que tal

    ajude a compreender as minhas opes, o quadro conceptual adoptado e a minha prpria

    viso da Museologia.

    1.1 A IMAGTICA TRANSCENDENTAL PR-HISTRICA

    Sem pretender fazer aqui uma recenso crtica das abordagens pr-histricas sobre

    a morte ou mesmo dos problemas tericos levantados pela Arqueologia da Morte, im-

    porta notar que a morte , desde sempre, um tema privilegiado na Arqueologia. Mesmo

    antes de se constituir como disciplina cientfica, os esplios morturios apaixonavam os

    pioneiros arquelogos das Civilizaes Clssicas e Pr-Clssicas. Por seu turno, o Sa-

    grado e o religioso eram tambm objecto do Museolgico, desde os santurios gregos,

    ao mobilirio fnebre do Antigo Egipto, aos ex-votos que, tal como actualmente, podem

    tomar a forma de variados objectos. No entanto, no se no aquando do encontro da

    Arqueologia com a Antropologia, no movimento Nova Arqueologia dos anos 60 e 70,

    que ela detm a sua ateno nas prticas morturias, em si prprias. A Arqueologia Ps-

    Processual perde, neste domnio, uma oportunidade de se afirmar como uma proposta

    neutra de leitura contextual simblica ao aventurar-se em consideraes ideolgicas e

    de que no saiu isento tambm o Estruturalismo. Mas no se trata tanto de ambiguidade,

    mas sim de opo, de leituras possveis. A montante das interpretaes focadas nas es-

    truturas sociais e econmicas, a manipulao dos mecanismos ideolgicos e dos meios

    de produo, a reproduo social. (SERRANO, 2012: 8) As questes da igualdade

  • 19

    versus a explorao do homem pelo homem o carcter ritual das prticas funerrias

    pr-histricas, suas simbologias e representaes que me interessam e se inserem, at

    por definio, numa Paleoantropologia Cultural (JORGE, 1997), enquanto perspectiva

    mais holstica do Homem passado, da sua diversidade e unicidade, do que a multiplici-

    dade das arqueologias.

    O termo Arqueologia da Morte no consensual em Arqueologia. Um recente

    congresso de Arqueologia, por exemplo, reserva para esta temtica o epteto mais mo-

    desto e pragmtico de Arqueologia das prticas morturias3. Penso, no entanto, que a

    Arqueologia, enquanto cincia do comportamento, mas tambm da vida, no deve ter

    pejo em encarar a morte. Destaco, porm, M. Pearson, pela seriedade, assumpo do

    paralelo etnogrfico e preocupao simblica, transcendendo a Etno-Arqueologia, numa

    atitude contra-corrente, nomeadamente em Learning from the dead:

    Interpretation draws on theory our rationalizations of our experiences in the world in

    order to make sense how and why people of the past treated their dead, disposed of their

    remains, and provide ways for the dead to co-exist with the living. (PEARSON, 1999:20)

    Mas, prudentemente:

    Analogies between ethnographic and archaeological data should be judged by the degree

    of congruence and compatibility between relevant aspects of those societies past and pre-

    sent. (PEARSON, 1999:20)

    No clebre adgio de Heidegger, somos seres para a morte; somos os nicos seres

    com a percepo da sua prpria finitude. Curiosamente (a cincia profcua nestes apa-

    rentes paradoxos), um muselogo, Lus Lobo, resumiu muito bem esta condio: a pro-

    psito de um interessantssimo paralelo entre o monumento megaltico e o Museu, parte

    da definio da nossa espcie como ser de Cultura, cujo primeiro fruto da aprendizagem

    colectiva seria a prpria noo do tempo e, logo, da morte, da eternidade, da preserva-

    o e da memria. (LOBO, 2012: 75) Este facto no despiciendo para qualquer socie-

    dade humana, histrica ou geograficamente considerada. Ser que, no breve perodo da

    vida humana, a impregnemos de uma multiplicidade de complexas significaes que

    transcendam em muito as nossas aces quotidianas? Segundo Lvi-Strauss, trata-se de

    uma pergunta retrica, uma vez que a Antropologia Estrutural v a Cultura como um

    3 II Congresso Arqueolgico dedicado a esta temtica, vora, Maio de 2013.

  • 20

    super-sistema de smbolos, ou, de acordo com Mesquitela Lima (seu discpulo), uma

    Simblica. E o alm?

    No nos demoremos nos significados da morte. Frisemos apenas que jamais en-

    carada como um fim em si, mas que abre acesso a um reino outro, do(s) esprito(s) e

    verdadeira vida, para as Religies do Livro. Na simblica inicitica ritual, em socieda-

    des grafas ou urbanas, modernas, abre tambm acesso a uma vida superior, porque

    sapiente.

    Do ponto de vista da Antropologia clssica, o rito a representao de crenas

    mgicas, um acto eminentemente religioso, simblico, que visa fazer reviver os mitos

    por parte de uma colectividade, fazendo-a participar no divino.

    Mas, esta perspectiva ainda demasiadamente lata para nos ater. O que nos im-

    porta so as prticas funerrias, o ritual especfico do culto dos mortos, integrado nos

    designados ritos de passagem e de iniciao e a manipulao simblica de objectos a

    eles associado. Por outro lado, dificilmente algo, de entre os vestgios materiais, far

    sentido, se no tentar alcanar, com seriedade, mas arrojo, o imaterial do alm-tmulo,

    as representaes, as percepes, as projeces dos vivos.

    comum encontrar estes dois tipos de comportamentos interligados ao culto dos

    mortos desde os primrdios da Etnografia europeia e norte-americana. ainda possvel

    detectar nas modernas sociedades contemporneas os resqucios desse denominador

    comum (ou, para descartar o paradigma evolucionista, as mesmas preocupaes), prin-

    cipalmente nos sacramentos religiosos.

    Ao retornarmos expresso ritos de passagem, queremos enfatizar o facto inelu-

    tvel de a morte significar a brutalidade inevitvel do desaparecimento de entre o seio

    do grupo e o no-retorno. Por outro lado, este acontecimento reveste-se sempre de uma

    aura radicalmente ambivalente. O defunto, natural ou sobrenatural, sobre-humano ou

    infra-humano, benfazejo ou malfazejo, participa sempre de um destino: poderoso / divi-

    nizado, ou submisso / penalizado. Tal a polaridade simblica atribuda ao desconheci-

    do (tal como a escurido e a loucura), inexistncia, finitude de uma condio e, qui-

    , sua ultrapassagem.

    Ser essa conscincia ancestral do reino da morte, esse sentimento ambivalente e

    simbolicamente investido, a origem das inumaes?

    Como j Durkheim fazia notar, nas mentes dos nossos antepassados (por extrapo-

    lao etnogrfica), a morte constitua uma continuidade da vida, qual etapa invisvel do

    ciclo vital animista. (DURKHEIM, 1992)

  • 21

    Mais prudentemente, o que a Paleoantropologia parece afirmar , de modo muito

    geral, a existncia de prticas rituais propiciatrias destinadas aos espritos ancestrais

    para a proteco e prosperidade dos vivos, do grupo. Inclui-se aqui, aquando da agricul-

    tura, das colheitas e da fertilidade em geral (no descurando a das mulheres, num para-

    lelo bvio). Ora, tanto quanto alcanam a experincia antropolgica e histrica, nenhu-

    ma sociedade humana (e em alguns casos de entre outros animais) deixa de submeter os

    seus defuntos a atenes particulares (incluindo a monumentalidade) e cuja finalidade

    poder bem ser, antes do mais, de cariz tranquilizador. E, no caso da nossa subespcie,

    tais cuidados estaro recheados desta dimenso de significao no-imediata, no estric-

    tamente funcional.

    Como em qualquer comportamento ou objecto (animado, inanimado ou artefactu-

    al), mentefacto ou sociofacto de carcter simblico, ele no se descodifica nem se repor-

    ta a uma realidade outra como mero signo significante, isto , de modo directo e imedia-

    to. Tal como nos propem a Lingustica, a Antropologia Estrutural e a Etno-Psicanlise,

    antes se interpretam, de acordo com regras prprias, num conjunto estruturado e estrutu-

    rante, que continuam a pr prova os limites da Arqueologia. Alis, como bem observa

    Pedro Paulo Funari:

    um aspecto antropolgico de particular ressonncia para o estudo dos vest-

    gios materiais, consiste no seu carcter narrativo, semitico, comunicativo,

    da vida em sociedade. (FUNARI, 2011: 359)

    nesta acepo que objectos rituais e votivos e/ou alfaias litrgicas ganham signi-

    ficao, para alm de qualquer imediatismo. Museologicamente considerados, transcen-

    dendo o valor enciclopdico e descritivo, a tipologia formal (morfolgica), ou ainda a

    bizarria que v o nosso ancestral como mais bruto que um paquiderme actual (que, co-

    mo sabemos, compromete a chegada aos seus recursos vitais para velar os seus mortos).

    o acervo, assim contextualizado, que subjaz e pontua a minha narrativa.

    1.2. RITOS SEPULCRAIS NO UNIVERSO MEGALTICO

  • 22

    Se atendermos s ao que l est, em cada local, no vemos o mais importante,

    porque estamos a observar restos mnimos do que existiu o mais importante o

    que no est l, precisamente, o que temos de imaginar. (AA.VV, 2003: 56)

    Vale a pena recordar a poca em que o vestgio pr-histrico e que, no que toca ao

    megalitismo nacional, no era ainda reconhecido como tal. No sec XVI Frei Bernardo

    de Brito, preocupado em demonstrar realeza os pergaminhos do territrio portugus,

    identificava os monumentos como altares pagos, mas, mesmo assim, cedendo ao sin-

    cretismo cristo, recolhiam-se zelosamente as peas encontradas no seu interior como

    relquias de santos, como era apangio, alis, do colecionismo. As relquias, por seu

    turno, como da Antropologia e da F, so o receptculo do Sagrado.

    O estudo comparado das prticas funerrias f-las remontar s sociedades arcaicas

    do Paleoltico Mdio, Musteriense. desde h muito evidente na Arqueologia Pr-

    Histrica que algumas comunidades neandertalenses de h perto de 300 mil anos conce-

    diam particular ateno aos seus mortos, sepultando-os ocasionalmente em deposies

    especficas, rodeando-os de objectos e cobrindo as tumbas com algumas lousas. Ve-

    jamos como Garcia Sanjun considera a ideologia funerria:

    conjunto de noes simblicas que articulam as relaes entre os vivos e os mortos

    (ancestrais) atravs de prcticas e rituais centradas no tratamento dos cadve-

    res (escatologia), incorporam uma importante dimenso material. (SANJUN,

    2008: 36)

    Se o Homem ritualiza, significa o mundo, postula, resumindo, o etngrafo e ca-

    tedrtico em Antropologia, Mesquitela Lima (MESQUITELA-LIMA, 1983: 34), a mo-

    derna Psicologia Social tem tambm uma palavra a dizer sobre a relao dos actos de

    significado com a narrativa cultural; Nas palavras de Bruner:

    [A atribuio de] significados atravs da mediao da interpretao narrativa

    uma das realizaes mximas do desenvolvimento humano nos sentidos ontogen-

    tico, cultural e filogentico da expresso. Na perspectiva cultural imensamente

    suportado por recursos narrativos armazenados por uma comunidade e, igualmente,

    pela sua preciosa panplia de tcnicas interpretativas. (BRUNER, 1990:75)

    Tal como mostram a Antropologia e a Arqueologia, o tratamento e o culto dos

    mortos uma prtica quase universal da conduta humana e evidentemente coadjuvada

  • 23

    por uma parafernlia de alfaias. O mesmo autor prossegue enfatizando que esta ideolo-

    gia nas sociedades grafas significa (para alm das relaes sociais e de poder) a fixa-

    o material do tempo, a memria, a identidade cultural. (BRUNER, 1990:36). Valo-

    res sociais e simblicos incontornveis e a-histricos, e que levam M. Romero, num

    trabalho em que passa em revista as principais perspectivas tericas sobre o megalitis-

    mo, a considerar os sepulcros como depsitos da identidade humana. (ROMERO,

    2002: 203) Para J. Barrett, especialista citado pelo referido autor, a presena da morte e

    os rituais megalticos dedicados aos antepassados tm o papel de sancionar e at de es-

    truturar o comportamento dos vivos. Serve, portanto de mapa genealgico identitrio. E

    onde se sustentam, segundo o mesmo autor, sentimentos histricos, jogos de memria

    () e relaes com a cosmologia. (BRUNER: 1990: 203) Ainda nesta linha eminen-

    temente simblica, mas mais especificamente actuante, prctica, no sentido de cerimo-

    nial, D. Cruz afirma que o monumento megaltico, em geral, um centro cerimonial,

    restrito, onde se pratica e celebra a arte dos mortos e dos deuses, de denso simbolismo

    hermtico [s] passvel de interpretao por iniciados. (VARELA, 1997)

    No entanto, estas manifestaes simblicas no sentido estricto em que ultrapas-

    sam a ordem meramente material e utilitria so ainda insuficientes para nos autoriza-

    rem definitivamente uma leitura mgica ou religiosa desses gestos, mas to s pressupor

    uma ideao sobrenatural imanente a tal comportamento. O que nos importa este pon-

    tuar antrpico da paisagem dedicado sobretudo domesticao da morte e do morto

    atravs de prticas cultuais especficas.

    certo que para alm desta vertente mais especificamente simblico-religiosa, da

    cosmoviso, da definio da sacralidade (e, de qualquer modo longe das leituras marxis-

    tas e funcionalistas), outras dimenses esto tambm presentes e de algum modo com-

    plementares para integrar a narrativa que nos propomos: a organizao social ainda

    igualitria na Pennsula Ibrica no alvor Calcoltico e sobretudo uma economia e territo-

    rialidade ainda bastante baseada na pastorcia, na qual se supe uma transumncia pe-

    ridica, onde os grupos, ainda de pequenas dimenses, se congregam e dispersam. Por

    esta razo, M. Romero prope mesmo que, mais do que as interpretaes clssicas dos

    recursos e das sociedades definitivamente campesinas, de organizao socio-poltica

    hierarquizada, os monumentos megalticos desta poca seriam sobretudo marcos que

    configurariam o modo como as gentes podem mover-se atravs do espao sacraliza-

    do; monumentos, talvez eles prprios, de funo tambm propiciatria. (ROMERO,

    2002: 200) De qualquer modo, no vemos contradio entre o que expomos e o que

  • 24

    postula Varela quando afirma tratar-se de o dealbar da concentrao do poder scio-

    religioso em determinados indivduos numa sociedade tribal e patriarcal. (VARELA,

    1997) ainda assim o caso dos aborgenes da Austrlia em relao aos Trilhos do So-

    nho dos antepassados mticos; pois nesta categoria que se investem provavelmente os

    antepassados clnicos, embora o estatuto dos defuntos nestas necrpoles continue a ser

    um mistrio e alvo de controvrsia, bem como a extrapolao.

    O que nos interessa sobretudo reconhecer, para alm da variabilidade dos rituais

    fnebres, essa constncia da necrpole como lugar sagrado, de que nos fala - a par da

    manipulao simblica do defunto o mobilirio fnebre: a oferenda cerimonial do

    artefacto votivo e/ou propiciatrio, a ornamentao, o ocre vermelho revitalizante, ou

    sangue, metonmia da morte/vida, o fogo, morte/renascimento, a alfaia ritual, a transmu-

    tao da utensilagem domstica

    Os comportamentos no se fossilizam, certo, mas lcito pressupor que algum

    socialmente destacado oficiasse especificamente esta liturgia, um xam, um chefe clni-

    co ou de aldeia. Tais atitudes configuram claramente um ritual de passagem e espelham

    decerto uma mitologia, uma estrutura imaginria subtil e requintada destes povos que,

    como em todos, constitui uma conscincia e uma representao metafsica unindo os

    planos da vida e da morte e assegurando um sentimento de pertena grupal.

    desta bsica inquietao humana, do que resta destes rituais, o que podemos en-

    contrar na Sala de Arqueologia Pr-Histrica do Museu do Laboratrio Nacional de

    Energia e Geologia. o que proponho narrar sob o foco atemporal do Sagrado. Creio

    ser esta a abordagem correcta ou, pelo menos, a cientificamente mais interessante

    para a leitura eminentemente antropolgica (semitica-simblica) que pretende enqua-

    drar artefactos arqueolgicos na perspectiva geral desta dimenso do Ser Humano.

    Fig. 1. Reconstituio de enterramento de neandertal.

    (Fonte: Remete para ndice de Imagens)

    1.3. ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O SIMBLICO

  • 25

    Ao grito de guerra dos arquelogos de h cinquenta anos: a Arqueologia ou

    uma Antropologia ou no nada 4, poderia hoje contrapor-se: a Museologia ou uma

    Antropologia ou no nada. Dividamos esta cincia nos seus tradicionais ramos: bio-

    scio-cultural. O Museu da Geologia (contemplando a questo do homem tercirio), os

    Museus Etnogrficos nas suas variadssimas especialidades (o fado, o brinquedo, o tra-

    je, a conserva, a moda), o da Farmcia, o do Holocausto, os de Arte (o Rodin, o Ca-

    ravaggio, a Guernica), o do Mar, o arquivo da Torre do Tombo (com autos da Inquisi-

    o e relaes esclavagistas), os Planetrios (com as incrveis imagens do Hublle son-

    dando a solido do Universo) concorrem para a assero de Protgoras: o Homem a

    medida de todas as coisas. E nesta acepo que a Exposio reverbera em ns, nos

    interpela, de modo mais profundo do que a mais sedutora das solues museogrficas.

    Esta viso, mesmo que lata e antiga, no , por isso uma redundncia esvaziada de sen-

    tido ou um trusmo, desde o dealbar da nossa subespcie, criadora de cultura material,

    mental ou espiritual. Tambm no o , sequer, pelo aparecimento dos antepassados dos

    museus, os gabinetes de curiosidades, enquanto expositores de artefactos. Mas se tudo,

    ou quase (do patrimnio material e imaterial) remete, de alguma forma para o Homem,

    seu autor, ento no faria sentido uma Antropologia e, pelo que nos atm, uma Antropo-

    logia Museal. E muito diversa , felizmente, a realidade museolgica e museogrfica. E,

    no entanto, o Homem muitas vezes maltratado.

    J no final do sec. XIX, muito frente do seu tempo no panorama nacional (se

    bem que alinhado com a Europa do ps Guerra), o Prof. Leite de Vasconcelos ocupava-

    se de interpretar tudo o que formou o viver material e, em parte, psquico e social [do

    homem]5, mas, leia-se, do homem portugus, etnogrfico. Curiosamente, veio de uma

    pessoa alheia Museologia, o fundador da Antropologia Estrutural, Claude Lvi-

    Strauss, nos anos Cinquenta do sec XX, a advertncia lapidar: um Museu, ou lana uma

    luz sobre o Homem, ou no servir para nada.6

    Porm, nem sempre assim, e mesmo os museus que se reclamam da Nova Mu-

    seologia, no cumprem por vezes esse desiderato. Cumpre chamar lia, no entanto,

    alguns Museus de Arqueologia no panorama portugus, onde se alerta para o facto de

    uma instituio museal dever ser bastante mais do que um compndio tridimensional.

    4 Trata-se do mais importante lema da Arqueologia Processual americana da poca, encabeada por Luis

    Binford, reivindicando, deste modo, a sua vocao e preocupao holstica. 5 LEITE DE VASCONCELOS, V. WEBGRAFIA 6 LVI-TRAUSS. O autor refere-se a Museus de Etnografia no final dos anos Cinquenta, quando foi

    convidado para a criao de museus no Brasil e nos EUA. No entanto considero o repto ainda hoje perti-

    nente e alargado a muitas tipologias de museus.

  • 26

    H tambm casos de um bom acervo, pontuado por alguma informao ou, inversamen-

    te, uma boa mensagem ilustrada, aqui e ali, por algumas peas. E no esqueamos a

    confuso que ainda ocorre entre um espao pedaggico-ldico e um espao ferico. Por

    que no acrescentar, como Zapatero: a Arqueologia-espectculo, o romntico-

    fantasioso, o arquelogo meditico, Indiana Jones, apresentando, em conferncia no

    palco do museu, reprodues de tesouros enfim, a promoo do mercantilismo e do

    consumismo patrimonial. (ZAPATERO, 2012: 37-49)

    Mais intimamente relacionado com o especfico do nosso tema, o Simblico,

    um conceito largamente utilizado, quer em Antropologia, quer em Museologia. Nesta

    ltima disciplina, raro o terico que no refira e evidencie as caractersticas simblicas

    das peas a expor, a dimenso simblica da exposio, a perspectiva ou interpretao

    simblicas, a exegese simblica da narrativa, o campo simblico da expresso museol-

    gica, a interaco simblica, o valor simblico da experinciaPara estes tericos es-

    pecialistas da Sociomuseologia, dir-se- haver um entendimento comum sobre este con-

    ceito: tudo aquilo que escape, ainda que vagamente, ao mero valor utilitrio ou artstico,

    ou, quando muito (na acepo semitica), todo o objecto com valor de signo, isto ,

    susceptvel de representar algo ausente que seja significante de um significado qualquer,

    preferencialmente imaterial, tal como a identidade nacional ou tnica (e quantas vezes

    se trata, to s, de emblemas identitrios e/ou culturais).

    verdade que nos encontramos perante um conceito complexo, algo opaco e po-

    lissmico. No entanto, estas acepes, por apelativas que sejam, esto margem (ou

    tocam apenas tangencialmente) da proposta que considero a mais adequada para a inter-

    pretao e fruio da coleco que elejo.

    Assim, na Simblica da Antropologia, que chamo ao presente discurso museol-

    gico, o smbolo pressupe uma ruptura de plano, uma descontinuidade e introduz uma

    ordem nova de mltiplas dimenses. De acordo com Lvi-Strauss, ele implica as estru-

    turas mentais, mobilizando o psiquismo. (LVI-STRAUSS, 1989: 234/235) por isso

    que o smbolo desperta emotividade () e ressonncia no sujeito. (MESQUITELA-

    LIMA, 1983: 38) Para Mircea Eliade, citado pelo simbologista Jean Chevallier, ele in-

    venta sempre uma relao, visto tornar possvel a livre circulao entre nveis do real.

    (CHEVALIER, 1982: XVI) Como possui esta eficcia, o smbolo lana pontes entre

    mundos s aparentemente opostos: o sensvel e o invisvel, o sensvel e o inteligvel, o

    emocional e o intelectual. Neste sentido, como bem observa Servier, junta e separa -

    exige distanciamento e/ou participao. Anexa imagem visvel, a parte do invisvel

  • 27

    apercebida ocultamente. (CHEVALIER, 1982: XVII) Enfim, no obliterando a reali-

    dade, acrescenta-a de dimenses ricas, imaginativas e vvidas, entre os mundos humano,

    csmico e divino.

    Assim sendo, qualquer objecto pode revestir-se de um valor simblico, desde que

    preencha esta funo original do smbolo: esta revelao existencial do Homem a ele

    prprio, atravs de uma experincia cosmolgica. (CHEVALIER, 1982: XVII) nesta

    experincia que podemos incluir a relao emprica/extra-emprica do Homem e o seu

    investimento no objecto.

    No difcil incluir aqui a Sacralidade. Mircea Eliade explcito a este respeito:

    O smbolo revela uma realidade sagrada, isto , atestando mesmo a presena do divi-

    no, comparando-se a uma revelao, despertando o Homem e conduzindo-o ao seu

    princpio original, leia-se, o Sagrado. (ELIADE, 1970: 34) Sagrado, que o smbolo

    recorda e ao qual reconduz de modo intuitivo. Ora, esta deade smbolo-sagrado radi-

    calmente atemporal e a-geogrfica, no sentido em que transmite realidades eternas. Para

    terminar com um dos tericos da simblica universal, E. Fromm, a linguagem simbli-

    ca uma lngua onde o mundo exterior um smbolo do mundo interior, um smbolo

    das nossas almas e das nossas mentes. (FROMM, 1951: 20)

    Neste particular, far sentido convidar a Museologia a contar mais estreitamente

    com a Antropologia Cultural.

    1.4. O SAGRADO

    Os smbolos so uma conduta de inteno e de um tipo essencialmente sacral,

    que orienta o humano para o no-humano. (ALLEAU, 2001: 55)

    Sabemos, de modo intuitivo, e mais fundadamente desde Durkheim, mas tambm

    de Eliade, Caillois, Lvi-Strauss, Freud que o Sagrado se ope ao profano. O pro-

    blema que se levanta aos antroplogos, mas tambm aos arquelogos, muselogos e

    conservadores, reside na prpria noo de Sagrado, na delimitao desse conceito, des-

    sa esfera da vida pessoal e colectiva, ou ainda da relao do indivduo e do grupo com a

    dimenso experienciada da religiosidade. Ora, Sagrado , antes do mais, uma realidade

    humana sobrevalorizada, de forma que esta se torne smbolo de poderes e/ou conheci-

  • 28

    mentos que transcendem o Homem e que, por esse facto, so to inquietantes como de-

    sejveis.

    No cabe aqui uma hermenutica ou o escrutnio da origem da sacralidade, da

    evoluo do pensamento religioso e suas instituies e muito menos uma neuro-teologia

    que suporta a teoria divina da mente, na fronteira que nos torna humanos, mas antes

    uma definio suficientemente abrangente que nos permita dar conta deste fenmeno,

    das suas invariantes e que, sem excessivas generalizaes esvaziadas de sentido, possa

    contribuir para lanar alguma luz sobre esta dimenso desde pocas pr-histricas. O

    que me norteia sempre a contextualizao dos factos e dados arqueolgicos do univer-

    so pr-histrico, contribuindo para a sua correcta expresso museolgica, em geral, e do

    esplio que elejo, em particular. Maurcio Adriani, especialista em religies, considera-

    que na Pr-Histria se reconhecia j um:

    conjunto complexo e articulado, no qual considera no ser infundado entrever um

    modo espiritual coerente, se no mesmo orgnico e, como tal, marcado por uma

    nota indiscutivelmente sagrada. (ADRIANI, 1988: 17)

    Considera, tal como outros especialistas, que esta sacralidade que constitui fun-

    damentalmente a essncia da religio, ontem, como hoje. Leroi-Gourhan, em Religies

    da Pr-Histria, baseado em considervel documentao arqueolgica, sustenta pruden-

    temente que o nosso conhecimento sobre o Homem de Neandertal, apesar das suas ine-

    gveis prcticas de enterramento, no nos autoriza a falar de um comportamento religio-

    so em tempos to recuados; no entanto admite como lcita, a suspeita de uma concepo

    sobrenatural e a evoluo para este pensamento j no dealbar deste Homem moderno.

    (LEROI-GOURHAN, 1964) Falar de religiosidade falar de uma perspectiva entre ou-

    tras, como adverte C. Geertz, um modo de ver a vida, sendo que, por isto, entende este

    autor, uma maneira particular de discernir, apreender, compreender, captar

    (GEERTZ, 1973: 105), mas igualmente e concomitantemente, acrescentaria, uma ma-

    neira de encarar a morte.

    Para dar conta deste propsito necessrio pensar como um antroplogo o que

    equivale a dizer que o muselogo deveria voltar a contar com a Antropologia, de modo

    descomplexado, no revivalista, no enviesado e sem desconfianas (e no somente

    com a Etnografia). A Antropologia s aparentemente o estudo dos costumes, crenas e

    instituies; fundamentalmente o estudo do pensamento e, como nos ensina o Pai do

  • 29

    Estruturalismo, do universo de instrumentos conceptuais, atravs dos quais cada povo

    constri as suas formas culturais. (LVI-STRAUSS, 1989)7 No fundo, a sua utensila-

    gem mental. Os antroplogos das religies encaram a Religio enquanto sistema cultu-

    ral; a onde a sua gnese o Sagrado se insere e subjaz, a onde o Simblico se con-

    centra, exigindo, se no a descodificao ou interpretao, pelo menos a compreenso.

    A Antropologia no mais uma cincia experimental em busca de leis, mas antes uma

    cincia interpretativa buscando significaes.

    por isso necessrio ver a Cultura como um conceito essencialmente semitico,

    isto , que o Homem se move em teias de significao que ele mesmo urdiu, conside-

    rando-se esta trama, imagens, objectos, ritos a prpria Cultura. Importa sobretudo

    aceder ao sistema de significaes representado nos smbolos, s valncias que ultrapas-

    sam o apreendido imediatamente pela percepo e ao prprio do smbolo, enquanto in-

    dissocivel de uma experincia essencial e primeiramente subjectiva.

    Ora, se o Sagrado , para historiadores das religies (Eliade), antroplogos (Leroi-

    Gourhan), filsofos (Cassirer), e linguistas (Peirce), privilegiadamente o reino do sim-

    blico, para Lvi-Strauss toda a Cultura pode ser considerada como um conjunto de

    sistemas simblicos, entre os quais se destaca (a par da linguagem, das trocas e da arte),

    precisamente a Religio. Para o autor, aquilo que comum Humanidade so estas es-

    truturas simblicas de onde derivam a totalidade dos arranjos etnogrficos observveis.

    (LVI-STRAUSS, 1989)8 No h homens que no simbolizem e re-simbolizem a expe-

    rincia do Sagrado. Mas, recuando no tempo e indo mais fundo, a propsito da manifes-

    tao do Sagrado, o historiador das religies R. Otto adverte que uma coisa ter dele

    uma ideia, outra, diferente percepcion-lo e descobri-lo enquanto factor activo e

    operante manifestado pela sua aco. (OTTO, 1992: 185) E, acrescentaria eu, tambm

    o Sagrado enquanto algo concreto (no o esqueamos), atravs dos vestgios materiais

    de tempos remotos que nos lega. Para o autor, se bem que se trate, antes do mais, de

    uma revelao sensvel, o Sagrado , no entanto uma categoria que existe apenas no

    domnio religioso. Mas in illo tempore, diz M. Adriani, talvez uma Religio primitiva

    tenha feito um todo com o prprio princpio do Sagrado. (ADRIANI, 1988: 11) R.

    Otto fala de categorias desta dimenso, como o sentimento do objecto numinoso, o

    mistrio tremendum, a majestade, o poder, a energia, o radicalmente outro. (OTTO,

    1992: 34-37) O poeta Goethe teria resumido estas caractersticas na sua concepo filo-

    7 Tese geral da obra do autor, expressa mais sistematicamente em Antropologia Estrutural I e II. 8 idem.

  • 30

    sfica do respeito. No difcil projectarmos esta transcendncia no homem actual, essa

    entrega emocional, essa ambivalncia, essa cosmoviso.

    So tais percepes, sentimentos e, provavelmente, narrativa mtica, que esto na

    origem do rito, lanando pontes, mas tambm reiterando a dicotomia entre Sagrado e

    profano, puro e impuro. Aqui poderemos incluir o culto dos mortos nas sociedades me-

    galticas e at, em parte, o xamanismo. Aqui, segundo Malinowski, de incio sero mais

    uma pr-disposio, uma aptido operante, inata da mente primitiva, mas que se estru-

    turar em torno de elementos () simples e fundamentais da psicologia humana ou da

    realidade em que vive o homem (). (MALINOWSKI, 1984: 22)

    Assim sendo, pertinente introduzir neste ponto as prticas morturias, objectos e

    ritos, de molde a contextualizar os artefactos exumados neste esqueleto de uma Religi-

    o, ou de uma religiosidade do actor neoltico-calcoltico. A ambiguidade (at a nvel

    funcional) e a polivalncia significante deste tipo de objectos esconde frequentemente o

    seu verdadeiro simbolismo. E tal como nos ensina a Antropologia e a Nova Arqueolo-

    gia, este s recupervel atravs dos seus respectivos contextos.

    Mas, mais que o contexto que o visitante observa na exposio enquadrando uma

    pea, e que remeta vagamente para o enquadramento tcnico-cultural da poca tratada,

    importava que os Museus, mormente os de Arqueologia, tratassem, nas suas exposies,

    do Homem, do que os une, sincrnica e diacronicamente, de qual o significado de ser-se

    humano. Ao invs do mero conhecimento emprico, ainda vulgar na Museologia de vo-

    cao documental, pretendo contar uma histria que reflicta um importante pilar da

    aventura humana, sempre actual, sempre inacabada. Uma meta-narrativa enquanto

    narrativa museolgica - mas ainda que possa, ela prpria, ser comparada com a lenda,

    com a linguagem mtico-simblica.

    2. A NARRATIVA MUSEOLGICA EM MUSEUS DE AR-

    QUEOLOGIA

  • 31

    2.1 INTRODUO

    Entende-se por Narrativa Museolgica a histria que subjaz ao enquadramento

    criativo de um acervo, com vista elaborao de um percurso expositivo, em que o con-

    junto: objecto, imagem, palavra, adquiram uma funo comunicativa ao servio de

    aprendizagens, sensaes, emoes e vivncias. Histria, que um muselogo ou con-

    servador se prope contar a um pblico a partir de uma coleco dada.

    No entanto, no caso dos Museus de Arqueologia, exceptuando alguns exemplos

    (sobretudo regionais e de poucos recursos financeiros), os esplios so expostos de mo-

    do pouco mais do que classificado, segundo critrios crono-culturais, sem um suporte

    narrativo que os envolva, relegando-se os seus testemunhos materiais para o estatuto de

    objecto-documento e, consequentemente, fazendo da exposio como que um tratado

    disciplinar a trs dimenses. (BAPTISTA, 2012)9. Neste modelo as peas perdem o

    seu poder evocativo e esto longe de proporcionar as desejadas vivncias, que obteriam

    atravs da sua insero numa trama. Por sua vez, o visitante remetido para o papel

    pouco estimulante de receptor passivo de informao e -lhe vedada a imerso num

    argumento de que poder at sentir-se protagonista. Por seu turno, quando as h, as nar-

    rativas apresentam-se quase exclusivamente como reconstituies, com base em dados

    cientficos, de aspectos seleccionados das pocas tratadas.

    Em termos histricos, nos seus critrios expositivos, os museus de Arqueologia

    comearam por seguir a classificao disponibilizada por esta cincia ao objecto ar-

    queolgico. Nos museus oitocentistas com coleces de Arqueologia Pr-Histrica

    como o caso do Museu do Laboratrio Nacional de Energia e Geologia o esplio

    apresentado, quando muito, de acordo com a sua: provenincia, natureza, forma e fun-

    o. certo que o vestgio arqueolgico exibido num Museu foi sendo investido de ou-

    tros valores: histrico, documental apoiado por suportes contextualizan-

    tes/informativos. Mas no , se no nos anos Oitenta do sculo passado que surge a

    ideia de um fio condutor, um discurso expositivo - narrativa que guie e envolva o

    visitante da/na exposio. Trata-se de uma dinmica que vai a par de uma preocupao

    9 Ver: Fontes Orais, Bibliografia.

  • 32

    mais holstica na apresentao das sociedades passadas; modelo no qual, mantendo-se

    quase sempre a sequncia cronolgica, se procura dar ao visitante um esboo das vivn-

    cias materiais e no materiais dos povos considerados: relaes sociais e econmicas,

    espiritualidade (Religio, crenas, Mitologia, rituais).

    na tentativa de transcender este modelo, enquanto discurso radicalmente novo,

    radicalmente outro - mas no, evidentemente, alternativo e mutuamente exclusivo - que

    o presente projecto se apresenta como oferta de uma narrativa ficcional (enquadrando

    peas), enquanto prpria narrativa museolgica.

    No sendo objectivo deste trabalho apresentar uma recenso crtica das narrativas

    dos museus de Arqueologia nacionais, mas sim uma proposta de trabalho, julgo, contu-

    do pertinente, e de modo muito sucinto, referir alguns exemplos paradigmticos a nvel

    ilustrativo, de modo a melhor enquadrar a minha prpria narrativa e centrando-me nos

    nveis crono-espaciais.

    2.2. MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA

    No maior Museu arqueolgico portugus, unidisciplinar e universalista, renovado

    e sbrio, as importantes coleces de Arqueologia portuguesa e de antiguidades egpcias

    respeitam uma ordem cronolgica que se estende desde as origens paleolticas do povo-

    amento do nosso territrio at poca Medieval, fundao da nossa nacionalidade.

    Quanto aos Tesouros da Arqueologia Portuguesa, com destaque para a joalharia antiga,

    apresenta, nomeadamente, ouros, desde o perodo calcoltico (III milnio a.C.) at

    Alta Idade Mdia. Por seu turno, a coleco egpcia, originria de quase todas as dinas-

    tias deste Imprio da Antiguidade, segue tambm uma ordem estrictamente diacrnica

    na apresentao do seu acervo. O imenso espao do claustro do Mosteiro dos Jernimos

    refora-lhe uma dignidade, j merecida pelo esplio e pelo seu histrico papel na Muse-

    ologia portuguesa, e aproveitado de modo elegante, no qual expositores e painis

    constituem nichos que, no quebrando a perspectiva do conjunto, permitem a sistemati-

    zao por categorias do seu imenso acervo.

    2.3. MUSEU MONOGRFICO DE CONMBRIGA

  • 33

    Este Museu, integrado na tipologia: Museus de Histria e Arqueologia, tutela os

    vestgios musealizados da cidade romana. Mas, embora as suas coleces ilustrem uma

    histria local desde o II Milnio ao final do Imprio Romano (aquando das invases

    brbaras no nosso territrio) e, portanto, uma dimenso diacrnica, penso que este Mu-

    seu privilegia sobretudo uma matriz sincrnica. Em favor desta viso est o facto de ser

    opo clara deste Museu apresentar o mais documentadamente possvel um perodo

    especfico (os dois primeiros sculos da nossa Era). F-lo atravs de objectos e locais

    que relatem vivncias, que apresentem uma panormica da vida quotidiana de ento: a

    vida dos habitantes da cidade, nas suas diferentes facetas, materiais e no materiais,

    incluindo os cultos religiosos romanos. Trata-se de um Museu que, embora exponha

    exclusivamente objectos provenientes da escavao local, convida a extrapolar o modo

    como ter sido a ocupao do nosso territrio por parte de Roma, particularmente quan-

    to aos espaos urbanos. Trata-se de um Museu que adquire, assim, uma importante pro-

    jeco nacional e internacional.

    2.4. MUSEU DE ARTE PR-HISTRICA DE MAO

    Este moderno Museu regional a justo ttulo internacionalmente premiado e, a

    meu ver, respondendo de forma cabal ao esprito da Nova Museologia tem por vocao:

    construir mecanismos de comunicao, de socializao de novos conhecimentos,

    ajudando a forjar o domnio social de novos conceitos, aprofundando recursos di-

    dcticos aos contedos decorrentes da investigao, e no apenas performativos e

    de entretenimento. (OOSTERBEEK, 1981)

    Nesta dinmica pedaggica de interaco com a sociedade, h, por exemplo, ate-

    liers de materiais e experimentao de fabrico, apresentando o seu esplio atravs de

    uma abordagem assumidamente antropolgica. A sua exposio permanente: Um Risco

    na Paisagem, privilegia os aspectos simblicos da vida no Neoltico desde h sete ou

    oito milnios at ao perodo calcoltico, suas novas actividades, conquistas, cosmovi-

    ses. No entanto, opo desta narrativa museolgica centrar-se no significado dos ar-

    tefactos, arte e megalitismo. No discurso museolgico deste Museu, o passado e o pre-

    sente procuram promover uma refleco sobre o sentido do futuro, incluindo o futuro

  • 34

    para alm da morte. (HERNANDZ, 1998) A meu ver, assim logra este Museu trans-

    cender, de modo inteligente e sedutor, a polaridade sincronia-diacronia, constituindo-se

    como um Museu temtico sobre o Homem.

    3. MUSEU GEOLGICO

  • 35

    Fig. 2. Aspecto parcial de uma das Salas de Paleontologia do Museu do LNEG, destacando-se o

    mobilirio original e as fotografias dos cientistas pioneiros das Comisses Geolgicas do Reino,

    principais responsveis pela recolha, estudo e classificao do esplio do Museu. (Fonte prpria)

    3.1. BREVE APONTAMENTO HISTRICO

    O antigo Convento de Jesus, no Largo da Academia das Cincias, alberga hoje

    aquilo que considerado um dos ltimos exemplares da museologia e museografia oito-

    centistas. , justamente por isso, considerado um Museu dos Museus (BAIO, 2009:

    44), isto , um Museu que se constitui, ele prprio, enquanto edifcio, concepo mu-

    seolgica e museogrfica, como pea representativa da histria da Museologia. Em arti-

    go de 2005, o seu director, Miguel Ramalho, escreve: () j muito raro em toda a

    Europa, conservando as caractersticas museolgicas do sculo XIX, do mobilirio

    arquitectura interior. uma espcie de museu dentro de outro museu. (RAMALHO,

    2005)10 Um museu, acrescento, onde a nostalgia o oposto do obsoleto e do efmero

    das exposies contemporneas.

    10 Ver: Artigos de Imprensa, Bibliografia.

  • 36

    A, deparamo-nos com as Salas enormes de mobilirio expositivo quase secular e

    luz adequada e maioritariamente zenital, que albergam as mais de cento e cinquenta mil

    peas de Arqueologia, Paleontologia e Mineralogia, expostas luz pelos pioneiros da

    Comisso Geolgica do Reino, a partir de meados do sec. XIX.

    De facto, foi na primeira metade deste sculo que a Antropologia Fsica, a Antro-

    pologia Cultural e mesmo a Etnografia se autonomizaram dos Museus Cientficos, Ar-

    queolgicos e Geolgicos. Nasce ento o interesse pela Cultura Material, pelos restos

    humanos e pela evoluo do Homem, domnios da Paleontologia e, concomitantemente,

    da Paleoantropologia.

    Jos Leite de Vasconcelos refere mesmo a Fundao dos Servios Geolgicos Na-

    cionais como o incio do estudo cientfico da Antropologia; alis, o seu Museu, o futuro

    Museu Etnolgico Portugus, funcionar, numa primeira fase (por decreto governamen-

    tal de 1893, funcionou, entre 1894 e 1899), agregado Comisso dos Trabalhos Geol-

    gicos, no Convento de Jesus.

    Carlos Ribeiro e Pereira da Costa, diretores da primeira Comisso Geolgica, so

    os primeiros cientistas nacionais a reconhecer a existncia de fsseis humanos em Por-

    tugal (em 1863), inaugurando, assim, a par da inevitvel discusso da antiguidade hu-

    mana (a partir dos estudos estratigrficos) e da ocupao pr-histrica nacional, os estu-

    dos verdadeiramente antropolgicos no nosso pas. Acontece que, pelo contexto em que

    muitas peas foram recolhidas em prospees estratigrficas e, portanto, em estreita

    ligao com a descoberta do Homem, este enorme acervo foi ficando sempre subordi-

    nado Arqueologia.

    Cabe destacar, por isso, na data de 1880, o 9 Congresso Internacional de Antro-

    pologia e Arqueologia Pr- Histrica, em que Lisboa congregou delegaes de dezano-

    ve pases. Cinco anos volvidos, Bernardino Machado Guimares cria as disciplinas de

    Antropologia, Paleontologia Humana e Arqueologia Pr-Histrica na Faculdade de

    Filosofia da Universidade de Coimbra, tendo sido apoiado pela Seco didtica do Mu-

    seu de Historia Natural e no Programa do primeiro Professor de Antropologia, o Mdico

    Henrique Teixeira de Bastos: Tradies dos primeiros Povos das Idades da Pedra, do

    Bronze e do Ferro. (SANTOS, 2007: 244)

    Numa viso que ainda no crtica nem interdisciplinar, a catadupa de dados que

    convergem para os Estudos Paleoantropolgicos aplicada a partir de 1863 por Carlos

    Ribeiro ao Estudo dos Concheiros de Muge, identificando e estudando esqueletos hu-

    manos e utenslios. Este complexo de Muge desde logo reconhecido como muitssimo

  • 37

    importante para o entendimento da Pr-Histria, quer a nvel nacional, quer mesmo a

    nvel da Europa Atlntica, definindo uma etapa cultural, a do Mesoltico, aqui desco-

    nhecida at ento.

    Estcio da Veiga, percursor da Antropologia Fsica nacional e incansvel arque-

    logo, debrua-se nesta poca naquilo que designou por Antropologia Funerria, aventu-

    rando-se mesmo nas Crenas Religiosas a partir dos sepultamentos e artefactos cone-

    xos. parte das ideias evolucionistas prprias da poca, demonstra um pensamento

    verdadeiramente frente da sua poca, nomeadamente quando escreve:

    A crena religiosa, o affecto, o respeito e a venerao entre os homens da ltima

    idade da pedra, definem o seu estado de elevao moral, ou o certeiro: o morto era

    sepultado com objectos que tinha possudo durante a vida, armas de guerra e de ca-

    a, instrumentos de trabalho, adornos e amuletos, etc. (SANTOS, 2007: 243)

    do fruto de tudo isto, sistematizado no ltimo quartel de 1800, enformado pelas

    dataes Paleozoicas e Mesozoicas, que a Sala da Coleco Visitvel de Arqueologia

    Pr-Histrica do Museu Geolgico, atravs dos seus pioneiros cientistas, nos fala, nos

    interpela e nos transporta. esta a magia e o imaginrio, esta a aura de glamourosos

    tempos pretritos da Cincia, este o apelo e a imerso na Histria. Sem artifcios.

    O Museu Geolgico foi classificado em 2010 como Imvel de Interesse Pblico

    devido ao incalculvel valor cientfico das coleces que conserva e ao seu ntegro es-

    pao expositivo que j uma referncia, por si prprio, da museografia oitocentista,

    dos seus sistemas classificatrios e da apresentao das peas; na verdade Museu de

    Museus, de histria mineralgica, paleontolgica e arqueolgica, cujo reconhecimento

    e preservao devero ser acautelados no mbito da classificao do conjunto, (de

    acordo com a Portaria n 1176/2010 de 24 de Dezembro de 1010).

    Actualmente, o Museu Geolgico do Laboratrio Nacional de Energia e Geologia

    faz pate da Rede Portuguesa de Museus.

    3.2. A COLECO DE ARQUEOLOGIA

  • 38

    A Coleco de Arqueologia Pr-Histrica do Museu ocupa uma sala longitudinal

    de uns generosos 500m2 (meio quilmetro quadrado!). Conta com mais de cem mil pe-

    as, entre as quais mil e seiscentas em expositores centrais de destaque. Cobre practi-

    camente todas as etapas cronolgico-culturais, desde o Paleoltico ao perodo Lusitano-

    Romano, com origem em ampla representao do Paleoltico Inferior e Mdio e ainda

    aquilo que um dos melhores esplios do Mesoltico Europeu os clebres Concheiros

    de Muge - com origem nas exploraes mineiras. sobre estes, descobertos por Carlos

    Ribeiro em 1863, que redigida a primeira monografia arqueolgica em Portugal: Da

    existncia do homem em epochas remotas no valle do Tejo (CARDOSO), por F. Perei-

    ra da Costa em 1865.

    O Museu apresenta o seu esplio arqueolgico de acordo com os critrios da po-

    ca, nomeadamente quanto sua classificao sumria, atravs da dupla tipologia, mor-

    folgica e funcional, por idade e em sequncia diacrnica; e quanto ao agrupamento, de

    acordo com as estaes arqueolgicas de onde as peas provm. o caso das necrpo-

    les neolticas em grutas na regio da Estremadura, de onde provm, para alm das cer-

    micas cardiais, dos vasos e das alabardas (grandes lminas de slex), as famosas placas

    de xisto decoradas geometricamente, caractersticas do nosso territrio. J no caso de

    grutas artificiais, provm os materiais de Palmela s taas e s pontas, ambas internaci-

    onalmente designadas por tipo Palmela, para o que contribuiu decisivamente a obra de

    Cartilhac Les ages pr-histriques de la Pninsule Ibrique, de 1886. (CARDOSO) Es-

    tes conjuntos, juntamente com os famosos stios da Alapraia (Cascais), Carenque

    (Amadora) e Sintra, com os seus cilindros funerrios de calcrio, fazem remontar estas

    necrpoles ao Neoltico Final (ltimos sculos do IV milnio) embora, como tambm

    comum, com sucessivas reutilizaes durante o Calcoltico.

    Tm especial destaque para este trabalho os dlmenes e complexos monumentais

    na rea de Sintra e arredores. o caso dos artefactos do Tholos do Monge, na Serra de

    Sintra, monumento megaltico de falsa cpula, explorado e publicado por Carlos Ribei-

    ro em 1880, e que o Museu Geolgico divide com o Museu Arqueolgico de Sintra.

    De sublinhar e enaltecer o facto de que durante muitos anos a Coleco de Ar-

    queologia Pr-Histrica do Museu que congrega peas desde o Homem tercirio Ar-

    queologia mineira, ter sido a nica disponvel aos investigadores. Continua hoje a ser

    um dos melhores conjuntos de Arqueologia Pr-Histrica do pas e a nica que expe

    em permanncia o maior conjunto de peas do Paleoltico ao perodo romano no que

    concerne a Portugal.

  • 39

    Fig.3. Actividade no Museu do LNEG

    (Fonte: Remete para ndice de Imagens)

    3.3. THOLOS DO MONGE

    Este monumento pr-histrico est situado num dos cumes mais altos da Serra de

    Sintra (a 448m de altitude) no local denominado Monge, prximo do Convento dos Ca-

    puchos. Na vertente Sul da Serra, domina a faixa costeira atlntica. Em vias de classifi-

    cao como Monumento Nacional desde 1992, e embora bastante degradado, conside-

    rado por alguns especialistas como um dos mais interessantes exemplares do seu gnero

    em toda a pennsula de Lisboa.

    Quando os Servios Geolgicos na segunda metade do sec XIX iniciam no nosso

    pas o estudo sistemtico da Pr-Histria, Carlos Ribeiro, engenheiro militar e arque-

    logo dessa Instituio (tambm por esta apelidado de antroplogo de servio), dedica-se

    rea de Sintra e contribui decisivamente para provar uma variedade, quer sincrnica,

    quer diacrnica, no que toca presena humana, aferida a partir da variedade tipolgica

    dos monumentos megalticos. Identificado e escavado por este pioneiro, em 1878, o

    Tholos do Monge datar do Calcoltico (2750 a 2200 a.C., no nosso territrio), mas au-

    tores h que recuam esta data num milhar de anos, tendo sido provavelmente reutilizado

    no Bronze Final, altura em que os monumentos megalticos de grandes dimenses fo-

    ram dando lugar a monumentos menores, utilizando pedras mais pequenas. Trata-se de

    um tmulo denominado de falsa cpula, de onde o vulgar nome de Tholos. Os materiais

    utilizados so lajes, apenas sumariamente afeioados (ortostatos, tampas), podendo ser

    complementados com contrafortes de pedras e/ou lajes e/ou terra. possvel que os

    prprios afloramentos granticos naturais tenham sido utilizados como cpula, uma vez

  • 40

    que o monumento aproveita uma depresso nas rochas. As pedras das paredes desi-

    gualmente assentes na horizontal, de altura de cerca de 2 metros, apresentam, nas fiadas

    superiores, um gradual avano para o interior da cmara, o que pressuporia um fecho

    em forma de cpula, tipo claraboia. O recinto interior deste espao circular, tendo um

    dimetro aproximado de 4,5 metros. A entrada desta cmara morturia fazia-se atravs

    de um vestbulo, irregular e descoberto, ladeado de paredes igualmente de pedra, ha-

    vendo um corredor de ligao entre ambas as estruturas. Ainda visveis so duas pedras

    ladeando a porta da dita cmara.

    Refira-se que o mobilirio fnebre aqui recolhido, ainda maioritariamente por

    Carlos Ribeiro, muitssimo reduzido, embora no desprovido de interesse: cermica

    comum do Calcoltico, grosseira e sem roda de oleiro, pratos e vasos, slexes, percuto-

    res, um cone raspado para extraco e confeco do ocre. No entanto, supe-se que o

    recheio tenha sido muito mais rico, e que sucessivas profanaes o tenham empobrecido

    irremediavelmente. este humilde esplio que se pode observar no Museu do Laborat-

    rio Nacional de Energia e Geologia, na pequena seco (vitrina) que a Sala de Arqueo-

    logia dedica a este monumento.

    Para a histria a apresentar, e tal como assumido anteriormente, decidi enriquecer

    este espao de artefactos de pocas e locais culturalmente prximos, quer sincrnica

    como diacronicamente, balizando o tempo desde o Neoltico ao Calcoltico pr-

    metalrgico e alargando o espao geogrfico desde o vale do Tejo ao Sul da Pennsula

    Ibrica. S assim, tal como j assumi, ela se tornaria vivel ou, pelo menos, museologi-

    camente significativa, tendo em conta as limitaes e exiguidades acima referidas.

    3.4. PEAS INTEGRADAS NA NARRATIVA

  • 41

    RELAO:

    1. Esferas (calcrio marmreo)

    2. Base para preparao de ocres (calcrio)

    3. Ndulo de ocre

    4. Recipientes para unguentos (calcrio e osso)

    5. Vasilha zoomrfica em forma de suno (cermica)

    6. dolo em forma de bculo, provvel estilizao do machado encabado

    7. dolo cilndrico com decorao antropomrfica

    8. dolo de Pinha decorado com retculo de serpentes (calcrio)

    9. dolo antropomrfico decorado, destacando-se, em relevo, uma lnula

    10. dolo gravado, antropomrfico (mrmore)

    11. dolo oculado, falange de equdeo

    12. dolo flico (calcrio)

    13. Recipientes votivos Graal (calcrio)

    14. Pente votivo decorado (osso)

    15. Pequena albarda votiva de pedra polida (microgranito)

    16. Machado votivo (xisto anfibrlito)

    17. Lamparina de suspenso (cermica)

    18. dolo de Placa decorado, antropomrfico (xisto)

    3.5. SOBRE A TIPOLOGIA FUNCIONAL

    Ao escolher como temtica central o Sagrado, procurei, na Arqueologia Pr-

    Histrica, artefactos relacionados com o ritual, com a oferenda e demais vestgios da

  • 42

    religiosidade (tal como a entendemos e descrevemos atrs), de entre as cerca de 1600

    peas do Museu. Nestas dezoito procuro condensar e ilustrar o imenso esplio, ao mes-

    mo tempo que se tornar mais exequvel o seu manuseamento numa histria.

    Dado que se trata maioritariamente de peas recolhidas em estruturas megalticas

    diversas, estes artefactos esto classificados, na sua maioria (e para alm das sumrias

    caractersticas formais), de acordo com a sua funo votiva ou ritual ou, mais rara-

    mente, de uso comum. Casos h em que a legenda apresenta uso desconhecido, ou

    mesmo ritual e/ou votivo. Por outro lado, sabemos que as fronteiras podem ser ainda

    mais complexas e tnues: objectos comuns, como utenslios domsticos, armas ou ador-

    nos, podem passar a ter uma funo votiva ou ritual e no raras vezes, rplicas mais

    pequenas de artefactos comuns so criadas com uma finalidade (e, portanto, significado)

    cultual especfica. De igual modo, fazendo f em M. Eliade, o Sagrado pode manifes-

    tar-se num objecto profano. (ELIADE, 1984:54) Deste modo, mesmo com este reduzi-

    do nmero de peas, resultaria virtualmente infinita qualquer tentativa de sistematizao

    funcional, a par da sua reduzida utilidade para o fim em causa. Desenvolvi algumas

    pesquisas com resultados muitas vezes contraditrios ou inconclusivos.

    Simplesmente, como assumi,