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Tiragem: 7014 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Regional Pág: 7 Cores: Preto e Branco Área: 17,96 x 30,34 cm² Corte: 1 de 1 ID: 37296677 04-09-2011 BEJA SANTOS Colaborador O século XX português: do Ultimato às incertezas do presente “O SÉCULO XX PORTUGUÊS” (por José Manuel Sardica, Textos Editores, 2011) é uma apresentação para públicos estrangeiros do panorama da mais recente evolu- ção histórica de Portugal. Não tem por objectivo uma interpretação radicalmente nova, é uma síntese descritiva e analítica, como escreve o autor, dos caminhos políticos, sociais, económicos e até culturais seguidos por Portugal desde 1900 atéaopresente.Obraportantoindi- cada para qualquer não iniciado. Nesse período de tempo, Por- tugal conheceu a monarquia, a re- pública, um sistema ditatorial e um regime democrático igual àqueles que existem na União Eu- ropeia; viveu o tempo do império africano e orientou-se para um destino europeu. Um tempo, como se compreenderá, de intensa vi- bração, como anota o próprio au- tor, já que comportou: 4 regimes políticos diferentes, 4 constitui- ções, 4 ditaduras, o assassinato de 2 chefes de Estado (um rei em 1908 e um presidente em 1918), de um primeiro-ministro (em 1921) e de um antigo candidato presidencial (em 1965) – o século XX também pode ser encarado como um perío- do crucial da história nacional pelas transformações que se têm vindo a operar na existência colec- tiva e individual. O que nos remete, antes de mais para a crise e falência da monarquia constitucional. Nos alvores do século XX, a população portuguesa ascendia a 5,5 milhões de habitantes, mais de 84 % viviam em zonas rurais. A esperança de vida era de aproxi- madamente 40 anos, a agricultura ocupava 62 % da população activa, a indústria 19 %, o mesmo núme- ro que o sector dos serviços. O analfabetismo rondava os 75 %. O paístinhaumdesempenhomelhor e mais rico em 1900 do que em 1850. Vivam-se tempos confusos, no entanto, se bem que Portugal esti- vesseaexperimentaroforteimpac- to da segunda revolução industrial, mantinham-seproblemasestrutu- raisdesdeafaltadesolidezpolítica,a que a crise do Ultimato não é alheia, agravara-se a crise financeira, ambas conjugadas tornaram com- plexos os problemas sociais, mora- is e culturais. O rotativismo político atingira a exaustão, as dissoluções parlamentares seguiam-se umas às outras; o aperto financeiro sal- dou-se em menor investimento público este desencadeou desem- pregoeaumentodocustodevida;os ideais republicanos pareciam ser o substituto do sentimento generali- zado de pessimismo, frustração e decadência. D. Carlos procura uma saída entregando o Governo a João Franco, tal era o descrédito que tinha atingido os dois líderes parti- dários do rotativismo, Hintze Ribeiro e José Luciano de Castro. Franco governou cercado de inimi- gos e depois de uma curta ditadura administrativa o assassinato do rei trouxe-lheoexílio.D.ManuelIInão tinha preparação para os desafios que enfrentava a monarquia em derrisão. O regime caiu pratica- mente desamparado entre 3 e 5 de Outubro, dia em que foi proclama- da na Câmara Municipal de Lisboa a República. Ao contrário do que durante muito tempo se fez supor, a base de apoio da República era muito estreita, apesar do Partido Repu- blicano ter dado provas de ser di- nâmico e trazer um sentido para a política de modernidade, não es- condendo uma forte atracção pelo cientismo e pelo positivismo. Pro- metia direitos sociais, mais ins- trução pública, emancipação fe- minina, promoção do Império africano. A sua condução, sobre- tudo com as populações do interi- or, revelaram-se um desastre, gra- ças a um anticlericalismo primá- rio, ergueram a questão religiosa a uma prioridade insensata, crian- do muito mais inimigos do que amigos. A forma como se deu o envolvimento na I Guerra Mun- dial trouxe novas ondas de des- contentamento, isto enquanto os problemas sociais e económicos conheciam agravamento. Em 28 de Maio de 1926 deu-se uma nova queda de regime, mais uma vez se resistência visível. A ditadura militar marcou o fim do liberalismo português e a ascensão de Salazar veio permitir um regime nacionalista, ditatorial, com uma ampla base tradiciona- lista e conservadora. O autor ilus- tra com rigor o que foi o projecto ideológico do salazarismo, como ele se consolidou à margem do fascismo da época. Em 1945, no termo da II Guerra, o prestígio de Salazar estava no auge. Nesse exacto momento, começaram os problemas que levaram ao pro- gressivo desgaste do regime: o fenómeno universal da descoloni- zação, a necessidade de neutrali- zar as instituições nacionalistas de pendor mais agressivo, a emer- gência de novas formas de oposi- ção, foi um processo que desem- bocou nas eleições presidenciais em que o general Humberto Del- gado apavorou o regime. En- quanto o país entrava na senda do desenvolvimento, uma guerra colonial devastadora foi gangre- nando as energias sociais do regi- me, a sua base de apoio erodiu-se, proliferaram crises com antigos aliados, desde a Igreja Católica às Forças Armadas. Em 25 de Abril, o regime baqueou, incapaz de en- contrar solução para uma guerra que sobretudo na Guiné e no norte de Moçambique atingira propor- ções devastadoras. José Manuel Sardica explica com particular acerto na concisão como evoluiu a revolução de Abril, quais os dados mais signifi- cativos da turbulência revolucio- nária e como se desenrolou o perí- odo de normalização democrática, aprovada a Constituição de 1976, ultrapassadas que foram as vicis- situdes até ao processo de adesão à União Europeia. O país mudara profundamente. No final da pri- meira década do século XXI a população duplicara, agora 85 % dos portugueses vivem em cida- des, cerca de 45 % da população vive concentrada em 4 % do terri- tório, mudou profundamente a estrutura demográfica, do empre- go, do ensino e da cultura. As grandes sombras negras são a re- cessão e uma crise que faz desper- tar o desânimo e a perda de con- vicção no modelo do progresso, Portugal está a empobrecer, a des- peito dos indicadores de saúde, protecção social e cultura. O autor cita Maria Filomena Mónica: “O mais importante não foi tanto o sentido da evolução, partilhada com outros países, mas o ritmo a que tudo aconteceu. Com a prová- vel excepção da Espanha, nen- hum outro país europeu conse- guiu liquidar o campesinato, alte- rar a taxa de fecundidade, mudar os padrões de consumo, diminuir a mortalidade infantil, instaurar o sufrágio universal, transformar as relações Estado-Igreja, criar uma classe média, abrir as fron- teiras a pessoas e bens, escolarizar a população, liquidar um império à velocidade a que o fez Portugal”. Portugal cresceu muito no século XX, os portugueses dão-se bem com a democracia mas uma onda de fatalismo e de negativismo atravessa a sociedade portuguesa. Afinal, voltamos a perder o com- boio, a estima colectiva evapora- se. Há, porém, um capital que poderá ser o grande trunfo dos próximos tempos: as gerações mais jovens aprenderam que o século XX foi feito de acidentes, contrariedades, esperanças, saltos em frente e recuos. E estas novas gerações possuem muito mais cultura e dão-se bem com o euro- peísmo. Esta viagem de 100 anos da his- tória portuguesa merece ser lida e discutida.

O século XX português: do Ultimato às incertezas do presente

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«Esta viagem de 100 anos da história portuguesa merece ser lida e discutida.» Beja Santos

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Page 1: O século XX português: do Ultimato às incertezas do presente

Tiragem: 7014

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Regional

Pág: 7

Cores: Preto e Branco

Área: 17,96 x 30,34 cm²

Corte: 1 de 1ID: 37296677 04-09-2011

� BEJA SANTOS� Colaborador

O século XX português:do Ultimato às incertezas do presente

“O SÉCULO XX PORTUGUÊS”(por José Manuel Sardica, TextosEditores, 2011) é uma apresentaçãopara públicos estrangeiros dopanorama da mais recente evolu-ção histórica de Portugal. Não tempor objectivo uma interpretaçãoradicalmente nova, é uma síntesedescritiva e analítica, como escreveo autor, dos caminhos políticos,sociais, económicos e até culturaisseguidos por Portugal desde 1900até ao presente. Obra portanto indi-cada para qualquer não iniciado.

Nesse período de tempo, Por-tugal conheceu a monarquia, a re-pública, um sistema ditatorial eum regime democrático igualàqueles que existem na União Eu-ropeia; viveu o tempo do impérioafricano e orientou-se para umdestino europeu. Um tempo, comose compreenderá, de intensa vi-bração, como anota o próprio au-tor, já que comportou: 4 regimespolíticos diferentes, 4 constitui-ções, 4 ditaduras, o assassinato de2 chefes de Estado (um rei em 1908e um presidente em 1918), de umprimeiro-ministro (em 1921) e deum antigo candidato presidencial(em 1965) – o século XX tambémpode ser encarado como um perío-do crucial da história nacionalpelas transformações que se têmvindo a operar na existência colec-tiva e individual. O que nos remete,antes de mais para a crise e falênciada monarquia constitucional.

Nos alvores do século XX, apopulação portuguesa ascendia a5,5 milhões de habitantes, mais de84 % viviam em zonas rurais. Aesperança de vida era de aproxi-madamente 40 anos, a agriculturaocupava 62 % da população activa,a indústria 19 %, o mesmo núme-ro que o sector dos serviços. Oanalfabetismo rondava os 75 %. O

país tinha um desempenho melhore mais rico em 1900 do que em 1850.Vivam-se tempos confusos, noentanto, se bem que Portugal esti-vesse a experimentar o forte impac-to da segunda revolução industrial,mantinham-se problemas estrutu-rais desde a falta de solidez política, aque a crise do Ultimato não é alheia,agravara-se a crise financeira,ambas conjugadas tornaram com-plexos os problemas sociais, mora-is e culturais. O rotativismo políticoatingira a exaustão, as dissoluçõesparlamentares seguiam-se umasàs outras; o aperto financeiro sal-dou-se em menor investimentopúblico este desencadeou desem-prego e aumento do custo de vida; osideais republicanos pareciam ser osubstituto do sentimento generali-zado de pessimismo, frustração edecadência. D. Carlos procura umasaída entregando o Governo a JoãoFranco, tal era o descrédito quetinha atingido os dois líderes parti-dários do rotativismo, HintzeRibeiro e José Luciano de Castro.Franco governou cercado de inimi-gos e depois de uma curta ditaduraadministrativa o assassinato do reitrouxe-lhe o exílio. D. Manuel II nãotinha preparação para os desafiosque enfrentava a monarquia emderrisão. O regime caiu pratica-mente desamparado entre 3 e 5 deOutubro, dia em que foi proclama-da na Câmara Municipal de Lisboaa República.

Ao contrário do que durantemuito tempo se fez supor, a basede apoio da República era muitoestreita, apesar do Partido Repu-blicano ter dado provas de ser di-nâmico e trazer um sentido para apolítica de modernidade, não es-condendo uma forte atracção pelocientismo e pelo positivismo. Pro-metia direitos sociais, mais ins-trução pública, emancipação fe-minina, promoção do Impérioafricano. A sua condução, sobre-tudo com as populações do interi-or, revelaram-se um desastre, gra-ças a um anticlericalismo primá-rio, ergueram a questão religiosa a

uma prioridade insensata, crian-do muito mais inimigos do queamigos. A forma como se deu oenvolvimento na I Guerra Mun-dial trouxe novas ondas de des-contentamento, isto enquanto osproblemas sociais e económicosconheciam agravamento. Em 28de Maio de 1926 deu-se uma novaqueda de regime, mais uma vez seresistência visível.

A ditadura militar marcou ofim do liberalismo português e aascensão de Salazar veio permitirum regime nacionalista, ditatorial,com uma ampla base tradiciona-lista e conservadora. O autor ilus-tra com rigor o que foi o projectoideológico do salazarismo, comoele se consolidou à margem dofascismo da época. Em 1945, notermo da II Guerra, o prestígio deSalazar estava no auge. Nesseexacto momento, começaram osproblemas que levaram ao pro-gressivo desgaste do regime: ofenómeno universal da descoloni-zação, a necessidade de neutrali-zar as instituições nacionalistasde pendor mais agressivo, a emer-gência de novas formas de oposi-ção, foi um processo que desem-bocou nas eleições presidenciaisem que o general Humberto Del-gado apavorou o regime. En-quanto o país entrava na senda dodesenvolvimento, uma guerracolonial devastadora foi gangre-nando as energias sociais do regi-me, a sua base de apoio erodiu-se,proliferaram crises com antigosaliados, desde a Igreja Católica àsForças Armadas. Em 25 de Abril, oregime baqueou, incapaz de en-contrar solução para uma guerraque sobretudo na Guiné e no nortede Moçambique atingira propor-ções devastadoras.

José Manuel Sardica explicacom particular acerto na concisãocomo evoluiu a revolução deAbril, quais os dados mais signifi-cativos da turbulência revolucio-nária e como se desenrolou o perí-odo de normalização democrática,aprovada a Constituição de 1976,

ultrapassadas que foram as vicis-situdes até ao processo de adesão àUnião Europeia. O país mudaraprofundamente. No final da pri-meira década do século XXI apopulação duplicara, agora 85 %dos portugueses vivem em cida-des, cerca de 45 % da populaçãovive concentrada em 4 % do terri-tório, mudou profundamente aestrutura demográfica, do empre-go, do ensino e da cultura. Asgrandes sombras negras são a re-cessão e uma crise que faz desper-tar o desânimo e a perda de con-vicção no modelo do progresso,Portugal está a empobrecer, a des-peito dos indicadores de saúde,protecção social e cultura. O autorcita Maria Filomena Mónica: “Omais importante não foi tanto osentido da evolução, partilhadacom outros países, mas o ritmo aque tudo aconteceu. Com a prová-vel excepção da Espanha, nen-hum outro país europeu conse-guiu liquidar o campesinato, alte-rar a taxa de fecundidade, mudaros padrões de consumo, diminuira mortalidade infantil, instaurar osufrágio universal, transformaras relações Estado-Igreja, criaruma classe média, abrir as fron-teiras a pessoas e bens, escolarizara população, liquidar um impérioà velocidade a que o fez Portugal”.Portugal cresceu muito no séculoXX, os portugueses dão-se bemcom a democracia mas uma ondade fatalismo e de negativismoatravessa a sociedade portuguesa.Afinal, voltamos a perder o com-boio, a estima colectiva evapora-se. Há, porém, um capital quepoderá ser o grande trunfo dospróximos tempos: as geraçõesmais jovens aprenderam que oséculo XX foi feito de acidentes,contrariedades, esperanças, saltosem frente e recuos. E estas novasgerações possuem muito maiscultura e dão-se bem com o euro-peísmo.

Esta viagem de 100 anos da his-tória portuguesa merece ser lida ediscutida.