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O SÉCULO DE BORGES

O SÉCULO DE BORGES - Martins Fontes · O desprezo do autor de O Aleph por Freud e sua pre- ... tão da falta como mobilização do vazio da lingua- ... que reconsideram o lugar em

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Eneida Maria de Souza

O SÉCULO DE BORGES

2a ediçãoRevista e ampliada pela autora.

1ª edição, de 1999, publicadacom a Contra Capa Livraria.

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Copyright © 1999 by Eneida Maria de Souza

CAPA

Christiane Costa(Sobre imagem de Horacio Villalobos/CORBIS)

REVISÃO

Carolina Lins Brandão

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Waldênia Alvarenga Santos AtaídeTales Leon de Marco

EDITORA RESPONSÁVEL

Rejane Dias

AUTÊNTICA EDITORA LTDA.Rua Aimorés, 981, 8º andar. Funcionários30140-071. Belo Horizonte. MGTel: (55 31) 3222 68 19TELEVENDAS: 0800 283 13 22www.autenticaeditora.com.br

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópiaxerográfica sem a autorização prévia da Editora.

Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico.

Souza, Eneida Maria deO século de Borges / Eneida Maria de Souza. — 2. ed. rev. conforme

novo acordo ortográfico. — Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2009.

ISBN 978-85-7526-379-2

1. Borges, Jorge Luis, 1899-1986 - Crítica e interpretação 2. Escritoresargentinos - Biografia I. Título.

09-01059 CDD-ar868.4

Índices para catálogo sistemático:1. Argentina : Século 20 : Escritores : Crítica e

interpretação ar868.42. Escritores argentinos : Século 20 : Crítica e

interpretação ar868.4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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1899 – 24 de agosto, por escassíssima margem, per-tence ao século XIX. De tantos símbolos tramados eentretramados ao redor da vida de Jorge Luis Borges,não existe um mais surpreendente que este: seu nasci-mento na iminência de uma morte, a do século. Clausu-rar um tempo e abrir outro, o passado e o presente, osantepassados e o porvir de uma literatura. Melhor dir-se-ia de uma escrita e sua contrapartida, a leitura.

Enrique Foffani

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SUMÁRIO

Minha terra tem palmeiras ................................... 9

Borges entre dois séculos ......................................19

Lo cercano se aleja ..................................................33

Um estilo, um aleph ................................................47

Ficções e paradigmas .............................................55

Histórias de família na América ............................65

A letra e o nome .................................................69

A Borges o que é de Borges ................................75

A morte e o sonho heroico ..................................79

Genebra, 14 de junho de 1986 ............................85

O verbete Borges ...............................................97

Referências ............................................107

Nota.........................................................111

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A comemoração do centenário de Borges nessefinal de milênio une as pontas de dois séculos, comose a literatura do século XX coincidisse com o nasci-mento do escritor. Curiosamente, Oscar Wilde – umdos autores mais próximos de Borges – morre desco-nhecido em 1900, num hotel de Paris, abrindo o novoséculo para as gerações vindouras e marcando o fimdo culto da personalidade literária. A partir daí, aconsagração autoral passará por momentos de crise,graças ao reconhecimento de ser a criação um gestomúltiplo e à descoberta do inconsciente por Freud,que abalaria o estigma da racionalidade positivista doséculo XIX. A Interpretação dos sonhos, obra inauguralda ciência onírica, acende as luzes do século XX, as-sim como libera o incontrolável processo de associa-ção das imagens, pelo qual a literatura se exercita eatua como referência. Proliferam as explorações dotema do duplo, do destino e do acaso, bem como dojogo de espelhos e de simulações causado pelo des-conhecimento do sujeito de suas ações, da caída noabismo e do brinquedo com o labirinto.

1900 registra ainda a morte de Nietzsche, víti-ma da demência, abrindo o século para uma de suasmais ousadas vertentes filosóficas, responsável pelo

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BORGES ENTRE DOIS SÉCULOS

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rompimento dos conceitos de genealogia e de ori-gem e pela transformação espacial da invenção do sen-tido, envolto na transparência da superfície e longeda sedução enganosa da profundidade. A data demorte do filósofo inaugura o século que irá fazê-loum de seus mais significativos emblemas, assim comoacompanhará os passos tortuosos da ficção de Borges.O desprezo do autor de O Aleph por Freud e sua pre-ferência por Jung, os pré-socráticos, os budistas eSchopenhauer, não eliminam as inúmeras coincidên-cias da poética borgiana com o pensamento freudia-no: ambos se pautam pela desconfiança em relaçãoao controle do sujeito ante o discurso e se valem doestatuto da ficção como poder criador. Mas é Nietzs-che quem mais sopra no ouvido do escritor, seja pararomper as barreiras interdiscursivas, seja para acenar àinvenção de realidades como mola condutora do pen-samento moderno, seja para endossar a morte do hu-manismo como categoria filosófica e cristã.

Ainda que tenha nascido no apagar das luzes doséculo XIX, Borges imprime no século XX o seutraço ficcional, tornando-o borgiano, da mesma for-ma que Foucault lançou a previsão filosófica a propó-sito de Deleuze, ao afirmar que este século seriadeleuziano. Percebe-se que o fascínio de Borges éincalculável quando se analisam os diferentes legadosdesse pensamento no Ocidente, vinculados à linha-gem da crítica literária, voltada para o culto da lin-guagem como um fim em si ou para a abordagem detemas caros às Ciências Humanas, tais como: a ques-tão da falta como mobilização do vazio da lingua-gem; a existência da verdade estética como correlataà ética discursiva; a reflexão sobre o fim do aspectoreferencial dos discursos, e sobre o fim da história. Ocaráter artificial da construção artística, levada a seu

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máximo pela poética borgiana, por meio da noção ilu-sória dos acontecimentos e do pastiche de textos dabiblioteca mundial, responde pelo grau de virtualida-de instaurado na estética e na ciência contemporâneas.

As imagens emblemáticas da biblioteca de Ba-bel criadas por Borges se articulam com a lógica serialdo universo, por conterem e ao mesmo tempo dis-solverem qualquer sentido de propriedade do sujeitoperante os objetos, perdendo-se, enfim, na impesso-alidade e no absurdo. A irrupção desse sujeito no uni-verso de tinta e de papel – a grande metáfora da literaturase expande para a da ficção – permite encará-lo comorepresentante do mundo de faz-de-conta, fruto da in-finita montagem e desmontagem da verdade e damentira dos livros e dos catálogos. Pela exaustão desaberes contidos na biblioteca, o vazio aí instaladotorna-se cada vez mais visível na sequência desorde-nada dos comentários e na imbricação de livros unssobre os outros.

O artigo de Beatriz Sarlo “Borges, crítica y teo-ría cultural”, que assinala a participação do autor emrelação às revoluções culturais processadas nas primei-ras décadas do século XX, entre elas a da indústriacultural, torna-se imprescindível para que se com-preenda a posição de Borges como intelectual argen-tino. Segundo a ensaísta, os intelectuais das elitesletradas não permanecem indiferentes nem à margemdessas transformações de ordem cultural. Mantêm-se ora como produtores da cultura de massa, por in-termédio da qual Borges publica, na revista Crítica,os relatos da Historia universal da infâmia, ora como osque reconsideram o lugar em que se encontra a “altaliteratura”, no marco de um mundo simbólico cada diamais estratificado (SARLO, 1999). Ainda que Borges se

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mantenha afastado das grandes correntes teóricas desteséculo, como a psicanálise, o marxismo, o existen-cialismo e a fenomenologia, Sarlo admite que não émenos verdadeiro que o escritor revele-se sensívelaos problemas que emergem da conjuntura ideológicae que afetam o imaginário coletivo:

As democracias de massa, o caráter plebeu das socie-dades que se modificam no primeiro pós-Guerra, oconflito entre elites tradicionais e intelectuais de novotipo é o marco de suas intervenções apenas aparente-mente literárias. (SARLO, 1999, p. 10)

Com base na estreita relação entre os princípioscomuns do imaginário filosófico moderno e ficcio-nal, a presença de Borges nessa rede interdisciplinar einterdiscursiva funciona, contudo, como outra vozque se integra às demais. É importante reconhecerque a máquina produtora de ficções permeia as disci-plinas e não constitui privilégio apenas da literatura,entendida como a ocupante de um lugar especial ehegemônico. A diluição do conceito de um sóparadigma norteando o pensamento contemporâneoé de extrema importância para se refletir sobre a rela-ção de superfície e de horizontalidade existente entreas diferentes disciplinas. É impossível pensar, a partirdessa reviravolta conceitual, no estabelecimento dearticulações hierárquicas e verticalizadas na relaçãoentre os discursos. Nesse sentido, o século XX passa,inevitavelmente, por explicações que vão da filosofiaà ficção, permeadas por inserções de natureza históri-ca, psicanalítica, antropológica e política.

Com o gradativo declínio do paradigma cientí-fico, os estudos literários também foram impelidos areformular conceitos e metodologias, na esteira deposições pós-estruturalistas. Entre as inúmeras portas

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abertas pelos teóricos, algumas persistiram na linhaanalítica de base imanentista e textualista – com forteinfluência dos princípios próprios à semiologia, à psi-canálise e à filosofia – e outras partiram para o resgateda História e do contexto políticossocial. A impor-tância atribuída à ficção como categoria que percorreos variados discursos e teorias recebe tratamento di-ferenciado e depende da função a ela atribuída. Oequívoco cometido por algumas posições metodo-lógicas exercidas na atualidade consiste em conside-rar o estatuto da ficção segundo critérios essencialistas,descontextualizando diferentes manifestações literá-rias e artísticas em defesa de uma pretensa ontologia.

Se o texto literário de Borges é uma referênciaimprescindível para se repensar o século XX comodominado pelo paradigma da ficção e, mais precisa-mente, pela ausência de limites entre a realidade e asua construção virtual, os defensores de uma ética li-terária e histórica não se contentam em aceitar taisprovocações. Os princípios da estética pós-moderna,considerados pela crítica tradicional como desnorte-adores e inconsequentes, seriam os responsáveis pelaatual ausência de critérios na avaliação dos distintosdiscursos que integram o pensamento contemporâ-neo. Dentre esses princípios, citem-se o exercício dopastiche como resposta à criatividade neovanguardista,a concepção do discurso histórico como construçãoartificiosa, a desconfiança em relação à veracidade dosdocumentos e a relatividade dos valores como resul-tado da diluição de textos considerados hegemôni-cos. A censura a esses pressupostos é feita em nomeda defesa da ética e da ideologia de determinados gru-pos. A crítica literária se posiciona, portanto, ora comvistas à preservação dos valores literários canonizadospelo alto modernismo, ora aceitando esses princípios

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como marca borgiana por excelência de um modode pensar a literatura e os sujeitos que a interpretam.Outra vertente, de natureza hermenêutica, voltadapara a diferença entre o pacto ficcional e o biográfico,tende a separar rigidamente os acontecimentos entreaqueles reais e aqueles inventados, o documento his-tórico da ficção.

Como leitor da tradição de escritores considera-dos clássicos, Calvino escolhe Borges como um dosnomes para constar de sua biblioteca, composta, nasua maioria, de autores europeus. O escritor argenti-no responde pela estética da brevidade e pelo apuroda geometria, parâmetros literários caros ao escritoritaliano e marcas registradas da poética moderna. Ograu de potencialidade representado pela obra de Bor-ges reside na fabulosa metáfora da literatura, levada àenésima potência e compartilhada por Calvino, prin-cipalmente quando este entende ser tal qualidade oque torna a obra de arte liberta das prisões causalistasda História e aberta aos infinitos jogos de significação:

O que mais me interessa anotar aqui é que nasce comBorges uma literatura elevada ao quadrado e ao mes-mo tempo uma literatura como extração da raiz qua-drada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usarum termo que será desenvolvido mais tarde na França,mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Fic-ciones, nos estímulos e formas daquelas que poderiamter sido as obras de um hipotético Herbert Quain.(CALVINO, 1993, p. 249)

Com o intuito de esclarecer o lugar ocupado pelaficção de Borges no interior das Ciências Humanas, aescolha de três ensaios, cujo objeto de análise é a suaobra, pretende examinar diferentes posições relativasaos três teóricos escolhidos. Dentre essas, duas são

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contrárias à ficcionalização do universo borgiano, ope-ração entendida segundo um critério universalizanteque atinge outras áreas; a terceira mostra-se favorávelà posição da obra do escritor ante as demais discipli-nas, sendo interpretada como “emblema desta era”.Nos dois primeiros casos, representados pelos ensai-os de Luiz Costa Lima (1998) “Aproximação de Jor-ge Luis Borges” e de Roland Quilliot (1988) “Lafascination moderne de l’impersonnel”, são discuti-das as diferentes acusações de a obra borgiana ser con-siderada uma das referências para balizar o grau deficcionalização dos conceitos que integram o univer-so teórico do século XX. O texto de Lisa Block deBehar “A invenção teórica do discurso crítico latino-americano” defende o princípio de ser a imaginaçãointelectual de Borges capaz de antecipar e de con-densar “a ficção e o conhecimento de, pelo menos,meio século” (BEHAR, 1998, p. 15).

O texto de Luiz Costa Lima consiste na reflexão,em contraponto, sobre a teoria por ele desenvolvidaacerca do controle do imaginário exercido pelos discur-sos religiosos e políticos perante o discurso literário, no-tadamente em épocas históricas marcadas pela censura.Na análise que realiza de certa parcela da crítica literáriadirigida à obra de Borges, o ensaísta denuncia outra mo-dalidade de controle, o do ficcional, ao se impor comohegemônico e ilimitado ante os demais discursos. O ar-gumento se baseia na tendência dessa postura crítica denegar as fronteiras discursivas, o que resulta em conside-rar a obra literária dotada de poderes excepcionais quesuplantariam os textos considerados fechados de outrasáreas, por exemplo, das Ciências Humanas.

Se a História ocupou no século XIX o lugarde destaque e de controle em relação à literatura, a

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linguística passou a ter no século XX, com o estrutu-ralismo, a função de detentora da chave que abriria ointercâmbio disciplinar. Neste final de milênio, a fic-ção estaria atuando como a mola mestra do saber. Seos dois primeiros exemplos – o paradigma histórico eo linguístico – traduzem a subordinação disciplinar eo racionalismo científico que marcaram o pensamen-to moderno, o terceiro revela o poder da imaginaçãocomo possibilidade de saída para o convívio entre ateoria e a ficção. Movida ainda por princípios hierar-quizantes e verticalizados quanto ao exercício da in-terdisciplinaridade, a crítica literária estaria cometendoo mesmo equívoco das análises anteriores, ao esco-lher um determinado discurso como aglutinador ecapaz de condensar os demais:

Se, no século passado, o romance tinha de imitar a Históriapara se legitimar, Borges contribuiu decisivamente para o modoinverso: o historiador, senão o filósofo hão de se tornar ficcio-nistas. Este monismo do ficcional não é menos autoritário econtrolador quanto qualquer outro. É certo que o ficcionalnão pode se considerar a si mesmo depositário da verdade,porque seria negar seu próprio estatuto. Ou seja, o limite parao germe controlador que encontramos em Borges, constituí-do pelo fato de que não pretenda ser senão um ficcionista.(LIMA, 1998, p. 301)

Colocando-se partidário da pluralidade discursi-va, o teórico discorda ao mesmo tempo da posiçãomonista dos controladores da ficção – e do imaginá-rio – e daqueles que se inclinam a reduzir todas asmanifestações discursivas à invenção ficcional. A cul-pa, portanto, deixa de ser apenas de Borges, emboraeste se comporte como o grande inventor de ficções.A culpa também é daqueles que se apropriam desseuniverso metafórico, alçando-o à categoria de um

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modelo ideal, possível de se adequar a qualquer ou-tro. Na condição de fabricante de ficções, torna-seevidente que o lugar ocupado pelo escritor na cadeiados discursos é de outra ordem. Por essa razão, noentender de Luiz Costa Lima, seria por demais desa-conselhável interpretar a obra de Borges segundo umviés exclusivista.

No extremo oposto ao pensamento do teóricobrasileiro – embora insistindo na metáfora da ficçãocomo traço diferenciador da obra borgiana – o textodo filósofo francês Quilliot tem como argumento dedefesa os princípios humanistas que por muito tem-po nortearam a crítica literária e a própria literatura.Diante da desconstrução estruturalista do sujeito e daação igualmente desmitificadora da ficção moderna,responsáveis pelo desaparecimento de categoriasidentitárias, racionalistas e essencialistas, o filósofo en-contra em Borges a ilustração literária mais fascinantedesse estado de coisas. A ficção borgiana apresenta-secomo a grande causadora da “instauração da morteno interior de um universo de tinta e papel”, resul-tando no endosso do desaparecimento da figura dosujeito em um universo dominado por um enredotraçado pelo destino literário.

Mas o que se torna alvo das inquietações do filó-sofo é a impossibilidade de a obra de Borges conser-var a perspectiva realista do mundo. Preso ao maisdetestável princípio estético negado pela poética bor-giana – o realismo – esse texto consegue apontar ooutro lado da moeda, a teoria neo-humanista que pre-tende controlar o ficcional com base em premissasfortemente ligadas à liberdade, ao livre arbítrio e àsalvação do homem. Nesse sentido, Borges repre-sentaria o lado obscuro e pessimista da época moderna,

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por construir ficções que desmoronam as certezas in-ventadas pela metafísica ocidental: “nenhuma lucidezé possível, o homem é destinado a uma cegueira ra-dical”.1 O discurso filosófico neo-humanista estariaassim cumprindo a tarefa de ser o guardião do sabermoderno, insurgindo-se contra aqueles que contrariamas leis por ele defendidas. Na encruzilhada do final deséculo, torna-se igualmente inaceitável a imposiçãode um discurso frente aos outros, principalmente seele se refere ao ficcional, que, em princípio, não sereduz a redimir os males da humanidade.

Em posição marcadamente contrária à do filóso-fo francês e à de Luiz Costa Lima, Lisa Block de Beharconstata que, na metade do século XX, filósofos, es-critores e críticos partem das considerações e da fic-ção de Borges para a elaboração das teorias e dosparadigmas do pensamento contemporâneo. A ima-ginação racionalizada da poética borgiana seria umadas razões pelas quais tanto fascínio ela exerce no ima-ginário crítico desta época, em que as fronteiras dis-ciplinares deslizam entre teoria e poesia, história eficção, vigília e sono, realidade e representação. “Nes-sa estética sem limites de Borges”, comprova-se o de-saparecimento das oposições que definiam as diferençassistemáticas de doutrinas mais rígidas, assim como origor dos sistemas e o otimismo neopositivista dos mo-delos científicos (BEHAR, 1998, p. 16-17).

1 “Cet aveuglement est tellement profond qu’il rend impossible de conserverune perspective réaliste sur le monde. Renonçant à notre matérialismespontané, qui préssupose une foi minimale dans les pouvoirs de l’intellectrationnel, Borgès préfère adopter une hypothèse audacieusement idéaliste:celle, on l’a dit que le monde possède un ordre que nous ignorons, tout àfait différent de sa rationalité apparente, ordre qui assigne à tout évenémentune fonction précise et nécessaire” (QUILLIOT, 1988, p. 297).

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Depois de dados abundantes reunidos por Emir Ro-dríguez Monegal em Borges par lui-même, primeiro, eem outros livros, depois, já resultaria redundante fazerconstar que M. Blanchot, M. Foucault, J. Derrida, G.Genette, também J. Baudrillard, H.R. Jauss, E. Levi-nas, J. Barth, P. de Man, H. Bloom, G. Vattimo, J. L.Lyotard, U. Eco, e tantos outros pensadores, escritorese realizadores desta segunda metade do século partemdas considerações e das ficções de Borges. Tudo passapor Borges, é ele passagem obrigatória, o trânsito e acausa inicial. Tantos poetas, tantos teóricos e críticosse ocupam da imaginação de Borges, que a imaginaçãode Borges ocupou o mundo. Não em vão, um críticonorte-americano propunha “nominar Borges” o em-blema desta era. Eu acrescentaria ao emblema a inscri-ção ante litteram, mas essa é outra história. (p. 15)

A posição radical da ensaísta diante do papel fun-dador da ficção borgiana em face dos demais discur-sos merece ser discutida, considerando-se o próprioconceito de fundação e a temerária ideia de perten-cer a imaginação ficcional a um só autor ou a umdiscurso propenso a abarcar o mundo. A eleição doescritor argentino como precursor do ideário ficcio-nal da modernidade contradiz a poética borgiana, poistorna-se inadmissível aceitar que princípios causalis-tas promovam a existência de teorias. Com a conhe-cida frase de Borges “o escritor é que cria os seusprecursores”, abole-se a dimensão temporal das rela-ções afetivas e instaura-se o livre trânsito de emprés-timos, sem a adoção de um paradigma específico.Corre-se ainda o risco de transformar a ficção borgianaem categoria absoluta e mundializada, capaz de pe-netrar em todos os ramos do saber e de abrir as portasda literatura de todos os tempos. O antídoto para adesmesura e a infinita potência desse discurso é proce-der com cautela, utilizando as próprias limitações

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históricas que os conceitos e as metáforas sofrem nointerior do discurso crítico-teórico.

Antológica tornou-se a apresentação de As pala-vras e as coisas, de Michel Foucault, em 1966, na qualBorges é o nome que convida à reflexão filosófica domomento, com a citação da inusitada “Enciclopédiachinesa”, capaz de embaralhar os princípios nortea-dores do pensamento ocidental. Esse marco históri-co da episteme estruturalista representa o início doolhar desarmado do europeu frente à América Lati-na, que passa a rever os diferentes tipos de racionali-dades com a ajuda do imaginário presente nos textosde Borges. Embora a lógica inusitada permita a cons-tatação de lugares heterotópicos, da presença do Outrodiante da supremacia européia do Mesmo, o sorrisode espanto de Foucault, no entender de Silviano San-tiago, duplica “tanto antigas leituras européias dasculturas colonizadas, quanto modernas leituras lati-no-americanas das culturas colonialistas”. Nesse sen-tido, Borges torna-se exportador de exotismo,“re-alimentando o esgotamento cultural e artísticodo Ocidente europeizado”. De que forma Foucaultse apropria da “realidade” latino-americana descritametaforicamente por Borges? Ao descobrir lá naFrança que a China é aqui na América Latina e acolá,na Ásia. Ao descobrir que tudo é familiar (SANTIAGO,1998, p. 34-35).

Compartilhar a posição de Lisa Block de Beharde ser o discurso ficcional borgiano contaminado poringredientes teóricos que o colocam no mesmo pa-tamar dos textos representativos do saber contem-porâneo – por não mais sustentarem os antagonismosentre “criação e crítica”, “obra de imaginação e obraintelectual” – significa acreditar no caráter inventivoda teoria e na força teórica da ficção. Mas entre a defesa

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da ficção fundadora de Borges, no espaço interdisci-plinar dos discursos das Ciências Humanas, e a suacondenação realizada pelo filósofo, ou a cautela de-monstrada por Costa Lima diante do valor essencialatribuído a esse discurso, a saída é conseguir articularo conceito de ficção com o da História, assim comoo estatuto da estética borgiana com outras manifesta-ções discursivas. Se a acusação de ter sido o saber teóricoda modernidade dominado por critérios universalis-tas e pela autoridade teórica dos conceitos, a outraface da moeda não poderá se manter ilesa, por defen-der a autonomia de um discurso que já nasceu híbri-do e multifacetado. É importante ainda apontar oslimites que a leitura dos teóricos franceses revela so-bre a obra de Borges, pois ao lado da dívida para comesse universo ficcional, reforça-se o desconhecimen-to do imaginário latino-americano.

Ao se propor o desafio de que Borges emblema-tiza, com seu nascimento em 1899, a morte do sécu-lo XIX e a vida do XX, não é de se estranhar que suaobra tenha cumprido o destino de uma abertura parao futuro. Na virada do século, constata-se o poder deuma literatura que se notabilizou pelo altíssimo graude potencialidade e de desapego aos marcos históri-cos, ao retraduzir poéticas narrativas que pertencemtanto ao século passado quanto ao atual. Se ainda aestética de fin de siècle vale-se da indefinição de esti-los e da releitura dos vazios da modernidade, Borgespermanece, inevitavelmente, como uma das agudasvozes do presente.

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