33

O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões
Page 2: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

5

1Ceilão, 1935

Uma fazenda de canela

A compleição magra dificulta o cálculo da idade, mas, sentado sob as ramagens pendentes da figueira-de-bengala, parece solitário, e, quando o sol se derrama pelas folhas lustrosas,

também lhe dança nos braços e pernas esguios. Este menino, mais elfo silvestre do que criança de carne e osso, é do género daqueles a quem uma mãe deseja abraçar. Escolhe um seixo e, com o sobro-lho franzido, concentra-se e lança-o, para ver até onde o faz chegar. Satisfeito por vê-lo ir mais longe do que o anterior, põe-se de pé e dá a volta à pequena clareira, delimitada por rododendros, esfolando as sandálias nos gravetos e nas folhas que restolham e se partem sob os seus pés.

Escuta corujas que cofiam as penas e que mudam o peso do corpo na árvore, vê um esquilo listado correr por um tronco aci- ma e depois cheira o ar — citronela, terra queimada, o aroma a canela e a maresia que quase sente na boca. Apanha uma pálida flor de alperce e enterra o nariz na fragrância suave e frutada. Aquela é para a sua mãe.

Vê uma libélula escarlate saltar nas folhas e deseja ter trazido o livro dos insetos. Nunca tinha visto uma daquelas, a não ser no livro, a par de outras libélulas, libelinhas e borboletas. Sabe que são aos milhares no Ceilão — este lugar a que a mãe chama uma pérola.

Sopra uma brisa fresca e ele sente-a nos braços, faz-lhe formi-gueiro na pele. É o melhor lugar do mundo, aquela floresta lumi-nosa e salpicada pelo sol, e ele espera ansiosamente por um passeio

O Segredo das Safiras.indd 5 07/03/2019 11:00

Page 3: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

6

com a mãe, ao fim da tarde, quando faz menos calor. Ela cansa- -se com a canícula do dia, mas ele conhece todos os sítios de sombra, e há sempre um local fresco para se esconderem. É então que surge nele uma mudança e um resquício de tristeza lhe tolda o rosto. Embora se contente em brincar sozinho, há algo nele que anseia por mais, e estremece com o arrepio desconfortável da culpa.

O momento passa.Quando passeia com a mãe, o perfume dela envolve-o, e gosta

de dizer os nomes dos pássaros para ela se rir, fingindo-se surpreen-dida por ele saber tantos. A mãe não se ri o suficiente, embora não seja de admirar, pensa ele, dadas as circunstâncias. É a expressão que ele está sempre a ouvir: «Dadas as circunstâncias», provavel-mente não será boa ideia. Ou, «dadas as circunstâncias», talvez seja melhor não.

Agora já subiu quase até ao cimo do monte, o seu espaço aberto favorito. Dali pode ver quilómetros em redor e, se semicerrar os olhos, quase consegue sentir o oceano. Imagina as ondas frescas a rebentarem-lhe na pele ardente; vê-se a correr na praia, o mais depressa que consegue, com o vento a soprar o cabelo já demasiado comprido; capta os pescadores ao princípio da noite, quando o céu passa a cor-de-rosa e o mar a lilás.

Sobressalta-se com as árvores a roçagar e fica quieto, à escuta. Provavelmente é um macaco, pensa, ou um dos Semnopitecídeos de cauda longuíssima. A mãe diz-lhe que não faça amizade nem dê de comer aos macacos. Se lhes dermos de comer, pensam que somos seus subordinados. Significa que pensam que somos inferiores. Su-bor-di-na-do. Subordinado seria mau. Ninguém quer ser menos importante, pois não?

O Segredo das Safiras.indd 6 07/03/2019 11:00

Page 4: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

7

2Ceilão, 23 de dezembro de 1935

Cidade fortificada de Galle, fundada há 300 anos

Fizera um calor de 30 graus durante o dia e, mesmo agora, às sete da tarde, ainda estavam, no mínimo, 23 graus. O ves-tido cortado em viés de seda acetinada cor de prata de Louisa

Reeve tinha sido feito em Colombo e fora copiado de um que ela vira na Vogue americana. Quando a revista lhe chegara às mãos, estava meses desatualizada, mas, mesmo assim, fazia-se o possível. Os alfaiates de Galle, embora sólidos e fiáveis, não eram modernos, e tudo o que confecionavam resultava demasiado cingalês, mas em Colombo alguns alfaiates sabiam copiar de tudo. Com quase um metro e oitenta, a feminilidade elegante e fluida do estilo assentava--lhe bem, e era certamente diferente da blusa de linho e das calças confortáveis que geralmente usava para andar de bicicleta.

Elliot surgiu por trás dela e abraçou-a.— Contente? — sussurrou-lhe ao ouvido, antes de lhe passar os

dedos pelo cabelo.— Então, passei séculos nisso. — Domara os caracóis louros e

revoltos em ondinhas, com um gancho de imitação de safira a pren-der de um lado.

— Sentes-te bem? — perguntou Elliot, o olhar sério e preocupado. Ela pegou-lhe na mão.— Sinto-me bem, mas estive a pensar na Julia.— Sim?Ela assentiu.— Estou bem.

O Segredo das Safiras.indd 7 07/03/2019 11:00

Page 5: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

8

— Ótimo. Vai ser um Natal maravilhoso e tu estás deslumbrante. — Virou-se para sair. — Se estiveres mesmo bem… Vou só ver do vinho.

— Ainda queres velejar depois do Natal?— Penso que sim. Apenas por umas horas. Não te importas?

O Jeremy tem um bote novinho em folha e também estamos a expe-rimentar um arnês de trapézio, invenção nova. Ele mandou fazer cá, com a planta enviada de Inglaterra. Perfeito para corridas, pelo que dizem.

Passou por ela a caminho da porta e, quando ela apanhou o rasto do perfume de cedro na pele dele, sorriu e ficou a vê-lo pelo espelho. Mesmo após 12 anos de casamento, ainda o considerava um homem verdadeiramente bem-parecido, cabelo castanho, curto e encaraco-lado, olhos verdes muito vivos e um encanto que atraía o mundo. Nunca tivera de se esforçar. A amizade surgia-lhe natural e rapida-mente, e havia sempre animação estando ele presente. Ela também tinha amigos, embora demorasse mais tempo a conhecer as pessoas, e não tinha as maneiras frontais de Elliot. Porém, adorava deslindar as pessoas, compreender o que as movia, e, para ela, quando fazia amizade, geralmente era para toda a vida.

Debruçou-se na janela do último andar e contemplou o céu azul e os mares turquesa-luminescente que rodeavam Galle. O presente desfocou-se e ela relembrou o momento em que dera nome à filha, Julia. Naquele mesmo lugar, tivera-a ao colo durante uma hora pre-ciosa, até as lágrimas lhe turvaram a vista. Quando morrera? Antes ou durante o parto? Nascer sem vida. Que significado teria? Eram as perguntas que ainda a assombravam. Mais um dia e Julia teria sido batizada na Igreja Anglicana de Todos os Santos — o mesmo sítio onde ela e Elliot se tinham casado e onde ela própria tinha sido batizada.

Mesmo agora, mais de dois anos volvidos, o passado chamava-a e ela, cheia de culpa, sentia que devia haver algo que pudesse ter feito, ou não feito. Fechou os olhos e imaginou um dia cheio de sol. Julia a brincar na praia com os cães, Tommy, Bouncer e Zip, o últi- mo a nascer, todos cobertos de areia cintilante, molhados do mar e a cheirar a sal, e a pequenina a rir às gargalhadas. Imaginou-a a apanhar

O Segredo das Safiras.indd 8 07/03/2019 11:00

Page 6: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

9

conchas e a correr, correr e tropeçar nos pezinhos com a pressa, desesperada por mostrar a preciosa colheita, para se esquecer logo, momentos depois. A seguir, tão nítido, imaginou pegar na filha ao colo depois do banho, cheirar o champô de bebé no cabelo, com toques de maçã e hortelã.

Sorveu ar, deixou o sonho desvanecer-se e voltou ao presente.Só lhe restava garantir que a criadagem estava a cumprir o dever

e que não havia flores a murchar. Saiu para o terraço, levou fósfo- ros e pavio, e acendeu os lampiões a óleo exteriores, e as velas de citronela para afugentar mosquitos. Nas pontas dos pés, espreitou um quebra-luz onde um bulbul vermelho fizera ninho, e verificou se tinham tirado a lâmpada. Ouviu o pássaro progenitor trinar, de vigia.

— Está tudo bem, pequenino — sussurrou. — A lâmpada só volta quando os teus passarinhos baterem asas.

O jardim rodeava o terraço, onde as flores dos hibiscos cor-de--rosa se espalhavam com a brisa, e ela adorava sentar-se à escuta do coro da madrugada, enquanto tudo brilhava ao sol nascente.

Voltou para a sala de estar, olhou para as vigas setecentistas da grande mansão colonial, onde as lâmpadas ocultas derramavam luz dourada. Ela própria pintara a sala de cor de laranja e as ombreiras das portas de azul-turquesa: uma decoração que espantava alguns, viciados como estavam em paredes creme, típicas coloniais, mas ela adorava a claridade. Duas ventoinhas de madeira escura no teto faziam ventilação e, a um canto, uma palmeira interior lançava padrões de sombra na parede. Na grafonola tocava I Only Have Eyes For You.

A casa no piso térreo tinha a cozinha, o quarto da governanta a meio tempo, as principais zonas de estar e os escritórios. Os quartos de visitas e duas casas de banho ficavam no piso seguinte, a par da sala de costura de Louisa. No último andar ficava o seu quarto e de Elliot, a casa de banho, uma sala particular e arejada, um espaço pacífico e cheio de sol que tinha um terraço. Ao fundo do jardim, outro edifício com os quartos dos criados, embora alguns morassem nas suas casas em Galle.

Pouco depois, quando chegaram os últimos convidados, Louisa e Elliot estavam juntos na entrada principal para os receber. Ela olhou

O Segredo das Safiras.indd 9 07/03/2019 11:00

Page 7: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

10

para a claraboia, por onde entravam hectares de sol durante o dia. As persianas típicas de uma fazenda nas janelas da frente da casa estavam abertas, embora as janelas propriamente ditas continuas-sem fechadas por causa dos insetos. O propósito de Louisa era que as luzes cintilantes conferissem um calor acolhedor. Queria todos os convidados satisfeitos, naquele serão glorioso e reluzente, e sentiu grande excitação.

Chegou um dos amigos de Elliot. Jeremy Pike era filho do abas-tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões na residência da família em Galle, e ele e Elliot eram parceiros de vela, embora Louisa ainda não o conhecesse bem. Era aquilo a que se chamava um homem muito homem. Depois dele, um casal idoso, amigos do pai dela, começou a queixar-se do calor opressivo; atrás deles, Louisa deparou com um casal dono de uma fazenda de chá que saía de um Daimler.

— Ah — disse Elliot. — Ainda bem. Os Hoopers vieram.Louisa ficou a ver a figura magra de uma mulher de cabelo escuro

e vestido violeta avançar devagar para a porta com o marido, um ho- mem alto. A mulher era muito bonita, com cabelo que parecia cair naturalmente em canudos, e os olhos condiziam na perfeição com a cor do vestido. Trazia um bebé embrulhado num xaile de renda e, quando cambaleou ligeiramente, a velha ayah que seguia atrás estendeu a mão para a amparar. O homem pôs o braço à volta dos ombros da jovem esposa e Louisa achou o gesto muito protetor.

Elliot avançou para os cumprimentar, com um grande sorriso na cara.

— Laurence e Gwendolyn, que maravilha terem vindo!Louisa estendeu a mão para o homem e depois a esposa passou

o bebé à ayah, antes de dar um beijo na face a Louisa.— Estou muito contente por a ver outra vez.Louisa sorriu.— Há meses que nos conhecemos em Colombo.— Chá no Hotel Galle Face, não foi? Adorei contemplar o oceano

e imaginar a própria Galle ao longe. Agora, cá estamos nós.— Na altura, a Gwen ainda não tinha tido bebé.

O Segredo das Safiras.indd 10 07/03/2019 11:00

Page 8: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

11

Gwen abanou a cabeça.— Pois não. Passou realmente imenso tempo.— Pois estou muito contente por a ver agora. O que lhe parece

Galle?— Adoro. Já cá tinha estado uma vez, quando cheguei ao Ceilão,

mas há séculos. A cidade é imensamente sonolenta, estou ansiosa por conhecer mais amanhã.

— Permite-me que lhe faça a visita guiada?Gwen assentiu.— Se tiver tempo.— Tenho muito tempo, e conheço-a como a palma da minha mão.— Vive cá desde sempre, não é?— Exceto quando estive no colégio interno em Inglaterra. Passo

muito tempo a andar de bicicleta. Como a Gwen já terá reparado, estamos num promontório e rodeados pelo paredão em três lados, pelo que é particularmente seguro.

— Gostaria muito de conhecer devidamente.— Então está combinado. Estão no Novo Hotel Oriental, não é?Gwen assentiu.— Então vou ter consigo. Apontamos para as oito? É melhor bem

cedo, antes de fazer tanto calor que fica irrespirável.— Esplêndido. Isto são umas pequenas férias para nós. A minha

mãe veio de Inglaterra e está a tomar conta do nosso Hugh, mas voltaremos a tempo do jantar da Consoada. — Sorriu para o marido, que começara a falar, mas Elliot interrompera.

— O que me diz, Laurence… um copo de um belo malte?Laurence assentiu e Elliot deu-lhe uma palmada nas costas.— Deixamos as mulheres entretidas — disse, a piscar o olho a

Laurence, mas tocou logo na mão de Louisa. — Se não te importares.Ela olhou-o de uma maneira que os outros não viam, na espe-

rança de que ele não bebesse demais. Decerto que não, o jogo e a bebida em excesso tinham ficado no passado. Depois virou-se e sor-riu para Gwen.

— Como se chama o bebé? — perguntou.— Alice. Faz hoje seis semanas, é nova demais para a deixar. —

Ela olhou em redor.

O Segredo das Safiras.indd 11 07/03/2019 11:00

Page 9: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

12

— Deixe-me levá-la a um quarto onde pode deixar Alice a dormir.Enquanto Gwen e a ayah instalavam o bebé, Louisa percorreu a

casa. Foi convivendo com as visitas, e chegou-lhe o aroma a poli-mento de limão para os móveis e o perfume fresco das flores da pongam no jardim. Louisa tinha disposto ramos dela pela casa fora, em grandes jarrões no chão. Tinham florescido cedo, eram púrpura--claras e estavam entre as suas flores favoritas.

Convidara amigos do pai, bem como seus, e incluíra muitos co- merciantes de toda a cidadela de Galle. Havia alguns agora no ter-raço, trajados a preceito, perto das velas de citronela. O som dos risos chegava ao átrio. Uma das vantagens de Galle era que alguns britâ-nicos conviviam com muçulmanos, budistas, burghers e hindus. Era um lugar genuinamente transnacional, de muitas crenças. Também havia muitas outras coisas ótimas, como, por exemplo, o encantador labirinto de vielas estreitas e direitas, onde ela conhecia toda a gente pelos nomes, o aroma a gengibre fresco ou a chá de hortelã numa manhã límpida, as muitas cabras, vacas e lagartixas que encontrava nos passeios. Gostaria muito de mostrar tudo isso a Gwen.

A região do chá ficava a relativa distância de Galle, e o facto de os Hoopers virem de tão longe para a festa era uma surpresa mag-nífica. Como Louisa já conhecia toda a gente em Galle, Gwen era a nova promessa de entretenimento. Seria divertido. Já se tinham encontrado algumas vezes e Louisa gostara logo dela.

Quando se virou, viu o pai, viúvo, alto, magro, de óculos, sobran-celhas fartas e com ar feroz, para quem não o conhecia. De facto, era difícil encontrar alguém com melhor coração do que Jonathan Hardcastle. Sempre em busca de injustiças, tratava a sua criadagem impecavelmente, embora o espírito pioneiro nem sempre caísse bem aos que mandavam.

Foi ter com ela de braços abertos.— Querida. Fizeste tudo belissimamente, como de costume.Abraçaram-se e ela sorriu.— O pai diz sempre isso.— E digo sempre que a tua mãe ficaria orgulhosa.Entreolharam-se. A mulher morrera quando Louisa tinha ape-

nas 7 anos, e, embora pouco se lembrasse da mãe, sabia que o pai

O Segredo das Safiras.indd 12 07/03/2019 11:00

Page 10: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

13

nunca a esqueceria. Louisa tinha os mesmos olhos cor de amên- doa com centelhas douradas que a mãe, e ele costumava dizer que eram parecidíssimas. Não voltara a casar-se, ou seja, Louisa crescera com uma ayah que lhe dera mais liberdade do que uma mãe daria. Por conseguinte, desde pequena que andava de bicicleta e fazia reca-dos, como gostava de dizer, a desfrutar da simples continuidade da vida. Não demorara muito até dar a volta completa à antiga cidade fortificada, habituara-se a repeti-la todos os dias e as pessoas pare-ciam gostar que ela parasse para conversar.

— Vamos juntos? — perguntou o pai.— O pai siga. Só quero fazer sinal a Ashan. Creio ser altura de

servir a comida.— Posso lá ir.— Não se preocupe. — Ela apertou-lhe a mão. — Tenha um belo

serão, meu pai.Quando atravessou o vestíbulo traseiro que dava para a cozinha,

passou pela porta aberta do escritório de Elliot e, parando, viu que lá estava com um homem que ela conhecia vagamente. Um burgher de cabelo escuro, isso era evidente, com sobrancelhas por aparar e cara impassível, um dos descendentes dos portugueses que primeiro descobriram Galle. Ficou admirada por Elliot não ter dito que o con-vidara para a festa, e deu um passo em frente para se apresentar. Elliot viu-a e franziu o sobrolho. Houve algo no seu ar irritado que a incomodou, mas, antes de ter hipótese de falar, captou um movi-mento súbito e viu um macaco de cara púrpura a esgueirar-se para a cozinha. Teria de ser firme com a criadagem, e de imediato; não se deviam deixar certas portas e janelas destrancadas. Os macacos eram espertos e, se lhes descêssemos a mão, pegavam logo no braço. Mal se atrevia a recordar que o pai fizera, outrora, um comentário parecido acerca de Elliot.

O Segredo das Safiras.indd 13 07/03/2019 11:00

Page 11: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

14

3

Bem cedo na manhã da véspera de Natal, Louisa saiu de sua casa na Church Street, desceu a rua, atravessou a Middle Street e foi visitar Gwen, como estava combinado. Iriam encontrar-

-se no átrio do Novo Hotel Oriental, estilo Regency, imponente com paredes de um metro de grossura em arenito. Louisa olhou para o teto alto de madeira. O hotel datava de 1684, erigido pelos holande-ses para servir de caserna aos oficiais do exército, e agora era onde se hospedavam fazendeiros e comerciantes, bem como um desfile de turistas em tempos mais recentes. O átrio impressionante, mobi-lado com poltronas de ébano e sofás, com umas quantas espreguiça-deiras de ráfia, já estava apinhado.

A cera de abelha e o fumo de charuto impregnavam as paredes, a par do levíssimo aroma a uísque da véspera, e havia um enorme pinheiro em posição cimeira, enfeitado com bugigangas e velinhas em pequenos castiçais. Embora bonito, era um perigo de incêndio tal que as velas, quando acesas, tinham de ser constantemente vigia-das por um dos copeiros. No ano anterior, o moço tinha sido apa-nhado a dormir e escapara por uma unha negra à responsabilidade de todo aquele lugar pegar fogo.

Ela adorava o hotel, com a dramática fachada altaneira, de frente para o porto, e desenhara-a, bem como à maioria dos edifícios de Galle, algumas vezes. Sempre gostara de desenhar e quisera ser arquiteta, mas não havia lugar para uma mulher estudar no Ceilão. Podia ter ido para a Europa ou para a América, mas não quisera deixar

O Segredo das Safiras.indd 14 07/03/2019 11:00

Page 12: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

15

o pai sozinho, e, assim, encantada pela arquitetura e pelos edifícios, os interiores tornaram-se a sua paixão. Encontrava-se com frequên-cia sentada no bonito móvel de mogno da máquina de costura Singer, a costurar cortinados ou fronhas de almofada, pela noite dentro. Quando não era isso, criava desenhos ou aguarelas dos edifícios de Galle para pendurar nas paredes. A estragar os olhos, como diria Irene, mãe de Elliot.

A sobranceria e a pretensão suburbanas de Irene eram típicas de certos europeus, e Louisa mal se atrevia a admitir o alívio que sentira por ela não vir passar o Natal desse ano. Os Reeves, Irene e Harold, funcionário público, estavam convidados a passar o Natal com ami-gos de Colombo, pelo que seriam só Elliot, Louisa e o pai.

Momentos depois, Gwen apareceu, com um vestido de algodão de saia afunilada pela canela e um grande chapéu de sol.

— Bom-dia! — disse, beijando Louisa na face, antes de rodar a aba do chapéu. — Não é assim muito natalício, pois não? Tenho de usar sempre. Com a pele assim tão branca, queimo-me facilmente.

Louisa olhou para a sua pele bronzeada.— Felizmente, não tenho esse problema. Ando tanto de bicicleta

que parece sempre que me deixaram ao sol.— Pelo menos, está na moda.— Então — começou Louisa, enquanto percorriam as calçadas,

passavam por bangalós baixos com lindos lintéis ornamentais por cima das portas e telhados de terracota suspensos por filas de colu-nas que davam sombra aos terraços. — Conta-me o que se faz na vossa fazenda de chá.

— Bem, estamos bastante isolados, não convivemos muito. Apenas uma viagem ocasional a Colombo, ou a Nuwara Eliya, para um baile. Mas também já fomos passar um mês a Nova Iorque.

— Deve ter sido divertido.— Foi uma bela temporada. Estávamos a tornar o chá Hooper numa

marca como deve ser.— Tem tido êxito?— Bastante, embora eu não esteja envolvida no negócio. Faço

queijo, principalmente.— A sério?

O Segredo das Safiras.indd 15 07/03/2019 11:00

Page 13: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

16

— Se nos fores visitar, tens de provar. É delicioso, modéstia à parte. — Ela sorriu e os olhos brilhantes refletiram o sol.

Todas as casas por onde passavam tinham persianas, abertas ou fechadas; as torcidas árvores frangipani cresciam nas passagens e os macacos grunhiam a balouçar-se nos ramos lustrosos.

Louisa recordou-se de quando se mudara com Elliot para a nova casa, pouco depois de Elliot ficar encarregado do negócio de pedras preciosas do pai. Custara-lhe convencer o pai a dar emprego a Elliot, mas, no fim, mau grado as reservas persistentes de Jonathan, Elliot provara-se capaz. Era um cargo importante, de grande responsabili-dade, todos os registos de todas as pedras preciosas que lhes passa-vam pelas mãos.

As duas mulheres iam conversando e passando por monges budis-tas, por muçulmanos trajados de branco com barretes de tricô na cabeça, e Louisa a todos cumprimentava com um aceno de cabeça.

— Não tenho muito tempo — disse Gwen. — Temos de partir mais cedo do que previra.

— Vamos só ali, está bem? Depois deixa-me levar-te às muralhas. Eu e o Elliot costumamos passear por lá antes de o céu ficar índigo ao crepúsculo e de se fazer noite.

— Que romântico. Tens sorte. Tens tudo o que podias desejar aqui.

Louisa sorriu, mas não comentou.— Parece-me muito bonito, e até mágico.Cheirou-lhes a peixe mesmo antes de o verem, adejando na brisa

onde o tinham pendurado numa viga, à porta da loja, para que se- casse ao sol. A mesma loja também vendia molho de atum em gran-des barris de cheiro acre. Ainda era cedo o suficiente para verem o peixeiro, que lhes acenou ao passar, equilibrando grandes cestos de pescado fresco de cada lado da bicicleta, com um rasto de gatos logo atrás. Toda a gente cumprimentou Louisa.

— O peixeiro entrega onde for preciso no forte e deixa as cabe-ças e os rabos para os gatos — disse ela. — Como vês, estão todos bastante gordos.

Passaram por um frangipani enorme e levemente fragrante, e logo chegaram às velhas muralhas feitas de coral, calcário e lama, onde

O Segredo das Safiras.indd 16 07/03/2019 11:00

Page 14: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

17

contemplaram a vista do oceano cintilante que se estendia até onde a vista alcançava.

— Isto é tão lindo — disse Gwen. — Adoro o cheiro.Louisa riu-se.— A peixe?— Sim, a peixe, mas também o cheiro glorioso a maresia. Vive-

mos à beira do lago, mas sempre quis saber como seria viver perto do mar.

— Nunca é o mesmo, e eu adoro isso. Por vezes, prateado e sereno, e acalma só de nos sentarmos a contemplá-lo. Outras vezes, como agora, salpicado de ouro.

Sentaram-se na muralha e Louisa sentiu-se descontraída como há muito não lhe acontecia. Ansiava por fazer confidências a alguém, mas não encontrara a altura propícia, nem a confidente certa. Gwen era a primeira pessoa a quem sentia poder confiar mais do que ape-nas mexericos.

— Perguntaste se sou feliz — começou.— Sim.— Bem, a verdade é que estou nesse caminho. Há dois meses,

perdi um bebé.— Oh, Deus. Deves ter passado por muito.— E não foi a primeira vez. — Engoliu em seco antes de conti-

nuar. O nado-morto e os abortos espontâneos eram pessoas para ela, pessoas pequeninas por quem ainda fazia luto. Crianças que deviam ter-lhe enchido os braços e o coração. Não era coisa fácil de se dizer, e não queria propriamente falar disso, mas deu consigo incapaz de se conter. — Tive um nado-morto há pouco mais de dois anos, e outro aborto espontâneo antes, há oito anos.

O rosto de Gwen toldou-se.— Lamento muito… deve ter sido terrível.Louisa murmurou um agradecimento. Gwen assentiu devagar,

como se estivesse a decidir o que dizer.— Também perdi um bebé — acabou por dizer. — Ainda me

custa falar disso. Provavelmente foi por isso que não te contei, quando tomámos chá em Colombo. Não conseguia falar disso.

Louisa mordeu o lábio para refrear as lágrimas.

O Segredo das Safiras.indd 17 07/03/2019 11:00

Page 15: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

18

— É uma longa história. Não contámos a mais ninguém. O nome dela era Liyoni — continuou Gwen. — Fiquei destroçada.

Louisa compreendia.— Mas pelo menos tens a pequena Alice agora. — Mesmo quando

o disse, soube que não soava nada bem. — Oh, credo, que falta de… Desculpa, não quis…

Gwen olhou para ela.— Não te preocupes, mas nada pode substituir o que perdemos,

como deves saber.Louisa assentiu. Com estas confidências partilhadas, algo mudara

entre ambas, e Louisa sentiu uma forte afinidade com Gwen.— Obrigada por me contares — disse.As lágrimas assomaram, Gwen abraçou-a e as duas mulheres

ficaram sentadas no silêncio que pairava em seu redor.

Na tarde seguinte, estando os dois ainda cheios de um almoço prolongado e muito tardio com o pai, Louisa e Elliot saíram juntos para as muralhas, para se sentarem perto de onde ela tinha estado com Gwen no dia anterior. As pessoas lanchavam, sentadas nas for-tificações, e Louisa olhou para as gralhas que rondavam, em busca de restos de comida.

— Acho que bebi demasiado brande com o teu velhote — disse Elliot, fechando os olhos.

— O ar fresco ajuda — disse ela, algo desapontada.A temperatura desceu e os locais começaram a dispersar para a

caminhada de fim de tarde.Recobrando a compostura, ela sorriu para ele.— A festa foi ótima, não foi? Ainda bem que convidaste a Gwen

e o Laurence, mas porque é que não convidaste o homem com quem te vi no escritório? O burgher.

— Convidei, mas o De Vos tinha outros compromissos.— Parecias aborrecido quando quase vos interrompi.— De todo.— Então o que é que ele queria?— Negócios.— Oh, Elliot! Prometeste que não havia negócios no Natal.

O Segredo das Safiras.indd 18 07/03/2019 11:00

Page 16: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

19

— Desculpa. — Ele deu-lhe o braço. — Não vamos falar disso. Vamos só desfrutar da tarde. Estamos felizes, não estamos? Tu estás bem?

Ela encostou-se.— Estou.O sol começou a pôr-se e o céu iluminou-se num espetáculo

de vermelho-fogo e cor-de-rosa, e em seguida eles ouviram a melo-diosa chamada para a oração vinda da mesquita. De repente, todos os homens vestidos de branco deram meia-volta e seguiram nessa direção.

Louisa adorava aquela tranquilidade poeirenta, embora, por ve- zes, quase se sentisse tristeza na atmosfera. Porque Galle era agora muito mais sossegada. O pai lembrava-se dos tempos em que che-gavam quinhentos passageiros por dia no barco a vapor, em que as embarcações com especiarias atulhavam as docas, em que as floti-lhas de combate vinham reabastecer-se. Agora, alguns europeus cos-mopolitas ainda tinham casa ali, durante parte do ano, pelo menos, mas, embora continuasse a existir um centro de comércio de joias, canela e borracha, grande parte do negócio do chá havia passado para Colombo.

Louisa gostava de conhecer os mercadores que ainda vinham da Malásia, da Índia e da China. Galle ia-se aguentando e ela adorava ouvir o canto islâmico, repetitivo e melancólico, a chamar para as orações, de madrugada, ao meio-dia, a meio da tarde, logo após o sol se pôr e duas horas depois. Era um som presente na sua vida desde sempre e, embora houvesse menos muçulmanos agora — a maio-ria dos cingaleses era budista —, viviam em harmonia. Ela sabia das revoltas ocasionais contra os britânicos, toda a gente sabia, mas aconteciam cada vez com menos frequência, agora que todos podiam votar, e muito menos do que em Colombo. Sim, as coisas tinham mudado em Serendipe, como outrora se chamava o Ceilão — a ilha das joias —, e para melhor.

O Segredo das Safiras.indd 19 07/03/2019 11:00

Page 17: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

20

4

Uma semana depois do Natal, no dia de Ano Novo, Elliot tinha ido mergulhar na Flag Rock, o ponto mais meridional do forte de Galle. Louisa achava que era um passatempo arris-

cado, mas o perigo era o vício de Elliot. Além de conduzir depressa demais e de fazer corridas de barco, vivia a vida a uma velocidade vertiginosa. Embora se esforçasse, a Louisa custava-lhe acompa-nhá-lo, mas Elliot também não interiorizava as coisas como ela. Ele detestava a tensão que, por vezes, lhe via na cara, e chamava-lhe recalcamento desnecessário. Ela pedira-lhe que lhe levasse uma sur-presa do mercado, onde ele encontrara o gancho de safira que lhe dera. Imitação, claro, e ele até podia pagar a pedra verdadeira, mas eles gostavam de encontrar prendas um para o outro nos vários mer-cados e bazares. Era costume ao longo dos anos, embora ele andasse ocupadíssimo por esses dias.

Na semana anterior, estivera fora, em Cinnamon Hills, uma fa- zenda de canela no campo, a pouco mais de 30 quilómetros de Galle, e tinha ações nesse negócio. A propriedade fora desprezada pelos anti-gos donos, dissera Elliot, e, como precisava de muito trabalho para se reerguer, ele ajudava. No mês anterior, também tinha ido a Colombo saber do negócio das especiarias, e isto além de ter emprego a tempo inteiro na firma do pai de Louisa.

Ela esforçava-se por não pensar no bebé que perdera e por ter uma atitude positiva, mas nem sempre era fácil. Pensou no encon-tro com Gwen Hooper. Havia algo de frágil na mulher, mas, embora

O Segredo das Safiras.indd 20 07/03/2019 11:00

Page 18: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

21

também tivesse perdido um bebé, continuava otimista. As coisas por que as mulheres passam, pensou Louisa. As coisas por que passam, e ainda conseguem sorrir.

Após um pequeno-almoço de fruta, coalhada de leite de búfala e appam — biscoitos em forma de cesto, por vezes com recheio de ovos —, Louisa chamou os três cães springer spaniel e levou-os a passear; saíram da porta principal do forte e atravessaram um canal até ao par-que. Quando passou pelo florista, que seguia numa bicicleta antiga, lembrou-se dos primeiros tempos de casamento com Elliot, quando iam ao parque antes do pequeno-almoço e depois voltavam pela praia do farol. Recordou-se de uma vez em que se desafiaram a entrar na água até ao recife, com a maré baixa e pouca água. Sentiram-se crian- ças a desbravar um mundo desconhecido, e riram-se tanto que escor-regaram e, agarrados um ao outro, caíram; tinham tido de voltar molhados e cheios de areia, esgueiraram-se para o quarto a fim de que os criados não os vissem. A vida era sempre divertida com Elliot.

O pai era um homem muito mais sério e circunspecto do que o marido. Havia quatro tipos de homens britânicos no Ceilão: milita-res, fazendeiros, funcionários públicos e empresários. O pai perten-cia a estes últimos. Talvez a falta da mulher o deixasse mais soturno do que podia ter sido. Louisa tinha pena de não se lembrar de como era o pai antes da morte da mãe.

Depois do passeio, deitou-se na cama debaixo da ventoinha e levou a palma da mão à barriga. Oxalá, pensou, mas conteve-se. Elliot nunca mostrara tristeza pela morte de Julia, mas ela sabia que lhe custava. Era um homem feito para ser pai, especialmente tendo per-dido um irmão mais novo, anos antes, num surto de cólera. O me- nino só tinha 5 anos, Elliot ia nos 7, e a mana mais nova, Margo, era uma criança de colo. Era por isso, apesar de tudo, que Louisa se condoía de Irene Reeve, embora fosse óbvio que não era a única razão para a mãe de Elliot andar sempre insatisfeita. Louisa suspi-rou, apanhou a fragrância de coco fumado da comida que se estava a confecionar. Irene chegaria de Colombo a tempo do jantar, era altura de Louisa se acalmar e arranjar um pouco.

O Segredo das Safiras.indd 21 07/03/2019 11:00

Page 19: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

22

Com um prato típico cingalês, arroz de caril, conseguiram fazer conversa de circunstância. O pai de Elliot não pudera vir com a mulher nesta visita, por causa do trabalho.

— É uma pena que Harold não tenha podido vir — disse Louisa. — Tínhamos essa esperança, não era, Elliot?

Elliot assentiu.— Não faz mal. É ótimo a mãe estar cá.— Pois é, Irene — disse Louisa, por obrigação.Irene fungou, rabugenta — mesmo ao fim de tantos anos, ainda

parecia desagradar-lhe que a nora a tratasse pelo nome de batismo.— Faz-se o que se pode, mas sabem como ele é. Se tivesse um

cargo superior, talvez pudesse ter mais escolha no que faz, mas tu conheces o teu pai. Nem sequer é membro do Clube Colombo.

— De certeza que o pai faz o que pode.Ela sorriu.— Tu, querido Elliot, vês sempre o melhor nas pessoas, mas eu

sei que o teu pai podia ter sido muito mais. Mas estamos onde esta-mos, em suma. A Louisa tem muita sorte por se ter casado com um homem como o meu filho.

Louisa assentiu, mas queria desviar-se daquela conversa. Tantas vezes se repetira que ela já sabia o que vinha a seguir, e desde que não estivesse na berlinda, tanto melhor.

Elliot murmurou qualquer coisa apaziguadora, como ela sabia que ele faria, apareceu um moço para levantar a mesa, e a família calou-se. Outra moça, uma jovem de cabelo preto e olhos negros chamada Camille, serviu-lhes pudim de leite e ananás, mas Louisa abanou a cabeça quando lhe ofereceram uma porção.

Camille serviu os outros e saiu.— Sei que não tenho nada com isso — começou Irene. — Mas não

acha que um pudim de leite a poderia engordar um pouco? Porque não arranja um cozinheiro inglês, talvez até francês? De certeza que toda esta comida cingalesa não lhe faz bem. Tirando os pudins, claro.

— Na verdade, temos uma francesa chamada Camille, é a moça da cozinha. Acabou de servir o pudim. A Irene não reparou? Embora seja francesa, geralmente veste sari. Talvez tenha sido por isso que a Irene não reparou.

O Segredo das Safiras.indd 22 07/03/2019 11:00

Page 20: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

23

— Mas que invulgar. Uma europeia a fazer de moça de cozinha.— É uma história curiosa. Aparentemente, apaixonou-se por um

marinheiro que lhe arranjou emprego no transatlântico no qual tra-balhava. Mas depois abandonou-a aqui em Galle sem dinheiro.

— Então a Louisa acolheu-a. É típico de si ser tão boazinha.Louisa via muito bem, no olhar de censura de Irene, que esta não

achava aquilo nada bom.— Está sozinha, sem família. Senti que tinha esse dever, e, fosse

como fosse, o moço da cozinha tinha-se ido embora.Irene inclinou a cabeça para um lado.— Compreendo. Bem, com sua autorização, naturalmente, creio

ser oportuno ficar mais tempo do que tencionava. Alguém tem de garantir que a Louisa come como deve ser.

Louisa gemeu por dentro.

O Segredo das Safiras.indd 23 07/03/2019 11:00

Page 21: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

24

5

Louisa estava deitada ao lado de Elliot, a dar voltas à cabeça enquanto ele lia. Sempre fora incrivelmente atencioso quando ela não estava bem e ocorreu-lhe que podia preferir que ela

não fosse forte, que houvesse algo na sua incapacidade que o fizes- se sentir-se necessário. Aninhou-se nele e fez-lhe festas na barriga. É curioso como as dúvidas surgem, mesmo no mais forte dos casa-mentos. Porém, quando ele fechou o livro e a abraçou, ela descartou logo estes pensamentos fugazes, e fizeram amor, devagar, pela pri-meira vez desde que ela perdera o bebé.

Depois ele adormeceu.Todavia, ela não conseguia descansar, sentia um formigueiro na

pele e as pernas pesadas. Não encontrava posição, continuava às vol-tas na cama. Aguardou um pouco, mas, após uma hora de nervoso miudinho, saiu da cama e acendeu uma vela, para evitar acordar Elliot com a luminosidade. Ele detestava acordar de repente e, se acor-dasse, ficava maldisposto o dia inteiro.

Na casa de banho, acendeu a luz. Há 7 anos que havia eletricidade em Galle e, embora lhes tivesse transformado a vida, Louisa sentia falta do romantismo das lamparinas a óleo e do brilho suave das velas. Por vezes, a noite custava-lhe a passar e ela dava consigo sen-tada na banheira, ali ficando algum tempo. Olhou em volta, foi abrir a janela e debruçou-se, fechou os olhos e inalou o ar perfumado da noite. Húmido. Doce. Salgado. Estar sozinha de noite dava-lhe uma sensação intensa de intemporalidade, acalmava-lhe logo a mente

O Segredo das Safiras.indd 24 07/03/2019 11:00

Page 22: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

25

inquieta. Abriu os olhos e viu a lua cheia, o jardim a cintilar naquela luz azul. Não seria maravilhoso se, depois dessa noite, ela ficasse grávida outra vez?

Molhou a cara e, após mais meia hora, voltou para a cama e pen-sou nos filhos. Na sua mente, brincavam e saltitavam e gritavam como fazem as crianças, mas os pensamentos iludiam-na e custava--lhe muito que os filhos não estivessem realmente presentes.

A dada altura, Elliot acordou e abraçou-a.— Amo-te mesmo — sussurrou ela.— E eu a ti — murmurou ele, meio a dormir.Em seguida, ela conseguiu adormecer.

Nas semanas seguintes, a vida de Louisa continuou com normali- dade. Levava Tommy, Bouncer e Zip em longos passeios, concentrava- -se na costura, saía para podar os arbustos. As tardes traziam-lhe mais consolo — quando o céu ficava repentinamente vermelho e púrpura e ela ouvia o chamamento para as orações vindo da mes-quita. O enorme céu dramático pairava sobre um oceano lilás que se estendia até ao Polo Sul e causava-lhe sempre uma sensação de assombro. Porém, assim que ficava tudo bem, que ela se sentia genuinamente feliz, Elliot voltava a ausentar-se, passando cada vez mais tempo nos negócios da fazenda de canela.

Nunca deixou de passear os cães e tratar da casa, até que, numa manhã do início de fevereiro, depois de Elliot voltar, o pai juntou-se a ela no terraço. Estava um dia quente e poeirento, com moscas a zumbir no ar pesado, obrigando Louisa a enxotá-las constan- temente dos olhos. Pediram chá, e o pai, antes de pegar no Ceylon Times, grunhiu e estendeu-lhe a mão. Louisa tomou-a e apertou ligeiramente.

— Aqui está a minha menina — disse ele.Ela assentiu com a cabeça e soltou a mão. Ele ficou absorto no

jornal, mas ela achava sempre reconfortante tê-lo por perto. Sentada a contemplar o jardim e a ouvir os pássaros, a vê-los sair e entrar pelas ramagens, sentiu um assomo de prazer. Ainda era cedo, mas a manhã vibrava de vida e o aroma a jasmim animava-a. A vida tinha de continuar. A terceira gravidez gorada tinha sido um golpe, mas

O Segredo das Safiras.indd 25 07/03/2019 11:00

Page 23: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

26

ela tinha uma bela casa, um bom marido e um pai a quem amava. Muitas não podiam dizer o mesmo, e ela começaria em breve a anga-riação de fundos para o orfanato de Colombo. Talvez uma refeição ao estilo francês fosse diferente, com a ajuda de Camille, claro. Ela já organizara pequenos-almoços, uma pequena feira da ladra, almoços extravagantes, tudo para ajudar o orfanato. Elliot brincava e dizia que de cada vez que ela lá ia, quase esperava vê-la no regresso com dois bebés nativos debaixo dos braços.

Pouco depois, Elliot apareceu e a mãe dele também saiu para a varanda. Louisa teria de encarar o facto de ter de insistir que Irene voltasse para Colombo em breve. Há muito que a visita se prolon-gava, já nem se lhe podia chamar visita — estava com eles há um mês. Não queria nada que a sogra ainda lá estivesse quando ela e Elliot dessem a festa de aniversário de casamento no fim do mês, como era sua tradição.

— Pedimos mais chá? — sugeriu Louisa, tocando a sineta; pediu chá, e Ashan, o mordomo pequeno e bem-apessoado que usava o sarongue tradicional dos homens, com nó à frente, apareceu logo a seu lado. O cabelo comprido estava enrolado na cabeça e preso com uma travessa de tartaruga prateada.

— Obrigada, Ashan — disse ela. — Posso sempre contar consigo.Ele fez-lhe um grande sorriso.— Assim espero, minha senhora.Olhou para o marido. Parecia, pelo semblante animado, que

Elliot tinha algo a anunciar. Não falou por instantes, ficando sentado a sorrir com um olhar insondável.

— Então, o que se passa? — perguntou o pai dela, a perceber também. — Desembuche.

Louisa franziu o sobrolho e lançou um olhar inquiridor ao marido.— Elliot?Este pegou num maço de tabaco Camel, riscou um fósforo e

acendeu um cigarro. Pausa antes de falar.— Comprei a velha tipografia. — Recostou-se na cadeira, franziu

os lábios de satisfação e assentiu enfaticamente.— Oh, querido! Que maravilha! — exclamou Irene, radiante de

orgulho maternal.

O Segredo das Safiras.indd 26 07/03/2019 11:00

Page 24: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

27

Jonathan Hardcastle parou de ler o jornal, pouco satisfeito.— O quê?— Tive uma ideia maravilhosa. — Apesar da reação do sogro,

Elliot continuava todo presumido.— Que ideia é essa, querido? — instou Louisa.— Surgiu-me do nada umas semanas antes do Natal. Aquilo está

vazio há anos, mas pensei que podíamos transformá-la no maior empório de joias e especiarias do Ceilão. Fica no coração de todo o negócio. Só tenho de fazer o pagamento final.

— Onde é que estava com a cabeça? Não somos joalheiros — protestou Jonathan. — Somos comerciantes de pedras preciosas.

A expressão de Elliot não mudou e Louisa sabia, pela luz dos olhos dele, que não era provável que o dissuadissem.

— Não é altura de expandir, Jonathan? Correr riscos?O pai abanou a cabeça.— Quando estamos em contração? Claro que não.— Porque não ouve o Elliot, pai?— Não. O comércio das gemas está a vacilar devido à tecnolo-

gia de imitação e você sabe muito bem que estão a inundar o mer-cado de base.

— Mais uma razão para que se expanda o negócio noutra direção — disse Elliot.

— Não. É loucura. Tenho tido de privilegiar joias de alta quali-dade e quilate, e isso significa um enorme montante de capital em inventário.

Ashan serviu mais chá, e pararam de falar até ele sair. Estava com a família há anos, era muitíssimo discreto, mas Louisa gostava de manter a privacidade em assuntos delicados.

— Pai, decerto consegue o dinheiro — disse Louisa. — É boa ideia, não é?

— Não, de maneira nenhuma. Não é nada oportuno.— Mas…Jonathan pôs a mão no ar.— Não concordo nada com isto, é a verdade. Agora tenho mais

que fazer. Espero não ouvir mais nada desta ideia idiota. — Dobrou o jornal, guardou-o debaixo do braço e foi-se embora.

O Segredo das Safiras.indd 27 07/03/2019 11:00

Page 25: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

28

Agora, subitamente murcho, Elliot bufava.Louisa sentia-se dividida. Queria apoiar Elliot, mas também ado-

rava o pai.— Bem. — Elliot abanou a cabeça. — Correu lindamente!— Vou descansar um pouco — disse Irene, a fungar, e deu uns

passos. — Sinto que vem aí uma dor de cabeça. A discórdia não cai bem na minha compleição delicada.

— Depois levo-lhe chá de hortelã, mãe.Irene saiu e Louisa olhou para Elliot. Queria arranjar maneira de

o apoiar, e suspirou.— De certeza que ele há de compreender.— Está enganado, mas tu sabes que não muda de ideias. — Elliot

acabou o chá. — Nunca gostou de mim.— Não fiques tão melindrado. Claro que gosta de ti. Mas devias

ter-mo contado primeiro, em vez de o anunciares tão de repente.Ele encolheu os ombros.— Talvez. Queria ser bombástico. Pensei que estivesses do meu

lado.— Francamente, Elliot. É claro que estou, mas tu conheces o meu

pai. Tem de ser convencido.— Achas que ainda consegues?— Posso tentar. Promete-me só que não é outro dos teus esque-

mas loucos.— Mas tu agora és minha tutora?Ela tornou a suspirar.— Claro que não, mas, se precisares de ajuda…— Alguma vez pensas no quanto me custa vir pedir?— Elliot, não quis dizer…— Referes-te ao cavalo de corrida, não é?Ela sorriu.— O cavalo era coxo.Ele levantou-se e fez-lhe má cara.— Sinceramente, Louisa, nunca mais te calas com isso? Sei que

sou uma desilusão para ti, mas isto é bastante diferente.— Tem calma. Isto é tolice. Não és nada uma desilusão. —

Estendeu a mão para ele. Elliot pegou-lhe e sentou-se a seu lado.

O Segredo das Safiras.indd 28 07/03/2019 11:00

Page 26: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

29

— Acontece que acho o empório boa ideia. Conta-me como é que financiaste.

— O negócio das especiarias tem tido bastante lucro. Isso chegou para o pagamento inicial. E estava a bom preço.

— Já pensaste nos custos de remodelação?— Claro, não deve custar muito. Aquilo está em bom estado.

É preciso limpar e redecorar e instalar algumas coisas, mas é tudo viável.

— Vai demorar muito?— Com as pessoas certas, não.— Estou a pensar que poderíamos ser nós a financiar, provar ao

meu pai que é boa ideia.Parecia que ele hesitava.— Lou, o problema é que tenho pouco dinheiro neste momento.— Não compreendo — disse ela. — Acabaste de dizer que está

a correr tudo bem.— Sim. Sim, claro que está. É só um problema de liquidez tem-

porário, até me pagarem um carregamento em trânsito.— Mais nada?— Absolutamente.— Não voltaste aos antigos sarilhos?Fez um ar horrorizado e magoado.— Claro que não. Ficará tudo bem assim que entrar o pagamento.

Sabes como são estas coisas.Confiava em Elliot, claro que sim, mas ainda parava para pensar

antes de avançar. Certas coisas custavam a esquecer, quanto mais a perdoar, mas queria acreditar nele. O sorriso, desarmante de tão gentil, convenceu-a.

— Pode ser um risco — disse ela —, mas, por outro lado, o meu pai pode estar enganado.

— Eu acho que está.— Bem, vamos analisar e, se for sólido, decerto hei de arran-

jar maneira de fazer eu própria o pagamento final da tipografia. Apetecia-me um novo projeto.

— Não quero que te zangues com o Jonathan.Ela abanou a cabeça.

O Segredo das Safiras.indd 29 07/03/2019 11:00

Page 27: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

30

— As ações são minhas e nós somos uma equipa, não te esque-ças. Assim que eu vir o sítio, hei de colocar ações no mercado o mais depressa possível, para podermos competir no negócio.

— Linda menina! Eu sabia que podia contar contigo.— Entretanto, vou tratar de que tenhas no banco o suficiente para

pagar a remodelação. Só até equilibrares o orçamento.— Magnífico.— Depois podemos fazer planos. Vou adorar fazer a decoração. —

Era verdade. Um projeto podia ser mesmo aquilo de que ela preci-sava. — E se forem paredes brancas a contrastar com bancadas em ébano? Escuro e claro ficam muito bem, e o ébano do Ceilão é uma cor escura e uniforme. Vai ficar fabuloso.

— Tinha esperança de que te interessasse.— Fizeste isto por mim?— Não foi bem, mas acho que um novo começo pode ajudar.— Assim que o meu pai vir como o sítio fica maravilhoso, e a

quantidade de joalheiros interessados em exibir mercadoria, há de mudar de ideias, de certeza.

— Tenho muita sorte contigo.Ela sorriu e pegou-lhe na mão.— Temos os dois.— Agora ouve — disse ele. — Se te sentires mais animada, pre-

cisam de mim na fazenda de canela.Ela inalou fundo e tentou disfarçar o quanto se sentia desco-

roçoada.— Outra vez? Não vamos seguir com os planos do empório?— Isso pode esperar. Agora há muito que fazer na fazenda.— Por exemplo?— Nunca te mostraste interessada.— Mostro-me agora.Não parecia agradar-lhe e demorou a responder.— Bem, se tens mesmo de saber, procuro maneiras de aumentar

a produtividade. Desmatar mais. Esse género de coisa.— Talvez vá contigo da próxima vez. Uma viagem fora, só nós dois.Ele não reagiu.No silêncio que se adensava, parecia tudo suspenso.

O Segredo das Safiras.indd 30 07/03/2019 11:00

Page 28: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

31

6

Quando Elliot voltou da fazenda, dois dias depois, parecia tra-zer uma atitude muito positiva. Radiante, aliás. Louisa propu-sera outra vez a ideia de o acompanhar na ocasião seguinte,

mas a princípio não se mostrara recetivo, alegando que a fazenda era ainda primitiva e que ela não iria gostar. Todavia, ela insistira e, passa-dos mais uns dias, estavam a caminho. Ele insistira que fosse naquele dia específico, sem explicar porquê, mas, pelo menos, estavam juntos. Visita rápida apenas, ir e vir no mesmo dia, pois as Gemas Hardcastle tinham pedras novas e ele era indispensável na supervisão dos registos.

A estrada para Cinnamon Hills levou-os a sair do forte de Galle, contornando as docas e os molhes, nos quais se guardavam borra-cha e outra mercadoria antes de carregar nos navios, e onde Louisa tentava não respirar pelo nariz: quando havia carregamento de bor-racha, o fedor era horrível. Contornaram as águas calmas da baía de Galle, onde estavam ancoradas embarcações maiores, e a ponta sul do monte Rumassala, conhecido como Ponto Aguadeiro, onde os navios outrora se abasteciam da água doce da albufeira. Dali avista-vam-se dois recifes rochosos, onde tantos navios tinham tido desfe-chos funestos durante as monções de sudoeste.

— A vista do alto do Rumassala é mesmo boa, não é? — comen-tou ela. — Devíamos subir ao pico em breve.

Passaram o pequeno cemitério, última morada de funcionários e marinheiros britânicos, e, depois disso, Louisa baixou o vidro para gozar o ar fresco.

O Segredo das Safiras.indd 31 07/03/2019 11:00

Page 29: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

32

— Adoro a lenda de Rumassala.A antiga epopeia sânscrita Ramayana contava a história do deus

guerreiro Hanuman, um macaco indiano que precisou de ervas medicinais para tratar os feridos do seu exército na batalha con-tra o demoníaco rei Ravana do Ceilão. Como naquela zona não as encontrou, e Hanuman teve de voltar à Índia e trazer um pedaço dos Himalaias onde cresciam as plantas necessárias, mas deixou-o cair sobre o grande Rumassala. Louisa sabia que o povo acreditava na lenda, mesmo nos tempos modernos, para justificar as raras plantas medicinais que se encontravam na região.

— Estou a pensar em experimentar ervas medicinais — disse ela. — Para ver se ajudam.

— O doutor Russell ficaria horrorizado.— Não tem de saber e pode valer a pena. O povo jura por elas e

a decisão é minha, não é?Quando chegaram, hora e meia depois, a solidão agreste da fa-

zenda pareceu-lhe apelativa. A meio da encosta havia uma casa antiga, ou walauwa, um bangaló no meio de um relvado espigado e rodeado por árvores onde orquídeas pejadas de borboletas decoravam o jar-dim. Além do carreiro para a casa, a fraca entrada da luz indicava que a floresta seria escura e profunda. Um lugar para nos perder-mos, pensou ela. Onde ninguém nos vê os movimentos nas som-bras e tudo pode acontecer.

Subiram o acesso principal e ela viu outro edifício mesmo no cume, uma casa mais contemporânea que se destacava acima da plantação propriamente dita. Quando finalmente chegaram e saíram do auto- móvel, ela contemplou uma vista extraordinária até ao mar, e virou--se para o interior, onde as colinas púrpura e envoltas na bruma se fundiam com o céu.

— A luz muda constantemente, do nascer ao pôr do sol, aqui. Agrada-te?

— É absolutamente deslumbrante.— Vou ver se o Leo McNairn está cá. O capataz.Ele foi à porta principal e um moço abriu, mas disse a Elliot que

Leo estava em Colombo.Voltou para onde Louisa se encontrava a olhar o mar.

O Segredo das Safiras.indd 32 07/03/2019 11:00

Page 30: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

33

— Está fora, mas nada nos impede de ver as vistas. Vou mostrar--te algumas caneleiras.

— Adoro o cheiro — disse ela. — É só canela?— Citronela também, parece-me.— Não admira que gostes tanto de cá vir! Não me importaria nada

de ficar uns dias, da próxima vez.— Bem, como já disse, a casa do Leo é bastante primitiva. Quando

fico, não me importo.— Eu também não me importo com o primitivo. Tu sabe-lo, não?— Vamos dar uma vista de olhos?Louisa foi atrás de Elliot por um carreiro sinuoso entre arbustos

ralos e orquídeas rasteiras, além dos quais as árvores altas e escuras atraíam os incautos para a obscuridade. Ela sentia essa atração, mas só Deus saberia o que escondiam.

— Cuidado com as cobras — disse ele, interrompendo-lhe o pensamento.

— Venenosas?— As kraits pretas e brancas.— Mas só à noite é que dão problemas, não é? — Louisa olhou

em redor. — Queria muito saber como se produz canela.— É um bocadinho maçador.— Mesmo assim.— Bem, faz-se a colheita ao fim de três anos, geralmente. Depois,

a talhadia regular faz engrossar a casca, mas também mantém a aparência de matagal, e facilita a colheita.

— Como é que se faz a colheita?— Dá trabalho, mas descasca-se a árvore e depois processa-se

com cuidado.Passados uns minutos a andar, ela ouviu ruído atrás de si. Olhou

nessa direção, mas não viu nada, a princípio. Quando avançou outra vez, podia jurar ter ouvido passos e virou-se para ver melhor. Apa- nhou uma mancha de vermelho-acobreado. Parou e, por instantes, parecia haver uma mulher ruiva a observá-la ao longe. Virou-se e chamou Elliot, mas, quando tornou a olhar, a mulher sumira-se.

— O que foi? — perguntou Elliot. — Passa-se alguma coisa?— Achei ter visto uma mulher a olhar para mim.

O Segredo das Safiras.indd 33 07/03/2019 11:00

Page 31: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

Dinah Jefferies

34

— Provavelmente, uma das nativas.— Sim. Não vi muito bem. Mas achei que tinha cabelo ruivo.— Improvável por estas bandas. Talvez tivesse um lenço na cabeça.

Uma das mulheres dos descascadores, diria.— Sim, podes ter razão. Vamos lá acima ver a vista outra vez.Tornaram a subir e ela avistou dois papa-figos de cabeça negra,

aves deslumbrantes pretas e amarelas que cantavam uma melodia linda. Ia apontá-las para que Elliot as visse, mas este parecia dis-traído, claramente admirado ao ver uma mota Royal Enfield ao lado do carro deles.

— Agora devia realmente voltar para o escritório — disse ele, e ela reparou na tensão inesperada que lhe franzia a testa.

Nisto, saiu da casa um homem alto e esguio. A luz solar que se derramava por entre as árvores projetava-lhe sombras nas faces. Trajava calções e uma camisa aberta no colarinho, e estava muito bronzeado. Louisa olhou para aquela cara bem-parecida e rude, a barba rala no queixo e o cabelo castanho arruivado, e ficou a pensar que teria sido ele quem vira antes. Seria estranhíssimo ver cabelo ruivo outra vez tão cedo, mas não, não me parece ter sido ele que vi no meio das árvores. Como Elliot não dizia nada, ela estendeu a mão.

— Olá, sou Louisa Reeve. Elliot está a mostrar-me a fazenda.O homem franziu o sobrolho ligeiramente e coçou a cabeça.— Pois.— Então… — disse ela.— Desculpe… Chamo-me Leo McNairn — disse. Louisa reparou

que ele parecia ter calor e estava transpirado.Houve um momento de silêncio enquanto ela o olhava. Havia

algo naqueles olhos intensamente escuros que a perturbava. Ficou à espera que ele sorrisse, mas continuou a fitá-la sem falar. A sensação de ser escrutinada e a incapacidade de desviar o olhar deixaram-na envergonhada. Parecia que o momento nunca mais acabava, mas, de súbito, uma voluta de luz quase a deixou encandeada. Pestanejou rapidamente antes de, finalmente, olhar para outro lado. Ele tornou a falar.

— Estive a deitar abaixo algumas árvores velhas — disse. — Do outro lado.

O Segredo das Safiras.indd 34 07/03/2019 11:00

Page 32: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões

O Segredo das Safiras

35

— Bem — disse Elliot. — Agora temos de ir. Vamos, Louisa. — Virou-se para Leo. — Gosto em vê-lo outra vez. A minha mulher só queria visitar o sítio. O seu homem disse que você estava em Colombo.

Leo semicerrou os olhos.— Pois.— Mas voltou cedo.— Problemas com a mota. — Leo voltou a franzir o sobrolho

e desviou o olhar, e Louisa achou que ele falara de maneira ligeira-mente improvisada.

Elliot pôs um braço à volta dela e começou a afastar-se.— Bem, adeusinho — disse, por cima do ombro.Vendo que o homem se limitara a assentir, e sentindo que Elliot

a empurrava na direção do carro, Louisa sentou-se tomada por uma estranha inquietude.

— Bem — disse, quando chegaram mais abaixo no monte. — Não é dado a conversas. Senti-me pouco à vontade. Ele é sempre assim?

— Provavelmente, tem mais em que pensar.— Porque não nos convidou a entrar? Pareceu-me tão esquisito.— É homem de poucas falas.— Evidentemente, mas é uma pena ter sido tão pouco amistoso.Após algum tempo, ela sacudiu estes pensamentos obscuros.— Seja como for, gosto mesmo deste lugar lindo e melancólico.— Melancólico?— Sim, não te parece?Ele franziu o sobrolho.— Há qualquer coisa nele. Especial, sabes? Mas, ao mesmo tempo,

algo enervante. Mesmo assim, preferia não ter de sair à pressa. Tenho a sensação de que já conheci o Leo, ou de que já o vi, pelo menos.

— Podes tê-lo visto em Colombo. Com aquele cabelo, ele dá um bocado nas vistas.

O Segredo das Safiras.indd 35 07/03/2019 11:00

Page 33: O Segredo das Safiras - fnac-static.com · tado dono de uma fazenda de borracha e conhecia Elliot desde Colombo. Homem bem vestido e de bigode aparado, passara com frequência verões