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O Segredo do Anel - Visionvox · horas tenebrosas, em que lembranças mais aterradoras do que pesadelos recusavam-se a ser contidas. Sua filha era agora a única outra sobrevivente

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O segredo do anel

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Kathleen McGowan

O segredo do anel O legado de Maria Madalena

Tradução de Pinheiro de Lemos

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Título original THE EXPECTED ONE

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, localidades e incidentes são produtos da imaginação da autora ou foram usados

de forma ficcional. Qualquer semelhança com acontecimentos ou locais e pessoas reais, vivas ou não, é mera coincidência.

Copyright © 2006 by McGowan Media, Inc. Todos os direitos reservados, incluindo os direitos

de reprodução no todo ou em parte sob qualquer forma.

Edição brasileira publicada mediante acordo com editor original, Simon & Schuster, Inc.

Direitos para a língua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à

EDITORA ROCCO LTDA. Av. Presidente Wilson, 231-8° andar

20030-021 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 3525-2000 — Fax: (21) 3525-2001

[email protected]. br www.rocco.com.br

Printed in Brazil/lmpresso no Brasil

revisão técnica LUCAS TRAVASSOS TELLES

preparação de originais MÔNICA MARTINS FIGUEIREDO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

McGowan, Kathleen

M429s O segredo do anel/Kathleen McGowan; tradução de Pinheiro de Lemos. — Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

(Linhagem de Madalena; v.1)

Tradução de: The expected one ISBN 85-325-2096-0 1. Maria Madalena, Santa — Ficção. 2. Romance

norte-americano. I. Lemos, A. B. Pinheiro de (Alfredo Barcellos Pinheiro de), 1938. II Título. III. Série.

CDD-813

06-2266 CDU-821.111 (73)-3

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À senhora eleita e seus filhos, que amo

na luz da verdade — não apenas eu, mas todos

os que têm conhecimento da verdade — em

virtude da verdade que permanece em nós

e estará conosco para sempre.

— 2 JOÃO 1-2

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Este livro é dedicado a

Maria Madalena,

minha musa, minha ancestral;

Peter McGowan,

a pedra sobre a qual construí minha vida;

Meus pais, Donna & Joe,

pelo amor incondicional e a genética fascinante,

e a nossos príncipes do Graal,

Patrick, Conor e Shane,

por preencherem nossas vidas com amor,

riso e constante inspiração

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PRÓLOGO

Gália Meridional, ano 72

Não restava muito tempo.

A velha puxou o xale esfarrapado em torno dos ombros. O outono

chegara mais cedo às montanhas vermelhas naquele ano e ela podia

senti-lo nos ossos. Suavemente, devagar, flexionou os dedos, desejando

que as juntas enrijecidas relaxassem. As mãos não podiam lhe faltar

agora, não com tanta coisa a fazer. Tinha de acabar de escrever naquela

noite. Tamar chegaria em breve com os jarros e era preciso que tudo

estivesse pronto.

Ela permitiu-se um longo suspiro, meio trêmulo. Sinto-me cansada

há muito tempo. Tempo demais.

Aquela missão final, ela sabia, seria a última que teria neste

mundo. Os dias passados em recordação haviam drenado a vida que ainda

pulsava no corpo sem viço. Os ossos velhos estavam sobrecarregados pelo

inexprimível pesar e cansaço daqueles que sobrevivem às pessoas amadas.

As provações a que Deus a submetera haviam sido muitas e rigorosas.

Somente Tamar, a única filha mulher e a última criança viva,

permanecia com ela. Tamar era sua bênção, o lampejo de luz naquelas

horas tenebrosas, em que lembranças mais aterradoras do que

pesadelos recusavam-se a ser contidas. Sua filha era agora a única outra

sobrevivente do Grande Tempo, embora fosse apenas uma criança,

quando todos desempenharam seu papel na história viva. Ainda assim,

era um conforto saber que havia alguém que lembrava e compreendia.

Os outros haviam partido. A maioria morrera, martirizada por

métodos brutais demais para serem suportados. Talvez alguns ainda

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sobrevivessem, dispersos pelo vasto mapa do mundo de Deus. Ela nunca

saberia. Muitos anos já haviam passado desde que recebera as últimas

notícias dos outros, mas, de qualquer forma, orava por eles e orava do

amanhecer ao anoitecer, naqueles dias de recordações muito intensas.

Gostaria de ter em seu coração e alma a paz, que eles não sofressem a

agonia dos milhares de noites insones.

Era verdade, Tamar se tornara seu único refúgio naqueles anos de

crepúsculo. Ela era jovem demais para recordar os terríveis detalhes do

Tempo das Trevas, mas já tinha idade suficiente para lembrar a beleza e

a graça das pessoas que Deus escolhera para trilharem Seu caminho. Ao

dedicar sua vida à memória daqueles eleitos, o caminho de Tamar fora de

puro amor e serviço. A singular dedicação da jovem a confortar a mãe,

naqueles dias finais, fora extraordinária.

Deixar minha amada filha é a única coisa difícil que me resta

fazer. Mesmo agora, quando a morte vem me buscar, não posso aceitá-la

de bom grado.

E, no entanto...

Ela espraiou seu olhar da entrada da caverna, que tinha sido seu

lar por quase quarenta anos. O céu estava claro. Ela ergueu o rosto

enrugado para contemplar a beleza das estrelas. Nunca deixara de se

sentir maravilhada com a criação de Deus. Em algum lugar, além

daquelas estrelas, as almas que mais amara neste mundo aguardavam-

na. Podia senti-las agora, mais próximas do que em qualquer outro

momento anterior.

E podia senti-Lo.

— Seja feita a Sua vontade — sussurrou ela para o céu noturno.

A velha virou-se, devagar, determinada, e tornou a entrar na

caverna. Respirou fundo, pegou o pergaminho áspero, os olhos contraídos

na claridade mínima e enfumaçada de um lampião de óleo.

Pegou o estilo e recomeçou a escrever, com todo o cuidado.

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... Tantos anos transcorridos e não tornou-se mais fácil agora escrever

a respeito de Judas Iscariotes do que naqueles dias sinistros. Não porque eu

dele fizesse qualquer julgamento, mas justamente porque não fazia.

Contarei a história de Judas, e tenciono fazê-lo com justiça. Era um

homem intransigente em seus princípios, e aqueles que nos seguem disso

devem saber: ele não os traiu — nem a nós — por um saco de moedas de

prata. A verdade é que Judas era o mais fiel dos doze. Muitas foram minhas

razões para a dor ao longo dos anos que já se passaram, e, mesmo assim,

considero que há apenas Um e Único cuja perda lamento mais do que a de

Judas.

Há muitos que me coagiriam a escrever o pior possível em relação a

Judas... a condená-lo como um traidor, alguém que não enxergava a verdade.

Porém não permito-me escrever nenhuma dessas coisas, pois mentiras

seriam antes mesmo que a pena tocasse o pergaminho. Muitas serão as

mentiras escritas sobre o nosso tempo. Deus assim me revelou. Nego-me,

pois, a escrever qualquer outra.

Afinal, qual é o meu propósito, se não o de relatar toda a verdade

dos acontecimentos daquele tempo?

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO UM

Marselha

Setembro de 1997

Marselha sempre fora, séculos afora, um lugar marcado pela morte.

O lendário porto mantinha a reputação de covil de piratas,

contrabandistas e assassinos, desde a época em que os romanos tomaram

a cidade dos gregos, antes de Cristo.

Ao final do século XX, os esforços do governo francês no combate ao

crime na cidade finalmente permitiram que se saboreasse uma bouillabaise

sem o medo de ser assaltado. Não que o crime chocasse seus habitantes.

A violência estava enraizada em sua história e genética. Os calejados

pescadores nem piscavam quando suas redes pegavam alguma coisa

mais consistente do que frutos do mar.

Roger-Bernard Gelis não era um nativo de Marselha. Nascera e fora

criado nos contrafortes dos Pireneus, numa comunidade que sobrevivia,

orgulhosa, ao seu anacronismo. O século XXI não ameaçava sua cultura,

muito antiga, que reverenciava os poderes do amor e da paz acima de

todas as coisas terrenas. Mesmo assim, ele era um homem de meia-idade

com alguma experiência do mundo, pois era o líder de seu povo. E, embora

a comunidade convivesse em profunda paz espiritual, tinha sua cota de

inimigos.

Roger-Bernard gostava de dizer que a luz maior atrai as trevas mais

profundas.

Era quase um gigante, uma presença imponente para os

estranhos. Aqueles que não conheciam a gentileza que prevalecia no espírito

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de Roger-Bernard podiam confundi-lo com alguém que devia ser temido.

Alguém diria, mais tarde, que seus atacantes provavelmente não lhe eram

desconhecidos.

Ele deveria ter percebido o que poderia acontecer. Deveria ter

compreendido que não o deixariam carregar um objeto de valor tão

inestimável impunemente. Afinal, um milhão de seus ancestrais

não haviam morrido por aquele mesmo tesouro? Mas o tiro fora

disparado por trás, estilhaçando seu crânio antes mesmo que ele

soubesse que o inimigo estava próximo.

O exame de balística seria inútil para a polícia, já que os

assassinos não encerraram seus feitos com o ataque. Devia haver

vários deles, pois o tamanho e o peso da vítima exigiriam uma certa

força para concretizar o dano.

Foi um ato de misericórdia Roger-Bernard ter morrido antes

que o ritual começasse. Foi poupado da exultação de seus

assassinos enquanto se empenhavam na tarefa macabra. Seria

possível imaginar um fervor especial nas ações seguintes,

embaladas pelo antigo mantra de ódio enquanto trabalhavam.

— Neca eos omnes. Neca eos omnes.

Separar uma cabeça humana do resto do corpo é um trabalho

difícil e complicado. Exige força, determinação e um instrumento

muito afiado. Os assassinos de Roger-Bernard Gelis tinham todas

essas coisas e usaram-nas com extrema eficiência.

O corpo estava no mar havia bastante tempo, sacudido pelas

ondas e roído pelos famintos habitantes das profundezas. Os

investigadores ficaram tão impressionados com as precárias

condições do cadáver que atribuíram pouco significado ao dedo

desaparecido em uma das mãos. Uma autópsia, arquivada mais

tarde pela burocracia — ou talvez por algo mais —, limitou-se a

registrar que o dedo indicador da mão direita fora decepado.

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Jerusalém

Setembro de 1997

A antiga e movimentada Cidade Velha de Jerusalém fervilhava

com a frenética atividade de uma tarde de sexta-feira. A história

impregnava o ar seco, enquanto os fiéis se apressavam a caminho

de suas casas de culto, em preparativos para os respectivos sabás. Os

cristãos vagueavam pela Via Dolorosa, a Via Sacra, uma série de ruas

sinuosas, calçadas com pedras, que fora o caminho para a crucificação.

Fora por ali que um Jesus Cristo açoitado e sangrando, suportando no

ombro uma pesada cruz, seguira para seu destino divino, no alto do

Gólgota.

Naquela tarde de outono, a escritora americana Maureen Paschal

não parecia diferente dos outros peregrinos, que acorriam dos cantos

mais distantes e variados do mundo. A brisa inebriante de setembro

misturava o aroma de shwarma, o prato de galinha desossada crepitante,

com os cheiros de óleos exóticos que exalavam dos mercados antigos.

Maureen circulava pelo impacto sensorial que era Israel, com um guia de

viagem de uma organização cristã, comprado pela Internet. O guia

detalhava a Via Sacra, com mapas e instruções para encontrar as catorze

estações do caminho de Cristo.

— Quer um rosário, moça? É madeira do Monte das Oliveiras.

— Moça, precisa de um guia? Nunca vai se perder. E mostrarei

tudo que quiser.

Como a maioria das ocidentais, ela era obrigada a se esquivar dos

avanços indesejáveis dos mercadores das ruas de Jerusalém. Alguns eram

insistentes em seus esforços para oferecer mercadorias e serviços. Outros

apenas sentiam-se atraídos pela mulher pequena, de cabelos ruivos

compridos e pele clara, contraste singular naquela parte do mundo.

Maureen repelia seus perseguidores com um “Não, obrigada” polido, mas

firme. Depois, ela desviava o olhar e se afastava. Seu primo Peter,

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especializado em estudos do Oriente Médio, preparara-a para a cultura

da Cidade Velha. Maureen era meticulosa em seu trabalho e estudara a

cultura de Jerusalém com todo o cuidado. Até agora, estava dando

resultado. Maureen era capaz de desviar sua concentração o mínimo,

enquanto se detinha na pesquisa, observando e anotando detalhes no

caderninho de capa de couro.

Ficara comovida até as lágrimas pela intensidade e beleza da Capela

da Flagelação franciscana, erguida há oitocentos anos no lugar em que

Jesus sofrera as vergastadas. Uma reação emocional profunda e

inesperada, já que Maureen não fora a Jerusalém como peregrina, mas

como observadora investigativa, uma escritora em busca do cenário

histórico acurado para sua trama. Ao procurar uma compreensão maior

dos acontecimentos da Sexta-feira da Paixão, Maureen abordara a

pesquisa com a cabeça, não com o coração.

Visitou o Convento das Irmãs de Sion, antes de passar para a

vizinha Capela da Condenação, o lendário local em que Jesus recebera a

cruz, depois da sentença de crucificação proferida por Pôncio Pilatos.

Mais uma vez, o inesperado aperto na garganta foi acompanhado por

um sufocante sentimento de angústia, enquanto percorria o prédio.

Esculturas em baixo-relevo, em tamanho natural, ilustravam os eventos

de uma manhã terrível, dois mil anos antes. Maureen ficou imóvel,

paralisada, por uma cena vivida de humanidade atormentada: um

discípulo que tentava proteger Maria, a Mãe de Jesus, poupando-a da

visão do filho carregando a cruz. Lágrimas arderam no fundo dos seus

olhos enquanto contemplava a imagem. Era a primeira vez na vida em

que pensava naqueles personagens históricos como pessoas reais,

seres humanos de carne e osso, sofrendo por uma fatalidade quase

inconcebivelmente dolorosa.

Como se sentisse um pouco tonta, Maureen estendeu a mão para

as pedras frias da parede antiga, a fim de se firmar. Fez uma pausa para

se concentrar, antes de retomar as anotações sobre as pinturas e

esculturas.

Continuou em seu caminho, mas as ruas da Cidade Velha eram

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um autêntico labirinto. Podiam ser enganadoras, até mesmo para

quem tinha um mapa meticuloso. Os pontos de referência eram quase

sempre antigos, desgastados pelo tempo, e podiam passar despercebidos,

com a maior facilidade, por pessoas que não conheciam seu paradeiro.

Maureen esboçou uma imprecação silenciosa ao compreender que se

perdera de novo. Parou ao abrigo do vão de porta de uma loja, evitando o

sol direto. A intensidade do calor, apesar da brisa que soprava, não

combinava com a época do ano, o final do verão. Ela protegeu o guia da

claridade forte, consultou-o e olhou ao redor, tentando se orientar.

— A Oitava Estação da Cruz deve ser em algum lugar aqui por

perto — murmurou.

Maureen tinha um interesse específico pelo local, na medida em

que seu trabalho concentrava-se na história relacionada com as

mulheres. Numa nova consulta ao guia, ela leu a passagem dos

evangelhos relacionada com a Oitava Estação:

Muitas pessoas o seguiam, inclusive mulheres que lamentavam e

choravam por ele. Jesus disse: Não chorem por mim, filhas de Jerusalém.

Chorem por si mesmas e por suas crianças.

Maureen foi surpreendida por uma batida firme na vitrine, por trás

dela. Virou-se, esperando deparar com o olhar de um proprietário furioso

por estar bloqueando a entrada da loja. O rosto que a fitava do outro

lado entretanto, exibia uma expressão radiante. Um palestino de meia-

idade, vestido de maneira impecável, abriu a porta da loja de antiguidades

fazendo sinal para Maureen entrar. Quando ele falou, foi num inglês

correto, temperado pelo sotaque:

— Entre, por favor. Seja bem-vinda. Sou Mahmoud. Está perdida?

Maureen acenou com o guia, embaraçada.

— Estou procurando a Oitava Estação. O mapa mostra...

Mahmoud descartou o livro, com uma risada.

— A Oitava Estação. Jesus se encontra com as mulheres santas

de Jerusalém. Fica aqui perto, logo depois da esquina. — Ele apontou.

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— O local é assinalado por uma cruz bem em cima do muro de pedra,

mas você tem de olhar com muito cuidado.

Mahmoud fitou Maureen atentamente por um momento, antes de

acrescentar:

— É como tudo em Jerusalém. Você tem de olhar com muita

atenção para ver o que é.

Maureen observou seus gestos, até ter certeza de que compreendia

a orientação. Sorriu, agradeceu e virou-se para sair. Mas parou de repente,

quando alguma coisa numa prateleira próxima atraiu sua atenção. A loja

de Mahmoud era um dos estabelecimentos mais sofisticados de

Jerusalém. Vendia antiguidades autenticadas, como lampiões do tempo

de Cristo ou moedas com a efígie de Pôncio Pilatos. Um delicado tremeluzir

de cores passando pela vitrine deixou-a fascinada.

— São jóias feitas com fragmentos de vidros romanos —

explicou Mahmoud, enquanto Maureen se aproximava de um

mostruário com jóias de prata e ouro com mosaicos coloridos.

— São deslumbrantes — murmurou Maureen.

Ela pegou um pendant de prata. Prismas de cor projetaram-se pela

sala, enquanto ela suspendia a jóia para a luz, iluminando sua

imaginação de escritora.

— Qual seria a história que este pedaço de vidro poderia contar?

— Quem sabe o que foi outrora? — Mahmoud deu de ombros. —

Um vidro de perfume? Um pote de especiarias? Um vaso para rosas ou

lírios?

— É espantoso pensar que há dois mil anos era um objeto do

cotidiano na casa de alguém. Uma perspectiva fascinante.

Maureen resolveu examinar mais atentamente a loja e as coisas

que oferecia. Ficou impressionada com a qualidade dos itens e a beleza

dos mostruários.

— Isto tem mesmo dois mil anos?

— Claro. E algumas das outras peças à venda são ainda mais

antigas.

Maureen balançou a cabeça.

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— Antiguidades como estas não deveriam pertencer a um museu?

Mahmoud riu, um som exuberante e efusivo.

— Minha cara, a cidade de Jerusalém inteira é um museu. Não se

pode abrir um buraco em seu jardim sem encontrar alguma coisa muito

antiga. A maior parte dos objetos valiosos vai para coleções

importantes. Mas nem tudo.

Maureen foi até um balcão de vidro, onde havia jóias antigas de

cobre marchetado e oxidado. Sua atenção foi atraída por um anel com

um disco do tamanho de uma moeda pequena. Mahmoud acompanhou

seu olhar, tirou o anel do mostruário e o estendeu para ela. Um raio de sol,

passando pela vitrine, incidiu sobre a peça e, iluminando sua base redonda,

realçou um padrão de nove pontos em torno de um círculo central.

— Uma escolha muito interessante — comentou Mahmoud.

Sua atitude jovial mudara. Estava agora intenso e sério,

observando Maureen atentamente, enquanto ela o interrogava a respeito

do anel.

— Quão antigo é este anel?

— É difícil dizer. Meus peritos dizem que era bizantino,

provavelmente do século VI ou VII, talvez mais antigo.

Maureen examinou o padrão dos círculos.

— Este padrão parece... familiar. Tenho a impressão de que já o

vi antes. Sabe se simboliza alguma coisa?

A intensidade de Mahmoud relaxou.

— Não posso dizer com certeza o que um artesão pretendia criar

há mil e quinhentos anos. Mas me garantiram que era o anel de um

cosmólogo.

— Um cosmólogo?

— Alguém que compreende a relação entre a Terra e o cosmo.

Como acima é abaixo. E devo dizer que me lembrou, na primeira vez em

que o vi, dos planetas girando em torno do sol.

Maureen contou os pontos em voz alta.

— ...sete, oito, nove. Mas não podiam saber que havia nove

planetas naquele tempo ou que o sol era o centro do sistema solar. Isto

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não é possível, não é mesmo?

— Não podemos presumir que sabemos o que os antigos

percebiam. — Mahmoud deu de ombros. — Experimente o anel.

Maureen, notando subitamente a conversa de um vendedor,

devolveu o anel.

— Não, obrigada. É muito bonito, mas eu estava apenas curiosa.

E prometi a mim mesma que não gastaria dinheiro hoje.

— Não tem problema. — Mahmoud recusou-se a pegar o anel de

volta, numa atitude firme. — Porque o anel não está à venda.

— Não?

— Não. Muitas pessoas já quiseram comprar esse anel. Eu me

recuso a vendê-lo. Sinta-se à vontade para experimentar. Apenas por

diversão.

Talvez porque a jovialidade tivesse voltado ao tom de Mahmoud e ela

se sentisse menos pressionada ou talvez fosse a atração pelo padrão antigo

e inexplicado. Alguma coisa, no entanto, fez com que Maureen enfiasse o

disco de cobre no dedo anular direito. Coube perfeitamente. Mahmoud

balançou a cabeça, sério de novo, quase sussurrando para si mesmo:

— Como se tivesse sido feito para você.

Maureen ergueu o anel para a luz, olhando para a mão.

— Não consigo desviar os olhos.

— Isso acontece porque você deve ficar com o anel.

Maureen fitou-o, desconfiada, sentindo a iminência de uma oferta

de venda.

Mahmoud tinha mais classe que os vendedores das ruas, mas, de

qualquer forma, era um mercador.

— Pensei que houvesse dito que não está à venda.

Ela fez menção de tirar o anel, ao que Mahmoud protestou com

veemência, erguendo as mãos.

— Não. Por favor.

— Está bem. E neste ponto que começamos a negociar, não é

mesmo? Quanto?

Mahmoud pareceu ofendido por um momento, antes de responder:

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— Não está entendendo. Esse anel me foi confiado até que

encontrasse a mão certa. A mão para a qual foi feito. Descubro agora que

é a sua mão. Não posso vendê-lo a você porque já é seu.

Maureen olhou para o anel, depois para Mahmoud, perplexa:

— Eu é que não entendo.

Mahmoud ofereceu um sorriso solene. Encaminhou-se para a

porta da frente da loja.

— Não pode entender. Mas um dia vai compreender. Por

enquanto, apenas fique com o anel. É um presente.

— Eu não poderia...

— Pode e ficará. Deve ficar. Se não o fizer, eu terei fracassado. E

não vai querer esse peso na consciência, é claro.

Maureen sacudiu a cabeça, cada vez mais aturdida, enquanto

o seguia até a porta. Parou ali.

— Não sei o que dizer ou como agradecer.

— Não precisa. Mas tem de ir agora. Os mistérios de Jerusalém

estão à sua espera.

Mahmoud segurou a porta aberta. Maureen saiu e agradeceu

de novo.

— Adeus, Madona... — sussurrou Mahmoud, enquanto ela se

afastava.

Maureen parou no mesmo instante. Virou-se:

— Desculpe, mas o que foi mesmo que disse?

Mahmoud tornou a exibir um sorriso enigmático.

— Eu disse adeus, minha cara.

Ele acenou em despedida. Maureen retribuiu o gesto e tornou a se

afastar, ao sol forte do Oriente Médio.

Maureen voltou à Via Dolorosa, onde encontrou a Oitava Estação,

exatamente como Mahmoud indicara. Mas estava inquieta e incapaz de

se concentrar, sentia-se estranha depois do encontro com Mahmoud. Ao

continuar em seu caminho, a sensação de vertigem que já experimentara

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antes voltou, desta vez mais forte, a ponto de desorientá-la. Era seu

primeiro dia em Jerusalém e com certeza sofria do cansaço da viagem e

da alteração dos fusos horários. O vôo em que chegara de Los Angeles na

noite anterior fora longo e cansativo e ela quase não dormira. Fosse uma

combinação de calor, exaustão e fome ou alguma coisa mais inexplicável, o

que aconteceu em seguida estava completamente fora do território da

experiência de Maureen.

Ao encontrar um banco de pedra, ela se sentou para descansar um

pouco. Balançou com outra onda de vertigem inesperada, enquanto um

clarão ofuscante emanava do sol implacável, transportando os seus

pensamentos.

Foi lançada abruptamente no meio de uma multidão. O caos

reinava ao seu redor. Havia muitos gritos e empurrões, uma intensa

comoção por todos os lados. Maureen conservava o suficiente da

mentalidade moderna para perceber que as pessoas enxameando ao seu

redor vestiam roupas feitas em tear manual. Muitas estavam descalças,

enquanto outras usavam uma versão tosca de sandália, como ela notou

quando alguém pisou em seu pé. Quase todos eram homens, barbudos e

sujos. O sol onipresente do início da tarde castigava-os, misturando suor

com poeira nos rostos furiosos e aflitos ao seu redor. Ela estava na beira

de uma rua estreita. A multidão à frente começava a se empurrar, com um

vigor crescente. Uma brecha natural surgiu, com um pequeno grupo

avançando lentamente pelo caminho. A multidão parecia seguir esse

grupo. Quando a massa em movimento chegou mais perto, Maureen viu a

mulher pela primeira vez.

Uma ilha solitária e serena no meio do caos, era uma das poucas

mulheres na multidão... mas não era isso que a tornava tão diferente. Era

o seu comportamento, uma atitude imponente, que a distinguia como

uma rainha, apesar da camada de poeira que cobria-lhe as mãos e os pés.

Estava um pouco desgrenhada, os cabelos castanho-avermelhados

lustrosos presos parcialmente por baixo de um véu escarlate, que cobria a

metade do rosto. Maureen compreendeu, num impulso instintivo, que

precisava alcançar essa mulher, precisava se ligar a ela, tocá-la, falar com

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ela. Mas a multidão agitada a impedia, e ela se deslocava nos movimentos

em câmera lenta de um sonho.

Enquanto continuava a avançar com dificuldade na direção da

mulher, Maureen ficou impressionada com a beleza angustiada de seu

rosto. Tinha feições delicadas e refinadas. Mas foram os olhos que

continuaram a assediar Maureen muito depois que a visão acabou.

Eram olhos enormes e brilhantes, com lágrimas não derramadas, em

algum ponto no espectro de cores entre o âmbar e o verde, com uma

luminosidade castanho-clara extraordinária que refletia uma infinita

sabedoria e uma tristeza insuportável, numa mistura comovente. Os

olhos da mulher, profundos e envolventes, encontraram-se com os de

Maureen por um momento breve e interminável... e aqueles olhos

surpreendentes transmitiram uma súplica de total e absoluto desespero.

Você tem de me ajudar.

Maureen sabia que a súplica lhe era dirigida. Ficou em transe,

paralisada, enquanto a mulher a fitava. O momento foi rompido quando

a mulher baixou os olhos para uma menina que a puxava pela mão, com

urgência.

A criança também fitou-a, com aqueles enormes olhos claros que

herdara da mãe. Por trás dela havia um menino, mais velho e com olhos

mais escuros que a menina, mas obviamente filho daquela mulher.

Maureen compreendeu, naquele momento inexplicável, que era a única

pessoa que podia ajudar a estranha majestosa e sofredora e seus filhos.

Um fluxo de intensa confusão, acompanhado por alguma coisa muito

parecida com pesar, sucedeu-se a essa compreensão.

Depois, a multidão tornou a arremeter, engolfando Maureen num

mar de suor e desespero.

Maureen piscou várias vezes. Fechou os olhos com força, por

alguns segundos. Sacudiu a cabeça vigorosamente, para clarear a visão,

sem saber a princípio onde se encontrava. Um olhar para o jeans, a

mochila de microfibra e o tênis Nike proporcionou-lhe a garantia de que se

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encontrava à beira do século XXI. Ao seu redor, a agitação da Cidade

Velha também era intensa, mas as pessoas vestiam roupas

contemporâneas e os sons agora eram diferentes. A rádio Jordão

transmitia uma canção americana — seria “Losing My Religion”, do REM?

— de uma loja no outro lado da rua. Um adolescente palestino

tamborilava o ritmo no balcão. Sorriu para ela, sem perder a marcação.

Maureen levantou-se e tentou se livrar da visão... se é que fora

mesmo isso. Não tinha certeza do que fora nem podia se permitir pensar

a respeito. Sua estada em Jerusalém era curta e tinha dois mil anos de

cenários para visitar. Acionou a disciplina de jornalista e a experiência da

vida inteira de controle de suas emoções. Tratou de arquivar a visão em

assuntos a serem pesquisados, para análise posterior, e recomeçou a

andar.

Descobriu-se no meio de um enxame de turistas britânicos que

contornaram a esquina, levados por um guia que usava o colarinho de

sacerdote anglicano. Ele anunciou para seu grupo de peregrinos que se

aproximavam do local mais sagrado da Cristandade, a Basílica do

Santo Sepulcro.

Maureen sabia, por sua pesquisa, que as Estações da Cruz que

restavam ficavam dentro daquele prédio reverenciado. A basílica

ocupava vários quarteirões, inclusive o local da crucificação. A construção

começara quando a imperatriz Helena jurara proteger esse lugar

sagrado, no século IV. Helena, a mãe do imperador romano Constantino,

fora mais tarde canonizada por seus esforços.

Maureen aproximou-se da vasta entrada devagar, com alguma

hesitação. Ao parar no limiar, compreendeu que não entrava numa igreja

de verdade havia muitos anos. Não gostou da perspectiva. Lembrou a si

mesma, com a devida firmeza, que a pesquisa que a trouxera a Israel era

acadêmica, não espiritual. Enquanto se mantivesse concentrada nesse

aspecto da questão, não teria qualquer problema. Poderia passar por

aquelas portas.

Apesar de sua relutância, ela teve de admitir que havia alguma

coisa naquele colossal santuário que inspirava reverência, um ambiente

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magnético. Enquanto passava pela entrada enorme, ela ouviu as palavras

do sacerdote britânico:

— Dentro destas paredes, vocês verão onde Nosso Senhor fez o

supremo sacrifício. Onde ele foi despojado de sua túnica e pregado na

cruz. Entrarão na tumba sagrada em que seu corpo foi sepultado. Meus

irmãos e irmãs em Cristo, depois de entrarem aqui, suas vidas nunca

mais serão as mesmas.

O cheiro intenso e inconfundível do incenso chamado olíbano

envolveu Maureen quando ela entrou. Peregrinos de todas as áreas da

Cristandade espalhavam-se pelos vastos espaços da basílica. Ela passou

por um grupo de sacerdotes coptas empenhados numa discussão

reverente, as vozes abafadas. Observou um clérigo ortodoxo grego

acender uma vela numa das pequenas capelas. Um coro masculino

cantava em dialeto oriental, um som exótico para ouvidos ocidentais, o

hino se elevando de algum lugar secreto dentro da basílica.

Maureen concentrava-se em absorver as imagens e sons daquele

lugar sagrado, atordoada com a sobrecarga sensorial. Não notou a

aproximação do homem pequeno, magro e forte, até que ele bateu em

seu ombro, provocando um sobressalto.

— Desculpe, moça. Desculpe, Srta. Mo-ree.

Ele falava inglês. Ao contrário do enigmático Mahmoud, no entanto,

seu sotaque era carregado. Sua habilidade com o idioma de Maureen era

rudimentar, na melhor das hipóteses; por isso ela não entendeu a

princípio que o homem a chamava pelo primeiro nome. Ele repetiu.

— Mo-ree. Seu nome. É Mo-ree, não é?

Maureen estava perplexa, tentando determinar se o

estranho homenzinho a chamava mesmo pelo seu nome e, se

chamava, como o conhecia. Estava em Jerusalém havia menos de

vinte e quatro horas e ninguém na cidade sabia seu nome, exceto o

recepcionista do King David Hotel. Mas aquele homem era

impaciente e perguntou de novo:

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— Mo-ree. Você é Mo-ree. Escritora. Você escreve, não é? Mo-ree?

Maureen acenou com a cabeça em confirmação, lentamente.

— Isso mesmo. Meu nome é Maureen. Mas como... como você

sabia?

O homem ignorou a pergunta. Pegou-a pela mão e puxou-a

através da igreja.

— Não há tempo, não há tempo. Venha. Esperamos muito

tempo por você. Venha, venha.

Para um homem tão pequeno — era mais baixo até do que

Maureen —, ele se movia com bastante rapidez. As pernas curtas

impulsionaram-no pelo interior da basílica, passando pelo lugar em

que os peregrinos esperavam para serem admitidos na tumba de

Cristo. Ele continuou a andar, até alcançar um pequeno altar no

fundo da basílica, onde parou abruptamente. A área era dominada

por uma escultura de bronze em tamanho natural de uma mulher

com os braços estendidos para um homem, numa pose

suplicante.

— Capela de Maria Madalena... Madalena... Veio por causa dela,

não é? Não é?

Maureen tornou a acenar com a cabeça, cautelosa, olhando

para a escultura. Uma placa informava:

NESTE LUGAR,

MARIA MADALENA FOI A PRIMEIRA

A VER A ASCENSÃO DO SENHOR.

Ela leu em voz alta a citação de outra placa, abaixo do bronze:

— “Mulher, por que chora? A quem procura?”

Maureen teve pouco tempo para refletir sobre a pergunta,

pois o estranho homenzinho puxava-a de novo, seguindo

apressado, em seus passos improváveis, para outro canto escuro da

basílica.

— Venha, venha.

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Contornaram uma esquina e pararam na frente de um

quadro, um retrato grande e antigo de uma mulher. O tempo, o

incenso e séculos de resíduos de velas oleosas haviam impresso seu

tributo sobre a obra de arte. Para ver melhor, Maureen teve de chegar

mais perto do quadro escuro, os olhos contraídos. O homenzinho

explicou, numa voz subitamente muito séria:

— Quadro muito antigo. Grego. Pode me entender? GREGO. Mais

importante, da Senhora. Ela precisa que você conte sua história. E por

isso que veio até aqui, Mo-ree. Esperamos há muito tempo por você. ELA

esperou. Por você. Sim?

Maureen olhou atentamente para o quadro, um retrato antigo de

uma mulher usando um manto vermelho. Virou-se para o homenzinho,

com a maior curiosidade sobre o lugar para onde ele queria levá-la. Mas

ele não estava mais ali... desaparecera tão depressa quanto havia surgido.

— Espere!

O grito de Maureen ressoou pela câmara de eco da vasta basílica. Mas

ela não obteve resposta. Tornou a concentrar sua atenção no quadro.

Ao se inclinar em sua direção, verificou que a mulher usava um

anel na mão direita, um disco de cobre redondo, com um padrão de nove

círculos em torno de uma esfera central.

Maureen levantou sua mão direita, a fim de comparar o anel que

acabara de ganhar com o que aparecia no quadro.

Os anéis eram idênticos.

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... Muito será dito e escrito, nos tempos que virão, sobre Simão, o

Pescador de Homens. De como ele foi chamado de pedra, Pedro, por Easa e

por mim, enquanto os outros chamavam-no de Cefas, o que era natural na

língua que falavam. E, se a história se propuser justa, dirá como ele amou

Easa com intensidade e lealdade incomparáveis.

E muito se tem dito, assim me contaram, sobre meu relacionamento

com Simão-Pedro. Há aqueles que nos chamavam de adversários, de

inimigos. Querem acreditar que Pedro me desprezava e que disputávamos a

atenção de Easa em todas as ocasiões. E há aqueles que diriam que Pedro

odiava as mulheres... essa é, porém, uma acusação que não pode ser

atribuída a nenhum dos seguidores de Easa. Saibam que nenhum homem

que seguiu Easa jamais menosprezou uma mulher ou subestimou seu

valor nos desígnios de Deus. Qualquer homem que faz isso e alega ter Easa

como mestre está proferindo uma mentira.

São inverídicas tais acusações contra Pedro. Aqueles que

testemunharam as críticas a mim dirigidas por Pedro desconhecem nossa

história, ou de que fontes se originaram suas explosões. Contudo eu

compreendo e nunca o julgarei. Isso, acima de todo o resto, é fruto daquilo

que Easa me ensinou... e espero que aos outros ele também tenha ensinado.

Não julgar.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO DOIS

Los Angeles

Outubro de 2004

— Vamos começar do alto. Maria Antonieta nunca disse: “Se eles

não têm pão, que comam brioche.” Lucrécia Bórgia nunca envenenou

ninguém. E Maria I, da Escócia, não era uma prostituta assassina. Ao

repararmos esses erros, damos o primeiro passo para restituir às

mulheres seu lugar apropriado e respeitável na história... um lugar que foi

usurpado por gerações de historiadores com uma agenda política.

Maureen fez uma pausa, enquanto murmúrios de aprovação

espalhavam-se pela platéia de estudantes. Falar para uma nova turma era

quase como uma noite de estréia no teatro. O sucesso do desempenho

inicial determinava o impacto a longo prazo de todo o curso.

— Ao longo das próximas semanas, vamos examinar as vidas de

algumas das mulheres mais infames na história e na lenda. Mulheres

com histórias que deixaram uma marca indelével na evolução da

sociedade e do pensamento moderno; mulheres que foram

dramaticamente incompreendidas e mal retratadas pelas pessoas que

estabeleceram a história do mundo ocidental, ao registrarem suas

opiniões no papel.

Maureen estava concentrada e relutante em parar para perguntas

tão cedo, mas um jovem estudante acenava com a mão da primeira fila

desde que ela começara a falar. Parecia muito ansioso; afora isso, porém,

não havia nada de extraordinário em sua aparência. Amigo ou inimigo?

Admirador ou fundamentalista? Havia sempre esse risco. Maureen deu-lhe

a palavra, sabendo que ele distrairia a sua atenção enquanto não o

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fizesse.

— Considera que essa é uma visão feminista da história?

Era só isso? Maureen relaxou um pouco, enquanto respondia à

pergunta familiar:

— Considero que é uma visão honesta da história. Não trato do

assunto com qualquer outro interesse que não a busca da verdade.

Mas ela ainda não se livrara do importuno.

— Pois me parece uma visão contra os homens.

— Nem um pouco. Adoro os homens. Acho que toda mulher devia

ter um.

Maureen fez uma pausa, para permitir o riso das mulheres.

— Estou brincando. Meu objetivo era o de recuperar o equilíbrio,

analisando a história com olhos modernos. Você leva sua vida da

mesma maneira como as pessoas viviam há mil e seiscentos anos? Não.

Então, por que leis, convicções e interpretações históricas

determinadas na Idade Média devem reger a maneira como vivemos no

século XXI? Não faz o menor sentido.

O estudante declarou:

— Mas é por isso que estou aqui, para descobrir o que

realmente acontece.

— Ótimo. Neste caso, aplaudo sua presença. Só peço que

mantenha a mente aberta. Na verdade, quero que todos parem o que

estão fazendo, levantem a mão direita e façam o seguinte juramento.

Os estudantes do curso noturno trocaram murmúrios outra

vez. Sorriram e deram de ombros uns para os outros, querendo

determinar se ela falava mesmo sério. A professora, escritora de sucesso e

jornalista respeitada, mantinha-se de pé na frente deles, com a mão

direita levantada e uma expressão de expectativa.

— Vamos — encorajou. — Levantem a mão e repitam o que eu

disser.

Os estudantes levantaram a mão, esperando por sua deixa.

— Juro solenemente, como um estudante sério de história —

Mauree fez uma pausa, enquanto os estudantes repetiam, obedientes —,

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lembrar em todas as ocasiões que as palavras registradas no papel foram

escritas por seres humanos.

Outra pausa, para a repetição dos estudantes.

— E como todos os seres humanos são regidos por suas emoções,

opiniões, filiações políticas e religiosas, toda a história inclui tanto

opinião quanto fato e em muitos casos foi inteiramente fabricada para

promover as ambições pessoais ou as intenções secretas de quem a

escreveu.

Outra pausa.

— Juro solenemente manter minha mente aberta em cada

momento em que estiver sentado nesta sala. Aqui está o nosso grito de

batalha. A história não é o que aconteceu. A história é o que foi escrito.

Ela levantou um livro de capa dura que estava no pódio à sua

frente, mostrando para a turma.

— Todos já possuem um exemplar deste livro?

Acenos de cabeça e murmúrios de confirmação foram a resposta. O

livro na mão de Maureen era sua controvertida obra, HERstory — Uma

defesa das heroínas mais odiadas da história. Era o motivo pelo qual ela

lotava as salas de aula e os auditórios cada vez que decidia dar um curso

ou fazer uma conferência.

— Começaremos esta noite com uma análise das mulheres do

Antigo Testamento, ancestrais das tradições judaica e cristã. Na próxima

semana, faremos a transição para o Novo Testamento, concentrando a

maior parte da sessão em uma única mulher... Maria Madalena.

Examinaremos as diferentes fontes e referências sobre sua vida, tanto

como mulher quanto como discípula de Cristo. Por favor, leiam os

capítulos correspondentes, em preparação para as discussões a respeito.

Maureen fez uma pausa.

— Também teremos um convidado especial, o Dr. Peter Healy, que

alguns de vocês já conhecem de nosso programa de extensão em Ciências

Humanas. Para aqueles que ainda não foram bastante afortunados para

comparecer a uma das aulas do nosso bom Dr. Healy, devo acrescentar

que ele é também o padre Healy, um estudioso jesuíta, um especialista

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internacionalmente aclamado por seus estudos bíblicos.

O estudante persistente na primeira fila levantou a mão outra vez

e foi logo perguntando, sem esperar que Maureen lhe concedesse a palavra:

— Não tem uma relação especial com o Dr. Healy?

Maureen acenou com a cabeça em confirmação.

— O Dr. Healy é meu primo.

Ela olhou para os outros estudantes e acrescentou:

— Ele nos dará a perspectiva da Igreja sobre o relacionamento

de Maria Madalena com Cristo e revelará como as percepções evoluíram

ao longo de dois mil anos. — Maureen estava ansiosa em voltar ao que

dizia antes e encerrar o mais depressa possível aquela tergiversação. —

Será uma boa noite. Tentem não perdê-la. Mas esta noite vamos começar

por uma de nossas mães ancestrais. Quando tomamos conhecimento

de Betsabá, ela está “purificando-se de sua impureza”...

Maureen saiu apressada da sala, pedindo desculpas e jurando que

ficaria depois da aula na semana seguinte. Em circunstâncias normais,

teria permanecido na sala pelo menos por mais meia hora, conversando

com o grupo que inevitavelmente ficava por ali. Adorava aquele tempo

com os alunos, talvez ainda mais do que as aulas. Afinal, os que

permaneciam na sala eram aqueles que tinham afinidades. Eram os

estudantes que faziam com que continuasse. Não precisava da

remuneração insignificante que o curso de extensão lhe proporcionava.

Dava aulas porque adorava o contato e o estímulo de partilhar suas

teorias com pessoas curiosas e de mentalidade aberta.

Os saltos ressoando ritmados pela calçada, Maureen acelerou os

passos, seguindo pelas ruas arborizadas no norte do campus. Não

queria perder Peter, não naquela noite. Irritou-se com seu senso de

elegância, desejando estar usando calçados mais apropriados para a

quase corrida até a sala de Peter, antes de sua saída. Como sempre,

vestia-se de forma impecável. Dedicava às roupas o mesmo cuidado

meticuloso que dispensava a todos os outros detalhes de sua vida. O

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tailleur de grife ajustava-se ao corpo pequeno com perfeição, a cor de

floresta realçava seus olhos verdes. Os sapatos de saltos altos de Manolo

Blahnik acrescentavam um toque de ousadia ao traje, afora isso,

conservador... e alguma altura a seu corpo de pouco mais de metro e

meio. Eram justamente os Manolo que constituíam a fonte de sua atual

frustração. Ela considerou por um instante a possibilidade de tirá-los.

Por favor, não saia daí. Por favor, espere até minha chegada. Maureen

projetou o pensamento em Peter, enquanto andava. Havia uma

estranha ligação entre os dois, desde crianças. Ela esperava agora que

Peter pudesse sentir como precisava desesperadamente falar com ele.

Maureen tentara antes ligar para o primo por meios mais convencionais,

mas fora em vão. Peter detestava celulares e não tinha um, apesar de

suas muitas súplicas ao longo dos anos. Além disso, recusava-se a

atender na extensão em sua sala, se estava absorvido no trabalho.

Ela acabou tirando os incômodos sapatos e guardou-os na enorme

bolsa de couro pendurada no ombro, enquanto corria na etapa final para

seu destino. Prendeu a respiração ao virar a esquina, levantou os olhos

para as janelas do segundo andar e contou da esquerda para a direita.

Deixou escapar um suspiro de alívio ao ver a luz acesa na quarta janela.

Peter ainda estava lá.

Maureen subiu a escada devagar, ganhando tempo para recuperar

o fôlego. Virou à esquerda no corredor e parou ao alcançar a quarta porta

à direita. Peter estava sentado à sua mesa, examinando com uma lupa

um manuscrito amarelado. Sentiu sua presença antes de vê-la na porta.

Ao levantar os olhos, seu rosto se desmanchou num sorriso acolhedor.

— Maureen! Que surpresa maravilhosa! Não esperava vê-la esta

noite.

— Oi, Pete — murmurou ela, no mesmo tom afetuoso,

contornando a mesa para um abraço intenso. — Fico contente que

ainda esteja aqui... fiquei com medo de que já tivesse ido embora e

precisava desesperadamente falar com você.

Ele alteou uma sobrancelha e refletiu por um longo momento,

antes de responder:

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— Em circunstâncias normais, eu já teria ido embora há horas.

Mas senti-me compelido a trabalhar até mais tarde esta noite, por

alguma razão que não entendi direito... até agora.

O padre Healy deu de ombros, com um sorriso jovial e sugestivo.

Maureen retribuiu com o mesmo sorriso. Nunca fora capaz de explicar

em qualquer nível lógico a ligação que tinha com o primo mais velho. Mas

desde o dia em que chegara à Irlanda, quando menina, eram íntimos

como gêmeos, partilhando uma fantástica capacidade de se

comunicarem sem palavras.

Maureen enfiou a mão na bolsa e tirou um saco plástico de

compras azul, do tipo usado por importadoras no mundo inteiro.

Continha uma caixa retangular pequena, que ela estendeu para o padre.

— Ah, Lyon's Gold Label! Uma grande escolha. Ainda não consigo

suportar o chá americano.

Maureen fez uma careta e estremeceu, para indicar sua aversão

partilhada.

— Água de pântano.

— Creio que a chaleira já está cheia de água. Basta ligar e daqui

a pouco tomaremos um chá.

Maureen sorriu, enquanto observava Peter levantar-se da velha

cadeira de couro que ganhara da universidade. Ao aceitar o cargo

no Departamento de Extensão de Ciências Humanas, o estimado Dr.

Peter Healy recebera uma sala com janela. Os móveis eram modernos,

com mesa e cadeira novas e funcionais. Peter detestava o funcional em

matéria de mobília, mas detestava ainda mais o moderno. Usando o seu

charme gaélico como uma força irresistível, ele conseguira atiçar o estafe,

em geral impassível, para uma atividade frenética. Era um sósia do ator

irlandês Gabriel Byrne, uma aparência que nunca deixava de atrair as

mulheres, com ou sem o colarinho clerical. Os funcionários procuraram em

porões e salas de aula em desuso, até encontrarem exatamente o que ele

procurava, uma cadeira de couro de encosto alto, bastante confortável, e

uma mesa de madeira que pelo menos parecia antiga. Os confortos

modernos na sala eram de sua escolha: a pequena geladeira no canto, atrás

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da mesa, uma pequena chaleira elétrica para ferver água e o telefone, que

costumava ignorar.

Maureen sentia-se mais relaxada agora, enquanto o observava,

segura na presença de um parente próximo, absorvida na arte

tranqüilizante e absolutamente irlandesa de fazer chá.

Peter voltou até a mesa e inclinou-se para a pequena geladeira no

canto. Tirou uma caixa de leite pequena e pôs ao lado do açucareiro branco

e rosa, em cima da geladeira.

— Há uma colher em algum lugar... ah, aqui está!

A chaleira começou a apitar, indicando que a água estava prestes a

ferver.

— Pode deixar que eu faço o chá — ofereceu Maureen.

Ela levantou-se e pegou a caixa de chá na mesa de Peter. Abriu o

lacre de plástico com a ponta da unha. Tirou dois saquinhos redondos

e largou-os em canecas diferentes, manchadas de chá. Os estereótipos

sobre os irlandeses e o álcool eram um exagero dramático, na perspectiva

de Maureen; o verdadeiro vício irlandês era o chá.

Ela terminou os preparativos com a devida eficiência e entregou

uma caneca fumegante ao primo. Foi se sentar na cadeira na frente da

mesa. Com sua caneca na mão, Maureen tomou um gole do chá, calada,

sentindo que os benevolentes olhos azuis de Peter a contemplavam.

Depois de se apressar para encontrá-lo, não sabia por onde começar. Foi o

padre quem acabou rompendo o silêncio.

— Quer dizer que ela voltou?

Maureen deixou escapar um suspiro de alívio. Nos momentos em

que pensava alcançar os limites extremos da sanidade, Peter estava ali

para ajudá-la: primo, padre, amigo.

— Isso mesmo — balbuciou ela, com uma inarticulação inesperada.

Ela voltou.

Peter revirava-se na cama, irrequieto, incapaz de dormir. A conversa

com Maureen perturbara-o mais do que a deixara perceber. Estava

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preocupado com ela, tanto como seu parente vivo mais próximo quanto

como seu conselheiro espiritual. Sabia que os sonhos voltavam de maneira

inesperada e persistente e vinha ganhando tempo, à espera do dia em que

teria de agir.

Quando voltara da Terra Santa, Maureen sentia-se perturbada

pelos sonhos com uma mulher imponente e sofredora, que vira em

Jerusalém. Os sonhos eram sempre iguais: ela estava no meio da

multidão na Via Dolorosa. De vez em quando, um sonho podia conter

pequenas variações ou um detalhe adicional, mas sempre projetavam

um sentimento de profundo desespero. Era essa intensidade vivida que

perturbava Peter, a autenticidade nas descrições de Maureen. Era

intangível, uma coisa desencadeada pela própria Terra Santa, um

sentimento que Peter experimentara pela primeira vez quando estudava

em Jerusalém. Era uma sensação de estar muito próximo do antigo... e

do Divino.

Depois de voltar da Terra Santa, Maureen passara muitas horas

em ligações internacionais com Peter, que na ocasião era professor na

Irlanda. Ele começara a questionar a sanidade de Maureen. A intensidade

e freqüência dos sonhos deixavam-no angustiado. Pedira uma

transferência para Loyola, sabendo que seria concedida imediatamente,

e embarcara num avião para Los Angeles, a fim de ficar perto da prima.

Quatro anos depois, ele lutava contra seus pensamentos e sua

consciência, sem saber a melhor maneira de ajudar Maureen. Queria

levá-la para encontros com alguns de seus superiores na Igreja, mas sabia

que a prima nunca concordaria com isso. Peter era o único elo que ainda se

permitia ter com sua criação católica. E só confiava nele porque era da

família... e porque era a única pessoa em sua vida que nunca a

decepcionara.

Peter se sentou na cama, aceitando a certeza de que o sono

continuaria a se esquivar dele pelo resto daquela noite... e tentando não

pensar no maço de Marlboro na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Tentava

se livrar daquele péssimo hábito... e isso fora um dos motivos pelos quais

optara por morar sozinho num apartamento, em vez de partilhar a

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residência dos jesuítas. O estresse era demais naquele momento e ele

acabou cedendo ao impulso para o pecado. Acendeu um cigarro, deu uma

tragada profunda e refletiu sobre os problemas com que Maureen se

defrontava.

Sempre houvera alguma coisa especial naquela pequena e

dinâmica prima americana. Quando chegara à Irlanda com a mãe, era

uma criança de sete anos assustada e solitária, tinha o sotaque do sul

dos Estados Unidos. Oito anos mais velho, Peter a tomara sob sua

proteção, apresentando-a às crianças da aldeia... e proporcionando olhos

roxos a qualquer um que ousasse zombar da recém-chegada de sotaque

engraçado.

Mas não levara muito tempo para que Maureen assimilasse o

ambiente. Curara-se rapidamente dos traumas de seu passado na

Louisiana, enquanto as neblinas da Irlanda a envolviam, acolhedoras.

Encontrava refúgio nos campos, por onde dava longos passeios, levada

por Peter e suas irmãs, que mostravam a beleza do rio e advertiam-na para

os perigos das areias movediças no pântano. Os longos dias de verão eram

consumidos na colheita de amoras silvestres na fazenda da família e nas

partidas de futebol, até o sol se pôr no horizonte. Com o passar do tempo,

as crianças locais passaram a aceitá-la, à medida que ela se tornava mais

segura no ambiente e permitia que sua verdadeira personalidade aflorasse.

Peter muitas vezes especulara sobre a definição da palavra carisma,

tal qual era usada no contexto sobrenatural dos primeiros tempos da

Igreja: carisma, uma dádiva ou poder de concessão divina. Talvez se

aplicasse a Maureen de maneira mais literal e profunda do que qualquer

um dos dois jamais concebera. Ele mantinha um diário de suas

conversas com Maureen, desde aqueles primeiros telefonemas

internacionais, onde registrava suas próprias percepções sobre o

significado dos sonhos. E orava todos os dias por orientação... se

Maureen fora escolhida por Deus para desempenhar alguma missão

relacionada à Paixão, e ele tinha cada vez mais certeza de que era esse

período que ela testemunhava em seus sonhos, Peter precisaria do

máximo de orientação de seu Criador. E de sua Igreja.

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Le Château des Pommes Bleues

Languedoc, região da França

Outubro de 2004

— Marie de Nègre escolherá quando chegar o momento de A

Escolhida. Ela que nasceu do Cordeiro Pascal, quando o dia e a noite são

iguais, ela que é filha da Ressurreição. Ela que carrega o Sangre-el receberá

a chave, ao contemplar o Dia Tenebroso do Crânio. Ela se tornará a nova

Pastora e nos mostrará O Caminho.

Lorde Berenger Sinclair andava de um lado para outro do assoalho

envernizado de sua biblioteca. As chamas na enorme lareira de pedra

projetavam uma claridade dourada numa coleção de livros e manuscritos

de valor inestimável. Um estandarte esfarrapado pendia numa vitrine

que se estendia por toda a extensão da enorme lareira. Outrora branco, o

tecido amarelado tinha uma flor-de-lis dourada, bastante desbotada. O

nome composto Jhesus-Maria estava bordado na entretela, mas só era

visível para os poucos que tinham a oportunidade de se aproximar

daquela relíquia.

Sinclair recitou a profecia em voz alta, de cor, o ligeiro sotaque esco-

cês prolongando os erres. Conhecia aquelas palavras havia muito tempo.

Aprendera-as sentado no colo do avô, quando era pequeno. Não

compreendia o significado das frases naquele tempo. Era apenas um jogo

de memorização que fazia com o avô, quando passava o verão na vasta

propriedade da família na França.

Ele parou de andar para se postar diante de uma linhagem

extraordinária. Uma árvore genealógica, estendendo-se ao longo de

séculos, estava pintada na parede do chão ao teto, por toda a sua

extensão. Um imponente mural exibia a história dos ancestrais de

Berenger.

Aquele ramo da família Sinclair era um dos mais antigos da

Europa. Originalmente chamada Saint Clair, a família fora expulsa do

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território continental da Europa e fora se refugiar na Escócia, no século

XIII. Ali, o sobrenome fora mais tarde anglicizado para sua forma atual.

Os ancestrais de Berenger eram alguns dos personagens mais ilustres da

história britânica, incluindo Jaime I, da Inglaterra, e aquela infame

rainha-mãe Maria I, da Escócia.

A influente, prática e perceptiva família Sinclair conseguira sobreviver

a guerras civis e convulsões políticas na Escócia, atuando nos dois lados

da coroa, ao longo da tumultuada história do país. Capitão de

indústria no século XX, o avô de Berenger acumulara uma das maiores

fortunas da Europa, com a fundação da companhia North Sea Oil, para

explorar petróleo no mar do Norte. Várias vezes bilionário e um par do

reino, com assento na Câmara dos Lordes, Alistair Sinclair tinha tudo o

que qualquer homem podia pedir. Mas permanecera irrequieto e

insatisfeito, alguém que procurava alguma coisa que sua fortuna não

podia comprar.

O avô Alistair tornara-se obcecado pela França. Comprara um

enorme castelo nos arredores da aldeia de Arques, na rude e misteriosa

região sudoeste, conhecida como o Languedoc. Dera à sua nova

residência o nome de “Château des Pommes Bleues”, o Castelo das Maçãs

Azuis, por motivos que só eram conhecidos de uns poucos iniciados.

O Languedoc era uma região montanhosa, dominada pelo

misticismo. As lendas locais de tesouros enterrados e cavaleiros

misteriosos remontavam a milhares de anos. Alistair Sinclair tornara-se

um estudioso do folclore do Languedoc, comprando tanta terra na região

quanto podia adquirir, procurando com uma urgência crescente pelo

tesouro que acreditava estar enterrado na região. Só que o tesouro que ele

procurava ali tinha pouco a ver com ouro ou riquezas, coisas que Alistair

já possuía em abundância. Era algo muito mais valioso para ele, para sua

família e para o mundo. A medida que envelhecia, ele passava cada vez

menos tempo na Escócia. Só se sentia feliz quando estava ali, nas

montanhas vermelhas e selvagens do Languedoc. Insistia que o neto o

acompanhasse nos verões. Incutira no pequeno Berenger a mesma paixão,

verdadeira obsessão, pela região mítica.

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Agora, um homem na casa dos quarenta anos, Berenger Sinclair

parou de andar mais uma vez, ficando na frente de um enorme retrato

do avô. As feições angulosas e pronunciadas, os cabelos crespos escuros e

olhos intensos faziam com que ele experimentasse a sensação de olhar

para um espelho.

— Parece muito com ele, monsieur. Mais e mais parecido, sob

muitos aspectos, a cada dia que passa.

Sinclair virou-se para seu corpulento empregado, Roland. Para um

homem tão grande, ele era furtivo a um ponto excepcional e muitas

vezes parecia surgir do nada.

— E isso é bom? — indagou Berenger, irônico.

— Claro. Monsieur Alistair era um homem extraordinário, muito

amado pelos habitantes das aldeias. E por meu pai... e por mim.

Sinclair balançou a cabeça, com um pequeno sorriso. Era de

esperar que Roland dissesse aquilo. O gigante francês era um filho do

Languedoc. O pai dele pertencia a uma família local, com raízes

profundas no solo legendário. Fora o mordomo de Alistair no castelo.

Roland fora criado ali. Compreendia a família Sinclair e suas excêntricas

obsessões. Com a morte súbita do pai, Roland assumira seu lugar no

Château des Pommes Bleues. Era uma das pouquíssimas pessoas no

mundo em que Berenger Sinclair confiava.

— Se não se importa que eu diga, estávamos trabalhando no

outro lado do saguão e ouvimos o que disse... Jean Claude e eu. As

palavras da profecia. — Ele fitou Sinclair com uma expressão inquisitiva:

— Alguma coisa errada?

Sinclair atravessou a sala até a enorme mesa de mogno que

dominava a parede no outro lado.

— Não, Roland. Não há nada errado. Na verdade, acho que as

coisas podem finalmente estar muito certas.

Ele pegou um livro em cima da mesa. Mostrou a capa a Roland. O

título era HERSTORY. O subtítulo dizia: UMA DEFESA DAS HEROÍNAS

MAIS ODIADAS DA HISTÓRIA.

Roland pegou o livro e ficou olhando, perplexo.

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— Não estou entendendo.

— Vire o livro. Dê uma olhada na mulher.

Roland virou o livro para ver a foto na quarta capa, com a legenda:

AUTORA — MAUREEN PASCHAL.

Era uma ruiva atraente, na casa dos trinta anos. Posara para a

foto com as mãos no encosto de uma cadeira à sua frente. Sinclair

passou a mão pela foto, apontando para as mãos da autora. No dedo

anular direito, pequeno mas visível, estava o antigo anel de cobre de

Jerusalém, com seu padrão planetário. Roland levantou os olhos do

livro, com um sobressalto.

— Sacré bleu!

— É isso mesmo — murmurou Sinclair. — Ou talvez, seja mais

apropriado dizer outra coisa: Sacré rouge.

Os dois foram interrompidos por uma presença na porta. Jean

Claude de la Motte, membro de confiança do círculo íntimo do Château

des Pommes Bleues, olhava para seus companheiros, inquisitivo:

— O que aconteceu?

Sinclair gesticulou para que Jean Claude entrasse.

— Nada... ainda. Mas quero que me diga o que acha disso.

Roland entregou o livro a Jean Claude e apontou para o anel na

mão da autora, na foto na quarta capa.

Jean Claude tirou os óculos de leitura do bolso e ajeitou-os no

rosto. Examinou a foto por um momento, antes de perguntar, quase

num sussurro:

— A Escolhida?

Sinclair riu.

— Isso mesmo, meus amigos. Depois de tantos anos, acho que

podemos finalmente ter encontrado nossa Pastora.

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... Percebo Pedro em minhas mais antigas lembranças, pois seu

pai e o meu eram amigos. Havia um forte vínculo entre ele e meu

irmão. O templo em Cafarnaum era próximo à casa do pai de Simão-

Pedro, lugar que com freqüência visitávamos quando éramos crianças.

Recordo-me de brincar ali, na praia. Por ser muito menor que os

meninos, não eram poucas as vezes que o fazia na solitude. Porém o

som de suas risadas, enquanto brincavam de luta, é algo que ainda

povoa minhas recordações.

Pedro costumava ser o mais austero dos meninos, enquanto seu

irmão André tinha um coração mais alegre. Ambos eram bem-

humorados, quando pequenos. Porém, após a partida de Easa, os dois

irmãos perderam por completo a jovialidade. Não devotavam quase

paciência alguma àqueles entre nós que se apegavam à leveza de

espírito para sobreviver.

Pedro guardava muita semelhança com meu irmão, na medida em

que adotou postura de total seriedade em relação às responsabilidades

de família, ao ingressar na vida adulta. Transferiu esse senso de

responsabilidade para os ensinamentos sobre O Caminho. Era dotado

de uma tal força e tal determinação que só encontravam comparação

entre os próprios mestres... e por isso nele depositavam tanta confiança.

Contudo, por mais que Easa lhe ensinasse, Pedro lutava contra sua

própria natureza com mais empenho e intensidade do que a maioria

das pessoas jamais saberia. Creio que ele renunciou a mais do que os

outros no firme propósito de seguir O Caminho, tal qual foi ensinado...

exigia mais de Pedro, mais mudanças internas. Pedro foi

incompreendido e houve quem lhe quisesse mal. Embora não seja esse

o meu caso.

Amei Pedro e nele confiei. Como se fosse ele meu filho mais velho.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPÍTULO TRÊS

McLean, Virgínia

Março de 2005

McLean, no estado da Virgínia, é um lugar eclético, uma estranha

mistura de comunidade suburbana política e próspera. Perto da Beltway

a rodovia de contorno da cidade de Washington, fica entre o quartel-

general da CIA e Tyson's Corner, um dos maiores e mais prestigiosos

centros comerciais dos Estados Unidos. McLean não é uma comunidade

suburbana conhecida por sua espiritualidade. Pelo menos não para a

maioria das pessoas.

Maureen Paschal não estava nem um pouco preocupada com

questões sagradas enquanto guiava o Ford Taurus alugado, a caminho

do McLean Ritz Carlton. A agenda da manhã seguinte seria movimentada:

uma reunião no café da manhã com a Liga das Escritoras do Leste, seguida

por uma manhã de autógrafos numa enorme livraria em Tyson's Corner.

Assim, teria a maior parte da tarde de sábado só para si. O que era

perfeito. Poderia sair para uma exploração, como sempre fazia quando se

encontrava numa nova cidade. Não importava se o lugar era pequeno ou

rural; se Maureen nunca tivesse estado antes, sempre era fascinante. Ela

nunca deixava de encontrar a característica especial de cada cidade que

visitava, o que a tornava única em sua memória. Amanhã, ela descobriria

o que distinguia McLean de todos os outros lugares.

O check-in foi fácil, pois a editora cuidara de tudo. Maureen só teve

de assinar e pegar a chave. Subiu no elevador e foi para o quarto elegante.

Ali, submeteu-se à sua necessidade de ordem, arrumando a bagagem e

verificando até que ponto as roupas estavam amarrotadas.

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Maureen adorava os hotéis de luxo como todo o mundo, ela

supunha. Seu comportamento, no entanto, era o de uma criança

quando se hospedava em um. Fez uma inspeção meticulosa das

instalações, verificou o que havia no minibar, passou a mão pelo

suntuoso roupão com o logotipo do hotel pendurado atrás da porta do

banheiro, sorriu ao ver a extensão do telefone ao lado do vaso.

Jurara que nunca ficaria tão embotada a ponto de deixar de

apreciar esses pequenos privilégios. Talvez aqueles anos de dificuldades,

comendo macarrão instantâneo, cereal e sanduíches de pasta de

amendoim, enquanto a pesquisa devorava o que restava de suas

economias, tivessem sido bons para ela, no final das contas. Ajudavam-na

a apreciar as boas coisas que a vida começava a lhe proporcionar.

Ela correu os olhos pelo quarto espaçoso, sentindo uma breve

pontada de tristeza. Apesar de todos os sucessos recentes, não tinha

ninguém com quem pudesse partilhar suas conquistas. Vivia sozinha;

sempre fora sozinha e talvez continuasse sendo para sempre...

Maureen tratou de banir a autocompaixão tão depressa quanto

surgira. Contava com a maior das distrações para afastar a mente

desses pensamentos desconcertantes. Algumas das lojas mais

fascinantes dos Estados Unidos estavam à sua espera. Maureen pegou a

bolsa, verificou os cartões de crédito e saiu para conhecer a cultura de

Tyson's Corner.

A Liga das Escritoras do Leste realizou seu café da manhã num

salão de conferências do McLean Ritz Carlton. Maureen usava seu

uniforme público: um tailleur clássico de grife, com sapatos de saltos altos.

Ao chegar ao salão, pontualmente às nove horas, ela recusou a comida e

pediu um bule de chá irlandês. Comer antes de uma sessão de perguntas

e respostas nunca lhe parecia uma boa opção. Deixava-a enjoada.

Maureen sentia-se menos nervosa do que o habitual naquela

manhã, já que a mediadora era uma aliada, uma mulher adorável

chamada Jenna Rosenberg, com quem mantivera contato durante várias

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semanas, em preparação para o evento. Em primeiro lugar e acima de

tudo, Jenna era uma admiradora do trabalho da escritora, que podia citar

extensamente. Só isso era suficiente para conquistar Maureen. Além

disso, o cenário montado era de intimidade, com pequenas mesas

agrupadas, de tal forma que Maureen não precisaria de um microfone.

A própria Jenna iniciou a sessão de perguntas e respostas, com

uma indagação óbvia, mas importante:

— O que a inspirou a escrever este livro?

Maureen pousou a xícara na mesa para responder:

— Li uma ocasião que os primeiros textos históricos britânicos

foram traduzidos por uma seita de monges que acreditavam que as

mulheres não tinham alma. Estavam convencidos de que a fonte de

todo mal vinha das mulheres. Esses monges foram os primeiros a alterar

as lendas do rei Artur e do que chamamos de Camelot. Guinevere tornou-

se uma adúltera calculista, em vez de uma poderosa rainha-guerreira.

Morgan Le Fey tornou-se a irmã diabólica de Artur, que o engana para

cometer incesto, em vez da líder espiritual de toda uma nação, como ela

era nas primeiras versões da lenda.

Ela fez uma pausa.

— Essa noção me chocou e me levou a formular a pergunta:

teriam outros retratos de mulheres na história sido registrados com a

mesma distorção? Obviamente, essa perspectiva estende-se ao longo da

história. Comecei a pensar nas muitas mulheres a que poderia se aplicar a

questão e minha pesquisa partiu daí.

Jenna providenciou para que as perguntas partissem de diferentes

mesas. Depois de alguma discussão sobre literatura feminista e questões

de igualdade na edição de livros, a pergunta seguinte foi de uma jovem

com uma pequena cruz de ouro por cima da blusa de seda.

— Para aquelas entre nós que foram criadas num ambiente

tradicional, o capítulo sobre Maria Madalena foi uma revelação. Você

apresenta uma mulher muito diferente da prostituta arrependida. Mas

ainda não tenho certeza se posso aceitá-lo.

Maureen acenou com a cabeça em sinal de compreensão, antes de

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dar sua resposta:

— Até mesmo o Vaticano já admitiu que Maria Madalena não era

uma prostituta e que não se deveria mais ensinar essa mentira, em

particular na escola dominical. Faz mais de trinta anos que o Vaticano

proclamou formalmente que Maria não era a mulher decaída do

evangelho de Lucas e que o papa Gregório, o Grande, criara essa história

para atender a seus propósitos obscurantistas da Idade Média. Mas é

difícil apagar dois milênios de opinião pública. A admissão do erro pelo

Vaticano, na década de 1960, não foi mais do que uma retratação

escondida na última página de um jornal. Com isso, essencialmente,

Maria Madalena torna-se a madrinha das mulheres incompreendidas,

a primeira mulher de grande importância a ter sua vida alterada, de

forma intencional e total, pelos cronistas da história. É uma das

seguidoras mais próximas de Cristo, indiscutivelmente uma

discípula. E, no entanto, foi cortada quase por completo dos

evangelhos.

Jenna interveio, obviamente excitada com o assunto:

— Mas há muita especulação agora sobre Maria Madalena,

inclusive de que ela pode ter tido um relacionamento íntimo com Cristo.

A mulher com a cruz de ouro da pergunta anterior teve um

sobressalto evidente, mas Jenna acrescentou:

— Você não tratou dessas questões em seu livro e eu gostaria de

saber o que acha das teorias.

— Não tratei porque não creio que haja qualquer prova para

apoiar essas alegações... muitos relatos pitorescos, possivelmente

racionalizações, mas sem qualquer prova. Os teólogos concordam nesse

ponto, de um modo geral. Não há nada que eu, como uma jornalista que

se preza, pudesse considerar como um fato e publicar com meu nome.

Mas posso chegar ao ponto de dizer que há documentos autenticados que

insinuam um possível relacionamento íntimo entre Jesus e Maria

Madalena. Um evangelho descoberto no Egito em 1945 diz que “a

companheira do Salvador é Maria Madalena”. Ele a amava mais do que a

todos os outros discípulos e costumava beijá-la na boca com freqüência.

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Maureen fez uma pausa.

— Esses evangelhos, é claro, têm sido questionados pela Igreja

e podem ter sido a versão do século I da revista sensacionalista National

Enquirer, por tudo o que sabemos. Creio que é importante ter muito

cuidado nessas questões e por isso só escrevi sobre o que tenho certeza.

E tenho certeza de que Maria Madalena não era uma prostituta e que

era uma importante seguidora de Jesus. Talvez tenha sido até a mais

importante, pois foi a primeira pessoa que o Senhor em ascensão escolheu

para abençoar com seu aparecimento. Além disso, não estou disposta a

especular sobre seu papel na vida de Cristo. Seria irresponsabilidade.

Maureen respondeu à pergunta com bastante segurança, como

quase sempre fazia. Sempre especulara, contudo, que talvez a queda

de Madalena tivesse ocorrido porque ela era muito próxima do Mestre e

por isso despertara o ciúme dos discípulos, que mais tarde tentaram

desacreditá-la. São Pedro desdenhara Maria Madalena ostensivamente.

Censurava-a nos evangelhos gnósticos, baseados nos documentos do

século II que haviam sido descobertos no Egito. E os últimos textos de

São Paulo pareciam eliminar de forma metódica toda e qualquer referência

à importância das mulheres na vida de Cristo.

Em conseqüência, Maureen consumira muito tempo de pesquisa

para desmontar a doutrina paulina. Paulo, o perseguidor que se tornara

apóstolo, moldara o pensamento cristão com suas observações, apesar da

distância filosófica e literal de Jesus, dos próprios seguidores eleitos do

Salvador e da família. Não tinha um conhecimento direto dos

ensinamentos de Cristo. Um “discípulo” tão misógino, um manipulador

político, dificilmente imortalizaria Maria Madalena como a servidora

mais devotada de Cristo.

Maureen estava determinada a vingar Maria, considerando-a como

o arquétipo da mulher injuriada na história, a mãe das incompreendidas.

Sua história, em essência, se não na forma, repetia-se nas vidas das

outras mulheres que Maureen decidira defender em HerStory. Mas fora

essencial para Maureen manter os capítulos sobre Madalena tão

próximos quanto possível da teoria acadêmica provável. Qualquer

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insinuação sobre uma “nova era” ou uma hipótese sem comprovação a

respeito do relacionamento de Maria com Jesus poderia invalidar o resto

da pesquisa e prejudicar sua credibilidade. Ela era cuidadosa demais em

sua vida particular e profissional para correr esse risco. Apesar de seu

instinto, Maureen rejeitara todas as teorias alternativas sobre Maria

Madalena, optando por se ater aos fatos mais incontestáveis.

Pouco depois de tomar essa decisão, o sonho começara, insistente.

A mão direita sofria uma cãibra intensa e o rosto corria o perigo

imediato de rachar, por causa do sorriso incessante, mas Maureen

continuou a trabalhar. A manhã de autógrafos na livraria deveria durar

duas horas, incluindo um intervalo de vinte minutos. Ela estava agora já

adiantada na terceira hora, sem intervalo, e determinada a continuar a

autografar, até que o último cliente fosse atendido. Maureen nunca seria

capaz de repelir um leitor em potencial. Nunca desprezaria o público

comprador de livros, que transformara seu sonho numa realidade.

Sentia-se satisfeita pela presença de um número relativamente

grande de homens. O assunto do livro indicava uma audiência de

predominância feminina, mas ela esperava ter escrito de uma maneira que

atraísse todos com a mente aberta e algum bom senso. Embora seu

objetivo principal fosse reparar os erros sofridos por mulheres

poderosas, como vítimas dos homens que escreviam a história, o tempo e

a pesquisa mostravam que a motivação por trás do registro da história no

papel, de uma maneira tão seletiva, fora determinada em grande parte

pelo clima político e religioso. O gênero era um fator secundário.

Explicara isso durante uma recente entrevista na televisão, citando

Maria Antonieta, talvez o exemplo mais claro dessa teoria sociopolítica,

porque os relatos predominantes da Revolução Francesa foram escritos

pelos revolucionários. Embora a rainha atormentada fosse culpada em

geral pelos excessos da monarquia francesa, ela não tivera na verdade

nada a ver com a criação dessas tradições. Maria Antonieta assumira as

práticas da aristocracia francesa quando viera da Áustria, como noiva do

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jovem delfim, o futuro Luís XVI. Era filha da grande Maria Teresa, uma

imperatriz austríaca que não admitia os excessos e indulgências reais.

Era bastante austera e frugal para uma mulher em sua posição. Criara as

muitas filhas, inclusive a pequena Maria Antonieta, com o maior rigor. A

jovem dauphine teria sido forçada, por pura sobrevivência, a se adaptar aos

costumes franceses, tão depressa quanto possível.

O palácio de Versailles, o grande monumento à extravagância

francesa, fora construído décadas antes de Maria Antonieta sequer nascer,

mas se tornara um exemplo de sua ganância mítica. Sua famosa resposta

ao comentário de que “Os camponeses estão famintos, não têm pão

para comer” pode ser atribuída a uma cortesã real, uma mulher que

morrera muito antes da jovem austríaca chegar à França. Até hoje, porém,

a frase “Então que comam brioche” era reconhecida como o grito de

guerra da revolução. Com essa única citação, conseguiram justificar o

Grande Terror, com todo o derramamento de sangue e violência que se

irradiaram da Bastilha.

E Maria Antonieta, condenada a um fim trágico, nunca disse essa

frase infame.

Maureen sentia uma profunda simpatia pela malfadada rainha da

França. Odiada como estrangeira desde o dia de sua chegada, Maria

Antonieta fora uma vítima do racismo insidioso e deliberado. Era de

absoluta conveniência para a nobreza francesa do século XVIII,

radicalmente etnocêntrica, atribuir todas e quaisquer circunstâncias

políticas e sociais negativas à rainha nascida na Áustria. Maureen ficara

impressionada pela predominância dessa atitude, durante sua viagem de

pesquisa à França. Os guias de Versailles que falavam inglês ainda se

referiam à rainha decapitada com grande desdém e rancor, ignorando as

provas históricas que inocentavam Maria Antonieta de muitas acusações

infames. E tudo isso apesar do fato da coitada ter sido brutalmente

mutilada há quase duzentos anos.

A primeira visita a Versailles estimulara Maureen em sua pesquisa.

Ela lera inúmeros livros, das descrições mais acadêmicas da França do

século XVIII aos romances históricos mais elaborados, com suas visões

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sobre a rainha. O quadro geral variava, mas não de forma muito drástica,

da caricatura aceita: ela era superficial, indulgente em seus caprichos,

não muito inteligente. Maureen rejeitava esse retrato. O que se podia

dizer de Maria Antonieta como mãe... uma mulher angustiada que

lamentara a perda de uma filha ainda bebê e mais tarde perdera também

o amado filho? Havia também Maria, a esposa, negociada como um objeto

no proverbial tabuleiro de xadrez político, uma menina de catorze anos

casada com um estrangeiro, numa terra estranha, mais tarde rejeitada

pela família do marido e depois por seus súditos. Finalmente, havia a

Maria que se tornara bode expiatório, uma mulher que esperara no

cativeiro enquanto as pessoas que mais amava eram executadas em seu

nome. A maior amiga de Maria, a princesa de Lamballe, fora literalmente

esquartejada por uma turba furiosa, tivera pedaços de seu corpo

espetados em chuços e mostrados pela janela de sua cela.

Maureen estava determinada a pintar um retrato simpático —

mas nem por isso menos realista — de uma das monarcas mais

desprezadas da história. O resultado fora convincente, uma das seções de

HerStory que merecera muita atenção e veementes debates.

Mas, apesar de toda a controvérsia que envolvia Maria Antonieta,

ela sempre seria o primeiro degrau para chegar a Maria Madalena.

Era essa atração sobrenatural de Maria Madalena que Maureen

discutia no momento, com a animada loura a sua frente.

— Sabia que McLean é considerado um lugar sagrado pelos

seguidores de Maria Madalena? — perguntou a mulher, abruptamente.

Maureen abriu a boca para falar, mas tornou a fechá-la. Um

momento passou antes que conseguisse balbuciar:

— Não, não sabia nada a respeito.

Lá estava outra vez, aquela vibração elétrica que percorria todo o

seu corpo cada vez que alguma coisa estranha surgia no horizonte. Podia

sentir de novo, mesmo ali, sob as luzes fluorescentes de um vasto

centro comercial americano. Tratou de respirar fundo, num esforço para

recuperar o controle.

— Muito bem, eu desisto. De que maneira McLean, na Virgínia, é

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relevante para Maria Madalena?

A mulher estendeu um cartão de visita para Maureen.

— Não sei se terá algum tempo livre durante sua estada em

McLean. Mas, se tiver, gostaria que me visitasse.

O cartão era da livraria The Sacred Light, pertencente a Rachel

Martel.

— Não é nada parecido com isto — acrescentou a mulher, que

Maureen presumiu ser Rachel, gesticulando com a mão para a vasta loja

da rede de livrarias. — Mas acho que temos alguns livros que você pode

achar muito interessantes. Escritos por locais e de publicação

particular. São sobre Maria... a nossa Maria.

Maureen engoliu em seco, confirmou que a mulher era mesmo

Rachel Martel e pediu orientação para chegar a The Sacred Light.

Houve uma tosse discreta à esquerda de Maureen. Ela se virou

para ver o gerente da livraria, gesticulando enfático para indicar que não

devia deixar a fila parada. Depois de lhe oferecer um olhar irritado,

Maureen voltou a se concentrar em Rachel.

— Poderei encontrá-la na livraria esta tarde? É o único momento

livre de que disponho.

— Estarei à espera. E como a livraria fica na rua principal, a

poucos quilômetros daqui, será fácil encontrar. Afinal, McLean não é tão

grande assim. Ligue antes de partir, se precisar de mais alguma

orientação. Obrigada pelo autógrafo. Até mais tarde.

A mulher afastou-se da mesa. Maureen observou-a por um

momento, antes de se virar para o gerente e murmurar:

— Acho que vou precisar daquele intervalo, no final das contas.

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Paris — 1er Arrondissement

Cave dos Mosqueteiros

Março de 2005

O porão de pedra, sem janelas, no prédio antigo, era conhecido

como Cave dos Mosqueteiros por tanto tempo quanto todos podiam

lembrar. Sua proximidade com o Louvre, no tempo em que o grande

museu era a residência dos reis da França, proporcionava-lhe uma

importância estratégica, que não era menor nos tempos modernos. O

espaço oculto recebera esse nome em homenagem aos homens que

Alexandre Dumas tornara famosos em sua obra mais aclamada. Dumas

baseara os bravos espadachins de seu romance em homens de verdade,

com uma missão de verdade. Aquele lugar era um dos pontos de encontro

secretos da guarda da rainha, depois que o infame cardeal Richelieu os

pusera na ilegalidade. Na verdade, não era o rei da França que os

mosqueteiros haviam jurado proteger, mas sim a rainha. Ana da Áustria

era filha de uma linhagem mais antiga e mais real que a de seu marido.

Dumas, com toda a certeza, estremeceria na sepultura se

soubesse que aquele espaço outrora sagrado caíra em mãos inimigas.

Naquela noite, a cave era o lugar de reunião de outra fraternidade secreta.

A organização que ocupava o lugar não apenas era anterior aos

mosqueteiros em mil e quinhentos anos, mas também se opunha à sua

missão com um juramento feito com sangue.

A iluminação feita por duas dúzias de velas projetava imagens que

dançavam nas paredes e revelavam em silhuetas e sombras um grupo de

homens vestindo túnicas. Estavam de pé em torno de uma mesa

retangular, toda escalavrada, os rostos numa interação de claridade e

escuridão. Embora nenhuma de suas feições fosse discernível, o emblema

peculiar de sua associação era visível em cada um: um cordão vermelho,

cor de sangue, pendurado ao pescoço.

As vozes abafadas revelavam uma variedade de sotaques: inglês

britânico e dos Estados Unidos, francês e italiano. Todos ficaram em

silêncio quando o líder ocupou seu lugar, à cabeceira da mesa. Na frente

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dele, um crânio humano polido faiscava à luz das velas, sobre um prato

de ouro filigranado. Num lado do crânio havia um cálice, decorado com as

mesmas espirais de ouro e com pedras preciosas incrustadas, como o

prato. No outro lado, havia um crucifixo de madeira esculpido à mão,

com a imagem de Cristo virada para baixo.

O líder tocou no crânio, reverente, antes de erguer o cálice de ouro,

que continha um líquido vermelho espesso. Falou com um sotaque

inglês de Oxford:

— O sangue do Mestre da Justiça.

Tomou um gole, devagar, antes de passar o cálice para o irmão à

sua esquerda. O homem pegou o cálice, repetiu o mesmo refrão, em

francês, e também tomou um gole. Cada membro da Guilda repetiu o

ritual, em sua língua nativa, até que o cálice voltou à cabeceira da mesa.

O líder pôs o cálice na mesa. Depois, ergueu o prato e beijou o crânio

na testa, reverente. Como fizera antes com o cálice, passou o crânio para o

homem à sua esquerda, que fez a mesma coisa. Cada membro da

fraternidade repetiu a ação. Essa parte do ritual foi realizada em

absoluto silêncio, como se fosse sagrada demais para ser maculada por

palavras.

O crânio completou o círculo dos fiéis e voltou ao líder. Ele ergueu o

prato por um instante, antes de pô-lo de volta na mesa, com um floreio,

acompanhado pelas palavras:

— O primeiro. O único.

O líder ficou imóvel por um momento, para depois pegar o crucifixo

de madeira. Virou-o, a fim de que a imagem crucificada ficasse de frente

para ele. Ergueu o crucifixo para que ficasse ao nível dos olhos... e cuspiu

furioso no rosto de Jesus Cristo.

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... Sara-Tamar aparece com freqüência e lê minhas memórias,

enquanto as escrevo. E sempre me lembra de que ainda não dei

qualquer explicação a respeito de Pedro e do que é conhecido como sua

negação.

Alguns julgaram-no com muito rigor, chamando-o de “Pedro in

Gallicantu” — em alusão às três vezes em que Pedro negou o Mestre

antes do cantar do galo — mas isso é injusto. O que essas pessoas que

o julgam não podem saber é que Pedro não fez nada, a não ser cumprir

os desejos de Easa. Sou informada de que alguns dos seguidores dizem

agora que Pedro realizou uma profecia feita por Easa, que Easa disse a

Pedro: “você me negará”, e Pedro respondeu: “não, não negarei”.

A verdade é a seguinte: Easa instruiu Pedro a negá-lo. Não foi

uma profecia. Foi uma ordem. Easa sabia que, se o pior acontecesse,

far-se-ia necessário que Pedro, entre todos os seus discípulos de

confiança, permanecesse são e salvo. Dada a determinação de Pedro,

os ensinamentos continuariam a ser propagados pelo mundo, da forma

que Easa sempre sonhara. E, por isso, Easa ordenou-lhe: “você me

negará”, ao que Pedro respondeu, em seu tormento: “não, não posso”.

Mas Easa insistiu: “Você deve me negar, para permanecer e

para que prossigam os ensinamentos sobre O Caminho.”

Essa é a verdade sobre a “negação” de Pedro. Jamais foi uma

negação, visto que ele seguiu as ordens de seu mestre. Disso tenho

certeza, pois eu estava presente e testemunhei.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO QUATRO

McLean, Virgínia

Março de 2005

A freqüência cardíaca de Maureen tinha uma aceleração anormal,

enquanto ela atravessava McLean pela rua principal. Estava totalmente

despreparada para o convite da mulher, mas mesmo assim sentira um

profundo excitamento. Sempre fora assim; sua vida era ligada por eventos

estranhos e muitas vezes intensos, por coincidências extraordinárias, que

causariam um impacto permanente. Aquela seria mais uma dessas

ocorrências sobrenaturais? Sentia-se particularmente curiosa em relação a

qualquer revelação que se referisse a Maria. Curiosa? Essa palavra não era

bastante forte. Obcecada? Uma palavra mais acurada.

Sua ligação com a história de Maria Madalena fora uma força

dominante em sua vida, desde os primeiros dias da pesquisa para

HerStory. E, desde aquela primeira visão em Jerusalém, Maureen tinha

um sólido senso de Maria Madalena como uma mulher de carne e osso,

quase uma amiga. Quando trabalhava no texto final do livro,

experimentara a sensação de que defendia uma amiga que fora caluniada

pela imprensa. Seu relacionamento com Maria era muito real. Ou talvez

fosse mais objetivo dizer que era surrealista.

A livraria The Sacred Light era pequena, embora houvesse na

fachada uma enorme vitrine abaulada, que exibia anjos de todos os

tipos. Havia livros sobre anjos, estatuetas de anjos e muitos cristais

reluzentes cercados por querubins em estilo moderno. Maureen achou

que a própria Rachel tinha uma aparência angelical: um pouco roliça,

com os cabelos louros cacheados, emoldurando um rosto meigo. Usava

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um vestido branco antes, quando comparecera à manhã de autógrafos.

O tilintar melódico de um carrilhão anunciou a chegada de

Maureen, no momento em que ela empurrou a porta e entrou numa

versão ampliada da vitrine. Rachel Martel estava abaixada atrás do

balcão, procurando localizar no mostruário uma jóia específica para uma

cliente.

— É esta? — perguntou ela à jovem, que devia ter dezoito ou

dezenove anos.

— Exatamente. — A jovem examinou a peça de cristal, com uma

pedra cor de lavanda engastada em prata. — É ametista, não é?

— Na verdade, é ametrina. — Rachel acabara de notar que

Maureen fora a causa do toque do carrilhão na porta. Esboçou um

sorriso rápido, de quem avisa “já falo com você”, antes de acrescentar

para a cliente: — Ametrina é a ametista que tem citrina dentro. Se

levantar para a luz, poderá contemplar o lindo centro dourado.

A adolescente contraiu os olhos para observar o cristal contra a luz.

— E linda! — exclamou ela. — Mas fui informada de que precisava

de ametista. Esta pedra tem o mesmo efeito?

— Tem, sim, e mais ainda. — Rachel sorriu, paciente. — Acredita-

se que a ametista expande sua natureza espiritual, enquanto a citrina

serve para equilibrar as emoções no corpo físico. Em tudo e por tudo, é

uma poderosa combinação. Mas também tenho ametistas puras ali, se

você preferir.

Maureen não prestava muita atenção à conversa. Sentia uma

curiosidade muito maior em relação aos livros de que Rachel falara. As

estantes eram divididas por assuntos e ela examinou-as rapidamente.

Havia volumes xamânicos, uma seção celta, em que uma Maureen

menos ansiosa teria se detido num outro dia, e a seção onipresente sobre

anjos.

A direita dos anjos, havia alguns livros sobre pensamento cristão.

Ah, devo estar quente! Ela continuou a procurar. Parou abruptamente.

Havia um livro branco, com grossas letras pretas: MADALENA.

— Vejo que está encontrando tudo, mesmo sem minha ajuda.

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Maureen teve um sobressalto; não ouvira Rachel se aproximar. A

jovem cliente fez o carrilhão soar ao abrir a porta para deixar a loja,

levando seu pequeno saco azul e branco, com o cristal escolhido.

— Este é um dos livros de que falei. Os outros não passam de

brochuras. Você deve dar uma olhada neste.

Rachel tirou da prateleira ao nível do olho uma brochura fina, pouco

mais que um folheto. Era rosa e dava a impressão de ter sido impressa

num computador doméstico. Maria em McLean, dizia a capa, em Times

New Roman, tamanho 24.

— Qual é a Maria? — perguntou Maureen.

Enquanto escrevia seu livro, ela seguira diversas linhas de pesquisa

interessantes, apenas para descobrir que levavam à Virgem, não a

Madalena.

— Sua Maria — respondeu Rachel, com um sorriso sugestivo.

Maureen ofereceu um meio sorriso à mulher. É mesmo minha Maria.

Era assim que ela começava a sentir.

— Não havia necessidade de especificar, porque foi escrito por

uma pessoa daqui. A comunidade espiritual de McLean sabe que é

Maria Madalena. Como eu disse antes, ela tem seus seguidores aqui.

Rachel explicou que os habitantes daquela pequena cidade da

Virgínia informavam ter visões espirituais havia muitas gerações.

— Jesus foi visto aqui em quase uma centena de ocasiões

documentadas, durante o último século. O mais estranho é que ele é

visto com freqüência parado à beira da rua... a rua principal, a mesma

que você seguiu para chegar aqui. Umas poucas visões envolveram Cristo

na cruz, visto da rua principal. Em outras, ele foi visto andando com uma

mulher, que foi descrita repetidamente como pequena, com os cabelos

compridos.

Rachel folheou o livro, mostrando os vários capítulos para Maureen.

— A primeira visão desse tipo foi registrada no início do século XX. A

mulher que teve a visão chamava-se Gwendolyn Maddox. Aconteceu no

quintal dos fundos de sua casa. Ela alegou que a mulher com Cristo era

Maria Madalena. O sacerdote de sua paróquia insistiu que a visão fora de

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Cristo e da Virgem Maria. Imagino que você adquira mais prestígio no

Vaticano com a visão da Virgem. Mas a velha Gwen manteve-se

irredutível. Era mesmo Maria Madalena. Ela disse que não sabia como

podia saber, mas tinha certeza absoluta. E Gwen também alegou que a

visão curou-a por completo de um caso grave de artrite reumática. Ela

construiu um santuário e abriu o jardim ao público. Até hoje os

habitantes locais oram para Maria Madalena em busca de cura.

Ela fez uma pausa, sorrindo antes de acrescentar:

— Também é fascinante ressaltar que nenhum dos descendentes

de Gwen sofreu de artrite reumática, que, até onde eu sei, é uma

condição hereditária. E me sinto particularmente grata por isso,

assim como minha mãe e minha avó. Sou bisneta de Gwendolyn.

Maureen olhou para o livro. Não reparara no nome da autora de

Maria em McLean. Leu-o agora: Rachel Maddox Martel. Rachel entregou-lhe o

livro.

— É um presente. Contém a história de Gwen e alguns outros

detalhes sobre as visões. Mas veja este outro livro.

Rachel indicou o enorme volume branco, com o título,

MADALENA, em letras pretas.

— Este também foi escrito por uma pessoa daqui. A autora

passou muito tempo investigando as visões locais de Maria, mas também

realizou muitas pesquisas gerais. O livro apresenta todas as teorias

sobre Madalena e posso dizer que algumas são um pouco exageradas,

até mesmo para o meu gosto. Mas é uma leitura fascinante e não

encontrará o livro em qualquer outro lugar, pois nunca foi distribuído.

— Vou levá-lo, é claro — murmurou Maureen, um pouco

distraída, a mente em vários lugares ao mesmo tempo. — Por que

McLean, em sua opinião? Entre todos os lugares nos Estados Unidos,

por que ela veio para cá?

Rachel sorriu e deu de ombros.

— Não tenho uma resposta para isso. Talvez haja outras cidades

americanas onde isso também tenha acontecido, só que as pessoas não

divulgaram. Ou talvez haja alguma coisa especial aqui. Só sei que as

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pessoas com interesse espiritual pela vida de Maria Madalena tendem a

aparecer aqui, mais cedo ou mais tarde. Não dá para dizer quantas

passaram por esta loja à procura de livros específicos sobre ela. E,

como você, não tinham um conhecimento consciente sobre a ligação de

Madalena com esta cidade. Não pode ser apenas uma coincidência, não é

mesmos? Creio que Maria atraiu seus fiéis para McLean.

Maureen pensou a respeito por um momento, antes de responder.

E começou a falar devagar, organizando seu pensamento.

— Quando tomei as providências para a viagem, tinha a intenção

de permanecer em Washington. Uma grande amiga mora lá e seria fácil

vir até McLean de carro para a sessão de autógrafos. Minha estada

em Washington faria muito mais sentido, inclusive pela proximidade

do aeroporto. Mas, no último minuto, decidi me hospedar aqui.

Rachel sorria, enquanto ouvia Maureen explicar a mudança nos

planos de viagem.

— Foi Maria quem a trouxe para cá. Gostaria que me prometesse

uma coisa. Se por acaso avistá-la enquanto estiver em McLean, não se

esqueça de me telefonar e contar.

— Você já a viu? — perguntou Maureen.

Rachel bateu no livro rosa na mão de Maureen com a ponta da

unha.

— Já, sim. E este livro é uma explicação sobre a maneira como

as visões passaram de uma geração para outra em nossa família. — O

tom de Rachel era surpreendentemente descontraído. — Eu era muito

pequena na primeira vez. Tinha apenas quatro ou cinco anos. Foi no

santuário no jardim de minha avó. Maria estava sozinha, na ocasião. A

segunda visão ocorreu quando eu era adolescente. Foi uma “beira de

estrada”, como chamamos por aqui. Maria estava com Jesus. Foi muito

estranho. Eu me encontrava num carro cheio de garotas, voltando de

uma partida de futebol americano do time da escola. Era noite de

sexta-feira. Minha irmã mais velha, Judith, guiava o carro. Ao fazermos

uma curva, avista mos um homem e uma mulher caminhando em

nossa direção. Judy diminuiu a velocidade, para verificar se precisavam

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de ajuda. Foi nesse instante que compreendemos o significado da cena.

Os dois estavam parados ali, congelados no tempo, envoltos por uma

intensa claridade. Judy ficou bastante transtornada e começou a chorar.

A garota sentada ao seu lado, no banco da frente, perguntou qual era o

problema e por que havíamos parado. Foi quando compreendi que as

outras garotas não podiam vê-los. Só minha irmã e eu. Especulei por

muito tempo se a genética tinha alguma relação com as visões. Minha

família tivera muitas e eu dispunha de provas objetivas de que podíamos

ter visões que permaneciam ocultas para outras pessoas. Ainda não sei

o que é. Afinal, há outras pessoas em McLean sem qualquer parentesco

conosco que também tiveram as visões.

— Todas as visões foram tidas por mulheres?

— Ah, sim, esqueci essa parte. Em todas as ocasiões em que Maria

foi vista sozinha, ao que eu saiba, sempre foi uma mulher quem teve a

visão. Quando ela aparece com Jesus, pode ser vista por pessoas de

ambos os sexos. Mesmo assim, são raras as aparições vistas por homens.

Ou talvez não sejam tão raras, mas os homens se mostram menos

dispostos a falar a respeito em público.

— Estou entendendo — murmurou Maureen, acenando com a

cabeça. — Com que nitidez você viu Maria, Rachel? Pode descrever seu

rosto em detalhes?

Rachel continuou a sorrir, à sua maneira beatífica, que Maureen

achava estranhamente confortadora. Conversar com alguém sobre

visões como se fosse a coisa mais natural do mundo fez com que

Maureen se sentisse surpreendentemente segura. Se não estava louca de

vez, pelo menos estava numa companhia bastante agradável.

— Posso fazer melhor do que descrever seu rosto. Venha comigo.

Rachel pegou Maureen pelo braço, gentilmente, e levou-a para o

fundo da loja. Apontou para a parede atrás da caixa registradora. Mas os

olhos de Maureen já haviam encontrado o retrato. Era um quadro a óleo;

mostrava uma mulher de cabelos castanho-avermelhados, com um rosto

de beleza refinada e os mais extraordinários olhos castanho-claros, com

um brilho entre dourado e verde.

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Rachel observava atentamente a reação de Maureen, à espera de

que ela falasse. Seria uma longa espera. Maureen sentia-se incapaz de

falar. Rachel tentou estimulá-la:

— Vejo que vocês duas já se encontraram...

Por mais atordoada que se sentisse pelo rosto no retrato, Maureen

ficou ainda mais abalada pelo que se seguiu. Depois do momento inicial

de choque, ela começou a tremer, um instante antes de o soluço

percorrer seu corpo.

Ficou parada ali e chorou, pelo que devia ter sido um minuto, talvez

dois, os soluços sacudindo-lhe o corpo pelos segundos iniciais, antes de

passar para um choro baixinho. Sentia um pesar terrível, uma dor

profunda e difusa, mas não sabia se a tristeza era mesmo sua. Era como

se experimentasse o sofrimento da mulher no retrato. Mas logo mudou;

depois do fluxo inicial, o choro de Maureen foi mais de alívio e ela se

entregou. O quadro a óleo representava uma espécie de confirmação;

fazia com que a mulher do sonho se tornasse real.

A mulher do sonho que ela acabava de constatar ser Maria

Madalena.

Rachel foi gentil o bastante para fazer um chá de ervas na sala dos

fundos. Deixou Maureen sentada ali, naquele pequeno depósito, para ter

alguma privacidade. Um jovem casal à procura de livros de astrologia

entrou na loja e Rachel foi atendê-lo. Maureen se sentou a uma

escrivaninha pequena, tomando o chá de camomila e torcendo para que o

aviso na caixa, “acalma os nervos”, não fosse apenas um anúncio

exagerado.

Assim que concluiu a transação na frente da loja, Rachel voltou

para verificar como estava Maureen.

— Sente-se melhor?

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Maureen acenou com a cabeça e tomou outro gole do chá.

— Estou ótima agora, obrigada. Rachel, lamento o acesso, mas não

podia... Foi você quem pintou o quadro?

Rachel confirmou com um aceno de cabeça.

— A habilidade artística é uma das características da família.

Minha avó é escultora. Fez várias versões de Maria em argila. Muitas

vezes tenho me perguntado se o motivo das aparições de Maria para nós

não seria... porque temos a capacidade de expressá-la de alguma forma.

— Ou talvez seja porque as pessoas com tendências artísticas

mantêm a mente mais aberta. — Maureen pensava em voz alta. — Uma

coisa do hemisfério direito do cérebro?

— É possível. Acho que é uma combinação das duas coisas, no

mínimo. Mas posso lhe garantir uma coisa. Creio com toda a força do

meu coração que Maria quer ser ouvida. Suas aparições aqui em

McLean aumentaram durante os últimos dez anos. Ela quase me

assediou ao longo do último ano. Compreendi que tinha de pintá-la, a

fim de encontrar um mínimo de paz. Depois que o retrato ficou pronto e

foi exposto, pude dormir de novo. E não a vi mais desde então.

De volta a seu quarto no hotel, naquela noite, Maureen girou o

vinho tinto em seu copo, olhando para o turbilhão do clarete. Levantou

os olhos para o aparelho de televisão, ligado num canal a cabo. Fez um

esforço para não deixar que o apresentador ultraconservador do

programa de entrevistas a irritasse. Apesar da aparência externa de

força, Maureen detestava o confronto. Até mesmo a insinuação de que

podiam estar falando de seu livro era angustiante. Era como observar um

terrível desastre de carro... ela não conseguia desviar os olhos, por mais

desagradável que fosse a cena à sua frente.

O apresentador radical apresentou seu respeitável convidado,

fazendo uma pergunta logo em seguida:

— Isto não seria apenas mais um da longa lista de ataques

contra a Igreja?

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A legenda de identificação, Bispo Magnas O’Connor, apareceu logo

abaixo do rosto idoso e irado de um sacerdote, que respondeu com um

inconfundível sotaque irlandês:

— Claro. Há séculos que temos suportado as calúnias de pessoas

desorientadas, que tentam solapar a fé de milhões de fiéis, apenas para

proveito pessoal. Essa extremista feminista precisa aceitar o fato de

que todos os apóstolos reconhecidos eram homens.

Maureen desistiu. Não estava a fim de agüentar as críticas naquela

noite. Fora um dia cansativo e emocionante. Com um toque no botão do

controle remoto, ela silenciou o bispo, desejando que houvesse a mesma

facilidade na vida real.

— Não enche, Sua Reverendíssima — resmungou ela, enquanto se

ajeitava na cama para dormir.

Um facho das luzes da rua que filtravam para dentro do quarto

de Maureen incidiu na mesinha-de-cabeceira, iluminando suas poções

para dormir: o copo com vinho tinto pela metade e uma caixa de

calmante. Num pequeno cinzeiro de cristal, ao lado do abajur, estava o

anel de cobre antigo de Jerusalém.

Maureen revirou-se na cama, irrequieta, apesar da sua tentativa de

automedicação para ter um sono tranqüilo. O sonho veio, inexorável e

espontâneo.

Começou como sempre... o tumulto, o suor, a multidão. Mas,

quando Maureen chegou à parte em que avistava a mulher pela primeira

vez, tudo ficou escuro. Mergulhou no vazio, por um espaço de tempo

incompreensível.

E, depois, o sonho mudou.

Num dia idílico, ao longo de uma praia do mar da Galiléia, um

menino corria à frente de sua adorável mãe. Não partilhava com ela os

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surpreendentes olhos cor de avelã e os cabelos cor de cobre, como a irmã

caçula. Pegou uma pedra interessante, que atraiu sua atenção, e

levantou-a para faiscar ao sol.

A mãe gritou uma advertência para que ele não se aventurasse

muito longe pela água. Ela não usava o véu formal hoje. Os cabelos

compridos e soltos esvoaçavam em torno do rosto, enquanto ela pegava

a mão da menina, uma perfeita versão em miniatura da mãe.

A voz de um homem expressou agora uma advertência similar e

jovial para a menina, que se desvencilhara da mão da mãe e correra ao

encontro do irmão. A criança parecia rebelde, mas a mãe riu. Olhou

para trás e ofereceu um sorriso íntimo para o homem que caminhava

em sua esteira. Naquele passeio descontraído com sua jovem família,

ele usava uma túnica desbotada e solta, não a túnica branca impecável

que sempre vestia em público. Ele afastou as mechas de cabelos

castanhos compridos dos olhos e retribuiu o sorriso, com uma expressão

transbordando de amor e contentamento.

Maureen foi lançada abruptamente de volta ao estado de vigília,

como se tivesse sido expulsa do sonho em termos físicos e impelida de

volta ao quarto do hotel. Tremia toda. O sonho sempre a deixava

perturbada, mas aquele era ainda mais desconcertante, devido à

sensação de ser arremessada através do tempo e espaço. A respiração

estava acelerada. Ela fez um esforço para recuperar o equilíbrio e

respirar de uma maneira mais relaxada.

Começava a firmar os sentidos quando teve consciência de um

movimento no outro lado do quarto, junto da porta. Teve certeza de ouvir

um sussurro, embora sentisse mais do que visse a figura que apareceu

na entrada do quarto. O que via, na verdade, era indefinível... um vulto,

uma figura, uma sugestão de movimento. Não tinha importância.

Maureen sabia quem era, com a mesma certeza de que sabia que não

estava mais sonhando. Era Ela. Ali, no quarto de Maureen.

A boca ressequida do choque e sentindo mais que um pouco de

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medo, Maureen engoliu em seco. Sabia que a figura na porta não era do

mundo físico, mas não tinha certeza de que isso era confortador. Recorreu a

toda a sua coragem e conseguiu sussurrar para o vulto na porta:

— O que... diga-me como posso ajudá-la. Por favor.

Houve um ligeiro murmúrio em resposta, o som de um véu ou de

folhas da primavera farfalhando à brisa. E, depois, mais nada. A aparição

desapareceu, tão depressa quanto surgira.

Maureen se sentou na cama e acendeu a luz: 4:10 da madrugada,

segundo o relógio digital. Eram três horas mais cedo em Los Angeles. Perdoe-

me, padre, pensou ela, enquanto pegava o telefone na mesinha-de-

cabeceira e ligava, tão depressa quanto os seus dedos trêmulos

permitiam. Precisava de seu melhor amigo... e talvez, apenas talvez,

precisasse também de um padre.

A voz insistente de Peter, com seu sotaque irlandês, trouxe

Maureen de volta a este mundo.

— É da maior importância que você mantenha um registro de

todas essas... visões. Está anotando tudo?

— Visões? Por favor, não dê uma de Vaticano para cima de mim.

Morreria antes de me tornar uma exótica cause célebre para a inquisição

romana.

— Ora, Maureen, eu nunca faria isso. Mas o que acontece se

forem mesmo visões? Não pode descartar a importância potencial do que

lhe foi mostrado.

— Em primeiro lugar, não foram visões, no plural. Houve uma

única suposta visão. O resto foi sonho. Sonhos intensos e nítidos, mas,

mesmo assim, apenas sonhos. Talvez seja a loucura genética me

envolvendo. Acontece na família, como você sabe muito bem.

Maureen deixou escapar um suspiro.

— Confesso que tudo isso me deixa assustada. E você deveria me

ajudar a ficar calma, lembra?

— Desculpe. Você tem razão. Quero ajudá-la. Mas prometa que

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anotará as datas e horários de suas vi... de seus sonhos. Apenas para

nossos registros. Você é uma historiadora e jornalista. E sabe, dentre

todas as pessoas, que documentar os dados é crítico.

Maureen permitiu-se uma pequena risada.

— E o que temos aqui são dados históricos, com toda a certeza. —

Ela deu outro suspiro. — Mas está bem, farei isso. Talvez me ajude a

encontrar algum dia um sentido para tudo o que está acontecendo.

Tenho a sensação de que muita coisa vem ocorrendo abaixo da

superfície, totalmente fora do meu controle.

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... Cumpre-me escrever agora a respeito de Natanael, que

chamamos de Bartolomeu, pois sinto-me comovida com sua devoção.

Bartolomeu era bastante jovem quando se juntou a nós na Galiléia. E,

embora tivesse sido expulso da casa de seu nobre pai, Tolma de Caná,

era evidente ao conhecê-lo que não havia nada de incorrigível nele... um

patriarca cruel e insensato avaliara mal a beleza e a promessa de uma

alma tão preciosa e especial, um filho tão belo. Easa percebeu isso

também, no preciso instante em que o conheceu.

Bartolomeu podia ser compreendido num relance, quando se

fitava seus olhos. Afora Easa e minha filha, nunca vi tanta pureza e

bondade nos olhos de alguém. Revelavam a inocência interior... uma

alma que é pura e imaculada. No dia em que ele chegou a minha casa,

em Magdala, meu filho pequeno subiu em seu colo e ali permaneceu

pelo resto da noite. As crianças são os maiores juizes. Easa e eu

sorrimos um para o outro, através da mesa, enquanto observávamos o

pequeno João com seu mais recente amigo. João nos confirmou o que

ambos já sabíamos ao olhar para Bartolomeu... ele era parte de nossa

família e assim seria pela eternidade.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO CINCO

Los Angeles

Abril de 2005

Maureen sentiu-se exausta ao saltar do carro no estacionamento de

seu elegante prédio de apartamentos, no Wilshire Boulevard. Entregou o

carro a André, o manobreiro de plantão, e pediu-lhe que depois levasse

sua mala. O atraso do vôo no aeroporto Dulles, combinado à sua

incapacidade de dormir na noite anterior, deixara-a com os nervos à flor da

pele.

A última coisa que ela esperava ou de que precisava era uma

surpresa, mas era exatamente isso o que a aguardava quando entrou no

saguão.

— Boa-noite, Srta. Paschal. — Laurence era o recepcionista do

prédio. Pequeno e meticuloso, saiu de trás da mesa para falar com

Maureen. — Peço que me desculpe, mas tive de entrar em seu

apartamento esta tarde. A encomenda era grande demais para ficar aqui

no saguão. Seria melhor se nos avisasse com antecedência quando estiver

esperando alguma coisa desse tamanho.

— Encomenda? Que encomenda? Eu não estava esperando nada.

— Mas não resta a menor dúvida de que é para você. Deve ter

um admirador e tanto.

Perplexa, Maureen agradeceu a Laurence e pegou o elevador para o

11° andar. Assim que abriu a porta do elevador, foi envolvida pelo

inebriante perfume de flores. A fragrância aumentou dez vezes mais

quando abriu a porta do apartamento. Soltou uma exclamação de

espanto. Não podia ver sua sala através das flores. Havia requintados

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arranjos de flores por toda parte, alguns altos e sobre colunas, outros em

vasos de cristal nas mesas. Todos continham variações do mesmo tema:

rosas vermelhas, copos-de-leite brancos e lírios brancos. Os lírios

estavam em plena floração, eram a fonte do perfume inebriante.

Maureen não precisou procurar um cartão. Estava evidente num

enorme quadro de moldura dourada, que mostrava uma cena pastoral

clássica, na parede do outro lado da sala. Três pastores, de túnica e coroa

de louros, estavam reunidos em torno de um enorme objeto de pedra,

que parecia ser uma tumba. Apontavam para uma inscrição. O ponto

focai do quadro era uma mulher, uma pastora ruiva, que parecia ser a

líder do grupo.

O rosto fora pintado de modo que tivesse uma semelhança

extraordinária com Maureen.

— Les Bergers d'Arcadie. — Peter leu a inscrição numa placa de

bronze, na base da moldura, impressionado com a excelente reprodução

na sala de Maureen. — De Nicholas Poussin, o mestre barroco francês. Vi

o original do quadro no Louvre.

Maureen não disse nada, aliviada por Peter ter vindo tão depressa,

enquanto ele acrescentava:

— Os pastores de Arcádia.

— Não sei se devo me sentir lisonjeada ou ficar toda arrepiada.

Por favor, diga-me que no original a pastora não parece comigo.

Peter soltou uma risada.

— Não, não parece. Foi uma alteração feita por quem pintou a

reprodução ou uma decisão de quem mandou o quadro. Sabe quem é?

Maureen estendeu um envelope grande para Peter.

— Foi enviado por alguém chamado... Sinclair. Não tenho a menor

idéia de quem seja.

— Um admirador? Um fanático? Um maluco saindo da toca depois

de ler o seu livro?

Maureen soltou uma risada nervosa.

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— É possível. Minha editora tem recebido algumas cartas

estranhas para mim nos últimos meses.

— De admiração ou de ódio?

— Dos dois tipos.

Peter tirou uma carta do envelope grande. Fora escrita à mão, num

elegante papel timbrado apergaminhado. Letras douradas no fundo da

página indicavam que o autor era Berenger Sinclair. Peter ajeitou os óculos

de leitura e leu em voz alta:

Prezada Srta. Paschal:

Por favor, perdoe-me a intromissão.

Mas creio que tenho as respostas que você tem procurado... e você tem

uma coisa que venho procurando. Se tem coragem para persistir em suas

convicções e participar de uma espantosa expedição para descobrir a verdade,

espero que se encontre comigo em Paris, no solstício de verão. A própria

Madalena solicita sua presença. Não a desaponte. Talvez este quadro

ajude a estimular seu subconsciente. Pense nele como uma espécie de mapa...

um mapa para o seu futuro e talvez para o seu passado. Estou confiante de

que honrará o grande nome Paschal, como seu pai tentou.

Atenciosamente,

Berenger Sinclair

— O grande nome Paschal? Seu pai? — indagou Peter. — O que

acha que ele está querendo dizer?

— Não tenho a menor idéia.

Maureen tentava absorver tudo. A menção ao pai deixara-a

perturbada, mas não queria que Peter soubesse. Por isso a resposta

foi petulante:

— Conhece a família de meu pai. Dos pântanos da Louisiana.

Não há nada de elevado nela, a menos que a insanidade possa ser

equiparada à grandeza.

Peter não disse nada. Esperou que ela continuasse. Maureen

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quase nunca falava sobre o pai e ele estava curioso, querendo saber

se ela explicaria alguma coisa. Ficou um pouco desapontado quando

ela mudou de assunto, pegando a carta para ler de novo.

— É muito estranho. Sobre que respostas você acha que ele está

falando?

Maureen passou o dedo pela carta, pensativa. Peter correu os

olhos pela sala, admirando a abundante exposição de flores e o

enorme quadro.

— Quem quer que seja, todo esse cenário indica duas coisas...

fanatismo e muito dinheiro. Em minha experiência, isso é uma

péssima combinação.

Maureen não prestava muita atenção.

— Veja a qualidade desse papel timbrado. É espetacular. Ao

estilo francês. E esse padrão gravado em relevo aqui... o que é isso?

Uvas? — Havia algo ali que despertava uma lembrança na mente de

Maureen. — Maçãs azuis?

Peter ajustou os óculos no nariz e espiou no final da página.

— Maçãs azuis? Hum... Acho que você tem razão. Isto aqui

parece ser um endereço. Le Château des Pommes Bleues.

— Meu francês não é grande coisa, mas isso não significa maçãs

azuis?

Peter acenou com a cabeça em confirmação.

— Castelo das Maçãs Azuis. Isso significa alguma coisa para

você?

Maureen balançou a cabeça devagar, pensando.

— Não consigo determinar o que é, mas sei que já encontrei

referências a maçãs azuis em minhas pesquisas. E uma espécie de

código, se não me engano. Creio que tinha alguma coisa a ver com

os grupos religiosos na França que cultuavam Maria Madalena.

— Os mesmos grupos que acreditavam que ela foi para a

França depois da crucificação?

— Isso mesmo. A Igreja perseguiu-os como hereges porque

alegavam que seus ensinamentos vinham direto de Cristo. Foram

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obrigados a cair na clandestinidade. Formaram sociedades

secretas, uma das quais era simbolizada por maçãs azuis.

— Mas qual é o significado de maçãs azuis?

— Não lembro o suficiente para dar essa resposta. — Maureen

fez um esforço para recordar, mas não conseguiu. — Mas conheço

alguém que deve saber.

Marina del Rey, Califórnia

Abril de 2005

Maureen foi andando pelo cais de Marina del Rey.

Embarcações de luxo, regalias dos superprivilegiados de

Hollywood, faiscavam ao sol da Califórnia Meridional. Um surfista

com uma camiseta rasgada, em que se lia “Apenas outro dia de

merda no Paraíso”, acenou para ela do convés de um pequeno iate.

Tinha a pele bronzeada e os cabelos clareados pelos mesmos raios de

sol implacáveis. Maureen não o conhecia, mas o sorriso de satisfação

combinava com a garrafa de cerveja em sua mão indicando que sua

disposição era de absoluta cordialidade.

Maureen acenou em resposta e continuou a andar, seguindo

para o complexo de restaurantes e butiques para turistas. Entrou

em El Burrito, um restaurante mexicano com um deque à beira

d'água.

— Reenie! Estou aqui!

Maureen ouviu Tammy antes de vê-la, o que acontecia com muita

freqüência. Ela virou-se na direção da voz e descobriu a amiga a uma

mesa ao ar livre, tomando uma margarita de manga.

Tamara Wisdom era um estudo de contrastes para Maureen

Paschal. Escultural e com a pele azeitonada, era bela de uma maneira

exótica. Os cabelos pretos lisos desciam até a cintura, com mechas em

cores vibrantes, determinadas por seu humor. Naquele dia, os reflexos

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eram violeta. O nariz era furado, ornamentado com um diamante

surpreendentemente grande... presente de um ex-namorado, um bem-

sucedido diretor de cinema independente. As orelhas tinham vários

piercings, nos dois lados. Ela usava vários amuletos de padrões esotéricos

por cima da blusa de renda preta, sem mangas. Tinha quase quarenta

anos, mas parecia ser pelo menos dez anos mais moça.

Tammy era exuberante onde Maureen era conservadora; clamorosa

e obstinada, enquanto Maureen era discreta e cautelosa. Não podiam ser

mais diferentes na vida e no trabalho, mas haviam encontrado uma base

mútua de respeito, que as transformara em grandes amigas.

— Obrigada por me receber em prazo tão curto, Tammy.

Maureen sentou-se e pediu um chá gelado. Tammy revirou os olhos,

mas sentia-se excitada demais pelo motivo do encontro para censurar

Maureen pela escolha conservadora da bebida.

— Está brincando? Berenger Sinclair anda atrás de você e acha que

eu não quero ouvir todos os detalhes suculentos?

— Você foi muito reservada pelo telefone, mas agora tem de

confessar tudo. Não posso acreditar que conhece esse cara.

— Eu não posso acreditar que você não conhece. Como, em nome

de Deus... literalmente... publicou um livro que fala de Maria

Madalena sem ir à França para pesquisar? E se considera uma jornalista?

— Sou mesmo uma jornalista e é justamente por isso que não fui

à França. Não tenho o menor interesse por sociedades secretas. Esse é o

seu departamento, não o meu. Mas estive em Israel para fazer uma

pesquisa séria sobre o século I.

As provocações joviais eram parte fundamental da amizade.

Maureen conhecera Tammy durante a pesquisa para o livro. Uma amiga

comum apresentara-as, ao saber que Maureen investigava a vida de

Maria Madalena. Tammy publicara diversos livros alternativos sobre

sociedades secretas e alquimia. Também realizara um

documentário sobre as tradições espirituais secretas, apresentando

o culto a Madalena, aclamada pela crítica no circuito dos festivais.

Maureen ficara surpresa ao descobrir que os pesquisadores

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esotéricos mantinham uma rede interligada, porque parecia que

Tammy conhecia todo mundo nessa área. Embora logo

compreendesse que o foco alternativo de Tammy estava longe de ser

o que procurava, em termos de material de fonte respeitável, Maureen

também reconhecera a mente perceptiva por trás dos olhos muito

maquiados, a substância por baixo da ostentação. Maureen

admirava a coragem impetuosa e a implacável honestidade de

Tammy, até mesmo quando era o alvo de suas alfinetadas.

Tammy enfiou a mão em sua bolsa grande, de um laranja

brilhante, para tirar um elegante envelope. Balançou-o por um

instante diante do nariz de Maureen, antes de estendê-lo através da

mesa.

— Eu queria lhe mostrar isto pessoalmente.

Maureen alteou uma sobrancelha para a amiga, ao ver no

envelope a flor-de-lis, agora familiar, junto com as estranhas maçãs

azuis. Tirou um convite impresso e começou a ler.

— É um convite para o exclusivo baile à fantasia anual de

Sinclair. Parece que finalmente entrei no circuito principal. Você

também recebeu um?

Maureen sacudiu a cabeça.

— Não. Recebi apenas uma estranha mensagem sobre um

encontro no solstício de verão. Como conseguiu esse convite?

— Conheci-o durante minha pesquisa na França. Pedi um

financiamento para concluir meu novo documentário. Como ele está

interessa do em fazer seu próprio documentário, estamos

negociando... sabe como é, coçarei as costas de Sinclair se ele coçar

as minhas.

— Está trabalhando num novo filme? Por que não me contou

antes?

— Não temos conversado ultimamente, não é?

Maureen ficou contrafeita. Negligenciara a amiga durante a

loucura vertiginosa dos compromissos profissionais nos últimos

meses.

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— Desculpe. E pare de mostrar essa cara horrível de satisfação

consigo mesma. O que mais não está me dizendo? Sabia sobre

Sinclair... que ele anda atrás de mim?

— Não, não sabia. Só nos encontramos uma vez... mas eu

bem que gostaria que ele estivesse atrás de mim. O cara vale pelo

menos um bilhão e ainda por cima é lindo de morrer. Sabe, Reenie,

isso pode ser maravilhoso para você. Deixe os cabelos soltos e se lance

numa grande aventura. Quando foi a última vez que namorou alguém?

— Não vem ao caso.

— Talvez tenha chegado o momento.

Maureen descartou a questão e fez um esforço para reprimir a

sua irritação.

— Não tenho tempo para um relacionamento. Nem tive a

impressão de que ele me convidou para um encontro romântico.

— O que é uma pena. Não há lugar mais romântico no planeta.

— Então é por isso que você tem passado tanto tempo na França

ultimamente.

Tammy riu.

— Não, não é por isso. Acontece que a França é o centro do

esoterismo ocidental, o caldeirão da heresia. Eu poderia escrever cem livros

sobre o assunto e fazer cem documentários, mas, ainda assim, apenas

arranha ria a superfície.

Maureen sentia dificuldades para se concentrar.

— O que você acha que Sinclair quer de mim?

— Quem sabe? Ele tem uma reputação de excêntrico e extravagante.

Dispõe de tempo demais nas mãos e dinheiro demais para desperdiçar.

Calculo que alguma coisa em seu livro tenha atraído a atenção de

Sinclair e ele quer acrescentá-la à sua coleção. Mas não tenho a menor

idéia do que poderia ser. Seu trabalho não combina muito com a linha

dele.

— O que isso significa? — Maureen sentia-se um pouco

defensiva. — Por que não é a linha dele?

— Porque você seguiu as tendências e foi muito acadêmica.

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Quando escreveu aquele capítulo sobre Maria Madalena, optou por ser

cautelosa e politicamente correta. Maria Madalena pode ter tido um

relacionamento com Jesus, mas não há qualquer prova... blablablá.

Preferiu se manter dentro de uma margem de segurança. Mas pode ter

certeza de que não há nenhuma margem de segurança naquilo em que

Sinclair acredita. É por isso que gosto dele.

Maureen respondeu de uma maneira um pouco mais incisiva do

que tencionava:

— Sua função é a de revisar a história com base em convicções

pessoais. Não é o meu caso.

Tammy estava tocando num ponto sensível hoje. Mas, ao seu estilo

pessoal, recusou-se a recuar e continuou a pressionar Maureen.

— E quais são as suas convicções? Tenho a impressão de que nem

você mesma sabe. Você é uma grande amiga e não tenho a menor intenção

de desrespeitá-la. Portanto não fique zangada. Mas sabe tão bem quanto

eu que Maria Madalena manteve um relacionamento com Jesus e que

tiveram filhos. Por que tem tanto medo dessa possibilidade? Nem sequer é

religiosa. Isso não deveria ameaçá-la.

— E não me ameaça. Apenas não queria seguir por esse caminho.

Tive medo de que prejudicasse o resto de meu trabalho. Mas é óbvio que

seus padrões para “evidências” e os meus não são os mesmos. Passei a

maior parte da minha vida adulta pesquisando para o livro. Não podia

jogar tudo fora por causa de alguma teoria simplória e sem

confirmação, na qual não estou nem um pouco interessada.

Tammy respondeu sem hesitar:

— Essa teoria que você chama de simplória é sobre a união divina.

A idéia de duas pessoas respeitando uma à outra num

relacionamento sagrado é a maior expressão de Deus que existe neste

mundo. Talvez você deva considerar a possibilidade de investir nisso.

Maureen mudou de assunto, abruptamente.

— Você prometeu que me diria o que sabe sobre as maçãs azuis.

— Se você desculpar minhas teorias simplórias e sem

confirmação...

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— Desculpe.

Maureen parecia sinceramente arrependida, o que fez Tammy rir.

— Esqueça. Já fui chamada de coisa muito pior. Aqui está o que

sei sobre as maçãs azuis. São um símbolo da linhagem genealógica...

isso mesmo, essa linhagem que você e seus amigos acadêmicos querem

presumir que não existe. A linhagem de Jesus Cristo e Maria Madalena,

através de seus descendentes. Várias sociedades secretas têm usado

símbolos diferentes para representar a linhagem.

— E por que maçãs azuis?

— Já houve muitos debates a respeito, mas de um modo

geral acredita-se que seja uma referência a uvas. As regiões

produtoras de vinho no sul da França são famosas por suas uvas

enormes, que podiam ser simbolizadas por maçãs azuis. Dê o salto

comigo neste ponto: os filhos de Jesus são iguais aos frutos da videira,

que são uvas, que são maçãs azuis.

Maureen balançou a cabeça.

— Isso significa que Sinclair está envolvido em uma dessas

sociedades secretas?

— Sinclair é sua própria sociedade secreta. — Tammy soltou

uma risada. — Ele é como o poderoso chefão por lá. Nada

acontece sem o seu conhecimento e aprovação. E é também o talão

de cheques para muitas pesquisas. Inclusive a minha.

Tammy ergueu o copo num brinde zombeteiro à generosidade

de Sinclair. Maureen tomou um gole de seu chá. Olhou de novo

para o envelope.

— Mas você não acha que Sinclair é perigoso?

— Claro que não. Ele é famoso demais para ser perigoso...

embora tenha dinheiro e influência para esconder os corpos. Foi só

uma brincadeira. Não precisa ficar verde. E é provavelmente o

maior estudioso de Maria Madalena no mundo inteiro. Podia ser um

contato muito interessante, se você decidir abrir um pouco a mente.

— Posso presumir que você vai à festa?

— Está louca? Claro que vou. Até já comprei a passagem de avião. A

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festa será no dia 24 de junho, três dias depois do solstício de verão. Hum...

— O que é?

— Ele está armando alguma coisa, mas não sei o que é. Quer se

encontrar com você no dia 21 de junho em Paris e depois oferecer a

festa no dia 24... que é o meio do verão, pelo calendário antigo, mas

também é o dia de João Batista. Está ficando cada vez mais

interessante. Não acredito por um minuto sequer que essas datas

sejam apenas uma coincidência. Onde ele quer que você o

encontre?

Maureen tirou a carta da bolsa, junto com o mapa da França

que a acompanhara. Entregou as duas coisas a Tammy.

— Veja isto. — Maureen apontou. — Há uma linha vermelha

daqui até o sul da França.

— É o meridiano de Paris. Passa direto pelo coração do

território de Maria Madalena... e pela propriedade de Sinclair, diga-

se de passagem.

Tammy virou o mapa para mostrar outro, este de Paris.

Acompanhou o traçado no mapa com a unha vermelha. Desatou a

rir quando encontrou o ponto na Rive Gauche cercado por um

círculo vermelho.

— Essa não! O que você está tramando, Sinclair? — Tammy

indicou o ponto marcado no mapa. — A igreja de Saint-Sulpice. É o

lugar em que ele pediu a você para encontrá-lo?

Maureen confirmou com um aceno de cabeça.

— Você conhece?

— Claro. Uma igreja enorme, a segunda maior de Paris, depois

da Notre Dame, às vezes chamada de Catedral da Rive Gauche. É um

local de atividades de sociedade secreta pelo menos desde o século XVII.

Eu gostaria de ter sabido disso antes. Mudaria meu vôo até Paris para

chegar alguns dias mais cedo. Daria qualquer coisa para testemunhar seu

encontro com o poderoso chefão.

— Ainda não decidi se vou. Tudo parece meio absurdo. Não tenho

qualquer informação para contato com ele... nem telefone, nem e-mail.

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Ele nem mesmo mandou o aviso de RSVP. Parece que tem certeza de que

estarei presente.

— Sinclair é um homem acostumado a conseguir o que quer. E,

por algum motivo que não consigo imaginar, ele parece querer você.

Mas você precisa parar de jogar pelas regras da sociedade normal, se quer

se envolver com essas pessoas. Não são perigosas, mas podem ser

muito excêntricas. Os enigmas são parte de seu jogo e você terá de

resolver alguns para provar que é digna de ingressar no círculo interno.

— Não tenho certeza de querer ingressar em algum círculo.

Tammy tomou o resto de sua margarita.

— A decisão é sua, minha cara. Se fosse eu, não perderia um

convite assim por nada neste mundo. Acho que é a chance de uma

vida para você. Vá como jornalista, para investigar. Mas lembre-se de

uma coisa: depois que entrar nesse mistério, será como passar pelo

espelho e cair no buraco do coelho. Por isso, tome cuidado. E atenha-se

à sua realidade, minha pequena e conservadora Alice.

Los Angeles

Abril de 2005

A discussão com Peter fora mais acalorada do que ela previra.

Maureen sabia que ele se oporia à sua decisão de se encontrar com

Sinclair na França, mas estava despreparada para a veemência com que

o primo defendeu sua posição.

— Tamara Wisdom é doida. Não posso acreditar que você permitiu

que ela a convencesse a fazer isso. Ela não pode ser uma testemunha do

caráter desse tal de Sinclair.

A discussão prolongara-se durante quase todo o jantar, com Peter

bancando o irmão mais velho e protetor, preocupado com sua segurança,

enquanto Maureen tentava fazer com que ele compreendesse a decisão.

— Sabe que eu nunca fui de correr grandes riscos, Pete. Gosto

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de ordem e controle em minha vida e estaria mentindo se não dissesse

que essa perspectiva me deixa apavorada.

— Então por que vai comparecer ao encontro?

— Porque os sonhos e as coincidências me apavoram ainda mais.

Não tenho controle sobre eles e se tornam cada vez piores, mais

freqüentes e mais intensos. Sinto que tenho de seguir esse caminho

para descobrir aonde vai me levar. Talvez Sinclair tenha as respostas que

procuro, como ele alega. Se é o maior estudioso do mundo de Maria

Madalena, talvez alguma coisa em tudo isso faça sentido para ele. E só há

uma maneira de eu descobrir, não é mesmo?

Ao final de uma discussão extenuante, Peter finalmente concordou,

mas com uma condição.

— Irei com você.

E isso foi definitivo.

Maureen apertou a tecla em seu celular para chamar o telefone de

Peter no instante em que saiu da Agência de Viagens Westwood, na

manhã do sábado seguinte. Ainda não contara tudo ao padre. Às vezes,

Peter a tratava como se ela ainda fosse uma criança e ele seu protetor.

Embora lhe fosse grata por isso, era uma mulher adulta, que precisava

tomar algumas decisões importantes naquela encruzilhada de sua vida.

Agora, com a decisão tomada e as passagens na mão, era hora de avisá-lo.

— Oi. Já está tudo acertado. Peguei as passagens. Mas tomei uma

decisão súbita... de voar para Nova Orleans um dia antes.

Peter ficou calado por um momento, surpreso.

— Nova Orleans? Está bem. Vamos voar para Paris de lá?

Essa era a parte difícil.

— Não. Irei para Nova Orleans sozinha. — Ela se apressou em

continuar, antes que Peter pudesse interrompê-la. — É uma coisa que

preciso fazer sozinha, Pete. Vamos nos encontrar no aeroporto JFK

no dia seguinte e voaremos juntos para Paris, a partir de Nova York.

Peter fez uma pausa mínima, antes de aceitar, com uma resposta

simples:

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— Está bem.

Maureen sentia-se culpada por enganá-lo.

— Estou em Westwood, deixando a agência de viagens. Pode

almoçar comigo? Você escolhe o restaurante. Eu pago.

— Não posso. Estou dando hoje aulas de atualização em Loyola.

— Não pode arrumar alguém para dar aulas de latim em seu lugar?

— De latim, poderia. Mas sou o único professor de grego aqui.

Tudo depende de mim hoje.

— Está certo. Talvez um dia você possa me explicar por que

adolescentes do século XXI precisam aprender línguas mortas.

Peter sabia que Maureen estava brincando. A prima tinha o maior

respeito por sua educação e conhecimentos lingüísticos.

— Pelo mesmo motivo que eu precisei aprender línguas mortas e

meu avô também precisou. E não acha que nos serviu muito bem?

Maureen não podia contestar essa alegação, nem de brincadeira. O

avô de Peter, o respeitado Dr. Cormac Healy, integrara um comitê em

Jerusalém que estudara e fizera traduções de algumas obras da

extraordinária biblioteca de Nag Hammadi. A paixão de Peter por

manuscritos antigos florescera quando ele era adolescente e passara o

verão em Israel com o avô. Como parte de um estágio, Peter participara de

uma escavação no Scriptorium, em Qumran, onde os pergaminhos do

mar Morto foram escritos. Durante anos, ele mantivera um fragmento de

tijolo de uma parede do Scriptorium dentro de um mostruário de museu,

ao lado de sua mesa. Mas, quando a prima demonstrara uma autêntica

paixão e vocação para seu trabalho como escritora, Peter achara que

seria mais apropriado que ela ficasse com a relíquia, como inspiração.

Maureen usava o fragmento de tijolo numa bolsa de couro, pendurada ao

pescoço, cada vez que sentava para escrever.

Foi durante esse verão em Israel que o jovem Peter encontrou sua

vocação, como estudioso e sacerdote. Visitara os locais sagrados do

cristianismo com um grupo de jesuítas. A experiência causara um profundo

impacto no jovem e idealista irlandês. A ordem dos jesuítas demonstrara

ser o local perfeito para suas paixões combinadas, religiosas e acadêmicas.

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Maureen acertou um encontro no fim de semana. Ao desligar e

fechar o celular, sentia-se mais leve do que em muitos meses.

O que não acontecia com o padre Peter Healy.

A costa oeste dos Estados Unidos tem uma série espetacular

de prédios históricos nas missões encontradas na Califórnia.

Fundadas por um dedicado monge franciscano, padre Junípero

Serra, no século XVIII, essas missões eram amostras da

arquitetura espanhola, abençoadas com lindos jardins ou em locais

de extraordinária beleza natural.

Peter sentia uma grande afinidade pela ordem franciscana e

decidira que um objetivo pessoal seria visitar todas as missões na

Califórnia, desde que chegara ao estado. As missões misturavam

história com fé, uma combinação que encontrava ressonância no

coração e na alma de Peter. Quando precisava de tempo e espaço

para pensar, ele costumava escapar para uma das missões, de fácil

acesso, no sul da Califórnia. Cada uma possuía seu charme singular

e representava um oásis de calma no centro do frenético estilo de

vida de Los Angeles.

Naquele dia, ele escolheu a Missão de San Fernando, por causa

de seu amigo, padre Brian Rourke, que residia perto e era superior

da ordem dos jesuítas no vale de San Fernando. A amizade de Peter

com o padre Brian datava de seus primeiros anos no seminário,

quando o sacerdote mais velho servira como seu mentor. Agora,

Peter precisava de um amigo de confiança; estava em busca de um

santuário... mesmo que fosse a Igreja que ele amava e a que

obedecia. O padre Brian concordara em encontrá-lo mesmo em tão

curto prazo, sentindo um princípio de pânico na voz de Peter.

— Sua prima é uma católica praticante?

O padre mais velho passeava pelos jardins da missão em

companhia de Peter. O sol da tarde era forte no vale e Peter

removeu uma gota de suor, com as costas da mão.

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— Não. Mas era muito devota quando criança. Ambos éramos.

O padre Rourke balançou a cabeça.

— Aconteceu alguma coisa para afastá-la da Igreja?

Peter hesitou por um momento:

— Problemas de família. Prefiro não falar a respeito.

Ele já sentira que revelar as visões de Maureen sem o seu

conhecimento era uma forma de traição. Tampouco queria revelar os

segredos de família. Pelo menos ainda não. Contudo estava um

tanto desorientado sobre o que deveria fazer e precisava de

conselhos objetivos de alguém em quem pudesse confiar, dentro da

estrutura de sua Igreja.

O padre mais velho acenou com a cabeça respeitando a

confidencialidade.

— É muito raro que essas coisas possam ser consideradas visões

divinas. Às vezes são sonhos, às vezes delusões da infância. É provável que

não seja causa para qualquer preocupação. Vai acompanhá-la até a França?

— Vou, sim. Sempre fui seu conselheiro espiritual e creio que sou

a única pessoa em quem ela realmente confia.

— Isso é ótimo, pois neste caso poderá ficar de olho nela. Por favor,

ligue imediatamente se achar que ela está se tornando perigosa para si

mesma, sob qualquer aspecto. Daremos um jeito de ajudá-lo.

— Tenho certeza de que não chegará a esse ponto.

Peter sorriu e agradeceu ao amigo. A conversa passou a versar sobre

o calor intenso na Califórnia, em comparação com os verões amenos na

Irlanda. Falaram sobre velhos amigos e um antigo professor e conterrâneo

de ambos, que era agora bispo em algum lugar do sul dos Estados

Unidos. Quando chegou o momento de partir, Peter assegurou ao velho

amigo que se sentia melhor depois da conversa.

Ele mentia.

O padre Brian Rourke voltou para seu escritório naquela tarde com

um aperto no coração e a consciência em conflito. Ficou sentado em

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silêncio por um longo momento, olhando para o crucifixo pendurado

na parede, por cima da mesa. Deixou escapar um suspiro de resignação,

pegou o telefone e discou o código de área da Louisiana. Não precisava

olhar o número.

Nova Orleans

Junho de 2005

Maureen guiava o carro alugado pelos arredores de Nova Orleans,

um mapa da área aberto no banco de passageiro vazio. Diminuiu a

velocidade e parou no lado da rua, a fim de consultar o mapa, para ter

certeza de que continuava no caminho certo. Satisfeita, tornou a partir.

Enquanto fazia a curva seguinte, avistou as tumbas acima do solo, em

estilo de sarcófago, pelas quais os cemitérios de Nova Orleans eram

famosos.

Maureen parou no estacionamento. Inclinou-se para o banco

traseiro, a fim de pegar a bolsa e as flores que comprara de um vendedor

de rua. Saiu do carro, tomando cuidado para evitar as poças de lama,

remanescentes de uma tempestade de verão. Correu os olhos pela

paisagem, com seus gramados bem cuidados. Lápides refinadas e coroas

de flores estendiam-se por uma vasta distância. Maureen respirou

fundo e se encaminhou para o portão do cemitério, levando as flores.

Parou na entrada e levantou os olhos, mas desviou-se abruptamente para

a esquerda, sem entrar no cemitério.

Foi andando em torno do perímetro do cemitério, até alcançar

outro conjunto de sepulturas. Os túmulos ali tinham o mato crescido,

com muito musgo, o lugar era negligenciado e comovente. Aquele era o

cemitério dos desajustados.

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Ela avançou entre as sepulturas, devagar, com todo o cuidado,

reverente. Fez um esforço para reprimir as lágrimas, enquanto passava

por sepulturas esquecidas, pessoas que haviam sido abandonadas até

mesmo na morte. Na próxima vez, traria mais flores... flores para todos.

Maureen ajoelhou-se e afastou o mato que cobria uma lápide meio

arrebentada. O nome inscrito ali era EDOUARD PAUL PASCHAL.

Começou a arrancar o mato invasor com as mãos, em movimentos

bruscos. Detritos voavam ao seu redor enquanto limpava a área,

indiferente à terra e lama que se acumulavam sob as unhas e salpicavam-

lhe as roupas. Ela alisou a terra com as mãos e esfregou a lápide, para dar

mais definição às letras.

Depois de limpar a área da melhor forma que podia, Maureen

ajeitou as flores. Tirou o porta-retrato da bolsa e contemplou a foto por

um momento, deixando as lágrimas escorrerem. A foto mostrava-a

quando criança, não mais que cinco ou seis anos, sentada no colo de um

homem que lia um livro para ela. Os dois sorriam um para o outro,

felizes, indiferentes à câmera.

— Oi, papai — murmurou ela para a foto, antes de encostá-la na

lápide.

Maureen permaneceu ali por algum tempo, os olhos fechados,

absorvida na tentativa de recordar o pai, de lembrar qualquer detalhe.

Com exceção daquela foto, não tinha mais nada que lhe pudesse

propiciar lembranças do pai. Depois de sua morte, a mãe proibira

qualquer referência ao homem ou ao papel que tivera em suas vidas.

Maureen e a mãe haviam se mudado para a Irlanda logo depois. Seu

passado na Louisiana fora relegado às vagas lembranças de uma criança

traumatizada e triste.

No início daquela manhã, Maureen folheara uma lista telefônica de

Nova Orleans, à procura de residentes com o nome de Paschal. Havia

vários, e alguns podiam ser da família. Mas ela logo fechara a lista, nunca

tivera a intenção de fazer qualquer contato com prováveis parentes, não

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depois de tanto tempo, muito menos agora. Fora mais um exercício de

recordação.

Ela tocou na foto em despedida. Depois, removeu as lágrimas com a

mão enlameada, deixando o rosto todo sujo. Não se importava.

Levantou-se e voltou pelo caminho por onde viera, sem olhar para trás.

Parou no lado de fora do portão do cemitério propriamente dito. Lá dentro,

uma capela branca impecável, com uma cruz de latão polida, faiscava ao

sol meridional.

Maureen olhou para a capela através das barras do portão, com o

olhar de uma forasteira.

Ergueu a mão para proteger os olhos do reflexo de luz na cruz, depois

virou as costas à igreja e afastou-se.

Cidade do Vaticano, Roma

Junho de 2005

O cardeal Tomas DeCaro levantou-se e olhou pela janela para a

piazza. Os olhos cansados não eram a única coisa que precisava de uma

pausa do exame da pilha de papéis amarelados em sua mesa. Sua mente

e consciência também precisavam de descanso, além de reflexão sobre as

informações que recebera naquela manhã. Havia a iminência de um

terremoto, não havia a menor dúvida a respeito. Ele ainda não tinha

certeza sobre a extensão dos danos que o novo cataclismo poderia

acarretar... e quem seriam as vítimas.

Abriu a gaveta de cima da mesa e olhou para o objeto ali dentro que

lhe dava força em momentos assim. Era um retrato do santo papa João

XXIII, sob o cabeçalho de Vatican Secundam — Vaticano II. Logo abaixo da

imagem, havia uma citação do grande e visionário pontífice, que tanto

arriscara para levar sua amada Igreja ao mundo contemporâneo. DeCaro

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conhecia as palavras de cor, mas sempre se sentia fortalecido quando as

lia em voz alta:

— Não é que o Evangelho tenha mudado. Apenas passamos a

compreendê-lo melhor. Chegou o momento de discernir os sinais dos

tempos, de avaliar as oportunidades e olhar para a frente.

Lá fora, o verão estava prestes a começar. Prometia ser um lindo dia

em Roma. DeCaro decidiu relaxar por algumas horas, dando um longo

passeio por sua amada Cidade Eterna.

Precisava andar, precisava pensar e, acima de tudo, precisava orar

por orientação. Talvez o espírito-guia do bom papa João o ajudasse a

encontrar seu caminho através da crise iminente.

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... Bartolomeu veio a nós por intermédio de Filipe, outro de nossa

tribo que foi julgado de maneira equivocada... e tenho de confessar aqui

que fui a primeira a incorrer nesse equívoco. Ele era um antigo

seguidor de João Batista e conheci-o por meio dessa associação. Por

isso demorou um pouco para que eu aprendesse a confiar em Filipe.

Filipe era um homem enigmático. Prático e instruído, eu era

capaz de lhe falar na língua dos helenistas, em que também era

versada. Ele vinha da nobreza, nascido em Betsaida. Mesmo assim,

havia muito que optara por levar uma vida de extrema simplicidade,

negando a si mesmo os acessórios da vida da nobreza. Isso ele

aprendeu primeiro com João. Filipe era difícil e belicoso na superfície,

mas em seu íntimo era todo luz e bondade.

Não havia nada em Filipe que pudesse fazer mal a outra criatura

viva. Era austero em seus hábitos alimentares e não consumia

qualquer comida que pudesse ter causado o sofrimento de algum

animal. Enquanto o resto da tribo alimentava-se de peixe, Filipe não

queria saber disso. Era incapaz de suportar o pensamento de bocas

delicadas sendo dilaceradas por anzóis ou a agonia que os peixes

deviam sentir ao ficarem presos em redes. Teve muitas discussões com

Pedro e André por causa desse dilema. Tenho pensado a respeito com

freqüência. Talvez ele estivesse certo e sua dedicação a essa convicção é

um dos motivos pelos quais eu o admirava.

...Às vezes eu sentia que Filipe era muito parecido com os

animais que tanto reverenciava, aqueles que se protegem com espinhos

ou uma carapaça externa, a fim de que nada possa penetrar a tenra

criatura por baixo. Apesar disso, ele tomou Bartolomeu sob sua

proteção, quando o descobriu vagueando pelas estradas, sem um lar.

Viu a bondade em Bartolomeu e levou essa bondade até nós.

Depois do Tempo das Trevas, Filipe e Bartolomeu foram os meus

maiores confortos. Eles cuidaram dos preparativos iniciais, junto com

José, para levar-nos sãos e salvos até Alexandria, longe de nossa terra,

o mais depressa possível. Bartolomeu era tão importante para as

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crianças quanto para as mulheres. Na verdade, ele foi o maior conforto

para o pequeno João, que ama todos os homens. Mas Sara-Tamar

também adorava Bartolomeu.

Esses dois homens merecem um lugar no Paraíso repleto de luz e

perfeição por toda a eternidade. Filipe ficou muito preocupado em nos

proteger e nos levar em segurança para nosso destino. Creio que ele

não se deteria diante de nada

Não importaria o que eu lhe pedisse. Se dissesse a Filipe que

nosso destino devia ser a lua, ele tentaria tudo ao seu alcance para

nos levar até lá.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPÍTULO SEIS

Paris

19 de junho de 2005

O sol faiscava no Sena enquanto Maureen e Peter caminhavam

pela margem do rio. Paris era banhada pela luz quente do início do verão e

os dois sentiam-se contentes pela oportunidade de espairecer um pouco

e apreciar a vista da cidade mais linda do mundo. Haveria oportunidades

suficientes para se preocuparem com o encontro com Sinclair, dentro de

dois dias.

Ambos se apressavam em tomar o sorvete de casquinha, antes

que começasse a pingar ao sol e deixasse uma trilha viscosa de arco-íris.

— Hum... Você tinha razão, Pete. O Berthilion pode mesmo ser o

sorvete mais gostoso do mundo. É espantoso.

— Que sabor você pediu?

Maureen estava praticando seu francês.

— Poivre.

— Pimenta? — Peter desatou a rir. — Pediu sorvete com sabor

de pimenta?

Maureen ficou vermelha de embaraço, mas tentou de novo:

— Pauvre?

— Pobre? Pediu um sabor de pobre?

— Está bem, eu desisto. Pare de me atormentar. É sabor de pêra.

— Poire. Poire é pêra. Peço desculpas, não deveria rir de você. Foi uma

boa tentativa.

— É óbvio quem tem o talento lingüístico na família.

— Não é verdade. Você fala inglês muito bem.

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Os dois riram, desfrutando a descontração do momento e a beleza

do dia.

A magnificência gótica da Notre Dame dominava a Île de la Cité

havia oitocentos anos. Ao se aproximarem da catedral, Peter contemplou

reverente a fachada imponente, com sua mistura de santos e gárgulas.

— Na primeira vez em que a vi, eu disse para mim mesmo: “Deus

vive aqui.” Quer entrar?

— Não. Prefiro ficar do lado de fora, com as gárgulas, que é o meu

lugar.

— É a mais famosa estrutura gótica do mundo e um símbolo de

Paris. Como turista, você tem a obrigação de entrar. Além do mais, os

vitrais são fenomenais. E você poderá ver a rosácea ao sol do meio-dia.

Maureen ainda hesitou, mas Peter pegou seu braço e levou-a.

— Vamos entrar. Prometo que as paredes não vão desabar à sua

presença.

O sol passava pela rosácea, famosa no mundo inteiro, iluminando

Peter e Maureen numa claridade azul-celeste, riscada de vermelho. Peter

vagueou pela catedral, o rosto erguido para os vitrais, com um sentimento

perfeito de bem-aventurança. Maureen seguia ao seu lado, fazendo um

esforço para lembrar a si mesma que aquele prédio possuía um enorme

significado histórico e arquitetônico, que não era apenas mais uma igreja.

Um padre francês passou por eles, acenando com a cabeça num

cumprimento solene. Maureen tropeçou de leve nesse instante. O

padre parou e estendeu a mão para ampará-la, falando com alguma

preocupação, em francês. Maureen sorriu e ergueu a mão, para indicar

que estava bem. Peter voltou para o seu lado, enquanto o padre francês

se afastava.

— Você está bem?

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— Estou, sim. Apenas senti uma vertigem súbita. Talvez pelo

cansaço da viagem.

— Quase não dormiu nos últimos dias.

— Isso deve ter contribuído. — Maureen apontou para um banco

lateral, perto da rosácea. — Vou me sentar um pouco ali e apreciar o

vitral. Você pode continuar a circular.

Peter parecia preocupado, mas ela acenou para que ele

continuasse.

— Estou bem. Pode ir. Esperarei aqui.

Peter balançou a cabeça e se afastou para explorar o resto da

catedral. Maureen se sentou no banco, respirando fundo para recuperar

o controle. Não quisera admitir para Peter que ficara bastante tonta.

Fora uma crise repentina e ela sabia que cairia se não se sentasse. Mas

não queria que Peter soubesse. Provavelmente era apenas uma

combinação de exaustão com o chamado jet lag, a desorientação causada

pela mudança brusca de fusos horários.

Ela passou as mãos pelo rosto, tentando se livrar da vertigem.

Fachos em caleidoscópio da luz colorida passavam pela rosácea e incidiam

sobre o altar, iluminando um enorme crucifixo. Maureen piscou com

força. O crucifixo parecia estar aumentando, ampliando cada vez mais

em seu campo de visão.

Ela pôs as mãos na cabeça quando a vertigem envolveu-a e as

imagens prevaleceram.

Os raios riscavam o céu de uma escuridão anormal, naquela

desolada tarde de sexta-feira. A mulher de vermelho subiu a colina

cambaleando. Teve de jazer o maior esforço para chegar lá em cima.

Mantinha-se alheia aos cortes e arranhões que se acumulavam em seu

corpo e esfarrapavam as roupas. Só tinha um objetivo, que era o de

alcançá-Lo.

O som de um martelo batendo num prego — metal contra metal

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— ressoava pelo ar, com uma finalidade assustadora. A mulher perdeu

o controle e gemeu, um som estranho, de desespero humano

irredimível.

A mulher alcançou a cruz no momento em que a chuva começou.

Levantou os olhos para Ele. Gotas de Seu sangue caíram no rosto

transtornado da mulher, misturando-se com as lágrimas incessantes.

Perdida na visão, Maureen não tinha mais noção do lugar em que

se encontrava. Seu gemido, um eco perfeito do desespero de Maria

Madalena, ressoou pela Catedral de Notre Dame, assustando os turistas

e fazendo Peter correr em sua direção.

— Onde estou?

Maureen acordou num sofá, numa sala revestida de madeira. O

rosto sisudo de Peter pairava por cima dela, enquanto ele respondia:

— Em uma das salas da catedral.

Peter acenou com a cabeça para o padre francês que haviam

encontrado antes e que acabara de entrar na sala, através de uma porta

oculta no fundo, com uma expressão preocupada.

— Padre Marcel ajudou-me a trazê-la para cá. Não tinha condições

de ir a lugar algum por conta própria.

O padre Marcel adiantou-se e estendeu um copo com água.

Maureen pegou e bebeu, agradecida.

— Merci — murmurou ela.

O francês acenou com a cabeça, sem dizer nada. Recuou para o

fundo da sala, a fim de esperar, discreto, caso houvesse necessidade de

voltar a ajudar.

— Desculpe — balbuciou ela para Peter, constrangida.

— Não precisa se desculpar. É óbvio que perdeu o controle. Quer

me contar o que viu?

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Maureen relatou a visão. O rosto de Peter foi se tornando mais

branco a cada palavra. Quando Maureen acabou, ele fitou-a com uma

expressão solene.

— Sei que não quer ouvir isso, Maureen, mas acho que vem

tendo visões divinas.

— Acha, então, que eu deveria conversar com um padre? — gracejou

ela.

— Falo sério. Isso está fora de minha esfera de experiência, mas

posso descobrir alguém que sabe sobre essas coisas. Basta falar, mais nada.

Pode ajudar.

— Não há a menor possibilidade. — Determinada, Maureen

sentou-se no sofá. — Só quero que me leve de volta ao hotel, para que eu

possa descansar. Depois que dormir um pouco, tenho certeza de que

estarei bem.

Maureen conseguiu descartar a visão e deixar a catedral sem ajuda.

Ficou aliviada por poder sair por uma passagem lateral, sem a

necessidade de atravessar outra vez o interior daquele grande símbolo do

cristianismo.

Depois que a levou sã e salva para o quarto, Peter foi para seu

próprio quarto. Sentou-se por um momento, olhando para o telefone.

Ainda era muito cedo para fazer uma ligação para os Estados Unidos.

Sairia por algum tempo e voltaria quando fosse uma hora mais

apropriada, considerando a diferença de fuso.

Mais abaixo, às margens do Sena, o padre Marcel atravessava o

interior iluminado por velas da mais famosa catedral gótica do mundo.

Estava acompanhado por um sacerdote irlandês, o bispo O'Connor, que

tentava lhe fazer perguntas, num péssimo francês.

O padre Marcel levou-o ao banco em que Maureen tivera a visão.

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Deu a explicação devagar, tentando superar a barreira da língua. Embora

fizesse um esforço sincero para se comunicar com o irlandês, o padre

francês tinha a impressão de que conversava com um idiota. O'Connor

dispensou-o, com um aceno impaciente, se sentou no banco e olhou para

o crucifixo no altar, imerso em concentração.

Paris

19 de junho de 2005

A Cave dos Mosqueteiros era menos sinistra durante o dia,

iluminada por uma lâmpada fluorescente implacável. Os ocupantes

vestiam roupas comuns, sem ter no pescoço os cordões vermelhos que os

identificavam como membros da Guilda dos Justos.

Uma réplica do retrato de João Batista pintado por Leonardo Da

Vinci estava pendurada na parede dos fundos, apenas a um quarteirão de

distância do Louvre, onde se encontrava o original, de valor inestimável.

No famoso quadro, João olha da tela com um sorriso insinuante. Tem a

mão levantada, o indicador e o polegar apontando para o céu. Leonardo

pintou João nessa pose, muitas vezes referida como o gesto “Lembre-se de

João”, em várias ocasiões. O significado dessa pose específica é debatido há

séculos.

O inglês se sentava à cabeceira da mesa, como sempre, de costas

para o quadro. Um americano e um francês estavam sentados a seus

lados.

— Não compreendo o que ele está querendo — disse o inglês,

ríspido, Ele pegou um livro de capa dura em cima da mesa e sacudiu-o

para os dois homens. — Já o li duas vezes. Não há nada de novo aqui,

nada que possa ser de interesse para nós. Ou para ele. Então o que há?

Vocês já pensaram a respeito de tudo isso? Ou estou falando sozinho?

O inglês largou o livro em cima da mesa, com óbvio menosprezo. O

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americano o pegou e folheou, distraído. Concentrou-se na foto da autora.

— Ela é atraente. Talvez isso seja tudo.

O inglês soltou uma risada desdenhosa. Típica besteira ianque, sem o

menor sentido. Ele sempre fora contra americanos na Guilda, mas aquele

idiota era de uma família rica, associada ao legado comum, e tinham de

aceitá-lo.

— Com Sinclair, é sempre dinheiro e poder. Ele tem muito mais

do que “atraente” à sua disposição, vinte e quatro horas por dia. Suas

façanhas de playboy são lendárias na Inglaterra e no resto da Europa.

Há muito mais do que uma simples conquista envolvendo essa mulher

e espero que vocês dois descubram o que é. O mais depressa possível.

— É quase certo que ele acredita que a mulher é a Pastora, mas

saberei com certeza muito em breve — declarou o francês. — Viajarei

para o Languedoc neste fim de semana.

— O fim de semana é tarde demais — disse o inglês, irritado. —

Deve partir no máximo amanhã. Hoje seria preferível. Há o fator tempo

aqui, como sabem muito bem.

— Ela tem cabelos vermelhos — comentou o americano.

O inglês soltou um grunhido.

— Qualquer vagabunda com vinte euros e alguma disposição pode

se tornar ruiva. Descubram por que ela é importante. E depressa. Porque

se Sinclair descobrir o que está procurando antes de nós...

Ele não concluiu a frase; não precisava. Os outros sabiam

exatamente o que aconteceria; sabiam o que acontecera na última vez

em que alguém do lado errado chegara muito perto. O americano era um

tanto sensível e a perspectiva da escritora ruiva sem cabeça deixava-o

muito consternado.

O americano pegou o exemplar do livro de Maureen, ajeitou-o

debaixo do braço e saiu com seu companheiro francês para o sol ofuscante

de Paris.

Depois que seus subalternos se retiraram, o inglês, que fora

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batizado com o nome de John Simon Cromwell, levantou-se e foi para o

fundo do porão. Fora da vista da sala principal, havia uma pequena

câmara aberta. O espaço continha um pesado armário de madeira

escura, além de um pequeno altar, à direita. Um genuflexório dava

espaço para um único suplicante diante do altar.

As maçanetas das portas do armário eram de ferro batido. O

compartimento inferior era protegido por uma tranca de aparência

poderosa. O inglês enfiou a mão por dentro da camisa para pegar a chave

pendurada ao pescoço. Ajoelhou-se, enfiou a chave na tranca e abriu o

compartimento.

Tirou dois itens. Primeiro, uma garrafa do que parecia ser água

benta, que despejou numa pia batismal na frente do altar. Depois, pegou

um relicário, pequeno, mas todo ornamentado.

Cromwell pôs o relicário no altar, com o maior cuidado. Mergulhou

as mãos na água. Esfregou a água no pescoço com as palmas, proferindo

uma invocação durante o processo. Ergueu o relicário ao nível dos olhos.

Através de uma pequena abertura na caixa de ouro maciço, era visível

um brilho de marfim. Comprido, estreito e entalhado, o osso humano

chocalhou quando o inglês espiou. Ele comprimiu o osso contra o peito e

murmurou uma oração fervorosa:

— Ó Grande Mestre da Justiça, sabe que eu não lhe faltarei. Mas

suplicamos que nos ajude. Ajude a nós, que procuramos a verdade. Ajude

a nós, que vivemos apenas para servir seu exaltado nome. Acima de tudo,

ajude-nos a manter a meretriz em seu lugar.

O americano, sozinho agora, desceu pela Rue de Rivoli, enquanto

gritava pelo celular, acima do barulho do tráfego de Paris:

— Não podemos esperar por mais tempo. Ele é um completo renega

do, totalmente fora de controle.

A voz no outro lado da ligação também tinha um sotaque

americano, refinado, característico do nordeste dos Estados Unidos. O

tom era igualmente furioso.

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— Atenha-se ao plano. Vai permitir que alcancemos nosso objetivo,

de uma maneira metódica e completa. E foi criado por pessoas muito

mais sábias do que você.

A voz do homem mais velho era incisiva, soando através de

quilômetros e quilômetros.

— Essas pessoas mais sábias do que eu não estão aqui —

protestou o homem mais jovem. — Não podem ver o que eu vejo. Quando

vai me dar algum crédito, papai?

— Quando você merecer. Enquanto isso, eu o proíbo de fazer

qualquer idiotice.

O americano mais jovem fechou o celular abruptamente,

praguejando. Contornara a esquina na frente do Hotel Regina e

atravessava a Place des Pyramides. Levantou os olhos... e parou bem a

tempo de evitar uma colisão com a famosa estátua dourada de Joana

d'Arc, esculpida pelo grande Frémiet.

— Sua vaca — resmungou ele.

E parou apenas pelo tempo suficiente para cuspir na imagem da

salvadora da França, sem se importar com quem pudesse vê-lo.

Paris

20 de junho de 2005

A pirâmide de vidro de I.M. Pei faiscava ao sol da manhã do verão

francês. Maureen e Peter, ambos revigorados depois de uma boa noite de

sono profundo, esperavam na fila, junto com os outros turistas, para

entrar no Louvre. Peter correu os olhos pelas pessoas na fila comprida,

quase todas segurando seu guia de viagem.

— Toda essa confusão por causa da Mona Lisa. Nunca poderei

compreender. O quadro mais superestimado do planeta.

— Concordo. Mas enquanto eles se espremem para ver a Mona

Lisa, teremos a ala Richelieu só para nós.

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Maureen e Peter compraram os ingressos. Tornaram a examinar a

planta do Louvre.

— Para onde vamos primeiro?

— Nicholas Poussin — respondeu Maureen. — Quero ver os Os

pastores de Arcádia pessoalmente, antes de fazermos qualquer outra

coisa.

Eles seguiram pela ala dos mestres franceses, procurando nas

paredes a enigmática obra-prima de Poussin. Maureen explicou:

— Tammy me disse que esse quadro tem sido o centro de

controvérsias há centenas de anos. Luís XIV fez tudo o que podia para

obtê-lo, durante vinte anos. E, quando finalmente conseguiu o quadro,

trancou-o num porão de Versailles, onde mais ninguém podia vê-lo. Não é

estranho? Por que você acha que o rei da França se empenharia tanto

para obter uma importante obra de arte, só para depois escondê-la

do mundos?

— É apenas mais um numa série crescente de mistérios. — Peter

verificava os números em seu guia enquanto ouvia. — Segundo as

indicações aqui, o quadro deve estar...

— Aqui! — exclamou Maureen.

Peter aproximou-se por trás. Ficaram olhando para o quadro,

calados, por um longo momento. Maureen virou-se para Peter e rompeu o

silêncio:

— Eu me sinto uma tola. Como se estivesse esperando que o

quadro me dissesse alguma coisa. — Ela tornou a olhar para o quadro. —

Está tentando me dizer alguma coisa, Pastora?

Um súbito pensamento ocorreu a Peter:

— Não posso acreditar que não pensei nisso antes.

— Não pensou em quê?

— A idéia de uma pastora. Jesus é o Bom Pastor. Talvez Poussin...

ou Sinclair... estivesse indicando a Boa Pastora.

— Mas é isso mesmo! — gritou Maureen, um pouco alto demais,

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em seu excitamento pela idéia. — Talvez Poussin quisesse nos mostrar

Maria Madalena como a pastora, a líder do rebanho. A líder de sua

própria Igreja!

Peter ficou todo arrepiado.

— Não era exatamente isso que eu queria dizer...

— Nem precisava. Há uma inscrição em latim na tumba no quadro.

— Et in Arcadia Ego — leu Peter, em voz alta. — Hum... Não faz

sentido.

— Como se traduz?

— Não se traduz. É uma confusão gramatical.

— Dê seu melhor palpite.

— Ou é péssimo latim ou uma espécie de código. A tradução literal

é uma frase incompleta. “E em Arcádia eu...” Não significa coisa alguma.

Maureen queria prestar atenção, mas uma voz de mulher começou

a gritar, através do museu, distraindo-a:

— Sandro! Sandro!

Ela olhou ao redor, à procura da origem da voz. Pediu desculpas a

Peter:

— Desculpe, mas essa mulher está me perturbando.

A voz gritou de novo, ainda mais alto, deixando Maureen irritada.

— Quem pode ser?

Peter fitou-a, perplexo.

— Quem pode ser quem?

— Essa mulher gritando...

— Sandro! Sandro!

Maureen tornou a olhar para Peter, enquanto a voz se tornava

mais alta. Era evidente que ele não ouvia. Ela virou-se para observar os

outros turistas e estudantes, absorvidos nas obras de arte nas paredes.

Ninguém mais parecia estar consciente da voz urgente que

ressoava através do Louvre.

— O Deus! Você não pode ouvir, não é? — Ninguém mais pode

ouvir. Sou a única que ouve.

Peter estava confuso.

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— Ouvir o quê?

— Há uma voz de mulher gritando através do museu. Sandro!

Sandro! Venha comigo.

Maureen agarrou Peter pela manga e seguiu apressada na direção

da voz.

— Para onde vamos?

— Estamos seguindo a voz. Vem daquela direção.

Os dois foram andando pelos corredores do museu. Maureen

olhava para trás a todo instante, pedindo desculpas às pessoas em que

esbarrava. A voz se transformara num sussurro urgente, mas

levava-a para algum lugar e ela estava determinada a segui-la.

Voltaram correndo pela ala Richelieu, ignorando o olhar furioso de um

irritado guarda do museu. Desceram alguns degraus e entraram em

outro corredor, passando por placas que indicavam a ala Denon.

— Sandro... Sandro... Sandro...

A voz parou subitamente quando Maureen e Peter subiram

por uma imponente escada, passando pela Vitória de Samotrácia, a

estátua da deusa Nike. Ao virarem à direita, no alto da escada,

depararam com duas obras-primas menos conhecidas da Renascença

italiana. Peter fez a primeira observação:

— Afrescos de Botticelli.

A compreensão aflorou nos dois ao mesmo tempo.

— Sandro... Alessandro Botticelli!

Peter olhou para os afrescos e depois fitou Maureen.

— Como fez isso?

Ela estremeceu.

— Não fiz nada. Apenas ouvi e fui atrás da voz.

Os dois concentraram a atenção nas figuras em tamanho quase

natural, expostas lado a lado. Peter traduziu a placa para Maureen:

— Um jovem é apresentado por Vênus às Artes Liberais. Afresco pintado

para o casamento de Lorenzo Tornabuoni e Giovanna Albizzi.

— Por que há um ponto de interrogação depois de Vênus? —

perguntou Maureen.

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Peter sacudiu a cabeça.

— Não deviam ter certeza se ela era mesmo o tema.

Era uma representação elegante, embora estranha, de um jovem

segurando a mão de uma mulher, envolta por um manto vermelho.

Estavam diante de sete mulheres, três das quais seguravam objetos

insólitos e de aparência incongruente. Uma agarrava um enorme e um

tanto ameaçador escorpião preto. A mulher ao seu lado tinha na mão um

arco. Outra empunhava uma régua de arquiteto, num ângulo insólito.

Peter pensou em voz alta:

— As sete artes liberais. Os reinos do saber superior. Está nos

dizendo que esse era um jovem muito instruído?

— Quais são as sete artes liberais?

Peter fechou os olhos, para recordar seus estudos clássicos, e

recitou:

— O Trivium, ou os três primeiros caminhos de estudo: a

Gramática, a Retórica e a Lógica. As outras quatro, Quadrivium, são

Aritmética, Geometria, Música e Cosmologia. São inspiradas por

Pitágoras e sua perspectiva de que todos os números representavam

padrões no tempo e espaço.

Maureen sorriu.

— Uma memória impressionante. Mas o que podemos deduzir?

Peter deu de ombros.

— Não sei se alguma coisa disso se ajusta em nosso cada vez

maior quebra-cabeça.

Maureen apontou para o escorpião.

— Por que um quadro feito para um casamento mostra uma

mulher segurando um inseto enorme e venenoso? Qual das artes liberais

poderia representar?

— Não tenho certeza... — Peter aproximou-se do afresco, tão

perto quanto a barreira do Louvre permitia. Inclinou-se para ver

melhor. — Olhe mais de perto. O escorpião é mais escuro e mais vivido

que o resto do quadro. Todos os objetos são assim. Parece até...

Maureen terminou a frase por ele:

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— ... que foram acrescentados mais tarde.

— Mas por quem? Pelo próprio Botticelli? Ou alguém adulterou os

afrescos do mestre?

Maureen balançou a cabeça, aturdida com todo o incidente.

Enquanto tomavam um café com creme, na cafeteria do Louvre,

Maureen examinou suas aquisições, junto com Peter. Comprara

reproduções dos quadros relevantes, assim como um livro sobre a vida e a

obra de Botticelli.

— Espero descobrir mais sobre as origens daqueles afrescos.

— Estou mais interessado em descobrir a origem da voz que a

levou aos afrescos.

Maureen tomou um gole do café antes de responder.

— Mas o que era? Meu inconsciente? Orientação divina? Insanidade?

Fantasmas no Louvre?

— Eu gostaria de poder responder, mas não posso.

— Que grande conselheiro espiritual você é... — gracejou Maureen.

Ela concentrou sua atenção na reprodução de Botticelli. Tirou-a do

envelope. Quando a luz refratada da pirâmide de vidro incidiu sobre a

gravura, Maureen teve uma epifania.

— Espere um instante. Você não disse que a cosmologia era uma

das artes liberais?

Maureen olhou para o anel de cobre em seu dedo. Peter acenou

com a cabeça em confirmação.

— Astronomia, cosmologia. O estudo das estrelas. Por quê?

— O homem de Jerusalém que me deu este anel disse que era de

um cosmólogo.

Peter passou as mãos pelo rosto, como se fazer isso pudesse

estimular o cérebro a encontrar uma solução.

— Mas qual é a ligação? Que devemos olhar para as estrelas em busca

de uma resposta?

Maureen pôs o dedo sobre a mulher enigmática segurando o

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enorme inseto preto. Depois, quase saltou da cadeira ao gritar:

— Escorpião!

— Como?

— É o símbolo de um signo astrológico, Escorpião. E a mulher ao

seu lado segura um arco. O símbolo de Sagitário. Escorpião e Sagitário

estão ao lado um do outro no zodíaco.

— Então acha que há alguma espécie de código nos afrescos que

se relaciona com astronomia?

Maureen acenou com a cabeça lentamente, em confirmação.

— No mínimo, pode nos dar um ponto para começar.

As luzes brilhavam através da janela do quarto de Maureen no

hotel, iluminando os itens na cama, ao seu lado. Adormecera lendo o

livro de Botticelli. A gravura de Poussin estava virada para cima, no outro

lado.

Maureen mantinha-se alheia a essas duas coisas. Estava outra

vez engolfada num sonho.

Numa sala de paredes de pedra, vagamente iluminada por

lampiões a óleo, uma mulher idosa debruçava-se sobre uma mesa.

Usava um xale vermelho desbotado sobre os longos cabelos grisalhos.

Com uma pena de escrever na mão enrijecida, escrevia com todo

cuidado no pergaminho.

Uma enorme arca de madeira era o único outro ornamento na

sala. A velha parou de escrever, levantou-se e foi lentamente até a arca.

Ajoelhou-se, sentindo dor nas articulações, e levantou a pesada tampa.

Virou a cabeça para trás, por ama do ombro, um sorriso sereno e

sugestivo estampando-se em seu rosto. Olhou para Maureen e fez sinal

para que ela se adiantasse.

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Paris

21 de junho de 2005

Num tributo encantador à excentricidade gaulesa, a ponte mais

antiga de Paris é conhecida como Pont Neuf, a ponte nova. É uma das

principais artérias da vida parisiense, atravessando o Sena para ligar o

elegante Premier Arrondissement com o coração da Rive Gauche.

Peter e Maureen passaram pela estátua de Henrique IV, um dos

mais amados reis da França, sobre a ponte que fora concluída durante seu

tolerante reinado, em 1604. Era uma linda manhã em Paris,

transbordando a imponência exuberante que é específica da

incomparável Cidade Luz. Apesar do cenário perfeito, Maureen sentia-se

nervosa.

— Que horas são?

— Cinco minutos depois da última vez que você perguntou —

respondeu Peter, sorrindo.

— Desculpe. Estou começando a ficar nervosa com tudo isso.

— A carta dizia para estar na igreja ao meio-dia. Ainda são onze

horas. Temos bastante tempo.

Sempre se orientando por um mapa de Paris, atravessaram o Sena,

seguiram por ruas sinuosas da Rive Gauche, onde a Pont Neuf se tornava

Rue Dauphine. Passaram pela estação Odeon do metrô, viraram à

direita na Rue Saint-Sulpice e terminaram na pitoresca praça com o

mesmo nome.

Os enormes e diferentes campanários da igreja dominavam a

praça, projetando sombras sobre o famoso chafariz, construído por

Visconti em 1844. Quando os dois se aproximaram das portas imensas,

Peter sentiu que ela hesitava.

— Não a deixarei desta vez.

Peter pôs a mão em seu braço, num gesto tranqüilizador e abriu

as portas da vasta igreja.

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Entraram em silêncio. Avistaram um grupo de turistas na primeira

capela, no lado direito. Ao que parecia, eram estudantes de arte

britânicos. O professor fazia uma preleção, em voz baixa, sobre as três

obras-primas de Delacroix que ornamentavam aquela parte da igreja: Jacó

lutando contra o Anjo, Heliodoro expulso do templo e O Arcanjo Miguel

vencendo o demônio. Em outro dia, Maureen se sentiria propensa a

admirar a famosa obra de arte e ouvir a preleção em inglês. Mas naquele

momento tinha outras coisas em mente.

Passaram pelos estudantes britânicos e avançaram pelo centro

da igreja, contemplando impressionados a estrutura maciça e

histórica. Quase que por instinto, Maureen aproximou-se do altar, que

era flanqueado por dois quadros enormes. Cada um devia ter pelo menos

dez metros de altura. O primeiro mostrava duas mulheres... uma com

um manto azul, a outra com um manto vermelho.

— Maria Madalena com a Virgem? — arriscou Maureen.

— Pelas cores dos mantos, eu diria que sim. O Vaticano

determinou que Nossa Senhora só pode ser pintada vestindo branco ou

azul.

— E minha dama está sempre de vermelho.

Maureen foi até o quadro do mesmo tamanho no outro lado do

altar.

— Olhe para isto...

O quadro mostrava Jesus em sua tumba, com Maria Madalena

parecendo preparar o corpo para o sepultamento. A Virgem Maria e

duas outras mulheres choravam na beira do quadro.

— Maria Madalena prepara o corpo de Cristo para o

sepultamento? Isso não está indicado nos evangelhos, não é mesmo?

— Marcos 15 e 16 mencionam que ela e outras mulheres

levaram especiarias para o sepulcro e que podem tê-lo ungido, mas não

descrevem expressamente o ato.

— Hum... — Maureen pensou um pouco. — E aqui está

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Maria Madalena fazendo justamente isso. Mas na tradição hebraica a

unção do corpo não era reservada apenas para...

— A esposa — arrematou uma voz masculina aristocrática, com

uma suave insinuação de sotaque escocês.

Maureen e Peter viraram-se abruptamente para o homem que se

aproximara por trás de uma maneira tão furtiva. Era moreno e bonito,

vestia-se com a maior elegância. Embora as roupas e o porte falassem em

classe hereditária, não havia nada de pomposo no homem. Na verdade,

tudo em Berenger Sinclair era um pouco diferente, absolutamente sin-

gular. Os cabelos tinham um corte perfeito, embora fossem um pouco

compridos demais para ser aceitáveis na Câmara dos Lordes. A camisa de

seda era de Versace, em vez de Bond Street. A arrogância natural

decorrente do privilégio era amenizada pelo bom humor... um sorriso

enviesado, quase infantil, que ameaçava prevalecer enquanto ele

falava. Maureen sentiu um fascínio instantâneo. Ficou imóvel, como se

estivesse enraizada, enquanto ouvia o resto da explicação:

— Só a esposa tinha permissão para preparar o homem para o

sepultamento. A menos que ele morresse solteiro e neste caso a honra

era da mãe. Como pode ver neste quadro, a mãe de Jesus está

presente, mas obviamente não cuida desse encargo. O que só pode levar

a uma única conclusão.

Maureen olhou para o quadro, depois tornou a fitar o homem

carismático à sua frente.

— Que Maria Madalena era sua esposa — murmurou ela.

— Bravo, Srta. Paschal. — O escocês fez uma reverência teatral. —

Mas perdoe-me por ter esquecido por completo as boas maneiras.

Lorde Berenger Sinclair, a seu serviço.

Maureen adiantou-se para apertar a mão estendida. Mas Sinclair

surpreendeu-a ao segurar sua mão por um longo momento. Não a soltou

de imediato; em vez disso, virou a mão menor em sua mão maior e passou

um dedo de leve pelo anel. Tornou a sorrir para Maureen, um pouco

insinuante, piscando um olho.

Maureen ficou completamente desconcertada. Especulara muitas

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vezes como seria Lorde Sinclair em pessoa. O que quer que estivesse

esperando, não era aquilo. Tentou não parecer muito embaraçada quando

falou:

— Já sabe quem eu sou. — Ela virou-se para apresentar Peter. —

Este é...

Sinclair interrompeu-a:

— Padre Peter Healy, é claro. Seu primo, não é mesmo? E um

sábio homem. Seja bem-vindo a Paris, padre Healy. Sei que já esteve

aqui antes. — Ele olhou para o elegante e absurdamente caro relógio

suíço. — Temos alguns minutos. Venham comigo. Há coisas para ver

aqui que acho que vão considerar muito interessantes.

Sinclair falou olhando para trás, enquanto se afastava apressado

pela igreja.

— Diga-se de passagem, não percam tempo com o guia de viagem

que vendem aqui. São cinqüenta páginas que ignoram por completo a

presença de Maria Madalena. Como se ela pudesse desaparecer pelo

simples fato de ser ignorada.

Maureen e Peter seguiram seus passos acelerados. Pararam ao lado

de outro pequeno altar lateral.

— Como logo descobrirão, ela é apresentada em muitos lugares

desta igreja, mas deliberadamente ignorada. Aqui está um exemplo

maravilhoso.

Sinclair levou-os até uma estátua de mármore grande e elegante,

uma Pietà, a clássica escultura da Virgem Mãe com o corpo alquebrado

de Cristo. À direita da Virgem, Maria Madalena fora incluída na cena,

aninhando a cabeça no ombro da Virgem.

— O guia refere-se a esta obra apenas como “Pietà, século XVIII,

italiana”. Uma Pietà tradicional mostra a Virgem aninhando o filho depois

da crucificação. A inclusão de Maria Madalena nesta obra é bastante

heterodoxa, mas... foi deliberadamente ignorada.

Sinclair deixou escapar um suspiro dramático e sacudiu a cabeça

ante a injustiça de tudo aquilo.

— Qual é a sua teoria? — perguntou Peter, um pouco mais incisivo

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do que tencionava, pois havia alguma coisa em Sinclair que começava a

irritá-lo. — Que há uma conspiração da Igreja para excluir as referências a

Maria Madalena?

— Tire suas próprias conclusões, padre. Mas uma coisa posso

lhe dizer... há mais igrejas dedicadas a Maria Madalena na França do

que a qualquer outro santo, inclusive a Santa Mãe. Há toda uma

região de Paris que tem o seu nome... posso presumir que já esteve na

Madeleine?

Maureen ficou surpresa com a descoberta.

— Nunca havia me ocorrido até agora, mas Madeleine é Madalena

em francês, não é mesmo?

— Isso mesmo. Já esteve na igreja consagrada a ela na Madeleine?

É uma estrutura enorme, ostensivamente dedicada a Maria Madalena.

Mas, originalmente, em todas as obras de arte e ornamentos no interior,

não havia imagens de Maria Madalena. Absolutamente nenhuma.

Estranho, não é mesmo? Acrescentaram a escultura de Marochetti por

cima do altar. Pelo que sei, havia antes uma imagem da Assunção da

Virgem. Foi trocada por Maria Madalena por causa da pressão aplicada...

por aqueles que se importavam com a verdade.

— Suponho que você vai me dizer agora que Marcel Proust

também deu o nome a seus biscoitos em homenagem a ela — gracejou

Peter.

Em contraste com o fascínio imediato de Maureen, ele sentia-se

irritado pela segurança descontraída de Sinclair.

— São moldados como conchas por alguma razão.

Sinclair deu de ombros, deixando Peter refletir, enquanto se

juntava a Maureen, junto da Pietà.

— É quase como se tentassem apagá-la — comentou Maureen.

— É isso mesmo, minha cara Srta. Paschal. Muitas pessoas

tentaram nos fazer esquecer o legado de Madalena, mas sua presença

é muito forte. E, como você sem dúvida já deve ter notado, ela não será

ignorada, em particular...

Os sinos da igreja começaram a repicar, para anunciar o meio-dia,

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interrompendo a resposta de Sinclair. Em vez de continuar, ele tornou a

levá-los através da igreja, apressado. Apontou para uma estreita linha

meridiana de bronze, embutida no chão, estendendo-se pelo transepto

norte-sul. A linha terminava num obelisco de mármore, ao estilo egípcio,

com um globo dourado e uma cruz no alto.

— Venham depressa. É meio-dia agora e vocês precisam ver isso.

Só acontece uma vez por ano.

Maureen apontou para a linha de bronze.

— O que isto significa?

— É o Meridiano de Paris. Divide a França de uma maneira

muito interessante. Mas olhe ali em cima.

Sinclair apontou para uma janela por cima deles, no outro lado da

igreja. Quando eles se viraram para olhar, um raio de sol passou pela

janela e iluminou a linha de bronze embutida na pedra. Observaram a

luz dançar através do chão da igreja, seguindo o bronze. A luz subiu pelo

obelisco até alcançar o globo, iluminando a cruz dourada com uma

chuva de luz.

— Lindo, não é mesmo? Esta igreja está alinhada para marcar o

solstício com perfeição.

— É mesmo lindo — admitiu Peter. — E detesto romper sua

bolha de admiração, Lorde Sinclair, mas há uma legítima razão religiosa

para isso. A Páscoa é o domingo seguinte à lua cheia depois do equinócio

da primavera. Não era incomum que as igrejas procurassem meios de

identificar os equinócios e solstícios.

Sinclair deu de ombros. Virou-se para Maureen.

— Ele tem toda a razão.

— Mas há mais nesse Meridiano de Paris, não é mesmo?

— Alguns se referem a ele como A Linha de Madalena. Se quer

descobrir por quê, encontre-se comigo em minha casa no Languedoc

dentro de dois dias. Mostrarei a razão para isso e muito mais. Ah, já ia

me esquecendo...

Sinclair tirou um dos seus envelopes de papel apergaminhado de

um bolso interno do paletó.

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— Sei que conhece aquela adorável cineasta Tamara Wisdom. Ela

estará em nosso baile à fantasia, no final da semana. Espero que vocês

dois se juntem a ela. E insisto que também sejam meus hóspedes no

Château.

Maureen olhou para Peter, a fim de avaliar sua reação. Não

esperavam pelo convite.

— Lorde Sinclair, Maureen veio de muito longe para este encontro

— disse Peter. — Em sua carta, prometeu algumas respostas...

Sinclair interrompeu-o:

— Padre Healy, as pessoas vêm tentando compreender esse

mistério há dois mil anos. Não pode esperar saber de tudo em um único

dia. O verdadeiro conhecimento deve ser conquistado, não é mesmo?

Agora, estou atrasado para uma reunião e tenho de me apressar.

Maureen pôs a mão no braço de Sinclair para detê-lo.

— Mencionou meu pai em sua carta, Lorde Sinclair. Esperava que

pelo menos me dissesse o que sabe a seu respeito.

Sinclair fitou-a e abrandou.

— Tenho uma carta escrita por seu pai que achará muito

interessante. Não está aqui, é claro, mas no Château. É um dos motivos

pelos quais deve ser minha hóspede. Junto com o padre Healy, é claro.

Maureen estava aturdida.

— Uma carta? Tem certeza de que foi escrita por meu pai?

— O nome de seu pai não era Edouard Paul Paschal, escrito com a

grafia francesa? E ele não residia na Louisiana?

— Isso mesmo — respondeu Maureen, numa voz que era pouco

mais que um sussurro.

— Então a carta é dele, com toda a certeza. Encontrei-a nos

arquivos de nossa família.

— Mas o que diz...

— Seria uma terrível injustiça de minha parte se tentasse lhe

dizer que minha memória é abominável, Srta. Paschal. Terei o maior

prazer em lhe mostrar a carta assim que chegar ao Languedoc. Preciso ir

agora, pois estou bastante atrasado. Se precisarem de alguma coisa

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antes de partir, liguem para o número no convite e peçam para falar com

Roland. Ele os ajudará em qualquer coisa que for necessária.

Absolutamente qualquer coisa. Basta dizer.

Sinclair afastou-se às pressas, sem se despedir. Depois de alguns

passos, olhou para trás e acrescentou:

— Creio que já têm um mapa. Basta seguir a Linha de Madalena.

Os passos do escocês ressoaram pela vasta igreja, enquanto

atravessava o prédio, deixando Maureen e Peter olhando um para o

outro, perplexos.

Maureen e Peter avaliaram o estranho encontro com Sinclair

durante o almoço, num café na Rive Gauche. Tinham opiniões

diferentes a respeito dele. Peter estava desconfiado, à beira da irritação.

Já Maureen sentia-se fascinada.

Decidiram facilitar a digestão com um passeio pelo jardim de

Luxemburgo, um dos mais famosos parques da Europa.

Uma família com um bando de crianças barulhentas fazia um

piquenique na grama. Duas crianças pequenas corriam atrás de uma

bola de futebol — e uma da outra —, enquanto as crianças mais velhas e

os pais gritavam para estimulá-las. Peter parou para observar as

crianças, com uma expressão ansiosa.

— Qual é o problema? — perguntou Maureen.

— Não há nenhum. Eu apenas pensava na família. Minhas irmãs,

seus filhos. Sabia que não visito a Irlanda há dois anos? E nem vou falar

do tempo que você não vai lá.

— Fica a pouco mais de uma hora de avião daqui.

— Sei disso. E tenho pensado muito a respeito. Vamos ver o que

acontece por aqui. Se tiver tempo, posso passar alguns dias na Irlanda.

— Já sou crescidinha, Pete, e perfeitamente capaz de cuidar de

tudo sozinha. Por que não aproveita a oportunidade agora e visita a

família?

— E deixá-la sozinha nas mãos de Sinclair? Perdeu o juízo?

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A bola de futebol, agora disputada pelas crianças mais velhas,

correu na direção de Peter. Ele controlou-a, passando de um pé para

outro, e a chutou de volta. Com um pequeno aceno para as crianças que o

aplaudiram, Peter continuou o passeio com Maureen.

— Alguma vez se arrependeu de sua decisão?

— Qual decisão? De vir para Paris com você?

— Não. De se tornar padre.

Peter parou abruptamente, chocado com a pergunta.

— O que a levou a fazer essa pergunta?

— Apenas por observá-lo agora. Você adora crianças. Daria um

pai maravilhoso.

Peter recomeçou a andar, enquanto explicava:

— Não estou arrependido. Tinha uma vocação e segui-a. Ainda

tenho essa vocação e acho que sempre a terei. Sei que sempre foi difícil

para você compreender.

— Ainda é.

— E sabe o que é mais irônico?

— O quê ?

— Você é um dos motivos pelos quais me tornei padre.

Foi a vez de Maureen parar abruptamente:

— Eu? Como? Por quê?

— Leis ultrapassadas da Igreja fizeram você se virar contra sua fé.

Acontece o tempo todo, mas não deveria ser assim. E agora há ordens...

ordens mais jovens, mais estudiosas, mais progressistas... que

tentam levar a espiritualidade para o século XXI e torná-la acessível

para a juventude. Descobri isso com os jesuítas que conheci em Israel

na minha primeira visita ao país. Tentavam mudar justamente as

coisas que afastaram você. Eu queria ser parte disso. Queria

ajudá-la a encontrar sua fé outra vez. Você e outras pessoas na

mesma situação.

Maureen fitava-o fixamente, fazendo um esforço para

conter as lágrimas inesperadas que afloravam a seus olhos.

— Não posso acreditar que nunca tenha me contado isso

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antes.

Peter deu de ombros.

— Você nunca perguntou.

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... O sofrimento final de Easa significou puro tormento para todos nós,

mas causou um profundo impacto em Filipe. Com freqüência ele chorava no

sono e não me revelava o motivo, não permitia que eu o ajudasse.

Finalmente, descobri a verdade por intermédio de Bartolomeu, que comentou

que Filipe não queria me angustiar com lembranças tão terríveis. Todas as

noites, no entanto, Filipe era atormentado pelo pensamento da agonia de

Easa, pela maneira como seus ferimentos foram descritos.

Os homens me concederam a honra, já que fui a única entre todos que

testemunhou a paixão de Easa.

Durante nosso tempo no Egito, Bartolomeu tornou-se meu discípulo

mais dedicado. Queria saber tanto quanto possível e o mais depressa

possível. Era ansioso e ávido por conhecimento, como um homem faminto por

pão. Era como se o sacrifício de Easa tivesse aberto um buraco em

Bartolomeu que só podia ser preenchido pelos ensinamentos sobre O

Caminho. Compreendi, então, que ele tinha uma vocação especial, que

levaria as palavras de Amor e Luz para o mundo e, por meio de suas

pregações, muitas pessoas sofreriam mudanças. Por isso, todas as noites,

quando as crianças e os outros dormiam, eu ensinava os segredos a

Bartolomeu. Ele estaria preparado quando chegasse o momento.

Mas eu não podia saber se também estaria. Passara a amá-lo tanto

quanto a meu próprio sangue. Temia por ele... por sua beleza e pureza, que

os outros não compreenderiam tanto quanto era compreendido por aqueles

que mais o amavam. Bartolomeu era um homem sem astúcia.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO SETE

A região do Languedoc, na França

22 de junho de 2005

A paisagem da região rural da França voava pelas janelas do trem

em alta velocidade. Maureen e Peter não se importavam com a paisagem;

sua atenção concentrava-se totalmente nos vários mapas, livros e

documentos estendidos à sua frente.

— Et in Arcadia Ego... — murmurou Peter, escrevendo num bloco. —

Et... In... Arca-di-a... E-go...

Ele estava absorvido no mapa da França, o que tinha a linha

vermelha descendo pelo centro. Apontou para a linha.

— Veja como o Meridiano de Paris desce para o Languedoc, até

esta cidade, Arques. Um nome muito interessante.

Peter pronunciou o nome da cidade parecido com “Ark”, que

significa “Arca”.

— Como em Arca de Noé e Arca da Aliança?

Maureen estava muito interessada em descobrir para onde aquilo

os levaria.

— Exatamente. Arca é uma palavra versátil em latim... em geral,

significa um recipiente, mas também pode significar tumba. Espere um

instante. Deixe-me verificar isto.

Peter tornou a pegar o bloco e a caneta. Escreveu as letras de Et In

Arcadia Ego. Escreveu ARK no alto da página, em letras maiúsculas. Por

baixo, escreveu ARC, também em maiúsculas. Maureen teve uma idéia.

— Vamos pensar em ARC de outra maneira. ARC... ADIA. Talvez não

seja uma referência ao lugar mítico de Arcádia... não poderiam ser

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palavras separadas reunidas? Faz algum sentido em latim?

Peter escreveu, em letras maiúsculas: ARC A DIA.

— E então? — Maureen estava ansiosa por saber. — Isso significa

alguma coisa?

— Vendo dessa maneira, pode significar “Arca de Deus”. Com um

pouco de imaginação, a tradução da frase poderia ser: “e na Arca de Deus

eu estou”.

Peter apontou para a cidade de Arques no mapa.

— Suponho que você não saiba nada sobre a história de Arques? Se

a cidade tivesse uma lenda sagrada, a frase poderia significar: “e na aldeia

de Deus eu estou”.

— A propriedade de Sinclair fica junto de Arques.

— Eu sei. Mas isso não explicaria por que Nicholas Poussin pintou

o quadro há quatrocentos anos, não é mesmo? Ou por que você ouviu

vozes no Louvre quando olhava para o quadro. Acho que temos de

examinar as coisas que vêm acontecendo com você como separadas

de Sinclair, pelo menos por enquanto.

Peter estava empenhado em diminuir a importância de Sinclair na

experiência de Maureen. Ela tinha as visões de Madalena havia vários

anos, muito antes de ter ouvido falar de Berenger Sinclair. Maureen

acenou com a cabeça em concordância.

— Digamos que Arques fosse conhecida como um lugar sagrado

por alguma razão. “A Aldeia de Deus”... Poussin estava nos dizendo que

há alguma coisa importante ali, não é mesmo? É essa a teoria? “E na

aldeia de Deus eu estou”?

Peter balançou a cabeça, pensativo.

— Apenas um palpite. Mas não acha que a área em torno de

Arques merece uma visita?

Era o dia de feira na aldeia de Quillan. A comunidade no sopé

dos Pireneus franceses estava alvoroçada com o evento semanal. Os

habitantes do interior do Languedoc seguiam apressados de uma

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barraca para outra, abastecendo-se de vegetais frescos e peixes

trazidos do Mediterrâneo.

Maureen e Peter circularam pela feira. Maureen tinha na mão a

gravura de Os pastores de Arcádia. Um vendedor soltou uma risada,

apontando para a gravura:

— Ah, Poussin!

Ele começou a dar uma orientação, num francês muito rápido.

Peter pediu-lhe que falasse mais devagar. O filho de dez anos do

mercador percebeu a confusão de Maureen, enquanto o pai falava

com Peter em francês e decidiu tentar seu inglês precário, mas

intrépido:

— Quer visitar a tumba de Poussin?

Maureen acenou com a cabeça, excitada. Nem mesmo sabia

que a tumba do quadro ainda existia.

— Oui!

— Pegue a estrada principal e desça. Quando encontrar a

igreja, à esquerda. A tumba de Poussin fica no outeiro.

Maureen agradeceu ao menino. Abriu a bolsa e tirou uma

nota de cinco euros.

— Merci... merci beaucoup.

Ela estendeu a nota para o menino, que deu um largo sorriso.

— De rien, Madame. Bonne chance.

Foi o mercador quem disse isso, enquanto Maureen e Peter

deixavam o mercado. Mas foi seu filho que falou por último:

— Et in Arcadia Ego!

O menino soltou uma risada, antes de deixar a barraca para

gastar o dinheiro em balas e chocolates.

Os dois conseguiram destrinchar as instruções de pai e filho,

o que os levou pela estrada certa. Peter guiava devagar, enquanto

Maureen examinava a paisagem pela janela do carona.

— Ali! Não é aquilo? No alto daquele outeiro?

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Peter parou ao lado de uma encosta suave, com árvores e

moitas. Por trás dos arbustos, podiam ver os contornos superiores

de uma tumba de pedra retangular.

— Vi esse mesmo tipo de tumba na Terra Santa — comentou

Peter. — Há várias na região da Galiléia.

Ele fez uma pausa, como se um pensamento lhe ocorresse de

repente.

— O que foi? — indagou Maureen.

— Acaba de me ocorrer que há uma tumba assim na

estrada para Magdala. Parece muito com esta. Pode até ser idêntica.

Foram andando pela beira da estrada, à procura da trilha que

subia para a tumba. Descobriram que fora invadida pelo mato.

Maureen parou e ajoelhou-se no início da trilha.

— Olhe só para este mato crescido. Não é natural.

Peter ajoelhou-se ao seu lado. Examinou a vegetação na entrada da

trilha.

— Tem razão.

— Parece que alguém tentou deliberadamente esconder a trilha

— comentou Maureen.

— Pode ser coisa do dono do terreno. Talvez ele tenha se cansado

de pessoas como nós invadindo sua propriedade. Quatrocentos anos de

turistas podem levar qualquer um à loucura.

Os dois subiram com todo o cuidado, passando por cima do mato e

seguindo a trilha até o alto do outeiro. Quando a tumba retangular

de granito estava bem na frente, Maureen ergueu a gravura do quadro de

Poussin e comparou com a paisagem. O afloramento rochoso por trás

da tumba aparecia no quadro pintado há quatrocentos anos.

— É idêntica.

Peter aproximou-se da estrutura e passou a mão.

— Só que esta tumba é lisa. Não há inscrição.

— Então a inscrição foi invenção de Poussin?

Maureen deixou a pergunta pairar no ar, enquanto contornava a

tumba. Como a parte posterior da tumba estivesse coberta pelo mato,

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Maureen tentou remover as obstruções. Uma visão clara da parte

posterior fez com que ela chamasse Peter:

— Venha até aqui! Você tem de ver isto!

Peter foi para o seu lado e ajudou-a a afastar o mato. Sacudiu a

cabeça em incredulidade quando viu a causa do excitamento de

Maureen.

Gravada na parte de trás da tumba, havia um padrão de nove

círculos, em torno de um disco central.

Era idêntico ao desenho no anel antigo de Maureen.

Maureen e Peter passaram a noite num pequeno hotel em Couiza, a

poucos quilômetros de Arques. Tammy escolhera o hotel para eles, por

causa de sua proximidade com um lugar enigmático chamado

Rennes-le-Château, conhecido nos círculos esotéricos como “A Aldeia do

Mistério”. Ela voaria para o Languedoc ao final da noite. Haviam

combinado que se encontrariam no dia seguinte, para o café da manhã.

Tammy entrou esfuziante no pequeno restaurante do hotel, onde

Maureen e Peter tomavam café enquanto a esperavam.

— Desculpem a demora. Meu vôo para Carcassonne atrasou e já

passava de meia-noite quando cheguei aqui. Levei uma eternidade para

dormir e não consegui acordar cedo.

— Fiquei preocupada quando não recebi notícias suas ontem à

noite — disse Maureen. — Veio guiando desde Carcassonne?

— Não. Tenho outros amigos que irão à festa de Sinclair amanhã

à noite e viajei com eles. Um deles mora aqui e foi nos buscar.

Uma cesta com croissants foi posta na mesa. O garçom anotou o

pedido de Tammy. Ela esperou que o garçom fosse para a cozinha antes

de acrescentar:

— Agora, precisamos fazer o check-out esta manhã.

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Maureen e Peter ficaram perplexos.

— Por quê? — perguntaram os dois, ao mesmo tempo.

— Sinclair está furioso porque viemos para um hotel. Deixou um

recado para mim ontem à noite. Ele tem quartos reservados no Château

para todos nós.

Peter parecia cauteloso.

— Não gosto dessa idéia. — Ele virou-se para argumentar

com Maureen. — Prefiro permanecer aqui. Acho que é mais seguro para

você. O hotel é território neutro, um lugar para onde podemos nos

retirar se acontecer alguma coisa que a deixe constrangida.

Tammy ficou irritada.

— Sabem quantas pessoas seriam capazes de matar por um

convite assim? O Château é fantástico, é como um museu habitado. Você

correrá o risco de ofender Sinclair se não aceitar, Maureen, e pode não

querer isso. Ele tem muito a lhe oferecer.

Maureen estava indecisa. Olhou de um para o outro. Peter tinha

razão ao dizer que o hotel era um território neutro. Mas sua imaginação

foi atiçada pela perspectiva de se hospedar no Château... e observar de

perto o enigmático Berenger Sinclair. Tammy percebeu o dilema em que ela

se encontrava.

— Já expliquei que Sinclair não é perigoso. Ao contrário, acho que

é um homem maravilhoso. — Ela olhou para Peter. — Mas se você sente

diferente, lembre-se do ditado antigo: “É preciso manter os amigos por

perto, mas os inimigos ainda mais perto.”

Ao final do café da manhã, Tammy já os convencera a deixar o hotel.

Peter observou-a com toda a atenção enquanto comiam, registrando

para si mesmo que ela era uma mulher bastante persuasiva.

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Rennes-le-Château, França

23 de junho de 2005

— Vocês nunca encontrariam este lugar pela primeira vez se

alguém não mostrasse o caminho. — Tammy vinha dando as instruções

do banco de trás. — Vire à direita ali. Está vendo aquela pequena

estrada? Sobe a encosta para Rennes-le-Château.

A estrada estreita era mal pavimentada, subindo em ziguezague,

numa sucessão de curvas fechadas. No alto da encosta, uma placa quase

oculta pelo mato alto anunciava o nome do pequeno povoado,

— Pode estacionar ali.

Tammy indicou uma clareira na entrada da pequena aldeia. Ao

sair do carro, Maureen olhou para seu relógio. Deixou escapar uma

exclamação de surpresa, antes de comentar:

— E muito estranho. Meu relógio parou, embora eu tenha trocado

a bateria pouco antes de deixar os Estados Unidos.

Tammy riu.

— A diversão já começou. O tempo assume um novo significado

aqui, no alto da montanha mágica. Garanto que seu relógio voltará ao

normal assim que deixarmos esta área.

Peter e Maureen trocaram um olhar, enquanto seguiam Tammy.

Ela não se deu ao trabalho de explicar. Apenas continuou a andar,

olhando para trás uma vez, a fim de fazer um gracejo:

— Senhoras e senhores, estão entrando agora na chamada Zona

do Crepúsculo... Além da Imaginação.

A aldeia proporcionava uma visão estranha, de uma terra que o

tempo esquecera. Era surpreendentemente pequena e parecia deserta.

— Alguém vive aqui? — perguntou Peter.

— Claro. É uma aldeia em pleno funcionamento. Tem menos de

duzentos habitantes, mas ainda assim é habitada.

— É estranhamente quieta — comentou Maureen.

— É sempre assim, até que ônibus de excursão descarreguem seus

passageiros — explicou Tammy.

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À direita, na entrada da aldeia, havia o que restava de um castelo,

uma construção quase em ruínas, que dava o nome à localidade.

— É o Château Hautpol. Era um baluarte dos Cavaleiros

Templários durante as cruzadas. Estão vendo aquela torre? — Ela

apontou para uma pequena torre decrépita. — Não se deixem enganar

por sua localização remota e pelo estado em que se encontra. É

conhecida como “a Torre da Alquimia”, um dos mais importantes

marcos esotéricos da França. Talvez do mundo.

— Será que você vai nos explicar por quê?

Peter descobria que sua irritação era cada vez maior. Estava

cansado de jogos envoltos por mistérios. Queria apenas que alguém lhe

desse algumas respostas que fizessem sentido.

— Claro que explicarei, mas não agora. Porque não vai significar

nada até vocês conhecerem a história da aldeia. Deixarei isso por

último. Prometo que contarei na hora de ir embora.

Passaram por uma pequena livraria, à esquerda. Estava fechada,

mas livros sobre ocultismo destacavam—se na vitrine.

— Não é a sua aldeia rural católica típica, não é mesmo? —

murmurou

Maureen para Peter, enquanto Tammy seguia na frente.

— Aparentemente, não é mesmo — concordou Peter, olhando para

o estranho inventário de livros e o pentagrama desenhado na vitrine.

Outra estranheza, na parede do outro lado da rua estreita, atraiu

a atenção de Maureen, enquanto seguiam Tammy pelas ruas de

calçamento de pedra da estranha aldeia. Gravado no lado de uma casa, ao

nível dos olhos, podia ver o que parecia ser um relógio de sol. A peça

central de metal havia muito caíra, deixando um buraco. Uma

observação mais atenta mostrava que não havia nada de corriqueiro

nas marcas. Começavam pelo número nove e continuavam até o

número dezessete, com a meia hora indicada nos intervalos. Mas, sobre

os números, havia uma série de símbolos arcanos. Peter olhou por cima

do ombro de Maureen, enquanto ela apontava os estranhos glifos.

— O que você acha que significam? — perguntou ela.

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Tammy voltou, sorrindo como o gato que comeu sardinha.

— Vejo que encontraram a primeira das importantes

singularidades de RLC.

— RLC?

— Rennes-le-Château. É assim que todos chamam, porque o

nome completo é muito comprido.

Maureen tornou a se virar para o que fora gravado na parede. Peter

fazia um exame atento.

— Reconheço estes símbolos. São os planetas. Aqui estão a Lua e

Mercúrio. Isto é o Sol?

Ele apontava para um círculo com um ponto no centro.

— Claro que é — respondeu Tammy. — E este é Saturno. Os outros

símbolos são de astrologia. Aqui estão Libra, Virgem, Câncer e Gêmeos.

Maureen teve uma idéia.

— Escorpião está em algum lugar? Ou Sagitário?

Tammy sacudiu a cabeça em negativa, mas apontou para o lado

esquerdo do relógio de sol, que seria a posição de sete horas num relógio

comum.

— Não. Estão vendo aqui, onde as marcas param? É o planeta Sa

turno. Se as marcas continuassem, no sentido anti-horário, teríamos

Escorpião, depois Libra e Sagitário.

— Por que pára num ponto tão estranho? — perguntou Maureen.

— E o que isso significa? — acrescentou Peter, muito mais

interessado numa resposta.

Tammy ergueu as mãos, num gesto de quem não podia ajudar.

— Achamos que é uma referência a um alinhamento planetário.

Além disso, não sabemos mais nada.

Maureen continuou a olhar. Lembrou o afresco de Botticelli no

Louvre. Tentava determinar se havia alguma ligação com o escorpião no

quadro. Queria compreender o possível uso daquele estranho relógio de

sol, se é que era isso mesmo.

— É mais ou menos como “quando a Lua está na sétima casa e

Júpiter alinha com Marte”?

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— Se vocês duas começarem a cantar “Age of Aquarius”, eu vou

embora — anunciou Peter.

Todos riram. Tammy explicou:

— Mas ela está certa. Provavelmente é uma referência a um alinha

mento planetário específico. E como está aqui, na frente de uma casa,

proeminente, temos de presumir que fosse importante que todas as

pessoas na aldeia soubessem disso.

Tammy reiniciou a excursão.

— O ponto focal da aldeia é o museu e toda a área do prédio. Fica

bem à nossa frente.

Ao final da rua estreita, havia uma exótica casa de pedra. Uma

torre de formato estranho projetava-se para o céu a alguma distância,

aderindo à encosta da montanha.

— O mistério desta aldeia decorre de uma história muito

estranha sobre um sacerdote famoso... ou melhor, infame... que viveu

aqui, no final do século XIX, o abbé Berenger Saunière.

— Berenger? Não é o primeiro nome de Sinclair? — perguntou Peter.

Tammy balançou a cabeça em confirmação.

— Isso mesmo. E não é por coincidência. O avô de Sinclair

esperava, ao dar o mesmo nome ao neto, que ele herdasse algumas

qualidades do homônimo... Saunière era destemido na proteção das

histórias e mistérios locais, com uma devoção absoluta ao legado de

Maria Madalena.

Ela fez uma pausa, antes de continuar.

— Seja como for, há várias lendas sobre o que o abbé encontrou

aqui quando se empenhou em restaurar a igreja. Alguns acham que ele

descobriu o tesouro perdido do templo de Jerusalém. Como o Château

adjacente estava associado aos Cavaleiros Templários, é possível que

usassem este remoto posto avançado para esconder os despojos da Terra

Santa. Quem procuraria por qualquer coisa valiosa aqui em cima? E

alguns dizem que Saunière encontrou documentos de valor inestimável.

O que quer que tenha sido, ele tornou-se muito rico, de maneira súbita e

misteriosa. Gastou milhões enquanto viveu, embora ganhasse o

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equivalente a vinte e cinco dólares de salário como padre local. Então, de

onde vinha todo o dinheiro que ele gastava?

Tammy olhou para a torre.

— Na década de 1980, três pesquisadores britânicos escreveram

um livro sobre Saunière e sua riqueza misteriosa, que se tornou um best-

seller. Saiu nos Estados Unidos com o título de Holy Blood, Holy Grail (O

Santo Graal e a linhagem sagrada), e é considerado um clássico nos círculos

esotéricos. A má notícia é que o livro criou uma obsessão de caça ao

tesouro nesta região. Os recursos naturais foram saqueados, os pontos

de referência locais foram vandalizados por fanáticos religiosos e

caçadores de suvenires. Sinclair precisou até pôr guardas armados em

sua propriedade para proteger a tumba.

— A tumba de Poussin? — indagou Maureen.

— Claro. É a parte central de todo o mistério por causa dos Pastores

de Arcádia.

— Visitamos a tumba ontem — disse Peter. — Não vi nenhum

guarda.

Tammy soltou uma risada, sonora e gutural.

— Porque são bem-vindos na propriedade de Sinclair. Podem ter

certeza de que ele sabe que estiveram ali. E se não quisesse que

vissem a tumba, vocês saberiam.

Chegaram ao prédio grande, que dominava a aldeia. Uma placa

anunciava: “Villa Bethania — Residência de Berenger Saunière”.

Quando passaram pelas portas do museu, Tammy sorriu e inclinou

a cabeça para a mulher sentada a uma mesa, junto da entrada, que

acenou com a mão para que eles passassem.

— Não precisamos comprar ingressos? — indagou Maureen, ao ver

a placa com os preços.

— Não — respondeu Tammy. — Eles me conhecem aqui. Estou

usando o lugar como um cenário para um documentário sobre a

história da alquimia.

Passaram por mostruários de vidro com vestimentas sacerdotais

usadas pelo abbé Saunière, no século XIX. Peter parou para examiná-las,

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enquanto Tammy continuava até o final do corredor. Ela parou junto de

uma antiga coluna de pedra, onde havia uma cruz gravada.

— É chamada de Coluna dos Cavaleiros. Acredita-se que a cruz

foi gravada pelos visigodos, no século VIII. Era parte do altar da velha

igreja. Quando o abbé Saunière tirou a coluna, durante as obras de

restauração, encontrou alguns misteriosos pergaminhos codificados...

ou pelo menos é o que dizem.

Os pergaminhos expostos tinham cópias ampliadas, por decisão

dos curadores do museu, para tornar o código mais óbvio. As letras

dispersas sobressaíam em preto. Mas um exame mais atento indicava

que não havia nada de aleatório em sua disposição. Maureen apontou

para a frase “ET IN ARCADIA EGO”, em letras maiúsculas escurecidas.

— Aqui está outra vez — comentou Maureen para Tammy. Ela

olhou para Tammy. — O que isso significa? E alguma espécie de código?

— Já ouvi pelo menos cinqüenta teorias diferentes sobre o

significado dessa frase. E quase que foi a causa exclusiva da criação de

uma indústria de construção de chalés.

— Peter formulou uma teoria interessante no trem que nos trouxe

até aqui. Achou que a referência era à aldeia de Arques. “Em Arques, a

aldeia de Deus, eu estou.”

Tammy ficou impressionada.

— Bom palpite, padre. A convicção mais comum é a

explicação do anagrama em latim. Se você muda as posições das

letras, passa a ler I Tego Arcana Dei.

Peter traduziu:

— Eu escondo os segredos de Deus.

— Isso mesmo. Não ajuda muito, não é? — Tammy riu. —

Vamos sair. Quero que vejam a casa por fora.

Peter ainda estava pensando na tumba de Poussin.

— Espere um instante. Isso não poderia insinuar que havia

alguma coisa escondida dentro da tumba? Se juntar tudo, a frase

seria mais ou menos o seguinte: “Em Arques, a aldeia de Deus, eu

escondo os segredos.”

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Maureen e Peter esperaram pela resposta de Tammy. Ela fez

uma pausa, pensando por um momento.

— É uma teoria tão boa quanto qualquer outra que já ouvi.

Infelizmente, a tumba foi aberta e revistada muitas vezes. O avô

de Sinclair escavou cada palmo da propriedade por um

quilômetro quadrado ao redor da tumba. Berenger utilizou todo

tipo de tecnologia imaginável à procura do tesouro enterrado...

ultra-som, radar e outras coisas.

— E nunca descobriram qualquer coisa? — perguntou Maureen.

— Absolutamente nada.

— Talvez alguém tenha chegado primeiro — sugeriu Peter. — O

que me diz desse sacerdote chamado Saunière? Não poderia ser isso

que o deixou tão rico? Um tesouro que ele descobriu?

— É o que muitas pessoas acham. Mas quer saber de uma

coisa engraçada? Depois de décadas de pesquisas, empreendidas

por homens e mulheres muito determinados, ninguém sabe até hoje

qual era o segredo de Saunière.

Tammy levava-os por um pátio adorável, dominado por um

chafariz de pedra e mármore.

— Impressionante para um simples padre paroquial do século

XIX — comentou Peter.

— Não é mesmo? E há outro fato muito estranho. Embora o

abbé Saunière tenha gasto uma fortuna para construir esta casa,

nunca residiu aqui. Mais do que isso, recusava-se a fazê-lo. E

acabou deixando a casa para sua... governanta.

— Fez uma pausa antes de dizer governanta — ressaltou Peter.

— Muitas pessoas acham que ela era mais do que a

governanta de Saunière. Era sua parceira na vida.

— Mas ele não era um sacerdote católico?

— Não julgue, padre. Este sempre foi meu lema.

Maureen afastara-se um pouco, a atenção atraída por uma

escultura desgastada pelo tempo.

— De quem é a estátua?

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— Joana d'Arc — respondeu Tammy.

Peter adiantou-se para examinar a estátua.

— É isso mesmo. Ela está com sua espada e estandarte. Mas

parece deslocada aqui.

— Por quê? — perguntou Maureen.

— Ela parece... muito tradicional. Um símbolo clássico do

catolicismo francês. Mas parece não haver mais nada por aqui que seja

remotamente convencional.

— Joana... convencional? — Tammy deu outra risada. — Não por

estas bandas. Mas deixaremos a lição de história para mais tarde.

Querem ver uma coisa realmente heterodoxa? Vamos até a igreja.

Mesmo ao calor e sol do verão, Rennes-le-Château era um lugar de

estranheza e sombras. Maureen tinha a desconcertante sensação de ser

seguida, de uma silhueta esgueirando-se em sua esteira a cada volta no

jardim. Descobriu-se a virar rapidamente, em várias ocasiões, apenas para

descobrir que não havia ninguém ali. A aldeia deixava-a nervosa... um

lugar estranho em que seu relógio não funcionava, em que tinha a

sensação de que alguém a seguia. Por mais fascinante que fosse, ficaria

feliz ao sair dali, o mais cedo possível.

Tammy levou-os para fora do jardim. Contornaram a casa. Através

de outro pátio, ela divisou a entrada de uma velha igreja de pedra.

— Esta é a igreja paroquial de RLC. Havia uma igreja consagrada

a Maria Madalena neste local cuja origem remontava a mil anos. Saunière

começou a reformá-la por volta de 1891, mais ou menos a ocasião em

que teria encontrado os documentos misteriosos. Levou-os para Paris e

logo depois se tornou um milionário. Usou o dinheiro para fazer alguns

acréscimos insólitos à igreja.

Ao alcançarem a entrada da igreja, Peter parou para ler em voz alta

a inscrição no lintel:

— Terribilis est locus iste.

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— Terribilis? — indagou Maureen.

— Este lugar é terrível — traduziu Peter.

— Reconhece, padre? — perguntou Tammy.

— Claro. — Se Tammy queria testar seus conhecimentos bíblicos,

pensou Peter, teria de se esforçar muito mais. — Gênesis, capítulo vinte e

oito. Jacó diz depois de sonhar com a escada para o céu.

— Por que um padre escolheria essa frase para inscrever na entrada

de sua igreja? — indagou Maureen, olhando para Peter e Tammy à

procura de uma resposta.

— Talvez seja melhor dar uma olhada dentro da igreja antes de

tentar responder.

A sugestão foi de Tammy. Peter aceitou-a, entrando na igreja.

— A escuridão é total aqui — avisou ele.

— Espere um instante. — Tammy tirou uma moeda de euro da

bolsa. — As luzes são acionadas por moedas.

Ela inseriu a moeda na fenda de uma caixa ao lado da porta. As

luzes fluorescentes acenderam.

— Na primeira vez em que vim aqui, tentei ver a igreja no escuro.

Trouxe uma lanterna na segunda vez. Foi então que um dos zeladores me

mostrou a caixa de moeda. Dessa maneira, os turistas podem ajudar na

manutenção da igreja. As luzes ficam acesas durante cerca de vinte

minutos.

— O que é isso? — indagou Peter.

Enquanto Tammy explicava a situação da luz, Peter virara-se para

ver a estátua de um hediondo demônio, agachado na entrada da igreja.

— Esse é Rex. Oi, Rex. — Tammy afagou a cabeça da estátua,

jovial. — Ele é como a mascote oficial de Rennes-le-Château. E como

acontece com todo o resto aqui, há toneladas de teorias a seu respeito.

Alguns dizem que é o demônio Asmodeu, o guardião dos segredos e

tesouros ocultos. Outros dizem que é o Rex Mundi da tradição dos

cátaros, e essa é a minha convicção.

— Rex Mundi... o Rei do Mundo? — indagou Peter.

Tammy acenou com a cabeça em confirmação. Explicou para

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Maureen:

— Os cátaros dominaram esta região na Idade Média. Há uma

igreja aqui desde 1059, quando o catarismo estava no auge. Eles

acreditavam que um ser inferior era o guardião do plano da Terra, um

demônio que chamavam de Rex Mundi... o Rei do Mundo. Nossas almas

estão empenhadas numa luta constante para derrotar o demônio Rex e

alcançar o Reino de Deus, que é o domínio do espírito. Rex representa

todas as tentações terrenas e físicas.

— Mas o que ele faz numa igreja católica consagrada? —

perguntou Peter.

— Está sendo vencido pelos anjos, é claro. Olhe para cima.

Havia estátuas de quatro anjos, fazendo o sinal-da-cruz, por cima

das costas do demônio, no alto de uma fonte de água benta, moldada

como se fosse uma enorme concha. Peter leu a inscrição em voz alta e

depois traduziu:

— Par ce signe tu le vaincrais. Por este sinal, tu o vencerás.

— O bem derrota o mal. O espírito conquista a matéria. Os anjos

prevalecem sobre os demônios. Heterodoxo, é verdade, mas très Saunière.

— Tammy passou a mão pela cabeça de Rex. — Estão vendo isto?

Alguém arrombou a igreja há alguns anos e cortou a cabeça de Rex. Esta

é uma substituta. Ninguém sabe se era um caçador de suvenires ou um

católico furioso, protestando contra um símbolo tão dualista num

terreno consagrado. Ao que eu saiba, é a única estátua de um demônio

numa igreja católica. E isso mesmo, padre?

Peter acenou com a cabeça em confirmação:

— Eu diria que não conheço qualquer coisa parecida numa igreja

católica romana. É essencialmente uma blasfêmia.

— Os cátaros, que dominaram esta região, eram dualistas.

Acreditavam em duas forças divinas opostas, uma que trabalhava para o

bem, empenhada em purificar a essência do espírito, e outra que

trabalhava para o mal, acorrentada ao corrupto mundo material. Olhem

para o chão aqui.

Os ladrilhos que formavam o chão da igreja eram pretos e brancos,

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dispostos como um tabuleiro de xadrez.

— Outra das concessões de Saunière à dualidade... preto e branco,

o bem e o mal. Mais toques excêntricos. Acho que Saunière era astuto

como uma raposa. Nasceu a poucos quilômetros daqui e compreendia

muito bem a mentalidade local. Sabia que sua congregação descendia de

sangue cátaro e que tinha bons motivos para desconfiar de Roma,

mesmo tantos séculos depois. Sem ofensa, padre.

— Não me senti ofendido. — Peter estava se acostumando às

provocações de Tammy. Pareciam sempre joviais e ele sinceramente

não se importava. Começava até a apreciar seu comportamento

excêntrico. — A Igreja lidou com a heresia catara de uma maneira muito

rigorosa. Posso compreender por que ainda parece injuriosa para os

habitantes locais.

Tammy virou-se para Maureen:

— A única cruzada oficial na história em que cristãos mataram

outros cristãos. O exército do papa massacrou os cátaros, e ninguém por

aqui jamais esqueceu esse fato. Assim, ao acrescentar elementos cátaros

e gnósticos à sua igreja, Saunière criou um ambiente em que seu rebanho

podia se sentir à vontade. Com isso, aumentou a freqüência e a lealdade.

Deu certo. Os habitantes locais amavam-no a ponto de reverenciá-lo.

Peter circulou pela igreja, absorvendo tudo. Cada elemento da

ornamentação era bizarro. Era vulgar, exagerado e anticonvencional.

Havia estátuas de gesso pintadas, de santos pouco conhecidos, como

São Roque levantando a túnica para mostrar a perna ferida ou Santa

Germana, apresentada como uma jovem pastora carregando um cordeiro.

Em todas as obras de arte na igreja, havia alguma coisa irregular ou

insólita. A que mais se destacava era uma escultura quase em tamanho

natural do batismo de Jesus, mostrando João inclinado sobre ele...

vestido incongruentemente em túnica e capa romana.

— Por que alguém poria João Batista com as roupas de um romano?

— indagou Peter.

Uma sombra passou pelo rosto de Tammy, por um breve instante,

mas ela não respondeu. Em vez disso, prosseguiu em seu comentário,

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enquanto levava-os para o altar:

— A lenda local diz que o próprio Saunière pintou algumas obras.

Temos certeza de que ele foi responsável no mínimo pelo retábulo.

Maureen seguiu Tammy até o lugar em que um baixo-relevo de

Maria Madalena era o ponto focai do altar. Seus ícones habituais a

cercavam: o crânio a seus pés, o livro ao seu lado. Ela olhava para uma

cruz que parecia ser feita de uma árvore viva.

Peter concentrou-se nas placas em alto-relevo que descreviam as

estações da cruz. Como as estátuas, cada peça continha um detalhe

estranho ou idiossincrasia, que era contrário à tradição da Igreja.

Eles examinaram os elementos bizarros dentro da igreja, cada um

se tornando mais uma peça no crescente mistério em torno deles.

Inesperadamente, um clique forte ressoou pela igreja e eles ficaram

mergulhados na total escuridão.

Maureen entrou em pânico. As sombras que a seguiam, mesmo à

luz do sol, eram sufocantes ali.

Ela gritou por Peter.

— Estou aqui! — gritou ele em resposta. — Onde você está?

A acústica na igreja fazia com que o som ricocheteasse de um lado

para outro, tornando impossível determinar a posição de qualquer pessoa.

— Junto do altar! — berrou Maureen.

— Está tudo bem! — gritou Tammy. — Não entrem em pânico.

Nosso tempo esgotou... foi só isso.

Tammy foi abrir a porta para deixar a luz do dia entrar, permitindo

que Peter e Maureen se encontrassem na escuridão. Ela segurou-o e

correu para a porta da frente. Deliberadamente, olhou para a esquerda,

para não ver outra vez a estátua do demônio.

— Sei que foi uma questão de mecânica, mas mesmo assim me

deixou toda arrepiada. A igreja é muito... esquisita.

Maureen tremia, apesar do sol do Languedoc, quase a pino. Aquela

aldeia, que parecia de outro mundo, esquecida pelo tempo, era

absolutamente desconcertante, fora de seu âmbito de experiência. Havia

uma sensação de caos sob a superfície ali. Embora a aldeia estivesse

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quase deserta, havia uma qualidade ensurdecedora em seu silêncio.

Maureen olhou para o pulso e lembrou que o relógio parara por completo

desde que chegara ali, um fato que aumentava ainda mais sua

apreensão.

Peter tinha muitas perguntas para Tammy, enquanto ela os levava

de volta através do jardim e contornava a Villa Bethania.

— Não posso imaginar que Saunière tenha feito tudo isso sem

entrar em conflito com as autoridades eclesiásticas.

— Ele teve problemas... e foram muitos — explicou Tammy. — Até

tentaram afastá-lo, substituindo-o por outro padre, mas não deu certo.

Os moradores não aceitavam mais ninguém, porque Saunière era um

deles. Ele estava bem preparado para assumir o cargo, ao contrário do que

você vai ler na maioria dos livros. É engraçado que supostas autoridades

sobre RLC falem da vinda de Saunière para cá como uma espécie de

ocorrência fortuita. Podem ter certeza de que nada do que acontece nesta

região é coincidência. Há forças poderosas demais em ação aqui.

— Refere-se a forças poderosas humanas ou forças poderosas

sobrenaturais?

— Ambas.

Tammy gesticulou para que eles a seguissem. Encaminhou-se para

uma torre de pedra na extremidade oeste da propriedade, na beira de um

penhasco.

— Vocês ainda não viram a pièce de résistance. A Tour Magdala.

— Tour Magdala? — perguntou Maureen, intrigada com o nome.

— A Torre de Madalena. Era a biblioteca particular de Saunière.

Mas é a vista que vale o esforço.

Eles seguiram Tammy para o interior da pequena torre.

Examinarem por um breve momento alguns itens pessoais de Saunière,

em caixas de vidro, antes de subir os vinte e dois degraus para a

plataforma de observação. A vista era espetacular.

Tammy apontou para uma colina distante.

— Podem ver aquela colina? É Arques. E no outro lado do vale fica

a lendária aldeia de Coustassa, onde outro sacerdote, um amigo de

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Saunière chamado Antoine Gelis, foi brutalmente assassinado em sua

casa. Vasculharam a casa, e acredita-se que o assassino ou assassinos

procuravam por alguma coisa mais importante do que dinheiro.

Deixaram moedas de ouro em cima de uma mesa, mas levaram todos os

documentos. O pobre velho já tinha mais de setenta anos. Foi encontrado

no meio de uma poça de seu próprio sangue, assassinado com um

atiçador de lareira e um machado.

— Que coisa horrível!

Maureen estremeceu, reagindo à história contada por Tammy, mas

também ao local em que se encontravam. Por mais fascinada que estivesse

por aquele lugar, também sentia uma certa repulsa.

— Há pessoas dispostas a matar por esses mistérios — comentou

Peter, incisivo.

— Mas isso aconteceu há um século. Gosto de pensar que somos

mais civilizados hoje em dia.

— O que aconteceu com Saunière?

Maureen conduziu a história de volta ao estranho sacerdote e seus

misteriosos milhões.

— As coisas se tornaram ainda mais estranhas. Ele sofreu um

derrame dias depois de encomendar o próprio caixão. Diz a lenda local

que um sacerdote de fora foi chamado para ministrar a extrema-unção,

mas recusou-se a fazê-lo depois de ouvir a confissão final de Saunière. O

Pobre coitado deixou Rennes-le-Château em profunda depressão e

dizem que nunca mais tornou a sorrir.

— O que será que Saunière contou para ele?

— Ninguém sabe com certeza. Parece que a única exceção foi a

suposta governanta, Marie Denarnaud, para quem Saunière deixou toda a

sua riqueza... e seus segredos. Ela também morreu misteriosamente,

alguns anos depois. Como se tornou incapaz de falar, nos últimos dias

de sua vida, ninguém jamais soube o que foi dito.

Tammy contemplou a vista sensacional.

— É por isso que a aldeia passou a contar com uma próspera

indústria. Cem mil turistas visitam todos os anos este lugar tão

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atrasado. Muitos vêm por curiosidade, mas alguns estão determinados

a encontrar o tesouro de Saunière.

Ela foi até a beira da plataforma e olhou para o vale lá embaixo.

— Não sabemos com certeza por que ele construiu a torre aqui,

mas pode-se apostar que procurava alguma coisa. Não concorda, padre?

Tammy piscou para Peter, depois recuou para a escada da torre.

Enquanto os três seguiam para o carro, Maureen insistiu para

que Tammy cumprisse a promessa anterior de explicar a Torre da

Alquimia. Tammy hesitou, sem saber por onde começar. Havia inúmeros

livros escritos sobre aquela região e ela passara anos pesquisando. Por isso

era sempre difícil apresentar uma versão condensada.

— Há alguma coisa nesta região que atrai as pessoas há milhares

de anos. Tem de ser alguma coisa intrínseca, algo na própria terra. De

que outra forma se explicaria o fato de existir uma atração universal que

se estende por mais de dois mil anos de história e abrange as mais

variadas convicções religiosas? Como tudo o mais aqui, há incontáveis

teorias. É sempre divertido começar pelas mais absurdas... aquelas que

garantem que tudo está ligado a alienígenas e monstros marinhos.

— Monstros marinhos? — Peter riu junto com Maureen,

enquanto fazia a pergunta. — Eu quase que poderia esperar por

alienígenas, mas monstros marinhos?

— Não estou brincando. Os monstros marinhos são uma

presença constante nos mistérios locais. O que é estranho para uma

região que não tem mar como esta, mas não tão bizarro quanto

algumas histórias de disco-voador. Há alguma coisa por aqui que deixa

as pessoas quase que literalmente loucas. E há ainda o elemento do

tempo. Seu relógio continua parado?

Maureen já sabia a resposta, mas mesmo assim olhou para baixo, a

fim de ter a confirmação. O relógio continuava parado em 9:33 havia

mais de uma hora. Ela balançou a cabeça.

— Provavelmente continuará parado até deixarmos a montanha

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— comentou Tammy. — Há alguma coisa que afeta os relógios, mecânicos

e eletrônicos. Pode ser um dos motivos pelos quais tantas pessoas por

aqui ainda usam relógio de sol, mesmo no século XXI. Não acontece

com todo mundo, mas não dá para descrever quantos encontros

estranhos já tive pessoalmente.

Ela começou a contar uma de suas muitas histórias sobre os

inexplicáveis elementos de tempo na área de Rennes-le-Château.

— Eu vinha de carro para cá com alguns amigos. Verificamos os

relógios dentro do carro, na base da colina. Quando chegamos lá em cima,

o relógio do carro indicava que leváramos quase meia hora para cobrir a

distância. Você guiou agora... quanto tempo durou, mesmo subindo

devagar? Cinco minutos?

A pergunta foi dirigida a Peter, que acenou com a cabeça em

concordância.

— Não muito mais do que isso.

— Não é longe, talvez três quilômetros. Por isso pensamos que o

relógio do carro tivesse algum problema, até que conferimos em nossos

relógios. Meia hora havia mesmo passado. Todos sabíamos que não

havíamos passado meia hora naquela estrada. Mas, de alguma forma,

trinta minutos completos transcorreram até chegarmos ao topo da colina.

Posso explicará Não. Foi como se tivesse ocorrido alguma distorção no

tempo. Desde então, conversamos com inúmeras pessoas que tiveram a

mesma experiência. Os moradores locais nem se dão mais ao trabalho de

se preocupar com isso, porque já estão acostumados. Pergunte a respeito e

eles dão de ombros, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Ela fez uma pausa.

— Mas muitas pessoas experimentaram fenômenos similares

junto da Grande Pirâmide e dentro de alguns locais sagrados na Grã-

Bretanha e Irlanda. O que acontece? É alguma espécie de força

magnética? — Ou é alguma coisa intangível e por isso impossível de ser

entendida por nossos débeis cérebros humanos?

Tammy discorreu sobre as várias teorias que haviam sido

formuladas Por locais e equipes internacionais de pesquisadores,

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enumerando uma lista de possibilidades: as linhas ley (que ligam os

pontos de poder), vórtices do tempo, terra oca, portais estelares.

— Salvador Dali dizia que a estação ferroviária em Perpignan era

o centro do universo, porque era o lugar em que se cruzavam essas forças

magnéticas.

— Qual é a distância daqui para Perpignan? — perguntou Maureen.

— Cerca de sessenta quilômetros. Perto o bastante para tornar a

cidade interessante, sem dúvida. Eu gostaria de respostas para tudo isso,

mas não tenho. Ninguém tem. Lembram aquele meridiano que Sinclair

mostrou na igreja de Saint-Sulpice em Paris?

— A Linha de Madalena — disse Maureen.

— Exatamente. Segue de Paris direto para esta área. Por quê? Porque

há alguma coisa nesta região que transcende o tempo e o espaço. Creio

que foi isso que atraiu os alquimistas de toda a Europa, por tanto tempo

quanto alguém pode lembrar.

— Eu já me perguntava quando voltaríamos à alquimia —

comentou Peter.

— Sinto muito, padre. Tenho uma tendência a falar demais. Mas

também nenhuma dessas explicações é simples. Aquela torre,

conhecida como a Torre da Alquimia, parece ter sido construída sobre

um lendário ponto de poder. A Linha de Madalena passa por ali. A torre

tem sido o local de incontáveis experimentos de alquimia.

— Quando você fala em alquimia, está se referindo ao sistema de

crença medieval de transformar enxofre em ouro?

A pergunta foi de Maureen.

— Em alguns casos, era isso mesmo. Mas qual é a verdadeira

definição de alquimia? Se você quiser algum dia provocar uma tremenda

briga, faça essa pergunta numa convenção de pensadores esotéricos.

Haverá a maior confusão, pois nunca se encontrou uma resposta

definitiva.

Tammy enumerou os diversos tipos de alquimia.

— Há os alquimistas científicos, aqueles que tentam por meios

físicos transformar materiais básicos em ouro. Alguns alquimistas

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científicos vieram para cá convencidos de que a própria magia da terra era

o fator X mágico que procuravam para completar seus experimentos. Há

também os filósofos, que acreditam que a alquimia é uma transformação

espiritual, que converte os elementos básicos do espírito humano num

eu áureo. Há esotéricos que exploram a idéia de que os processos

alquímicos podem ser usados para alcançar a imortalidade e causar um

impacto na natureza do tempo. Há ainda os alquimistas sexuais, que

acreditam que a energia sexual cria um tipo de transformação quando

dois corpos se fundem, usando uma combinação de métodos físicos e

metafísicos.

Maureen escutava atentamente. Queria saber mais sobre a

perspectiva pessoal de Tammy.

— E qual é a teoria que você endossa?

— Pessoalmente, sou uma grande fã da alquimia sexual. Mas acho

que todas são verdadeiras. É o que realmente penso. Na minha

opinião, alquimia é, no fundo, um termo para designar o mais antigo

conjunto de princípios que temos no mundo. Houve uma época em que

essas normas eram compreendidas pelos antigos, como os arquitetos

da Grande Pirâmide de Gizé.

A pergunta seguinte foi de Peter:

— Mas o que tudo isso tem a ver com Maria Madalena?

— Para começar, acreditamos que ela tenha vivido aqui ou pelo

menos passado algum tempo na região. O que nos leva a uma pergunta.

Por que aqui? É um lugar remoto mesmo agora, com os modernos

meios de transporte. Podem sequer imaginar como era tentar passar

pelas montanhas no século I? O terreno era totalmente inóspito. Então

por que ela escolheu este lugar? Logo aqui, com tantos outros para

escolher? Porque há alguma coisa especial neste lugar.

Tammy fez uma pausa.

— Ah, já ia me esquecendo de mencionar que há outra alquimia

que ocorre aqui... uma coisa que passei a chamar recentemente de

Alquimia Gnóstica.

— Parece um título interessante para uma nova religião —

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comentou Maureen, avaliando o termo.

— Ou para uma antiga. Mas há uma convicção aqui que se

estende aos cátaros e talvez além, uma convicção de que esta região era o

centro da dualidade. Que o Rei do Mundo, o velho Rex Mundi, vive

aqui. O equilíbrio terreno de luz e trevas, bem e mal, ocorre nesta

estranha aldeia e seus arredores imediatos. E em algum nível, esses dois

elementos estão em guerra um com o outro, durante todo o tempo, aqui

mesmo, sob nossos pés. Você acha que a aldeia é sinistra durante o dia?

Não poderia me pagar para andar por estas ruas no meio da noite. Há

alguma coisa muito importante neste lugar e nem tudo é bom.

Maureen acenou com a cabeça para Tammy.

— Também sinto isso. Portanto talvez Dali estivesse errado em

cerca de sessenta quilômetros. Rennes-le-Château não poderia ser o

verdadeiro centro do universo?

Peter interveio, mais sério:

— Isso poderia fazer sentido para os habitantes da França

medieval, já que este era seu universo. Mas as pessoas ainda acreditam

nisso hoje em dia?

— Tudo o que posso lhe dizer é que há estranhas ocorrências aqui

que ninguém é capaz de explicar e que acontecem durante todo o

tempo. Aqui, em Arques, nas áreas ao redor, onde os castelos foram

construídos. Alguns dizem que os cátaros construíram esses castelos

como fortalezas de pedra contra as energias das trevas. Optaram por

construí-los em cima de vórtices ou pontos de poder, onde podiam

realizar cerimônias sagradas para controlar ou derrotar as forças das

trevas. E todos os castelos têm torres, o que é significativo.

Peter escutava atentamente.

— Mas não seriam torres estratégicas, construídas para propósitos

de defesa?

— Claro. — Tammy balançou a cabeça enfática. — Mas isso não

explica por que cada castelo tem lendas envolvendo a alquimia dentro de

suas torres. As torres são conhecidas como lugares em que ocorreu

alguma espécie de magia ou transformação. O que se relaciona

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diretamente com o lema da alquimia, “como acima é abaixo”. As torres

representam a Terra, porque assentam no solo, mas também

representam o paraíso, porque se projetam para o céu. Assim, são locais

apropriados para a realização de experimentos alquímicos. E como

acontece com a torre de Saunière, todas foram construídas com vinte e

dois degraus.

— Por que vinte e dois? — perguntou Maureen, o interesse aguçado.

— Vinte e dois é um número mestre e os elementos numerológicos

são críticos na alquimia. Os números mestres são onze, vinte e dois e

trinta e três. Mas vinte e dois é o padrão que se encontra com mais

freqüência nesta área, já que pertence à energia divina feminina. Vai

notar que o dia de Maria Madalena no calendário da Igreja...

— É o dia 22 de julho — declararam Peter e Maureen ao mesmo

tempo.

— Bingo. Portanto, para finalmente responder à sua pergunta,

talvez tenha sido por isso que Maria Madalena veio para cá, porque

conhecia os elementos de poder natural ou compreendia alguma coisa

sobre a luta entre luz e trevas, como acontece aqui. A região não era

desconhecida dos habitantes da Palestina. A família de Herodes tinha casas

não muito longe daqui. Há até uma tradição segundo a qual a mãe de

Maria Madalena seria do Languedoc. Portanto, de alguma forma, ela estava

voltando para casa.

Tammy olhou para a torre do Château Hautpol.

— O que eu não daria para ser uma mosca imortal na parede

daquela torre...

Languedoc

23 de junho de 2005

Eles deixaram Tammy em Couiza, onde ela se reuniria a alguns

amigos para um almoço tardio. Maureen ficou desapontada porque

Tammy só iria encontrá-los depois. Sentia-se nervosa ao se aproximar da

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casa de Sinclair sem um amiga comum para tornar a situação menos

constrangedora. E podia também perceber a tensão de Peter. Ele fazia o

melhor que podia para esconder, mas a tensão era evidente na maneira

como as mãos apertavam o volante. Talvez ficar na casa de Sinclair fosse

um erro, no final das contas.

Mas já haviam assumido o compromisso e mudar de idéia agora

seria uma grosseria e um insulto para o anfitrião. Maureen não queria

correr esse risco. Sinclair era uma peça muito importante de seu quebra-

cabeça.

Peter cruzou com o carro alugado os enormes portões de ferro.

Maureen notou, na passagem, que os portões eram ornamentados com

enormes flores-de-lis douradas, entre cachos de uvas... ou, talvez, maçãs

azuis. O caminho cheio de curvas subia por uma encosta, através da

extensa e suntuosa propriedade que era Le Château de Pommes Bleues.

Pararam na frente do castelo, aturdidos por um momento pelo

tamanho e pela grandiosidade da construção. O castelo fora construído

no século XVI e restaurado com todo o cuidado. Assim que saltaram do

carro, o imponente mordomo de Sinclair, o gigante Roland, passou pela

porta da frente. Dois criados de libré encaminharam-se para o carro, a

fim de pegar a bagagem, obedecendo às ordens de Roland.

— Bonjour, mademoiselle Paschal, abbé Healy. — Ele sorriu

subitamente, a expressão abrandando o rosto, o que fez com que Maureen

e Peter soltassem a respiração reprimida. — Sejam bem-vindos ao

Château des Pommes Bleues. Monsieur Sinclair sente-se muito satisfeito

por terem vindo.

Maureen e Peter foram instados a esperar no vasto vestíbulo,

enquanto Roland ia procurar o patrão. Não foi problema esperar ali, já

que havia valiosas obras de arte e antiguidades de valor inestimável para

admirar, equivalentes ao que se encontrava em muitos museus na

França.

Maureen parou junto de uma caixa de vidro, que era o ponto focal do

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vestíbulo. Peter seguiu-a. Havia ali um cálice de prata maciço, todo

ornamentado, e um crânio humano, num lugar de honra no relicário. O

crânio estava embranquecido pelo tempo, mas ainda assim dava para

perceber uma nítida rachadura no osso. Uma mecha de cabelos —

esmaecida, mas ainda exibindo um óbvio pigmento vermelho — estava

ao lado do crânio, dentro do cálice.

— Os antigos acreditavam que os cabelos ruivos eram uma fonte

de grande magia.

Berenger Sinclair chegara por trás deles. Maureen teve um pequeno

sobressalto ao ouvir a voz inesperada, mas no instante seguinte virou-se

para comentar.

— Os antigos nunca tiveram de estudar numa escola pública

na Louisiana.

Sinclair riu, um som céltico profundo. Estendeu a mão para passar

um dedo pelos cabelos de Maureen, jovial.

— Não havia meninos na sua escola?

Maureen sorriu, mas no instante seguinte voltou a concentrar a

atenção na relíquia na caixa de vidro, antes que ele pudesse vê-la corando.

Ela leu em voz alta a placa dentro da caixa:

— O crânio do rei Dagoberto II.

— Um dos meus mais pitorescos ancestrais — comentou Sinclair.

Peter estava fascinado e um pouco incrédulo.

— São Dagoberto II? O rei merovíngio? Você é descendente dele?

— Sou, sim. E seus conhecimentos de história são tão bons

quanto seu latim. Estou impressionado.

— Refresque minha memória. — Maureen exibia uma expressão

tímida. — Desculpem, mas minhas lembranças da história francesa

começam depois de Luís XIV Quem eram mesmo os merovíngios?

Foi Peter quem respondeu:

— Uma antiga linhagem de reis no território em que existem agora

a França e a Alemanha. Reinaram dos séculos V a VIII. A linhagem acabou

com a morte deste Dagoberto.

Maureen apontou para a rachadura no crânio.

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— Alguma coisa me diz que ele não morreu de causas naturais.

— Não, não foi de causas naturais — respondeu Sinclair. — O

afilhado enfiou uma lança em seu cérebro, através do olho, enquanto ele

dormia.

— E ainda falam na lealdade familiar — murmurou Maureen.

— Por mais triste que possa parecer, ele optou pelo dever

religioso acima da lealdade familiar, um dilema que atormentou muitos

ao longo da história. Não é isso mesmo, padre Healy?

Peter franziu o rosto pela insinuação percebida.

— O que isso significa?

Sinclair fez um gesto solene na direção de um escudo heráldico na

parede: uma cruz cercada por rosas, sobre as quais havia uma inscrição

em latim: ELIGE MAGISTRUM.

— O lema de minha família. Elige Magistrum.

Maureen olhou para Peter, à espera de um esclarecimento. Alguma

coisa acontecia entre os dois homens que começava a deixá-la nervosa.

— Escolha um mestre — traduziu Peter.

Sinclair explicou:

— O rei Dagoberto foi assassinado por ordem de Roma, já que o

papa sentia-se preocupado com a sua versão de cristianismo. O afilhado

de Dagoberto foi pressionado a escolher um mestre e optou por Roma,

tornando-se assim um assassino da Igreja.

— E por que a versão de cristianismo de Dagoberto era tão

perturbadora? — indagou Maureen.

— Ele acreditava que Maria Madalena era uma rainha e a esposa

legítima de Jesus Cristo, e que ele descendia de ambos. Assim, tinha o

direito divino dos reis de uma maneira que superava todos os outros

poderes deste mundo. O papa na ocasião considerou que era ameaçador

demais um rei acreditar nisso.

Maureen sentiu um arrepio. Fez uma tentativa de manter a

conversa amena, cutucando Peter e dizendo:

— Promete que não vai espetar nenhuma lança em meu olho

enquanto durmo?

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Peter lançou-lhe um olhar de lado.

— Lamento, mas não posso fazer promessa alguma. Elige Magistrum

e todo o resto.

Maureen lançou-lhe um olhar de horror zombeteiro e voltou a

estudar o relicário de prata, ornamentado com o padrão refinado de flor-

de-lis.

— Para alguém que não é francês, você é um grande apreciador

desse símbolo.

— A flor-de-lis? Claro. Não esqueça que os franceses e escoceses foram

aliados por centenas de anos. Mas minha razão para usá-la é diferente. É

o símbolo...

Peter arrematou a frase:

— ...da trindade.

Sinclair sorriu para os dois.

— Isso mesmo. Mas me pergunto, padre Healy, se é o símbolo da

sua trindade... ou da minha?

Antes que Maureen ou Peter pudessem pedir uma explicação,

Roland apareceu. Falou rapidamente com Sinclair, numa língua que

parecia francês com uma dicção mediterrânea. Sinclair virou-se para seus

hóspedes.

— Roland os levará a seus quartos, para que possam descansar

antes do jantar.

Ele fez uma reverência elaborada, lançando uma piscadela para

Maureen, antes de se retirar.

Maureen entrou no quarto e ficou boquiaberta. A suíte era

magnífica. Uma enorme cama com dossel em cortinas de veludo

vermelho, onde estava bordada a onipresente flor-de-lis em dourado,

dominava o espaço. Os outros móveis eram obviamente antigos, todos

dourados.

Um retrato de Maria Madalena no deserto, do mestre espanhol

Ribera, cobria uma das paredes do quarto, o rosto doce da Madona erguido

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para o céu. Pesados vasos de cristal Baccarat, cheio de rosas vermelhas e

lírios brancos, estavam espalhados pelo quarto, fazendo lembrar os

arranjos de flores que Sinclair mandara para o apartamento de Maureen

em Los Angeles.

— Uma mulher pode acabar se acostumando com um

tratamento desses — murmurou ela para si mesma.

Foi nesse instante que uma criada bateu na porta e entrou para

desarrumar sua bagagem.

O quarto de Peter era menor que o de Maureen, mas ainda assim

todo ornamentado e digno da realeza. Suas malas ainda não haviam

chegado, mas ele tinha a bagagem de mão, que continha o suficiente para

as necessidades imediatas. Tirou da bolsa preta a Bíblia encadernada em

couro e o rosário de contas de cristal.

Com o rosário na mão, Peter desabou na cama. Sentia-se

cansado... esgotado da viagem e exausto por causa da tremenda

responsabilidade pessoal que assumira com o bem-estar de Maureen,

físico e espiritual. Aventurava-se agora por território desconhecido e isso

deixava-o nervoso. Não confiava em Sinclair. Pior ainda, não confiava na

reação da prima a Sinclair. O dinheiro e a aparência física do homem

obviamente criavam uma mística que exercia uma forte atração sobre as

mulheres.

Mas pelo menos ele sabia que Maureen não era uma mulher que

podia ser arrebatada com facilidade. Na verdade, Peter sabia que ela tivera

bem poucos relacionamentos com homens. A visão romântica de

Maureen fora prejudicada pelo ódio que sua mãe alimentava contra o

seu pai. O fato do seu casamento desajustado ter acabado em tragédia

era a razão que impelia Maureen a permanecer longe de qualquer coisa

que se parecesse com um relacionamento com um homem.

Ainda assim, ela era mulher e era humana. E também muito

vulnerável por causa de suas visões. Peter tencionava evitar que Sinclair

usasse isso para manipular Maureen. Não tinha a menor idéia do

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quanto Sinclair já sabia — ou como ele sabia —, mas estava determinado

a descobrir, o mais depressa possível.

Peter fechou os olhos e começou a rezar, pedindo orientação. Porém

as orações silenciosas foram interrompidas por um zumbido insistente.

Ele tentou ignorar a vibração a princípio, mas finalmente desistiu.

Atravessou o quarto até o lugar em que deixara a mala, abriu-a e pegou o

celular.

Por sorte, o quarto de Maureen ficava no mesmo corredor em que

estava o quarto de Peter, caso contrário poderiam não se encontrar no

vasto castelo de Sinclair. Maureen estava fascinada pela propriedade,

absorvendo cada detalhe de arte e arquitetura enquanto atravessavam

de uma ala Para outra.

Queriam sair para investigar juntos o exterior do castelo, já que

ainda faltavam algumas horas para o jantar. Ambos sentiam-se tão

fascinados pelo ambiente em que se encontravam que não podiam deixar

de explorá-lo. Enveredaram por um corredor largo, iluminado por luz

natural, que entrava pela janela de uma vidraça de cristal. Um mural

enorme e extraordinário, descrevendo uma cena da crucificação um tanto

abstrata, adornava toda a extensão do corredor.

Maureen parou para admirar a obra. Ao lado do Cristo crucificado,

uma mulher com um véu vermelho erguia três dedos, enquanto uma

lágrima escorria por seu rosto. Estava de pé ao lado de uma massa de

água — um rio? — de onde saltavam pelo ar três peixes pequenos, um

vermelho e dois azuis. Tanto o padrão dos três peixes quanto os dedos

levantados da mulher repetiam o desenho da flor-de-lis, de uma forma

abstrata.

Havia incontáveis detalhes no mural, que era refinado e obviamente

moderno. Maureen tinha certeza de que eram todos simbólicos, mas

levaria horas para examinar cada um... e provavelmente anos para

compreendê-los.

Peter recuou para contemplar a cena da crucificação, que era linda

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em sua simplicidade. O céu por cima da cruz era obscurecido pelo que

parecia ser um sol negro. Um raio riscava o céu.

— Não acha que parece com o estilo de Picasso? — murmurou

Peter.

O anfitrião apareceu na extremidade do corredor.

— É de Jean Cocteau, o artista mais prolífico da França e um dos

meus heróis pessoais. Ele pintou o mural quando era hóspede de meu

avô.

Maureen ficou espantada.

— Cocteau esteve aqui? Incrível! Este castelo deve ser um tesouro

nacional para a França. Todas as obras de arte são fenomenais. O quadro

em meu quarto...

— O Ribera? E meu retrato predileto de Madalena. Capta sua

beleza e graça divina mais do que qualquer outro. E mesmo excepcional.

Peter estava incrédulo.

— Mas não pode estar dizendo que é um quadro original! Vi o

original... exposto no museu do Prado.

— Mas é de fato original. Ribera pintou-o a pedido do rei de Aragão.

Para ser mais preciso, pintou dois quadros. E você tem toda a razão, pois

o menor está no Prado. O rei espanhol deu este quadro aqui a um de

meus ancestrais, como um pedido de paz, a um membro da família

Stuart. Como poderão ver, as belas-artes têm uma forte ligação com a

Senhora. Mostrarei outros exemplos durante o jantar. Mas se não se

importam que eu pergunte, para onde iam agora?

Foi Maureen quem respondeu:

— Íamos sair para uma volta antes do jantar. Avistei algumas

ruínas no alto da colina quando chegamos e eu queria examiná-las

mais de perto.

— Uma excelente idéia. Eu teria o maior prazer em servir como

guia. Se a proposta for aceitável para o padre Healy, é claro.

— Claro que é.

Peter sorriu, mas Maureen notou a tensão nas extremidades de

seus lábios quando Sinclair segurou-a pelo braço.

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Roma

25 de junho de 2005

O sol brilhava em Roma mais forte do que em qualquer outro lugar

do mundo, ou pelo menos era o que sentia o bispo Magnus O'Connor ao

caminhar sobre as pedras abençoadas da basílica de São Pedro. Ele quase

entrara em êxtase pela honra de ter acesso à capela particular.

Ao entrar em chão consagrado, ele parou diante da estátua de

mármore de Pedro, segurando as chaves da igreja. Beijou os pés descalços

do santo. Depois, foi até a frente da igreja e sentou-se no primeiro

banco. Deu graças ao Senhor por trazê-lo àquele lugar sagrado. Rezou

por si mesmo, por seu bispado e pelo futuro da Santa Madre Igreja.

Depois de completar suas devoções, Magnus O'Connor foi para a

sala do cardeal Tomas DeCaro, levando as pastas de arquivos vermelhas

que haviam garantido seu ingresso no Vaticano.

— Está tudo aqui, Sua Eminência.

O cardeal agradeceu. Se O'Connor esperava um convite do cardeal

para uma longa conversa, ficou bastante desapontado. O cardeal DeCaro

dispensou-o com um aceno de cabeça brusco, sem dizer mais nada.

DeCaro estava ansioso em examinar o conteúdo das pastas, mas

preteria fazê-lo, naquela primeira vez, sem platéia.

Ele abriu a primeira das pastas, todas marcadas com o mesmo

nome, em letras pretas maiúsculas: EDOUARD PAUL PASCHAL.

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... Ainda não escrevi sobre a Grande Mãe, a Grande Maria.

Esperei durante todo esse tempo pois, com freqüência, especulei se

teria as palavras certas para fazer justiça à sua bondade, sabedoria

e força. Na vida de cada mulher, haverá sempre a influência e os

ensinamentos de uma mulher que se destaca, suprema. Para mim, esse

foi o papel da Grande Maria, a mãe de Easa.

Minha própria mãe morreu quando eu era muito pequena. Não me

lembro dela. E, embora Marta tenha sempre cuidado de mim e atendido

às minhas necessidades, como uma irmã deve fazer, foi a mãe de Easa

quem me proporcionou a instrução espiritual. Ela alimentou minha alma e

me ensinou as muitas lições de compaixão e perdão. Fez-me ver o que era

se portar como uma rainha e instruiu-me em relação aos comportamentos

apropriados a uma mulher com o destino marcado.

Quando chegou o momento de assumir o véu vermelho e me tornar

uma verdadeira Maria, eu estava preparada.

A Grande Maria foi um modelo de obediência, mas era uma

obediência que atendia apenas ao Senhor. Ouvia as mensagens de

Deus com absoluta clareza. Seu filho tinha a mesma capacidade e foi

por isso que se distinguiram dos outros, que também vieram de um

nascimento nobre. Isso mesmo, Easa era um filho do leão, o herdeiro da

Casa de Davi. Sua mãe descendia da grande casta sacerdotal de

Aarão. Ela nasceu rainha e Easa, rei. Mas não foi pelo sangue que se

distinguiam dos outros; foi por seu espírito, pela força de sua fé na men-

sagem de Deus para nós.

Não fizesse eu qualquer outra coisa que não andar à sua sombra

por todos os meus dias, teria sido, ainda assim, abençoada.

A Grande Maria foi a primeira mulher a ter a dádiva do lúcido

conhecimento divino. Isso representava um desafio para os altos

sacerdotes, que não sabiam como aceitar uma mulher com tanto poder.

Mas não podiam condená-la. A Grande Maria pertencia a uma

linhagem de sangue imaculada, e era dona de um coração e espírito

acima de qualquer censura. Sua reputação impecável era conhecida

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através de muitas terras.

Homens de poder temiam-na, pois não podiam controlá-la. Ela

apenas respondia a Deus.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPÍTULO OITO

Château des Pommes Bleues

23 de junho de 2005

Sinclair levou Maureen e Peter por um caminho calçado com

pedras, que os afastava da vasta construção. Estavam cercados por

contrafortes de rocha vermelha, coroados pelas ruínas de um castelo

numa escarpada colina próxima. Maureen absorvia o cenário

espetacular.

— Este lugar é impressionante. Irradia uma sensação mística.

— Estamos no coração do território dos cátaros. Toda esta

região foi outrora dominada pelos cátaros. Os Puros.

— Por que se chamavam assim?

— Seus ensinamentos vinham de Jesus Cristo por uma linha

pura e ininterrupta. Por intermédio de Maria Madalena. Ela foi a

fundadora do catarismo.

Peter exibiu uma expressão de total ceticismo, mas foi

Maureen quem expressou a dúvida:

— Por que nunca li sobre isso em parte alguma?

Berenger Sinclair limitou-se a rir, nem um pouco preocupado se

lhe davam crédito ou não. Era um homem tão seguro de suas

convicções e tão confiante em si mesmo que a opinião dos outros

não tinha a menor importância.

— Não leu e nunca vai ler. A verdadeira história dos cátaros

não se encontra em qualquer livro de história. Não se pode

pesquisá-la com autenticidade em qualquer outro lugar que não

aqui. A verdade dos cátaros só é encontrada nas rochas vermelhas do

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Languedoc, não fora daqui.

— Eu adoraria ler sobre eles — comentou Maureen. — Pode

recomendar alguns livros que considere autênticos?

Sinclair deu de ombros e sacudiu a cabeça.

— São bem poucos e praticamente nenhum dos que merecem

crédito foi traduzido. A maioria dos livros sobre a história dos cátaros

baseia-se em confissões extraídas durante tortura. Quase todos os

relatos medievais sobre o povo cátaro foram escritos por seus inimigos.

Até que ponto você acha que esses relatos são acurados? Eu esperava que

você compreendesse esse princípio, Maureen, com base em sua reavaliação

da história. Nenhuma prática cátara autêntica jamais foi registrada por

escrito. Suas tradições são passadas de uma geração para outra pelas

famílias desta região há dois mil anos, mas são tradições orais, protegidas

com a maior determinação.

— Tammy não disse que houve uma cruzada oficial contra eles? —

indagou Maureen, enquanto continuavam a seguir pelo caminho

sinuoso, entre rochas vermelhas.

Sinclair confirmou com um aceno de cabeça.

— Um ato brutal de genocídio, com o massacre de mais de um

milhão de pessoas, desfechado por um papa que ironicamente tinha o

nome de Inocêncio III. Já ouviram falar da frase “Matem-nos e deixem que

Deus os identifique”?

Maureen ficou toda arrepiada.

— Já, sim. E a expressão de um sentimento bárbaro.

— Foi expresso pela primeira vez no século XIII, pelas tropas papais

que massacraram os cátaros em Béziers. Para ser mais preciso, eles

disseram: “Neca tos omnes. Deus suos agnoset.” O que pode ser

traduzido como “Matem todos. Deus reconhecerá os seus”.

Ele virou-se abruptamente para Peter.

— Reconhece?

Peter sacudiu a cabeça, sem saber aonde Sinclair queria chegar,

mas relutante em cair na armadilha intelectual.

— E emprestado de São Paulo. Timóteo II, versículo dois. “O Senhor

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conhece os seus.”

Peter ergueu a mão para deter Sinclair.

— Não pode culpar Paulo porque suas palavras foram distorcidas.

— Não posso? Pois acho que acabei de fazê-lo. A verdade é que tenho

Paulo atravessado na garganta. Não é por acaso que nossos inimigos têm

usado suas palavras contra nós por muitos séculos. É o começo de tudo.

Maureen tentou aliviar a crescente tensão entre os dois, levando

Sinclair de volta à história local.

— O que aconteceu em Béziers?

— Neca eos omnes. Matem todos. E foi exatamente o que os

cruzados fizeram em nossa linda cidade de Béziers. Passaram todos na

espada... do mais idoso ao bebê recém-nascido. Ninguém foi poupado

pelos carniceiros. Talvez cem mil pessoas tenham sido assassinadas só

nesse sítio. A lenda diz que nossas colinas estão vermelhas até hoje em

luto pelos inocentes massacrados.

Caminharam em silêncio por alguns momentos, em respeito pelas

almas partidas. Os massacres haviam ocorrido quase oito séculos antes e

mesmo assim havia uma sensação de espíritos perdidos por toda parte,

uma presença que pairava em cada brisa que soprava pelos contrafortes

dos Pireneus. Ali era e seria sempre o território dos cátaros. Sinclair

continuou em sua preleção:

— É claro que muitos cátaros escaparam, refugiando-se na

Espanha, Alemanha e Itália. Preservaram seus segredos e ensinamentos,

mas ninguém sabe o que aconteceu com seu maior tesouro.

— E o que era esse tesouro? — indagou Peter.

Sinclair olhou ao redor, a ligação inextricável com a terra era

evidente em sua expressão. O lugar e sua história estavam gravados em

sua alma. Não importava quantas vezes ele relatasse aquelas histórias,

cada relato revelava sua paixão incomparável.

— Há muitas lendas sobre os tesouros cátaros. Alguns dizem que

era o Santo Graal, outros alegam que era a verdadeira mortalha de Cristo

ou a coroa de espinhos. Mas o tesouro era um dos dois livros mais

sagrados já escritos. Os cátaros eram os guardiões d'0 Livro do Amor, o

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único evangelho verdadeiro.

Ele fez uma pausa, para ênfase, antes de acrescentar o ponto de

exclamação:

— O Livro do Amor é o único evangelho verdadeiro porque foi todo

escrito pela mão do próprio Jesus Cristo!

Peter parou abruptamente ao ouvir essa revelação. Ficou olhando

aturdido para Sinclair.

— Qual é o problema, padre Healy? — Não lhe ensinaram sobre O

Livro do Amor no seminário?

Maureen também estava incrédula.

— Acha mesmo que esse livro existiu?

— Tenho certeza que existiu. Foi trazido da Terra Santa por

Maria Madalena e deixado com extrema cautela para seus descendentes.

É bastante provável que O Livro do Amor tenha sido o verdadeiro

impulsionador das cruzadas contra os cátaros. A Igreja estava desesperada

para se apoderar do livro... mas não para protegê-lo e guardá-lo, posso

assegurar.

— A Igreja nunca danificaria uma coisa tão sagrada e valiosa —

protestou Peter.

— Não? E se esse documento pudesse ser autenticado? E se esse

documento autenticado contestasse não apenas muitos dos postulados,

mas também a própria autoridade da Igreja? E pela mão do próprio

Cristo? O que aconteceria neste caso, padre?

— Tudo isso é pura especulação.

— Você tem direito à sua opinião, assim como eu também tenho

direito à minha. Só que a minha baseia-se no conhecimento de fatos

altamente resguardados. Mas para continuar com minha... especulação,

a Igreja teve êxito em sua busca, de certa forma. Depois da perseguição

aos cátaros, os Puros foram obrigados a se esconder e O Livro do Amor

desapareceu para sempre. Bem poucas pessoas hoje em dia sequer sabem

que existiu. É uma tarefa e tanto... eliminar da história a existência de

uma coisa tão poderosa.

Peter se mantivera em profunda concentração enquanto Sinclair

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falava. Só depois de refletir por mais um minuto é que ele deu uma

resposta:

— Você disse que o tesouro era um dos dois livros mais sagrados que

já foram escritos. Se o evangelho escrito pelo próprio Jesus é um desses

livros, qual seria o outro?

Berenger Sinclair parou e fechou os olhos. Os ventos do verão

sopravam, desmanchando seus cabelos. Ele respirou fundo, depois abriu

os olhos e fitou Maureen, ao responder:

— O outro é o Evangelho segundo Maria Madalena, um relato puro

e perfeito de sua vida com Jesus Cristo.

Maureen ficou paralisada. Olhava para Sinclair, absorvida por sua

expressão de intensa paixão. Peter rompeu o encantamento:

— Os cátaros alegavam que também tinham esse livro em seu

poder?

Sinclair desviou os olhos de Maureen depois de mais um segundo.

Balançou a cabeça ao responder:

— Não, não alegavam. Ao contrário d'O Livro do Amor, que teve

testemunhas históricas, ninguém jamais viu o Evangelho de

Madalena. Provavelmente porque nunca foi encontrado. Acredita-se

que esteja escondido perto da aldeia de Rennes-le-Château, que vocês

visitaram. Tammy mostrou a Torre da Alquimia?

Maureen acenou com a cabeça em confirmação. Peter estava

ocupado demais tentando imaginar como Sinclair sabia tanto sobre os

seus movimentos. Maureen não se importava com isso, estava fascinada

pela história viva... e pelo amor desconcertante que Sinclair demonstrava

por essa história.

— Ela mostrou, mas ainda não compreendo por que é tão

importante.

— É importante por muitas razões. Mas para os nossos

propósitos, aqui e agora, alguns acreditam que Maria Madalena viveu e

escreveu seu evangelho no local em que está a torre. Depois, escondeu os

documentos numa caverna, para que ali permanecessem até chegar o

momento de revelar sua versão dos acontecimentos.

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Sinclair apontou para uma série de enormes buracos, parecendo

cavernas, nas montanhas ao redor.

— Estão vendo aquelas crateras? São cicatrizes deixadas pelos

caçadores de tesouros durante os últimos cem anos.

— A procura desses evangelhos?

A risada de Sinclair foi curta e amarga.

— Ironicamente, a maioria nem sequer sabe o que procura. Não tem

a menor idéia. Muitos conhecem a lenda do tesouro cátaro ou leram um

dos muitos livros sobre Saunière e sua misteriosa riqueza. Mas a maioria

não sabe o que é. Alguns acham que é o Santo Graal ou a Arca da Aliança,

enquanto outros têm certeza de que é o tesouro saqueado do Templo

de Jerusalém ou o estoque de ouro dos visigodos deixado numa caverna

secreta.

Ele fez uma pausa.

— Diga a palavra tesouro e seres humanos até então racionais

tornam-se no mesmo instante selvagens incontroláveis. Pessoas vieram

para cá, do mundo inteiro, durante séculos, no empenho de deslindar os

mistérios do Languedoc. Já vi isso acontecer muitas vezes. Caçadores de

tesouros usaram dinamite para criar aquelas cavernas lá em cima. Sem

minha permissão, posso acrescentar.

Sinclair apontou para outras cavernas nas encostas e depois

continuou em sua explicação:

— Proteger a natureza do tesouro tornou-se, para os cátaros,

tão importante quanto o próprio tesouro. E por isso que bem poucas

pessoas nesta era moderna sequer sabem que os evangelhos existiram.

Podem imaginar o que seria feito com a nossa terra, se as pessoas

descobrissem a natureza sagrada e de valor inestimável do verdadeiro

tesouro.

Sinclair contou outras lendas locais sobre o tesouro, além de

relatar as histórias mais sórdidas de caçadores que devastaram os

recursos naturais da região. Disse que os nazistas haviam enviado

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equipes durante a guerra, num esforço para descobrir artefatos ocultos,

que acreditavam estar enterrados na região. Até onde se sabia, as tropas

de Hitler não foram bem-sucedidas em sua busca, deixando a região de

mãos vazias... e perderam a guerra pouco depois.

Peter mantinha-se retraído e calado, contentando-se em ficar em

segundo plano, enquanto absorvia a vasta gama de informações. Mais

tarde, analisaria os detalhes, a fim de determinar o quanto era

potencialmente verdadeiro e o quanto não passava de romantismo do

Languedoc. Seria fácil se deixar absorver por lendas do Graal e de

manuscritos sagrados perdidos, num lugar tão agreste e místico quanto

aquele. Peter sentiu sua pulsação acelerar à mera idéia da existência

daqueles documentos.

Maureen caminhava ao lado de Sinclair, escutando com o máximo

de atenção. Peter não sabia se era Maureen, a jornalista, ou Maureen, a

mulher solteira, quem absorvia ansiosa cada palavra de Sinclair. Mas sua

atenção era extasiada, totalmente concentrada no carismático escocês.

Ao fazerem uma curva no caminho, no alto de uma pequena colina,

uma torre de pedra surgiu de repente na encosta. Tinha o equivalente a

vários andares de altura, singular e incongruente na paisagem rochosa.

— Parece com a torre de Saunière! — exclamou Maureen.

— Nós a chamamos de “Loucura de Sinclair”. Foi construída por

meu bisavô. E foi mesmo baseada na torre de Saunière. Nossa vista não é

tão espetacular quanto a que se tem em Rennes-le-Château, porque

estamos numa posição mais baixa, mas ainda assim é adorável. Querem

ver?

Maureen olhou para o distraído Peter, a fim de verificar se ele queria

explorar. Mas Peter sacudiu a cabeça em negativa.

— Ficarei esperando aqui embaixo. Podem subir.

Sinclair tirou uma chave do bolso e abriu a porta da torre. Entrou

na frente. Subiram por uma escada íngreme, em espiral. Ele abriu uma

porta no alto e gesticulou para que Maureen saísse na frente.

A vista do território cátaro e dos antigos castelos em ruínas, a

distância, era magnífica. Maureen apreciou-a por um momento, antes de

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perguntar a Sinclair:

— Por que ele construiu a torre?

— Pela mesma razão de Saunière. Ter a perspectiva de uma ave.

Eles acreditavam que se podia divisar muitos segredos do alto.

Maureen inclinou-se sobre o parapeito. Deixou escapar um

grunhido de frustração.

— Por que tudo é um enigma? Você prometeu respostas, mas

até agora só suscitou mais indagações.

— Por que não pergunta às vozes em sua cabeça? Ou melhor ainda,

à mulher em suas visões? Foi ela quem trouxe você até aqui.

Maureen estava aturdida.

— Como soube da mulher?

O sorriso de Sinclair era insinuante, mas não presunçoso.

— Você é uma mulher com o sangue Paschal. Era de se esperar.

Conhece as origens do nome de sua família?

— Paschal? Meu pai nasceu na Louisiana, de descendência francesa,

como todo mundo no Bayou.

— Cajun?

Maureen balançou a cabeça em concordância.

— Pelo que sei, ele morreu quando eu era pequena. Não lembro

muita coisa dele.

— Sabe de onde vem a palavra Cajun? Arcadian. Os franceses que

colonizaram a Louisiana eram chamados de arcadianos. No dialeto local,

evoluiu para Cajun. Alguma vez procurou a palavra “paschal” num

dicionário de inglês?

Maureen observava-o atentamente, curiosa, mas cada vez mais

cautelosa.

— Não. Nunca procurei.

— Surpreende-me que alguém com sua capacidade de pesquisa

saiba tão pouco sobre o nome de sua família.

Maureen desviou os olhos ao falar de seu passado.

— Quando meu pai morreu, mamãe me levou para viver com a

família dela na Irlanda. Não tive mais qualquer contato com a família de

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meu pai depois disso.

— Mesmo assim, seu pai ou sua mãe deve ter tido uma premonição

de seu futuro. .

— Por que diz isso?

— Seu nome, Maureen. Sabe o que significa?

O vento quente soprou de novo, desmanchando os cabelos ruivos de

Maureen.

— Claro. É a palavra irlandesa para “pequena Maria”. Peter sempre

me chama assim.

Sinclair deu de ombros, como se tivesse acabado de confirmar o que

queria. Olhou para a paisagem do Languedoc. Maureen seguiu seu olhar,

até uma série de rochedos maciços, dispersos por uma extensa planície

coberta pela relva.

O sol do verão incidiu sobre alguma coisa a distância. O reflexo fez

com que Maureen tivesse uma reação de surpresa, como se avistasse algo

na planície. Sinclair parecia muito interessado no que Maureen via.

— O que foi?

— Nada. — Maureen sacudiu a cabeça. — Apenas... o sol nos

meus olhos.

Sinclair não estava disposto a se contentar com essa resposta.

— Tem certeza?

Maureen hesitou por um longo momento, enquanto olhava outra

vez para a planície. Balançou a cabeça, antes de fazer a pergunta que

martelava em sua mente:

— Toda essa conversa sobre o nome de minha família... Quando

vai me mostrar a carta de meu pai?

— Creio que você terá uma noção melhor quando esta noite

terminar.

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Maureen voltou a seu suntuoso quarto no castelo, para tomar

banho e trocar de roupa para o jantar. Ao sair do banheiro, notou uma

coisa que não vira ao entrar. Havia na cama um livro de capa dura. Era

um dicionário de inglês, aberto na letra “P”.

A palavra “paschal” fora circulada com tinta vermelha. Maureen leu

a definição.

Paschal [pascal] — Qualquer representação simbólica de Cristo. O

Cordeiro Pascal é o símbolo de Cristo e da Páscoa.

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Fui informada por muitos sobre esse homem que era chamado de

Paulo. Ele foi causador de muitos conflitos entre os eleitos. Alguns

percorreram a longa distância desde Roma e do Éfeso para me

consultar a respeito desse homem e suas palavras.

Não cabe a mim julgar, nem posso dizer o que havia em sua

alma, pois não o conheci em carne e osso, não o fitei nos olhos. Mas

posso afirmar, sem qualquer dúvida, que esse homem, Paulo, nunca se

encontrou com Easa. Fiquei consternada ao saber que ele falava em

nome de Easa e ao saber de tudo o que ensinava sobre a luz e a

bondade que constituem O Caminho.

Havia muitas coisas nesse homem que eu acreditava serem

perigosas. Ele havia sido aliado dos mais rigorosos seguidores de João,

todos os homens que menosprezavam Easa. Opunham-se aos

ensinamentos sobre O Caminho que eram pregados por ele. Fui

também informada que era antes conhecido como Saulo de Tarso, e

que costumava perseguir os eleitos. Permaneceu imóvel, enquanto um

jovem seguidor de Easa, chamado Estevão, dono de um coração repleto

de amor, era apedrejado. Há aqueles que dizem que esse Saulo atiçou

a multidão para apedrejar Estevão, que foi o primeiro a morrer, depois

de Easa, por sua fé n'O Caminho. Mas estava longe de ser o último. Por

causa de homens como Saulo de Tarso.

Havia muitos motivos para ter cuidado com ele.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPÍTULO NOVE

Château des Pommes Bleues

23 de junho de 2005

A sala de jantar que Sinclair escolheu para aquela noite foi sua sala

privada, menos formal que o vasto salão de jantar do castelo. A sala era

ornamentada com reproduções das mais famosas obras de Botticelli. As

duas versões das obras-primas conhecidas como Lamentações cobriam a

maior parte de uma parede, mostrando Jesus crucificado na posição da

Pietà, estendido no colo da mãe. Na primeira versão, sua cabeça é

aninhada por uma chorosa Maria Madalena; na segunda, ela segura

seus pés. Três dos quadros mostrando a Madona do mestre da

Renascença, Madona da Romã, Madona do Livro e Madona do

Magnificat, estavam pendurados, em molduras douradas, nas duas

outras paredes.

Maureen e Peter só desviaram a atenção dos quadros quando viram

que um tradicional banquete do Languedoc lhes fora reservado. Terrinas

borbulhantes de cassoulet, o guisado de feijão-branco com carne de

carneiro e de porco, foram trazidas pelas criadas, para ser comido junto

com o pão crocante em cestas na mesa. Um vinho tinto de Corbières

esperava para ser servido.

— Sejam bem-vindos à sala de Botticelli — disse Sinclair, ao

entrar. — Sei que desenvolveram uma afinidade recente pelo nosso

Sandro.

Maureen e Peter fitaram-no em silêncio, surpresos.

— Você tem nos seguido? — perguntou Peter.

— Claro — respondeu Sinclair, como se isso não tivesse a

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menor importância. — E devo admitir que senti o maior prazer e fiquei

bastante impressionado quando foram parar nos afrescos do casamento.

Nosso Botticelli era totalmente devotado a Madalena, o que se torna

óbvio em suas obras mais famosas. Como esta.

Sinclair apontou para a réplica de O nascimento de Vênus, de

Botticelli, mostrando a deusa nua a emergir das ondas numa concha.

— Este quadro representa a chegada de Maria Madalena às praias

da França. Ela é mostrada com freqüência como a Deusa do Amor na

pintura da Renascença, o que tem uma forte associação com o planeta

Vênus.

— Já vi esse quadro pelo menos uma centena de vezes —

comentou Maureen. — Não tinha a menor idéia de que era Maria

Madalena.

— Poucas pessoas sabem disso. Nosso Botticelli era um elemento

importante numa organização toscana dedicada a preservar seu nome e

memória, a Confraria de Maria Madalena. Compreenderam os

simbolismos dos afrescos que viram no Louvre?

Maureen hesitou.

— Não tenho certeza.

— Dê um palpite.

— Meu primeiro pensamento foi a astrologia, ou pelo menos a

astronomia. O escorpião representava a constelação de Escorpião,

enquanto o arco do arqueiro representava Sagitário.

— Bravo. Creio que acertou em cheio. Já ouviu falar do Zodíaco do

Languedoc?

— Não. Mas já ouvi falar do Zodíaco de Glastonbury, na Inglaterra.

São similares?

— São, sim. Se puser um mapa das constelações sobre esta região,

vai descobrir que cidades diferentes estão dentro de determinadas

constelações. A mesma coisa acontece em Glastonbury.

Peter expressou sua confusão:

— Desculpem, mas não estou entendendo.

Foi Maureen quem explicou:

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— Era um tema comum entre os antigos, começando pelos

egípcios. Os locais sagrados na Terra são escolhidos para refletir o céu.

Por exemplo, as pirâmides de Gizé são dispostas de acordo com a

constelação de Orion. Cidades inteiras foram planejadas para

acompanhar o padrão das estrelas. Estava de acordo com a filosofia

alquimista, “como abaixo, assim acima, e como acima é abaixo”.

— Os afrescos do casamento são um mapa — acrescentou

Sinclair. — Botticelli estava nos dizendo para onde olhar.

— Espere um instante. Está querendo dizer que um dos maiores

pintores da história estava nessa teoria da conspiração de Madalena?

Peter sentia-se cansado e por isso se mostrava muito menos

diplomático que o habitual.

— Para ser mais preciso, padre Healy, estou dizendo que muitos

dos maiores pintores da história estavam envolvidos. Temos de agradecer

a Madalena por muitas coisas, inclusive uma riqueza de tesouros

artísticos dos grandes mestres.

— Como Leonardo Da Vinci? — indagou Maureen.

O rosto de Sinclair se tornou sombrio tão depressa que Maureen

ficou confusa.

— Não! Leonardo não está incluído na lista, por bons motivos.

— Mas ele pintou Maria Madalena em seu quadro da Ultima Ceia.

E há muita especulação popular de que ele era líder de uma sociedade

secreta que reverenciava Madalena e o divino feminino.

Leonardo era o pintor sobre o qual Maureen encontrara inúmeras

referências, enquanto pesquisava sobre Maria Madalena. Ficou agora

chocada e confusa com a inesperada aversão de Sinclair ao assunto.

Sinclair tomou um gole do vinho. Pôs o copo na mesa num

movimento lento e deliberado. Havia um certo nervosismo em sua voz

quando falou:

— Minha cara, não vamos estragar esta noite com uma

conversa sobre esse homem e sua obra. Não encontrará referências a

Leonardo Da Vinci em minha casa, nem nas casas das pessoas nesta

região. Por enquanto, essa explicação terá de ser suficiente. — Ele sorriu,

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para aliviar um pouco o clima. — Além do mais, temos muitos outros

pintores maravilhosos entre os quais podemos escolher, Botticelli,

Poussin, Ribera, El Greco, Moreau, Cocteau, Dalí...

— Mas por quê? — perguntou Peter. — Por que todos esses

artistas envolveram-se com o que é essencialmente uma heresia?

— A heresia está nos olhos de quem vê. Mas, para responder à sua

pergunta, esses grandes artistas pintavam para patronos ricos, que os

sustentavam e financiavam suas obras. A maioria desses patronos

nobres era relacionada com a linhagem sagrada, descendentes de

Maria Madalena. Pegue, por exemplo, os afrescos que Botticelli fez para o

casamento. O noivo, Lorenzo Tornabuoni, era de um ramo da linhagem

sagrada. A noiva, Giovanna Albizzi, era de um ramo ainda mais

importante. Vai notar que ela usa uma capa vermelha, para simbolizar sua

ligação com a linhagem de Madalena. Foi um casamento muito

importante, porque uniu duas poderosas famílias dinásticas.

Nem Maureen nem Peter disseram qualquer coisa, esperando para

descobrir que outros detalhes Sinclair queria partilhar.

— Até que se especulou que todos esses artistas eram também

da linhagem e que seu fabuloso talento derivava da genética divina. Isso

é bem possível, até provável no caso de Botticelli. E temos certeza de que

é verdade em relação a vários mestres franceses, como George de la Tour,

que pintou sua musa e ancestral muitas vezes.

Maureen ficou exultante ao reconhecer a referência.

— Vi um dos quadros de De la Tour durante a minha

pesquisa. Madalena Penitente está em Los Angeles.

Ela sentira-se comovida com o quadro, que fazia um uso excepcional

de luz e sombras. Maria Madalena, a mão no crânio da penitência, olha

para a chama bruxuleante de uma vela, refletida num espelho.

— Você viu uma das Madalenas Penitentes — explicou Sinclair. —

Ele pintou muitas, com sutis variações. Várias desapareceram. Uma foi

roubada de um museu no tempo do meu avô.

— Como sabe que George de la Tour era relacionado com a linhagem?

— O nome é a primeira indicação. De la Tour significa “da torre”. E

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tudo um jogo de palavras. O nome Magdala vem da palavra migdal, que

significa torre. Portanto ela é literalmente Maria do lugar da torre. Como

você já sabe, alguns alegam que Madalena é um título, significando que

Maria era a torre ou a líder de sua tribo. Quando os cátaros foram

perseguidos, os sobreviventes se viram obrigados a mudar de nome, para

proteger suas identidades, já que os nomes cátaros eram bastante

reconhecíveis. Esconderam sua herança à plena vista, usando nomes

como “de la Tour” e... — Sinclair fez uma pausa, para aumentar o efeito

dramático — “de Paschal”.

Maureen arregalou os olhos.

— De Paschal?

— Isso mesmo. O nome Paschal foi usado para proteger uma das

mais nobres famílias de cátaros. Outra vez, escondido à plena vista.

Chamaram-se de Paschal em francês e di Pasquale em italiano.

Crianças do Cordeiro Pascal.

Uma pausa e Sinclair acrescentou:

— E sei também que George de la Tour era da linhagem porque

era Gão-Mestre de uma organização dedicada a preservar as tradições

do cristianismo puro, conforme foi trazido para a Europa por Maria

Madalena.

Foi a vez de Peter perguntar:

— E que organização é essa?

Sinclair gesticulou para que olhassem ao redor. — A Sociedade das

Maçãs Azuis. Vocês estão jantando na sede de uma organização que

existe nesta terra há mais de mil anos.

Sinclair recusou-se a falar mais sobre a sociedade, descartando o

assunto com a eficiência de um manipulador magistral. Passaram o resto

do jantar falando sobre o dia em Rennes-le-Château e aprendendo mais

sobre o enigmático sacerdote chamado Berenger Saunière. Sinclair

tinha o maior orgulho de seu homônimo.

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— O abbé batizou meu avô naquela igreja — informou Sinclair. —

Não é de admirar que o velho Alistair fosse tão dedicado a esta terra.

— E é evidente que ele passou essa dedicação para você —

comentou Maureen.

— É isso mesmo. Quando resolveu me dar meu nome em

homenagem a Berenger Saunière, meu avô impôs uma bênção em minha

cabeça. Meu pai protestou, mas Alistair era feito de aço e ninguém podia

se opor a ele por muito tempo, e certamente não meu pai.

Sinclair não deu mais explicações. Maureen e Peter não insistiram,

pois era óbvio que se tratava de uma questão íntima e sensível. O jantar

encerrado, Sinclair saiu com os dois da sala.

— Venham comigo. Quero voltar a Botticelli e à maravilhosa

descoberta que vocês fizeram no Louvre. Por aqui.

Ele levou-os para uma sala incongruentemente moderna, com os

mais novos equipamentos de home theatre e vários computadores. Roland

postava-se na frente de um monitor e ofereceu um cordial “bonsoir”,

quando eles entraram. O mordomo francês bateu em algumas teclas e

depois inclinou-se para apertar um botão num painel. Uma tela de pro-

jeção desceu na parede no outro lado.

Um mapa da região apareceu na tela. Sinclair apontou diversos

locais.

— Devem notar aldeias familiares. Rennes-le-Château é aqui. E

este lugar é Arques. Onde fica a tumba de Poussin que vocês viram

ontem.

— E tudo isso está dentro de sua propriedade? — perguntou

Maureen.

Sinclair acenou com a cabeça em confirmação.

— Temos certeza de que um dos mais preciosos tesouros da história

humana está nesta área.

Ele gesticulou para Roland, que baixou uma grade das constelações

para se sobrepor ao mapa da região. As constelações estavam indicadas.

Escorpião ficava por cima da aldeia de Rennes-le-Château. Arques

situava-se entre Escorpião e Sagitário.

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— Botticelli desenhou um mapa para nós. Foi o seu presente de

casamento para o casal de nobres. Na verdade, o que ele criou era tão

perigosamente acurado que teve de ser destruído o mais depressa

possível. Os afrescos estavam em paredes que eram parte da propriedade

Tornabuoni. Por isso, eles não podiam demoli-las. Em vez disso, passaram

tinta branca por cima. Os afrescos permaneceram ocultos até o final do

século XIX, quando foram descobertos por acaso.

Maureen começou a compreender a situação.

— É por isso que você vive aqui, em Arques. Acha que o evangelho de

Maria Madalena está escondido aqui?

— Tenho certeza. E agora vocês podem perceber que Botticelli

também sabia disso. Olhem de novo para os afrescos. Roland, por favor.

Roland bateu em várias teclas, o que projetou na tela os afrescos

expostos no Louvre. Sinclair apontou os elementos.

— A mulher com o escorpião está aqui. Deslocando-se para a

direita,há uma mulher que não segura qualquer tipo de símbolo.

Sentada por cima delas, num trono, está a mulher com o arco. Mas

observem atentamente. Esta mulher veste-se de vermelho, a cor de

Maria Madalena, e oferece o sinal de bênção sobre a cabeça da mulher

sentada entre ela e a mulher do escorpião. Este é o '“X” que marca o

local no mapa, entre Escorpião e Sagitário. Sandro Botticelli conhecia a

localização do tesouro, assim como Nicholas Poussin. E foram bastante

generosos para nos deixar as pistas para encontrá-lo.

Isso não fazia sentido para Peter.

— Mas por que esses pintores fizeram mapas de exposição

pública para revelar a localização de um tesouro de valor inestimável?

— Porque esse tesouro tem de ser conquistado. Não pode ser

descoberto por qualquer pessoa. Podemos ficar de pé sobre o próprio local

em que Madalena escondeu o seu tesouro, em todos os dias de nossa

vida, mas nunca o veremos, até que ela decida mostrá-lo. Foi

ostensivamente escondido por processos alquímicos, uma tranca que só

pode ser aberta por... energias apropriadas, digamos assim. A lenda

afirma que o tesouro se revelará na ocasião apropriada, quando a pessoa

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escolhida pela própria Madalena vier procurá-lo. Botticelli e Poussin

esperavam que fosse descoberto em seu tempo e tentaram ajudar no

processo.

Sinclair olhou para a tela, enquanto continuava:

— No caso de Botticelli, acreditava-se que Giovanna Albizzi tinha o

potencial para descobrir o tesouro. Por todos os relatos, era excepcional

mente virtuosa e espiritualizada, além de inteligente e instruída. No

retrato dela que pintou, Ghirlandaio incluiu um epigrama que dizia: “Se

a arte pudesse mostrar caráter e inteligência, não haveria quadro mais

belo no mundo.” Foi lamentável, mas não aconteceu o que se previa. A

pobre e adorável Giovanna morreu de parto, apenas dois anos depois de

seu casamento.

Maureen absorvia tudo, tentando processar a história italiana com

o que vira antes em Rennes-le-Château. Um pensamento ocorreu-lhe:

— Acha que Saunière pode ter encontrado o evangelho de

Madalena? Foi isso que o tornou tão rico?

— Não, absolutamente não. — Sinclair foi enfático nesse ponto. —

Mas não resta a menor dúvida de que Saunière procurava o tesouro. A

lenda local diz que ele costumava andar por quilômetros nesta área,

examinando rochedos e cavernas, à procura de pistas.

— Como pode ter tanta certeza de que ele não encontrou? —

indagou Peter.

— Porque minha família saberia se ele tivesse encontrado. Além do

mais, só pode ser encontrado por uma mulher... uma mulher da

linhagem, escolhida pela própria Madalena.

Peter não podia mais reprimir suas suspeitas.

— E você acha que Maureen é a escolhida.

Sinclair pensou por um momento, antes de responder, com a

franqueza habitual:

— Admiro a maneira como vai direto ao ponto, padre. E para

responder do mesmo modo... Sim, acho que Maureen é a escolhida.

Ninguém jamais conseguiu, e milhares já tentaram. Sabemos que o

tesouro está aqui, mas até mesmo os mais intrépidos fracassaram em

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suas tentativas de descobri-lo. Inclusive eu.

Quando ele se virou para Maureen, sua expressão e o tom de sua

voz se tornaram mais suaves:

— Espero que isso não seja assustador para você, minha cara. Sei

que tudo deve parecer estranho, até mesmo chocante. Tudo o que peço é

que me escute. Nunca lhe será pedido para fazer qualquer coisa

contra a sua vontade. Sua presença aqui é totalmente voluntária e

espero que opte por ficar.

Maureen balançou a cabeça, sem dizer nada. Não sabia o que

dizer, como reagir a uma revelação como aquela. Nem mesmo sabia

como se sentia a respeito. Era uma honra ser considerada daquela

maneirai? Um privilégio? Ou apenas assustador? Talvez não passasse

de um peão de um excêntrico e seu culto. Parecia impossível que tudo

aquilo pudesse ser não apenas verdade, mas também relacionado

com ela. Por outro lado, havia alguma coisa na atitude de Sinclair

que, em última análise, parecia-lhe sincera. Apesar de todas as suas

opiniões radicais e excentricidades, Maureen não o considerava

desequilibrado. Finalmente, ela respondeu com uma única palavra:

— Continue.

Peter pressionou por mais detalhes:

— O que o faz pensar que Maureen seja a escolhida?

Sinclair acenou com a cabeça para Roland.

— Primavera, por favor.

Roland apertou algumas teclas, até que apareceu na tela uma

versão da obra-prima de Botticelli, Primavera, em cores gloriosas.

— Mais do nosso Botticelli. Conhecem o quadro, é claro.

— Conheço.

A resposta de Maureen foi quase inaudível. Ela não sabia para

onde aquilo levava, mas sentia o estômago todo embrulhado.

— É um dos quadros mais famosos do mundo — respondeu

Peter.

— Alegoria da primavera. Poucas pessoas sabem da verdade

por trás deste quadro, mas outra vez Botticelli prestou um tributo à

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Senhora. A figura central aqui é a Maria Madalena grávida...

observem a capa vermelha. Sabem por que a nossa Maria representa

a primavera?

Peter tentava acompanhar o pensamento de Sinclair da

melhor forma possível.

— Por causa da Páscoa?

— Porque a primeira Páscoa caiu no equinócio vernal. Cristo foi

crucificado a 20 de março e ascendeu a 22 de março. Uma lenda

esotérica desta região diz que Madalena também nasceu no dia 22

de março. O primeiro grau do primeiro signo do zodíaco, Áries, o

carneiro. É a data de novos começos e da ressurreição, com a bênção

adicional do número 22, um número espiritual, o número do divino

feminino. Essa data significa alguma coisa para você, minha cara

Maureen?

Peter já registrara a ligação e virou o rosto para verificar como

Maureen reagia à revelação. Ela se manteve calada por um longo

momento. Quando a resposta veio, a voz era rouca, um mero sussurro:

— É o meu aniversário.

Sinclair olhou para Peter.

— Nascida no dia da ressurreição, nascida na linhagem da

Pastora. Nascida no signo do carneiro, no primeiro dia da primavera e do

renascimento.

Ele fez uma pausa, antes de arrematar para Maureen:

— Minha cara, você é o Cordeiro Pascal.

Maureen pediu licença e se retirou no instante seguinte. Precisava

de tempo para pensar e processar todas as informações e as implicações

do que Sinclair dissera. Em seu quarto, recostou a cabeça e fechou os

olhos.

A batida na porta era inevitável, mas veio mais cedo do que ela

esperava. Ainda bem que era a voz de Peter no outro lado.

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— Maureen, sou eu. Posso entrar?

Maureen levantou-se da cama e atravessou o quarto para abrir a

porta.

— Como se sente?

— Sufocada. Entre.

Maureen gesticulou para que ele se sentasse em uma das

confortáveis poltronas de couro vermelho que ladeavam a lareira. Peter

sacudiu a cabeça em negativa. Estava tenso demais para se acomodar

numa poltrona.

— Escute bem o que vou dizer, Maureen. Quero que saia daqui

antes que a situação se torne ainda mais estranha.

Maureen suspirou e sentou-se numa poltrona.

— Mas estou começando a obter as respostas que vim procurar...

que nós viemos procurar.

— Não posso dizer que gosto das respostas de Sinclair. E acho

que você corre um grande risco aqui.

— Da parte de Sinclair?

— Isso mesmo.

Maureen assumiu uma expressão irritada:

— Ora, por favor. Por que ele haveria de me fazer qualquer mal se

me considera a resposta para seu objetivo durante toda a vida?

— Porque seu objetivo é uma ilusão, envolta por séculos de

superstição e lenda. E muito perigoso, Maureen. Estamos falando de

cultos religiosos. Fanáticos. O que preocupa aqui é o que ele fará com você

depois que compreender que não é a salvadora dele.

Maureen permaneceu em silêncio por um momento. Sua pergunta

seguinte foi feita com uma calma surpreendente:

— Como sabe que não sou?

Peter ficou atordoado com a pergunta.

— Está aceitando tudo isso?

— Pode encontrar explicações para todas as coincidências, Pete? As

vozes, as visões? Porque fora a explicação de Sinclair, eu não consigo.

O tom de Peter era firme, como se ele estivesse falando com uma

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criança:

— Vamos partir pela manhã. Podemos pegar um vôo de Toulouse

para Paris. Ou podemos voar de Carcassonne para Londres.

Maureen não cedeu.

— Não vou embora, Pete. Não sairei daqui enquanto não tiver as

respostas que vim procurar.

A escalada da agitação começava a dominar Peter.

— Maureen, jurei para sua mãe, quando ela estava morrendo,

que sempre cuidaria de você, que não deixaria o que aconteceu com seu

pai...

Peter parou de falar de repente, mas o dano já fora causado.

Maureen dava a impressão de que levara uma bofetada. Peter tratou de

voltar atrás no que tinha dito.

— Sinto muito, Maureen. Eu...

Ela interrompeu-o:

— Meu pai. Obrigada por me lembrar de mais um motivo para

minha permanência aqui. Descobrir o que Sinclair sabe sobre meu pai.

Passei a maior parte da minha vida especulando sobre ele, enquanto

minha mãe se limitava a dizer que não passava de um criminoso insano.

Suponho que ela lhe tenha dito isso também. Mas pelas lembranças

que tenho dele, por mais vagas que sejam, sei que isso não é verdade.

Se alguém pode me oferecer um retrato mais amplo de meu pai, farei tudo

o que for necessário para vê-lo. Devo isso a ele. E a mim mesma.

Peter fez menção de dizer alguma coisa, mas mudou de idéia. Em vez

disso, virou-se para deixar o quarto, com uma expressão atormentada.

Maureen observou-o por um momento, antes de chamá-lo de volta:

— Por favor, tente ser paciente comigo. Preciso descobrir tudo.

Como poderemos saber se as visões significam alguma coisa se não

seguirmos isso até o fim? E se... apenas se... até mesmo uma fração

do que Sinclair disse esta noite for verdade? Preciso encontrar a

resposta para essa pergunta, Pete. Se partir agora, tenho certeza de

que me arrependerei até o dia da minha morte e não quero viver

assim. Passei toda a minha vida fugindo... fugindo de tudo. Quando

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criança, fugi da Louisiana... e fugi para tão longe e tão depressa

que não me lembro de nada. Depois que minha mãe morreu, fugi da

Irlanda e voltei para os Estados Unidos. Fugi para uma cidade em

que não havia memórias, para um lugar em que todo mundo se

torna diferente do que era ao nascer. Los Angeles é uma cidade em

que todos são como eu, em que todos fugiram do lugar em que se

encontravam antes. Mas eu não quero mais fugir.

Ela atravessou o quarto ao seu encontro, frente a frente.

— Agora, pela primeira vez na vida, sinto que estou

correndo ao encontro de alguma coisa. Reconheço que é

assustador, mas não posso parar. E prefiro não enfrentar isso sem

você. Mas posso... e farei... se você decidir partir pela manhã.

Peter ouviu calado o que Maureen tinha a dizer. Parado com a

mão na maçaneta da porta, pensou por um momento e disse, antes

de sair:

— Não vou para lugar algum. Mas, por favor, não me faça me

arrepender dessa decisão pelo resto da minha vida... ou da sua.

Peter voltou para seu quarto e passou o resto da noite rezando.

Descobriu-se a refletir durante muito tempo sobre os ensinamentos

de Santo Inácio de Loiola, o fundador da ordem dos jesuítas. Um texto em

particular, escrito pelo santo em 1556, destacou-se em sua mente:

Já que o demônio demonstrava grande habilidade em tentar os

homens para a perdição, a mesma habilidade devia ser demonstrada para

salvá-los. O demônio estudava a natureza de cada homem, captava as

características de sua alma, ajustava-se a elas e se insinuava pouco a pouco

na confiança de sua vítima... sugerindo esplendores para os ambiciosos,

ganhos para os gananciosos, prazer para os sensuais e uma falsa

aparência de devoção para os devotos... e um conquistador de almas devia

agir da mesma maneira cautelosa e hábil.

O sono lhe escapou, enquanto as palavras de Santo Inácio

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martelavam em seu coração e mente.

Roma

3 de junho de 2005

O bispo Magnus O'Connor limpou a gota de suor da testa. A sala de

reunião no Vaticano tinha ar-condicionado, mas isso não o ajudava no

momento. Sentava-se no meio de uma enorme mesa oval, cercado por

autoridades de sua Igreja. As pastas vermelhas que entregara no dia

anterior estavam nas mãos do carrancudo e intimidador cardeal DeCaro,

que agia como um interrogador.

— E como sabe que as fotos são autênticas?

O cardeal pôs as pastas em cima da mesa, mas não as abriu ainda

para mostrar o conteúdo aos outros.

— Eu estava presente quando foram tiradas. — Magnus tinha de

fazer um grande esforço para dominar a gagueira, que se revelava em

situações estressantes. — O problema me foi encaminhado pelo padre da

paróquia.

O cardeal DeCaro tirou agora uma série de fotos 8 x 10 de uma

pasta. Haviam sido batidas em preto e branco e estavam amareladas

pelo tempo, mas isso não diminuiu o impacto que as imagens

causaram quando as fotos circularam ao redor da mesa.

A primeira a ser mostrada, marcada com a etiqueta de PROVA I, era

uma foto macabra, mostrando os braços de um homem. Lado a lado, as

palmas viradas para cima, exibiam enormes ferimentos sangrentos nos

pulsos.

A PROVA II mostrava os pés do homem, ambos com horríveis

buracos sangrentos.

A terceira foto, PROVA III, mostrava um homem sem camisa. Um

talho longo e irregular, sangrando, destacava-se na parte inferior direita

do tórax.

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O cardeal esperou que as fotos chocantes terminassem de circular

pela mesa. Guardou-as de volta no envelope antes de falar. Os rostos em

torno da mesa eram solenes quando ele confirmou o que todos já

desconfiavam:

— Acabamos de ver estigmas autenticados. Os cinco exatos

pontos, incluindo os pulsos.

Château des Pommes Bleues

24 de junho de 2005

Sinclair não estava na manhã seguinte. Maureen e Peter foram

recebidos por Roland, que os levou até a sala do café da manhã. Peter não

tinha certeza de se a extraordinária atenção que recebiam no castelo era

um sinal de impecável hospitalidade ou algo mais próximo da prisão

domiciliar. Obviamente, Sinclair tomava todo o cuidado para não deixar

Maureen e Peter sozinhos.

— Monsieur Sinclair pediu-me para assegurar que tenham à sua

disposição belos trajes para o baile desta noite. Está ocupado com os

preparativos finais para a festa, mas pôs o motorista à disposição, se

quiserem visitar os arredores hoje. Ele achou que poderiam gostar de

conhecer os castelos cátaros na região. Terei o maior prazer em guiá-los.

Maureen e Peter aceitaram a oferta. Conheceram vários locais

importantes da região, levados pelo gigante Roland, que fazia

excelentes comentários. Roland mostrou as ruínas de outrora, poderosos

baluartes cátaros. Descreveu como os ricos condes de Toulouse haviam

rivalizado com os reis da França em termos de poder e privilégio. Os

nobres de Toulouse eram todos cátaros ou pelo menos simpatizantes

dos ideais cátaros. Fora uma das razões para que as brutais cruzadas

contra os Puros recebessem o apoio do rei francês, que pudera confiscar o

que antes pertencia a Toulouse. Com isso, aumentara suas terras e sua

fortuna, ao mesmo tempo em que diminuía a influência dos rivais.

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Roland falou com orgulho de sua terra e do dialeto local, chamado

“Oc”, que dera seu nome à região. A “Língua de Oc” era “Languedoc” em

francês. Quando Peter referiu-se a ele como francês, em determinado

momento da conversa, Roland rebateu no mesmo instante. Ele era um

occitano.

Roland relatou em detalhes as numerosas atrocidades que

devastaram sua terra e seu povo no século XIII. Era um apaixonado pela

história do lugar.

— Muitos estrangeiros nem sequer sabem da existência dos

cátaros. Ou se sabem, pensam que é um culto pequeno e desimportante,

no meio das montanhas. Não compreendem que os cátaros foram a raça

e a cultura dominantes em uma grande e próspera área da Europa. O que

aconteceu aqui foi nada menos do que genocídio. Quase um milhão de

pessoas foram massacradas pelas tropas papais.

Ele fitou Peter com uma expressão complacente.

— Não tenho ressentimentos contra o clero moderno pelos

pecados da Igreja medieval, abbé Healy. É um padre porque tem

vocação. Qualquer um pode perceber isso.

Roland conduziu-os em silêncio depois disso, enquanto Maureen e

Peter admiravam os enormes castelos construídos em picos escarpados

por quase mil anos. Aquelas fortalezas eram essencialmente

impenetráveis, considerando a localização nas montanhas, mas

também eram insondáveis em termos de arquitetura. Especularam sobre

os recursos de uma cultura que era capaz de construir aqueles imensas

fortificações num terreno tão inóspito, sem o benefício da tecnologia

moderna.

Durante o almoço, na aldeia de Limoux, Maureen sentiu-se

bastante à vontade na companhia de Roland para perguntar sobre seu

relacionamento com Sinclair. Estavam sentados num restaurante à

margem do rio Aude, que dava nome à região. O corpulento criado era

surpreendentemente simpático e afável, até mesmo divertido,

contradizendo sua aparência intimidadora.

— Fui criado no Château des Pommes Bleues, mademoiselle.

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Minha mãe morreu quando eu era bebê. Meu pai trabalhou para

monsieur Alistair e para monsieur Berenger. Morávamos na propriedade.

Quando meu pai morreu, insisti em tomar seu lugar no castelo. E o meu

lar e os Sinclair são a minha família.

A imponente estatura de Roland parecia suavizar enquanto ele

falava da perda dos pais e da lealdade à família Sinclair.

— Deve ter sido muito difícil para você perder pai e mãe —

comentou Maureen, simpática.

Roland ficou tenso, empertigado, ao responder:

— Foi, sim, mademoiselle Paschal. Como já expliquei, minha mãe

morreu quando eu era bebê, de uma doença que não podia ser controla

da. Aceitei como a vontade de Deus. Mas a morte de meu pai foi diferente...

ele foi assassinado de maneira brutal, há poucos anos.

Maureen deixou escapar uma exclamação aturdida.

— O Deus! Sinto muito, Roland.

Ela não queria pressioná-lo para arrancar detalhes. Peter, no

entanto, achou que a necessidade de saber superava sua propensão

normal para a sensibilidade e por isso fez a pergunta:

— O que aconteceu?

Roland levantou-se, para sinalizar o fim da refeição e da conversa.

— Há amargas rivalidades em nossa terra, abbé Healy. Projetam-se

ao longo de muitos anos e não admitem a voz da razão. Esta região... é

inundada pela luz mais bela. Mas essa luz às vezes atrai as trevas mais

terríveis. Lutamos contra as trevas da melhor forma possível. Mas, como

aconteceu com os nossos ancestrais, nem sempre vencemos.

Ele respirou fundo:

— Mas uma coisa é certa. Nenhuma tentativa de genocídio jamais

teve êxito aqui. Ainda somos cátaros, sempre fomos cátaros e sempre

seremos cátaros. Podemos praticar nossa fé de uma forma discreta, em

particular, mas é hoje uma parte tão grande de nossas vidas quanto

sempre foi. Não deixem que qualquer livro ou historiador diga o contrário.

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Quando Maureen voltou ao castelo, naquela tarde, uma das

camareiras a esperava no quarto.

— O cabeleireiro chegará em breve, mademoiselle. E seu vestido já foi

entregue. Se há mais alguma coisa que eu possa fazer...

— Não há nada. Merci.

Depois que a camareira se retirou, Maureen fechou a porta. Queria

descansar antes da festa. Fora um lindo dia, em que pudera contemplar

algumas das vistas mais maravilhosas que já conhecera em suas viagens.

Mas também sentia-se esgotada. E mais do que um pouco apreensiva

com as enigmáticas revelações de Roland sobre o assassinato de seu pai.

Avistou um saco de roupa enorme, estendido na cama, quando

atravessou o quarto. Presumiu que era o traje para o baile. Puxou o zíper

do saco de plástico e tirou o vestido. Levou um momento para

compreender o que era e soltou um grito de espanto quando veio o

reconhecimento.

Levantou o vestido na frente do quadro de Ribera e viu que era igual

ao traje de saia vermelha que Maria Madalena usava na interpretação do

pintor espanhol.

Peter não sentia a menor atração por usar uma fantasia. Não

planejara comparecer ao baile e achava que sua presença seria imprópria.

Mas, com escalada das intrigas de Sinclair — e com a reação de Maureen —

, ele estava determinado a mantê-la dentro de seu campo de visão. Isso

significava usar a túnica rebuscada e as perneiras do século XIII que lhe

haviam sido reservadas.

— É demais! — resmungou Peter, enquanto tirava o traje do saco

de plástico e tentava descobrir como vesti-lo.

Peter bateu na porta de Maureen, ajustando seu traje, meio

desajeitado. Ficou esperando no corredor. Poderia dispensar o chapéu. Era

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pesado e assentava em sua cabeça de uma maneira incômoda, um

lembrete constante de que parecia ridículo.

A porta foi aberta. Uma Maureen transformada saiu do quarto. O

traje do quadro de Ribera assentava-lhe como se tivesse sido feito para

ela. A renda da blusa que deixava os ombros à mostra terminava num mar

do mais rico tafetá vermelho. Os longos cabelos ruivos haviam sido

arrumados de um jeito que lhes acrescentava plenitude e volume, caindo

em torno dos ombros como uma cortina lustrosa. Mas o que mais

impressionou Peter foi o ar de confiança e serenidade que Maureen

irradiava. Era como se ela tivesse assumido um papel a que se ajustava

com absoluta perfeição.

— O que você acha? Está demais?

— Pode ter certeza de que sim. Mas você parece... uma visão.

— Uma interessante escolha das palavras. Foi intencional?

Peter piscou e acenou com a cabeça para confirmar, feliz por

estarem gracejando de novo, pelo fato do relacionamento não ter sido

abalado pela discussão da noite anterior. A excursão pelo extraordinário

território cátaro fora restauradora para ambos.

Peter escoltou-a pelos sinuosos corredores do castelo, a caminho do

salão de baile, numa ala distante. Maureen riu quando ele se queixou de

seu traje.

— Você parece elegante e galante — assegurou ela.

— Pois eu me sinto um rematado idiota.

Carcassonne

24 de junho de 2005

Numa antiga igreja de pedra, fora da cidade murada de Carcassonne,

estavam sendo feitos os preparativos para um evento de outro tipo. Os

membros da Guilda dos Justos estavam reunidos ali em absoluta

solenidade. Mais de duzentos homens, em túnicas formais, compareciam

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ao serviço, usando as grossas cordas vermelhas de sua ordem em torno

do pescoço.

Não havia mulheres no grupo. Nenhuma fêmea jamais profanara os

salões ou as capelas particulares da Guilda. Placas gravadas, citando a

opinião de São Paulo sobre as mulheres, destacavam-se em todos os

pontos de encontro da Guilda. A primeira era um versículo de Coríntios:

Façam com que suas mulheres mantenham silêncio nas igrejas;

pois não lhes é permitido falar. São obrigadas a permanecer em

obediência, como também determina a lei. E se quiserem aprender

alguma coisa, que perguntem a seus maridos em casa. E lamentável

que as mulheres falem na igreja.

A segunda era de Timóteo:

Não se permita que uma mulher ensine, nem que usurpe a

autoridade para ensinar, nem que usurpe a autoridade sobre o homem,

pois deve se manter em silêncio.

Mas embora a Guilda reverenciasse essas palavras de Paulo, ele não

era seu Messias..

As relíquias de seu mestre ancestral estavam expostas em

almofadas de veludo, em cima do altar: o crânio faiscava à luz das velas,

assim como o resto de osso do dedo indicador direito, removidos do

relicário para aquela exposição anual. Depois do serviço formal e da

apresentação do Mestre da Guilda, cada membro teria permissão para

tocar nas relíquias. Era um privilégio normalmente reservado apenas ao

conselho da Guilda, depois do juramento de sangue para defender os

ensinamentos dos Justos. Mas o dia da festa anual era uma

peregrinação de membros da Guilda do mundo inteiro. Naquela noite,

todos os fiéis podiam ter a honra de tocar nas relíquias.

O líder subiu ao púlpito para iniciar seu discurso de introdução. O

sotaque inglês aristocrático de John Simon Cromwell ressoou dentro das

antigas paredes de pedra da igreja.

— Meus irmãos, esta noite, não muito longe daqui, a prole da

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prostituta e o padre ímpio se reuniram. Celebram sua impureza

hereditária na devassidão. Decidiram intencionalmente profanar

esta noite sagrada, ao ostentarem sua lascívia e nos mostrarem sua

força.

“Mas não permitiremos que nos intimidem. Desfecharemos

nossa vingança muito em breve, uma vingança que esperou dois mil

anos para alcançar a plena luz da justiça. Abatemos seu iníquo

pastor antes e abateremos seus descendentes agora. Destruiremos

o Grão-Mestre e seus fantoches. Eliminaremos a mulher que eles

chamam de sua Pastora e cuidaremos para que essa rainha das

meretrizes seja lançada no inferno, antes que possa espalhar

mentiras sobre a bruxa de que descende.

“Fazemos isso em nome do Primeiro e Único Verdadeiro

Messias, pois ele me falou e esse é o seu desejo. Fazemos isso em

nome do Mestre da Justiça e com as bênçãos do Senhor nosso

Deus.”

Cromwell iniciou a procissão diante das relíquias. Tocou

primeiro no crânio e depois no osso do dedo, reverente. Pronunciou em

voz alta ao fazê-lo:

— Neca eos omnes.

Matem todos.

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Aqueles que me falaram sobre Paulo disseram que ele se

manifestou contra o papel das mulheres n'O Caminho. É a prova mais

certa de que esse homem não pode ter conhecido a verdade dos

ensinamentos de Easa nem a essência do próprio Easa. A imensa

reverência de Easa pelas mulheres é bem conhecida dos eleitos e tenho,

eu própria, servido como prova disso.

Ninguém pode mudar esse fato, a menos que me apaguem por

completo da história.

Sou ainda informada de que esse Paulo reverenciava a maneira

como Easa morreu, não as palavras que Easa disse. Isso me entristece

como uma grande falha de compreensão.

Esse homem Paulo foi prisioneiro de Nero durante um longo

tempo. Sou informada de que ele escreveu muitas cartas para seus

fiéis, apresentando ensinamentos que alegava serem de Easa. Mas

aqueles que me procuraram sempre disseram que ele não falava em

defesa d'O Caminho, que seus ensinamentos eram falsos.

Lamento por qualquer homem que foi torturado e assassinado no

tenebroso reinado do homem chamado Nero. E, no entanto, isso me

enche de medo. Receio que esse homem Paulo seja considerado um

grande mártir d'O Caminho e que muitos acreditem que seus falsos

ensinamentos eram de Easa.

Não eram.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO DEZ

Le Château des Pommes Bleues

24 de junho de 2005

Maureen e Peter seguiram o som melodioso dos madrigais através

dos corredores. Ao se aproximarem do salão de baile, tiveram o primeiro

vislumbre da suntuosa e requintada festa de Sinclair.

Maureen experimentou a sensação de que fora transportada para

outra época. O vasto salão de baile estava ornamentado com tapeçarias

de veludo e com milhares de velas e flores. Criados de libré e peruca

circulavam pelo salão, silenciosos, discretos e eficientes, oferecendo comida

e bebida, limpando com cuidado e discrição as sujeiras deixadas pelos

convidados mais turbulentos.

Mas eram os próprios convidados que se revelavam as jóias mais

preciosas daquela caixa de veludo. As fantasias eram elaboradas e

extravagantes, trajes de época através de várias eras da história francesa

e occitana ou representando elementos das tradições misteriosas. O

convite para o baile de Sinclair era cobiçado pela elite esotérica do mundo

inteiro. Os felizes contemplados empenhavam muito tempo e dinheiro

em projetar e fazer um traje apropriado. Havia um concurso para a

fantasia mais original, a mais bonita e a mais engraçada. Sinclair era o

único juiz e júri e os prêmios concedidos muitas vezes equivaliam a uma

pequena fortuna... e ainda mais importante, uma vitória garantia um

cobiçado lugar na lista dos convidados para o baile do ano seguinte.

A música, o riso, o retinir dos copos de cristal, tudo parou

abruptamente quando Maureen e Peter entraram no salão.

Um homem de libré soprou algumas notas formais numa

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trombeta. Roland adiantou-se, numa túnica cátara simples, para

anunciar os recém-chegados. Maureen ficou surpresa ao ver Roland

vestido como um convidado naquela noite, em vez de estar usando o

uniforme de empregado. Mas não teve tempo para pensar a respeito,

arrebatada pela surpresa na chegada.

— É meu privilégio anunciar nossos convidados de honra,

mademoiselle Maureen de Paschal e abbé Peter Healy.

A multidão ficou paralisada, como bonecos de cera, todos olhando

aturdidos para os dois. Roland apressou-se em gesticular para que a

banda recomeçasse a tocar, a fim de superar o constrangimento

momentâneo. Depois, estendeu o braço para Maureen e levou-a pelo

salão de baile. O espanto persistiu, mas não tão óbvio. Os mais hábeis no

decoro trataram de disfarçar o choque com um desinteresse simulado.

— Não se importe com eles, mademoiselle — disse Roland, incisivo.

— É um rosto novo e um novo mistério para ser descoberto. Mas vão

aceitá-la num instante. Não têm opção.

Maureen também não teve tempo de pensar no significado das

palavras de Roland, pois ele levou-a para a pista de dança. Peter ficou

para trás, observando com um crescente interesse.

— Reenie!

O sotaque americano de Tamara Wisdom era incompatível com

aquele cenário europeu. Ela atravessou o salão de baile até o lugar em que

Maureen acabara de completar uma dança com Roland. Tammy parecia

bastante exótica, num traje de cigana. Os cabelos extraordinários

estavam pintados de preto lustroso e desciam até a cintura. Argolas de

ouro cobriam seus braços. Roland piscou para Tamara — como se estivesse

flertando, Maureen notou —, antes de fazer uma reverência para

Maureen e pedir licença para se afastar.

Maureen abraçou Tammy, exultante por encontrar outro rosto

familiar naquela terra cada vez mais estranha.

— Mas você está deslumbrante! Está vestida de quê?

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Tammy girou, graciosa, os cabelos pretos esvoaçando.

— Sara, a Egípcia, também conhecida como a Rainha Cigana. Ela

era a serva de Maria Madalena.

Tammy levantou o tafetá vermelho da saia de Maureen com um

dedo.

— E não preciso perguntar quem você é. Foi Berry quem lhe deu

esse traje?

— Berry?

Tammy riu.

— É assim que os amigos chamam Sinclair.

— Não sabia que vocês dois eram tão íntimos.

Maureen esperava ter evitado que o desapontamento

transparecesse em sua voz. Mas Tammy não teve tempo para responder.

Foram interrompidas por uma jovem, não muito mais do que uma

adolescente, vestida com uma túnica cátara simples. Trazia na mão um

único copo-de-leite e entregou-o a Maureen.

— Marie de Nègre — murmurou ela, fazendo uma reverência e se

afastando no instante seguinte.

Maureen virou-se para Tammy, à espera de uma explicação.

— O que isso significa?

— Você é o alvo de todas as conversas esta noite. Há apenas uma

regra para este baile anual, a de que ninguém deve se vestir como Ela. E,

de repente, você aparece como a Maria Madalena do retrato. Sinclair

está anunciando-a para o mundo. Esta é a sua festa de apresentação.

— Que beleza! Seria melhor se eu fosse informada desse pequeno

detalhe. De que aquela garota me chamou?

— Marie de Nègre. Maria Negra. É uma gíria local para designar

Maria Madalena, a Madona Negra. Em cada geração, uma mulher da

linhagem recebe esse nome, como um título oficial, e o mantém até a

morte. É uma imensa honra aqui. É como se a garota tivesse acabado de

dizer “Sua Majestade”.

Maureen teve pouco tempo para observar, no caos que

turbilhonava ao seu redor. O salão estava repleto de fascinantes

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distrações: muita música, muitas pessoas excêntricas e interessantes.

Sinclair não era visto em parte alguma. Maureen perguntara por ele

enquanto dançava com Roland, mas o gigante do Languedoc dera de

ombros e respondera de um modo vago e enigmático, como sempre.

Ela corria os olhos pelo salão quando Tammy perguntou:

— Procura seu cão de guarda?

Maureen lançou-lhe um olhar rápido, mas acenou com a cabeça,

preferindo deixar Tammy pensar que sua preocupação era apenas com

o paradeiro de Peter. Tammy indicou que Peter se aproximava, por trás de

Maureen.

— Comporte-se, por favor — sussurrou Maureen para a amiga.

Tammy ignorou-a. Já se adiantara para cumprimentar Peter.

— Seja bem-vindo à Babilônia, padre.

Peter riu.

— Obrigado... eu acho.

— Chegou na hora certa. Eu ia oferecer à Senhora aqui presente

uma excursão pelo show de variedades. Não quer nos acompanhar?

Peter acenou com a cabeça em aceitação. Sorriu desamparado

para Maureen, enquanto Tammy levava-os através do salão, em passos

rápidos.

Tammy conduziu Maureen e Peter entre os convidados,

sussurrando em tom de conspiração para os pequenos grupos por que

passavam. Fazia as apresentações apropriadas quando encontrava amigos

ou conhecidos na multidão. Maureen sabia que era o centro das atenções

ao percorrerem o salão.

Os três passaram por um pequeno grupo de homens e mulheres

em trajes sumários. Tammy cutucou Maureen.

— São representantes do culto sexual. Acreditam que Maria

Madalena era a alta sacerdotisa num conjunto bizarro de rituais

sexuais que vieram do antigo Egito.

Maureen e Peter assumiram expressões escandalizadas.

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— Não atirem na mensageira. Apenas os designo pelo que são. Mas

esperem... não digam nada agora. Olhem primeiro para aquelas pessoas.

Era o grupo mais bizarro, em trajes de alienígenas, inclusive com

antenas, parado no fundo do salão.

— Rennes-le-Château é um Stargate, um portal estelar, com

acesso direto a outras galáxias.

Maureen desatou a rir. Peter balançou a cabeça em incredulidade.

—Você não estava brincando sobre o show de variedades.

— E eu pensei que você tinha inventado aquelas coisas.

Os três pararam para observar um grupo que escutava

atentamente um homenzinho rotundo, de cavanhaque. Ele parecia falar

em rimas, os admiradores absorvendo cada palavra.

— Quem é aquele? — sussurrou Maureen.

— Nostradiota — gracejou Tammy.

Maureen fez um esforço para reprimir o riso, enquanto Tammy

acrescentava:

— Ele alega ser a reencarnação de vocês sabem quem. Fala apenas

em quadras rimadas. Um chato insuportável. Lembre-me de contar

mais tarde por que detesto todo esse culto de Nostradamus. — Ela

estremeceu, dramática. — Não passam de charlatães. Poderiam muito

bem vender óleo de cobra como cura para todos os males.

Tammy manteve-os em movimento através do salão.

— Ainda bem que nem todos aqui são aberrações. Algumas pessoas

são extraordinárias... e estou vendo duas neste momento. Venham

comigo.

Aproximaram-se de um grupo de homens vestidos em trajes da

nobreza dos séculos XVII e XVIII. Um aristocrata inglês se abriu num

enorme sorriso quando viu Tammy.

— Tamara Wisdom! É um prazer tornar a vê-la, minha cara. Você

está maravilhosa.

Ela deu dois beijos no inglês, ao estilo europeu, no ar, sem tocar-lhe

o rosto.

— Onde está sua maçã?

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Ele riu.

— Deixei na Inglaterra. Por favor, apresente-nos a seus amigos.

Tammy fez as apresentações, referindo-se ao inglês apenas como Sir

Isaac. Ele explicou a escolha de sua fantasia.

— Há muito mais em Sir Isaac Newton do que a maçã. A

descoberta das leis da gravidade foi um subproduto de sua obra maior.

Isaac Newton foi indiscutivelmente um dos mais talentosos alquimistas

da história.

Ao final do discurso de Sir Isaac, o grupo foi abordado por um jovem

americano, alto e parecendo um pouco desconfortável no seu traje de

Thomas Jefferson, com a peruca empoada.

— Tammy, querida!

O abraço que ele deu em Tammy foi bem apertado, ao melhor estilo

americano, acompanhado por um teatral beijo nos lábios. Tammy riu e

explicou para Maureen:

— Este é Derek Wainwright. Foi meu primeiro guia na França,

quando comecei a pesquisar essa loucura. Ele fala um francês impecável, o

que salvou minha vida em mais ocasiões do que posso me lembrar.

Derek fez uma reverência para Maureen. Seu sotaque era puro

Cape Cod com as vogais prolongadas de Massachusetts.

— Thomas Jefferson a seu serviço, madame. — Ele meneou a

cabeça para Peter. — Olá, padre.

Derek era o primeiro do grupo a sequer assinalar a presença de

Peter, notou Maureen. Mas ela não teve muito tempo para pensar a

respeito porque Peter perguntou:

— Qual é a associação de Thomas Jefferson... com tudo isso?

— Nosso grande país foi fundado por maçons. Todos os

presidentes americanos, de George Washington a George W. Bush, têm

sido descendentes da linhagem... de um jeito ou de outro.

Maureen ficou surpresa.

— É mesmo?

Foi Tammy quem respondeu:

— É, sim. Derek pode provar. Teve tempo demais sem fazer nada

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no colégio interno.

Isaac adiantou-se para bater de leve no ombro de Derek e anunciou

solene:

— Paulo foi o primeiro corruptor das doutrinas de Jesus, não é

mesmo, Tammy?

Peter fitou-o.

— Como assim?

— É uma das citações mais controvertidas de Jefferson — explicou

o inglês.

Foi a vez de Maureen se tornar surpresa.

— Jefferson disse isso?

Derek acenou com a cabeça, mas parecia não estar prestando

muita atenção. Olhava ao redor, examinando a festa. Tammy indagou:

— Onde está Draco? —- Acho que Maureen gostaria de conhecê-lo.

Três dos homens riram. Isaac respondeu:

— Eu o ofendi, e ele nos deixou à procura dos outros Dragões

Vermelhos. Tenho certeza de que está metido em algum canto, com

suas câmeras ocultas, espionando todo mundo. Estão vestidos a caráter

esta noite e por isso não será possível deixar de vê-los.

A curiosidade de Maureen fora atiçada.

— Quem são eles?

— Os Cavaleiros do Dragão Vermelho — respondeu Derek, com

uma ênfase dramática simulada.

— Uma coisa horrível — comentou Tammy, torcendo o nariz em

repulsa. — Usam um traje que parece o uniforme da Ku Klux Klan, só

que em cetim vermelho brilhante. Disseram que eu poderia aprender os

segredos de seu respeitável clube se doasse meu sangue menstrual

para experimentos alquímicos. Claro que aceitei a oferta.

— Quem não aceitaria? — A resposta de Maureen foi seca, antes

que desatasse a rir. — Quem são esses caras? Preciso dar uma olhada

neles.

Ela correu os olhos pelo salão, mas não viu ninguém que

correspondesse à bizarra descrição.

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— Eu os vi lá fora — informou Newton, prestativo. — Mas não sei

se é aconselhável expor Maureen a essa gente por enquanto. Ela pode

não estar preparada.

Tammy acrescentou:

— É uma sociedade secreta. Todos alegam ser descendentes de

alguém real e famoso. O líder é um cara que eles chamam de Draco

Ormus.

— Por que o nome me parece familiar? — perguntou Maureen.

— Ele é escritor. Temos a mesma editora esotérica na Inglaterra e é

por isso que o conheço. Pode encontrar um de seus livros em suas

viagens pelo território de Madalena. A ironia é que ele escreve sobre a

importância do culto da deusa e o princípio feminino, mas não permite

mulheres em seu clube masculino.

— Uma atitude muito britânica — disse Derek, cutucando Sir

Isaac, que não gostou do comentário.

— Não me inclua na companhia desse lunático, caubói. Nem todos

os britânicos são iguais.

— Isaac é um dos bons — garantiu Tammy. — Claro que há

muitos gênios de boa-fé na Inglaterra e alguns são meus grandes amigos.

Mas na minha experiência muitos esotéricos ingleses são esnobes. Todos

pensam que possuem o segredo do universo e que o resto das pessoas... os

americanos em particular... são idiotas da Nova Era, que só sabem fazer

pesquisas medíocres. Eles acham que sabem tudo só porque podem

escrever trezentas páginas sobre a geometria sagrada do Languedoc e criar

mais duzentas páginas sobre árvores genealógicas fictícias. Mas se

largarem suas bússolas e se permitirem sentir alguma coisa, vão descobrir

que há muito mais para se apreciar aqui do que apenas o que pode ser

quantificado no papel.

Tammy acenou com a cabeça para um grupo em trajes da era

elisabetana, no outro lado do salão.

— Ali estão alguns assim, diga-se de passagem. Eu os chamo de

Turma do Transferidor. Passam a vida inteira analisando a geometria

sagrada dos mapas. Você quer uma opinião sobre o significado de Et In

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Arcádia Ego? Eles podem oferecer anagramas em doze línguas diferentes e

traduzir esses anagramas em equações matemáticas.

Ela apontou para uma mulher atraente, mas de aparência

arrogante, num traje elaborado, ao estilo Tudor. Uma letra “M” em ouro

pendia de uma corrente em seu pescoço. A Turma do Transferidor

reunida ao seu redor dava a impressão de que a adulava.

— A mulher no centro alega ser descendente de Maria I, da Escócia.

Como se sentisse que falavam a seu respeito, a mulher virou-se

para olhar na direção deles. Fitou Maureen de alto a baixo, com uma

expressão de absoluto desdém, antes de se virar de novo para seus

aduladores.

— Uma vaca altiva — murmurou Tammy, ríspida. — Está no

centro de uma sociedade não muito secreta que quer restaurar a dinastia

Stuart no trono britânico. Com ela como rainha, é claro.

Maureen sentia-se fascinada pela enorme variedade dos sistemas de

crenças representados no salão, para não mencionar as personalidades

individuais extremadas. Peter inclinou-se para ela e gracejou:

— Freud teria um prato cheio aqui.

Maureen riu, mas tornou a concentrar sua atenção no grupo

britânico no outro lado do salão.

— Como Sinclair se sente em relação a ela? Ele é escocês... e não

tem parentesco com os Stuart?

A curiosidade de Maureen sobre Sinclair não parava de aumentar...

e a mulher que se apresentava como Maria I, da Escócia, era muito

bonita.

— Ele sabe que aquela mulher é um caso de hospício. Não

subestime Berry. Ele pode ser obsessivo, mas não é estúpido.

— Olhem ali! — interrompeu Derek, à sua maneira um tanto

juvenil de atenção limitada. — Hans e seu bando famoso. Ouvi dizer que

Sinclair quase proibiu a presença deles este ano.

— Por quê?

Maureen estava cada vez mais fascinada pelo Languedoc e a

estranha subcultura esotérica que produzira.

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— Eles são caçadores de tesouros no sentindo mais literal —

explicou Sir Isaac. — Circulam rumores de que é o bando o mais

recente a usar dinamite nas montanhas de Sinclair.

Maureen olhou para o grupo de alemães enormes e exuberantes. A

reputação não era melhorada pelos trajes que vestiam: todos estavam

fantasiados de bárbaros.

— As fantasias são de quê?

— Visigodos — respondeu Isaac. — Esta parte da França era

território dos visigodos nos séculos VII e VIII. Os alemães acreditam que o

tesouro de um rei visigodo está escondido na região.

Tammy acrescentou:

— Seria o equivalente europeu de descobrir a tumba de

Tutankhamon. Ouro, jóias, artefatos de valor inestimável. Tudo o que se

costuma encontrar num tesouro.

Um grupo bastante turbulento atravessou o salão, esbarrando

em Peter e Tammy. Cinco homens de túnica perseguiam uma mulher

vestindo véus coloridos do Oriente Médio. Ela carregava uma grotesca

cabeça humana numa bandeja. Os homens em seu encalço gritavam,

aparentemente se dirigindo à cabeça cortada:

— Fale conosco, Baphomet! Fale conosco!

Tammy deu de ombros e limitou-se a dizer, depois que eles

passaram:

— Batistas.

— Não os verdadeiros, é claro — ressaltou Derek.

— Não, não os verdadeiros.

Peter estava intrigado pelo ângulo religioso.

— O que significa que não são os verdadeiros?

Tammy virou-se para ele.

— Tenho certeza de que você sabe que dia é hoje no calendário

cristão, não sabe?

Peter acenou com a cabeça.

— É o dia de São João Batista.

— Os seguidores de João Batista nunca compareceriam a uma

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festa como esta em seu dia — explicou Derek. — Seria blasfêmia.

— É um grupo muito conservador, pelo menos o ramo europeu.

— Tammy acenou na direção da mulher com a cabeça. — Eles são uma

paródia. Um tanto brutal, posso acrescentar. Não que não seja

justificada.

As pessoas no salão observavam a brincadeira extravagante com

diferentes reações. Alguns riam, alguns sacudiam a cabeça, outros

ficavam escandalizados. Derek comentou, incapaz de se ater a um

assunto por muito tempo:

— Preciso de um drinque. Alguém quer alguma coisa do bar?

Peter aproveitou a partida de Derek para pedir licença e se afastar. O

traje não lhe assentava bem, e ele sentia-se desesperadamente

desconfortável, por razões que não eram apenas de elegância. Disse a

Maureen que ia procurar um banheiro. Na verdade, seguiu direto para o

pátio. Estava na França, no final das contas... e tinha certeza de que

encontraria no pátio alguém para lhe dar um cigarro.

Um francês de excepcional elegância, apesar da simplicidade da

túnica cátara, aproximou-se de Maureen e Tammy. Balançou a cabeça

para Tammy e fez uma reverência diante de Maureen.

— Bienvenue, Marie de Nègre.

Constrangida com a atenção, Maureen soltou uma risada.

— Lamento, mas meu francês é horrível.

O francês falou num inglês impecável, embora com sotaque:

— Eu disse que a cor fica muito bem em você.

Uma voz chamou Tammy do outro lado do salão. Maureen olhou,

achando que a voz era de Derek. Tornou a fitar Tammy, que estava

radiante.

— Ei, Derek conseguiu acuar no bar um dos meus investidores

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potenciais. Pode me dar licença por um momento?

Tammy afastou-se numa fração de segundo, deixando Maureen

com o misterioso francês. Ele beijou a mão direita de Maureen, hesitando

por um instante para examinar o anel, antes de se apresentar

formalmente.

— Sou Jean-Claude de la Motte. Berenger me disse que somos

parentes, você e eu. O nome de minha avó também era Paschal.

— É mesmo?

Maureen sentiu-se excitada com a ligação.

— E, sim. Ainda há alguns Paschal no Languedoc. Conhece a

história, não é?

— Não. Envergonho-me de dizer que tudo o que sei a respeito

aprendi com Lorde Sinclair nos últimos dias. Adoraria ouvir mais sobre

minha família.

Dançarinos em trajes de Versailles no século XVIII passaram por eles,

enquanto Jean-Claude falava:

— O nome Paschal é um dos mais antigos da França. Foi adotado

por uma das grandes famílias cátaras, descendentes diretos de Jesus e

Maria Madalena. A maior parte da família foi eliminada na cruzada

contra nosso povo. No massacre de Montségur, os sobreviventes foram

queimados vivos como hereges. Mas alguns escaparam. Membros da

família se tornaram mais tarde conselheiros de reis e rainhas da França.

Jean-Claude gesticulou para um casal na pista de dança, em trajes

requintados de Maria Antonieta e Luís XVI.

— Maria Antonieta e Luís? — indagou Maureen, surpresa.

— Isso mesmo. Maria Antonieta era uma Habsburgo, e Luís, um

Bourbon... dois ramos diferentes da linhagem. Os dois ramos se uniram e

foi por isso que as pessoas ficaram com tanto medo. A revolução foi causa

da em parte pelo medo de que a união das duas famílias formasse a mais

poderosa dinastia do mundo. Já esteve em Versailles, mademoiselle?

— Já, sim. Fiz uma visita durante a minha pesquisa sobre

Maria Antonieta.

— Então conhece o refúgio?

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— Claro.

O refúgio fora um dos lugares prediletos de Maureen no terreno do

vasto palácio de Versailles. Sentira uma profunda compaixão pela rainha,

enquanto percorria a residência real. Cada uma das atividades de Maria

Antonieta, de sentar-se no vaso a se preparar para dormir, era

testemunhada pelos cães de guarda da nobreza. Seus filhos nasceram na

presença de bandos de nobres reunidos no quarto.

Maria, a rainha, rebelara-se contra as sufocantes tradições da

realeza francesa e inventara um meio para fugir de sua prisão

dourada. Construíra um refúgio, uma pequena aldeia ao melhor estilo

da Disneylândia, à beira de um laguinho com patos e botes a remo. Um

moinho em miniatura e uma pequena casa de fazenda eram os cenários

para as festas pastorais, com pequenos grupos de amigos de confiança.

— Então você sabe que Maria gostava muito de se vestir como a

Pastora. Em todas as suas reuniões particulares, ela era a única que se

vestia assim.

Maureen balançou a cabeça em espanto, enquanto as peças se

ajustavam em seus lugares.

— Maria Antonieta sempre se vestia como a Pastora. Eu sabia

disso quando estive em Versailles, mas na ocasião ignorava todo o resto.

— Foi por isso que ela mandou construir o refúgio longe do palácio,

com rigorosas medidas de segurança. Era a sua maneira de celebrar as

tradições da linhagem em privacidade. Mas é claro que outros sabiam, já

que nada era segredo naquele palácio. Havia muitos espiões, muito poder

em jogo. Seria um dos fatores que levaram à morte de Maria... e à

revolução. Os Paschal, é claro, eram leais à família real. Com bastante

freqüência, eram convidados para as festas particulares de Maria. Mas a

família foi obrigada a fugir da França durante o Grande Terror.

Maureen ficou toda arrepiada. A história trágica da rainha da

França nascida na Áustria sempre fora uma fonte de profundo fascínio e

tornara-se um dos principais fatores que haviam motivado seu livro.

Jean-Claude acrescentou:

— A maioria foi para os Estados Unidos e muitos se instalaram

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na Louisiana.

Maureen empertigou-se ao ouvir isso.

— Meu pai era da Louisiana.

— Sei disso. Qualquer pessoa com olhos para ver saberia que você

é desse ramo da linhagem real. Tem as visões, não é?

Maureen hesitou. Relutava em falar sobre suas visões até mesmo

para os mais íntimos e aquele homem era um completo estranho. Mas

havia alguma coisa que parecia liberá-la por estar na companhia de

outros como ela... pessoas que achavam que era perfeitamente natural

ter aquelas visões. Ela respondeu com toda a simplicidade:

— Tenho, sim.

— Muitas mulheres da linhagem têm visões de Madalena. Às vezes

até os homens, como Berenger Sinclair. Ele tem as visões desde que era

criança. É bastante comum.

Mas não me parece tão comum, pensou Maureen. Ela ficou curiosa com

aquela revelação.

— Sinclair tem visões?

Ele não mencionara isso. Mas ela teria a oportunidade de perguntar

ao próprio, pois Sinclair atravessava o salão naquele instante, vestido

como o conde de Toulouse.

— Vejo que já encontrou sua prima há muito perdida, Jean-

Claude.

— Oui. E ela é um crédito para o nome da família.

— Um grande crédito. Posso roubá-la por um momento?

— Só se você me permitir levá-la para um passeio de carro amanhã.

Eu gostaria de lhe mostrar alguns dos locais da região ligados ao

nome Paschal. Já esteve em Montségur, ma chérie?

— Não. Saímos com Roland hoje, mas não chegamos a Montségur.

— É um lugar sagrado para a família Paschal. Importa-se que eu a

leve até lá, Berenger?

— Claro que não. Mas Maureen é perfeitamente capaz de tomar

suas próprias decisões.

— Quer me conceder essa honra? Posso mostrar Montségur e

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depois a levarei a um restaurante tradicional. Só servem comida

preparada ao autêntico estilo cátaro.

Maureen não conseguia encontrar nenhuma maneira graciosa de

dizer não, mesmo que quisesse. Mas a combinação de charme francês e a

perspectiva de ter mais uma percepção da história da família era

irresistível.

— Terei o maior prazer.

— Então até amanhã, prima. Posso vir buscá-la às onze horas?

Jean-Claude beijou-lhe de novo a mão, depois que ela concordou.

Despediu-se de Berenger.

— Tenho de partir agora, pois preciso fazer planos para amanhã.

Maureen e Sinclair sorriram quando ele se afastou.

— Você causou uma impressão e tanto em Jean-Claude. O que não

é de surpreender. Está maravilhosa nesse traje, como eu sabia que ficaria.

— Obrigada por tudo.

Maureen sabia que corava, pois não estava acostumada a tanta

atenção masculina. Resolveu retomar a conversa sobre Jean-Claude:

— Ele parece muito simpático.

— É um estudioso brilhante, um dos maiores conhecedores de

história francesa e occitana. Trabalhou durante anos na Bibliothèque

Nationale, onde tinha acesso aos mais espantosos materiais de pesquisa.

Foi de grande ajuda para Roland e para mim.

— Roland?

Maureen ficou surpresa pela maneira deferente com que Sinclair se

referiu ao mordomo. Não parecia um comportamento típico para um

aristocrata. Sinclair deu de ombros.

— Roland é um leal filho do Languedoc. E possui o maior interesse

pela história de seu povo. — Sinclair pegou Maureen pelo braço e

começou a levá-la através do salão. — Venha comigo. Quero lhe mostrar

uma coisa.

Os dois subiram um lance de escada e entraram numa pequena

sala, com um terraço particular. Dava para o pátio e um vasto jardim que

se estendia além. Havia um portão com flores-de-lis douradas, protegidos

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Por guardas, nos dois lados.

— Por que há tantos guardas no portão?

— Este é o meu domínio particular, um terreno sagrado. Eu o

chamo de Jardim da Trindade e só permito o acesso a bem poucas

pessoas... e pode ter certeza de que muitos dos convidados aqui esta

noite fariam qualquer coisa para passar por aquele portão.

Depois de uma breve pausa, Sinclair acrescentou:

— O baile à fantasia é uma tradição... minha reunião anual para

determinadas pessoas, que partilham um interesse comum. — Ele

gesticulou para as pessoas no pátio. — Algumas eu respeito... até mesmo

reverencio, algumas eu chamo de amigas, outras... outras são divertidas.

Mas todas eu vigio atentamente... algumas muito atentamente. E achei

que você poderia achar interessante observar como as pessoas vêm do

mundo inteiro para investigar os mistérios do Languedoc.

Maureen correu os olhos pelas pessoas no pátio, desfrutando a

brisa, que trazia a fragrância do roseiral próximo, no início do verão.

Notou que Tammy parecia muito íntima de Derek... e que Derek se

mostrava fascinado pela exuberante rainha das ciganas. Viu alguém que

poderia ser Peter, mas chegou à conclusão de que não era. Aquele homem

estava fumando. E Peter não fumava desde que era adolescente. Ela

virou-se abruptamente para Sinclair e perguntou:

— Como me descobriu?

Ele levantou a mão direita de Maureen, gentilmente.

— Pelo anel.

— O anel?

— Estava com o anel na foto em que aparece na capa do livro.

Maureen balançou a cabeça, começando a compreender.

— Sabe o que o padrão significa?

— Tenho uma teoria a respeito e foi por isso que a trouxe até

aqui. Venha comigo.

Sinclair tornou a segurá-la pelo braço. Levou-a até uma obra de arte

na parede, protegida por um vidro. Era pequena, não maior que uma foto

8 x 10. Mas estava bem no meio da parede, com uma iluminação

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cuidadosa, para destacar todos os detalhes.

— É uma gravura medieval — explicou ele. — Representa a

filosofia. E as sete artes liberais.

— Como o afresco de Botticelli.

— Exatamente. Vem da perspectiva clássica de que alguém que

se dedica às sete artes liberais pode alcançar o título de filósofo. É por

isso que a figura feminina no centro é apresentada aqui como a

deusa, Filosofia, e as artes liberais estão a seus pés, a seu serviço. Mas

aqui está o que pensei que você acharia mais interessante.

Sinclair começou pela esquerda, dando os nomes das artes liberais,

enquanto as indicava com o dedo. Parou na sétima e última.

— Aqui estamos. Cosmologia. Percebe alguma coisa que parece

familiar?

Maureen não pôde conter uma exclamação de espanto.

— Meu anel!

A figura representando a cosmologia segurava um disco

ornamentado com o padrão do anel de Maureen. Ela contou as estrelas e

ergueu a mão para a comparação com a gravura.

— E idêntico, até no espaçamento do centro para os círculos.

Maureen ficou calada por um momento, absorvendo tudo, antes

de se virar para Sinclair.

— Mas o que tudo isso significa? Como se aplica a Maria Madalena?

E a mim?

— Há aplicações espirituais e alquímicas. Em relação aos mistérios

de Madalena, creio que esse símbolo aparece com freqüência como uma

pista, um lembrete de que precisamos dispensar toda a atenção à crítica

relação entre a Terra e as estrelas. Os antigos sabiam disso, mas esquece

mos em nossa era moderna. “Como acima é abaixo.” As estrelas nos

lembram todas as noites que temos a oportunidade de criar o paraíso

na

Terra. Creio que é isso que eles queriam nos ensinar. Foi sua suprema

dádiva para nós, sua mensagem de amor.

— Eles?

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— Jesus Cristo e Maria Madalena. Nossos ancestrais.

E como se um cronômetro cósmico estivesse armado para pontuar

a frase, os fogos de artifício começaram a explodir nesse instante,

promovendo um espetáculo de luzes sobre o jardim, deixando todos

maravilhados. Sinclair levou Maureen de volta ao terraço, a fim de

contemplar as explosões de cores sobre o terreno do castelo. E, quando

ele estendeu o braço ao seu redor, Maureen deixou, sentindo-se

estranhamente confortável naquele abraço forte e afetuoso.

Lá embaixo, no pátio, o padre Peter Healy não olhava para os

fogos de artifício. Pelo menos não os que brilhavam no céu. A sua

atenção concentrava-se em Berenger Sinclair, no terraço, com o braço

em torno da cintura da prima ruiva de Peter, num gesto firme e

possessivo. Em contraste com Maureen, ele não se sentia nem um pouco

tranqüilo... em relação a Sinclair e a todas aquelas pessoas e seus planos.

Havia outros pares de olhos observando a evolução da química entre

Sinclair e Maureen naquela noite. Derek também observava lá de baixo, de

sua posição no outro lado do pátio. Ao correr os olhos pelo terraço, ele

notou que seu colega francês estava bem posicionado lá em cima, talvez

até bastante perto para ouvir a conversa entre o anfitrião e a mulher

vestida como Maria Madalena.

Derek Wainwright apalpou seu corpo discretamente, para ter

certeza de que a corda vermelha cerimonial de sua Guilda estava bem

escondida nas dobras do traje de Thomas Jefferson. Precisaria usá-la

mais tarde, ainda naquela noite, quando voltasse para Carcassonne.

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... Talvez eu seja a única defensora da princesa chamada

Salomé, porém obrigo-me a assumir tal posição. Lamento ter esperado

tanto, pois ela não merecia seu terrível destino. Houve um tempo em

que falar a respeito dela e de suas ações era a morte. Por isso eu não

podia defendê-la sem pôr em risco os seguidores de Easa e os

ensinamentos mais elevados d'O Caminho. Como muitos de nós,

entretanto, ela foi julgada por aqueles que não conheciam a verdade,

nem sequer um eco da verdade.

Em primeiro lugar, cumpre-me afirmar algo: Salomé me amava e

amava Easa ainda mais. Se tivesse a oportunidade, em outro tempo,

outro lugar ou outras circunstâncias, ela poderia ter sido uma

autêntica discípula, uma sincera seguidora d'0 Caminho da Luz. Por

isso, não há como furtar-me a incluí-la neste Livro dos Discípulos, pois

ela poderia ter-se tornado um deles. Como Judas, Pedro e os outros, a

Salomé foi garantido um determinado papel, e pouca chance de escapar

ao seu destino. Seu nome foi gravado nas pedras de Israel com o

sangue de João e talvez também com algum sangue de Easa.

Se suas ações se revelaram precipitadas e infantis, como uma

jovem que não pensa nas coisas antes de falar, então ela é culpada por

isso. Porém ser lembrada como ela é, injuriada e desprezada como uma

meretriz que ordenou a morte de João Batista, é uma das maiores

injustiças de que posso me lembrar.

No Dia do Juízo Final, talvez ela me perdoe por isso.

E talvez João perdoe todos nós.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO ONZE

Château des Pommes Bleues

24 de junho de 2005

Maureen foi deitar pouco depois da queima dos fogos de artifício.

Peter apareceu quando ela descia a escada, oferecendo-se para

acompanhá-la até seu quarto. Ela aceitou a oferta sem hesitar, mais do

que ansiosa em escapar para uma solidão muito necessária. As últimas

vinte e quatro horas haviam sido vertiginosas e sua cabeça latejava.

Mais tarde, ainda naquela noite, Maureen foi despertada por vozes

no corredor. Pensou reconhecer a voz de Tammy, falando num sussurro.

Uma voz abafada de homem respondeu. Depois, ela ouviu uma risada

gutural, uma característica tão específica de Tammy quanto as

impressões digitais. Ficou feliz em pensar que a amiga se divertia na

festa.

E Maureen sorria quando tornou a mergulhar no sono, com uma

noção vaga, sonolenta, de que a voz sussurrando em intimidade para

Tammy não era de um americano.

Carcassonne

25 de junho de 2005

Derek Wainwright soltou um grunhido quando o sol da manhã

entrou inexorável pela janela de seu quarto no hotel. Havia duas coisas

com que ele não queria lidar naquele dia: sua ressaca e as oito mensagens

no celular.

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Levantou-se devagar, a fim de avaliar a extensão da dor de cabeça.

Arrastou-se até a mala de couro italiano e pegou um vidro. Abriu-o para

revelar um amplo sortimento de pílulas. Tomou um Vicodin,

acompanhado por três cápsulas de Tylenol, por precaução. Assim,

fortalecido, ele olhou para o telefone na mesinha-de-cabeceira. Desligara-o

quando voltara ao hotel, tarde da noite. Não podia suportar os bips

incessantes e não queria ouvir as mensagens.

Derek passara a maior parte de sua vida escapando da

responsabilidade dessa maneira. Nascido numa família muito rica e

influente na Costa Leste dos Estados Unidos, o filho mais novo do

magnata do ramo imobiliário Eli Wainwright sempre tivera uma vida fácil.

Ingressara em Yale sem a menor dificuldade, com base nos legados do pai

e dos irmãos mais velhos. Obtivera um cargo de executivo numa empresa

de investimentos de alta classe, apesar de seu medíocre desempenho

acadêmico. Deixara o emprego menos de um ano depois, quando chegara

à conclusão de que o horário de trabalho não era compatível com seu

estilo de vida, de noitadas e festas freqüentes. Não que precisasse

trabalhar. O fundo de investimentos que fora criado para ele era

suficiente para sustentá-lo pelo resto da vida. Daria também para

sustentar seus filhos e netos, se algum dia se assentasse o suficiente para

tê-los.

Eli Wainwright se mostrara surpreendentemente paciente com as

deficiências do filho caçula. Derek carecia do empenho nos estudos e da

aptidão para os negócios dos irmãos. Demonstrara, porém, o maior

interesse por um elemento essencial na vida e sucesso da família: a

participação na Guilda dos Justos. Batizado, primeiro, quando bebê e

depois outra vez aos quinze anos, como era tradição na organização, Derek

parecia ter uma afinidade natural pela sociedade e seus ensinamentos. O

pai escolhera Derek para tomar o seu lugar como um dos principais

membros americanos da Guilda, uma organização que se estendia não

apenas por todo o mundo ocidental, mas também por partes da Ásia e

Oriente Médio. A Guilda dos Justos contava entre os seus membros com

alguns dos homens mais influentes na comunidade empresarial e na

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política internacional.

A participação era estritamente para herdeiros de sangue. Os

homens batizados deviam casar com as Filhas da Justiça. Eram as filhas

dos membros da Guilda, criadas num rigoroso código de decoro. As garotas

recebiam um treinamento especial para se tornar esposas e mães. As

lições vinham de um documento antigo conhecido como O verdadeiro

livro do Santo Graal, que havia séculos era passado de uma geração para

outra. Alguns dos maiores bailes de debutantes da Costa Leste e do Sul

dos Estados Unidos, em particular no Texas, eram em essência “festas de

apresentação” das Filhas da Justiça, anunciando que estavam

preparadas para entrar no mundo como esposas obedientes e

apropriadas de membros da Guilda.

Os filhos mais velhos de Eli haviam se casado com Filhas da Justiça

e estavam todos bem instalados em suas vidas de classe superior. Assim,

era cada vez maior a pressão sobre o Wainwright mais novo, agora na

casa dos trinta anos, para assentar-se de uma maneira similar. Derek não

estava interessado, embora não ousasse dizer isso ao pai. Achava que as

Filhas da Justiça eram chatas demais, em sua virgindade imaculada. A

idéia de ir para a cama todas as noites com uma daquelas princesas do gelo,

de criação perfeita, fazia-o estremecer. Claro que podia fazer o que seus

irmãos e todos os outros membros da Guilda faziam: casar com a mãe

apropriada e aprovada para seus filhos e arrumar uma vagabunda ardente

para manter as coisas interessantes por fora. Mas por que tomar juízo

naquela altura da vida? Ainda era jovem, com uma imensa riqueza, e

tinha poucas responsabilidades. E enquanto houvesse mulheres exóticas e

sensuais para atraí-lo, como Tamara Wisdom, ele não tinha a menor inten-

ção de se acorrentar a uma reprodutora insuportável e premiada, que o

faria se lembrar da mãe. Se o pai continuasse convencido de que ele só esta-

va interessado em executar os planos da Guilda, Derek poderia se esquivar

de suas outras responsabilidades, pelo menos por mais alguns anos.

O que Eli Wainwright não percebia, com os olhos cegos de um pai

que opta por não admitir os defeitos do filho, era que Derek não sentia

afinidade pela filosofia da Guilda. O fascínio era pela mística de uma

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sociedade proscrita, os rituais, o senso de elitismo que vinha de conhecer

segredos legados ao longo dos séculos e protegidos com sangue. A

verdadeira atração vinha da compreensão de que praticamente qualquer

ato de um membro da Guilda, por mais abominável que fosse, podia ser

apagado e encoberto pela rede global de influência. Derek adorava essas

coisas, assim como a maneira pela qual era tratado, aonde quer que

fosse, por causa da riqueza e influência do pai. Ou pelo menos era o que

acontecia antes, até que o antigo Mestre da Justiça morrera, de uma

maneira um tanto misteriosa, sendo substituído pelo novo, o fanático

inglês que agora dominava a Guilda com mão de ferro.

O novo líder mudara tudo. Gabava-se de sua ligação hereditária

com Oliver Cromwell, ao mesmo tempo que estudava as táticas

implacáveis e muitas vezes sinistras de seu antepassado para lidar com a

oposição. Ao assumir o título de Mestre da Justiça, John Simon

Cromwell efetuara sua primeira declaração dramática de princípios,

através de uma brutal execução. Era verdade que o homem

assassinado era um inimigo da Guilda e líder de uma organização que se

opunha a eles havia centenas de anos. Mas a mensagem fora evidente:

“Eliminarei qualquer um que me desafiar e farei isso da maneira mais

brutal.” Decapitar o homem com uma espada e cortar o dedo indicador

direito eram atos que demonstravam o toque pessoal do fanatismo

incontrolável do novo líder.

Derek tentou bloquear essa imagem específica de sua mente

atordoada ao pegar o celular e ligá-lo, acessando a caixa postal. Era

tempo de enfrentar a música. Assumira o compromisso de cumprir uma

missão e estava determinado a fazê-lo, a fim de demonstrar para o

desgraçado do britânico, de uma vez por todas, do que ele era capaz.

Estava cansado de ser escarnecido pelo britânico e pelo francês. Tratavam-

no como se fosse um idiota e ninguém jamais tivera permissão para fazer

isso antes.

Enquanto ouvia os recados, Derek respirou fundo, contra a voz com

sotaque de Oxford que se tornava mais e mais ameaçadora a cada

mensagem. Ao ouvir as palavras finais, na oitava mensagem, Derek já

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sabia o que tinha de fazer.

Château des Pommes Bleues

25 de junho de Z005

Tamara Wisdom escovava os cabelos negros lustrosos, enquanto se

contemplava no enorme espelho de moldura dourada. O sol vibrante da

manhã iluminava seu quarto, que era tão espetacular quanto o de

Maureen. Havia rosas, em tonalidades de creme e púrpura, em vasos de

cristal, em todas as mesas. Veludos e brocados de cor púrpura envolviam

a enorme cama, um lugar que ela raramente ocupava sozinha.

Tammy sorriu, deleitando-se por um momento com as recordações

da noite anterior. O calor do corpo do homem deixara uma impressão em

sua pele por muito tempo depois que ele se retirara, pouco antes do

amanhecer. Em sua atitude intrépida e experimental em relação à vida,

ela conhecera muitas paixões intensas, mas nenhuma fora como

aquela. Finalmente compreendia o que os alquimistas queriam dizer

quando falavam da Grande Obra, a união perfeita de um homem e uma

mulher... um encontro de corpo, mente e espírito.

Mas o sorriso se desvaneceu quando ela voltou à realidade do que

tinha de ser feito naquele dia.

Tudo fora muito divertido a princípio, como um grande jogo de

xadrez entre dois continentes. Ela passara a gostar de Maureen muito

depressa. Todos gostavam. Até o padre não se mostrara a criatura

intrometida que todos temiam. Era um místico, à sua maneira, muito

longe do dogmático rígido que haviam previsto.

Havia também a questão de seu próprio envolvimento, cada vez

mais profundo. O elemento Mata Hari fora divertido no começo, mas

agora estava se tornando repulsivo. Teria de equilibrar tudo com muito

cuidado hoje, a fim de obter a informação de que precisava, mas sem se

perder no processo. Tinha vários objetivos a alcançar, por si mesma, pela

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Sociedade e por Roland. Mantenha o foco, Tammy, ela lembrou a si mesma.

Há muito a ganhar, se você for bem-sucedida, e tudo a perder, se

fracassar.

O jogo mudara. E estava se tornando mais perigoso do que qualquer

um previra.

Tammy largou a escova e passou uma fragrância floral nos pulsos e

na garganta, em preparativo para o que ia acontecer. Ao se virar para

deixar o quarto, ela parou diante do quadro espantoso na parede. Era de

Gustave Moreau, pintor simbolista francês, e mostrava a princesa

Salomé envolta pelos sete véus e segurando uma bandeja com a cabeça

de João Batista.

— Essa é a minha garota — murmurou Tammy para si mesma,

antes de partir para sua última e mais crucial participação na intriga.

Maureen tomou o café da manhã sozinha na copa. Roland,

passando pelo corredor, viu-a ali e entrou.

— Bonjour, mademoiselle Paschal. Está sozinha?

— Bom-dia, Roland. Desci sozinha. Peter ainda dormia e eu não

quis acordá-lo.

Roland balançou a cabeça.

— Tenho um recado de sua amiga, Srta. Wisdom. Ela está agora

hospedada no Château e gostaria que jantassem juntas esta noite.

— Vou adorar. — Maureen estava ansiosa em se encontrar com

Tammy para conversar sobre a festa. — Onde ela está agora?

Roland deu de ombros.

— Ela foi cedo para Carcassonne. Para tratar de alguma coisa

relacionada com o filme que está fazendo. Só me pediu para lhe dar esse

recado. E agora, mademoiselle, vou procurar monsieur Berenger, pois

tenho certeza de que ele ficará consternado ao saber que está comendo

sozinha.

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Sinclair interrompeu os pensamentos de Maureen, entrando na

copa pouco depois de Roland se retirar.

— Dormiu bem?

— Como poderia ser de outra forma naquela cama? É como

dormir nas nuvens.

Maureen notara, logo na primeira noite, que havia um enorme

colchão de plumas por baixo dos lençóis de algodão egípcio.

— Isso é ótimo. Tem planos para esta manhã?

— Não até onze horas. Lembra que vou me encontrar com

Jean-Claude hoje?

— Claro que lembro. Ele vai levá-la para Montségur. Um lugar

extraordinário. Só lamento não ter mostrado para você na primeira vez.

— Não gostaria de nos acompanhar?

Sinclair riu.

— Minha cara, Jean-Claude trataria de me enforcar, esfolar e

esquartejar se eu fosse junto hoje. Você é a estrela da região agora, depois

de sua apresentação na noite passada. Todo mundo quer saber mais a

seu respeito. A cotação de Jean-Claude na região vai subir mais de cem

pontos se ele for visto escoltando-a sozinho. Mas não o invejo por isso.

Também tenho uma coisa para lhe mostrar, assim que acabar de

comer... e tenho certeza de que você vai achar memorável.

Os dois estavam parados no mesmo terraço de onde haviam

assistido aos fogos de artifício, na noite anterior. O extraordinário jardim

do castelo estendia-se à frente.

— É muito mais fácil contemplar e apreciar o jardim à luz do dia —

comentou Sinclair, orgulhoso, apontando para as três seções separadas.

— Está vendo como formam um padrão de flor-de-lis?

— É um jardim magnífico.

Maureen estava sendo absolutamente sincera. O jardim era

impressionante em sua beleza escultural, visto de cima.

— Esse jardim pode contar a história de nossos ancestrais

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melhor do que eu sou capaz. Gostaria que me concedesse a honra

de mostrá-lo. Vamos?

Maureen aceitou o braço oferecido. Desceram para o átrio. Ela

notou que o castelo estava impecável, apesar das várias centenas de

convidados que recebera na noite anterior. Os criados deviam ter

realizado uma limpeza meticulosa logo em seguida, pois não havia

qualquer coisa que não fosse uma ordem imaculada por ali.

Passaram pelas enormes portas de vidro e saíram para o pátio

de mármore. Seguiram até o portão dourado. Sinclair tirou uma

chave do bolso e a inseriu no cadeado. Soltou a corrente e empurrou

o portão por uma barra dourada. Entraram em seu santuário

pessoal.

Um chafariz de mármore rosa borbulhava bem à frente, na

entrada do jardim. O sol faiscava nas gotas de água que caíam pelos

ombros de uma estátua em tamanho natural de Maria Madalena,

esculpida em mármore cor de marfim. Havia uma rosa na mão

esquerda da imagem; uma pomba pousava na mão direita. Na base

do chafariz, estava esculpida a onipresente flor-de-lis.

— Você conheceu muitas pessoas ontem à noite. Todas têm

teorias sobre esta região e o tesouro misterioso. Tenho certeza de que

ouviu muitas, do sublime ao ridículo.

Maureen riu:

— A maioria era ridícula.

Sinclair sorriu para ela.

— Todos têm suas teorias e acreditam... ou seria melhor

dizer, sabem... que Maria Madalena é nossa rainha, aqui no sul da

França. Na verdade, isso é a única coisa com que todos que estavam

no salão ontem à noite concordam.

Maureen escutava com total atenção. A voz de Sinclair tinha

um ar de excitamento, de expectativa. Era contagiante.

— E todos sabem também que há uma linhagem. Uma

linhagem real, que vem de Maria Madalena e seus filhos. Mas bem

poucos conhecem toda a verdade. A história inteira está reservada

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para aqueles que são os verdadeiros seguidores d'O Caminho. O

Caminho como foi ensinado por nossa Madalena. O Caminho como foi

ensinado pelo próprio Jesus Cristo.

Maureen deteve-o, com alguma hesitação:

— Não sei se é apropriado ou não perguntar, mas é esse o objetivo

de sua Ordem das Maçãs Azuis?

— A Ordem das Maçãs Azuis é antiga e complexa. Eu lhe contarei

mais a respeito depois. Por enquanto, basta dizer que a Ordem existe

para defender e preservar a verdade. E a verdade é que Maria Madalena

foi mãe de três crianças.

Maureen ficou surpresa.

— Três?

Sinclair acenou com a cabeça em confirmação.

— Bem poucas pessoas conhecem a história em sua totalidade,

porque os detalhes foram intencionalmente encobertos para a proteção

dos descendentes. Três crianças. Uma trindade. E cada uma fundou uma

linhagem de sangue real que mudaria a face da Europa e do mundo. O

jardim celebra as dinastias instituídas pelas três crianças. Meu avô

criou tudo isso. Ampliei o jardim e assumi o compromisso de preservá-lo.

Três arcadas levavam às diferentes partes do jardim.

— Começaremos por nosso próprio ancestral.

Ele conduziu uma aturdida Maureen pela arcada central.

— O que foi? Ficou surpresa por saber que somos parentes? Muito

distantes, é verdade, mas descendemos da mesma linhagem original.

— Não é fácil absorver tudo isso. Sei que é um conhecimento

antigo para você, mas é chocante para mim descobrir. Não posso

imaginar como o resto do mundo reagiria.

Eles entraram num roseiral de viço extraordinário. Várias espécies

de lírios estavam plantadas num círculo, em torno de outra estátua. A

combinação formava a fragrância magnífica que Maureen aspirara na

noite anterior.

Uma pomba branca arrulhou e sobrevoou as roseiras requintadas e

entrelaçadas, enquanto Maureen e Sinclair caminhavam juntos, em

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silêncio. Ela parou por um momento para aspirar, absorvendo o perfume

das rosas vermelhas desabrochadas.

— Rosas... São simbólicas para todas as mulheres da linhagem.

E lírios... O lírio é um símbolo específico de Maria Madalena. A rosa pode

se referir a qualquer mulher descendente, mas, em nossa tradição, só

Madalena tem permissão para ostentar o lírio.

Ele conduziu Maureen até a estátua, que dominava tudo ao redor.

Era de uma jovem esguia, com cabelos lisos e soltos. Maureen teve

dificuldade para falar. Sua pergunta foi pouco mais que um sussurro:

— Essa é a filha?

— Posso apresentá-la a Sara-Tamar, a única filha de Jesus Cristo

e Maria Madalena? A fundadora das dinastias reais francesas. E nossa

antepassada comum, há mil e novecentos anos.

Maureen ficou olhando por um longo momento para a estátua,

antes de tornar a se virar para Sinclair.

— É tudo incrível demais. E, no entanto, não estou achando tão

difícil aceitar. Muito estranho, mas ao mesmo tempo parece... certo.

— Isso acontece porque sua alma reconhece a verdade.

Uma pomba arrulhou em concordância, do alto de uma roseira.

— Está ouvindo as pombas? São o símbolo de Sara-Tamar,

emblemas de seu coração puro. Mais tarde, tornou-se o símbolo de seus

descendentes... os cátaros.

— E foi por isso que os cátaros foram exterminados como hereges

pela Igreja?

— E, sim... pelo menos em parte. Porque podiam provar,

mediante determinados objetos e documentos em seu poder, que eram

descendentes de Jesus e Maria. O que fazia com que sua mera existência

se tornasse uma ameaça para Roma. Homens, mulheres e crianças. A

Igreja tentou exterminar todos eles para manter o segredo. Mas há mais

para ver. Vamos.

Sinclair levou Maureen num semicírculo, através das roseiras,

proporcionando-lhe a oportunidade de experimentar a beleza do jardim

ao sol do verão, numa manhã dourada no Languedoc. Voltaram pela

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arcada e contornaram o chafariz de Maria Madalena.

— É hora de conhecer o irmão caçula.

Maureen podia sentir que o seu excitamento tornava a crescer.

Especulou como devia ser a manutenção de um segredo daquela

magnitude. Pensou por um instante, com uma pontada de apreensão,

que em breve saberia em primeira mão.

Sinclair passou pela arcada da direita, para um trecho do jardim

mais meticuloso e bem tratado.

— Parece muito inglês — comentou Maureen.

— É isso mesmo, minha cara. E agora lhe mostrarei por quê.

Uma estátua de um jovem de cabelos compridos, levantando um

cálice, era o ponto focal do chafariz grande que havia ali. Uma água

cristalina despejava-se do cálice.

— Yeshua-Davi, o filho mais novo de Jesus e Maria. Ele não

conheceu o pai, pois Madalena estava grávida por ocasião da crucificação.

Nasceu em Alexandria, no Egito, onde a mãe e sua comitiva se refugiaram,

antes de partir para a França.

Maureen parou de repente. Num gesto inconsciente, levou a mão à

barriga.

— O que houve?

— Ela estava mesmo grávida. Eu vi. Estava grávida na Via

Dolorosa e... na crucificação.

Sinclair começou a acenar com a cabeça, à sua maneira distraída,

mas ficou imóvel abruptamente. Foi a vez de Maureen perguntar:

— O que houve?

— Você disse crucificação? Teve uma visão da crucificação?

Maureen começava a sentir um aperto na garganta e as

lágrimas ardendo no fundo dos olhos. Teve medo de falar por um

momento, achando que não seria capaz de controlar a voz. Sinclair

percebeu e falou com extrema gentileza:

— Maureen, minha querida, pode confiar em mim. Diga-me, por

favor. Teve uma visão de Madalena na crucificação?

Uma lágrima escorreu, incontrolável, mas Maureen não sentiu

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mais a necessidade de tentar reprimi-la. Havia um sentimento de

liberação, se não mesmo de segurança, em partilhar aquilo com alguém

que compreendia.

— Tive — sussurrou ela. — Aconteceu na Notre Dame.

Sinclair estendeu a mão para remover a lágrima de seu rosto.

— Minha cara Maureen, pode imaginar como isso é extraordinário?

— E por que é tão importante?

— A profecia.

Maureen esperou pela explicação que sabia que viria.

— Há uma profecia que passou de geração em geração, por

tanto tempo quanto alguém pode se lembrar. A lenda diz que era parte de

um livro maior de profecias e revelações que outrora existiu, escrito

em grego. O livro era atribuído a Sara-Tamar e por isso seria um

evangelho. Sabemos que uma importante princesa da linhagem,

Mathilda da Toscana, a duquesa de Lorena, possuía o livro original,

quando construiu a Abadia de Orval, no século XI.

— Onde fica Orval?

— No que é agora a fronteira belga. Há vários locais religiosos

muito importantes na Bélgica que pertencem à nossa história,

mas foi em Orval que as profecias de Sara-Tamar ficaram

guardadas durante alguns anos. Sabemos que o original de seu

livro passou algum tempo, depois disso, em poder dos cátaros do

Languedoc. É lamentável que o livro tenha desaparecido por

completo da história. Pouco se sabe sobre o que aconteceu. E

nossa única percepção sobre o conteúdo vem de Nostradamus.

— Nostradamus?

Maureen sentia a cabeça girar. Tinha a impressão de que

nunca deixaria de ficar chocada com a maneira como tudo se

entrelaçava. Sinclair revirou os olhos.

— Isso mesmo. Ele recebeu todo o crédito por sua espantosa

visão e clarividência, mas as profecias não eram suas. Eram de

Sara-Tamar. Ao que tudo indica, Nostradamus teve acesso a uma

versão copiada à mão do original, numa visita a Orval. Essa cópia

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desapareceu pouco depois. Pode tirar suas conclusões.

Maureen soltou uma risada.

— Não é de admirar que Tammy fale dele de uma maneira tão

desdenhosa. Nostradamus era um plagiário.

— E muito esperto. Temos de lhe conceder o crédito pela

criação das quadras. Foram uma invenção sua. Ele reescreveu as

profecias de Sara-Tamar de maneira a disfarçar a fonte original e ter

o máximo de impacto em seu tempo. O velho Michel era mesmo

brilhante. E seus amplos conhecimentos de alquimia lhe

proporcionaram a capacidade de decifrar o que devia ser um

documento muito complicado. Mas pouco nos ficou de nossa Sara-

Tamar, afora a obra de Nostradamus e a única profecia que está

arraigada em alguns de nós.

— E o que diz essa profecia?

Sinclair olhou para a água caindo do cálice. Depois, fechou os

olhos e recitou uma parte da profecia:

— Marie de Nègre dirá quando chegar o momento para A

Escolhida. Ela que nasceu do Cordeiro Pascal, quando o dia e a noite são

iguais, ela que é filha da ressurreição. Ela que carrega o Sangre-el

receberá a chave, ao contemplar o Dia Tenebroso do Crânio. Ela se

tornará a nova Pastora e nos mostrará O Caminho.

Maureen estava atordoada. Sinclair tornou a pegar sua mão.

— O Dia Tenebroso do Crânio. Gólgota, o monte em que ocorreu a

crucificação, é uma palavra que pode ser traduzida como “lugar do

crânio”. O Dia Tenebroso é o que chamamos agora de Sexta-feira da

Paixão. A profecia indica que a filha da linhagem que tiver uma visão da

crucificação receberá a chave.

— A chave para quê?

Maureen ainda não entendia direito. Sentia-se atordoada com

tanta informação.

— A chave para alcançar o segredo de Maria Madalena. Seu

evangelho. Um relato na primeira pessoa de sua vida e sua época. Ela

escondeu-o com um tipo de alquimia, como já expliquei. Só pode ser

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encontrado se determinados critérios espirituais forem atendidos.

Sinclair gesticulou para a estátua do jovem. Indicou em particular

o cálice em sua mão.

— Ali está o que muitos têm procurado, há muito tempo.

Maureen tentava entender e ordenar os incontáveis

pensamentos que passavam por sua mente. O cálice. Ela teve um estalo.

— O cálice que ele está segurando... é o Santo Graal?

— Isso mesmo. A palavra “Graal” vem de um termo antigo, Sangre-

El, que significa o Sangue de Deus. Simbólico da linhagem divina, é

claro. Mas a procura não era por descendentes em geral da linhagem. A

maioria dos cavaleiros do Santo Graal também era da linhagem e

todos sabiam muito bem o que o legado significava. Na verdade, eles

procuravam uma descendente específica, uma Princesa do Graal, que é

também conhecida como A Escolhida. E a filha que tem a chave que

todos queriam.

— Espere um instante. Está querendo me dizer que a busca pelo

Santo Graal era na verdade a procura pela mulher de uma profecia?

— Em parte, é isso mesmo. O filho mais novo, Yeshua-Davi, foi

para Glastonbury, na Grã-Bretanha, com o tio-avô, o homem que

ficou conhecido na história como José de Arimatéia. Juntos, fundaram o

primeiro povoado cristão na Grã-Bretanha. Foi ali que surgiram as

lendas sobre o Santo Graal.

Sinclair gesticulou para outra estátua, a alguma distância. Parecia

ser a de um rei empunhando uma enorme espada.

— Por que você acha que o rei Artur era conhecido como O Único e

Eterno Rei? Porque descendia de Yeshua-Davi. Até hoje ainda temos a

nobreza britânica que descende dele. E há muitos também na Escócia.

— Inclusive você.

— Inclusive eu, pelo lado materno. Mas também sou descendente

de Sara-Tamar pelo lado paterno, como você.

Um bip inconveniente interrompeu-o. Ele soltou um som irritado,

pegou o celular, conversou rapidamente em francês e desligou.

— Era Roland. Jean-Claude chegou para tirá-la de mim.

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Maureen não foi capaz de disfarçar seu desapontamento. Ainda

não se sentia disposta a deixar tudo aquilo.

— Mas ainda não vi a terceira parte do jardim.

A expressão de Sinclair tornou-se sombria. Era uma mudança

quase imperceptível, mas Maureen notou.

— Talvez seja melhor assim. É um lindo dia e ali... — Ele indicou

com um aceno de cabeça. — ...é o jardim do filho mais velho de

Madalena.

Sinclair respondeu à pergunta tácita de Maureen da maneira vaga e

enigmática que os nativos da região pareciam apreciar, o que sempre era

irritante.

— E já que o dia está lindo, não devemos empaná-lo com as

muitas sombras que se encontram naquela parte do jardim.

Ao sair do jardim com Maureen, Sinclair parou junto do portão

dourado.

— No dia em que chegou, você perguntou por que demonstro

tanta preferência pela flor-de-lis. Flor-de-lis significa “flor do lírio” e o lírio

é simbólico de Maria Madalena, como você já sabe. A “flor do lírio”

representa a prole de Madalena. São três filhos, representados pelas três

pétalas da flor.

Ele passou um dedo pelos contornos de uma flor-de-lis no portão.

— O primeiro ramo descende do filho mais velho, João-José, sobre

o qual falarei mais tarde, quando chegar o momento apropriado. Por

enquanto basta dizer que seus herdeiros floresceram na Itália. A pétala

do meio representa a filha, Sara-Tamar, enquanto a terceira é o filho

caçula, Yeshua-Davi.

Sinclair fez uma pausa, olhando para o jardim.

— Esse é o segredo bem guardado da flor-de-lis. O motivo

pelo qual representa tanto a nobreza italiana quanto a francesa.

O motivo para sua presença na heráldica britânica. Foi usada

pela primeira vez por aqueles que descendiam de Maria Madalena,

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através de sua trindade de filhos. Já foi um símbolo arcano muito

protegido, para que apenas os iniciados nessas verdades pudessem

se reconhecer uns aos outros, enquanto viajavam pela Europa.

Maureen estava espantada com essa revelação.

— E agora é um dos símbolos mais comuns do mundo.

Aparece em jóias, roupas, móveis. Escondido à plena vista durante

todo esse tempo. E as pessoas não têm a menor idéia do que

simboliza.

O Languedoc

25 de junho de 2005

Maureen estava sentada no banco do carona do Renault

esporte de Jean-Claude, enquanto esperavam pela abertura do

portão eletrônico do castelo, a fim de sair para a estrada. Pelo

canto do olho, ela divisou um homem se deslocando de maneira

estranha pela cerca do perímetro.

— Qual é o problema? — perguntou Jean-Claude, ao notar a

mudança de expressão.

— Há um homem ali, junto da cerca. Não dá para vê-lo agora,

mas ele estava ali há um momento.

Jean-Claude deu de ombros, no despreocupado estilo gaulês.

— Deve ser um jardineiro. Ou um dos seguranças de Berenger.

Quem pode saber? Ele tem muitos empregados.

— Os seguranças no portão passam o tempo todo aqui?

Maureen sentia a maior curiosidade pelo castelo e as coisas

extraordinárias lá dentro, inclusive o proprietário.

— Oui. E quase nunca se pode vê-los, porque o trabalho deles

inclui a determinação de não serem vistos. Talvez tenha sido um

deles.

Mas Maureen não teve tempo para pensar nos aspectos

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corriqueiros da administração da propriedade, pois Jean-Claude

começara a relatar a história da família Paschal como a conhecia.

— Seu inglês é impecável — comentou Maureen, enquanto ele

relatava alguns dados históricos bastante complicados.

— Obrigado. Passei dois anos em Oxford aperfeiçoando-o.

Maureen estava fascinada, absorvendo cada palavra, enquanto o

respeitado historiador francês guiava o Renault pelos espetaculares

contrafortes vermelhos. O destino era Montségur, o imponente e trágico

centro de resistência final dos cátaros.

Há locais na Terra que irradiam uma aura poderosa, a um só

tempo de mistério e tragédia. Banhados por rios de sangue e séculos de

história, esses lugares assediam nosso espírito por anos e anos, muito

depois que o visitante, que por eles passa, voltou a seu lugar seguro no

mundo moderno. Maureen conhecera alguns desses lugares em suas

viagens. Durante seus anos na Irlanda, experimentara esse sentimento

em cidades históricas, como Drogheda, onde outrora Oliver Cromwell

massacrara a população inteira, assim como nas aldeias devastadas pela

Grande Fome, na década de 1840. Em Israel, Maureen escalara a

montanha em Masada, para ver o sol nascer sobre o mar Morto. Ficara

comovida além das palavras e lágrimas ao caminhar pelas ruínas do lugar

em que centenas de judeus, no século I, haviam acabado com a própria

vida, a fim de não se submeter aos opressores romanos e à escravidão

inevitável.

Enquanto Jean-Claude manobrava o Renault no estacionamento,

no sopé do monte em que ficava Montségur, Maureen teve o sentimento

intenso de que aquele era outro desses lugares extraordinários. Mesmo

naquele dia claro de verão, a área parecia amortalhada pela neblina do

tempo. Ela ergueu os olhos para o topo, enquanto Jean-Claude a levava

pela trilha.

— Uma longa subida, não é mesmo? Foi por isso que eu lhe disse

para usar sapatos confortáveis.

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Maureen sempre viajava com tênis, já que andar e correr eram suas

formas prediletas de exercício. Iniciaram a longa escalada em espiral.

Maureen refletiu que sua agenda recente não lhe deixara tempo para

fazer exercícios e por isso não se encontrava em sua forma atlética

habitual. Jean-Claude, no entanto, não tinha pressa. Foram andando

devagar, enquanto ele falava mais sobre os misteriosos cátaros e

respondia às perguntas de Maureen.

— O quanto sabemos sobre seus costumes? Isto é, o que sabemos

com certeza. Lorde Sinclair disse que muito do que se escreveu sobre os

cátaros não passa de especulação.

— É verdade. Seus inimigos escreveram muitos dos detalhes que

lhes foram atribuídos, para fazer com que parecessem mais hereges e

ultrajantes. O mundo não se importa se você massacra párias. Mas se

massacra outros cristãos, que talvez estejam mais próximos de Cristo do

que você, então pode ter um problema. Por isso, historiadores da época e

posteriores inventaram muitas histórias sobre os hábitos cátaros. Mas

você sabe o que temos certeza de que é verdadeiro? A base da fé cátara

era a Oração do Senhor.

Maureen parou ao ouvir isso, a fim de recuperar o fôlego e fazer mais

perguntas:

— É mesmo? A Oração do Senhor era o mesmo Pai-Nosso que

dizemos hoje?

Ele balançou a cabeça em confirmação:

— Exatamente. Só que recitado em occitano, é claro. Quando

esteve em Jerusalém, visitou a igreja de Pater Noster, no Monte das

Oliveiras?

— Claro!

Maureen conhecia o local exato. Havia uma igreja no lado leste de

Jerusalém, construída sobre uma caverna. Era considerado o lugar em

que Jesus ensinara pela primeira vez o Pai-Nosso. Um lindo claustro

externo mostra a oração em mosaicos, em mais de sessenta línguas.

Maureen tirara uma foto do mosaico que mostrava a oração numa forma

antiga de gaélico para dar a Peter.

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— A oração é apresentada ali em occitano — informou Jean-

Claude. Todo cátaro a recitava pela manhã ao acordar. Não de cor,

mecanicamente, como muitos fazem hoje, mas como um ato de

meditação e autêntica oração. Cada frase era uma lei sagrada para eles.

Maureen ficou pensando a respeito enquanto andavam. Jean-

Claude continuou:

— Eram pessoas que viviam em paz e ensinavam o que chamavam

de O Caminho, uma vida baseada em ensinamentos de amor. Era uma

cultura que reconhecia o Pai-Nosso como sua mais sagrada escritura.

Maureen percebeu aonde ele queria chegar.

— Portanto, se você está no comando da Igreja e quer eliminar

essas pessoas, não pode deixar que os outros saibam que são bons

cristãos.

— Isso mesmo. Foi o motivo pelo qual inventaram rituais bizarros

e fizeram acusações contra os cátaros, para que massacrá-los se

tornasse aceitável.

Jean-Claude parou quando alcançaram o monumento no meio da

trilha. Era um enorme bloco de granito, encimado pela cruz do

Languedoc.

— Este é o monumento do mártir — explicou ele. — Foi erguido

aqui porque é o lugar em que ficava a pira.

Maureen estremeceu. Foi dominada pela mesma sensação

angustiante, mas ao mesmo tempo inebriante, o senso de se encontrar

num lugar terrível da história. Escutou Jean-Claude relatar a história

do último local de resistência dos cátaros.

Ao final de 1243, o povo cátaro já sofrera quase meio século de

perseguição dos exércitos do papa. Cidades inteiras haviam sido

dizimadas e ruas de lugares como Bèziers haviam sido inundadas pelo

sangue dos inocentes. A Igreja estava determinada a erradicar aquela

“heresia” a qualquer custo. O rei da França ficara feliz em ajudar com

suas tropas. Cada vitória sobre os nobres cátaros, outrora prósperos,

aumentava o território francês. Os condes de Toulouse haviam ameaçado

vezes demais criar seu próprio Estado independente. Se usar a ira da

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Igreja era conveniente para detê-los, o rei da França era todo a favor dessa

solução, pois ele esperava que isso aliviasse um pouco sua culpa no legado

da história.

Os líderes restantes da sociedade cátara assumiram uma última

posição de resistência na fortaleza de Montségur, em março de 1244.

Como os judeus em Masada, mais de mil anos antes, eles se juntaram em

uma comunidade para orar pela salvação do opressor. Juraram que

nunca renunciariam à sua fé. Havia até alguma especulação de que os

cátaros haviam extraído sua força do legado dos mártires de Masada,

durante o sítio final. E, como os exércitos romanos que eram seus

próprios ancestrais, as tropas papais tentaram fazer com que a presa

morresse de inanição, cortando qualquer acesso à água e comida. Isso

foi tão difícil em Montségur quanto fora em Masada, já que as duas

fortalezas se equilibravam precariamente no alto de montes, tornando

quase impossível guarnecer todos os lados. Os rebeldes das duas

culturas encontraram meios de frustrar e confundir seus opressores.

Depois de vários meses de sítio, as tropas papais decidiram que

estavam cansadas de esperar. Apresentaram um ultimato à liderança

cátara. Se confessassem e se arrependessem, assumindo a condição de

hereges e se entregando à Inquisição, seriam poupados. Mas, se não o

fizessem, seriam todos queimados vivos, pelo insulto à Santa Igreja

Romana. Tinham duas semanas para tomar uma decisão.

No último dia do prazo, os comandantes do exército papal

mandaram acender uma pira fúnebre e pediram uma resposta. E a

resposta que tiveram nunca mais seria esquecida no Languedoc. Duzentos

cátaros saíram da fortaleza de Montségur, de mãos dadas, usando suas

túnicas simples. Entoavam em coro o Pai-Nosso, em occitano, enquanto

se encaminhavam para a pira. Morreram como haviam vivido, em perfeita

harmonia com sua fé em Deus.

As lendas em torno dos últimos dias dos cátaros eram muitas,

cada uma mais dramática do que a outra. A mais memorável era a dos

enviados franceses que foram conversar com os cátaros, em nome das

tropas reais. Os enviados eram mercenários calejados. Foram convidados a

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permanecer dentro das muralhas de Montségur e testemunhar os

ensinamentos cátaros. O que viram, naqueles últimos dias, teria sido tão

milagroso e impressionante que os soldados franceses pediram para ser

admitidos na fé dos Puros. Mesmo sabendo que a morte os aguardaria, os

franceses tomaram o supremo sacramento cátaro, o consolamentum, e

marcharam para as chamas com seus irmãos e irmãs recém-descobertos.

Maureen removeu uma lágrima do rosto, enquanto olhava para o

pico e depois para a cruz.

— O que você acha que foi? O que os franceses viram que foi o

suficiente para tomar a decisão de morrer com aquelas pessoas? Alguém

sabe?

— Não. — Jean-Claude sacudiu a cabeça. — Há apenas

especulação. Alguns dizem que o Espírito Santo apareceu durante os

rituais cátaros e mostrou o reino do céu que os aguardava. Outros dizem

que teve alguma relação com o infame tesouro dos cátaros.

A lenda de Montségur continuou a ser relatada, enquanto

retomavam a escada da trilha íngreme.

No penúltimo dia da resistência final dos cátaros, quatro membros

do grupo foram baixados pelo paredão mais escarpado da fortaleza e

fugiram a salvo. Acredita-se que tiveram a ajuda das informações dos

enviados franceses convertidos ao catarismo, os mesmos que morreram

com os outros um dia depois.

— Levavam com eles o lendário tesouro dos cátaros. Mas o que era

o tesouro ainda é objeto de especulação. Devia ser um tesouro fácil de

carregar, pois duas moças foram escolhidas e pode-se presumir que

eram pequenas. Além disso, deviam estar fracas depois de meses de sítio,

com racionamento de água e comida. Alguns dizem que levavam o

Santo Graal ou a coroa de espinhos, ou até mesmo o tesouro mais

valioso do mundo, O Livro do Amor.

— Que é o evangelho escrito pelo próprio Jesus Cristo, não é?

Jean-Claude confirmou com um meneio de cabeça.

— Todas as lendas a respeito desapareceram da história mais

ou menos nessa ocasião.

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A historiadora e jornalista em Maureen estavam em alerta.

— Há livros que possa me recomendar? Documentos que eu

possa pesquisar, enquanto estiver na França, para obter mais

informações a respeito?

O francês soltou uma risada e deu de ombros.

— Há folcloristas no Languedoc, mademoiselle Paschal. Eles

protegem seus segredos e lendas ao não registrá-los no papel. Sei que é

difícil para muitos compreender isso. Mas olhe ao redor, ma chérie. Quem

precisa de livros quando se tem tudo isso para contar a história?

Eles chegaram ao topo da colina para contemplar as ruínas da

outrora grande fortaleza. Diante daquelas muralhas maciças, que

pareciam irradiar a história de tudo o que acontecera ao redor. Maureen

compreendeu perfeitamente o argumento de Jean-Claude. Ainda assim,

sentia-se dividida entre seu senso inato e a necessidade da jornalista de

confirmar suas descobertas.

— É um estranho sentimento para um homem que se considera

um historiador — comentou ela.

Jean-Claude deu agora uma gargalhada, um som que ecoou pelo

vale verde lá embaixo.

— Eu me considero um historiador, mas não um acadêmico. Há

uma diferença, em particular num lugar como este. Os requisitos

acadêmicos não se aplicam a tudo, mademoiselle Paschal.

A expressão de Maureen deve ter indicado que não estava

entendendo direito. Ele explicou:

— Para se conquistar os mais prestigiosos títulos no mundo

acadêmico, basta ler todos os livros certos e escrever os ensaios

apropriados. Quando fui fazer uma conferência em Boston, conheci uma

americana que tinha doutorado em história francesa, com ênfase nas

heresias medievais. Ela é considerada agora uma das maiores

especialistas no assunto. Até escreveu livros didáticos para as

universidades. E quer saber de uma coisa muito engraçada? Ela nunca

esteve na França, nem uma única vez. Nem foi a Paris, muito menos

esteve no Languedoc. Pior ainda, acha que isso não é necessário. De

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acordo com os melhores preceitos acadêmicos, considera que tudo de que

precisa está em livros ou em documentos disponíveis nos bancos de dados

da universidade. Sua noção do catarismo é tão realista quanto um livro

humorístico e duas vezes mais cômica. E, no entanto, ela é reconhecida

publicamente como uma autoridade maior do que qualquer um de nós,

por causa dos diplomas que possui e das iniciais de títulos depois do

nome.

Maureen escutava atentamente, enquanto avançavam entre

rochas e ruínas magníficas. Sempre pensara em si mesma como uma

acadêmica, mas a experiência de repórter também a levava a investigar

as histórias no local em que haviam ocorrido. Não podia imaginar que se

escrevesse sobre Maria Madalena sem visitar a Terra Santa. Fizera questão

de excursionar por Versailles e visitar a prisão revolucionária da

Conciergerie enquanto pesquisava sobre Maria Antonieta. Agora, mesmo

com tão pouco tempo em contato com a história viva do Languedoc, não

podia deixar de reconhecer que era uma cultura que exigia uma

compreensão experiencial. Mas Jean-Claude ainda não acabara.

— Deixe-me dar um exemplo. Você pode ler uma das cinqüenta

versões sobre a tragédia aqui em Montségur, escrita pelos historiadores.

Mas olhe ao redor. Se nunca subiu até aqui, se nunca viu o lugar em

que o fogo ardeu, se não observou como as muralhas eram

impenetráveis, como poderia compreender? Venha comigo. Quero lhe

mostrar uma coisa.

Maureen seguiu o francês até a beira do platô, onde as muralhas

da fortaleza outrora inexpugnável haviam desmoronado. Ele apontou do

penhasco para o abismo, dezenas de metros abaixo. O vento quente

parecia aumentar de intensidade, desmanchando os cabelos de Maureen,

enquanto ela tentava se projetar na situação de uma jovem cátara ali, no

século XIII.

— Foi por aqui que os quatro escaparam — explicou Jean-

Claude. — Imagine agora como você se sentiria aqui naquela ocasião. Na

calada da noite, com a relíquia mais preciosa de seu povo presa em seu

corpo, bastante fraca, depois de meses de estresse e fome. Você é jovem e

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está apavorada. Sabe que pode sobreviver, mas também sabe que todas

as pessoas que ama neste mundo serão queimadas vivas. Com tudo

isso em mente, você é baixada por um precipício pelo nada, sob um frio

intenso, em plena escuridão, com uma enorme possibilidade de cair para

a morte.

Maureen deu um suspiro profundo. Era uma experiência

desconcertante estar parada ali, onde todas as lendas eram vivas e

bastante reais. Jean-Claude interrompeu seus pensamentos.

— Imagine, agora, apenas ler esse relato numa biblioteca em New

Haven. É uma experiência diferente, não é mesmo?

Maureen balançou a cabeça em concordância:

— Tem toda a razão.

— Ah, sim... esqueci de mencionar uma coisa. A garota mais

jovem que escapou naquela noite... é bem possível que fosse sua

ancestral. Assumiu mais tarde o nome de Paschal. Foi conhecida como

La Paschalina até o dia de sua morte.

Maureen ficou aturdida ao tomar conhecimento de mais uma

ancestral da família Paschal que fora excepcional.

- O que sabe sobre ela?

- Muito pouco. Ela morreu no mosteiro de Montserrat, na fronteira

espanhola, muito idosa. Ainda se encontram ali alguns registros de sua

vida. Sabemos que se casou na Espanha com outro refugiado cátaro e que

tiveram vários filhos. Está escrito que ela levou um presente de valor

inestimável para o mosteiro, mas a natureza desse presente nunca foi

revelada publicamente.

Maureen abaixou-se e arrancou uma das flores silvestres que cres-

ciam nas fendas das muralhas em ruínas. Foi até a beira do penhasco de

onde a jovem cátara, que mais tarde se tornaria La Paschalina,

corajosamente descera pelo abismo, como a última esperança de seu

povo. Maureen jogou a pequena flor púrpura pela beira do penhasco,

murmurando uma pequena oração pela mulher que podia ou não ter

sido sua ancestral. Quase que não importava. Com a história daquele

povo magnífico e a dádiva da própria terra, aquele dia já a mudara de

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uma maneira irremediável.

— Obrigada — disse ela para Jean-Claude, num tom de voz que

era pouco mais que um sussurro.

Ele deixou-a sozinha nesse instante, a refletir como seu passado e

presente estavam entrelaçados, naquela terra tão antiga e enigmática.

Maureen e Jean-Claude almoçaram na pequena aldeia na base

de Montségur. Como ele prometera, o restaurante servia comida ao

estilo cátaro. O cardápio era simples, consistindo basicamente de

peixes e vegetais frescos.

— Há uma concepção equivocada de que os cátaros eram

vegetarianos rigorosos, mas eles também comiam peixe — explicou

Jean-Claude. — Eram muito literais em relação a certos elementos na

vida de Jesus. E como Jesus alimentava as multidões com pães e peixes,

eles achavam que isso era uma indicação de que deviam incluir peixe em

sua dieta.

Maureen achou a comida muito saborosa. Estava adorando a

excursão. Sinclair tinha razão. Jean-Claude era um historiador

brilhante. Maureen fizera inúmeras perguntas enquanto desciam e ele

respondera a todas com paciência e extraordinária percepção. Ao se

sentarem para almoçar, ela não hesitou em responder às perguntas de

Jean-Claude.

Ele começou a interrogá-la sobre seus sonhos e visões. Antes, isso a

deixaria constrangida. Mas aqueles últimos dias no Languedoc haviam

aberto sua mente para o assunto. Ali, visões como as suas eram tratadas

como coisas comuns, um simples fato da vida. Era um alívio falar a

respeito para pessoas que aceitavam tudo.

— Tinha visões quando era criança? — perguntou Jean-Claude.

Ela sacudiu a cabeça em negativa.

— Tem certeza?

— Se tive, não me lembro. E não tive nenhuma deste então, até

que visitei Jerusalém. Por que pergunta?

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— Apenas curiosidade. Por favor, continue.

Maureen entrou em detalhes, que Jean-Claude ouviu com a maior

atenção, fazendo perguntas a intervalos variados. Seu interesse tornou-

se maior quando ela descreveu a visão da crucificação na Notre Dame.

Ela comentou:

— Lorde Sinclair também achou essa visão muito importante.

— E é mesmo — confirmou Jean-Claude. — Ele falou sobre a

profecia?

— Falou. É fascinante. Mas me preocupa um pouco o fato de que

ele parece pensar que sou A Escolhida da profecia. O que acarreta

ansiedade pelo desempenho.

O francês riu:

— Não se preocupe. Essas coisas não podem ser forçadas. Ou você

é ou não é e, se for, isso será revelado muito em breve. Quanto tempo

pretende permanecer no Languedoc?

— Prevíamos quatro dias antes de voltar a Paris. Mas já não

tenho tanta certeza. Há muita coisa para ver e aprender aqui. Estou

ampliando meus conhecimentos.

Jean-Claude tornou-se um tanto pensativo enquanto a escutava.

— Aconteceu alguma coisa estranha ontem à noite, depois da festa?

Qualquer coisa fora do comum para você? Algum novo sonho?

Maureen sacudiu a cabeça.

— Não houve nada. Estava exausta e mergulhei num sono

profundo. Por quê?

Jean-Claude deu de ombros. Pediu a conta. Quando falou, era

quase para si mesmo:

— Isso estreita as possibilidades.

— Que possibilidades?

— Muito simples. Se você pretende partir em breve, precisamos

pensar no que podemos fazer para determinar se é mesmo uma

descendente de La Paschalina. Se é mesmo A Escolhida que nos levará

ao grande tesouro secreto.

Ele piscou para Maureen, jovial, e puxou a cadeira para que ela se

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levantasse. Comentou pouco depois, ao deixarem o solo sagrado que era

Montségur:

— É melhor voltarmos logo, antes que Berenger ponha minha

cabeça a prêmio.

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... Como se pode começar a escrever a respeito de um tempo que

transformou o mundo?

Esperei muito para começar, porque sempre temi que esse dia

chegasse e tivesse de viver tudo de novo. Tenho revisto em meus

sonhos aqueles anos, muitas e muitas vezes, e agora eles retornam

sem me atormentar. Porém tomar a decisão de reconstituir tudo, trazer

tudo de volta, intencionalmente, jamais foi uma opção que me

agradasse. Pois, embora tenha perdoado todos que, de alguma forma,

tiveram participação no sofrimento de Easa, a verdade é que o perdão

não traz o esquecimento.

E assim que tem de ser, no entanto, pois sou a única que restou

capaz de contar o que realmente aconteceu durante aqueles dias de

trevas.

Há quem diga que Easa planejou tudo, desde o início. Essa não

é a verdade. Foi planejado para Easa e ele viveu em sua força e

obediência a Deus. Bebeu da taça que lhe foi dada com uma coragem e

uma graça nunca vistas antes ou depois, a não ser em sua mãe.

Apenas sua mãe, a Grande Maria, ouviu o chamado do Senhor com a

mesma clareza e apenas sua mãe respondeu a esse chamado com a

mesma coragem.

Nós, os outros, tivemos de nos tornar humildes para aprender

com a graça dos dois.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS

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CAPÍTULO DOZE

Carcassonne

25 de junho de 2005

Tamara Wisdom e Derek Wainwright pareciam com qualquer

outro típico casal americano de turistas, nos arredores da cidade-

fortaleza murada de Carcassonne. Encontraram-se no saguão do

hotel de Derek, que a beijou com paixão. O sorriso de Tammy foi

tímido quando se desvencilhou gentilmente de seus braços.

— Haverá bastante tempo para isso mais tarde, Derek.

— Promete?

— Claro que prometo. — Ela passou a mão pelas costas de

Derek, para confirmar o compromisso. — Mas você sabe como sou

viciada em trabalho. Depois que eu resolver o problema, podemos

tirar o resto do dia para... nos divertir.

— Está certo. Vamos embora. É melhor eu guiar.

Derek pegou a mão de Tammy e levou-a até o carro que

alugara, que os esperava no estacionamento. Ele saiu para a rua,

contornou a cidade murada e pegou a estrada que seguia pelas

colinas.

— Tem certeza de que é seguro? — perguntou Tammy.

Derek balançou a cabeça.

— Todos partiram para Paris esta manhã. Todos, a não ser...

— A não ser quem?

Parecia que ele estava prestes a contar, mas reconsiderou.

— Nada. Um deles continua no Languedoc, mas está ocupado

demais hoje e não há a menor possibilidade de nos encontrar.

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— Pode explicar?

Derek riu:

— Ainda não. Já é um absurdo eu estar correndo esse risco.

Sabe qual é a penalidade se eu for apanhado?

Tammy sacudiu a cabeça em negativa.

— Não. Qual é? Uma cerimônia de iniciação duplamente secreta?

Ele lançou-lhe um olhar rápido.

— Pode gracejar quanto quiser, mas os caras não são de

brincadeira.

Derek passou o dedo indicador direito pela garganta num gesto de

corte.

— Não pode estar falando sério.

— Estou, sim. A penalidade por revelar segredos da Guilda para

quem não é membro dela é a morte.

— Já aconteceu alguma vez? Ou é apenas o bicho-papão que

inventaram para aumentar a mística da sociedade secreta e controlar

seus membros?

— Há um novo Mestre da Justiça... é assim que chamamos

nosso líder... e o cara é radical.

Tammy pensou a respeito por um momento, a sério. Derek lhe

confessara sua participação na Guilda havia alguns anos, numa

indiscrição de bêbado. Mas depois se calara e não quisera mais falar sobre

o assunto. Tammy arrancara mais informações dele na noite passada,

durante a festa. Ao final, a combinação de álcool e o desejo por ela, havia

muito frustrado, fizeram com que ele revelasse que o quartel-general

ficava nos arredores de Carcassonne. Derek até se oferecera para lhe

mostrar o santuário. Mas, se ele falava sério sobre as terríveis

conseqüências da descoberta, então era um peso que Tammy não queria

ter na consciência.

— Se é tão perigoso assim, Derek, não quero pressioná-lo a fazer

isso. Não quero mesmo. Posso usá-lo como uma fonte anônima se

decidir incluir a Guilda em meus projetos. Vamos voltar para

Carcassonne e almoçar. Você pode me revelar alguns segredos ali, na

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segurança de um café, em plena luz do dia.

Pronto. Ela lhe oferecera uma saída fácil. Mas Derek surpreendeu-a

ao não aceitar.

— Não. Quero mostrar para você. Para ser franco, agora mal

posso esperar para mostrar tudo.

Tammy sentiu-se apreensiva com o entusiasmo na reação de

Derek.

— Por quê?

— Você vai ver.

Derek estacionou atrás de uma sebe, a várias centenas de metros

da entrada para a propriedade. Foram andando com toda a cautela. Saíram

da estrada para pegar um caminho estreito e sem pavimentação.

Percorreram mais cem metros até que a capela de pedra apareceu. Era o

local em que os membros da Guilda haviam realizado seu culto na noite

anterior.

— Aquela é a igreja. Entraremos ali mais tarde, se você quiser ver

o que tem dentro.

Tammy balançou a cabeça, contente em segui-lo, para descobrir

para onde ele a levava. Havia anos que conhecia Derek, mas sempre fora

um contato superficial. Compreendia agora que não o conhecia

bastante bem para avaliar quais eram seus verdadeiros motivos. Pensara

a princípio que eram impulsos masculinos básicos e primitivos, que ela

poderia controlar. Mas havia agora uma súbita determinação, algo que

nunca percebera antes. E que a deixava assustada. Graças a Deus que

Sinclair e Roland sabiam onde ela se encontrava.

Derek levou-a para um bangalô comprido por trás da igreja. Tirou

uma chave do bolso e abriu a porta. A fachada banal na construção não

preparou Tammy para o tamanho e o interior ornamentado do Salão da

Guilda. Era suntuoso, cada palmo do espaço de parede coberto por obras

de arte... e cada uma delas era uma cópia de um quadro de Leonardo Da

Vinci. Na parede em frente à porta, o primeiro espaço visível quando se

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entrava no salão, havia duas versões do São João Batista, de Leonardo,

penduradas lado a lado.

— Meu Deus! — sussurrou Tammy. — Então é verdade. Leonardo

Da Vinci era um joanita. Um herege total.

Derek riu.

— Por que padrões? Para a Guilda, os “cristãos” que seguem Cristo são

os verdadeiros hereges. Gostamos de chamá-lo de “O Usurpador” e “O

Sacerdote Ímpio”.

Derek fez um gesto de 360 graus para indicar as obras de arte,

falando num tom solene, que Tammy nunca ouvira antes:

— Leonardo Da Vinci foi o Mestre da Justiça em sua época, o líder

de nossa Guilda. Acreditava que João Batista era o único verdadeiro

Messias e que Jesus roubou sua posição por meio de um complô das

mulheres.

— Complô das mulheres?

Derek confirmou com um meneio de cabeça.

— É um dos fundamentos de nossa tradição. Salomé e Maria

Madalena conspiraram para a morte de nosso Messias, a fim de pôr seu

falso profeta no trono. A Guilda refere-se a ambas como as meretrizes.

Sempre foram, sempre serão.

Tammy fitou-o, incrédula.

— Acredita mesmo nisso? Até que ponto está comprometido com

essa filosofia, Derek? E como manteve isso em segredo?

Ele deu de ombros.

— O segredo faz parte de nossos princípios. Quanto à filosofia, fui

criado para acreditar e estudei os textos sagrados por anos. É tudo muito

convincente.

— O que é convincente?

— O material que temos em mãos. Chamamos de O verdadeiro livro

do Santo Graal. Vem sendo passado de geração em geração, desde a época

dos romanos. São textos escritos pelos seguidores originais do Batista. O

livro descreve em detalhes os eventos relacionados com sua morte. Você

acharia fascinante.

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— Posso vê-lo?

— Darei uma cópia para você. Tenho uma em meu quarto no hotel.

Havia mais do que um toque de insinuação na declaração.

Tammy fez uma anotação mental e tentou conter um arrepio exterior.

Podia imaginar o que Derek esperava em troca daquele documento tão

valioso. Ela virou-se e foi andando devagar pelo vasto salão, sempre

olhando para os quadros.

— Já notou o que todos têm em comum? — perguntou Derek.

— A não ser pelo fato de que são todos de Leonardo? — Tammy

sacudiu a cabeça em negativa. Não podia perceber outra ligação além

da óbvia. — Não. Pensei a princípio que todos mostravam João Batista,

mas não é o que acontece. Aquele ali parece um detalhe da Ultima Ceia,

mas isso não faz sentido, baseado no que acabou de me contar. Por que

estaria aqui se a Guilda despreza Jesus como um usurpador e culpa

Maria Madalena pela morte de João?

— É por isso.

Derek ergueu a mão direita na frente de seu rosto, num gesto

específico. O dedo indicador apontava para o céu, o polegar estava virado

de lado para cima, enquanto os outros três dedos estavam virados para

baixo. Tammy olhou mais atentamente. Um dos apóstolos no famoso

quadro de Leonardo fazia o mesmo gesto com a mão... e na frente do

rosto de Jesus, de uma maneira quase ameaçadora.

— O que isso significa? Já vi o gesto antes, no quadro de João

Batista, no Louvre. — Tammy apontou para a cópia na parede. —

Aquele ali. Presumi que fosse uma referência ao paraíso, o dedo

indicando o céu.

Derek estalou a língua para ela, num desapontamento zombeteiro.

— Pense bem, Tammy. Você deve saber que Leonardo nunca foi óbvio.

Chamamos esse gesto de “Lembre-se de João”. Tem vários significados.

Primeiro, se você observar bem, vai verificar que os dedos formam a letra

J, de João. O indicador direito também representa o número um. Assim,

o gesto significa “João é o primeiro Messias”. E há uma coisa ainda mais

importante no gesto “Lembre-se de João”... a relíquia.

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— Vocês têm uma relíquia de João?

O sorriso de Derek foi insinuante.

— Eu gostaria que estivessem aqui para poder lhe mostrar, mas

o Mestre da Justiça nunca as deixa longe de sua vista. Temos os ossos

do dedo indicador direito de João, o mesmo dedo usado para fazer o

gesto que tem sido o nosso código público há mil anos. Permitia que

cavaleiros e nobres se reconhecessem na Idade Média. Ainda usamos o

código hoje. O dedo de João é usado em nossas cerimônias de iniciação. E

sua cabeça também.

Isso deixou Tammy perplexa.

— Vocês têm a cabeça de João?

Derek soltou uma risada.

— Temos, sim. O Mestre da Justiça a lustra todos os dias. É a

parte central de todos os rituais da Guilda.

— Como sabe que é mesmo a cabeça de João?

— Pela tradição. Vem passando de uma geração para outra. Há

uma grande história por trás de tudo isso, mas deixarei que você leia em O

verdadeiro livro do Santo Graal. Mas há mais do que apenas o dedo

indicador. Aparece em todos esses quadros.

Mesmo enquanto conversava sobre um assunto tão importante,

Tammy notou que o âmbito da atenção de Derek parecia limitado e que

ele pulava de um assunto para outro. Seria intencional? Ele tinha uma

meta? Ela não dera muito crédito antes à sua inteligência, mas agora

experimentava a sensação assustadora de que o subestimara. Sua mente

estava em disparada, enquanto ela tentava manter uma aparência

tranqüila. O homem seria um fanático? Por que ela não notara antes

que suas opiniões eram tão arraigadas? Tammy tinha de fazer um esforço

para não se deixar dominar pela idéia angustiante de que havia uma

possibilidade de perder sua linda cabeça de cabelos negros.

Derek mostrou os outros quadros, apontando o gesto “Lembre-se

de João” em cada um. Havia quadros em que o próprio João Batista fazia

o gesto. Na Última Ceia, o gesto era feito por um dos apóstolos, Tomás,

visivelmente agitado.

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— Vários apóstolos eram seguidores de João muito antes de Jesus

aparecer — explicou Derek. — O importante nesta versão da Última

Ceia é que Jesus está anunciando que um deles o trairá. Tomás confirma

isso e explica o motivo com o gesto “Lembre-se de João”... será em

memória de João. O destino de João se tornará seu destino. É o que ele diz

com o indicador no rosto do falso profeta. Você será martirizado como

João foi e esse será seu castigo.

Tammy sentia-se chocada com essa nova e surpreendente

interpretação de um dos quadros mais famosos do mundo. E não pôde

resistir à pergunta seguinte:

— Então você provavelmente não acredita que Maria Madalena

sentou ao lado de Cristo na Última Ceia?

Derek cuspiu no chão em resposta.

— E isso o que penso dessa teoria e de todos os que acreditam nela.

Derek acenou com a mão para encerrar as explicações sobre a

Última Ceia. Mas ainda não encerrara a aula de história para Tammy.

Levou-a para o lugar em que havia cópias das duas versões dos quadros

famosos de Leonardo conhecidos como A madona das rochas. Apontou

primeiro para a tela à direita.

— Leonardo foi incumbido de pintar um quadro da Virgem e do

Menino Jesus para a festa da Imaculada Conceição. Aparentemente, não

era isso o que a Irmandade da Imaculada Conceição queria e o quadro foi

rejeitado. Mas tornou-se um clássico de nossa Guilda e todos têm uma

cópia em casa.

O quadro focalizava a Madona com o braço direito em torno de um

bebê, com a mão esquerda sobre outro bebê, sentado por baixo. Um anjo

observava a cena.

— Todos acham que é Maria, mas estão enganados. O título

original do quadro era A madona das rochas, não A virgem das rochas.

Olhe bem. A mulher é Isabel, a mãe de João Batista.

Tammy não estava convencida.

— O que o faz pensar assim?

— A tradição da Guilda, em primeiro lugar. Sabemos que é. — A

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resposta era arrogante em sua certeza. — Mas há também a história da

arte para nos apoiar. Leonardo teve uma tremenda briga com a

Irmandade por causa do pagamento do quadro. Por isso, tratou de se

vingar, fazendo com que todos pensassem que entregava a cena

tradicional encomenda da. Na realidade, porém, ele pintou uma versão de

toda a nossa filosofia, como um tapa na cara. Era sua ironia insidiosa.

Grande parte da arte de Leonardo expressava sua maneira de escarnecer

da Igreja e escapar impune, porque era muito mais esperto do que os

papistas idiotas em Roma.

Tammy tentou não demonstrar sua surpresa pelo fanatismo

ostensivo. Nunca antes observara esse aspecto de Derek, que a deixava

cada vez mais apreensiva. Tateou o bolso para sentir a segurança do

celular. Podia ter de transmitir um SOS, se a situação ali se tornasse

perigosa. Mas sentia-se dividida. Como escritora e cineasta, estava

recebendo ouro em pó naquela conversa... mas ousaria usá-lo? Derek

continuava entusiasmado com seu ídolo, Leonardo Da Vinci.

— Sabia que a Mona Lisa é na verdade um auto-retrato?

Leonardo desenhou a si mesmo e depois alterou o desenho para a Mona

Lisa que conhecemos hoje. Foi tudo uma grande piada para ele. E é

uma piada para nós agora, ver as filas imensas de pessoas que querem

ver o quadro. Ele odiava as mulheres por causa da mãe, como deve saber.

Até aumentou as restrições às mulheres na Guilda, como meio de puni-

las por sua infância miserável. Isso está registrado em O verdadeiro livro

do Santo Graal, como você vai descobrir.

Derek apresentou uma breve história de Leonardo... como o artista

fora abandonado pela mãe natural e tivera uma infância confusa, com

uma mãe adotiva difícil. Todos os relacionamentos documentados de

Leonardo com as mulheres haviam sido negativos, até mesmo

traumáticos. Sua aversão às mulheres fora bem pesquisada por

historiadores, que também informaram que o artista fora preso e

condenado por sodomia. Mas a pior mácula em sua reputação ocorrera

quando Da Vinci adotara um menino de dez anos como seu aprendiz e o

mantivera como companheiro por muitos anos. A vida pessoal de

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Leonardo era com freqüência escandalosa, mas ele conseguia se manter

a salvo, na maior parte do tempo, de problemas com as autoridades, ao

pintar quadros para a Igreja e muitos patronos ricos, que sempre davam

um jeito de ajudá-lo.

— Cada vez que era obrigado a pintar uma mulher, como a Mona

Lisa, ele a transformava em alguma espécie de piada, acima de tudo

para se divertir. Era assim que reagia quando tinha de pintar coisas de

que não gostava.

Derek tornou a se virar para A madona das rochas.

— Pelo que sabemos, a única mulher que Leonardo respeitou foi

Isabel, a perfeita mulher e mãe. A verdadeira Madona. Aqui ela está com

o braço em torno deste menino... seu filho. Obviamente, é João.

Tammy balançou a cabeça em concordância. Não havia a menor

dúvida de que o bebê aninhado nos braços da mulher era mesmo João

Batista.

— Repare agora na mão esquerda de Isabel. Ela está afastando o

menino Cristo, mostrando que ele é inferior a seu filho. Leonardo até

posicionou Jesus fisicamente abaixo de João, para demonstrar sua

inferioridade. E, finalmente, observe os olhos do anjo Uriel. Para quem

ele olha com adoração? Notou no primeiro quadro? Ele aponta para João,

mas também faz o gesto de “Lembre-se de João”.

Derek fez uma pausa.

— O pessoal da Imaculada Conceição ficou infeliz com o quadro

original e a mensagem joanita óbvia. Obrigaram Leonardo a pintar um

segundo quadro, exigindo que desta vez Maria e Jesus tivessem halos e

que o anjo não apontasse para João. Olhe aqui e verá que eles receberam

o que pediram... mais ou menos. Maria e Jesus têm um halo, mas João

também tem. Leonardo também deu a João um bastão batismal, para

deixar ainda mais claro quem ele é e indicar mais autoridade. Nos dois

quadros, Jesus concede sua bênção a João. Mas, olhando para os quadros

agora, quem você acha que Leonardo reverenciava como o verdadeiro

Messias e profeta?

Tammy não podia deixar de dar uma resposta honesta.

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— João Batista. Isso é evidente.

— Exatamente. O arcanjo Uriel afirma a superioridade do

Batista, assim como a mãe de João. Em nossa tradição, cultuamos

Isabel, da mesma maneira com que os iludidos cristãos reverenciam a mãe

de Jesus. Nossas meninas são criadas à imagem de Isabel, para se

tornarem Filhas da Justiça.

Tammy alteou uma sobrancelha.

— E o que isso significa?

Derek deu um sorriso insinuante e chegou mais perto.

— Que as mulheres devem saber qual é seu lugar, que devem ser

obedientes e subservientes para com os homens. Mas, na verdade, não é

tão ruim assim. Depois que se tornam mães de um filho homem,

elas ganham o título de “Uma Isabel” e passam a ser tratadas como

rainhas. Devia ver os diamantes que minha mãe ganhou para cada um

de seus filhos. E pode ter certeza de que, se conhecesse sua vida

superprivilegiada, não sentiria nem um pouco de pena.

— E você apóia essa idéia de mulheres subservientes?

Tammy mantinha uma aparência firme, sem deixar transparecer

seu crescente nervosismo.

— Como eu disse, fui criado assim. E é certo para mim.

Derek deu de ombros. Tammy sacudiu a cabeça, mas depois

desatou a rir, meio irônica, meio nervosa.

— O que foi? — perguntou Derek.

— Pensei neste salão com toda a heresia de Da Vinci, em

comparação com o salão de Sinclair, com toda a heresia de Botticelli. Como

se fosse o “Combate Mortal da Renascença”. Da Vinci contra Botticelli.

Derek não riu.

— Seria engraçado se não fosse tão sério. A rivalidade entre os

descendentes de João e os descendentes de Jesus tem causado muito

derramamento de sangue. E ainda causa problemas agora, mais do que

você imagina.

Tammy fitou Derek com uma confusão simulada. Sabia exatamente

aonde ele queria chegar, mas não podia deixá-lo perceber. Perguntou com

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uma cara inocente:

— Os descendentes de João?

Derek parecia surpreso.

— Claro. Vai me dizer que não sabia disso?

Tammy sacudiu a cabeça, mantendo a fachada.

— Não, não sabia.

A expressão de Tammy suplicava que ele continuasse.

— Não sabia que João teve um filho? A Guilda foi fundada assim,

pelos descendentes de João. É uma longa história, porque a metade da

família acabou se vendendo aos papistas e aos seguidores de Cristo,

como os Medici.

Derek fez uma careta de aversão à menção da primeira família

histórica da Itália.

— Até mesmo Da Vinci acabou a serviço do inimigo, no final de sua

vida. Mas achamos que ele foi mantido cativo na França contra a sua

vontade. Mas os outros, o núcleo propriamente dito, formaram nossa

Guilda. Na verdade, você está olhando para um descendente de João

Batista.

Tammy temia o inevitável... acabar no quarto de hotel de Derek e

pior ainda. Mas não havia alternativa. Tinha de pegar O verdadeiro livro

do Santo Graal e descobrir a história dos descendentes de João. Tinha

a oportunidade de ser a primeira pessoa fora da Guilda a obter essas

informações valiosas e não queria perdê-la. O problema era muito mais

profundo do que qualquer um deles imaginara. Por isso, não podia

partir sem o livro. Faria isso por seu futuro filme, por seus amigos na

Ordem das Maçãs Azuis e, acima de tudo, por Roland. É claro que Roland

nunca saberia o que ela tivera de fazer para obter os documentos.

Precisaria inventar uma história verossímil a respeito. Ainda bem que o

motorista do Château des Pommes Bleues só viria buscá-la no final da

tarde. Teria tempo de imaginar uma história plausível durante a viagem

de volta para Arques.

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Tammy insistiu em almoçar antes de ir para o hotel de Derek.

Pediu o vinho tinto Pays d'Oc. Vira Derek tomar algumas pílulas para a

ressaca da noite anterior e tinha alguma esperança de que a mistura

com o vinho pudesse deixá-lo mais dócil, ou mesmo inconsciente.

Durante o almoço, Derek explicou que revelara os segredos da Guilda

para Tammy porque queria que ela os divulgasse em livro e num filme.

Nunca poderia ser citado expressamente — tinha seus planos, mas não

era louco —, mas queria que alguém revelasse a verdade sobre a Guilda.

— Mas por quê?

Não fazia sentido para Tammy. Derek era leal à Guilda e

obviamente influenciado por seus ensinamentos. A Guilda era

responsável em parte pela riqueza que sua família acumulara. Por que

Derek se viraria contra eles?

— Preste atenção, Tammy — sussurrou ele, inclinado sobre a

mesa. — Estou disposto a lhe contar uma porção de coisas... crimes

graves, até mesmo assassinato. Mas não pode deixar ninguém saber que

sou a fonte das informações ou serei um homem morto.

— Ainda não estou entendendo. Por que se vira contra uma

organização que é tão importante para você e sua família?

— Por causa do novo Mestre da Justiça, Cromwell. É um

desgraçado insano e vai arrastar todos para o fundo do poço. Na

verdade, estou sendo leal, não desleal. A única esperança que temos de

salvar a Guilda é afastá-lo antes que ele cause danos permanentes. Quero

que você denuncie Cromwell, não a Guilda. Faça com que ele pareça uma

ameaça incontrolável, um fanático enlouquecido.

— Por que me confia essa missão?

Tammy sentia-se cada vez mais apreensiva. Aquela história era

muito maior do que previra e muito mais tenebrosa do que desejava.

Derek fitou-a com uma expressão presunçosa, enquanto roçava os dedos

por seus braços.

— Porque você é ambiciosa e vai adorar as informações exclusivas

para um livro e um filme. E porque meu fundo de investimentos é maior

do que o PIB de muitas nações independentes, portanto você também

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sabe que assinarei todos os cheques de que precisar para financiá-la.

Não estou certo?

Tammy ofereceu um sorriso meigo e pôs a mão sobre a dele,

fazendo um esforço para não vomitar. Tinha de ir até o fim, da melhor

forma possível.

— Claro que está.

O que Derek não revelou na conversa foi que a delegação americana

planejava dar um golpe dentro da Guilda. Primeiro, precisavam atar os

fios soltos na Europa, eliminando os homens mais poderosos ali. Seu pai,

Eli Wainwright, estava preparado para se tornar o próximo Mestre da

Justiça — com Derek como seu eventual sucessor —, se pudessem

neutralizar a estrutura de poder européia.

Derek Wainwright sorriu para Tammy, com a expressão astuta de

um predador. Vinha preparando Tammy para aquele propósito desde o

início. Se ela pensava que o enganara para que revelasse segredos da

Guilda, usando a astúcia feminina, então era uma vagabunda estúpida

que merecia ser usada exatamente da maneira como ele tencionava. De

qualquer forma, seria uma maneira bastante agradável de encerrar a

tarde. Afinal, aquela meretriz já não o provocara demais?

Tammy tomou cuidado para não acordar Derek enquanto recolhia

suas coisas. Precisava sair dali, o mais depressa possível. Mal podia

esperar para voltar à segurança do castelo e tomar um longo banho de

chuveiro. Tammy especulou por um instante quanto tempo levaria para

tirar da pele o fedor dos fanáticos da Guilda.

Ainda bem que o pior resultado possível fora evitado. Tammy

calculara de forma acurada: o consumo de pílulas por Derek combinara

com o vinho e o cansaço, levando-o a apagar assim que chegaram ao

quarto no hotel.

A princípio, tivera de se esquivar. Derek ainda estava bem desperto

quando entraram no quarto, mas Tammy o desviara para sua obsessão

óbvia: derrubar seu rival, John Simon Cromwell. Ela enfatizara que

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precisava de tanta informação quanto possível, se ia se tornar sua

parceira num jogo tão perigoso. Derek entregara o que prometera e muito

mais, outros documentos e segredos, como uma descrição minuciosa e

chocante de um brutal assassinato cometido em Marselha.

Tammy precisara recorrer a todo o seu controle para não vomitar

ao ouvir o relato da execução de um homem do Languedoc, dois anos

antes. O homem fora decapitado e o dedo indicador direito cortado, como

um símbolo da vingança da Guilda. O conhecimento desse ato seria

abominável para Tammy em quaisquer circunstâncias. Mas ela

conhecia o homem: era o Grão-Mestre da Ordem das Maçãs Azuis. Não

podia deixar que Derek percebesse que reconhecera o crime ao ouvir a

descrição. Tomara o cuidado de se manter tão impassível quanto

possível.

Tammy se esforçava para pegar tudo em silêncio, mas esbarrou

num abajur, que caiu no chão com um baque alto. Ouviu Derek se mexer

na cama com o barulho e ficou irritada com o descuido.

— Ei... — balbuciou ele, atordoado. — Para onde você vai?

— O carro de Sinclair está aqui para me levar de volta a Arques.

Tenho de chegar a tempo para o jantar que marquei com Maureen.

Ele tentou se sentar na cama, levou as mãos à cabeça e gemeu.

Tornou a arriar na cama, murmurando:

— Ah, Maureen... Já ia me esquecendo de contar.

Tammy ficou imóvel.

— Contar o quê?

— Ela pode ter um problema hoje.

— Como assim?

— Ela ia sair com Jean-Claude de la Motte hoje, não é mesmo?

Tammy meneou a cabeça, pensando tão depressa quanto podia,

num esforço para imaginar a situação. Derek rolou na cama e

espreguiçou-se, lânguido.

— Acorde, menina. Jean-Claude é um dos nossos. Ou talvez

eu deva dizer um deles. É o braço-direito do caso de hospício

que é o nosso Mestre da Justiça e líder do capítulo francês da

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organização. Está conosco desde que era garoto. Seu verdadeiro

nome nem mesmo é Jean-Claude, mas Jean-Baptiste.

Ele fez uma pausa, para soltar uma risada, antes de

acrescentar:

— Mas é provável que ele não faça nada com ela. Pelo

menos por enquanto. Estão muito interessados em saber se ela

pode ou não descobrir o tesouro durante sua permanência aqui. E

ambos sabemos que há um limite de tempo para essa

possibilidade.

Tammy sentia a cabeça girar. Não podia processar a traição de

Jean-Claude, não tão depressa. Ele era amigo de Sinclair e Roland

havia anos. Os dois depositavam nele confiança total. Há quanto

tempo aquela infiltração começara? Mas havia outra coisa que a

incomodava e precisava saber. Rezou para não parecer tão abalada

quanto estava, ao fazer a pergunta, com uma calma que não sentia:

— Em termos históricos, A Escolhida sempre foi eliminada

antes que o tesouro fosse descoberto. Por que agora seria

diferente? Se Jean... Baptiste e seu líder acreditam que Maureen é

a mulher da profecia, por que não se livrariam dela antes que possa

assumir esse papel? Como fizeram com Joana e Germana?

Derek bocejou.

— Porque querem que ela os leve ao livro de Madalena, para

que possam destruí-lo. Depois disso, sua amiga também se

tornará história... antes que tenha uma chance de escrever a

respeito.

— Por que está me contando isso? — indagou Tammy,

cautelosa.

— Porque quero que Jean-Baptiste caia junto com seu líder. E

calculo que, assim que souber que foi enganado, seu Grão-Mestre

Sinclair vai eliminá-lo por mim.

Tammy teve vontade de gritar com ele, explicar que Sinclair

e os outros em sua organização não eram como Derek e os

fomentadores de ódio na Guilda. Mas não ousava revelar qualquer

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coisa sobre sua posição antes de passar pela porta, sã e salva.

Derek ainda não acabara.

— Enquanto isso, eu diria apenas que, se fosse você, tiraria

aquela ruiva do Languedoc o mais depressa possível.

Tammy virou-se para sair, mas parou de repente. Tinha de

fazer uma última pergunta. Precisava saber até que ponto fora

enganada por Derek durante todos aqueles anos.

— Como você se sente em relação a tudo isso?

— Para ser franco, não me importo com uma coisa nem com

outra. — Derek parecia extremamente entediado, ansioso em voltar ao

sono induzido pelo vinho. — Embora sua amiga seja bastante

simpática, ainda é uma descendente de Jesus, o que a torna minha

inimiga natural. E é assim que tem de ser. Talvez você não possa

compreender, mas nossas crenças são muito antigas. Quanto à

descoberta dos pergaminhos da prostituta, todos parecem ter certeza

de que acontecerá desta vez, por que sua amiga atende a todos os

requisitos da profecia, não apenas alguns. Mas não estou preocupado

com isso. Afinal, por que isso é tão importante?

Ele riu pela segunda vez. Virou-se de lado, ergueu o tronco, apoiado

no cotovelo, e fitou-a nos olhos.

— A situação é muito engraçada. Ninguém quer o que está nos

pergaminhos. O Vaticano não quer reconhecê-los por causa do

conteúdo, o que também acontece com as outras correntes cristãs. Os

historiadores não querem porque fará com que todos os acadêmicos e

estudiosos da Bíblia pareçam idiotas. Portanto é bem possível que

nossos inimigos escondam os pergaminhos antes que o público saiba o

que contêm. O que nos pouparia o trabalho de resolver o problema.

Ele bocejou de novo, como se o assunto fosse irrelevante demais

para continuar a falar a respeito. Tornou a se virar de costas, enquanto

acrescentava:

— Claro que desprezamos os pergaminhos porque sabemos que

apregoam mentiras sobre João Batista. E porque eles foram escritos por

uma prostituta.

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Tammy queria sair correndo do hotel, escapar o mais depressa

possível de Derek e de sua abominável filosofia da Guilda. Apertava o

telefone com toda a força e tirou-o do bolso assim que saiu. Não havia

tempo para pensar, não havia tempo para fazer qualquer outra coisa que

não descobrir onde Maureen se encontrava naquele momento.

Ela apertou o código para o número de Roland. Teve vontade de

chorar quando ouviu seu confortador sotaque occitano. A ligação

estava péssima e ela teve de gritar várias vezes para ser ouvida:

— Maureen! Você sabe onde Maureen está agora?

Droga! Ela não conseguiu entender a resposta. Gritou de novo:

— Como? Não consigo ouvir! Grite, Roland! Grite para que eu possa

ouvi-lo!

Roland gritou:

— Maureen está aqui!

— Tem certeza?

— Tenho. Ela está à sua procura. Quer...

A ligação foi interrompida. Melhor assim, pensou Tammy. Não quero

explicar nada para Roland enquanto não tiver tempo de pensar a respeito.

Como Maureen estava sã e salva no Château des Pommes Bleues, havia

tempo para recuperar o controle. Teria de conversar com Sinclair antes

do jantar para determinar uma estratégia.

Tammy verificou a hora no celular. Deveria se encontrar com o

motorista em menos de meia hora, perto dos portões da cidade. Não era

uma longa caminhada, mas ela sentia-se fraca e não tinha certeza de que

poderia confiar em suas pernas trêmulas para andar depressa e chegar na

hora combinada. Começou a andar, tentando normalizar a respiração,

enquanto avaliava tudo o que descobrira com e sobre Derek. Ao recordar

tudo, com absoluta nitidez, ficou com o estômago embrulhado. Avistou o

jardim de um pequeno hotel, bem à sua frente. Ao alcançar os arbustos,

teve um violento acesso de vômito.

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Maureen sentia-se culpada por negligenciar Peter. Mas não o

encontrou em parte alguma quando voltou de sua excursão com Jean-

Claude.

— Não vejo o abbé desde esta manhã — informou Roland. — Ele

tomou o café da manhã tarde e saiu em seguida, no seu carro alugado.

Mas hoje é domingo. Ele pode ter ido à igreja. Temos muitas por aqui.

Maureen não pensou mais a respeito. Peter era um homem vivido e

falava um francês fluente. Portanto era lógico que saísse à procura de

uma missa e depois decidisse ver mais alguma coisa daquela

extraordinária região.

Marcara um jantar no castelo com Tammy. Sentia-se ansiosa por

isso, mas também não queria magoar os sentimentos de Peter. Perguntou

a Roland:

— Tem algum meio de fazer contato com Tamara Wisdom? Esqueci

de perguntar se ela tem um celular.

— Ela tem, sim. E posso falar com ela por você, já que tenho de

lhe perguntar uma coisa, a pedido de Lorde Sinclair. Algum problema?

— Não. Eu só queria saber se ela se importaria se Peter

jantasse conosco.

— Tenho certeza de que ela não vai se incomodar, mademoiselle

Paschal. Creio até que ela conta com a presença do abbé, pois pediu-me

para providenciar um jantar para quatro pessoas, às oito horas.

Maureen agradeceu e retirou-se para seu quarto. Passou primeiro

pelo quarto de Peter e bateu na porta. Não houve resposta. Ela virou a

maçaneta e empurrou a porta devagar. Deu uma espiada no quarto.

Avistou as coisas de Peter no lado da cama, a Bíblia encadernada em

couro e o rosário de contas de cristal. Mas ele não se encontrava ali.

Maureen voltou para sua enorme suíte. Pegou o maior dos

cadernos de anotações. Queria escrever sobre Montségur, enquanto as

impressões ainda eram intensas em sua mente. Mas ao tirar a faixa

elástica e abrir as páginas, ficou surpresa quando outra história de

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martírio aflorou em sua mente.

Maureen escalou a montanha escarpada na região do mar Morto ao

amanhecer, em sua visita à Terra Santa. Subiu pela trilha rochosa em

ziguezague, junto com um grupo numeroso. Não sabia o que a levava a

efetuar a árdua escalada. Mesmo ainda tão cedo, o calor já era intenso.

Todos os outros na trilha naquela manhã eram judeus. Para eles, era uma

peregrinação óbvia e emocional. Maureen não podia fazer qualquer

alegação de herança ou religião.

Ela parou muitas vezes na subida, para admirar a paisagem de

uma beleza quase angustiante, as cores faiscando no que parecia ser uma

planície lunar, refletindo-se nos cristais de sal da água estranha e

parada.

Ouviu fragmentos de conversa dos peregrinos enquanto subiam.

Ela não falava hebraico, mas a paixão dos judeus pela escalada era

inegável. Especulou se eles falavam sobre os mártires de Masada, que

preferiram morrer a viver no cativeiro, ou sujeitar suas mulheres e

crianças à escravidão e degradação nas mãos dos romanos.

Ao chegar ao pico, ela explorou o que restava do que fora outrora

uma grande fortaleza. Vagueou pelas câmaras em ruínas e muralhas

desmoronando. Porque o espaço era surpreendentemente vasto, ela

se descobriu sozinha, separada dos outros peregrinos, que exploravam,

por razões pessoais, outros pontos das ruínas sagradas. Havia uma

serenidade envolvente naquele lugar, um silêncio tranqüilo, que era uma

ruína por si mesmo, tão tangível quanto as pedras. Maureen estava

dominada por esse sentimento, olhando quase distraída para as

ruínas de um mosaico romano, quando a viu.

Aconteceu tão depressa e de uma forma tão inesperada quanto as

outras visões. Não podia recordar como sabia que a criança se encontrava

ali, mas tinha certeza de uma presença próxima. A cerca de três

metros de distância, uma criança que não devia ter mais que quatro ou

cinco anos fitava-a, com olhos enormes e escuros. As roupas estavam

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rasgadas e sujas, as lágrimas misturavam-se com a lama salpicada no

rosto. Ela não falou, mas naquele momento Maureen soube que o nome

da criança era Hannah... e que testemunhara acontecimentos que

nenhuma criança deveria jamais suportar.

Maureen também soube que a criança sobrevivera de alguma

forma à indescritível tragédia de Masada. Deixara aquele lugar, levando

suas histórias. Era o seu legado, partilhar a verdade do que ocorrera ali

com seu povo.

Ela não sabia determinar por quanto tempo a criança

permaneceu em sua presença. Havia um senso intemporal nas visões.

Seriam minutos? Segundos? Ou uma eternidade?

Mais tarde, Maureen conversou com um dos guias israelenses em

Masada. Ele era jovem e franco. Maureen se surpreendeu ao descobrir

que lhe relatava a visão. O guia deu de ombros e disse que não era anti-

natural ou incomum ver uma coisa assim num lugar com tamanha carga

emocional. Explicou que havia lendas sobre sobreviventes de Masada,

uma mulher e várias crianças que se esconderam numa caverna e

escaparam, levando a verdadeira história para o mundo.

Maureen tinha certeza de que a pequena Hannah era uma dessas

crianças.

Especulara muitas vezes desde então por que tivera a visão, por

que acontecera com ela. Sentia-se indigna, achava que não merecia

um encontro tão profundo com a história sagrada do povo judeu. Mas,

depois da experiência em Montségur, tudo começou a se juntar, num

belo padrão, que Maureen começava finalmente a compreender. A

pequena Hannah e a jovem cátara conhecida como La Paschalina eram

relacionadas, em espírito, se não também no sangue. Eram as crianças

destinadas a transmitir e guardar as histórias, para que nunca se

perdesse a verdade. O destino de ambas fora o de se tornarem mestras

sagradas da humanidade. Aquelas meninas — e o que se tornaram ao

crescer — representavam a história e a sobrevivência da raça humana.

Suas experiências não tinham limites; as histórias pertenciam a todos os

povos, independentemente de identidade étnica ou crenças religiosas.

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Ao aceitar essa ligação, não poderiam todos se unir, na certeza de

que formavam, em última análise, uma única tribo?

Maureen agradeceu a Hannah e Paschalina num sussurro,

enquanto terminava de escrever as anotações.

Tammy entrou correndo no castelo, esperando evitar o contato

com qualquer pessoa até tomar um banho. Sentia-se exausta, com a

sensação de que cada palmo de seu corpo estava sujo. Mas a solidão não

foi tão fácil, pois Roland interceptou-a na porta do quarto dela. Abriu a

porta para ela e entrou em seguida, indagando com a maior preocupação:

— Você está bem?

— Estou, sim.

Ensaiara um discurso durante a viagem de volta, mas seu coração

se derreteu quando viu o enorme occitano. Ficou tão aliviada por estar ali,

segura no castelo e segura com ele, que jogou-se em seus braços e chorou.

Roland se espantou. Nunca vira tanta vulnerabilidade naquela mulher

antes.

— O que aconteceu, Tamara? Ele a machucou? Deve me contar tudo.

— Não, não me machucou, mas...

— O que aconteceu?

Ela ergueu a mão e tocou no rosto de Roland, aquele rosto

masculino e anguloso que tanto amava.

— Roland... Roland... você tinha razão sobre quem matou seu pai.

E agora acho que podemos provar isso.

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... Easa era a criança da profecia, coisa que todos sabiam. E a profecia

traçava um destino que tinha de ser cumprido da maneira exata. Easa

procedeu dessa maneira; não por qualquer glória pessoal, mas a fim de

facilitar a compreensão e a aceitação, pelos Filhos de Israel, de seu papel de

Messias. Quanto mais o papel de Easa se aproximasse da natureza exata

da profecia, mais fortes as pessoas seriam depois que ele partisse.

Porém, apesar de tudo isso, não era esperado que acontecesse da

maneira como aconteceu.

Easa entrou em Jerusalém, montado num jumento, cumprindo,

assim, as palavras do profeta Zacarias sobre a chegada do ungido. Nós o

seguíamos com palmas, entoando hosanas. Uma enorme multidão passou

a nos acompanhar tão logo entramos na cidade. Um sentimento de alegria e

esperança pairava no ar. Muitos vinham conosco desde Betânia. Fomos

recebidos pelos companheiros de Simão, os zelotes. Até mesmo os

representantes de um movimento essênio recluso deixaram sua comunidade

no deserto para nos acompanhar naquele dia triunfante.

Os filhos de Israel regozijavam-se porque aquele eleito viera libertá-los de

Roma, do jugo, da opressão e da miséria. Aquele filho da profecia crescera

para se tornar homem e Messias. Havia força em nossos corações e em

nossos números.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS

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CAPITULO TREZE

Château des Pommes Bleues

25 de junho de 2005

O jantar no castelo era sempre mais elaborado quando havia

convidados e naquela noite não foi diferente. Berenger Sinclair exigira o

máximo do pessoal da cozinha e de sua adega de vinhos para oferecer um

banquete típico do Languedoc, em proporções medievais e desregradas. A

conversa era também fascinante. Tammy recuperara o controle, com

um aprumo merecedor de um prêmio. Com a atitude provocante e jovial

que era sua marca registrada, voltou a ser o que sempre fora.

Maureen gostou de acompanhar o duelo de Sinclair e Tammy com

Peter, segura no conhecimento de que o primo podia se defender sozinho

em qualquer debate teológico. Tinha certeza disso por experiência pessoal.

Sinclair lançou-se num discurso:

— Sabemos, em termos históricos, que o Novo Testamento como

existe agora foi formulado no Concilio de Nicéia. O imperador

Constantino e seu concilio tinham muitos evangelhos para escolher, mas

selecionaram apenas quatro... quatro que foram alterados de uma

maneira drástica. Foi um ato de censura que mudou a história.

— Não se pode deixar de especular sobre tudo o que ele decidiu

esconder de nós — comentou Tammy.

Peter não se perturbou nem um pouco com um argumento que já

ouvira uma centena de vezes. E surpreendeu os dois supostos

antagonistas com sua resposta:

— Não parem por aí. Lembrem-se de que nem mesmo sabemos

com certeza quem escreveu esses quatro evangelhos. Na verdade, a

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única coisa de que temos uma relativa certeza é de que não foram

escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João. Provavelmente foram

atribuídos aos evangelistas em algum momento do século II, mas

alguns dizem que nem mesmo isso é um bom palpite. E mais uma coisa:

mesmo com toda a documentação disponível no Vaticano, não podemos

dizer com certeza em que língua os evangelhos originais foram escritos.

Tammy mostrou-se surpresa:

— Pensei que tivessem sido escritos em grego.

Peter sacudiu a cabeça.

— As versões mais antigas conhecidas são em grego, mas é bem

possível que sejam traduções de uma forma anterior. Não podemos

simplesmente ter certeza.

— Por que a língua original é importante? — perguntou Maureen.

— Isto é, exceto pelos erros de tradução.

— Porque a língua original é a primeira indicação da identidade

do autor e do local em que ele vivia — explicou Peter. — Por exemplo, se

os evangelhos originais foram escritos em grego, isso indicaria autores

que eram helenizados... uma influência grega reservada para a elite, os

sofisticados e instruídos. Tradicionalmente, não pensamos nos

apóstolos dessa maneira. Por isso esperamos outra coisa deles, um

vernáculo aramaico ou hebraico. Se tivéssemos certeza de que os originais

foram escritos em grego, teríamos de fazer uma avaliação sobre o que isso

significa em relação aos seguidores originais de Jesus.

— Os evangelhos gnósticos encontrados no Egito foram escritos

em copta — acrescentou Tammy.

Peter corrigiu-a, gentilmente:

— Há textos coptas, mas muitos foram escritos originalmente

em grego e depois copiados em copta:

— E o que isso nos diz? — indagou Maureen.

— Não temos o menor conhecimento de egípcios entre os

seguidores originais. Portanto isso nos diz que alguns levaram seu

ministério logo no início para o Egito e que o cristianismo inicial

floresceu ali. Ou seja, cristãos coptas.

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— Mas o que sabemos com certeza sobre os quatro evangelhos?

Maureen estava curiosa sobre o rumo da conversa. Não tivera

tempo disponível durante sua pesquisa para esmiuçar as questões

relacionadas com a história do Novo Testamento. Concentrara-se

estritamente nas passagens relevantes para Maria Madalena.

— Sabemos que Marcos foi o primeiro e que Mateus é quase uma

cópia exata de Marcos, com cerca de seiscentas passagens idênticas —

respondeu Peter. — Lucas é também muito parecido, embora o autor

revele algumas poucas novas percepções, que não são encontradas em

Marcos e Mateus. E o Evangelho de João é o maior mistério dos quatro, já

que assume uma posição muito diferente da dos outros três em termos

políticos e sociais.

— Sei que há pessoas que até acreditam que Maria Madalena

escreveu o quarto evangelho, o que foi atribuído a João — comentou

Maureen. — Durante a minha pesquisa, entrevistei um estudioso

brilhante que fez essa alegação. Não concordo necessariamente com ele,

mas achei que a idéia era fascinante.

Sinclair sacudiu a cabeça e declarou, com alguma veemência:

— Não acredito nisso. Acho que a versão de Maria ainda está por

aí, esperando para ser descoberta.

— O quarto evangelho é o maior mistério do Novo Testamento —

reiterou Peter. — Há muitas teorias a respeito, inclusive a teoria do

comitê: foi escrito por várias pessoas, ao longo de um prazo determinado,

numa tentativa de relatar os acontecimentos da vida de Jesus de uma

certa maneira.

Tammy ouvia Peter com o maior interesse e respondeu:

— Mas tenho a impressão de que muitos cristãos tradicionais

querem apenas tapar os ouvidos e ignorar esses fatos. — Ela era

apaixonada pelo assunto e já se envolvera em muitas discussões ao longo

dos anos. — Não querem saber dessa história. Querem apenas acreditar

cegamente no que a Igreja lhes diz. Ou no que os clérigos dizem.

Peter respondeu também com paixão:

— Não é isso. Você não está percebendo o ponto importante. Não

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é cegueira, é fé. Para as pessoas de fé, os fatos simplesmente não

importam. Mas não cometa o erro comum de confundir fé com

ignorância.

Sinclair deu uma risada, um som irônico.

— Estou falando sério — insistiu Peter. — As pessoas de fé

acreditam que o Novo Testamento teve inspiração divina. Portanto não

importa quem escreveu os evangelhos ou em que língua foram escritos.

Os autores foram inspirados por Deus. E quem tomou a decisão de

editar os evangelhos, nos concílios de Constantinopla e Nicéia, também

devia ter inspiração divina. E assim por diante. É uma questão de fé e não

há espaço para a história aqui. Nem se pode debater. A fé é uma coisa

que não pode ser questionada.

Ninguém respondeu, esperando para saber o que mais ele tinha

a dizer.

— Pensam que não conheço a história da minha própria

Igreja? Conheço muito bem e é por isso que a pesquisa de Maureen e

suas opiniões não me ofendem nem um pouco. Por falar nisso, sabiam

que há alguns estudiosos que até acreditam que o evangelho de Lucas foi

escrito por uma mulher?

Foi a vez de Sinclair se mostrar surpreso:

— E mesmo? Eu nunca soube disso. Essa possibilidade não o

incomoda?

— Claro que não. A importância das mulheres no início da

Igreja, assim como na continuação do cristianismo, é uma coisa que não

podemos negar. Nem queremos, quando consideramos grandes

mulheres como Clara de Assis, que manteve o movimento

franciscano firme depois que Francisco morreu tão jovem. — Peter

olhou para os rostos espantados de Sinclair e Tammy. — Lamento

estragar um argumento tão bom, mas concordo com a idéia de que Maria

Madalena merece o título de “Apóstola dos Apóstolos”.

— Concorda?

A indagação incrédula foi de Tammy.

— Claro que concordo. Em Atos, Lucas oferece os requisitos

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específicos para se tornar um apóstolo: era preciso ter participado do

ministério de Jesus enquanto ele viveu, era preciso ter sido testemunha

de sua crucificação e era preciso ter sido testemunha de sua

ressurreição. Para ser absolutamente literal a respeito, só há uma

pessoa que atende a todos esses requisitos... e essa pessoa é Maria

Madalena. Os apóstolos homens não testemunharam a crucificação, o

que é um tanto embaraçoso. E Maria Madalena foi a primeira pessoa

para quem Jesus apareceu no momento de sua ascensão.

Maureen teve de fazer um esforço para não rir das expressões de

Sinclair e Tammy. Os dois estavam atordoados com aquela demonstração

de inteligência e personalidade de Peter.

— Não resta a menor dúvida de que as únicas outras pessoas que

se ajustam tecnicamente à descrição de apóstolos são as outras Marias...

a Virgem Maria, além de Maria Salomé e Maria Jacobina, ambas presentes

na crucificação e no sepulcro no dia da ressurreição.

Quando Peter olhou em sua direção, Maureen não pôde mais se

conter. Sua risada ressoou pela sala.

— O que foi? — perguntou Peter, malicioso.

— Desculpem. — Maureen tomou um gole de vinho para ter tempo

de se controlar. — É que... Peter tende a pegar as pessoas de surpresa e

sempre acho divertido observar isso.

Sinclair balançou a cabeça.

— Admito que é um homem muito diferente do que eu

imaginava, padre Healy.

— E o que imaginava, Lorde Sinclair? — indagou Peter.

— Com todas as desculpas devidas, acho que imaginava um

cão de guarda romano. Alguém dominado pelo dogma e pela

doutrina.

Peter riu.

— Esqueceu uma coisa muito importante, Lorde Sinclair. Não

sou simplesmente um padre, mas também um jesuíta. E irlandês

ainda por cima.

— Touché, padre Healy.

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Sinclair ergueu seu copo na direção de Peter. A ordem de

Peter, Companhia de Jesus, mais conhecida pelo mundo como os

jesuítas, concentrava-se na educação e em estudos acadêmicos.

Embora constituíssem a maior ordem no catolicismo, os

conservadores na Igreja Católica Romana achavam que os jesuítas

eram independentes demais, há várias centenas de anos. Tinham o

apelido de “Missionários do Papa”, mas havia rumores de que fazia

séculos que os jesuítas elegiam seu próprio líder dentro da ordem e

só se submetiam ao pontífice romano por uma questão de

formalidade e cerimônia. Tammy estava curiosa agora.

— Os outros de sua ordem também pensam assim sobre o

papel das mulheres?

— É sempre insensato generalizar — respondeu Peter. —

Como Maureen disse, as pessoas tendem a estereotipar o clero,

presumindo que todos pensamos com um único cérebro, o que não é

verdade. Os padres são pessoas e muitos de nós são muito

inteligentes e estudiosos, além de dedicados à nossa fé. Cada

homem tira suas próprias conclusões.

Peter fez uma pausa.

— Mas há uma coisa que temos discutido a fundo sobre

Maria Madalena e a veracidade dos quatro evangelhos. Os

apóstolos deviam achar um tanto embaraçoso que Jesus confiasse

toda a sua missão a essa mulher, qualquer que fosse a posição

que ela ocupasse em sua vida e ministério. Ela ainda era uma

mulher, numa época em que as mulheres não eram consideradas

iguais aos homens. Os evangelistas seriam força dos a escrever isso,

porque era verdade, por mais embaraçoso que fosse para eles.

Mesmo que os autores dos evangelhos manipulassem outros

fatos, não alterariam esse elemento importante da ressurreição de

Jesus... que ele apareceu primeiro para Maria Madalena. Não para

os apóstolos, mas sim para ela. Portanto acredito que os autores

dos evangelhos não tinham outra opção além de escrever isso,

porque era a verdade.

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A admiração de Tammy por Peter aumentava cada vez mais. Era

visível em seu rosto expressivo.

— Quer dizer que está disposto a explorar a possibilidade de

que Maria Madalena foi a discípula mais importante? Ou mesmo que

ela possa ter sido mais do que isso?

Peter fitou Tammy nos olhos e desta vez respondeu muito sério:

— Estou disposto a explorar qualquer coisa que nos leve mais

para perto de uma compreensão honesta da natureza de Jesus Cristo,

Nosso Senhor e Salvador.

Foi uma grande noite para Maureen. Peter era o conselheiro

espiritual em que mais confiava, mas passara a admirar Sinclair, que

achava fascinante. O fato de seu primo encontrar elementos em comum

com o excêntrico escocês era um profundo alívio para ela. Talvez todos

pudessem agora trabalhar juntos para explorar as estranhas

circunstâncias das visões de Maureen.

Ao final do jantar, Peter, que passara o dia explorando a região

sozinho, alegou cansaço e pediu licença para se retirar. Tammy disse que

precisava trabalhar no roteiro de seu documentário e também se

retirou. Maureen e Sinclair ficaram a sós. Estimulada pelo vinho e pela

conversa, ela pressionou Sinclair:

— Acho que é tempo de você cumprir sua promessa.

— Que promessa, minha cara?

— Quero ver a carta de meu pai.

Sinclair pareceu pensar a respeito por um momento. Depois de uma

breve hesitação, ele concordou:

— Está bem. Venha comigo.

Sinclair levou Maureen por um corredor sinuoso até uma sala

trancada. Tirou do bolso um chaveiro grande, abriu a porta e fez

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Maureen entrar em seu escritório. Ele apertou um interruptor no lado

direito da parede assim que entraram, iluminando um enorme quadro

na parede no outro lado. Maureen soltou uma exclamação de prazer.

— É o meu quadro!

Sinclair riu.

— Lucrécia Bórgia reina no Vaticano na ausência do papa

Alexandre VI.

Maureen aproximou-se do quadro com reverência. Sentia uma

grande admiração pelo talento nos traços e no uso das cores

demonstrado por Frank Cadogan Cowper, o pintor britânico do

século XIX que criara aquela obra-prima. O quadro mostrava

Lucrécia Bórgia entronizada no Vaticano, cercada por um vasto

mar de cardeais de vermelho. Para Maureen, aquela única imagem

explicava as centenas de anos de vilanias contra o caráter da filha do

papa. Lucrécia fora chamada das piores coisas possíveis, inclusive

assassina e prostituta incestuosa. Era uma punição imposta pelos

cronistas renascentistas, todos homens, por ter a audácia de

sentar no trono de São Pedro... e dar instruções papais durante as

ausências do pai.

— Lucrécia foi uma força propulsora na criação de meu livro —

comentou Maureen. — Sua vida personificou o tema da mulher

menosprezada e privada de seu verdadeiro papel na história.

A pesquisa de Maureen revelara que as terríveis acusações de

incesto haviam sido inventadas pelo primeiro marido de Lucrécia,

um homem rude e violento, que ficara arruinado depois da

anulação do casamento. Fora ele quem lançara os rumores de que

Lucrécia queria a anulação porque tinha um envolvimento sexual

com o pai e o irmão. Essas mentiras insidiosas perduraram por

séculos, perpetuadas pelos inimigos da invejada família Bórgia.

— Eles são da linhagem — comentou Sinclair.

— Os Bórgia? — Maureen estava incrédula. — Como?

— Pela linha de Sara-Tamar. Seus ancestrais eram cátaros que

fugiram para a Espanha. Procuraram refúgio no mosteiro em

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Montserrat. Foram assimilados em Aragão, onde adotaram o nome

Bórgia, antes de emigrarem para a Itália. Mas a escolha do local para

onde foram não foi acidental, nem sua lendária ambição. César Bórgia

estava determinado a assumir o trono, a fim de restaurar em Roma

aqueles que acreditava serem seus legítimos soberanos.

Maureen balançou a cabeça, aturdida, enquanto Sinclair

continuava:

— A instalação de sua filha no trono foi emblemática da

descendência cátara. As mulheres são iguais aos homens n'O Caminho, em

todos os aspectos, inclusive na liderança espiritual. Lamentavelmente, a

história só lembra dos Bórgia como violentos e manipuladores. Maureen

concordava com essa posição.

— Alguns autores chegaram ao cúmulo de escrever que eles foram

a primeira família do crime organizado. É uma injustiça brutal.

— Para não dizer que é absolutamente inverídico.

— Essa informação sobre a linhagem acrescenta um novo ângulo

à história — murmurou Maureen, ainda absorvendo tudo.

— Posso prever o embrião de um novo livro, minha cara? — gracejou

Sinclair.

— Pode prever pelo menos vinte anos de pesquisa. Estou

fascinada. Mal posso esperar para descobrir aonde tudo isso me leva.

— Mas primeiro acho que é hora de tomar conhecimento de um

capítulo em sua própria vida.

Maureen ficou tensa. Suplicara por aquele momento, até insistira.

Era o motivo de sua vinda para a França, em primeiro lugar. Mas agora

não tinha certeza de querer saber.

— Você está bem? — perguntou Sinclair, com sincera preocupação.

Ela acenou com a cabeça.

— Estou, sim. Acontece apenas que agora que estou aqui... eu

me sinto nervosa.

Sinclair indicou uma cadeira e Maureen sentou, agradecida. Ele

abriu um arquivo embutido, com outra chave, e tirou uma pasta.

Explicou para Maureen, enquanto andava:

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— Descobri esta carta nos arquivos de meu avô há alguns

anos. Quando tomei conhecimento de seu trabalho e vi sua foto e o anel,

campainhas de alarme soaram em minha cabeça. Conhecia os

descendentes de Paschal aqui na França, mas também lembrei que

existira um americano chamado Paschal que fora importante. Não

podia me lembrar o porquê, até que encontrei esta carta.

Sinclair pôs a pasta na frente de Maureen, gentilmente. Abriu-a

para revelar o papel amarelado e a tinta desbotada.

— Gostaria que eu a deixasse sozinha?

Maureen fitou-o, mas viu apenas compreensão e segurança em seu

rosto.

— Não. Fique comigo, por favor.

Sinclair inclinou a cabeça em concordância. Bateu de leve na mão

de Maureen e depois foi se sentar no outro lado da mesa, em silêncio.

Maureen pegou a pasta e começou a ler.

“Meu caro Monsieur Gelis”, começava a carta.

— Gelis? — indagou Maureen. — A carta não era dirigida a seu

avô?

Sinclair sacudiu a cabeça em negativa.

— Não, não era. Estava nos arquivos de meu avô, mas foi escrita

para um morador daqui, de uma antiga família cátara chamada Gelis.

Maureen achou por um instante que já ouvira o nome antes, mas

não passou muito tempo pensando a respeito. Estava preocupada

demais com o conteúdo da carta.

Prezado Monsieur Gelis

Por favor, perdoe-me, mas não tenho mais ninguém a quem

recorrer. Soube que tem um conhecimento profundo das coisas do

espírito. Que é um autêntico cristão. Espero que sim. Há muitos meses

que sou atormentado por pesadelos e visões de Nosso Senhor na cruz.

Sou visitado por Ele, que me transmite sua dor.

Mas não escrevo por mim. Escrevo por minha filha pequena,

minha Maureen. Ela grita durante a noite e me relata os mesmos

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pesadelos. É pouco mais que um bebê. Como isso pode acontecer com

ela? Como posso fazer com que pare, antes que ela experimente a

mesma dor que venho sentindo?

Não suporto mais ver minha filha assim. Sua mãe me culpa e

ameaça afastá-la de mim para sempre. Por favor, ajude-me. Por favor,

diga-me o que posso fazer para salvar minha filha.

Com meus mais profundos agradecimentos, Edouard Paschal

Maureen não podia ver através das lágrimas, enquanto largava a

pasta e se permitia soluçar.

Sinclair ofereceu-se para ficar com Maureen, mas ela recusou.

Estava abalada demais pela carta e precisava ficar sozinha. Pensou por

um instante em acordar Peter, mas decidiu não o fazer. Precisava pensar

a respeito, primeiro. E o recente deslize de Peter, ao dizer que prometera

à mãe de Maureen que não permitiria que nada lhe acontecesse, deixara-

a desconfiada e apreensiva. Peter sempre fora sua âncora, a figura

masculina em sua vida. Confiava nele e sabia que Peter nunca faria

qualquer coisa que não considerasse de melhor interesse e segurança

da prima. Mas Peter não poderia estar se baseando em alguma

informação equivocada? O conhecimento que tinha da primeira parte

da infância de Maureen — sobre a qual ele sempre se recusava a falar em

termos concretos — vinha exclusivamente da mãe dela.

Sua mãe... Maureen se sentou na cama enorme, recostando-se

nos travesseiros bordados. Bernadette Healy fora uma mulher dura e

inflexível ou pelo menos era assim que Maureen a recordava. As únicas

indicações que ela podia ter sobre uma disposição diferente anterior

vinham das fotos. Maureen tinha algumas fotos da mãe na Louisiana,

com a filha recém-nascida no colo. Bernadette olhava radiante para a

câmera, mãe orgulhosa.

Muitas vezes Maureen especulara sobre o que mudara

Bernadette, transformando-a da mãe jovem e esperançosa, nas fotos,

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para a disciplinadora fria de suas lembranças. Quando foram viver na

Irlanda, Maureen passara a ser criada em grande parte pela tia e o tio...

os pais de Peter. Maureen ficara na segurança e no anonimato da remota

comunidade rural, no oeste da Irlanda, enquanto Bernadette ia para

Galway.

Maureen só a via raramente, quando Bernadette voltava à fazenda,

por algum senso de dever ou obrigação. Essas visitas eram tensas, à

medida que a mãe se tornava mais e mais estranha. Maureen adotara a

família de Peter como sua, sendo absorvida pelo afeto curativo da prole

grande e exuberante. A tia Ailish, mãe de Peter, preenchera o papel

maternal. Maureen desenvolvera seu afeto e humor por influência da

família de Peter. A tendência ao comedimento, à ordem e cautela vinha

da mãe.

Em umas raras ocasiões, em geral depois de uma das desastrosas

e destrutivas visitas de Bernadette, Ailish chamara a sobrinha para uma

conversa.

— Não deve julgar sua mãe com muito rigor, Maureen — disse ela

uma vez, em seu tom paciente. — Bernadette a ama. E talvez seja assim

por amá-la demais. Mas saiba que ela teve uma vida difícil e que isso a

mudou. Quando for mais velha, você poderá compreender.

O tempo e o destino eliminaram toda e qualquer possibilidade de

Maureen conhecer e compreender melhor a mãe ao crescer. Bernadette

tivera um linfoma quando Maureen estava na adolescência e morrera

rapidamente. Peter fora chamado ao seu leito de morte e fora o padre que

ministrara a extrema-unção. Ouvira a confissão final e passara a carregar

em seus ombros o peso das chocantes revelações da tia, durante todos os

dias de sua vida. Mas não dizia nada a respeito para Maureen, alegando

o sigilo da confissão.

E agora havia uma nova peça no quebra-cabeça. Maureen precisava

tentar interpretar a carta do pai, ter um vislumbre do complexo legado que

ele poderia ter deixado. Dormiria com o problema na mente naquela noite e

na manhã seguinte conversaria com Peter com mais lucidez.

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Carcassonne

25 de junho de 2005

Derek Wainwright estava mergulhado num sono pesado. O

coquetel de remédios e vinho tinto se misturara com a exaustão e o

estresse para produzir um estado de total apagamento.

Se estivesse um pouco mais consciente, talvez tivesse sido

alertado... pelos passos, o som da porta do quarto sendo aberta e o canto

sussurrado do atacante.

— Neca eos omnes. Neca eos omnes. Deus suos agnoset.

Matem todos. Matem todos. Deus reconhecerá os seus.

Mas quando a corda vermelha foi amarrada em torno de seu

pescoço, já era tarde demais para Derek Wainwright. Ao contrário de

Roger-Bernard Gelis, ele não teve a boa sorte de já estar morto quando o

ritual começou.

Maureen ficou toda arrepiada quando alguém bateu em sua porta.

Não estava preparada para Sinclair ou Peter naquele momento. Sentiu

alívio ao ouvir uma voz de mulher do outro lado:

— Reenie? Sou eu.

Maureen abriu a porta para Tammy, que deu uma olhada nela e

soltou um gemido.

— Você está horrível!

— Obrigada. Eu me sinto maravilhosa.

— Quer conversar a respeito?

— Ainda não. Estou apenas processando algumas coisas pessoais.

Tammy hesitou. A atenção de Maureen foi aguçada no mesmo

instante, ao compreender que deparava com um fato absolutamente

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novo: Tamara Wisdom estava nervosa.

— Qual é o problema, Tammy?

Tammy suspirou. Passou a mão pelos cabelos compridos.

— Detesto fazer isso com você, num momento em que sua carga

emocional já é enorme, mas precisamos conversar.

Maureen gesticulou para as poltronas.

— Vamos sentar.

Tammy sacudiu a cabeça.

— Não. Preciso que você venha comigo. Tenho de lhe mostrar uma

coisa.

— Está bem.

Maureen seguiu Tammy pelo labirinto de corredores do Château des

Pommes Bleues. Depois de tudo o que acontecera, achava que não havia

muita coisa que pudesse surpreendê-la. Estava enganada.

Entraram na moderna sala de comunicações em que Sinclair

mostrara para Maureen e Peter os mapas da região comparados com as

constelações. Tammy apontou para um sofá de couro na frente de uma

enorme tela de televisão. Foi pegar um controle remoto e se sentou ao

lado de Maureen. Respirou fundo e iniciou a explicação:

— Quero lhe mostrar algumas imagens que registrei para o meu

próximo documentário. É sobre a linhagem. Preciso que preste total

atenção, porque é muito importante e, em última análise, envolve você e

seu papel em toda essa situação. Como já sabe, o mistério de Maria

Madalena inspirou muitas sociedades secretas e grupos de aventureiros.

Eles sussurram sobre a linhagem e realizam rituais secretos.

Tammy apertou um botão no controle remoto para ligar a televisão.

Uma série de slides apareceu na tela, um de cada vez. As primeiras

imagens eram de quadros de Maria Madalena, pintados por mestres da

arte renascentista e barroca.

— Alguns desses grupos são formados por fanáticos, mas outros

são de pessoas boas e espiritualizadas. Sinclair é um dos mocinhos.

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Portanto você está em terreno seguro aqui. Quero ser bem clara nesse

ponto.

Ela fez uma pausa, ordenando os pensamentos.

— Eu queria fazer um filme que mostrasse a extensão de todo

esse conceito... até que ponto a idéia de uma linhagem sagrada projeta-

se no mundo ocidental e em nossa história. O objetivo é apresentar quem

seus descendentes foram... e são. Dos famosos aos infames e aos

anônimos.

Retratos familiares de figuras históricas e religiosas surgiram na

tela, enquanto Tammy continuava a falar:

— Algumas dessas pessoas podem surpreendê-la. Carlos Magno.

Rei Artur. Roberto da Escócia. São Francisco de Assis.

— Espere um instante. São Francisco de Assis?

Tammy confirmou com um meneio de cabeça.

— Isso mesmo. A mãe dele, Pica, nasceu em Tarascon. Sangue

cátaro, da linha de Sara-Tamar, da nobre família de Bourlemont. Foi

assim que ele recebeu seu nome. Nasceu Giovanni, mas os pais

chamavam-no de Francisco porque ele lembrava o lado franco-cátaro da

família da mãe. Já esteve em Assis1?

Maureen sacudiu a cabeça em negativa. Cada nova revelação era

espantosa, atordoante. Ela ficou observando, fascinada, enquanto

surgiam na tela imagens da aldeia italiana de Assis, o berço do

movimento franciscano.

— Precisa ir até lá. É um dos lugares mais mágicos do mundo. E

os espíritos de São Francisco e Santa Clara ainda estão muito vivos ali.

Creio que eles reviveram os papéis de Jesus e Maria Madalena. Preste

atenção às obras de arte na Basílica de São Francisco. O mestre italiano

Giotto, que foi contemporâneo de Francisco, dedicou as obras de uma

capela inteira a Maria Madalena. Há um mural de Maria Madalena

chegando à França, depois da crucificação. É incontestavelmente uma

declaração. E há muito sentimento cátaro no que consideramos o

pensamento franciscano.

Tammy parou no quadro de Giotto mostrando São Francisco

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recebendo os estigmas do céu.

— Francisco é o único santo conhecido a apresentar todos os

cinco pontos de estigmas. Por quê? A linhagem. Ele é um descendente de

Jesus Cristo. Creio que há uma argumentação pela qual todo

estigmatizado autêntico é da linhagem. Mas o importante em Francisco é

que ele teve todos os cinco estigmas. Ninguém jamais teve isso.

Maureen estava contando, enquanto acompanhava o relato de

Tammy;

— As palmas das mãos, os pés... são quatro... e...

— O flanco direito, onde o centurião espetou Jesus com a lança.

Mas tenho de corrigi-la. Os estigmas autênticos não ocorrem nas palmas,

mas sim nos pulsos. Ao contrário da crença popular, Cristo não foi

pregado na cruz pelas mãos, mas sim através dos ossos dos pulsos. As

mãos não são bastante fortes para suportar o peso do corpo.

Tammy fez uma pausa.

— Embora já tenham sido autenticados estigmas nas mãos, como

os do santo padre Pio, são os estigmas nos pulsos que realmente atraem

a atenção da Igreja. É o que torna Francisco tão importante. Artistas

como Giotto podem nos mostrar os estigmas nas mãos, pelo efeito

dramático, mas os relatos históricos nos contam uma história diferente.

Francisco teve todos os cinco pontos, inclusive nos pulsos.

Tammy soltou o botão de pausa para mostrar a imagem seguinte,

a estátua dourada de Joana d'Arc na Rue de Rivoli, em Paris. Foi

substituída por outra imagem de Joana, a estátua no jardim de

Saunière, que haviam visto dois dias antes.

— Lembra quando Peter me perguntou sobre essa estátua de

Joana? Ele comentou que o mundo a considera um símbolo do

catolicismo francês. Aqui está por que ela é qualquer coisa menos isso.

Tammy projetou na tela um retrato de Joana d'Arc segurando sua

marca registrada, o estandarte de “Jesus-Maria”.

— Os cristãos sempre acharam que o lema de Joana era uma

referência a Cristo e sua mãe, porque o estandarte dizia “Jhesus-Maria”.

Mas não era. Em vez disso, era uma referência a Cristo e Maria Madalena.

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Foi por isso que ela pôs um hífen, para mostrar que os dois estavam

juntos. Jesus e sua esposa, ancestrais de Joana.

— Mas pensei que ela era uma camponesa... uma pastora.

Maureen soltou uma exclamação de surpresa ao compreender o

que acabara de dizer.

— Exatamente. Uma pastora. E seu nome? “D'Arc” indica que tinha

alguma relação com esta região, com Arques, embora tenha nascido em

Domrémy. Joana de Arques... é uma referência à sua linhagem. E a seu

perigoso legado. Berry lhe falou sobre a profecia, não é mesmo? Sobre A

Escolhida?

Maureen confirmou com um lento balanço de cabeça.

— Não creio que o mundo esteja preparado para isso. Não creio que

eu esteja preparada.

Tammy tornou a apertar o botão de pausa e concentrou sua

atenção em Maureen.

— Preciso que você escute o resto da história de Joana, porque

é importante. O que você sabe sobre ela?

— Provavelmente o que a maioria das pessoas no mundo sabe.

Ela lutou para restaurar o Delfim no trono da França. Comandou

batalhas contra os ingleses. Foi queimada viva na fogueira como bruxa,

embora todos soubessem que não era...

— Foi queimada viva porque tinha visões.

Maureen avaliava tudo, tentando determinar aonde Tammy queria

chegar. Ainda não estava entendendo direito e por isso Tammy explicou,

com alguma ênfase.

— Joana tinha visões... visões divinas. E era da linhagem. O que

isso significa para você?

Tammy não esperou por uma resposta.

— Joana era A Escolhida e todos sabiam disso. Ia realizar a

profecia. Tinha visões que a levariam até o evangelho de Madalena. Foi

por isso que tiveram de silenciá-la para sempre.

Maureen sentia-se atordoada.

— Mas... a data de nascimento de Joana é a mesma que a minha?

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— É, sim. Só que não encontrará isso registrado nos livros de

história. De um modo geral, os historiadores indicam um dia em janeiro.

A data foi deliberadamente alterada, num esforço para proteger sua

verdadeira identidade, como bastarda real e como a tão aguardada

princesa do Graal.

— Como sabe disso? Há alguma documentação para apoiar esses

dados?

— Há, sim. Mas você tem de parar de pensar como uma

acadêmica. Precisa ler nas entrelinhas, porque está tudo ali. E não

descarte as lendas locais. É irlandesa e por isso conhece o poder da

tradição oral e como é transmitida. Os cátaros não eram tão diferentes

dos celtas. Existe até uma tonelada de evidências de que as duas

culturas se misturaram através da França e Espanha. Protegiam suas

tradições ao não escrevê-las. Dessa forma, não deixavam qualquer

evidência para seus inimigos. Mas a lenda de Joana como A Escolhida é

predominante aqui, quando se vai além da superfície.

— Sempre pensei que tropas inglesas tivessem executado Joana.

— Errado. Os ingleses prenderam Joana, mas foi o clero francês que

a processou e insistiu em sua morte. O algoz de Joana foi um clérigo chama

do Cauchon. O que é uma piada por aqui, já que Cauchon significa

“porco” em francês. Foi esse porco que arrancou a confissão de Joana e

depois distorceu as evidências para forçar seu martírio. Cauchon tinha de

matar Joana antes que ela pudesse cumprir seu papel como A Escolhida.

Maureen ficou calada, escutando atentamente, enquanto

Tammy continuava:

— E Joana não foi a última pastora a morrer. Lembra a estátua

da santa sobre a qual você me perguntou em Rennes-le-Château? A jovem

com rosas no avental?

— Santa Germana. Tive um sonho sobre ela na noite passada.

— Isso acontece porque ela é outra filha do equinócio vernal e da

ressurreição. E representada com um cordeiro pascal por razões óbvias,

mas também com um carneiro, para indicar seu nascimento no começo

de Áries.

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Maureen se lembrava muito bem da estátua. Ficara comovida com

a expressão solene da jovem pastora.

— A mãe dela tinha uma posição elevada na linhagem, a Marie de

Nègre de seu tempo. Quando Germana era bebê, a mãe morreu

misteriosamente. Germana foi criada por uma família adotiva que a

maltratava. Acabou sendo assassinada enquanto dormia, ao final da

adolescência.

Tammy pegou a mão de Maureen, muito séria agora.

— Há mil anos que há pessoas dispostas a matar para impedir a

descoberta do evangelho de Maria, Maureen. Compreende o que estou

querendo lhe dizer?

A solenidade da ocasião começava a impressionar Maureen.

Subitamente, ela sentiu um frio intenso, enquanto Tammy concluía:

— Ainda há pessoas que matariam para impedir que a profecia

seja consumada. E você corre um grave perigo se essas pessoas

acreditarem que é A Escolhida.

Tammy tivera a previdência de levar uma garrafa do excelente vinho

local para a sala. Tornou a encher o copo de Maureen. As duas

permaneceram em silêncio por algum tempo. Maureen finalmente falou.

Olhou para Tammy e disse, num tom um tanto acusador:

— Sabia muito mais do que me deixou perceber em Los Angeles,

não é mesmo?

Tammy suspirou. Recostou-se no sofá.

— Sinto muito, Maureen. Não podia lhe contar tudo o que sabia

naquela ocasião.

Ainda não posso, pensou ela, desolada, antes de acrescentar:

— Não queria assustá-la. Você nunca faria essa viagem e nós

não podíamos correr esse risco.

— Nós? Está se referindo a você e Sinclair? Pertence à Sociedade das

Maçãs Azuis?

— Não é tão simples assim. Mas posso garantir que Sinclair fará

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tudo o que for possível para protegê-la.

— Porque ele acha que sou a mulher que tanto espera?

— E também porque ele gosta sinceramente de você. Dá para

perceber. Mas Berry também sente a responsabilidade. Levou-a para o

sacrifício, como o proverbial cordeiro pascal, ao apresentá-la no baile

com aquela roupa. Em seu excitamento, não pensou nas conseqüências.

Maureen tomou outro gole do vinho.

— O que você sugere que eu faça? Este lugar é um território

estrangeiro para mim, Tammy. Devo ir embora? Tratar de esquecer que

tudo isso aconteceu e voltar à minha vida antiga? — Ela soltou uma risada

irônica. — Claro. Não há problema.

Tammy exibia uma expressão compadecida.

— Talvez você devesse mesmo partir, em benefício de sua

segurança física. Berry pode dar um jeito de tirar você e Peter daqui

amanhã, sem que ninguém perceba. Isso vai matá-lo, mas ele não

hesitará em fazer, se você pedir.

— E o que acontece depois? Volto para Los Angeles, passando o resto

da vida atormentada por pesadelos e visões? E meu trabalho será

prejudicado, porque nunca mais poderei considerar a história da mesma

maneira, mas também não ousaria investigar mais a fundo por causa

de alguns lacaios furtivos que querem me eliminar? E quem são essas

pessoas perigosas? Por que querem tanto impedir a consumação da

profecia, a tal ponto que estão dispostas até a matar?

Tammy levantou-se e começou a andar de um lado para outro.

— Há diversas facções que têm um interesse velado em manter

em segredo as palavras de Maria Madalena. Há os representantes da

Igreja tradicional, é claro. Mas eles não são os perigosos.

— Então quem são? Estou cansada de enigmas, Tammy, e não

agüento mais nenhum jogo. Alguém me deve uma explicação completa.

Quero saber de tudo, o mais depressa possível.

Tammy balançou a cabeça, uma expressão sombria.

— E você saberá de tudo pela manhã. Mas não cabe a mim dar

as explicações.

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— Então quem vai dar? Sinclair? Quero falar com ele. Agora.

Tammy deu de ombros, com um ar desamparado.

— Infelizmente, isso não será possível. Ele saiu pouco depois que

você deixou o escritório dele. Não sei aonde foi, mas disse que só

voltaria muito tarde. Mas prometo que ele lhe contará tudo amanhã de

manhã.

Mas quando Berenger Sinclair voltou ao Château des Pommes

Bleues, o mundo havia mudado.

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...A chegada de Easa foi notada por todas as autoridades em

Jerusalém, dos Sacerdotes do Templo à Guarda de Pilatos. Os romanos

estavam preocupados com a Páscoa. Temiam que um levante ou um

distúrbio pudessem ser insuflados por qualquer erupção de sentimento ou

nacionalismo judaico. E, porque havia zelotes entre nós, Pilatos não podia

deixar de se manter em alerta.

Dentre os nossos havia aqueles cujos irmãos pertenciam à casta

sacerdotal. Informaram-nos de que o Sumo Sacerdote Caifás, o genro de

Jônatas Anás, que tanto nos odiava, convocara uma reunião, sobre “essa

idéia do Nazareno transformado em Messias”.

Já manifestei minha opinião sobre esse homem Anás, no passado, e

aqui tornarei a falar sobre seus feitos. Porém cumpre-me fazer uma

advertência: não condenem muitos pelas ações de um só. Pois a casta

sacerdotal é igual a todas as outras: alguns são justos e bons em seus

corações, outros não são. Há aqueles que seguiram as ordens de Jônatas

Anás nos dias tenebrosos, sacerdotes e homens comuns. Alguns o fizeram

porque eram obedientes ao Templo, porque eram homens bons e justos,

assim como meu próprio irmão fora ao fazer aquela terrível opção.

Nosso povo foi enganado por líderes corruptos, foi cegado para a verdade

por aqueles que tinham o dever de lhe dar algo mais. Alguns opuseram-se a

nós porque temiam mais derramamento de sangue judaico e queriam apenas

encontrar a paz para o povo durante a Páscoa. Não posso culpar quem quer que

seja por essa opção.

Devemos condenar aqueles que não viram a luz? Não. Easa ensinou-

nos que não devemos rechaçá-los. Em vez disso, devemos perdoar-lhes.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS

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CAPÍTULO CATORZE

Château des Pommes Bleues

25 de junho de 2005

Maureen voltou para seu quarto sentindo-se sufocada de medo e

ansiedade. Estava atordoada e não tinha a menor idéia do que fazer.

Vestiu-se para dormir, lentamente, tentando pensar de forma objetiva,

apesar do cérebro confuso pela sobrecarga emocional e o excesso de

vinho tinto. Isto é um esforço inútil, pensou ela. Não conseguirei

dormir esta noite.

Entregou-se, no entanto, ao conforto acolhedor da enorme cama e

o sono envolveu-a em questão de minutos. E o sonho também.

A mulher pequena com o véu vermelho seguia em silêncio na

escuridão. O coração batia em ritmo acelerado, enquanto ela tentava

acompanhar os dois homens e suas passadas largas. Aquilo era tudo

ou nada... um risco terrível para cada um, mas o momento mais

importante de sua vida.

Desceram apressados pela escada externa; aquele era o risco

maior na missão. Ficariam expostos à noite de Jerusalém e só podiam

orar para que os guardas tivessem sido afastados, conforme o

prometido.

Olharam uns para os outros, aliviados, ao se aproximarem da

entrada subterrânea. Não havia guardas. Um homem ficou do lado de

fora, para se manter de vigia. O outro homem, que conhecia o caminho

através dos corredores da prisão, continuou a conduzir a mulher. Parou

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diante de uma pesada porta e pegou a chave que escondera sob as

dobras da túnica.

Ele olhou a mulher e disse alguma coisa, enfático. Todos sabiam

que havia pouco tempo antes que o risco de descoberta fosse grande

demais... ela mais do que os outros.

O homem virou a chave na fechadura e abriu a porta para deixá-la

entrar. Tornou a fechá-la assim que ela passou, a fim de proporcionar

privacidade à mulher e ao prisioneiro.

Ela não sabia o que esperava, mas com certeza não era aquilo. Seu

belo homem fora tratado brutalmente; quanto a isso, não podia haver a

menor dúvida. Tinha as roupas rasgadas e exibia equimoses no rosto. Apesar

de todos os ferimentos, no entanto, ofereceu um sorriso de afeto e amor para a

mulher, que se jogou em seus braços.

Ele abraçou-a apenas por um breve instante, já que o tempo conspirava

contra os dois. Depois, segurou-a pelos ombros e começou a dar instruções...

enfáticas, urgentes. Ela balançou a cabeça, várias vezes, assegurando que

compreendia e que todos os seus desejos seriam cumpridos. Finalmente, ele

passou a mão de leve por sua barriga e deu a última instrução. Quando

acabou, a mulher caiu em seus braços, pela última vez, fazendo um bravo

esforço para reprimir o som dos soluços que sacudiam seu corpo.

Os mesmos soluços sacudiram Maureen. Ela chorou,

incontrolavelmente, o rosto comprimido contra o travesseiro, para que as

outras pessoas no castelo não pudessem ouvi-la. O quarto de Peter era o

mais próximo e ela não queria atrair sua atenção.

Aquele sonho fora o pior de todos. Era muito real, muito nítido. Ela

sentia cada segundo de tensão e dor, sentia a urgência das instruções

transmitidas. E sabia o motivo. Eram as instruções finais de Jesus Cristo

para Maria Madalena, na véspera da Sexta-feira da Paixão.

E havia outra instrução urgente no sonho, esta dada para

Maureen. Ouvira a voz do homem em seu ouvido... seria mesmo o seu

ouvido? Ou o ouvido de Maria? Ela observava Maria de fora, mas sentia

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tudo o que Maria experimentava por dentro. E ouvira a instrução final:

— Porque o tempo chegou. Vá e cuide para que nossa mensagem

continue a viver.

Maureen se sentou na cama e tentou pensar. Operava por instinto

agora e por algo mais... algo indefinível, sem lógica e sem razão. Era algo

em que tinha de confiar, com toda a força de seu coração, em vez de

analisar demais com o cérebro.

Era plena noite no Languedoc, suave, com os raios do luar

entrando pelo quarto de Maureen. Iluminaram o rosto adorável de Maria

Madalena no deserto, a Madona de Ribera, erguendo os olhos para o céu, à

procura de orientação divina. Maureen decidiu seguir a direção de Maria.

Pela primeira vez desde que tinha oito anos de idade, ela começou a rezar

por orientação.

Mais tarde, Maureen não conseguiu lembrar quanto tempo passara

antes de ouvir a voz. Segundos? Minutos? Não tinha importância.

Quando ouviu, ela teve certeza. Foi como no Louvre, a mesma voz feminina

insistente, chamando-a, levando-a para a frente. Só que desta vez dizia

seu nome.

— Maureen... Maureen...

E sussurrava com uma urgência crescente. Ela se vestiu e calçou os

sapatos, com medo de demorar demais e perder o contato com a guia

etérea que queria conduzi-la. Abriu a porta de seu quarto, com todo o

cuidado, rezando para que não rangesse e acordasse alguém. Como Maria

Madalena no sonho, os movimentos furtivos eram de extrema

importância. Não podia ser vista... ainda não. Era uma coisa que tinha de

fazer sozinha.

O coração de Maureen batia forte, vibrando em seus ouvidos,

enquanto atravessava o castelo na ponta dos pés, sem fazer barulho.

Sinclair saíra e todos os outros dormiam. Ao se aproximar da porta da

frente, ela parou de repente, quando um pensamento lhe ocorreu. O

alarme. A porta da frente tinha um alarme de código. Observara

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quando Roland o desligara certa manhã, depois do café, para abrir a

porta. Ele batera três vezes no teclado. Três números. O código de alarme

tinha três dígitos.

Parada diante do painel, ela tentou pensar como Sinclair. Que

código ele usaria? Uma idéia ocorreu-lhe. A festa de Maria Madalena era

em julho, no dia 22. Ela bateu os números no teclado, como vira Roland

fazer. 7-2-2. Nada. Uma luz vermelha piscou e um bip alto soou,

provocando um sobressalto em Maureen. Droga! Por favor, não deixe que

o som desperte alguém.

Maureen fez um esforço para se controlar. Pensou de novo. Sabia

que não dispunha de muita margem de erro. O alarme seria acionado se

ela continuasse a bater códigos incorretos. Maureen ergueu a cabeça e

olhou para o alto, sussurrando:

— Por favor, ajude-me.

Não sabia o que esperava... que a voz respondesse? Para lhe dar o

número? Que a porta se abrisse, como num passe de mágica, para deixá-la

sair? Ela esperou por um momento, mas nada aconteceu.

Não seja idiota. Vamos, Maureen, pense bem. E foi então que ela

ouviu. Não a voz efêmera da mulher, mas uma voz que vinha de sua

memória. Era a voz de Sinclair, na primeira noite que passara no castelo.

— Minha cara, você é o cordeiro pascal.

Maureen tornou a se virar para o painel e bateu os números 3-2-

2. Março, dia 22, seu aniversário. E o dia da ressurreição.

Dois bips curtos soaram, uma luz verde acendeu e uma voz

mecânica disse algo em francês. Maureen não esperou para ver se aquilo

acordara alguém. Abriu a pesada porta e saiu. O luar iluminava o

caminho de pedras do castelo.

Maureen sabia exatamente para onde ia. Não sabia por que e não

sabia como, apenas sabia qual devia ser o seu destino. A voz não era mais

audível, mas não precisava dela. Alguma coisa assumira o controle,

alguma coisa interior que sabia e que ela seguia sem questionar.

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Contornou rapidamente o lado da casa, o mesmo caminho que

Sinclair seguira quando a levara na excursão pelo jardim. Havia um

caminho ali, invadido pelo mato e difícil, que seria impossível percorrer

numa noite escura, sem luar. Mas o luar iluminava seu caminho. Ela

avançou quase correndo, até avistar seu objetivo, a distância. A Loucura

de Sinclair. A torre que Alistair Sinclair construíra no meio da propriedade,

sem qualquer razão aparente.

Só podia haver uma razão e agora ela a conhecia. Era uma torre de

vigia, como a Torre Magdala, de Berenger Saunière, em Rennes-le-

Château. Os dois homens mantinham-se atentos à região, para o dia em

que Maria decidisse revelar seus segredos. As duas torres davam para a

área que fora definida como o esconderijo do tesouro. Maureen

encaminhou-se para a torre na maior expectativa. Mas sentiu um aperto

no coração ao lembrar que Sinclair mantinha a porta trancada. Ele

usara uma chave para abri-la quando subiram até lá.

Mas... o que acontecera quando saíram? Maureen vasculhou a

memória, enquanto se aproximava. Estavam absortos na conversa e ela

não se lembrava de Sinclair ter trancado a porta. Seria possível que ele

estivesse tão distraído que esquecera? Teria voltado mais tarde para

reparar a negligência? Ou a tranca era automática?

Ela não precisou esperar muito para descobrir. Ao contornar a torre

para a entrada, viu que a porta estava entreaberta. Deixou escapar um

suspiro de alívio e gratidão.

— Obrigada — murmurou ela, erguendo o rosto para o céu.

Maureen não sabia se fora um esquecimento de Sinclair ou

intervenção divina, mas sentia-se exultante, o que quer que tivesse sido.

Subiu a escada, com o maior cuidado. A escuridão era total dentro

da estranha construção de pedra e não podia ver coisa alguma. Tratou de

reprimir a tendência à claustrofobia e continuou a subir, apesar do medo.

Ouviu a voz de Tammy em sua mente, lembrando que Sinclair e

Saunière haviam construído suas torres de acordo com a numerologia

espiritual. Contou meticulosamente e soube quando estender a mão

para a porta à frente, no 22° degrau. A porta se abriu e o luar inundou a

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escada da torre, enquanto Maureen saía para o deque.

Ela ficou imóvel ali por um longo momento, absorvendo toda a

fantástica beleza da noite quente. Sem saber o que procurar, limitou-se a

esperar. Chegara àquele ponto e tinha de manter a fé em que a jornada

não acabaria ali. O luar lhe mostrou uma coisa que não notara antes,

quando estivera ali com Sinclair. Esculpido na parede de pedra, por trás

da porta, havia um relógio de sol, parecido com o que ela vira em Rennes-

le-Château. Maureen passou a mão pelas marcas. Não tinha

conhecimento suficiente dos símbolos para ter certeza de que era

idêntico ou apenas comparável ao outro. Pensou a respeito, enquanto

seguia para o ponto central do deque de observação. Teve a impressão de

divisar alguma coisa no horizonte, por um momento. Esperou,

contemplando a noite do Languedoc.

E depois tornou a ver, primeiro como um clarão, em sua visão

periférica. Reagiu com surpresa, como acontecera na primeira vez em que

estivera ali, com Sinclair. Alguma coisa intangível, um ponto de luz ou um

movimento, atraiu seus olhos para um local determinado no horizonte.

Virou-se nessa direção e ficou observando, enquanto o luar parecia

aumentar, focalizando um raio intenso, num ponto distante, bem à sua

frente. A luz refletia em alguma coisa... uma pedra? Um prédio?

E, depois, ela soube o que era. A tumba. A luz era mais intensa no

local da tumba de Poussin.

Claro. Escondido à plena vista, como tudo até agora.

A luz continuou a se movimentar e mudar, tornando-se mais

opaca, como se assumisse uma forma humana alongada. Era agora uma

mancha iridescente, viva e dançando. Deslocou-se pelos campos em sua

direção, para depois tornar a se afastar. Maureen observava com

absoluto fascínio, por tanto tempo quanto ousou, antes de tomar a única

decisão possível: tinha de segui-la.

Maureen escorou a porta, a fim de que o luar iluminasse a escada

para a descida. E desceu o mais depressa possível. Saiu da torre. Parou de

repente. Alcançar a tumba no escuro era um problema logístico. Não

havia um caminho direto, nenhum atalho que a levasse até lá. Era um

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terreno acidentado, coberto por mato baixo e denso.

O único percurso que Maureen conhecia bem era o que passava pelo

caminho de carro até o castelo e depois a estrada principal, contornando a

propriedade, até a tumba. Mas teria de passar pela frente do castelo e ficar

exposta na estrada. Saiu andando tão depressa quanto podia, pela trilha

coberta de mato. Avistou o castelo à sua frente. Estava escuro e silencioso.

Até ali, tudo bem. Ela correu pelo caminho de pedras, até o portão.

Ficou aliviada ao descobrir que o portão naquele lado tinha

detectores de movimento e se abriu com um sussurro mecânico quando

ela se aproximou. Passou pelo portão e virou à esquerda na estrada. Era o

meio da noite e por isso bastante improvável que houvesse muitos

carros naquela área remota. O silêncio da região ameaçava engolfá-la...

um silêncio estranho, fantástico, desconcertante. O castelo ocupava

um vasto terreno e não havia vizinhos próximos. O único som vinha do

coração de Maureen, batendo forte dentro do peito.

Ela tentou se manter junto da sebe à beira da estrada, observando

ao redor com o máximo de atenção, enquanto andava.

O coração subiu pela garganta quando um som rompeu o silêncio.

Ela tentou não entrar em pânico. Um motor de carro. De que direção

vinha? A acústica na região montanhosa tornava difícil determinar.

Maureen não esperou para descobrir. Em vez disso, jogou-se no chão,

rezando para que os arbustos e a relva alta a escondessem dos faróis.

Ficou absolutamente imóvel enquanto o carro passava, os faróis

iluminando a área ao redor. O motorista devia estar preocupado com

outras coisas, pois não diminuiu a velocidade ao passar pela ruiva

deitada de bruços no lado da estrada.

Quando teve certeza de que o carro já estava longe, Maureen

levantou-se e limpou as roupas. Continuou a andar, seguindo a estrada.

Olhou na direção do castelo, agora distante... havia uma luz acesa numa

janela lá em cima? Maureen contraiu os olhos por um momento, tentando

identificar onde ficava a janela. Mas o castelo era grande demais e ela não

tinha tempo para ficar ali e calcular.

Tornou a se apressar, o coração cada vez mais excitado, ao contornar

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uma curva que reconheceu. Podia avistar, à encosta à sua frente, a tumba

de Poussin brilhando ao luar.

— Et in Arcadia Ego — sussurrou Maureen para si mesma.

Ela procurou o caminho que descobrira com Peter poucos dias

antes, aquele que obviamente havia sido escondido. Encontrou-o,

através de uma mistura de sorte e memória, talvez algo mais. Subiu até o

ponto em que a tumba estava, havia séculos, impassível, testemunha

silenciosa de um legado antigo, que ainda não revelara seus segredos.

E agora? Maureen olhou ao redor da área próxima, depois se

adiantou e parou ao lado da tumba, pensando e esperando. Foi assaltada

por um breve momento de dúvida, ao ouvir de novo a voz de Tammy em

sua memória:

— O avô de Sinclair escavou cada palmo da propriedade por um

quilômetro quadrado ao redor da tumba. Berenger utilizou todo tipo de

tecnologia imaginável à procura do tesouro enterrado... ultra-som, radar

e outras coisas.

E não era só isso. Milhares de caçadores de tesouros haviam

percorrido a região, muitas e muitas vezes. Ninguém jamais encontrara

qualquer coisa. Por que ela seria diferente? O que a fazia pensar que tinha

o direito de esperar mais?

E foi então que ela ouviu, a voz de seu sonho... a voz dele:

— Porque é o momento.

Um farfalhar nos arbustos assustou-a tanto que ela pulou para

trás, perdeu o equilíbrio e caiu. A mão direita bateu numa pedra afiada

e Maureen sentia que a palma era cortada. Mas não podia se dar ao luxo

de pensar na dor, pois tinha medo demais do som. O que seria aquilo?

Maureen esperou, absolutamente imóvel. Não podia respirar. Ouviu o

som de novo, enquanto duas pombas brancas perfeitas alçavam vôo dos

arbustos para a noite do Languedoc.

Maureen voltou a respirar. Levantou-se e seguiu para o

emaranhado de arbustos que escondia o amontoado de blocos de pedra

na frente da tumba. Empurrou os arbustos para os lados, a fim de

verificar se havia alguma coisa por trás. Apenas os blocos de pedra. Ela

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empurrou um, mas não houve qualquer movimento, nada cedeu. Parou

para descansar por um momento, tentando pensar. A mão latejava no

talho. O sangue escorria pela palma. Quando ergueu a mão direita, para

verificar o ferimento, o luar refletiu no anel, faiscando no padrão circular

gravado no cobre antigo.

O anel... Ela sempre tirava as jóias antes de se deitar, mas naquela

noite sentia-se exausta demais para seguir a rotina normal e acabara

dormindo com o anel no dedo. O padrão circular das estrelas. Como acima

é abaixo. Havia uma duplicata do padrão no lado posterior da tumba.

Ela deu a volta para o outro lado da tumba. Empurrou os arbustos

ali para ter acesso ao padrão. Passou a mão pela inscrição. O sangue da

palma de sua mão caiu dentro do círculo. Ela prendeu a respiração, em

total imobilidade, esperando pelo que viria.

Nada aconteceu. O silêncio prolongou-se por minutos, até que

Maureen sentiu que estava acuada num vácuo... como se todo o ar da

noite fosse sugado. E de repente, num momento atordoante, um som

alcançou-a. Vinha de uma distância desconhecida, talvez do alto da

estranha colina que é Rennes-le-Château... o repicar de um sino de igreja.

O som profundo vibrou pelo corpo de Maureen. Era o som mais sagrado

que ela já ouvira, ou o mais ímpio. Mas o incongruente repicar do sino de

igreja na calada da noite parecia monumental.

O som sacudia a escuridão em torno de Maureen. Foi seguido um

instante depois por um estalo forte e ominoso. Era alto e vinha das

pedras por trás dela, o lugar de onde as pombas haviam voado. O

estranho foco de luar incidia sobre aquele lugar agora... só que estava

diferente. Onde antes ela vira apenas arbustos e blocos de pedras, havia

agora uma abertura, uma fenda na encosta da montanha, convidando-a

a entrar.

Maureen avançou para a caverna que acabara de se abrir. Tremia

agora, de uma maneira quase incontrolável. Mas seguiu em frente. Ao se

aproximar da abertura, que mal dava para passar de pé, ela avistou uma

tênue claridade. Fez um esforço para reprimir o medo, depois baixou a

cabeça e entrou na caverna.

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Ela prendeu a respiração assim que entrou. Lá dentro havia uma

arca, antiga e escalavrada. Maureen vira-a num sonho, em Paris. A velha

a mostrara, gesticulando em sua direção. Tinha certeza de que era a

mesma arca. Um brilho estranho envolvia aquela peça. Maureen

ajoelhou-se e pôs as mãos na arca, reverente. Não havia tranca. Ao

estender os dedos por baixo da tampa, para levantá-la, estava tão

concentrada no que fazia que não ouviu os passos. Depois, não teve

consciência de qualquer outra coisa que não a dor intensa que se irradiou

detrás do seu crânio, antes do mundo escurecer.

Roma

26 de junho de 2005

Se o bispo Magnus O'Connor esperava uma recepção de herói no

conselho do Vaticano, ficou bastante desapontado. Os homens estóicos,

sentados em torno da mesa antiga, mantiveram-se impassíveis, os

lábios comprimidos. O cardeal DeCaro era o principal inquisidor.

— Pode explicar para o conselho, por favor, por que o primeiro

homem a apresentar os cinco estigmas desde São Francisco de Assis não

foi leva do a sério?

O bispo O'Connor suava bastante agora. Apertou o lenço no colo,

que usava para limpar o acúmulo de gotas de suor no rosto. Pigarreou

antes de responder, com a voz um pouco mais trêmula do que gostaria:

— Sua Graça, Edouard Paschal tinha transes perturbadores.

Gritava e chorava, alegava ter visões. Foi determinado que não passavam

de delírios lunáticos de uma mente perturbada.

— E quem foi o responsável por essas determinações oficiais?

— Fui eu, Sua Graça. Mas deve compreender que era um

homem comum, um cajun do Bayou...

DeCaro não conseguiu esconder sua irritação. Não estava mais se

importando com as explicações do bispo. Havia muita coisa em jogo e

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precisavam agir depressa. Suas perguntas eram cada vez mais incisivas, o

tom mais áspero.

— Descreva as visões para aqueles que não tiveram a oportunidade

de ler os arquivos.

— Ele tinha visões de Nosso Senhor com Maria Madalena... visões

perturbadoras. Falava sobre... a união dos dois... e falava de filhos. Os

delírios se tornaram mais intensos depois... dos estigmas.

Os membros reunidos do conselho sentiam-se cada vez mais

apreensivos. Mudaram de posição em suas cadeiras e trocaram

comentários, em sussurros. DeCaro continuou o interrogatório

implacável:

— E o que aconteceu com esse Edouard Paschal?

O'Connor respirou fundo antes de responder:

— Ele se tornou tão atormentado com as ilusões que... matou-se

com um tiro na cabeça.

— E o que houve depois de sua morte?

— Como um suicida, não podíamos permitir que ele fosse

sepultado em terreno consagrado. Guardamos os registros e esquecemos.

Até... até que a filha dele atraiu nossa atenção.

O cardeal DeCaro balançou a cabeça, pegando outra pasta

vermelha. Correu os olhos pelos membros do conselho.

— O que nos leva à questão da filha...

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... Muitos ficarão chocados ante a minha decisão de incluir a

romana Cláudia Prócula, neta de Augusto César e filha adotiva do

imperador Tibério, entre nossos seguidores. Porém não era a sua posição

como romana que a tornava uma seguidora tão improvável. Era o fato de

Cláudia ser esposa de Pôncio Pilatos, o mesmo procurador que condenou

Easa à crucificação.

Entre as muitas pessoas que se dispuseram a nos ajudar, nos dias de

trevas, Cláudia Prócula arriscou tanto ou mais que qualquer outra por Easa.

Na verdade, tinha muito mais a perder do que outros.

Porém, naquela noite em que nossas vidas se cruzaram em

Jerusalém, nós duas ficamos ligadas pelo coração e pelo espírito. E assim

permanecemos, ligadas, desse dia em diante, como esposas, como mães,

como mulheres. Por seus olhos apreendi que ela se tornaria uma filha d'O

Caminho quando chegasse o momento. Testemunhei ali a luz que provém da

conversão, quando um homem ou uma mulher encontra Deus claramente

pela primeira vez.

E Cláudia possui um coração pleno de amor e perdão. O fato de ter

permanecido com Pôncio Pilatos, apesar de tudo o que aconteceu, é um

sinal indelével de sua fidelidade. Até o fim, ela sofreu pelo marido, como só

uma mulher que ama verdadeiramente é capaz de sofrer. E isso é uma

afirmativa que permito-me fazer porque sei.

A história de Cláudia ainda não foi contada. Espero que lhe faça

justiça.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS

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CAPITULO QUINZE

Château des Pommes Bleues

27 de junho de 2005

Maureen tinha a boca ressequida e sentia que a cabeça pesava uma

tonelada. Onde estava? Tentou se virar. Uma dor intensa irradiou-se da

sua cabeça. Não fosse por isso, porém, estava confortável. Muito

confortável. Estendida numa cama, no castelo. Mas como?

Confusa... nada era claro. Teve um breve pensamento de que podia

ter sido drogada, além de levar a pancada na cabeça. Por quem? E onde

estava Peter?

Vozes no outro lado da porta. Alteradas. Transtornadas e

preocupadas. Furiosas? Homens. Ela tentou identificar sotaques.

Occitano, com certeza. Roland. A voz mais alteada era... escocesa?

Irlandesa? Só podia ser Peter. Ela tentou chamá-lo, mas só conseguiu

emitir um som fraco. Ainda assim, foi suficiente para atrair a atenção.

Os dois entraram correndo no quarto.

Peter nunca se sentiu tão aliviado em toda a sua vida quanto no

momento em que ouviu o barulho no quarto de Maureen. Empurrou para

o lado o gigante Roland e ultrapassou Sinclair para ser o primeiro a

entrar no aposento. Foi seguido de perto pelos outros. Maureen tinha

os olhos abertos. Parecia atordoada, mas estava consciente. O médico lhe

enfaixara a cabeça, depois de estancar a hemorragia. Ela parecia uma

vítima de guerra.

— Graças a Deus, Maureen! Pode me ouvir?

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Peter pegou sua mão. Maureen tentou balançar a cabeça para

confirmar que o ouvia. Uma péssima idéia. Teve uma vertigem com o

movimento e perdeu a visão por um minuto inteiro. Sinclair

aproximou-se por trás de Peter. Roland ficou para trás, em silêncio.

— Não se mexa, se puder evitar. O médico disse que é melhor

você permanecer tão imóvel quanto possível.

Maureen piscou para indicar que compreendia. Queria falar,

mas descobriu que não podia. Mal conseguiu balbuciar:

— Água...

Sinclair pegou uma tigela de cristal com uma colher na

mesinha-de-cabeceira. Fez um esforço para parecer jovial:

— Ainda não pode tomar água, por ordem do médico. Mas

pode chupar pedaços de gelo. Se tiver uma boa reação, poderá tomar

água daqui a pouco.

Juntos, Sinclair e Peter ajudaram Maureen. Peter levantou-a,

gentilmente, enquanto Sinclair usava a colher para pôr pedaços de

gelo em sua boca. Ao sentir a reidratação, Maureen tentou falar de

novo:

— O que...?

— O que aconteceu? — Peter olhou para Sinclair e depois para

Roland, mais atrás, antes de acrescentar: — Contaremos tudo

depois que descansar mais um pouco. Roland... é o seu herói. E o

meu também.

Os olhos de Maureen deslocaram-se para Roland, que

meneou a cabeça, solene. Ela passara a gostar do enorme occitano e

sentia-se grata pelo que ele fizera para trazê-la de volta ao castelo.

Sua maior preocupação, no entanto, não era consigo mesma. A

resposta de que precisava ainda não viera. Sinclair pôs mais lascas

de gelo em sua boca. Ela tornou a tentar falar:

— A... arca?

Sinclair sorriu, pela primeira vez em dias:

— Está segura. Foi trazida para cá, junto com você, e ficou

trancada em meu escritório.

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— O que...?

— O que tem dentro? Ainda não sabemos. Não vamos abri-la

sem você, minha cara. Seria um erro. A arca lhe foi confiada e você

deve estar presente quando o conteúdo for revelado.

Maureen fechou os olhos, aliviada. Deixou que o sono

profundo do sedativo a envolvesse de novo, segura de que não

fracassara.

Quando Maureen tornou a se mexer, Tammy estava sentada ao

lado da cama, em uma das poltronas de couro vermelho.

— Bom-dia, minha linda. — Ela largou o livro que estava lendo.

— Enfermeira Tammy, a seu serviço. O que posso lhe servir? Margarita?

Piña colada?

Maureen teve vontade de sorrir, mas ainda não podia.

— Pode se contentar com lascas de gelo? Ah, vejo o sinal

internacional do polegar para cima! Lá vamos nós!

Tammy pegou a tigela de cristal e foi para o lado de Maureen. Usou

a colher para pôr algumas lascas de gelo em sua boca.

— Uma delícia, não é mesmo? São fresquinhas, feitas esta manhã.

Desta vez Maureen sorriu um pouco, mas ainda doía. Melhor ainda,

podia pensar. A cabeça latejava, mas a vertigem era mínima e a memória

começava a voltar.

— O que aconteceu comigo?

Todo o humor desapareceu do rosto de Tammy. Ela tornou a

sentar ao lado de Maureen, muito séria.

— Esperamos que possa nos contar a primeira metade. E depois

pode remos relatar a segunda. Não agora, é claro. Podemos esperar até

você ter condições de falar. Mas a polícia...

— Polícia?

— Calma, calma... eu não deveria ter dito isso. Está tudo bem agora

e isso é o que nos interessa.

— Não é, não. — Maureen sentia que recuperava o controle da

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voz, junto com sua força. — Preciso saber o que aconteceu.

— Como você quiser. Vou chamar os homens.

Os quatro entraram no quarto de Maureen, primeiro Sinclair,

seguido por Peter, depois Roland com Tammy. Sinclair aproximou-se da

cama e sentou na única cadeira ao lado.

— Maureen, não tenho palavras para exprimir o quanto lamento

o que aconteceu. Eu a trouxe para cá e a expus ao perigo. Mas nunca

imaginei que qualquer coisa assim pudesse lhe acontecer. Tinha certeza

de que conseguiria protegê-la dentro do terreno do castelo. Não previmos

que você se aventuraria a sair sozinha, ainda mais no meio da noite,

como aconteceu.

Tammy também se aproximou da cama.

— Lembra o que eu lhe disse? Que havia pessoas que tentariam

impedi-la de encontrar o tesouro?

Maureen balançou a cabeça, apenas o suficiente para que o

movimento fosse percebido.

— Quem são eles? — sussurrou ela.

Sinclair inclinou-se para a frente:

— A Guilda dos Justos. Um bando de fanáticos que opera na

França há séculos. Suas metas são complicadas, e acho melhor deixar

para explicar quando você estiver plenamente recuperada.

Maureen fez menção de protestar. Queria respostas concretas.

Surpreendentemente, foi Peter quem se manifestou em apoio a Sinclair:

— Ele tem razão, Maureen. Seu estado de saúde ainda é precário.

Por isso devemos poupar os detalhes mais sórdidos para o momento em

que você estiver um pouco mais forte.

— Você foi seguida — continuou Sinclair. — Eles vigiavam seus

movimentos desde que chegou à França.

— Mas como?

Sinclair parecia muito pálido e exausto ao se inclinar para a frente,

a fim de explicar. Maureen notou as olheiras quando ele passou a mão pelo

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rosto.

— Foi nesse ponto que eu falhei, minha cara. Alguém se infiltrou

aqui. Eu não tinha a menor idéia, mas um dos nossos foi um traidor,

durante anos.

A angústia e a vergonha por esse fracasso haviam cobrado um

tributo de Berenger Sinclair. Mas, enquanto ele parecia desesperado,

Roland, um pouco atrás, exibia uma expressão ameaçadora, de fúria

total. Foi para ele que Maureen endereçou sua pergunta:

— Quem?

O gigante soltou um grunhido.

— De la Motte.

Ele se pôs a falar em sua língua natal, não francês, mas occitano.

Quando fez uma pausa, Sinclair explicou:

— Jean-Claude era o culpado. Mas você não precisa se sentir

traída por um parente. Ele não tem o sangue da família Paschal. Isso,

como todo o resto nele, era uma mentira. Eu tinha plena confiança em

Jean-Claude ou nunca teria permitido que ele chegasse perto de você.

Ontem, quando veio buscá-la, ele deixou um espião na propriedade.

Maureen pensou no encantador Jean-Claude, que fora tão

respeitoso e gentil durante a excursão. Seria possível que aquele homem

conspirasse contra ela desde o início? Era difícil acreditar. E havia outra

coisa que não fazia sentido. Ela tentou formular a pergunta:

— Como eles sabiam? O momento...

Roland, Sinclair e Tammy trocaram olhares, um visível sentimento

de culpa em seus rostos. Tammy ergueu a mão, num gesto de quem se

oferecia como voluntária.

— Eu contarei.

Ela ajoelhou-se ao lado da cama de Maureen. Olhou para Peter, a

fim de incluí-lo na explicação.

— É parte da profecia. Lembra o estranho relógio de sol em Rennes-

le-Château? Aponta para um alinhamento astrológico indicado na

profecia, que ocorre a intervalos aproximados de vinte e dois anos, por

um período total de dois dias e meio.

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Sinclair continuou:

— Quando esse alinhamento acontece, os habitantes locais

mantêm uma vigilância permanente sobre a região, à espera de qualquer

indicação de atividade excepcional. É para isso que as torres foram

originalmente construídas... a de Saunière e a minha. Era onde eu

estava ontem à noite. Devo ter perdido sua passagem por pouco. Fiquei

de vigia na Loucura de Sinclair por várias horas, antes de pegar o carro e

seguir até RLC para observar de lá. E essa a tradição em minha família.

Sinclair respirou fundo antes de continuar:

— Da Tour Magdala avistei um ponto brilhante, que parecia se

tornar cada vez maior, na área de Arques. Sabia que precisaria voltar

imediatamente. Liguei para Roland pelo celular, mas ele já havia saído à

sua procura. A área em torno da tumba é monitorada por

equipamentos de segurança avançados, inclusive sensores de

movimento, o alarme soara nos aposentos de Roland. Claro que ele

estava atento aos monitores por causa do alinhamento... e ainda mais

porque Tammy avisara que nossos inimigos podiam estar mais próximos

do que pensávamos. Roland saiu assim que um alarme perto da tumba

foi acionado. Chegou ao local segundos depois que você foi atacada. E eu

cheguei logo depois, de carro. Com relação a seu atacante... posso

assegurar que não se sente hoje tão bem quanto você. E, quando receber

alta do hospital, vai se recuperar dos ossos quebrados na prisão.

Tudo começava a se ajustar para Maureen, que entendeu que a

porta da torre estava aberta... porque Sinclair acabara de sair de lá.

— Jean-Claude conhecia a ocasião tão bem quanto nós, porque

até ontem integrava nosso círculo — continuou Sinclair. — Quando

descobri mos sobre você e seu trabalho, a dois anos do alinhamento,

tivemos quase certeza de que o momento chegaria, se pudéssemos

trazê-la para cá durante a configuração.

Peter fez uma pergunta que também aflorava na cabeça de

Maureen. Ele fitou Tammy com uma expressão acusadora.

— Há quanto tempo você sabe disso?

Foi a vez de Tammy se mostrar constrangida. Tinha os olhos

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vermelhos de estresse, insônia e lágrimas não derramadas.

— Maureen... — A voz saiu trêmula, mas ela fez um esforço para

continuar. — Sinto muito. Não fui franca com você. Quando a conheci

em Los Angeles, há dois anos, reconheci você e seu anel. Escutei as

histórias que me contou, em sua absoluta inocência... Não fiz nada na

ocasião, mas tomei o cuidado de me manter em seu círculo de conhecidos

e observar seu progresso. Assim que o livro foi publicado, mandei um

exemplar para Berry. Somos amigos há anos e eu sabia o que ele

procurava. O que todos nós procurávamos...

Peter não ficou satisfeito com a explicação, pois passara a gostar de

Tammy. E sentia-se diferente agora que sabia que ela usara Maureen.

— Mentiu para ela durante todo o tempo.

Tammy deixou as lágrimas escorrerem.

— É verdade. E lamento muito... mais do que posso dizer.

Roland estendeu o braço protetor em torno de Tammy, mas foi

Sinclair quem falou em sua defesa.

— Não a julguem com muito rigor. Podem não gostar do que

Tammy fez, mas ela tinha razões para isso. E há muito mais que Tammy

arriscou e que você ignora. É uma mulher altruísta, uma autêntica

guerreira d'O Caminho.

Maureen ainda tentava juntar tudo... as mentiras, as manobras

deliberadas, a consumação de anos de estranhos sonhos e visões. Era

demais para o estado em que se encontrava. A agitação deve ter ficado

aparente em seu rosto, pois Peter se apressou em interferir:

— Já chega por enquanto. Depois que você se recuperar, eles

contarão o resto.

Maureen hesitou por um momento. Ainda havia uma pergunta

crucial para a qual precisava de uma resposta:

— Quando abriremos a arca?

Sentia-se sinceramente surpresa com o fato de que isso

ainda não houvesse sido feito. Aquelas pessoas haviam dedicado a

maior parte de suas vidas a buscar o tesouro. No caso de Sinclair,

várias gerações de sua família haviam gasto milhões de dólares com

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esse intuito. Embora a considerassem A Escolhida, ela não achava

que merecia conhecer o conteúdo da arca antes dos outros. Mas

Sinclair insistira que ninguém abrisse a arca até que Maureen

estivesse preparada para fazê-lo. Roland mantinha guarda

pessoalmente durante a noite, dormindo entre a porta e a arca.

— Assim que você estiver em condições de descer —

respondeu Sinclair.

Roland deslocava o peso do corpo de um pé para outro,

irrequieto, um espetáculo fascinante para um homem tão grande.

Tammy notou e perguntou, preocupada:

— O que é, Roland?

O corpulento occitano aproximou-se de Maureen.

— A arca... É uma relíquia sagrada, mademoiselle. Eu acho...

creio que tocá-la poderia curar seus ferimentos.

Maureen ficou comovida com tanta fé. Pegou a mão de Roland.

— Talvez você tenha razão. Vamos ver se consigo me levantar...

Foi a vez de Peter se mostrar preocupado.

— Tem certeza de que quer tentar isso tão rápido? É uma longa

caminhada pelos corredores e há vários lances de escada.

Roland sorriu para Peter, depois para Maureen.

— Não vai precisar andar, mademoiselle.

E quando Maureen indicou que estava pronta, Roland

levantou-a sem o menor esforço e carregou-a no colo através do

castelo.

O padre Peter Healy seguiu em silêncio atrás do gigante que

carregava sua prima ferida com tanta facilidade. Nunca se sentira

tão desamparado em toda a sua vida, tão desprovido do controle

de uma situação. Tinha a impressão de que Maureen se encontrava

agora em algum lugar em que não poderia alcançá-la. A descoberta

da arca ocorrera graças a algum tipo de intervenção divina; ele via

isso em Maureen e sabia que os outros também podiam perceber.

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Havia um clima de presciência no vasto castelo. Alguma coisa

monumental estava acontecendo e nenhum deles chegaria ao fim

inalterado.

E havia também a condição clínica de Maureen. O médico ficara

assustado cora o ferimento em sua cabeça; dissera que era um milagre

que ela continuasse viva. Peter refletira até que ponto isso podia ser

literal. Talvez Roland estivesse certo. Peter até argumentara que a prima

devia ser hospitalizada. Fora Roland — não Sinclair — quem resistira à

sugestão. O gigante assumira a firme posição de que Maureen não devia

ser afastada da arca. O contato de Maureen com a arca já podia ter

causado alguma espécie de cura divina, pois sua sobrevivência era

inacreditável.

Ao se aproximarem da porta do escritório de Sinclair, Peter percebeu

que a pressão de sua mão no rosário dentro do bolso fazia com que as

contas de cristal cortassem-lhe a palma.

A arca estava no chão, perto de um enorme sofá. Roland pôs

Maureen nas almofadas de veludo, com todo o cuidado. Ela agradeceu

em voz baixa. Tammy se sentou de um lado, Peter no outro, enquanto

Sinclair e Roland permaneciam de pé. Ninguém se mexeu ou falou por

um longo momento. O silêncio foi rompido por um pequeno soluço que

escapou dos lábios de Maureen.

Ninguém mais se mexeu enquanto ela se inclinava para a frente,

cautelosa. Maureen pôs as mãos na tampa da arca e fechou os olhos. As

lágrimas passaram pelas pálpebras e escorreram pelas faces. Finalmente,

ela abriu os olhos e fitou cada um.

— Está tudo aqui — sussurrou ela. — Posso sentir.

— Acha que já pode? — perguntou Sinclair, gentilmente.

Maureen sorriu para ele, um sorriso sereno e consciente, que

transformou seu rosto. Por um momento, não era mais Maureen Paschal.

Era uma pessoa muito diferente, uma mulher com luz e paz interior.

Mais tarde, ao recordar aquele momento, Berenger Sinclair diria que viu a

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própria Maria Madalena sentada no lugar de Maureen.

Ela virou-se para Tammy com um sorriso de radiante compaixão.

Inclinou-se e apertou a mão da amiga por um instante. Nesse segundo,

Tammy compreendeu que fora perdoada. Todos haviam sido trazidos

para aquela sala com algum propósito divino, algo bem superior... e

todos sabiam disso. Era esse conhecimento que os transformava, ao

mesmo tempo em que os uniria pela eternidade. Tammy baixou o rosto

para as mãos e chorou baixinho.

Sinclair e Roland ajoelharam-se dos dois lados da arca e fitaram

Maureen, à espera de uma confirmação. Quando ela balançou a cabeça,

os dois enfiaram os dedos por baixo da tampa, preparados para uma

abertura difícil. Mas as dobradiças não reagiram com a ferrugem do

tempo, como esperavam. A tampa foi aberta sem qualquer dificuldade, de

tal forma que Roland quase perdeu o equilíbrio. Não que alguém

notasse. Todos estavam concentrados demais, olhando para os dois

jarros de barro, em perfeito estado de conservação, dentro da arca.

Apesar de toda a tensão, Peter foi o primeiro a romper o silêncio:

— Os jarros... são quase idênticos aos que foram usados para

guardar os pergaminhos do mar Morto.

Roland, ajoelhado ao lado da arca, passou a mão pela tampa de

um dos jarros, reverente.

— Estão perfeitos — murmurou ele.

Sinclair mexeu a cabeça em concordância.

— Tem toda a razão. Não há poeira ou erosão, nem qualquer sinal

de desgaste. É como se os jarros tivessem permanecido suspensos no

tempo.

— Parecem lacrados com alguma coisa — comentou Roland.

Maureen passou a mão pela tampa de um dos jarros. Teve um

sobressalto, como se levasse um choque de uma corrente elétrica.

— Pode ser cera?

— Esperem um instante — interveio Peter. — Se esses jarros

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contêm o que vocês esperam e no que acreditam, não temos o direito de

abri-los.

— Então, quem tem? — indagou Sinclair incisivo. — A Igreja? Esses

jarros não sairão daqui enquanto não verificarmos seu conteúdo. E o

último lugar em que gostaria que acabassem seria um cofre no

Vaticano, onde ficariam escondidos do mundo por mais dois mil anos.

— Não era a isso que eu me referia — declarou Peter, parecendo

mais calmo do que se sentia. — Se há documentos nesses jarros,

lacrados há dois mil anos, a súbita exposição ao ar pode afetá-los, até

mesmo destruí-los. Estou apenas sugerindo que encontremos um local

neutro aceitável... talvez por intermédio do governo francês... para abrir

os jarros. Se arruinarmos o conteúdo, vocês não terão nada para

mostrar por uma vida inteira de busca. Seria um crime... em termos

literais e espirituais.

O rosto de Sinclair deixava transparecer seu dilema. A perspectiva de

arruinar o conteúdo dos jarros era horrível demais para sequer

considerar. Mas era difícil resistir à tentação quando se tinha o sonho de

uma vida inteira ao alcance das mãos. Além disso, havia sua suspeita

inata de todos os forasteiros que se envolviam nos interesses da linhagem.

Ele não sabia o que fazer. Roland virou-se para Maureen e disse:

— A decisão é sua, mademoiselle. Creio que Ela a trouxe para nós

e que nos dirá o que deseja por seu intermédio.

Maureen começou a responder, mas parou de repente, quando

uma vertigem a envolveu. Peter e Tammy estenderam a mão ao mesmo

tempo para ampará-la. Tudo ficou escuro para Maureen, mas apenas por

um momento. E depois a certeza aflorou, com absoluta clareza. Quando

as palavras saíram, foi em tom de ordem:

— Abra os jarros, Roland.

A instrução saiu de sua boca, mas a voz não era a de Maureen.

Sinclair e Roland retiraram os jarros da arca, com todo o cuidado, e

os puseram em cima da enorme mesa de mogno. Roland perguntou a

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Maureen, com excepcional reverência:

— Qual deles abrimos primeiro?

Maureen, amparada por Peter e Tammy, encostou um dedo em um

dos jarros. Não podia dizer por que escolhera aquele para ser o primeiro,

apenas sabia que era a opção certa. Roland seguiu a instrução, passando

o dedo pela beira da tampa. Sinclair pegou uma espátula antiga em sua

mesa e começou a remover a cera do lacre. Tammy ficou imóvel, sem desviar

os olhos de Roland.

Peter estava apavorado. Era o único ali que sabia o que era lidar com

documentos antigos e dados do passado de valor inestimável. O potencial

de danos graves era imenso. Até mesmo danificar os jarros seria

lamentável.

Como se para pontuar seu pensamento, um ruído assustador de

algo esfarelando ressoou na tensão da sala. A espátula de Sinclair

espatifara a tampa do primeiro jarro e arrancara uma lasca da beirada.

Peter teve um arrepio e cobriu o rosto com as mãos. Mas não pôde se

manter assim por muito tempo. O som da respiração profunda de

Maureen forçou-o a olhar.

— Minhas mãos são muito grandes, mademoiselle —

murmurou Roland para Maureen.

Maureen deu um passo para a frente, as pernas trêmulas, e enfiou

a mão dentro do jarro danificado.

Quando a retirou — devagar, cautelosa — segurava o que pareciam

ser dois livros, escritos em papel antigo. A tinta preta se destacava, em

nítido contraste com as páginas que pareciam de papel de linho. As

letras eram pequenas, precisas, perfeitamente legíveis.

Peter inclinou-se por cima de Maureen, incapaz de conter seu

crescente entusiasmo pelo que se encontrava na mesa. Olhou para os

rostos extasiados ao seu redor, mas fez seu julgamento direto para

Maureen. A voz tremia quando ele informou:

— O texto está escrito... em grego.

A respiração de Maureen ficou presa na garganta. Ela perguntou,

esperançosa:

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— Pode ler o que está escrito?

Mas ela já sabia a resposta antes que Peter falasse. Toda a cor se

esvaíra do rosto dele. Ficou evidente para as pessoas na sala nesse

momento que o mundo nunca mais seria o mesmo para o padre Peter

Healy.

— Sou Maria, chamada Madalena — traduziu ele, a voz pausada.

— E...

Peter parou, não pelo efeito dramático, mas porque não tinha

certeza se podia continuar. Mas um olhar para o rosto de Maureen fez

com que tivesse certeza de que não havia outra opção.

— ... sou a legítima esposa de Jesus, chamado o Messias, um filho

real da Casa de Davi.

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CAPITULO DEZESSEIS

Château des Pommes Bleues

28 de junho de 2006

Peter trabalhou durante a noite nas traduções. Maureen recusou-

se a deixar a sala, cochilando de vez em quando no sofá de veludo.

Roland trouxera travesseiros e uma manta. Maureen sorriu-lhe,

tranqüilizadora, para acalmar sua preocupação. Por mais estranho que

pudesse parecer, sentia-se bem. A cabeça não doía nem um pouco e

sentia-se espantosamente forte.

Permaneceu no sofá, pois não queria pairar junto de Peter. Sinclair

já fazia isso por todos. Mas Peter parecia não se importar; Maureen teve a

impressão de que ele nem notava. Estava completamente absorto na

natureza sagrada de sua tarefa como escriba.

Tammy aparecia na sala a intervalos para verificar o progresso da

tradução, mas acabou se retirando de vez... junto com Roland. Maureen

observara-os durante o dia inteiro e chegara à conclusão de que não era

uma coincidência. Lembrou-se da noite da festa, quando ouvira a voz de

Tammy no corredor, acompanhada por uma voz de homem com sotaque.

Tammy e Roland... Havia alguma coisa acontecendo ali, e tudo indicava

que era um novo casal. Depois que a situação acalmasse, ela arrancaria

toda a história de Tammy. Queria saber a verdade sobre os

relacionamentos no Château des Pommes Bleues.

Sua atenção foi atraída subitamente para os pergaminhos

quando Sinclair exclamou:

— Meu Deus! Dê uma olhada nisso!

Ele estava parado ao lado de Peter, nervoso, observando. Peter

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escrevia depressa nos blocos, fazendo uma tradução literal das palavras

gregas. Não fazia o menor sentido, por enquanto. Precisava primeiro fazer

a transcrição, depois usaria sua experiência em línguas para colocar as

frases de uma forma lógica para o século XXI.

— O que é? — perguntou Maureen.

Peter levantou os olhos e passou a mão pelo rosto.

— Você precisa ver. Venha até aqui, se puder. Não ouso levar o

pergaminho até você no momento.

Maureen levantou-se do sofá lentamente, ainda preocupada com o

ferimento na cabeça, apesar da recuperação milagrosa. Aproximou-se da

mesa e ficou à direita de Peter, cujas anotações estavam espalhadas sobre

a mesa. Sinclair apontou para o pergaminho original, enquanto Peter

explicava:

— Isto aparece ao final de cada segmento, que chamaremos de

capítulos. Parece um lacre de cera.

Maureen olhou para o símbolo indicado por Sinclair. O padrão,

agora familiar, do anel de Maureen — nove círculos em torno de um

décimo central — havia sido aplicado no fundo da página.

— O lacre pessoal de Maria Madalena — comentou Sinclair, com

a maior reverência.

Maureen estendeu o anel para o lado da imagem. Os padrões eram

idênticos. Era como se as marcas na cera tivessem sido feitas pelo mesmo

anel.

Quando o sol se levantou sobre o Château des Pommes Bleues,

grande parte do primeiro livro, o relato em primeira pessoa da vida de

Maria Madalena, já fora traduzida. Peter trabalhava como um possesso

naquele Livro de Madalena. Sinclair tomara o chá servido. Mas, exceto por

uma pausa de dois minutos, para sorver alguns goles da bebida, Peter não

parara. Parecia muito pálido, o que deixava Maureen bastante preocupada.

— Pete, você tem de fazer uma pausa. Precisa dormir por

algumas horas.

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— Não posso. — Ele foi enfático. — Não dá para parar agora. Você

não compreende porque ainda não viu o que está aqui. Tenho de

continuar. Tenho de saber o que mais ela dirá.

Todos haviam decidido esperar até que Peter estivesse certo da

tradução antes de ler qualquer coisa. Todos respeitavam a capacidade do

padre e a enorme responsabilidade que sabiam estar depositada em

seus ombros, mas ainda assim era difícil esperar. Naquele momento,

apenas Peter conhecia o que havia nos pergaminhos.

— Não posso parar agora — reiterou ele, incisivo, os olhos

brilhando com uma febre que Maureen nunca vira antes.

— Apenas por cinco minutos. Vamos sair para que possa respirar

um pouco do ar fresco da manhã. Será bom para você. Poderá voltar

em seguida e tomaremos o café da manhã aqui mesmo, se você quiser.

— Nada de comida. Preciso jejuar até que a tradução seja

concluída. Não quero parar agora.

Sinclair podia compreender o que Peter sentia, mas também via

como ele parecia fisicamente esgotado. Tentou uma tática diferente.

— Padre Healy, tem feito um trabalho admirável, mas sua

precisão será prejudicada se estiver cansado demais. Pedirei a Roland

para vir até aqui e vigiar os documentos, enquanto você descansa.

Sinclair apertou uma campainha para chamar Roland. Peter

olhou para o rosto preocupado de Maureen.

— Está bem — admitiu ele. — Cinco minutos, só para respirar

um pouco de ar fresco.

Sinclair abriu o portão para o jardim da trindade e Maureen entrou

com Peter. Uma pomba alçou vôo do meio das roseiras, enquanto o

chafariz de Maria Madalena borbulhava ao sol da manhã. Peter falou

primeiro, a voz suave e reverente:

— O que está acontecendo, Maureen? Como chegamos aqui e nos

tornamos parte de tudo isso? É como um sonho, um milagre. Parece real

para você?

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Maureen meneou a cabeça numa resposta afirmativa:

— Parece, sim. Não sei como explicar, mas experimento uma

sensação de serenidade em tudo que está acontecendo. Como se ocorresse

de acordo com um plano. E você é parte disso tanto quanto eu, Pete. Não

é por acaso que veio comigo ou que ensina línguas antigas e pode

traduzir do grego. Tudo foi... orquestrado.

— Tenho mesmo a sensação de que estou desempenhando um

papel num plano. Só não sei ainda qual é esse papel e por que logo eu.

Maureen parou para aspirar a fragrância das rosas vermelhas

desabrochadas. Tornou a se virar para Peter:

— Há quanto tempo tudo isso está sendo preparado? Foi planejado

antes mesmo de nascermos? Até muito antes? — Seu avô tinha de

trabalhar na biblioteca de Nag Hammadi, a fim de prepará-lo para este

momento específico? Ou foi tudo planejado há dois mil anos, quando Maria

escondeu seu evangelho?

Peter ficou calado por um momento, antes de murmurar:

— Até a noite passada, eu teria uma resposta muito diferente da

que tenho agora.

— Por quê?

— Por causa de Maria e do que escreveu em seus pergaminhos. Ela

diz exatamente o que você acaba de enunciar... uma coisa

espantosa. Segundo Maria, algumas coisas estão gravadas nos desígnios

de Deus e algumas pessoas estão fadadas a desempenhar um

determinado papel. É incrível, Maureen. Estou lendo um relato de Jesus e

dos apóstolos escrito por alguém que se refere a eles em termos

humanos. Não há nada como esse... — Peter hesitou apenas por um

instante, antes de usar a palavra — ...evangelho na literatura da Igreja. Eu

me sinto indigno de traduzi-lo.

— Ao contrário, você é mais do que digno — assegurou Maureen,

enfática. — Foi escolhido para isso. Pense em toda a intervenção divina que

foi necessária para nos reunir, neste lugar e neste momento, para contar

esta história.

— Mas que história vamos contar? — Peter parecia atormentado

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e, pela primeira vez, Maureen compreendeu que ele lutava contra

poderosos demônios interiores. — Que história eu posso contar? Se esse

evangelho é mesmo autêntico...

Maureen parou abruptamente. Virou-se para fitá-lo, incrédula:

— Como pode duvidar? Depois de tudo o que aconteceu para nos

trazer até aqui?

— É agora uma questão de fé para mim, Maureen. Os

pergaminhos estão em perfeito estado de preservação, sem uma única

falha, sem qualquer palavra faltando. Os jarros nem mesmo os sujaram.

Como é possível? Só pode ser uma de duas coisas: ou uma falsificação

moderna ou um ato da vontade divina.

— Em que você realmente acredita?

— Passei vinte horas consecutivas traduzindo o mais espantoso

documento que já conheci. E muito do que estou lendo é...

essencialmente herético. Mas também apresenta uma visão de Jesus

Cristo que é bela, de uma maneira extraordinária e humana. Mas o que

eu penso não terá importância. Será preciso autenticar os

pergaminhos pelos processos mais rigorosos para que o mundo em geral

possa aceitá-los.

Ele fez uma pausa, para chegar a uma conclusão pessoal:

— Se for possível provar que são autênticos, será um desafio para

o sistema de convicções da raça humana durante os últimos dois mil

anos. E um desafio a tudo o que sempre me foi ensinado, tudo em que

sempre acreditei.

Maureen fitou o homem, seu primo e melhor amigo, por um longo

momento. Sempre o conhecera como um rochedo, um pilar de força e

absoluta integridade. Era também um homem de fé intensa e absoluta

lealdade à sua Igreja. Ela limitou-se a perguntar:

— O que pretende fazer?

— Ainda não tive tempo de pensar a respeito. Preciso saber o que

há no resto dos pergaminhos para verificar o quanto contesta... ou

confirma, assim espero... os relatos evangélicos como os conhecemos.

Ainda não alcancei a descrição de Maria sobre a crucificação... nem sobre

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a ressurreição.

Maureen compreendeu subitamente por que Peter relutava tanto

em largar os pergaminhos antes de terminar a tradução. O relato

autenticado dos acontecimentos depois da crucificação poderia ser crítico

para a fé de um terço da população do mundo. O cristianismo baseava-se

na convicção de que Jesus ressurgira dos mortos no terceiro dia. E como

Maria Madalena era a principal testemunha de sua ressurreição,

segundo os evangelhos, sua versão pessoal dos acontecimentos era vital.

Maureen aprendera, durante suas pesquisas, que os teóricos que

haviam escrito sobre Maria Madalena como esposa de Jesus também

presumiam, em sua grande maioria, que Jesus não era o Filho de Deus e

não ressuscitara dos mortos. Havia várias hipóteses de que Jesus

sobrevivera à crucificação; outra teoria comum era a de que seu corpo

físico fora retirado do sepulcro por seus seguidores. Ninguém jamais

teorizara que Jesus fora casado e também era o Filho de Deus. Por alguma

razão, essas duas circunstâncias sempre foram consideradas como

mutuamente exclusivas. Talvez fosse por isso que a existência de Maria

como a primeira apóstola sempre tivesse sido ameaçadora para a Igreja,

ao longo de toda a história.

Não podia haver a menor dúvida de que todas essas coisas haviam

passado pela mente de Peter durante as últimas horas. Ele acrescentou,

respondendo a Maureen:

— Tudo vai depender da posição que a Igreja assumir.

— E se a Igreja negar? O que você pretende fazer? Vai optar pela

instituição que é a Igreja ou pelo que sabe, no fundo de seu coração, que é

a verdade?

— Espero que essas coisas não sejam mutuamente exclusivas —

murmurou Peter, com um sorriso amargo. — Talvez eu esteja sendo

otimista demais. Mas, se por acaso acontecer, então creio que será o

momento.

— O momento para quê?

— Elige Magistrum. O momento de escolher o mestre.

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Os dois acabaram o passeio e voltaram ao castelo. Maureen

convenceu Peter a tomar pelo menos uma ducha para se revigorar, antes

de reiniciar a tradução. Ela também foi até seu quarto, a fim de lavar o

rosto e ordenar os pensamentos. A exaustão ameaçava dominá-la, mas

ainda não podia se entregar. Não até saber o que havia nos pergaminhos.

Enquanto Maureen enxugava o rosto, numa elegante toalha

vermelha, ouviu uma batida na porta. Tammy entrou, animada como

sempre.

— Bom-dia. Perdi alguma coisa?

— Ainda não. Peter vai ler para nós o texto do primeiro livro assim

que achar que a tradução está pronta. Ele diz que é espantoso, mas isso

é tudo o que eu sei.

— Onde ele está agora?

— Em seu quarto, descansando um pouco. Não queria largar os

pergaminhos, mas nós insistimos. Peter enfrenta uma situação difícil,

embora não queira admitir para ninguém. É uma tremenda

responsabilidade para ele. Talvez até um enorme sacrifício.

Tammy se sentou na beira da cama.

— Sabe o que não posso compreender? Por que incomoda tanto as

pessoas a idéia de que Jesus foi casado e teve filhos? Como isso pode

diminuir sua mensagem? Por que os cristãos se sentiriam ameaçados?

Tammy continuou a falar, com alguma veemência, pois era evidente

pensara muito a respeito:

— O que significa aquela famosa passagem do evangelho de Marcos

que é lida nas cerimônias de casamento? “Mas no começo do mundo

Deus os fez homem e mulher; por isso o homem deixará seu pai e sua

mãe e se ligará a sua mulher e os dois se tornarão uma só carne. Assim

eles não são mais dois, mas uma só carne.”

Maureen estava surpresa.

— Não imaginei que você fosse capaz de citar os evangelhos com

tanta precisão.

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Tammy piscou para ela:

— Marcos, capítulo dez, versículo seis. As pessoas sempre usam

os evangelhos contra nós para tentar diminuir a importância de Maria.

Por isso, empenhei-me em descobrir os versículos de acordo com as

nossas convicções. E é isso que Jesus prega no evangelho. Encontre uma

esposa e fique com ela. Por que pregaria algo que fosse errado para ele,

pessoalmente?

Maureen considerou a indagação de Tammy com o maior cuidado:

— Boa pergunta. Para mim, a idéia de Jesus casado parece mais

acessível.

Tammy ainda não acabara:

— E se Deus é referido como o pai, por que não deveria Cristo,

como o filho de Deus feito à sua imagem, ter filhos? Como isso influi em

sua divindade? Não consigo entender.

Maureen sacudiu a cabeça, pois não tinha a resposta para uma

questão tão importante.

— Suponho que, em última análise, seja uma questão a ser

interpretada pela Igreja e pelas pessoas, de acordo com sua fé.

No final da tarde, Peter anunciou que já completara a tradução

inicial do primeiro livro. Sinclair levantou-se.

— Está preparado para ler para nós, padre? Se estiver, eu gostaria

de chamar Roland e Tamara, pois eles também participaram de tudo.

Peter balançou a cabeça em concordância.

— Está bem. Pode chamá-los. — Ele fitou Maureen, com uma

combinação indecifrável de sombra e luz nos olhos. — Porque o momento

chegou.

Tammy e Roland desceram apressados para o escritório de

Sinclair. Com todos reunidos ao seu redor, Peter explicou que ainda

havia diversos trechos em esboço na tradução, pois precisaria de

tempo e da opinião de especialistas para chegar a um texto

definitivo. Mas, de um modo geral, fizera uma tradução objetiva,

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mostrando quem Maria realmente fora e o papel que desempenhara

na vida de Jesus.

— Ela se refere a estes pergaminhos como O livro do Grande

Tempo.

Pegando um bloco, o padre Healy começou a ler em voz baixa:

— Sou Maria, chamada Madalena, uma princesa da tribo de

Benjamim, uma filha dos nazarenos. Sou a esposa legítima de Jesus,

o Messias d'O Caminho, que era um filho da casa de Davi e descendia da

casta sacerdotal de Aarão.

Muito já se escreveu sobre nós e mais ainda se escreverá nos dias que

virão. E muitos dos que escrevem a nosso respeito não têm conhecimento da

verdade e não estavam presentes durante o Grande Tempo. As palavras

que escreverei aqui são a verdade diante de Deus. Isto é o que ocorreu

durante minha vida, durante o Grande Tempo, o Tempo das Trevas e tudo o

que virá depois.

Deixo estas palavras para as crianças do futuro, a fim de que

possam encontrá-las quando chegar o momento e conhecer a verdade

daqueles que seguiram O Caminho.

A história da vida de Maria Madalena desenrolou-se diante

deles, em todos os seus detalhes inesperados e surpreendentes.

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CAPITULO DEZESSETE

Galiléia

O Ano 26

A terra era macia e fresca entre os dedos dos pés de Maria. Ela

baixou os olhos, consciente de que as pernas à mostra estavam

completamente sujas. Não se importava, nem um pouco. Além do mais,

era apenas um dos muitos elementos impróprios de sua aparência

naquele dia. Os cabelos castanho-avermelhados lustrosos caíam soltos

até a cintura, um pouco emaranhados, enquanto a túnica descia solta,

sem cinto.

Antes, ao tentar sair da casa despercebida, fora descoberta por

Marta, que indagara, em tom de desaprovação:

— Aonde você pensa que vai desse jeito?

Maria soltou uma risada rápida, imperturbável por ter sido

interceptada em sua tentativa de fuga.

— Só vou até o jardim. E o jardim é murado. Ninguém me verá.

Marta não ficara convencida.

— É impróprio para uma mulher de sua classe e posição sair com

as roupas soltas e descalça, como uma serva.

A desaprovação de Marta era mais rotineira do que sincera. Ela já se

acostumara ao comportamento livre da jovem cunhada. Maria era uma

singular e refinada criação de Deus e Marta a mimava. Além do mais, a

jovem tinha bem poucas oportunidades de ser indulgente consigo

mesma. Sua vida era sufocada pela responsabilidade. Na maior parte do

tempo ela suportava esse fato com graça e coragem. Nos raros dias em

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que Maria tinha um momento livre para vaguear pelo jardim, seria injusto

lhe negar esse pequeno prazer.

— Seu irmão voltará antes do pôr-do-sol — lembrou Marta, com

alguma ênfase.

— Sei disso. Mas não se preocupe pois ele não me verá. E voltarei

a tempo de ajudá-la com o jantar.

A mulher mais jovem deu um beijo na face da esposa do irmão e

saiu apressada para desfrutar a privacidade do jardim. Marta observou-a

se afastar com um sorriso triste. Maria era tão pequena e delicada que

era fácil tratá-la como criança. Mas ela não era uma criança, Marta

lembrou. Era agora uma jovem em idade de se casar, uma mulher com

um senso firme de seu profundo destino.

Maria não pensava no destino ao sair para o jardim. Haveria tempo

suficiente para pensar a respeito no dia seguinte. Agora, ela erguia o

rosto para aspirar a intensa fragrância de outubro no jardim, misturada

com a brisa forte que soprava do mar da Galiléia. O monte Arbel

projetava-se a noroeste, sólido e tranqüilizador ao sol da tarde. Sempre

pensava no Arbel como sua montanha pessoal, uma elevação rochosa no

rico solo vermelho, ao lado do lugar em que nascera. E ela sentia muita

saudade. A família vinha passando mais e mais tempo em Betânia, pois a

proximidade de Jerusalém era importante para o trabalho de seu irmão.

Mas Maria adorava a beleza selvagem da Galiléia e exultara quando o

irmão anunciara que passariam o outono ali.

Aquele era o momento que tanto prezava, sozinha, cercada por

flores silvestres e oliveiras. A solidão se tornava cada vez mais rara e ela

saboreava cada segundo daquelas oportunidades roubadas. Ali, era capaz

de apreciar plenamente a beleza de Deus em paz, sem as restrições das

rigorosas normas de vestimenta e tradição, uma parte inerente à sua

posição na vida.

O irmão a encontrara ali certo dia e perguntara o que ela fazia

durante as horas em que “desaparecia”.

— Nada. Absolutamente nada.

Lázaro olhara com severidade para a irmã caçula, mas logo

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abrandara. Ficara furioso quando Maria não aparecera para a refeição da

tarde, uma ira derivada do medo. Gostava muito daquela irmã linda e

inteligente, mas também era seu guardião. A saúde e o bem-estar de

Maria eram sua maior prioridade. Devia protegê-la a qualquer custo, pois

era seu dever sagrado, com sua família, seu povo e seu Deus.

Quando a encontrara estendida na relva, os olhos fechados, imóvel,

Lázaro experimentara um momento de puro terror. Mas Maria logo se

mexera, como se tivesse sentido o seu pânico. Protegera os olhos

sonolentos do sol, para fitar o rosto irritado do irmão. Ele parecia

mesmo ameaçador.

A raiva de Lázaro se dissipara, contudo, quando a irmã lhe falara.

Ele começara a compreender, pela primeira vez, como Maria precisava

desesperadamente daquelas raras oportunidades de solidão. A única

filha da linhagem de Benjamim, seu futuro fora determinado desde a

infância. Tinha o destino privilegiado do sangue e da profecia. A irmã

teria um casamento dinástico, um casamento que fora previsto pelos

grandes profetas de Israel... um casamento que muitos acreditavam ser

nada menos do que a vontade absoluta de Deus.

Ombros tão pequenos para suportar um peso tão grande, pensara

Lázaro, enquanto a escutava. E Maria falara de uma maneira como em

geral não se permitia: franca e com emoção. O que levara o irmão a

compreender, com uma pontada de culpa, que ela sentia um medo real

por seu papel predestinado na história. Era estranho, mas ele quase

nunca pensava na irmã como totalmente humana. Era um tesouro

precioso, tinha de ser protegida e bem cuidada. Lázaro cumprira todas as

suas tarefas com absoluta diligência, de uma forma admirável. Mas

também a amava... embora só depois de conhecer sua esposa, Marta, se

permitisse compreender isso plenamente e aceitar qualquer tipo de

emoção.

Lázaro ainda era muito jovem quando o pai morrera. Talvez jovem

demais para assumir a enormidade das responsabilidades de sua

família, além das obrigações como proprietário de terras. Mas o jovem

prometera ao pai, durante os seus dias finais, que não desapontaria a

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Casa de Benjamim. Não desapontaria seu povo e não desapontaria o

Deus de Israel.

Com a intensidade de sua determinação, Lázaro enfrentara as

inúmeras responsabilidades, entre as quais a de se tornar o guardião da

irmã Maria. Ele levava uma vida de obrigação e dever. Providenciara a

educação e criação da irmã de acordo com seu nascimento, mas nunca se

permitira sentir qualquer coisa. A emoção era um luxo... e muitas vezes

um luxo perigoso.

Mas depois Deus lhe trouxera Marta.

Ela era a mais velha de três irmãs de Betânia, nascida de uma das

famílias nobres de Israel. Fora essencialmente um casamento arranjado,

embora Lázaro tivesse a oportunidade de escolher entre as três. Escolhera

Marta por razões práticas, inicialmente. Como a mais velha, era mais

equilibrada e responsável, com mais experiência na administração de

uma casa. As irmãs menores eram um tanto frívolas e mimadas, e Lázaro

se preocupara que pudessem exercer uma influência negativa sobre

Maria. Todas as três eram adoráveis, mas a beleza de Marta era mais

serena. Ela exercia um efeito tranqüilizador em Lázaro.

A união prática se transformara num grande amor. Marta abrira o

coração de Lázaro. Quando a mãe dele morrera, deixando a pequena

Maria sem uma influência maternal, Marta assumira esse papel sem

qualquer dificuldade.

Maria pensava em Marta quando parou para descansar à sombra

de sua árvore predileta. No dia seguinte, o sumo sacerdote Jônatas

Anás estaria em sua casa, a fim de iniciar os preparativos para o

casamento. Não haveria mais oportunidades de escapulir sozinha para o

jardim, durante muito tempo. Por isso Maria tinha de aproveitar ao

máximo aqueles momentos. Na verdade, chegaria o tempo, como todos

sabiam, em que teria de deixar a casa que tanto amava e viajar para o sul,

com seu futuro marido... seu marido!

Easa.

O mero pensamento do homem que era seu prometido

proporcionou a Maria um ardor intenso. Qualquer mulher invejaria sua

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posição. Mas era mais do que a posição que trazia tanta alegria a Maria;

era o próprio homem. O povo chamava-o de Yeshua, aquele filho da Casa

de Davi. Mas Maria chamava-o por um apelido da infância, Easa, para

grande consternação de seu irmão e de Marta.

— Não é apropriado chamar o líder escolhido do povo por um

apelido de criança, Maria — repreendera Lázaro, durante a última visita

de Easa.

— Ela pode — dissera a voz profunda e gentil que exigia atenção

sem qualquer esforço.

Lázaro ficara imóvel ao ouvir isso. Olhara para trás e vira Yeshua

parado ali.

— Maria me conhece desde que era pequena e sempre me chamou

de Easa. E eu não gostaria que ela mudasse.

O irmão de Maria se mostrara mortificado, até que Easa dissipara a

tensão com seu sorriso. Havia magia naquela expressão, a transformação

a que era impossível resistir. O resto da noite fora maravilhoso, com as

pessoas que Maria mais amava, reunidas em torno de Easa, desfrutando

sua sabedoria.

Deitada sob a maior de duas oliveiras, Maria mergulhou no sono, ao

sol da tarde, imagens de seu futuro marido passando por sua mente.

Quando sentiu a primeira sombra passar por seu rosto, Maria

entrou em pânico, pensando que dormira demais. Estava escurecendo! E

Lázaro ficaria furioso!

Mas quando sacudiu a cabeça para desanuviá-la, compreendeu

que ainda era meio-dia e o sol brilhava sobre o monte Arbel. Maria

levantou os olhos abruptamente para descobrir a causa da sombra que

passara por seu rosto sonhador. Soltou uma exclamação de espanto.

Ficou imobilizada pela surpresa por um instante, antes de se levantar

com toda a exuberância de uma jovem apaixonada.

— Easa! — gritou ela, a voz estridente e alegre.

Ele abriu os braços e envolveu-a num abraço apertado por um

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momento, antes de recuar para contemplar seu rosto delicado.

— Minha pombinha — murmurou ele, utilizando a expressão

que usava para ela desde menina —, como é possível que você se torne

mais bela a cada dia que passa?

— Easa! Eu não sabia que você viria. Ninguém me contou...

— Eles não sabiam. Será uma surpresa também para os outros. Mas

eu não podia permitir que fizessem os preparativos para o casamento sem

a minha participação.

Ele concentrou em Maria toda a força de seu sorriso. Ela contemplou

seu rosto por um momento, os olhos muito escuros, os malares salientes.

Era o homem mais bonito que já vira... o homem mais bonito do mundo.

— Mas meu irmão diz que não é seguro você vir até aqui agora.

— Seu irmão é um grande homem que se preocupa demais.

Deus haverá de prover e proteger.

Enquanto Easa falava, Maria olhou para baixo e compreendeu,

horrorizada, como estava desarrumada. Tinha os cabelos emaranhados,

com fragmentos de relva, até mesmo uma folha solta, o que combinava

com braços e pernas à mostra, sujos de terra. Naquele momento, não

parecia com uma futura rainha, nem mesmo remotamente. Começou a

balbuciar uma desculpa, mas Easa interrompeu-a com uma sonora

risada.

— Não se preocupe, minha pombinha. É você que eu vim ver, não

suas roupas nem suas maneiras.

Ele tirou a folha dos cabelos de Maria com um sorriso divertido. Ela

sorriu, ajeitando a túnica e limpando a terra.

— Meu irmão não pensará assim — murmurou Maria, com uma

falsa preocupação.

Lázaro era firme com ela em questões de protocolo e honra. Ficaria

consternado se soubesse que a irmã estava parada no jardim sem uma

acompanhante e vestida de maneira imprópria... e na presença de um

descendente de Davi.

— Posso cuidar de Lázaro — garantiu Easa. — Mas, apenas como

precaução, por que você não entra correndo e finge que não me viu? Sairei

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pelos fundos e voltarei ao final da tarde, para ser anunciado de forma

apropriada. Assim, nem você nem Marta terão uma surpresa.

— Então voltaremos a nos ver esta noite — murmurou Maria,

com uma súbita timidez.

Ela hesitou por um breve instante, antes de se virar e correr para

a casa.

— Finja que está surpresa! — acrescentou Easa, rindo, enquanto

observava a futura esposa correr pelo jardim, na direção da casa do

irmão.

Aquele dia e a noite subseqüente ficariam gravados na memória de

Maria pelo resto de sua vida. Foi a última vez em que se sentiria

despreocupada, jovem, apaixonada e feliz.

Jônatas Anás apareceu no dia seguinte, mas chegou com uma nova

proposta. O clima político e espiritual em Jerusalém era cada vez mais

instável e os planos haviam sido mudados, para evitar a crescente ameaça

dos romanos. Os sacerdotes haviam escolhido um novo líder, durante

uma reunião secreta em que Yeshua fora considerado impróprio para

assumir os deveres do ungido. Os membros do conselho acompanharam

Anás para apresentar as conclusões.

Maria recebera a ordem de deixar a sala, junto com Marta, mas

recusou-se a permanecer distante, enquanto seu futuro era discutido

pelos mais poderosos entre seu povo. Easa sorriu para tranqüilizá-la, mas

ela percebeu em seus olhos algo que a assustou. Incerteza. Nunca o vira

indeciso antes, mas era o que acontecia agora, deixando-a apavorada.

Contra os desejos de Marta, Maria escondeu-se no corredor, perto da

sala, para escutar a conversa.

Ouviu vozes alteadas, alguns gritos, homens falando ao mesmo

tempo que outros. Muitas vezes era difícil ouvir direito o que diziam. A voz

ríspida, alta e rouca pertencia a Jônatas Anás.

— Você mesmo causou essa situação ao se aliar aos zelotes. Os

romanos nunca nos permitirão fazer qualquer tipo de aliança com você

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por causa dos assassinos e revolucionários entre seus partidários.

Estaríamos propiciando o massacre de nosso próprio povo.

A voz calma e melodiosa que se manifestou em seguida era a de

Easa.

— Aceito todo e qualquer um que decidir me seguir e procurar o

Reino de Deus. Os zelotes reconhecem que sou descendente de Davi.

Sou o legítimo líder deles. E também o de vocês.

— Você não compreende o que temos de enfrentar — declarou

Anás. — O novo procurador romano, Pôncio Pilatos, é um bárbaro. Vai

derramar tanto sangue quanto achar necessário para silenciar nossas

demandas mais básicas. Ostenta seus estandartes pagãos em nossas

ruas, grava seus símbolos de blasfêmia em nossas moedas... tudo para

nos lembrar que somos impotentes contra isso. Não hesitaria em

eliminar qualquer um aqui se achasse que estamos apoiando a

insurgência contra Roma dentro do Templo.

— O tetrarca nos apoiará — respondeu Easa. — Talvez interfira

junto ao novo procurador.

Anás disse, desdenhoso:

— Herodes Antipas não apóia qualquer coisa que não seja sua

luxúria e prazer. E Roma faz tudo para agradá-lo. Ele só é judeu

quando isso serve a seus interesses e ambições.

— Sua esposa é uma nazarena.

O comentário foi recebido com silêncio. Easa adotara os

ensinamentos liberais do povo nazareno, do qual sua mãe era líder. Os

nazarenos não consideravam a lei da mesma maneira rigorosa dos

judeus do Templo. Entre as tradições diferentes, havia a inclusão das

mulheres em seus rituais e até mesmo seu reconhecimento como

profetisas. Também permitiam que os gentios escutassem seus

ensinamentos e participassem de seus serviços religiosos.

Embora Anás apontasse a facção zelote como a razão primária

para o conselho retirar seu apoio a Easa, todos ali sabiam que isso não

passava de uma cortina de fumaça para a verdade. Os ensinamentos de

Easa eram muito revolucionários, muito influenciados pelos nazarenos.

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Os sacerdotes do Templo não podiam controlá-lo.

Ao levantar a questão da esposa de Herodes ser nazarena, Easa

lançara um desafio aos sacerdotes do Templo. Assumiria seu papel

profetizado de Messias sem eles e ainda faria isso como um nazareno.

Era uma opção muito arriscada. Podia diminuir o poder dos sacerdotes do

Templo, mas também podia ser desfavorável a Easa, se o povo retirasse o

apoio popular a ele, em favor dos líderes tradicionais.

Mas Anás ainda não concluíra seu ataque. Sua voz ressoou

através da tensão na sala:

— Aquele que tem a noiva é o noivo.

O silêncio reinou na sala. Em seu esconderijo no corredor, Maria

ficou paralisada. Era uma alusão às profecias que celebravam a suprema

união dinástica das nobres casas de Israel. Era uma referência direta ao

noivado de Easa com Maria. Para que reinasse sobre o povo, a tradição

proclamava que o líder devia ter uma noiva também de linhagem real.

Maria, como descendente benjamita do rei Saul, tinha a mais alta

posição em Israel pelo sangue. Como tal, fora prometida a Yeshua, um

Filho do Leão de Judá, desde a infância. As tribos de Judá e Benjamim se

uniam desde os tempos antigos. O casamento das duas linhagens fora

garantido desde que Mical, filha de Saul, se casara com Davi.

Mas para governar dentro da lei, era preciso ter uma noiva

dinástica. Anás estava fazendo uma ameaça direta à união.

Foi o irmão de Maria quem falou em seguida. Lázaro era um homem

que mantinha um controle total de suas emoções, em todas as ocasiões.

Apenas os que eram muito próximos perceberiam a tensão em sua voz

ao se dirigir ao sumo sacerdote:

— Jônatas Anás, minha irmã está noiva de Yeshua por lei. Os

profetas têm comprovado que ele é o Messias de nosso povo. Não sei como

pode mos nos desviar desse curso que Deus escolheu para nós.

— Ousa me dizer o que Deus escolheu? — indagou Anás, ríspido.

No corredor, Maria ficou toda arrepiada. Lázaro era um homem

justo e ficaria mortificado por qualquer ofensa ao sumo sacerdote.

— Acreditamos que Deus escolheu outro homem — acrescentou

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Anás. — Um legítimo defensor da lei, um homem que apoiará tudo o que é

sagrado para o nosso povo, sem criar qualquer ofensa política aos

romanos.

Ali estava a verdade para quem quisesse ouvi-la. Um legítimo defensor

da lei. Era o modo de Anás indicar a Easa que não tolerariam reformas

nazarenas, apesar de sua linhagem impecável.

— E quem é esse homem? — perguntou Easa.

— João.

— O Batista? — indagou Lázaro, incrédulo.

— Ele é da família do Leão — interveio outra voz, ríspida.

Maria não a reconheceu. Era possível que fosse de um sacerdote

mais jovem, Caifás, o genro de Jônatas.

— Ele não é um Davi — argumentou Easa, sempre calmo.

— Não, não é — disse Anás. — Mas sua mãe é da linha de

sacerdotes de Aarão e seu pai dos saduceus. O povo acha que ele é

herdeiro do profeta Elias. Será o suficiente para levar o povo a segui-lo,

ainda mais se ele tiver a esposa apropriada.

O círculo fora completado. Anás estava ali para garantir o noivado de

Maria com o candidato a Messias dos sacerdotes. Era o instrumento que

todos exigiam para legitimar um novo líder.

A voz seguinte era furiosa, aos gritos. Maria jamais conhecera Tiago,

um irmão mais jovem de Easa, mas adivinhou que era ele quem berrava

agora. Aquele homem falava como Easa, mas sem o controle e serenidade

do irmão mais velho.

— Não podem escolher seu Messias como mercadorias num

bazar. Todos sabemos que Yeshua é o eleito para libertar nosso povo da

servidão. Como ousam propor um substituto apenas porque receiam por

suas posições privilegiadas?

Seguiram-se gritos, cada um querendo falar mais alto do que os

outros. Maria tentou discernir as vozes e palavras, mas tremia demais

agora para entender direito. Só sabia que tudo se relacionava com a

mudança.

A voz irritada de Anás prevaleceu sobre as outras:

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— Lázaro, como guardião dessa jovem, você pode tomar a decisão

de romper o noivado e conceder a mão da filha de Benjamim ao

candidato que escolhemos. Tudo depende de você agora. Mas quero

lembrar-lhe que seu pai era um fariseu, um leal servidor do Templo. Eu

o conheci muito bem. Ele esperaria que você fizesse o que é melhor para

o povo.

Maria podia sentir a angústia de Lázaro. Era verdade, o pai fora

dedicado ao Templo e um servidor da lei até o dia de sua morte. A mãe

fora uma nazarena, mas não faria a menor diferença para homens

assim. Lázaro jurara ao pai, no leito de morte, que defenderia a lei e

preservaria a posição da Casa de Benjamim a qualquer custo. Enfrentava

agora uma terrível opção.

— Deseja casar minha irmã com o Batista? — indagou ele,

cauteloso.

— Ele é um homem justo e um profeta — respondeu Anás. — E

depois que João for ungido como profeta, sua irmã terá a mesma

posição que teria como esposa desse homem.

— João é um eremita, um asceta — interveio Easa. — Não tem o

menor desejo ou necessidade de uma esposa. Prefere viver em isolamento,

por que acha que assim pode ouvir a voz de Deus. Acabaria com sua

solidão e suas boas obras ao impor-lhe um casamento, com todas as

obrigações que isso acarreta, nos termos da lei?

— Não — declarou Anás. — Não obrigaríamos João a fazer

qualquer coisa. Ele se casará com a jovem para confirmar sua

posição como Messias perante o povo. Depois da cerimônia, ela

continuará a viver na casa de sua família e João poderá voltar às suas

pregações. Ela desempenhará os deveres de acordo com a lei. João fará a

mesma coisa.

Maria escutava, rezando para que o enjôo no fundo do estômago

não a dominasse, para não ter de revelar seu esconderijo. Sabia que

“deveres de acordo com a lei” significavam a procriação, ter filhos com...

João, o asceta. Já era bastante terrível que aqueles homens tentassem

despojá-la da maior felicidade com que já sonhara, que era o casamento

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com Easa. Ainda por cima, tentavam tirar de Easa sua posição.

E havia também a perspectiva do próprio Batista. Maria nunca vira

o homem, que pregava nas margens do rio Jordão, mas ele era lendário

entre o povo. Era um primo mais velho de Easa, mas os dois eram muitos

diferentes no temperamento. Easa reverenciava João, falava a seu respeito

com freqüência, como um grande servidor de Deus, um homem sincero

e justo. Mas Easa também conhecia os limites de João. Explicara isso para

Maria um dia, quando ela perguntara sobre o arrebatado pregador que

batizava com água. João rejeitava as mulheres, os gentios, os aleijados

ou quaisquer outros que considerasse impuros. Easa, por sua vez,

acreditava que a palavra de Deus pertencia a todas as pessoas que

quisessem ouvi-la. Não era uma mensagem para a elite, explicara Easa.

Era uma mensagem de boas novas para todos. Essas divergências haviam

sido a causa das discussões entre Easa e João.

João passara muito tempo nas praias áridas do mar Morto depois

que os pais morreram. Vivera ali com os essênios de Qumran, uma seita

rigorosa de ascetas, de onde ele tirara muitas de suas observâncias

estritas. A seita de Qumran vivia em condições difíceis e desdenhava

“aqueles que procuravam coisas fáceis”. Falavam de um Mestre da Justiça,

que traria o arrependimento e a total adesão à lei.

Easa também passara algum tempo entre os essênios, e explicara

seus costumes a Maria. Respeitava a devoção dos essênios a Deus e à lei e

enaltecia seus atos generosos e caridosos. Contava com muitos essênios

entre seus companheiros mais íntimos ao longo da vida e muitas vezes

se retirava para a solidão absoluta de Qumran, para períodos de

meditação. Mas, enquanto João adotara as observâncias mais rigorosas

dos essênios, Easa rejeitara muitas de suas convicções como exageradas

demais, implicando um julgamento.

Easa também contara para Maria outros detalhes sobre João, como

a estranha dieta que ele adotara em Qumran, de gafanhotos e mel, além

das roupas exóticas, feitas de peles de animais e pêlos de camelo, que

coçavam e arranhavam a pele. Explicara como o primo, conhecido como

Batista, optava por viver no deserto, direto sob o céu, onde se sentia mais

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próximo de Deus. Não era uma existência apropriada para uma mulher

nobre ou uma criança. E não era certamente o que Maria Madalena

esperava para sua vida.

Tudo dependia de Lázaro agora, pensou Maria, desolada. Os homens

discutiam de novo na sala, enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto de

Maria. Não podia mais distinguir uma voz de outra. Que voz era de

Lázaro e o que ele dizia? O irmão amava e respeitava Easa, como um

homem e um descendente de Davi, embora nunca tivesse aceitado as

reformas d'O Caminho dos nazarenos. Lázaro era um tradicionalista. O

pai fora um fariseu e sempre dera um forte apoio financeiro ao Templo em

Jerusalém.

Jônatas Anás forçava-o a fazer uma opção angustiante: se apoiasse

Easa, o legítimo rei e herdeiro de todas as profecias, seria banido do

Templo. Isso estava implícito nas palavras do sumo sacerdote. Assim,

Lázaro não teria alternativa que não se aliar aos nazarenos, aceitando

um credo reformista em que não acreditava.

Os mais moderados entre o povo, como Lázaro, haviam se mostrado

contentes por Easa ser aceito tanto pelas nazarenos quanto pelos

sacerdotes do Templo. Mas aquilo era a véspera de um cisma terrível,

uma total separação das duas partes, o que criaria hostilidade entre as

grandes famílias dinásticas de Israel, provocando uma amarga rivalidade.

Exigiria uma opção que seria angustiante para muitas pessoas.

Naquele momento, porém, Maria só estava preocupada com uma

única opção a ser feita ali.

A decisão de Lázaro, de apoiar os sacerdotes do Templo, causaria

muito mais do que a destruição dos sonhos de Maria, obrigando-a a um

casamento detestável. Mudaria o curso da história, de uma forma

indelével, pelos séculos futuros.

Easa fez um acordo com Lázaro naquela noite: queria dar a notícia

pessoalmente a Maria. Lázaro concordou, provavelmente com um

profundo alívio. Maria foi levada a uma sala para se encontrar com o

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homem que sempre acreditara que seria seu marido.

Quando viu o seu corpo trêmulo e o rosto molhado pelas lágrimas,

Easa compreendeu que ela já sabia. E quando viu a tristeza nos olhos de

Easa, Maria soube que seu destino estava selado. Jogou-se nos braços

dele e chorou até que não lhe restassem mais lágrimas.

— Mas por quê? — indagou ela. — Por que você tinha de concordar?

Por que deixou que tirassem o reino que é seu?

Easa afagou seus cabelos para acalmá-la. Sorriu à sua maneira

tranqüilizadora.

— Talvez meu reino não seja deste mundo, pombinha.

Maria sacudia a cabeça; não podia compreender. Easa continuou a

explicar:

— Meu trabalho é ensinar O Caminho, Maria, mostrar às pessoas

que o Reino de Deus está à mão, que temos o poder para nos libertar,

aqui e agora, de toda e qualquer opressão. Não preciso de uma coroa ou

um reino deste mundo para fazer isso. Preciso apenas alcançar tantas

pessoas quanto puder para partilhar a palavra de Deus sobre O

Caminho.

Ele fez uma pausa, sorrindo:

— Sempre pensei que herdaria o trono de Davi e que você se

sentaria ao meu lado. Mas se isso não acontecer, devemos nos submeter

à vontade de Deus.

Maria considerou suas palavras, fazendo um esforço para ser

corajosa e aceitar. Fora criada para isso; era por isso que recebera o nome

de Maria, um título reservado para as filhas de famílias nobres, dentro da

tradição nazarena. Também fora instruída por mulheres nazarenas,

tendo à frente a mãe de Easa. A Grande Maria assumira sua educação

quando ainda era jovem, a fim de prepará-la para a vida com o Filho de

Davi, mas também para dar lições espirituais sobre o credo reformista

Depois que casasse com Easa, Maria Madalena passaria a usar o véu

vermelho da sacerdotisa nazarena, o mesmo véu vermelho usado pela

Grande Maria.

Agora, porém, isso não mais aconteceria.

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Maria não podia suportar a perda e começou a chorar outra vez. Ao

fazê-lo, um pensamento terrível aflorou em sua mente. E um soluço

sacudiu todo o seu corpo.

— Easa... — balbuciou ela, com medo de fazer a pergunta.

— O que é?

— Com quem... com quem você vai se casar agora?

Easa fitou-a com tanta ternura que Maria pensou que seu coração

ia explodir. Pegou as mãos de Maria e disse, a voz suave, mas firme:

— Lembra o que minha mãe disse na última vez em que você

esteve em nossa casa?

Maria meneou a cabeça, sorrindo através das lágrimas.

— Nunca esquecerei. Ela me disse: “Deus fez de você a

companheira perfeita para meu filho. Vocês dois se tornarão uma só

carne. Não haverá mais duas pessoas, mas apenas uma. E o que Deus

uniu nenhum homem pode separar.”

— Isso mesmo. Minha mãe é a mais sábia das mulheres e uma

grande profetisa. Percebeu que você foi feita para mim por Deus. Se Deus

decidiu em seus desígnios que não terei você, então não terei nenhuma

outra.

O alívio envolveu Maria. Dentre todas as coisas que não podia

suportar, outra mulher ao lado de Easa era a mais inconcebível. E nesse

instante outra realidade ocorreu-lhe, com uma força surpreendente:

— Mas... se devo ser a esposa de João... ele nunca permitirá que eu

me torne uma sacerdotisa nazarena.

O rosto de Easa era muito sério quando ele respondeu:

— Não, Maria. João exigirá que você mantenha a mais estrita

observância da lei. Ele despreza as reformas de nosso povo e pode ser

muito rigoroso com você, impondo uma severa penitência. Mas lembre o

que eu disse e que minha mãe também ensinou. O Reino de Deus está em

seu coração e nenhum opressor... nem os romanos, nem mesmo João...

pode tirá-lo de você.

Ele ergueu o queixo de Maria e fitou seus olhos castanho-dourados,

enquanto acrescentava:

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— Escute com toda a atenção, minha pombinha. Devemos seguir

o nosso curso em graça e fazer tudo o que é certo para os filhos de Israel.

Isso significa que não posso no momento me opor a Jônatas Anás e ao

Templo. Manterei essa decisão para que o ensinamento d'O Caminho

possa continuar em paz, crescer por toda a terra. Concordei com duas

coisas, como demonstração de meu apoio. Comparecerei a seu casamento

com João em companhia de minha mãe e permitirei que João me batize

em público, para indicar que reconheço sua autoridade espiritual.

Maria balançou a cabeça, solene. Seguiria pelo curso que se

estendia à sua frente, pois era sua responsabilidade como uma filha de

Israel. As palavras de amor e força de Easa serviriam para ampará-la.

Ele beijou de leve a cabeça de Maria, para depois se despedir.

— Você é muito forte para uma mulher tão pequena. Sempre

percebi essa força em você. Será um dia líder de nosso povo.

Easa parou na porta para fitá-la pela última vez e deixá-la com um

pensamento final. Levou a mão ao coração, enquanto murmurava:

— Sempre estarei com você.

João Batista não podia ser manipulado com a facilidade que Jônatas

Anás e seu conselho haviam previsto.

Quando o procuraram e apresentaram a proposta, João censurou-

os por sua falta de integridade e chamou-os de víboras. Lembrou que já

havia um Messias, seu primo Yeshua, um profeta escolhido por Deus, e

ressaltou que ele, João, não era digno de ocupar essa posição. Os

sacerdotes argumentaram que o povo chamava João de maior profeta, o

herdeiro de Elias. Mas João declarou:

— Não sou nenhuma dessas coisas.

— Então nos diga o que você é, para que possamos avisar o povo

de Israel, que o seguiria como um profeta e um rei.

João respondeu à sua maneira enigmática:

— Eu sou a voz no deserto.

Ele mandou os fariseus embora. Mas o jovem e astuto sacerdote

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Caifás entendera o estranho pronunciamento de João, “Eu sou a voz no

deserto”, como uma referência ao profeta Isaías. João estaria mesmo se

anunciando como um profeta, através de um labirinto das escrituras?

Estaria testando os sacerdotes de alguma forma?

Os enviados dos sacerdotes voltaram no dia seguinte e desta vez

solicitaram o batismo a João. Ele insistiu que se arrependessem de todos

os pecados, antes de sequer considerar o pedido. Isso irritou os

sacerdotes mas eles sabiam que deviam jogar de acordo com as regras de

João ou se arriscariam a perdê-lo... e ele era a chave para sua estratégia.

Receber o batismo de João fortaleceria a posição dos sacerdotes entre a

multidão que o considerava um profeta. Era justamente esse o objetivo.

Depois que os sacerdotes proclamaram seu arrependimento, João

submergiu-os no Jordão. Mas ressaltou:

— Eu os batizarei com água, mas aquele que vier depois será

mais poderoso do que eu aos olhos de Deus.

Os sacerdotes permaneceram com João durante aquele dia e

relataram seu plano, depois que a maior parte da multidão na margem

do rio se dispersou. João não queria participar. Opunha-se a tomar uma

esposa, ainda mais sendo uma mulher que fora noiva de seu primo. Mas

o conselho estava preparado para suas objeções. Havia considerado

todas as possibilidades com o maior cuidado, por causa da veemência de

João no dia anterior. Falaram de Lázaro, um homem justo e nobre da

Casa de Benjamim, e como esse bom homem temia que sua devota irmã

casasse dentro da influência nazarena.

O Batista teve um sobressalto ante tal revelação. Essa noção era a

fraqueza de João. Embora aceitasse as profecias de que Yeshua fosse o

eleito, sentia uma preocupação crescente com o fato do primo caminhar

com os nazarenos e de seu clamoroso desrespeito à lei. Mas João

dispensou os sacerdotes, dando a conversa por encerrada.

Os sacerdotes partiram sem ter obtido qualquer alteração na

determinação de João.

Mais tarde, ainda naquele dia, Easa apareceu na margem oriental

do Jordão para cumprir a promessa que fizera a Anás. Uma grande

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multidão de seguidores acompanhava Easa. O encontro entre os dois

homens tão celebrados atraiu incontáveis pessoas para as margens do rio.

João estendeu a mão para deter a aproximação de Easa.

— Veio à minha procura para o batismo? Talvez eu precise ser

batizado por você, já que é o eleito de Deus.

Easa sorriu:

— Primo, é assim que deve ser agora. Cabe a nós fazer o que é

certo.

João moveu a cabeça em concordância, não demonstrando

surpresa ou qualquer outra emoção diante da declaração de aceitação de

Easa. Era a primeira vez que os dois se encontravam desde que Jônatas

Anás iniciara suas manipulações, a primeira oportunidade de

avaliarem um ao outro. O Batista afastou Easa da multidão e falou com

todo o cuidado, para determinar a perspectiva do primo.

— Aquele que tem a noiva é o noivo.

Easa não deixou transparecer qualquer reação às palavras de

João. Limitou-se a acenar com a cabeça em concordância com a

disposição. João acrescentou:

— Mas o amigo do noivo que se aproxima e ouve o que ele tem a

dizer, regozija-se com suas palavras. Posso sentir alegria por isso, por sua

dádiva altruísta, se é verdade que dá por sua livre e espontânea vontade.

Easa tornou a balançar a cabeça positivamente:

— Estarei realizado em ser o amigo do noivo. Devo decrescer para

que você possa crescer. Que assim seja.

Era um jogo de palavras, uma espécie de dança, entre dois grandes

profetas, cada um verificando a posição política do outro. Convencido de

que o primo concordara pacificamente em renunciar à sua posição, além

de ceder a noiva, João virou-se para as multidões reunidas nas margens

do Jordão. Fez um pronunciamento para o povo, antes de pedir que Easa

se adiantasse:

— Depois de mim virá este homem, que é preferido à minha

frente... porque ele foi escolhido antes de mim.

Easa foi submergido no rio, enquanto as palavras de João

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ressoavam. Haviam sido escolhidas com todo o cuidado, indicando que se

João assumisse o lugar do Messias, então Yeshua seria o herdeiro do trono,

se alguma coisa lhe acontecesse. “Ele foi escolhido antes de mim” era uma

clara indicação de que João ainda reconhecia as profecias do nascimento

de Yeshua. A formulação protegeria João entre os moderados que o

apoiavam e temiam as reformas nazarenas, embora ainda

homenageassem Easa como a criança das profecias. As primeiras

palavras, “depois de mim virá este homem”, eram uma indicação de que

João considerava assumir o papel do ungido. João, o pregador do deserto,

com suas roupas extravagantes e estilo fervoroso, talvez fosse um homem

fácil de subestimar. Mas suas ações e palavras na margem do rio Jordão,

naquele dia, indicavam que era um político muito mais astuto do que

muitos imaginavam.

Quando Easa saiu da água, a multidão aclamou os dois grandes

homens, parentes e profetas, tocados por Deus. Mas depois houve

silêncio no vale, enquanto uma única pomba branca descia do céu e

voava graciosa sobre a cabeça de Easa, o Leão de Davi. Um momento que

seria lembrado pelos habitantes do vale do Jordão e além, por tanto

tempo quanto o mundo durasse.

Caifás voltou ao rio Jordão no dia seguinte, com seu contingente de

fariseus. Planejara sua estratégia em relação a João com todo o cuidado.

O batismo de Yeshua no dia anterior não servira ao propósito que ele e

Anás queriam. Acreditavam que Easa, ao se submeter ao batismo,

reconheceria publicamente a autoridade de João. Em vez disso, o evento

servira para lembrar às pessoas que o agitador nazareno era o eleito das

profecias. Agora, mais do que nunca, os fariseus tinham de reduzir o

impacto da idéia de Yeshua como o Messias. A única maneira de fazer isso

era transferir o título de Messias para outro, tão depressa quanto

possível... e o único candidato aceitável era João.

Mas João estava perturbado pelo sinal da pomba. O fato de ter

surgido no céu logo depois do batismo não provava que Easa era o eleito

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de Deus? João vacilava, querendo voltar a apoiar a posição do primo.

Caifás, um aluno aplicado do sogro Anás, estava preparado para essa

possibilidade. Tratou de desfechar logo o ataque:

— Seu primo nazareno esteve hoje com os leprosos — informou ele.

João ficou espantado. Não havia nada mais impuro do que aqueles

miseráveis, que haviam sido abandonados por Deus. E era inconcebível

que o primo fosse se encontrar com aquelas criaturas depois do batismo.

— Tem certeza de que isso é verdade?

Caifás inclinou a cabeça, solene.

— É, sim. Lamento informar que Yeshua esteve no lugar mais

impuro esta manhã. Disseram-me que ele pregou as palavras do Reino

de Deus para eles. Até permitiu que o tocassem.

João estava espantado por Yeshua ter caído tanto, tão depressa.

Sabia muito bem que os nazarenos haviam exercido uma influência

profunda sobre o primo. A mãe de Yeshua não era uma Maria e líder

daquele grupo? Mas era uma mulher e tinha pouca importância, exceto

por sua grande influência sobre o filho. Mas se Yeshua mergulhava no

mundo dos impuros, menos de um dia completo depois do batismo, talvez

Deus tivesse lhe virado as costas.

E havia que pensar na mulher, aquela filha de Benjamim. João

sentia-se profundamente perturbado por ela se chamar Maria... um nome

nazareno, indicando que a mulher fora educada em suas tradições

impróprias.

Mas a profecia em torno da mulher tinha de ser considerada com

toda a seriedade, pelo bem do povo. Acreditava-se que ela era a Filha de

Sião, como estava descrito no livro do profeta Miquéias. A passagem

referia-se a Migdal-Eder, a Torre do Rebanho, uma pastora que levaria o

povo: E tu, torre do rebanho, alto da filha de Sião, a ti voltará a soberania

de outrora, a realeza que compete à filha de Jerusalém.

Se Maria era mesmo a mulher profetizada, João tinha a obrigação

de cuidar para que ela permanecesse no caminho dos justos. Caifás

assegurava que a mulher era bastante jovem para ser instruída como

João julgasse mais conveniente, nos mais tradicionais cursos da lei. O

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irmão até lhe suplicava para que fizesse isso antes que fosse tarde demais.

O noivado daquela jovem da Casa de Benjamim com Yeshua fora rompido

por causa de suas inclinações nazarenas. O que era perfeitamente

aceitável dentro da lei. O próprio sumo sacerdote, Jônatas Anás, não

escrevera o documento de dissolução do compromisso?

Mais importante ainda, Yeshua e seus seguidores nazarenos não

haviam protestado contra essa decisão. Além disso, prometeram que

apoiariam João em sua posição de ungido. Yeshua até concordara em

comparecer à festa de casamento, como demonstração de seu apoio. Não

havia nada naquela proposta que merecesse objeção. Se João casasse com

a benjamita e se tornasse o ungido, seus números de batismo seriam

multiplicados por dez. Alcançaria muito mais pecadores e mostraria o

caminho do arrependimento. Ele se tornaria o Mestre da Justiça das

profecias de seus ancestrais.

Com a oportunidade de converter mais pecadores e ensinar o

caminho da penitência a mais filhos de Israel, João concordou em casar

com a benjamita e assumir o lugar que lhe era devido na história de seu

povo.

O casamento de Maria, a filha da casa de Benjamim, com João

Batista da linhagem sacerdotal de Aarão e Sadoq, ocorreu na colina de

Caná, na Galiléia. Contou com a presença de nobres, nazarenos e

fariseus. Como prometido, Easa compareceu com a mãe, seus irmãos e

um grupo de discípulos.

A devota mãe de João, Isabel, era prima da mãe de Easa, Maria.

Mas, por ocasião do casamento do filho, tanto Isabel quanto o marido

Zacarias estavam mortos havia alguns anos. Não havia parentes

imediatos para tomar as providências para a celebração, e João não

conhecia nem se preocupava com o protocolo. Quando a Grande Maria

observou que os convidados não recebiam a devida atenção, assumiu o

comando das comemorações, como a mulher mais velha da família de

João. Foi para o lugar em que o filho sentava, com vários seguidores, e

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disse:

— Não há mais vinho para a festa do casamento.

— O que isso tem a ver comigo? — perguntou Easa. — Não é o

meu casamento. Não seria apropriado que eu interferisse.

A Maria mais velha disse ao filho que discordava de sua posição.

Primeiro, ela sentia-se na obrigação de providenciar tudo o que fosse

necessário para que a festa de casamento corresse bem, em memória de

Isabel. Mas, além disso, Maria era uma sábia mulher, que conhecia o

povo e as profecias. Aquele seria um momento oportuno para lembrar

aos nobres e sacerdotes ali reunidos a posição singular de seu filho na

comunidade. Easa concordou, com alguma relutância. Maria chamou os

servos e deu instruções:

— Qualquer coisa que ele pedir façam sem questionar.

Os servos esperaram pelas ordens de Easa. Depois de um

momento, ele mandou que trouxessem seis enormes jarros, cheios de

água até a borda. Os servos assim o fizeram, pondo na sua frente os

jarros de barro. Easa fechou os olhos e disse uma oração, passando as

mãos em cada um dos jarros. Quando acabou, disse aos servos para

tirarem um pouco do líquido dos jarros. Uma mulher foi a primeira a fazê-

lo... e largou a caneca, surpresa. Os jarros não continham mais água. Um

vinho tinto suave substituíra a água.

Easa instruiu um servo para levar uma taça de vinho a Caifás, que

presidia a cerimônia. Caifás ergueu o copo para João, o noivo, e elogiou-o

pela qualidade do vinho.

— A maioria serve o melhor vinho no início da festa e deixa o vinho

de qualidade inferior para o final, quando poucos notam a diferença —

comentou Caifás. — Mas você guardou o melhor vinho para o final.

João fitou Caifás sem entender. Nem ele nem o sacerdote tinham a

menor idéia do que acontecera. A única indicação de que havia alguma

coisa fora do normal foram os murmúrios de uns poucos servos e os

comentários de alguns discípulos nazarenos. Mas não demoraria muito

para que todos na Galiléia soubessem exatamente o que acontecera no

lamentável casamento em Caná.

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Depois do casamento de João e Maria, ninguém mais falava sobre

os recém-casados. A fusão dinástica fora ofuscada por algo muito mais

extraordinário. Os comentários de todos eram sobre a milagrosa

transformação de água em vinho pelo profeta mais jovem. Na região do

norte da Galiléia, o nome de Yeshua estava na boca de todos. Era

considerado o único Messias, independentemente das manipulações do

Templo.

O poder e popularidade de João estendiam-se para o sul, das

margens do Jordão, perto de Jericó, através de Jerusalém, continuando

pelas áreas de deserto do mar Morto. Estimulados pelos sacerdotes do

Templo, os seguidores de João aumentavam mais e mais, até que as

margens do rio transbordavam de pessoas querendo ser batizadas. A

insistência de João para que esses homens aderissem à lei, em suas

normas mais rigorosas, aumentou o número de sacrifícios... e, com isso,

encheu os cofres do Templo. Todos estavam satisfeitos com o resultado

do arranjo.

Isto é, todos menos Maria Madalena, que agora era casada com o

Batista.

Talvez fosse uma bênção o fato da união não ser desejada nem por

um nem pelo outro. João queria apenas permanecer no deserto e realizar

a obra de Deus. Respeitaria a lei, que exigia que o homem fosse fértil e se

multiplicasse, e visitaria a esposa nos momentos apropriados por razões

de procriação. Mas fora desses períodos, expressamente determinados

pela lei e pela tradição, ele não tinha o menor interesse na companhia de

qualquer mulher.

Providenciar um lugar para Maria viver era uma das primeiras

obrigações do recém-casado João. Ele não fez segredo que a esposa não

seria bem-vinda nas proximidades de seu ministério. Os essênios de

Qumran não permitiam que as mulheres vivessem com eles. Preferiam

exilá-las em habitações separadas, porque eram naturalmente impuras.

E a situação era problemática porque a mãe de João já morrera. Se Isabel

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fosse viva, Maria passaria a viver com a sogra.

O problema foi tratado por João e Lázaro antes do casamento, e

Maria conseguiu fazer com que o irmão propusesse o que ela desejava

Lázaro insistiu que a irmã continuasse a viver com ele e Marta, nas

propriedades da família, em Magdala e Betânia. Isso proporcionaria uma

constante companhia a Maria, com a presença de um homem e uma

mulher devotados à lei. E Betânia ficava a pouca distância de Jericó, para

as raras ocasiões em que João deveria visitar a esposa.

Era uma solução apropriada e fácil para João, que tinha pouco

interesse nas atividades de Maria, a não ser pela garantia de que ela se

comportasse como uma mulher devota e arrependida em todas as

ocasiões. Se aquela mulher deveria ser a mãe de seu filho, tinha de ser

acima de qualquer censura. Maria assegurou a João que em sua ausência

obedeceria ao irmão, como sempre fizera. Tentou não deixar

transparecer sua alegria quando foi decidido o acordo para que

continuasse a viver com Lázaro e Marta.

O prazer de Maria, no entanto, teve curta duração, pois João

impôs o cumprimento do resto de suas determinações. Não queria que

Maria fosse exposta aos ensinamentos nazarenos. Não permitia que ela

fosse à casa da Grande Maria, sua mais reverenciada mestra e amiga. E

não admitia que ela se apresentasse em público em qualquer lugar em

que Easa estivesse falando. João andava irritado porque alguns de seus

discípulos haviam deixado as margens do Jordão para seguir o primo.

O Batista condenava-os por se tornarem nazarenos e dizia que eram

“aqueles que procuravam coisas fáceis”. Pouco a pouco, aumentava a

rivalidade entre os diferentes ministérios do nazareno Easa e do asceta

Batista. João não seria envergonhado pela esposa; ela nunca deveria ficar

na presença de nazarenos. E João arrancou uma promessa solene de

Lázaro.

Jovem, ingênua e nunca exposta a qualquer outra coisa que não

amor e aceitação, Maria tentou argumentar com João. Mas recebeu as

primeiras agressões do marido ao protestar. A mão de João deixou uma

marca no rosto de Maria pelo resto do dia, como um firme lembrete de

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que não deveria contestar o marido em questões de obediência. O Batista

abandonou a esposa na casa do irmão em Magdala naquele mesmo dia,

sem sequer se despedir.

Maria temia as visitas de João e sentia-se grata porque só ocorriam

raramente, a longos intervalos. João só aparecia em Betânia quando

se encontrava nas proximidades, para seus próprios propósitos, quase

sempre ao viajar do santuário à beira do rio para Jerusalém. Perguntava

pela saúde de Maria, formalmente, e, quando era apropriado, nos termos

da lei, desempenhava os deveres de marido. Durante essas visitas, João

passava algum tempo instruindo Maria sobre a lei e determinando

tarefas penitentes, ao mesmo tempo em que alegava que o Reino de

Deus estava à mão.

Como uma mulher da Casa de Benjamim, Maria sabia que era

inadmissível comparar seu marido com outro homem, mas ela não podia

evitar. Seus dias e noites eram povoados por pensamentos de Easa e tudo

o que ele lhe ensinara. Surpreendia-a que tanto Easa quanto João

pregassem a mesma coisa — que o Reino de Deus se aproximava —,

porque o significado era muito diferente para cada profeta. No caso de

João, era uma mensagem sinistra e ameaçadora, uma terrível advertência

de terror para os ímpios. No caso de Easa, era uma bela oportunidade

para todos que abrissem o coração a Deus.

Quando soube que Easa viria para Betânia, com a mãe e um grupo

de seguidores nazarenos, Maria sentiu a alegria retornar a seu coração,

durante muitos e muitos dias.

— Eles não ficarão aqui. E você não pode visitá-los, Maria. Seu

marido proibiu.

Lázaro assumiu uma expressão firme contra as súplicas da irmã.

— Como pode fazer isso comigo? São meus amigos mais antigos... e

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alguns são seus amigos também. Os pescadores, Pedro e André,

brincaram conosco em Cafarnaum e nas praias da Galiléia. Como pode

lhes recusar a hospitalidade?

A tensão da decisão era evidente no rosto do irmão de Maria

Afastar-se de seus amigos de infância, além de Easa e da Grande Maria

descendentes reverenciados de Davi, fora uma decisão angustiante. Mas

Lázaro tinha ordens do sumo sacerdote para não hospedar a facção

nazarena em sua passagem por Betânia, a caminho de Jerusalém. Além

disso o marido de sua irmã dera instruções expressas para que ela não

fosse exposta a ensinamentos nazarenos. Lázaro tinha de cumprir a

promessa de manter a devoção de Maria dentro dos limites

determinados pelo marido.

— Faço isso em seu benefício, irmã.

— E me casou com o Batista em meu benefício?

Maria não esperou pela resposta, nem para ver a expressão

chocada de Lázaro. Atravessou a casa, furiosa, e saiu para o jardim, onde

se permitiu chorar.

— Ele faz realmente o que é melhor para você.

Maria não ouvira Marta segui-la, pois estava absorta demais em seu

sofrimento para prestar atenção. Por mais que amasse Marta, no entanto,

não queria ouvir mais preleções sobre obediência. Maria começou a falar,

mas Marta interrompeu-a:

— Não estou aqui para repreendê-la, mas sim para ajudá-la.

Maria fitou-a, cautelosa. Nunca soubera de qualquer ocasião em

que Marta ficasse contra o desejo do marido ou se opusesse a ele de

qualquer forma. Mas Marta irradiava uma força suave e Maria percebeu

essa força na expressão da cunhada naquele momento.

— Maria, você é como minha irmã... em alguns aspectos, como

minha própria filha. Não posso suportar o sofrimento pelo qual passou

durante o último ano. E me orgulho de você, assim como seu irmão. Sei

que ele não lhe diz isso, mas me fala a respeito com freqüência. Você

cumpriu seu dever como uma filha nobre de Israel e sempre manteve a

cabeça erguida.

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Maria enxugou as lágrimas, enquanto Marta acrescentava:

— Lázaro irá a Jerusalém a trabalho. Não voltará antes da noite

de amanhã. Os nazarenos estarão aqui em Betânia para uma reunião

na casa de Simão.

Os olhos de Maria foram se arregalando enquanto ela ouvia. Seria

mesmo a devota e obediente Marta quem expunha um plano de

subterfúgio?

— A casa de Simão... aquela casa?

Maria apontou para a casa, que era visível do jardim. Marta

confirmou com um meneio de cabeça.

— Se você for bastante cuidadosa e discreta, olharei para o outro

lado se decidir visitar seus amigos mais antigos.

Maria abraçou a cunhada, exclamando:

— Eu amo você!

— Fale baixo! — Marta desvencilhou-se do abraço de Maria. Olhou

ao redor, para ter certeza de que não eram observadas. — Se Lázaro for

falar com você antes de partir para Jerusalém, deve se mostrar furiosa. Ele

não pode desconfiar de qualquer coisa ou nós duas estaremos metidas

em apuros.

Maria balançou a cabeça, solene, fazendo um esforço para não

sorrir. Marta voltou apressada para a casa, a fim de se despedir de Lázaro,

deixando Maria a dançar entre as oliveiras.

Maria aproximou-se da casa de Simão por um caminho lateral, os

cabelos castanho-avermelhados, tão fáceis de reconhecer, cobertos por um

de seus véus mais grossos. Disse a palavra de admissão e deixaram-na

entrar no mesmo instante. Ela exultou ao ver diversos rostos familiares.

Correu os olhos pela sala, mas não encontrou o mais importante e

amado. Easa ainda não chegara com a mãe. Mas teve pouco tempo para

pensar a respeito, pois foi surpreendida por uma voz de mulher, às

suas costas, dizendo seu nome.

Maria virou-se para deparar com o sorriso exuberante de Salomé,

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filha de Herodíades e enteada do tetrarca da Galiléia, Herodes. Maria

soltou um grito de alegria ao reconhecê-la, já que as duas haviam sido

instruídas pela Grande Maria. Abraçaram-se felizes, com um profundo

afeto.

— O que está fazendo tão longe de casa? — perguntou Maria.

— Minha mãe me deu permissão para seguir Easa e continuar o

aprendizado, para poder assumir os sete véus.

Os sete véus só eram usados pelas mulheres que haviam passado

pelo aprendizado para alta sacerdotisa.

— Herodes Antipas faz tudo o que minha mãe quer e ainda por

cima é simpático aos nazarenos — acrescentou Salomé. — Ele só

detesta o Batista.

Salomé tapou a boca no exato momento em que as palavras foram

pronunciadas. Parecia mortificada.

— Desculpe. Eu havia esquecido.

Maria deu um sorriso triste.

— Não precisa se desculpar, Salomé. Às vezes eu também esqueço.

Salomé assumiu uma expressão compadecida.

— É horrível para você?

Maria balançou a cabeça. Amava Salomé como uma irmã e as duas

até se tratavam assim, o que era tradicional para as sacerdotisas

nazarenas. Mas Maria ainda era uma princesa e fora instruída a se

comportar como tal. Não falaria mal do marido para ninguém.

— Não, não é horrível. Quase nunca vejo João.

Salomé falou depressa, como se sentisse uma imensa necessidade

de corrigir sua gafe.

— Espero não a ter ofendido, irmã. Mas acontece que o Batista diz

coisas terríveis sobre minha mãe. Ele a chama de prostituta e adúltera.

Maria já ouvira todas essas coisas. A mãe de Salomé, Herodíades, era

neta de Herodes, O Grande, e herdara algumas das características mais

voluntariosas do infame rei. Descartara o primeiro marido para se casar

com Herodes Antipas, que reinava sobre a Galiléia. O tetrarca fizera a

mesma coisa, divorciando-se da esposa árabe para casar com Herodíades.

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João ficara indignado por um monarca judeu demonstrar um desrespeito

tão clamoroso pela lei. Denunciara abertamente o casamento de

Herodes Antipas com Herodíades como adultério. Até então, Herodes

apenas manifestara sua irritação, mas demonstrara pouco interesse em

efetuar uma ação real contra João pedindo sua condenação. Como

tetrarca da Galiléia, ele já tinha o suficiente com que se ocupar, lidando

com os caprichos de um César e as exigências daquele difícil posto

avançado. Não precisava da dor de cabeça de um profeta ascético e

inflamado.

O fato de Herodíades ser uma nazarena não ajudava em sua

posição perante João. Também não melhorava a opinião de João sobre a

cultura nazarena. Se tanto, provava por que as mulheres nunca deveriam

ocupar posições de autoridade, nem mesmo ter liberdades sociais, o que as

transformaria em libertinas. Com bastante freqüência, João usava

Herodes e Herodíades como exemplo da corrupção nazarena.

Porém, enquanto o Batista tornava o tetrarca seu inimigo, Easa era

muito admirado pela esposa de Herodes. Ela enviara sua única filha para

iniciar o aprendizado d'O Caminho, assim que Salomé alcançara a

maioridade. Salomé e Maria tornaram-se amigas durante o tempo em

que passaram juntas na Galiléia, unidas ainda mais no amor espiritual

pela Grande Maria e seu filho.

— Nossa irmã Verônica também está aqui — informou Salomé,

ansiosa por mudar de assunto.

A sobrinha de Simão, Verônica, era uma jovem adorável e de

profunda espiritualidade, que estudara com elas na casa da mãe de Easa.

Maria amava Verônica. Olhou ao redor, à procura do rosto da amiga tão

querida.

— Lá está ela!

Salomé pegou a mão de Maria e levou-a através da sala até Verônica,

agora radiante. As três mulheres, irmãs no credo nazareno, abraçaram-se

afetuosamente. Mas não tiveram tempo para conversar, pois Easa entrou

na sala.

Estava acompanhado pela mãe e dois irmãos mais jovens, Tiago e

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Judas, além dos irmãos pescadores da Galiléia e de um homem de cara

triste que Maria achava que se chamava Filipe. Easa cumprimentou a

todos na sala. Parou diante de Maria. Abraçou-a com imenso afeto, mas

com o decoro e respeito devidos a uma nobre, esposa de outro homem. E

fitou-a com uma expressão que indicava surpresa por ela ter desobedecido

ao irmão. Mas não disse nada. Maria sorriu e levou a mão ao coração:

— O Reino de Deus está comigo e nenhum opressor poderá tirá-lo

de mim.

Easa retribuiu o sorriso, com imensa ternura, depois foi para a

frente da sala e começou a ensinar.

Foi uma noite maravilhosa, com o amor dos amigos e as palavras

sobre O Caminho. Maria quase esquecera como o Verbo se tornara

importante e como Easa era um mestre inspirador. Mas sentar-se à sua

frente e ouvir sua pregação era experimentar o Reino de Deus neste

mundo. Ela não podia imaginar como alguém seria capaz de condenar

palavras tão belas ou por que alguém negaria deliberadamente aqueles

ensinamentos de amor, compaixão e caridade.

Quando se levantou para ir embora, Easa foi até Maria e tocou

gentilmente em sua barriga.

— Você está esperando uma criança, pombinha.

Maria deixou escapar um murmúrio de surpresa. João passara

uma noite com ela para cumprir seus deveres, na última estação, mas

não tinha a menor idéia de que concebera.

— Tem certeza?

Easa meneou a cabeça em confirmação.

— Uma criança cresce em seu ventre. Cuide-se bem, pombinha. Pois

quero que tenha essa criança em segurança.

Uma sombra passou pelo rosto de Easa por um instante, antes

que ele acrescentasse:

— Diga a seu irmão que deve ter a criança na Galiléia. Peça que ele

permita sua partida à primeira claridade do amanhecer.

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Maria ficou perplexa. Afinal, Betânia ficava perto de Jerusalém, onde

se encontravam as melhores parteiras e os melhores medicamentos, se

ocorresse alguma complicação. Fazia mais sentido ficar. Além disso,

Lázaro não voltaria por mais um dia. Mas Easa vira alguma coisa, naquele

momento de sombra, que o levara a exortar Maria a deixar Betânia e

seguir imediatamente para as praias da Galiléia.

O que Maria não podia saber era que Easa, num claro momento de

profecia, vira a necessidade de afastá-la de João o máximo possível.

— Prostituta! — berrou João, enquanto dava tapas em Maria. —

Eu sabia que era tarde demais para você e seus devassos costumes

nazarenos. Como ousou desobedecer a seu marido e a seu irmão?

Marta e Lázaro estavam no outro lado da casa em Betânia, mas

podiam ouvir os sons da violência. Marta chorava baixinho, deitada em

seu lado da cama, enquanto escutava os golpes aplicados na pequena

Maria. A culpa era sua. Encorajara Maria a desobedecer as ordens

expressas do marido e do irmão. Marta sentia que era ela quem merecia a

surra.

Lázaro estava sentado, imóvel, paralisado pelo medo e impotência.

Sentia-se furioso com Marta e Maria, mas ainda mais preocupado com a

surra que a irmã levava do marido. E não podia fazer absolutamente

nada. Qualquer interferência aumentaria o insulto a João, algo que ele

não ousava fazer. Além do mais, era bastante comum um marido

espancar uma esposa desobediente. Nas famílias mais tradicionais, era

até esperado. As ações de João estavam de acordo com sua interpretação

da lei.

Ainda não sabiam como João descobrira que Maria estivera na

reunião nazarena. Havia um informante entre eles na noite anterior? Ou a

dádiva da profecia em João era tão intensa que ele via a própria Maria em

suas visões?

Qualquer que fosse o catalisador, João viera para Betânia na tarde

seguinte num acesso de fúria incontrolada, determinado a punir todas as

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pessoas envolvidas na farsa. Sabia que sua jovem esposa se sentara devota

diante do primo na noite anterior. Pior ainda, se sentara ao lado da prole

devassa da prostituta Herodíades. O fato de Maria ostentar suas

simpatias nazarenas e sua ligação com Salomé era uma fonte de

vergonha e embaraço para João. Tinha o potencial de arruinar sua

reputação.

Maldita mulher! Será que ela não compreendia que qualquer

mancha em seu nome causaria um impacto em sua obra e afetaria a

mensagem de Deus? Aquilo era a prova de que as mulheres não tinham o

menor juízo, não tinham capacidade alguma de pensar nas

conseqüências de suas ações. As mulheres eram criaturas pecaminosas

por natureza, filhas de Eva e Jezebel. João começava a concluir que talvez

todas estivessem além da possibilidade de redenção.

João gritou essas coisas e muitas outras, enquanto continuava a

agredir Maria. Ela se encolhia no canto, os braços erguidos sobre a cabeça,

no esforço inútil de proteger o rosto. Era tarde demais; um círculo roxo

expandia-se em torno de um olho, o lábio inferior estava inchado e

sangrava, rasgado por um dente, a um golpe de João. Ela conseguiu

gritar:

— Pare! Vai fazer mal ao bebê!

João manteve a mão no ar, sem desferir o golpe seguinte.

— O que você disse?

Maria respirou fundo, num esforço para se acalmar.

— Estou esperando uma criança.

João fitou-a com absoluta frieza.

— Você é uma prostituta nazarena que passou a noite na casa de

outro homem sem uma acompanhante. Não posso sequer ter certeza de

que essa criança é minha.

Maria falou devagar, enquanto tentava se levantar:

— Não sou o que você me chama. Fui para você como noiva

virgem e nunca conheci qualquer outro homem. Só meu marido, de

acordo com a lei. — Ela enfatizou as últimas cinco palavras. — Está

furioso porque eu desobedeci a você, e mereço sua ira.

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Ela assumiu uma posição firme agora. Uma cabeça mais baixa

que ele, empertigou-se para fitá-lo no rosto:

— Mas sua criança não merece ser questionada. Ele se tornará

um dia príncipe do nosso povo.

João emitiu um som gutural e virou as costas para sair:

— Apresentarei a Lázaro as condições estritas para o

nascimento.

Ele abriu a porta e passou para o corredor. Sem olhar para trás,

desfechou um golpe verbal final:

— Se a criança for uma menina, terei o maior prazer em

abandonar as duas.

Já era o final da tarde seguinte quando Maria decidiu se

aventurar até o jardim, para respirar um pouco de ar fresco. Passara

a maior parte do dia na cama, recuperando-se da surra que levara. O

jardim era privado, cercado por muros, e por isso não havia qualquer

possibilidade de alguém ver as marcas da desgraça que cobriam-lhe o

rosto. Ou pelo menos era o que ela pensava.

Maria, entretanto, ouviu um barulho nas moitas que fez seu

coração parar. O que seria? Quem seria?

— Quem está aí? — perguntou ela, hesitante.

— Maria?

Era uma voz de mulher, seguida por mais farfalhar nos

arbustos. Subitamente, uma figura saiu de trás de uma sebe, perto

do muro.

— Salomé! O que está fazendo aqui?

Maria correu para abraçar a amiga, uma princesa herodiana

que se esgueirava como uma ladra comum. Salomé não respondeu.

Estava paralisada, olhando para o rosto todo machucado de Maria.

— Está tão horrível assim? — perguntou Maria, num

sussurro, virando a cabeça.

Salomé soltou um murmúrio de raiva:

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— Minha mãe tem razão. O Batista é um animal. Como ele

ousa tratá-la dessa maneira? Você é uma nobre.

Maria preparou-se para defender João, mas compreendeu que

não tinha energia para isso. Sentia uma súbita exaustão, esgotada pelos

eventos dos últimos dias e pelo crescente tributo que a gravidez cobrava

de seu corpo miúdo. Sentou-se num banco de pedra, acompanhada pela

amiga.

— Eu lhe trouxe isto. — Salomé entregou uma bolsa de seda a

Maria. — Há um ungüento curativo no pote. Servirá para aliviar os

machucados.

— Como você soube?

Ocorreu de repente a Maria que Salomé sabia de uma coisa que só

Lázaro e Marta haviam testemunhado. Salomé deu de ombros.

— Ele viu. — Só podia haver um Ele. — Não me contou o que

aconteceu. Apenas disse: “Leve seu melhor ungüento curativo para sua

irmã Maria. Ela vai precisar imediatamente.” E aconselhou a ter cuidado

para que ninguém me visse, por causa de João.

Maria tentou sorrir à revelação da visão de Easa, mas o corte no

lábio fez com que estremecesse. O adorável rosto de Salomé contraiu-se

em raiva, ao observar a dor da amiga.

— Por que ele fez isso?

— Porque desobedeci a uma ordem.

— Como?

— Ao comparecer à reunião nazarena.

Salomé começou a compreender a situação.

— Então agora somos o inimigo para o Batista. Quando será que

ele vai denunciar Easa publicamente? Tenho certeza de que é o que vai

acontecer em seguida.

Maria soltou uma exclamação de espanto:

— Eles são primos. E João anunciou Easa como Messias em seu

batismo. Ele não faria isso.

— Não? — Não tenha tanta certeza, irmã. — Salomé pensou por

um instante. — Minha mãe diz que João é astuto como uma serpente.

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Pense a respeito. Ele se casou com você para legitimar seu reinado.

Agora, você está grávida de seu herdeiro. O Batista denuncia minha mãe

como adúltera e usa o fato de ela ser uma nazarena como um

opróbrio... e uma arma contra nós. Qual é o próximo passo? Retirar

publicamente seu apoio a Easa, baseado no que João acredita ser o

desrespeito nazareno à lei. Ele não ficará satisfeito enquanto não

destruir O Caminho.

— Não creio que João faria isso, Salomé.

— Não? — Salomé riu, um som duro para alguém tão jovem. —

Não passou tanto tempo quanto eu convivendo com os Herodes. É

espantoso o que os homens são capazes de fazer para conquistar

posições.

Maria suspirou e sacudiu a cabeça:

— Sei que é difícil para você acreditar, mas João é um bom homem

e um profeta de verdade. Eu não me casaria com ele se não acreditasse

nisso... nem meu irmão concordaria com o casamento. João é diferente

de Easa, um homem duro e agressivo, mas acredita no Reino de Deus.

Vive apenas para ajudar os homens a encontrarem Deus, pelo

arrependimento e pela lei.

— É verdade, ele acredita em ajudar homens. Quanto às mulheres,

João prefere que todas nos afoguemos naquele seu precioso rio, em vez de

nos oferecer a salvação. — Salomé fez uma careta para demonstrar seu

desdém. — E ele se tornou um joguete nas mãos dos fariseus, quanto

menos não seja porque não tem habilidades sociais ou políticas. Segue o

que eles indicam. E garanto que será orientado para questionar ainda

mais a legitimidade de Easa, se não for detido.

Maria fitou a amiga. Alguma coisa na maneira como Salomé falava

agora deixava-a nervosa, mas era um medo misturado com respeito. Sua

amiga de infância adquirira uma profunda compreensão da política de

seu tempo nos palácios de Herodes.

— O que você propõe?

Quando Maria levantou os olhos, um raio de sol iluminou seu

rosto, realçando as marcas roxas e pretas dos machucados. A princesa

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herodiana estremeceu à vista do rosto lindo e delicado de Maria

desfigurado pela surra. E quando Salomé falou, foi com suave

determinação:

— Farei com que João Batista pague por seus atos... contra você,

contra Easa e contra minha mãe. De um jeito ou de outro.

Um tremor percorreu o corpo de Maria ao ouvir essas palavras.

Apesar do calor ao sol do meio-dia, ela sentiu frio, muito frio.

A rapidez com que prenderam João foi espantosa. Maria

descobriria muito mais tarde que Salomé seguira para o palácio de

inverno do tetrarca, perto do mar Morto, onde se realizava uma festa pelo

aniversário de Herodes Antipas. Herodes pedira que Salomé dançasse

para ele e seus convidados, pois a graça e a beleza da jovem eram

lendárias. Além disso, havia convidados que haviam percorrido longas

distâncias para prestar tributo a Herodes. O tetrarca achava que seria

um gesto de cordialidade apresentar sua linda enteada.

Salomé entrou na sala em que se realizava a festa, ao melhor estilo

romano. Usava sedas reluzentes e correntes de ouro, dadas pelo padrasto

apaixonado. Sua entrada provocou uma comoção, com os convidados

esticando o pescoço para contemplar melhor a deslumbrante princesa.

— Você é a jóia de maior valor em meu reino, Salomé — declarou

o padrasto. — Dance para nós. Será uma grande emoção para os nossos

convidados descobrir como você é graciosa.

Salomé aproximou-se do trono em que Herodes presidia o banquete.

Era uma imagem de linda petulância.

— Não sei se posso dançar, padrasto. Meu coração ficou tão

oprimido pelo que suportei na viagem que não creio que tenha

disposição para dançar.

Herodíades, numa almofada ao lado do marido, empertigou-se:

— O que aconteceu que lhe causou um efeito tão ruim, criança?

Salomé contou uma história triste sobre o homem horrível que

era chamado de Batista, e como suas palavras atormentavam-na e

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pareciam segui-la, aonde quer que fosse.

— Quem é esse homem... esse Batista? — perguntou um nobre

romano em visita à terra.

Herodes fez um gesto desdenhoso.

— Ninguém. Um dos vários Messias que surgiram este ano. É um

agitador, mas não muito importante.

Ao ouvir isso, Salomé desatou a chorar. Jogou-se aos pés da mãe.

Falou sobre os nomes horríveis que o Batista usara contra Herodíades.

Ela ficou apavorada, pois aquele profeta previra que Herodes seria

derrubado e o palácio desmoronaria, com todos dentro. Ele incitava o ódio

aos Herodes entre o povo, a tal ponto que Salomé não podia mais viajar

em segurança com os nazarenos, a não ser que estivesse bem disfarçada.

— Ele parece mais um rebelde do que um profeta — comentou o

nobre romano. — É melhor lidar com gente desse tipo o mais depressa

possível.

Herodes não tinha a menor vontade de tratar de política, mas não

podia se dar ao luxo de parecer fraco na presença de um enviado romano.

Por isso chamou os guardas e deu uma ordem:

— Prendam esse homem chamado Batista e tragam-no para cá.

Quero ver se ele tem a coragem de dizer essas coisas na minha frente.

Os convidados aplaudiram a decisão e seguiram o exemplo do nobre

romano, levantando seus copos para um brinde ao anfitrião. Salomé

limpou as lágrimas dos olhos e sorriu ternamente para Herodes Antipas:

— Que dança gostaria que eu apresentasse esta noite, padrasto?

João Batista era um prisioneiro que acarretava problemas.

Herodes Antipas não previra a força dos seguidores de João, que haviam

aumentado em proporções extraordinárias. Suplicantes compareciam ao

palácio todos os dias, pedindo a libertação de seu profeta. Apelavam para

Herodes como a um judeu, querendo seu apoio. Como o palácio de inverno

ficava perto de Qumran, a comunidade essênia mandava enviados todos

os dias, para pedir a liberdade do prisioneiro. Não se tratava de um mero

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profeta regional que podia ser punido e silenciado com facilidade. João

Batista era um fenômeno.

Herodes assumiu o encargo de interrogar João pessoalmente.

Mandou que trouxessem o pregador ascético à sua presença. Esperava

respostas indignadas e comentários desvairados, como costumava

acontecer com aqueles pregadores do deserto, supostos Messias. Era

quase um esporte para Herodes, ansioso em fazer com que o homem que

tanto perturbava sua esposa e enteada mordesse a isca. Depois de brincar

com o prisioneiro por algum tempo, ele decidiria qual seria a sentença.

O interrogatório, no entanto, não transcorreu como o tetrarca

planejara. Embora João se vestisse de uma maneira extravagante e não

houvesse nada de civilizado em sua aparência, suas palavras não eram as

de um louco delirante. Herodes achou-o inteligente, talvez mesmo um

sábio, o que era desconcertante. João falou com severidade dos pecadores

e da necessidade de arrependimento. Não hesitou em fitar Herodes nos

olhos quando advertiu que o Reino do Céu seria negado a alguém com os

pecados do tetrarca. Mas ainda havia tempo para a redenção, se Herodes

se separasse de sua esposa adúltera e se arrependesse de suas muitas

violações da lei.

Ao final do interrogatório, Herodes estava muito preocupado com a

prisão de João. Tinha vontade de soltá-lo, mas não podia fazer isso sem

parecer fraco e ineficiente aos olhos de Roma. Um enviado romano não

estava presente quando fora dada a ordem para prender João? Libertar o

homem agora faria com que Herodes parecesse incoerente, talvez

mesmo incompetente para lidar com os rebeldes judeus. Não, ele não

ousaria libertar o Batista, pelo menos por enquanto.

Quando soube o que acontecera, Maria de Magdala mandou um

mensageiro ao palácio para saber se o marido gostaria de recebê-la ou de

ter notícias da criança que esperava. João ignorou a mensagem. As

únicas palavras que Maria recebeu de João, durante sua prisão, foram

de condenação. Soube pelos seguidores mais íntimos que João continuava

a questionar a paternidade da criança e só se referia a ela nos termos mais

desdenhosos. Culpava a jovem esposa por sua prisão e os seguidores mais

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fanáticos haviam feito ameaças à família. Finalmente, Maria convenceu o

irmão e Marta a levarem-na para a Galiléia, tão longe quanto possível do

Batista e seus seguidores. Não podia compreender como uma noite de

desobediência inocente se transformara numa reputação maculada

como meretriz, mas era essa a realidade que agora enfrentava. Maria

preferia ficar no santuário de seu lar, na base do monte Arbel, mais perto

dos nazarenos e seus simpatizantes.

João continuou seu ministério da prisão, sua lenda e influência

crescendo na região sul. Mas o ministério de seu primo, o carismático

nazareno, desabrochava com crescente vigor na região ao norte do Jordão e

na Galiléia. Os seguidores de João levavam ao seu conhecimento, na

prisão, as notícias das grandes obras e das curas milagrosas que eram

atribuídas a Easa. Mas também informavam sobre a persistente

indulgência do nazareno com os gentios e os impuros. Ele até impedira

que uma mulher adúltera fosse justamente apedrejada! Era evidente que o

primo de João perdera por completo a noção da lei. Era tempo de João

assumir uma posição firme.

Por instrução de João, seus seguidores compareceram a uma

grande reunião de nazarenos. Quando Easa se apresentou à multidão,

para iniciar sua pregação, dois enviados ascéticos se adiantaram. O

primeiro disse, dirigindo-se a Easa e à multidão:

— Viemos da cela de João Batista. Ele pede que transmitamos esta

mensagem a todos. Ele diz, Yeshua, o Nazareno, que o contesta. Que

acreditou outrora que você era o Messias enviado por Deus, mas não

pode acreditar que sua aceitação dos impuros esteja dentro da lei. Por

isso, ele pergunta: “Você é aquele que era esperado? Ou as pessoas devem

esperar por outro?”

A multidão tornou-se irrequieta ao ouvir essas palavras. O batismo

de Jesus por João fora o momento de definição para alguns dos mais

novos discípulos nazarenos. O dia mágico na margem do Jordão, em que

João anunciara o primo como o eleito e Deus demonstrara-lhe ser

favorável, sob a forma de uma pomba, transformando muitos em

seguidores d'O Caminho. Agora, João Batista estava, em essência,

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retirando seu apoio, ao questionar publicamente o primo.

Jesus, o Nazareno, mostrou-se impassível diante da pergunta e

indiferente ao insulto. Fez um gesto para silenciar a multidão:

— Não há maior profeta neste mundo que João Batista.

Para os homens que o haviam questionado, ele acrescentou:

— Por favor, apresentem todas as minhas considerações a meu

primo. Contem a ele todas as coisas que viram e ouviram entre nós hoje.

E haveria muito a contar. O líder nazareno circulou entre a

multidão, dispensando bênçãos aos doentes. Naquele dia, pelo que

disseram, ele devolveu a visão a muitos que eram cegos. Curou

enfermidades dos idosos, expulsou maus espíritos dos aflitos. E durante

todo o tempo pregou a palavra d'O Caminho, ensinou às pessoas a luz de

Deus. Contou uma história, uma parábola sobre uma mulher perdoada

por seus pecados porque tinha o coração cheio de fé e amor. Esta foi a

mensagem final do dia:

— Os pecados são perdoados naqueles que têm o coração cheio

de amor. Mas, se o homem mais virtuoso tem pouco amor no coração,

conhecerá pouco perdão.

Foi um dia que definiria o ministério de Jesus, o Nazareno, como O

Caminho curativo de perdão e amor, um curso para a salvação para todas

as pessoas que optassem por seguir na luz.

Herodes Antipas tinha um problema. O enviado romano que

testemunhara a ordem para prender João Batista, meses antes, voltara

à terra. Quando o romano perguntou a subordinados do tetrarca por

que havia tantos judeus cercando o palácio, foi informado de que o

profeta aprisionado continuava a atrair seguidores. O enviado ficou

atônito ao saber que Herodes ainda não tomara uma atitude contra o

rebelde.

Ao jantar, naquela noite, o nobre de Roma falou com Herodes

sobre o problema, em tom firme:

— Você não pode ser frouxo em relação a esses agitadores. Está

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aqui porque César confia em você para representar Roma e porque ele

acha que leva uma vantagem sobre outros por ser judeu. Mas seria um

erro terrível se mostrar apaziguador. Esse homem insulta Roma todos

os dias da própria prisão em que é mantido e você permite.

O tetrarca defendeu sua posição:

— A região do deserto é controlada por seitas essênias e outras

que consideram esse homem um profeta. Executá-lo provocaria grandes

tumultos.

— Você, um cidadão romano e um rei, permite ser tratado como

um refém por esses habitantes do deserto?

A indagação era uma censura. Herodes sabia quando se

encontrava acuado. Aquele enviado voltaria a Roma no dia seguinte e

ele não podia permitir que o homem comunicasse a César qualquer

fraqueza percebida. Tinha muitos inimigos que gostariam de

testemunhar a queda dos Herodes de uma vez por todas. Isso não podia

acontecer. Antipas não nascera com o sangue desses reis por nada. O

avô não executara os próprios filhos quando percebera uma ameaça ao

trono? Herodes sabia como lutar pelo que lhe pertencia por direito.

Herodes Antipas bateu palmas duas vezes para chamar os servos.

Mandou que os centuriões fossem trazidos à sua presença.

— Executem imediatamente a sentença contra o prisioneiro João

Batista. Ele deve ser executado com uma espada.

O enviado romano balançou a cabeça vigorosamente em

aprovação, enquanto Herodes Antipas preparava-se para ocupar seu

lugar na história pela primeira vez... mas não pela última.

Antes de sua execução, João pediu apenas uma coisa: que uma

mensagem fosse enviada à sua esposa na Galiléia. Ele teve permissão

para receber um seguidor, que serviria como mensageiro. João lhe

transmitiu suas palavras finais, de instruções e arrependimento, antes

que a espada do centurião o executasse. A cabeça foi separada do corpo

pelo primeiro golpe e João Batista, profeta do Jordão, foi para o Reino de

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Deus.

Herodes mandou que a cabeça de João fosse colocada na ponta de

uma lança e exposta no portão da frente do palácio, para mostrar ao

enviado romano como ele lidava de forma rápida e severa com atos de

traição. A cabeça permaneceu por alguns dias ali, bicada por aves de

rapina, até a noite em que desapareceu misteriosamente. O resto do corpo

de João foi entregue aos seguidores essênios para sepultamento.

Maria, em avançado estágio de gravidez, em Magdala, recebeu a

notícia da execução de João. O mensageiro lhe transmitiu pessoalmente

as últimas palavras de João:

— Arrependa-se, mulher. Faça penitência todos os dias pelos

pecados que nos levaram a essa situação. Faça isso pela minha memória

e pelo bem da criança que você espera. Para que haja alguma esperança

de que a criança seja aceita no Reino de Deus, você deve se arrepender e

batizá-la no nascimento.

Se João morreu acreditando ou não que a criança era sua, Maria

nunca soube. O fato de ter se dado ao trabalho de enviar uma mensagem,

com o seu último pedido, era uma indicação de que talvez acreditasse

que o fosse. Maria gravou suas palavras no coração e rezou todos os dias,

durante o resto de sua longa vida, pelo perdão de João. Ele fora grosseiro e

agressivo, mas ela não guardava qualquer ressentimento. Easa e a Grande

Maria haviam ensinado que o perdão era divino e ela adotou esse princípio

com toda a sinceridade.

João fora um enigma para ela desde o início. Era um homem rude,

que nunca pedira o que lhe fora impingido, nunca tivera a intenção de

tomar uma esposa. Ela fizera o melhor que podia para se comportar de

uma maneira que João julgasse obediente, mas nada jamais o agradava.

Lamentavelmente, Maria se casara com o único homem em Israel que

não daria qualquer coisa para tê-la. Era bonita, virtuosa, rica e herdara o

sangue real de seu povo. Mas nenhuma dessas qualidades tinha qualquer

interesse para João Batista.

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O casamento fora uma espécie de sentença para ambos. E a bênção

para ambos era o fato de permanecerem separados durante a maior parte

do tempo, só se encontrando quando os fariseus pressionavam João para

ter um herdeiro. No final das contas, o casamento fora mais detestável

para João do que para Maria. Agora, estavam livres, mas Maria daria

qualquer coisa para mudar a maneira que a fizera recuperar a liberdade.

Assim como fora culpada pela prisão de João, Maria também foi

acusada por sua execução pelos seguidores mais leais. A mulher mais

injuriada na terra no momento era Salomé. A princesa herodiana era

acusada de atos terríveis, inclusive de incesto com o padrasto.

Espalharam-se histórias fantásticas sobre a sexualidade dissoluta de

Salomé, como ela a usara para exigir a cabeça de João numa bandeja de

prata. Nenhuma dessas coisas era verdadeira. Salomé apenas usou sua

manobra infantil para conseguir que João fosse preso, mas confessou em

lágrimas para Maria, mais tarde, que nunca imaginara que ele seria

executado. Só queria afastar João por algum tempo, conter o seu

crescente poder entre o povo, para que não pudesse fazer mal a Easa ou

Maria. Salomé, em última análise, era muito jovem e inexperiente, em

política e religião, para prever que a prisão de João o tornaria ainda mais

popular entre o povo. Pior ainda, não imaginara o terrível dilema de

Herodes nem sua dramática solução.

Um mensageiro anônimo de João levou uma última e inesperada

relíquia de arrependimento para sua jovem esposa, algumas semanas

depois. Sem dizer nada, o asceta entregou-lhe um cesto de vime e deixou a

casa em seguida. Não havia qualquer mensagem e o mensageiro não a

fitou nos olhos em momento algum. Curiosa, Maria levantou a tampa do

cesto para descobrir o conteúdo.

Sobre uma almofada de seda, dentro do cesto, estava o crânio

esbranquiçado pelo sol de João Batista.

Maria entrou em trabalho de parto antes do tempo. Foi uma bênção

disfarçada, já que seu corpo pequeno não seria capaz de dar à luz o bebê

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com a gestação completa. Mesmo prematuro, o menino era grande e

robusto. Nasceu berrando com grande força à indignidade do mundo.

Com um único dia de idade, era a imagem física de João. E qualquer

pessoa que ouvisse a insistência do choro do bebê poderia reconhecê-lo

como filho legítimo do Batista.

Maria de Magdala mandou para a Grande Maria e Easa a notícia de

que a criança nascera, sã e salva, junto com seus agradecimentos pelas

orações dos dois.

Ela deu ao menino o nome de João-José, em homenagem ao pai.

Depois da execução de João, houve uma tremenda pressão sobre

Easa para que assumisse uma posição entre os seguidores do Batista. Ele foi

para o deserto e se reuniu com os essênios e discípulos de João, pregando

o Reino de Deus à sua maneira. Alguns essênios aceitaram Easa como seu

novo Messias e passaram a segui-lo, porque ele era da linha de Davi.

Muitos outros, no entanto, opunham-se às suas reformas nazarenas,

porque João se manifestara veementemente contra elas até o final de sua

vida. Para a maioria dos habitantes do deserto, João era o único Mestre

da Justiça; qualquer outro que tentasse tomar o seu lugar era um

impostor.

A profunda divisão entre os seguidores de João e os fiéis a Easa foi

definida naqueles primeiros dias. O espírito nazareno aflorou como

amor e perdão, acessível a qualquer pessoa que quisesse assumi-lo. A

filosofia joanita era muito diferente, baseada em julgamentos rigorosos e

normas estritas da lei. Enquanto eram acolhidas e respeitadas por Easa e

os nazarenos, as mulheres eram desprezadas pelos seguidores de João. O

Batista sempre mantivera as mulheres em baixa estima. Sua descrição de

Maria e Salomé para os seguidores, como prostitutas de Babilônia

encarnadas, consolidou a idéia das mulheres como seres inferiores.

Surgiu um retrato imperfeito e injusto de Maria Madalena como

uma pecadora arrependida, e de Salomé como uma meretriz decadente.

Os seguidores de João Batista atiçaram as chamas dessa injustiça,

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desencadeando uma conflagração que arderia ao longo dos séculos.

Easa, o Nazareno, príncipe da Casa de Davi, tencionava mudar a

percepção do público da princesa difamada e agora viúva. Mais do que

qualquer outro, ele sabia que aquela boa e virtuosa mulher era vítima de

uma terrível injustiça. Ela não era menos filha de Benjamim agora. Seu

sangue ainda era real, o coração ainda puro e ele ainda a amava.

Lázaro ficou surpreso quando o Filho do Leão apareceu em sua

porta sozinho, sem os seguidores.

— Vim visitar Maria e a criança — anunciou ele.

Gaguejando, Lázaro chamou Marta e convidou Easa a entrar.

Marta veio e tentou disfarçar sua reação, de surpresa ou alegria. Havia

muito era simpatizante dos nazarenos, apesar de sua criação

conservadora. Sempre amara e reverenciara Easa.

— Vou trazer Maria e o bebê — disse ela, deixando a sala,

apressada.

Quando ficaram a sós, Lázaro tentou se explicar:

— Yeshua, tenho de pedir muitas desculpas por...

Easa levantou a mão:

— Paz, Lázaro. Nunca soube que você tenha feito qualquer coisa

em que não acreditasse em seu coração, que não fosse certa e justa. E

sincero consigo mesmo e sincero para com o Senhor. Por isso não precisa

pedir desculpas, para mim ou para qualquer outra pessoa.

Lázaro sentiu um tremendo alívio. Sentira por muito tempo a

tristeza de ter rompido o noivado entre Easa e sua irmã. Também

lamentava ter negado hospedagem aos nazarenos em Betânia, naquela

noite que redundara numa calamidade para Maria. Mas não teve tempo

para dizer isso, já que o pequeno João-José anunciou sua entrada na sala

com um choro vigoroso.

Easa sorriu para Maria e o bebê. Estendeu os braços para o menino,

que tinha o rosto vermelho de tanto chorar.

— Ele é bonito como a mãe e determinado como o pai —

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comentou Easa, rindo.

Ao primeiro contato da mão de Easa, João-José parou de chorar.

Ficou quieto, olhando para aquela presença nova com um grande

interesse. Arrulhou feliz quando Easa embalou-o nos braços, gentilmente.

— Ele gosta de você — murmurou Maria, com uma súbita timidez

na presença daquele homem que se tornara uma lenda entre o povo.

Easa fitou-a, muito sério.

— Espero que seja mesmo verdade. — Ele olhou para Lázaro. —

Lázaro, meu querido irmão, eu gostaria de falar em particular com Maria

sobre um assunto importante. Ela é viúva e por isso não é indecoroso que

converse comigo sem a presença de outras pessoas.

— Claro — respondeu Lázaro, deixando a sala.

Easa, ainda com o pequeno João no colo, gesticulou para que

Maria se sentasse. Ele também se sentou. Os dois ficaram em silêncio por

um momento, enquanto o pequeno João continuava a arrulhar para Easa

e a puxar seus cabelos compridos, ao estilo nazareno.

— Maria, tenho uma pergunta para lhe fazer.

Ela balançou a cabeça, sem dizer nada. Não sabia o que estava para

acontecer, mas sentia uma felicidade intensa por estar outra vez na

presença de Easa. Era um verdadeiro bálsamo para seu espírito arrasado.

— Você sofreu muito, em grande parte por causa de sua fé em mim

e n'O Caminho. Quero reparar tudo com você e essa criança. Maria, eu

gostaria que se tornasse minha esposa e me desse permissão para criar o

filho de João como se fosse meu.

Maria ficou paralisada. Ouvira direito? Não, aquilo era impossível.

— Não sei o que dizer, Easa. — Ela fez uma pausa, procurando

ordenar os pensamentos que disparavam por sua mente surpresa. —

Passei toda a minha vida acalentando o sonho de me casar com você. E,

quando isso não aconteceu... nunca mais pensei nesse sonho. Mas não

posso permitir que faça isso. Prejudicaria você e sua missão. Há muitos

que me culpam pela morte de João, homens que me odeiam e que me

chamam de pecadora.

— Isso não faz diferença para mim. Qualquer pessoa que me

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segue agora conhece a verdade... e ensinaremos a verdade para aqueles

que ainda não a conhecem. E os seguidores não poderão se opor. Na

verdade, é apropriado que eu a tome como esposa. Você é viúva de João,

que era meu primo. Sou o parente mais próximo de João e como tal devo

criar seu filho, pelas próprias tradições que os seguidores dele juraram

respeitar. E eu o criarei como um príncipe de seu povo, como meu

herdeiro escolhido e o filho de um profeta. É uma união correta, perante

a lei e o povo de Israel. Ainda sou o filho de Davi e você ainda é a

filha de Benjamim.

Maria estava atordoada. Nunca imaginara que alguma coisa assim

pudesse acontecer. Na melhor das hipóteses, esperava que Easa batizasse

o menino, como João pedira. Mas adotar o pequeno João como seu

próprio filho e tomá-la como esposa? Era mais do que ela podia agüentar.

Maria baixou o rosto para as mãos e começou a chorar.

— O que a faz chorar, pombinha? Não somos agora menos perfeitos

um para o outro aos olhos de Deus do que éramos quando Ele nos

escolheu para uma união.

Maria removeu as lágrimas dos olhos e fitou o nazareno, seu Easa,

o homem que Deus lhe devolvera.

— Nunca pensei que saberia o que era ser feliz de novo — sussurrou

ela.

Ao contrário da festa suntuosa em Caná, Easa e Maria se casaram

numa pequena cerimônia privada, com a presença da Grande Maria e dos

nazarenos mais leais. O casamento foi realizado numa praia da Galiléia,

na aldeia de Tabga.

Mas a notícia da união espalhou-se depressa. No dia seguinte,

multidões começaram a chegar a Tabga. Alguns eram seguidores, outros

apenas curiosos pela idéia da união dos noivos da profecia de Salomão.

Havia também os que não se sentiam satisfeitos pelo casamento de seu

amado profeta da Galiléia com aquela mulher de reputação maculada.

Mas Easa ficou contente pela presença de todos. Disse a Maria, várias

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vezes, que cada dia trazia uma nova oportunidade de mostrar O Cami-

nho para alguém que nunca o conhecera, uma nova oportunidade de

proporcionar a visão aos cegos.

A notícia do casamento atraiu milhares de pessoas durante dois

dias.

A Grande Maria procurou Easa ao final do segundo dia. Lembrou-o

do milagre do primeiro casamento, em Caná, quando não havia vinho

suficiente para os convidados. Agora, as praias da Galiléia transbordavam

de viajantes que não comiam havia vários dias e restava bem poucos

alimentos para tantas pessoas. A mãe o aconselhou a considerar que

aquele era seu banquete de casamento.

Easa chamou os seguidores mais próximos. Pediu um cálculo do

número total de convidados. Filipe respondeu:

— Há quase cinco mil pessoas, mas o que temos para comer não

dá para duzentas.

André, o irmão de Pedro, acrescentou:

— Conheço um filho de pescador que tem cinco pães de cevada e

dois peixes pequenos. Mas isso é tudo. E não é nada em comparação com

o que precisamos.

Easa disse:

— Digam a todos para se sentarem. E me tragam os pães e os

peixes.

Isso foi feito por André, que pôs os pães e os peixes, num cesto, aos

pés do mestre. Easa fez uma oração de graça e abundância sobre os

alimentos. Depois, entregou o cesto a André.

— Comece por esse cesto, passando-o pelos convidados. Recolham

todos os fragmentos, para que nada se perca. Ponham esses fragmentos

em novos cestos, para distribuir entre as pessoas.

André seguiu as instruções, ajudado por Pedro e os outros. Ficaram

espantados quando viram os cestos que continham apenas algumas

migalhas transbordarem de pães e peixes. Não demorou muito para que

houvesse doze cestos grandes cheios de alimentos. Foram distribuídos

pela multidão, até que todos comeram o suficiente.

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Todos os que participaram do banquete nas praias de Tabga ficaram

convencidos, acima e além de qualquer dúvida, de que Easa, o Nazareno,

era mesmo o Messias da profecia. Sua reputação como alguém que fazia

milagres e curava os doentes continuou a se espalhar. Seus seguidores

não paravam de aumentar. E já havia muitos agora que se mostravam

dispostos a aceitar Maria de Magdala. Afinal, se um profeta tão poderoso

escolhera aquela mulher, ela devia ser digna.

A posição de Maria apresentava um problema. Numa época em que

as mulheres eram definidas por suas relações com os homens, sua

situação era complicada e politicamente difícil. Não seria apropriado

referir-se a ela como a viúva de João. Tampouco seria de todo aceitável

indicá-la apenas como a esposa de Easa. Nessa ocasião, ela tornou-se

conhecida por seu próprio nome, como uma mulher de liderança.

Reinaria para sempre como a Filha de Sião, a Torre de seu Rebanho... a

Migdal-Eder. Passaria a ter uma posição própria, com o nome de uma

rainha. O povo a chamava simplesmente de...

Maria Madalena.

Foi a esse período do ministério, depois da milagrosa multiplicação

de pães e peixes em Tabga, que Maria Madalena se referiu como O Grande

Tempo. Pouco depois do casamento, os nazarenos, agora acompanhados

por Maria, partiram para a Síria. Easa curou uma quantidade espantosa

de pessoas durante a jornada. Passava o tempo ensinando nas sinagogas

e levando a palavra d'O Caminho para novos ouvidos. Mas depois de

alguns meses, eles voltaram à Galiléia. Maria Madalena estava grávida e

Easa queria que a criança nascesse onde a mãe se sentiria mais

confortável... em sua casa.

Maria e Easa tiveram uma menina pequena e perfeita pouco depois

de voltar. Deram-lhe o nome composto de uma princesa, Sara-Tamar. O

nome Sara invocava uma nobre hebréia das escrituras, a esposa de

Abraão. Tamar era um nome da Galiléia, uma referência às abundantes

tamareiras que cresciam na região. Havia gerações era usado por casas

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reais como um dos prediletos para suas filhas.

A família aumentava, o ministério se expandia, e os filhos de Israel

experimentavam um sentimento de esperança pelo futuro. Era mesmo

um Grande Tempo.

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CAPITULO DEZOITO

Château des Pommes Bleues

28 de junho de 2005

Ninguém falou por um longo momento, depois que Peter terminou

de ler sua tradução do primeiro livro. Todos permaneceram calados, cada

um absorvendo, à sua maneira, a enormidade da informação. Todos

haviam chorado a intervalos variados, os homens mais reservados, as

mulheres mais abertamente, ante os acontecimentos na história de

Maria. Foi Sinclair quem rompeu o silêncio:

— Por onde começamos?

Maureen sacudiu a cabeça.

— Não tenho a menor idéia.

Ela levantou os olhos para verificar como Peter reagia às

circunstâncias. Ele parecia surpreendentemente calmo e até sorriu

quando seus olhos se encontraram.

— Você está bem, Pete?

— Nunca me senti melhor. É muito estranho, mas não me sinto

chocado nem preocupado. Sinto-me apenas... contente. Não posso

explicar, mas é assim que me sinto.

— Parece exausto — comentou Tammy. — Mas fez um

trabalho extraordinário.

Sinclair e Roland manifestaram sua concordância, agradecendo a

Peter pelo incansável empenho na tradução.

— Por que não descansa um pouco? — sugeriu Maureen,

gentilmente. — Pode começar o trabalho nos outros livros amanhã. Você

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precisa dormir, Pete.

Peter sacudiu a cabeça, determinado.

— Não há a menor possibilidade. Há mais dois livros para

traduzir... O livro dos discípulos e o seguinte, que ela chama de O livro

do Tempo das Trevas. Acho que podemos presumir que seja seu relato

pessoal da crucificação e não vou descansar enquanto não descobrir.

Quando compreenderam que seria impossível fazer Peter mudar de

idéia, Sinclair mandou que trouxessem uma bandeja com chá para ele.

Peter continuava se recusando a comer, convencido de que deveria jejuar

enquanto estivesse traduzindo. Deixaram-no sozinho. Sinclair, Maureen e

Tammy foram para a sala de jantar, a fim de fazer uma refeição leve.

Roland foi convidado a acompanhá-los, mas recusou polidamente,

alegando que tinha muitas coisas a fazer. Ele olhou para Tammy, no

outro lado da sala, antes de se retirar.

A refeição foi leve, já que nenhum deles sentia muita disposição para

comer. Ainda tinham dificuldades para converter em palavras sua reação ao

primeiro livro. Tammy finalmente comentou as informações sobre João:

— Depois de passar o dia com Derek, tudo faz mais sentido

ainda. Posso entender agora por que os seguidores de João reunidos na

Guilda guardam tanto ódio contra Maria e Salomé. Mas é muito injusto.

Maureen estava confusa. Ainda não tomara conhecimento das

descobertas de Tammy.

— O que está querendo dizer? São essas pessoas que me atacaram?

Tammy relatou tudo o que descobrira por intermédio de Derek, na

terrível visita a Carcassonne. Maureen escutou num silêncio atordoado.

— Mas vocês já sabiam que Maria tinha um filho de João Batista?

— Ela dirigiu a pergunta aos dois. — Porque é uma tremenda surpresa

para mim... desconcertante.

Sinclair concordou, balançando a cabeça.

— Será um choque para a maioria das pessoas. E uma tradição

que conhecemos aqui, mas poucas pessoas fora de nossas seitas

orgulhosa mente heréticas sabem disso. Houve um esforço conjunto para

remover esses fatos da história... dos dois lados. Ostensivamente, os

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seguidores de Jesus não queriam que qualquer informação sobre João

ofuscasse a história de Jesus, conforme foi contada, com o maior cuidado

e habilidade, pelos autores dos evangelhos.

Tammy interrompeu-o:

— Os seguidores de João não falam a respeito porque

desprezam Maria Madalena. Comecei a ler os documentos da Guilda, o

chamado O verdadeiro livro do Santo Graal. Dão esse nome porque

acreditam que o único sangue sagrado vem de João e seu filho. O que

faz com que sua linhagem seja o único Santo Graal, o verdadeiro cálice

do sangue sagrado. Se pudessem impor sua vontade, eles teriam

eliminado toda e qualquer menção a Maria Madalena não apenas nas

escrituras, mas também na história. Há uma lei na Guilda de que ela

nunca deve ser mencionada sem o epíteto de prostituta acrescentado ao

nome.

— Isso não faz sentido — comentou Maureen. — Ela foi a mãe do

filho de João e eles o reconhecem como legítimo. Por que ainda sentem

tanto ódio contra Maria Madalena?

— Porque acham que Maria e Salomé conspiraram para a morte

de João, a fim de que ela pudesse casar com Jesus... Easa... para que

Jesus pudesse assumir a posição de ungido. E para que Jesus pudesse

usurpar a posição de pai do filho de João, para treiná-lo nos costumes

nazarenos. É parte do ritual deles negar Cristo, cuspindo na cruz e

chamando-o de O Usurpador.

Maureen fitou um e outro:

— Hesito em levantar a questão, mas é difícil para mim acreditar

que Jean-Claude seja parte disso.

— Está falando de Jean-Baptiste — murmurou Tammy, o desdém

evidente ao enunciar o nome.

— Quando visitamos Montségur... ele demonstrou que sabia

muita coisa sobre os cátaros. Não apenas isso, mas também se mostrou

reverente e respeitoso. Era tudo uma encenação?

Sinclair suspirou e passou as mãos pelo rosto.

— Era, sim... e foi apenas uma pequena parte de uma grande

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encenação, pelo que sei. Roland descobriu que Jean-Claude foi preparado

desde a infância para se infiltrar em nossa organização. Sua família é

rica. Contando ainda com os recursos da Guilda, ele pôde criar essa

identidade. E verdade que ele acrescentou o elemento Paschal mais

tarde, o que deveria me deixar desconfiado. Mas eu não tinha motivos

para suspeitar. E persiste o fato de que ele é um estudioso e historiador

competente, um profundo conhecedor de nossa história. Só que em seu

caso não era por uma questão de reverência, mas sim de acordo com

aquela máxima antiga: “Conheça seu inimigo.”

— Há quanto tempo existe essa rivalidade?

— Dois mil anos — respondeu Sinclair. — Mas é unilateral. Nosso

povo não guarda ressentimento contra João. Sempre acolhemos as

pessoas da linhagem do Batista como nossos irmãos e irmãs. Afinal,

somos todos descendentes de Maria Madalena, não é mesmo? É assim

que sempre consideramos.

— Os agitadores estão no outro ramo da família — gracejou

Tammy.

Sinclair acrescentou:

— Mas é importante lembrar que nem todos os seguidores do

Batista são extremistas. Esses fanáticos da Guilda não passam de uma

minoria. Um grupo sempre irado e assustador, surpreendentemente

poderoso, mas, ainda assim, uma minoria. Vamos sair, pois eu gostaria

de mostrar uma coisa.

Os três se levantaram. Tammy disse que não podia ir junto, pois

tinha outra coisa a fazer. Pediu a Maureen para encontrá-la mais tarde na

sala de comunicações.

— Agora que chegamos a esse ponto, quero também lhe revelar

mais algumas coisas que descobri em minhas pesquisas.

Maureen concordou em procurá-la dali a uma hora. Saiu com

Sinclair. O céu ao crepúsculo ainda brilhava com o resto do sol de verão,

enquanto passavam pelo portão do Jardim da Trindade.

— Lembra-se do terceiro jardim? O que não conheceu naquele dia?

Vou mostrá-lo agora.

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Sinclair pegou o braço de Maureen. Passaram pelo chafariz de Maria

Madalena e atravessaram a arcada da esquerda. Um caminho de mármore

levava para um jardim requintado, parecido com o de uma villa italiana.

— Parece... um jardim romano medieval — comentou Maureen.

— E isso mesmo. Sabemos pouco sobre João-José. Até onde eu sei,

não há nada escrito a seu respeito... ou pelo menos não havia até hoje.

Temos apenas um punhado de tradições e lendas locais, passadas de

geração em geração.

— E o que você sabe?

— Apenas que o menino não era filho de Jesus... que era de

João. Também sabíamos o nome certo, João-José, embora algumas

lendas se refiram a ele como João-Yeshua e até João-Marcos. A lenda diz

que em algum momento ele foi para Roma, deixando a mãe e os

irmãos na França. Se isso aconteceu por sua própria iniciativa ou como

parte de um plano geral, é pura especulação. E também não sabemos

qual foi o seu destino. Há duas linhas de pensamento a respeito.

Sinclair levou-a até uma estátua de mármore de um jovem, ao

estilo da Renascença. Ele estava de pé na frente de uma cruz enorme,

mas tinha um crânio na mão.

— Ele foi criado por Jesus. Portanto é possível que tenha integrado

a florescente comunidade cristã em Roma. Mas, se isso aconteceu, é

provável que tenha sofrido uma morte prematura, como muitos dos

primeiros líderes da Igreja, exterminados por Nero. O historiador

romano Tácito disse que Nero “punia com todos os tipos de crueldade os

membros do grupo notoriamente depravado conhecido como

cristãos”. Sabemos que isso era verdade, pelos relatos sobre a morte de

Pedro.

— Acha então que João-José foi martirizado?

— É bem possível. Talvez até tenha sido crucificado junto com Pedro.

É difícil acreditar que alguém com sua origem fosse qualquer outra coisa

que não um líder. E todos os líderes eram executados. Mas há também

outra perspectiva.

Sinclair apontou para o crânio na mão de mármore de João-José.

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— Aqui está outra possibilidade. Uma lenda diz que os seguidores

mais fanáticos de João procuraram seu herdeiro em Roma e

convenceram-no de que os cristãos haviam usurpado o lugar que lhe

pertencia por direito. Que João era o único e verdadeiro Messias e João-

José, como seu filho, era herdeiro do trono do ungido. Alguns dizem que

ele virou-se contra a mãe e a família, aceitando os ensinamentos dos

seguidores de seu pai. Não sabemos onde ele acabou, mas sabemos que

há uma seita muito forte de fiéis de João no Irã e Iraque. São os mandeus.

São pessoas pacíficas, mas muito rigorosas em suas leis e na crença de

que João foi o único e verdadeiro Messias. É possível que sejam

descendentes diretos, que João-José ou seus herdeiros tenham seguido

para o leste, depois de um cisma com os primeiros cristãos. E agora você

já conhece a Guilda dos Justos. Eles alegam que são os verdadeiros

descendentes aqui no Ocidente.

Maureen olhava atentamente para o crânio, enquanto escutava

a explicação de Sinclair. Um pensamento súbito ocorreu-lhe:

— Mas é João! O crânio... aparece em toda a iconografia de Maria...

nos quadros! Ela é sempre mostrada com um crânio e ninguém jamais

foi capaz de me dar uma boa explicação para isso. Sempre há apenas uma

vaga referência à penitência. O crânio representa o arrependimento. Mas

por quê? Agora eu compreendo o motivo. Maria era pintada com o crânio

porque fazia penitência por João... literalmente com o crânio de João.

Sinclair meneou a cabeça de acordo.

— É isso mesmo. E o livro... ela é sempre mostrada com um livro.

— Pode ser apenas a escritura.

— Pode ser, mas não é. Maria é mostrada com um livro porque é o

seu próprio livro, a mensagem que ela deixou para que a encontrássemos.

E espero que nos ofereça a compreensão do mistério do filho mais velho e

seu destino, porque não sabemos o que aconteceu. Torço para que a

própria Madalena esclareça os fatos.

Eles caminharam em silêncio por um momento, ao crepúsculo, no

jardim, a primeira poeira de estrelas surgindo no céu. Maureen finalmente

comentou:

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— Você disse que havia outros seguidores de João que não eram

fanáticos.

— É verdade. São milhões. Nós os chamamos de cristãos.

Maureen lançou-lhe um olhar surpreso. Sinclair acrescentou:

— Falo sério. Pense no seu país. Quantas igrejas se intitulam

batistas? Esses são cristãos que aceitaram a idéia de João como um

profeta. Alguns o chamam de O Precursor e consideram que foi ele

quem anunciou o advento de Jesus. Na Europa, há algumas famílias da

linhagem que se fundiram, misturando o sangue do Batista com o do

Nazareno. A mais famosa dessas famílias foi a dinastia Medici. Eram

integrados, celebrando tanto João quanto Jesus. E nosso Botticelli

também era um deles.

Maureen ficou surpresa.

— Botticelli descendia das duas linhagens?

— Isso mesmo. Quando entrarmos, dê outra olhada na Primavera

de Botticelli. Na extrema esquerda, verá a figura de Hermes, o

alquimista, erguendo o símbolo do caduceu. Suas mãos fazem o gesto de

“Lembre-se de João”, sobre o qual Tammy lhe falou. Ele está nos dizendo,

nessa alegoria à Maria Madalena e ao poder do renascimento, que

devemos também reconhecer João. A alquimia é uma forma de integração

e a integração não deixa margem para o fanatismo e a intolerância.

Maureen observou-o atentamente, uma sincera admiração por

aquele homem aflorando. Ele, que no início considerara um imenso

enigma. Sinclair era um místico e um poeta, um homem que procurava

as verdades espirituais. Mais do que isso, era um bom homem... afetuoso,

dedicado e, obviamente, leal. Ela o subestimara, o que se tornou ainda

mais evidente quando ele fez seu comentário final:

— Na minha opinião, uma atitude de perdão e tolerância é a base

da verdadeira fé. E nas últimas quarenta e oito horas passei a acreditar

nisso mais do que nunca.

Maureen sorriu, deu-lhe o braço e voltaram pelo jardim. Juntos.

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Cidade do Vaticano, Roma

28 de junho de 2005

O cardeal DeCaro terminava um telefonema quando a porta de sua

sala foi aberta abruptamente. Sempre ficava espantado com o fato de o

bispo O'Connor ainda não ter compreendido como era precária sua

posição em Roma. O homem não tinha a menor idéia de sua situação.

DeCaro ainda não determinara se era pura ambição ou completa falta de

tato o que afligia O'Connor. Talvez fossem as duas coisas.

O cardeal escutou com paciência simulada e surpresa irônica,

enquanto o homem falava sobre a descoberta na França. Mas depois o

bispo mencionou algo que fez DeCaro se empertigar. Aquilo era

informação confidencial. Ninguém naquele nível deveria saber por

enquanto sobre os pergaminhos... muito menos sobre seu conteúdo.

— Quem é seu informante? — perguntou o cardeal, assumindo

um tom de indiferença.

O'Connor remexeu-se na cadeira. Ainda não estava preparado para

revelar sua fonte.

— Podemos confiar nele... e confiar muito.

— Lamento não poder considerar o assunto a sério se você reluta ou

é incapaz de me dar mais detalhes, Magnus. Deve compreender quanta

desinformação passa por aqui. Não podemos investigar tudo.

O bispo Magnus O'Connor tornou a mudar de posição na cadeira,

embaraçado. Não ousava revelar sua fonte, pelo menos ainda não... era o

único trunfo que lhe restava. Se entregasse a fonte, não tinha a menor

dúvida de que a procurariam diretamente. O que deixaria O'Connor sem

poder ou envolvimento naquela situação histórica tão importante. Além

disso, havia outros a que teria de se submeter, não apenas DeCaro e o

Conselho do Vaticano.

— Falarei com o informante para saber se posso revelar sua

identidade.

O cardeal DeCaro deu de ombros, o que deixou o bispo muito

irritado. A indiferença na recepção de uma notícia tão fantástica não era o

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que ele queria ou esperava.

— Muito bem. Obrigado pela informação. Pode sair agora e voltar

para suas obrigações.

— Mas não quer saber o que exatamente descobriram, Sua Graça?

O cardeal DeCaro fitou o clérigo irlandês por cima dos óculos de

leitura.

— Fontes anônimas não me interessam. Boa-noite, senhor. Que

Deus o abençoe e acompanhe.

DeCaro virou as costas, pegou uma pilha de papel e passou a

examiná-la, como se o bispo lhe tivesse dito uma coisa corriqueira, algo

como o sol nascia pela manhã e se punha ao final da tarde. Onde estava a

surpresa? A preocupação? A gratidão?

Fervendo de indignação, o bispo O'Connor murmurou uma

resposta e deixou a sala. Não tinha mais o que fazer em Roma, pelo

menos por enquanto. Iria para a França. E mostraria a todos do que era

capaz.

Château des Pommes Bleues

28 de junho de 2005

Como prometera, Maureen encontrou-se com Tammy na sala de

comunicações depois do passeio pelo jardim com Sinclair. Primeiro,

passou pelo escritório para ver como andava Peter, que estava absorvido

na tradução do segundo livro. O primo levantou os olhos e soltou um

som ininteligível, ansioso por voltar ao trabalho. Maureen compreendeu

que não era um bom momento para interrompê-lo e foi procurar Tammy.

Havia um clima de exultação por todo o castelo, um burburinho de

história e excitamento. Maureen especulou o quanto os criados

saberiam, mas também presumiu que fossem todos leais, de absoluta

confiança. Roland e Sinclair estavam reunidos para discutir as medidas

de segurança até que o resto do evangelho de Maria estivesse traduzido e

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tomassem uma decisão sobre o que fazer depois. Ninguém ainda falara

abertamente a respeito e Maureen sentia-se curiosa em relação ao que

Sinclair tencionava fazer... e quando.

— Entre logo! — exclamou Tammy, quando viu Maureen parada

na porta.

Maureen foi se sentar no sofá, ao lado de Tammy. Recostou a

cabeça, com um gemido.

— O que há de errado?

— Nada... e tudo ao mesmo tempo. Eu só queria saber de uma

coisa. Minha vida algum dia voltará a ser como antes?

Tammy respondeu com uma risada gutural:

— Não. Portanto é melhor você se acostumar com isso logo. —

Ela pegou a mão de Maureen e acrescentou, num tom mais

compreensivo: — Sei que a maior parte é novidade para você e que teve

muito para processar em pouco tempo. Só quero que você saiba que é

minha heroína, está bem? E Peter é meu herói, diga-se de passagem.

— Obrigada. — Maureen suspirou. — Mas acha mesmo que o

mundo está preparado para esse rompimento de seu sistema de

crença mais sagrado? Eu acho que não.

— Discordo — declarou Tammy, com sua convicção habitual. —

Creio que o momento nunca foi melhor. Estamos no século XXI. Não

queimamos mais as pessoas na fogueira por heresia.

— Tem razão. Apenas esmigalhamos seus crânios.

Maureen passou a mão atrás da cabeça para dar ênfase.

— Aceito o argumento. Sinto muito.

— Estou apenas sendo dramática. Já me sinto bem. — Maureen

gesticulou para a tela da televisão. — Em que está trabalhando agora?

Tammy tinha o controle remoto na mão. Apontou-o para a

televisão, enquanto continuava a falar:

— Lembra que estávamos olhando para retratos de pessoas da

linhagem? — Ela soltou o botão de pausa e imagens surgiram na tela.

— Rei Fernando da Espanha. Lucrécia Bórgia. Maria I, da Escócia. Bonnie

Prince Charlie. A imperatriz Maria Teresa, da Áustria, e sua filha mais

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famosa, Maria Antonieta. Sir Isaac Newton.

Tammy parou de falar por um momento, enquanto surgiam na

tela as imagens de vários presidentes americanos.

— E é nesse ponto que chegamos aos americanos, a começar

por Thomas Jefferson. E vamos avançando até os tempos modernos.

Uma foto da reunião de uma grande família americana apareceu

na tela.

— Quem são eles?

— A reunião da família Stewart, em Cherry Hill, New Jersey. Tirei no

ano passado. Esta outra foto também. Pessoas que parecem comuns,

em lugares comuns, mas são todas da linhagem.

Maureen lembrou-se de uma coisa.

— Alguma vez esteve em McLean, na Virgínia?

Tammy ficou perplexa.

— Não. Por quê?

Maureen relatou as inesperadas experiências em McLean e a

adorável dona de livraria que conhecera ali.

— Seu nome era Rachel Martel e...

Tammy interrompeu-a:

— Martel? Você disse Martel?

Maureen confirmou com um movimento de cabeça, ao que Tammy

desatou a rir.

— Não é de admirar que ela tenha visões, Reenie. Martel é um

dos mais antigos nomes da linhagem. Carlos Martel foi o avô de

Carlos Magno. Se você procurar naquela parte da Virgínia, aposto que

vai encontrar uma grande concentração de famílias da linhagem. É bem

provável que tenham pedido asilo durante o Grande Terror... foi assim

que muitas famílias nobres francesas mudaram-se para os Estados

Unidos. A Pensilvânia também tem muitas.

Maureen riu.

— Então é por isso que há tantas visões ali. Terei de ligar para

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Rachel quando voltar aos Estados Unidos e informá-la.

As duas tornaram a concentrar sua atenção na tela, onde

apareceu outra foto de reunião de família. Tammy explicou:

— Essa é a reunião da família St. Clair, em Baton Rouge, no verão

passado. A Louisiana tem a maior concentração de famílias da linhagem

por causa do legado francês ali. Você tem um conhecimento pessoal

disso. Está vendo esse homem aqui?

Tammy clicou no controle remoto, parando na imagem de um jovem

músico de rua, os cabelos compridos, tocando um saxofone no

Quarteirão Francês. Soltou o botão de pausa para permitir que a bela

música do sax se espalhasse pela sala, antes de apertar de novo.

— Seu nome é James St. Clair. Desabrigado. Sobrevive à custa

de expedientes ilícitos. Mas toca um sax que deixa a gente com vontade

de chorar. Sentei-me na esquina e conversei com ele durante três horas.

Um homem bonito e inteligente.

— Todas essas pessoas sabem que são da linhagem?

— Claro que não. Essa é a beleza de tudo e o ponto final em meu

filme. Em dois mil anos de história e evolução, há provavelmente cerca de

um milhão de pessoas no mundo com o sangue de Jesus Cristo nas

veias.

Talvez mais. E não há nada de elitista ou secreto nisso. Pode ser o

cara que põe suas compras em sacos no supermercado ou o caixa do

banco. Ou o desabrigado que parte seu coração cada vez que pega um

saxofone.

Peter trabalhava incessantemente, mas seu perfeccionismo

prevaleceu e mais dois dias passaram antes que estivesse pronto para

partilhar a tradução do último pergaminho. O Livro do Tempo das Trevas.

Maureen adormecera no sofá na tarde do segundo dia, satisfeita

por se encontrar perto do evangelho de Maria, enquanto era traduzido.

Foi despertada pelo som dos soluços do primo.

Levantou os olhos e viu Peter, com a cabeça nas mãos, entregando-

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se à exaustão e à emoção. Maureen não foi capaz de determinar, no

entanto, qual era a emoção. Seria de pesar ou alegria? Exultação ou

devastação? Maureen olhou para Sinclair, sentado no outro lado da mesa,

na frente de Peter. Ele sacudiu a cabeça para Maureen, também

aturdido, sem entender o que desencadeara aquela reação tão intensa de

Peter. Ela aproximou-se do primo e pôs a mão em seu ombro,

gentilmente.

— O que houve, Pete?

Peter removeu as lágrimas dos olhos e fitou-a.

— Prefiro deixar que ela conte — sussurrou ele, apontando para a

tradução à sua frente. — Pode chamar os outros, por favor?

Tammy e Roland foram imediatamente para o escritório de Sinclair.

Fora fácil encontrá-los, pois agora os dois estavam sempre juntos,

abertamente. E também não queriam ficar muito longe dos

pergaminhos, com medo de perder alguma coisa. Ambos notaram a

expressão febril de Peter quando entraram na sala.

Roland chamou uma criada e pediu chá para todos. Depois que ela

se retirou e a porta foi fechada, Peter começou a falar.

— Ela dá o nome de O Livro do Tempo das Trevas. Relata a última

semana na vida de Cristo.

Sinclair já se preparava para fazer uma pergunta quando Peter o

deteve:

— Ela conta a história muito melhor do que eu.

E ele passou a ler.

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... E importante saber quem Judas Iscariotes foi para compreender sua

relação comigo, com Easa, e com os ensinamentos d'O Caminho. Como

Simão, ele era um zelote, fervoroso em seu desejo de expulsar os romanos de

nossas terras. Já matara por essa causa e se sentia mais do que disposto a

matar de novo. Até que Simão levou-o a Easa.

Judas adotou O Caminho, mas sua conversão não foi rápida nem

fácil. Judas era de uma família de fariseus e tinha uma perspectiva estrita

da lei. Seguira João quando era jovem e era desconfiado por tudo o que

ouvira a meu respeito. Com o passar do tempo, acabamos nos tornando

amigos, irmão e irmã n'0 Caminho... por causa de Easa, que era o grande

unificador. E, no entanto, havia ocasiões em que as antigas convicções de

Judas afloravam, o que causava tensão entre os seguidores. Era um líder

natural e apregoava sua posição de autoridade. Easa admirava isso, o que

não acontecia com outros seguidores. Mas eu entendia Judas. Como eu,

seu destino era ser incompreendido.

Judas achava que deveríamos aproveitar todas as oportunidades

para expandir o número de seguidores e insistia que poderíamos conseguir

isso destinando donativos aos pobres. Easa designou-o tesoureiro. Era sua

responsabilidade levantar dinheiro para distribuição entre os necessitados.

Era um homem honesto e consciencioso em suas obrigações, mas também

um homem que não fazia concessões.

A maior discussão ocorreu na noite em que ungi Easa, em Betânia, na

casa de Simão. Peguei um vaso de alabastro lacrado, que nos fora

enviado de Alexandria. Estava cheio de uma mistura dispendiosa e

aromática, nardo e mirra. Rompi o lacre e ungi a cabeça e os pés de Easa

com o bálsamo, proclamando-o nosso Messias, de acordo com as tradições

de nosso povo e com o Cântico dos Cânticos, que nos foi dado por Salomão.

Foi um momento espiritual para todos nós, repleto de esperança e

simbolismo.

Mas Judas não aprovou. Ficou furioso e me censurou na frente de

todos. Ele disse: “Esse bálsamo era valioso. Lacrado, teria alcançado um

bom preço, um dinheiro que poderíamos acrescentar às nossas coletas para

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os pobres.”

Não precisei defender minhas ações, porque Easa fez isso por

mim. Censurou Judas, dizendo: “Vocês sempre terão os pobres, mas nem

sempre me terão. E deixem-me dizer mais uma coisa. Onde quer que os

feitos de minha vida sejam pregados, através do mundo, o nome dessa

mulher será pronunciado junto com o meu. E que isso seja um memorial

para ela e para as boas obras que realizou por nós.”

Foi um momento que demonstrou que Judas não compreendia

plenamente os rituais d'O Caminho. Deixou alguns dos eleitos

perturbados e houve quem nunca mais sentisse total confiança em

Judas depois disso.

Como eu disse, não guardo ressentimento contra ele, por esse ou

qualquer outro ato. Judas não podia superar quem era em seu coração e

sempre foi autêntico nesse ponto.

Ainda lamento sua perda.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DO TEMPO DAS TREVAS

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CAPITULO DEZENOVE

Jerusalém

33 AD

Fora um dia memorável para os nazarenos. A entrada de Easa em

Jerusalém recebera o apoio popular que haviam previsto. Na verdade, até

ultrapassara as expectativas. Quando os seguidores foram chamados

para aprender a Oração do Caminho — Easa chamava-a agora de Oração

do Senhor ou Pai-Nosso —, a gruta no monte das Oliveiras provou ser

muito pequena. Os seguidores que acompanhavam a pregação de Easa

espalharam-se pelas encostas, esperando sua vez de chegar perto do

ungido, seu Messias, para que ele pudesse lhes ensinar também a oração.

Easa permaneceu ali até ter certeza de que cada homem, mulher e

criança conhecia e compreendia a oração, gravada para sempre em seu

coração.

Na descida do monte, a caminho da cidade, os nazarenos foram

parados por uma dupla de centuriões romanos. Eram guardas na

entrada leste da cidade, o portão mais próximo da residência de

Pilatos, na Fortaleza Antonia. Interrogaram o grupo num aramaico

precário, querendo saber para onde ia. Easa adiantou-se e surpreendeu-

os, ao falar num grego perfeito. Apontou para um dos centuriões, com a

mão toda enfaixada, e perguntou:

— O que aconteceu?

O centurião não esperava por uma pergunta, mas não hesitou em

responder:

— Caí nas rochas quando estava na vigia noturna.

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— Vinho demais — gracejou seu parceiro, um homem que

parecia detestável, com uma cicatriz na face esquerda.

O centurião machucado lançou-lhe um olhar irritado:

— Não dêem atenção ao que Longinus diz. Perdi o equilíbrio.

Easa limitou-se a comentar:

— É doloroso para você.

O centurião balançou a cabeça para confirmar que doía muito.

— Devo ter quebrado, mas ainda não tive tempo para procurar

alguém que me cure. O serviço dobrou com a multidão que veio a

Jerusalém para a Páscoa.

— Posso ver? — perguntou Easa.

O homem estendeu a mão enfaixada, que pendia do pulso num

ângulo insólito. Easa pôs uma das mãos por baixo e a outra por cima,

gentilmente. Fechou os olhos, fez uma oração silenciosa, enquanto

apertava a mão do centurião, com todo o cuidado, mas firme. Os olhos

do romano ferido ficaram arregalados, enquanto os nazarenos

observavam a cura que estava ocorrendo. Até mesmo o centurião com a

cicatriz no rosto parecia extasiado. Easa abriu os olhos e fitou o romano:

— Você deve se sentir melhor agora.

Quando ele soltou a mão, ficou patente para todos que estava agora

curada. O romano gaguejou, incapaz de falar. Removeu as ataduras e

flexionou os dedos. Os olhos azuis ficaram turvos com as lágrimas não

derramadas, enquanto tornava a fitar Easa. Não ousou falar, com medo

de perder sua posição entre os outros soldados. Easa percebeu isso e

salvou-o de qualquer embaraço.

— O Reino de Deus é seu, se quiser alcançá-lo. Dê a boa nova

aos outros.

E ele seguiu em seu caminho, em torno das muralhas da cidade,

acompanhado por Maria, as crianças e os eleitos.

Maria sentia-se exausta, mas não se queixava. O peso da criança

em seu ventre retardava-lhe os movimentos, mas experimentava tanta

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alegria que se recusava a fazer qualquer queixa. Estavam na casa de José,

tio de Easa, um homem rico e influente, com terras nos arredores da

cidade. Felizmente o pequeno João e Tamar dormiam. O dia também

deixara-os esgotados.

Maria tinha tempo de refletir sobre a capacidade de curar de Easa,

enquanto sentava à sombra fresca do jardim de José, sozinha. Easa, o tio

e alguns seguidores planejavam visitar o Templo no dia seguinte. Maria

optara por deixá-los conversando a respeito, enquanto levava as crianças

para a cama e tirava um momento para descanso e oração. As outras

Marias e as muitas mulheres que seguiam Easa haviam se reunido

naquela noite para uma cerimônia de oração. Mas Maria Madalena

preferira não comparecer. A solidão era um privilégio cada vez mais raro e

tinha de aproveitar sempre que podia.

Mas ao recordar a cura do soldado romano, ela se descobriu

apreensiva e desconcertada, sem entender o motivo. Não sabia por que a

deixava nervosa. O centurião era bastante decente para um soldado

romano, quase simpático. E ela também pudera sentir a aflição do

homem, como Easa, quando ele ficara quase às lágrimas pelo milagre da

cura. O outro soldado era muito diferente, um homem rude e agressivo,

como todos esperavam dos mercenários que haviam derramado tanto

sangue judeu. Aquele homem com a cicatriz no rosto, chamado

Longinus, fora surpreendido pela cura, mas não seria afetado

positivamente. Era muito calejado pelas batalhas para permitir que isso

acontecesse.

O homem de olhos azuis, entretanto, não ficara apenas curado,

mas também mudara. Ao recordar a ocasião, Maria sentiu uma carga

elétrica percorrer-lhe o corpo, a estranha sensação à margem da profecia

que sempre a advertia quando estava prestes a vislumbrar o futuro. Ela

fechou os olhos e tentou captar a imagem, mas nada encontrou. Sentia-

se muito cansada ou talvez simplesmente não estivesse fadada a ver

aquilo.

O que poderia ser? A reputação de Easa como grande curador

espalhara-se por Israel durante os últimos três anos. Ele era famoso e

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respeitado por isso entre o povo. E, ultimamente, parecia não exigir

qualquer esforço. O poder curativo de Deus manifestava-se por

intermédio de Easa com tanta facilidade que era uma alegria contemplar.

Easa não curara o próprio irmão de Maria depois que os médicos de

Betânia declararam que ele estava morto? No ano anterior, Maria e Easa

haviam voltado às pressas da Galiléia, ao receberem o aviso de Marta de

que Lázaro estava muito doente. A viagem, contudo, demorara mais

tempo do que o previsto. Ao chegarem, Lázaro já exalava o mau cheiro da

morte. Era tarde demais, todos diziam. Os poderes de cura de Easa eram

espantosos, mas ele nunca levantara ninguém dos mortos. Era pedir

demais a qualquer homem, Messias ou não.

Mas Easa entrara com Maria na casa de Marta e dissera às duas

que mantivessem sua fé, enquanto oravam com ele. Depois, entrara

sozinho no quarto de Lázaro e começara a orar sobre o morto.

Easa saíra do quarto e fitara os rostos pálidos de Maria e Marta.

Sorrira tranqüilizador para as duas, antes de voltar ao quarto.

— Lázaro, meu querido irmão, levante-se da cama e cumprimente

sua esposa e sua irmã, que oraram com tanto fervor para você voltar para

nós.

Marta e Maria observaram atônitas Lázaro passar pela porta.

Estava pálido e fraco, mas vivo.

Houve uma celebração por toda a Betânia quando se espalhou a

notícia de que Lázaro ressuscitara dos mortos. As fileiras dos

nazarenos aumentavam à medida que as boas obras de Easa se

tornavam lendárias por toda a terra. Ele continuara em seu caminho de

cura, parando no rio Jordão, perto de Jericó, para batizar novos

seguidores, da maneira como João ensinara. As multidões reunidas para

batismo eram imensas. Com isso, os nazarenos permaneceram à

margem do rio por mais tempo do que tencionavam.

O fato de Easa ter assumido o manto de João era popular entre

muitos moderados, que oravam para que ele fosse mesmo o Messias. O

próprio Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia, proclamara que via em

Easa o espírito do Batista redivivo. Mas nem todos estavam satisfeitos

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com esses acontecimentos. O apoio de Herodes a Easa não foi bem

recebido pelos seguidores mais devotados de João nem pelos ascetas

essênios mais radicais. Condenaram Easa por usurpar a posição de João.

A ira mais intensa, contudo, não era contra o nazareno, mas sim contra a

mulher com quem ele se casara.

No dia seguinte, no rio, Maria Madalena caíra no chão de repente,

as mãos comprimindo a barriga. Começara a passar mal e a vomitar

violentamente, enquanto os seguidores se reuniam ao seu redor. Easa

correra para o seu lado assim que soube que estava doente.

A Grande Maria estava presente na ocasião e cuidara de Maria

Madalena. Examinara a nora com todo o cuidado, avaliando seus

sintomas. Virara-se para o filho e dissera, solene:

— Já vi isso acontecer antes. Não é uma doença natural.

Easa balançara a cabeça compreendendo:

— Veneno.

A Grande Maria confirmara a avaliação do filho e acrescentara:

— E não é um veneno qualquer. Reparou como as pernas

ficaram paralisadas? Ela não pode movimentar a parte inferior do corpo

e tende a expelir as entranhas com o vômito. É um veneno oriental

conhecido como Veneno dos Sete Demônios. Tem esse nome por causa

dos sete ingredientes mortais que contém. Mata, de uma forma lenta e

dolorosa. Não há antídoto conhecido. Terá de trabalhar com Deus para

salvar sua esposa, meu filho.

A Grande Maria esvaziara a área ao redor, a fim de criar a paz e a

privacidade necessárias para Easa trabalhar na cura da esposa. Easa

segurara as mãos de Maria e rezara, até sentir que o veneno evaporava do

corpo e que a cor da saúde voltava. Enquanto Easa desempenhava a

obra de Deus, seus discípulos se empenharam em descobrir quem

envenenara Maria Madalena.

O culpado nunca foi descoberto. Deduziram que um fanático

seguidor de João chegara ao Jordão disfarçado em convertido e dera o

veneno para Maria, sempre confiante. Desse dia em diante, Maria

Madalena tomara o cuidado de não beber ou comer em público, a menos

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que soubesse exatamente de onde vinha a comida. E passou o resto de

sua vida memorável sob ataque daqueles que a desprezavam ou

invejavam.

A cura de Maria Madalena do Veneno dos Sete Demônios, efetuada

por Easa, espalhou-se para se tornar uma das grandes lendas do

ministério do nazareno. Como tantas coisas na história de Maria

Madalena, esse evento também seria distorcido e usado contra ela.

As recordações de Maria foram interrompidas por um grito no pátio.

Era Judas e procurava desesperado por Easa. Maria foi ao seu encontro.

— O que aconteceu?

— Minha sobrinha, a filha de Jairo. — Judas ofegava. Correra para

chamar Easa. — Talvez seja tarde demais, mas preciso de sua ajuda.

Onde ele está?

Maria levou-o ao local na casa de José em que os homens estavam

reunidos. Easa percebeu a agitação no rosto de Judas. Levantou-se no

mesmo instante para cumprimentá-lo. Judas explicou que a sobrinha

fora acometida por uma febre que vinha afligindo as crianças de

Jerusalém e arredores. Muitas haviam morrido. Quando Judas soubera e

procurara Jairo, os médicos já diziam que era tarde demais. Por causa de

sua posição no Templo e acesso a Pôncio Pilatos, Jairo podia contar com os

melhores médicos. Judas sabia que a menina provavelmente já deveria ter

morrido, àquela altura, se os médicos haviam desistido de salvá-la. Mesmo

assim, tinha de tentar.

Judas tinha mais ternura em seu coração do que permitia que os

outros vissem. E como um homem que rejeitara o curso da vida familiar

para servir como um revolucionário, ele passara a adorar as sobrinhas e

sobrinhos. Ismédia, de doze anos, a criança que estava doente, era sua

predileta.

Easa percebeu o medo e a angústia de Judas pela possibilidade de

perder a sobrinha. Olhou para Maria Madalena:

— Pode viajar esta noite?

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Ela concordou com a cabeça. Claro que iria. Haveria uma mãe

desesperada naquela casa. Maria teria de confortá-la, por todos os meios

possíveis.

— Então vamos partir agora — declarou Easa.

Ele nunca hesitava, como Maria já sabia. Não importava qual fosse a

hora, não importava quão cansado pudesse estar se sentindo. Nunca se

recusava a uma pessoa que precisava de sua ajuda. Nunca mesmo.

Judas seguiu atrás deles, lançando um olhar de gratidão a Maria.

O que a deixou animada. Talvez Judas se aprofunde n'O Caminho, no fundo de

seu coração, depois desta noite, pensou ela com uma grande esperança em

seu espírito.

A posição de Jairo na comunidade era excepcional. Era um fariseu e

um líder no Templo, mas também o enviado especial junto ao

procurador. Nessa função, reunia-se com Pôncio Pilatos todas as

semanas, para tratar dos problemas de Roma e do relacionamento pacífico

com o Templo e os judeus de Jerusalém.

Jairo desenvolvera um vínculo especial com Pilatos. Os dois

conversavam sobre política diante de um tabuleiro de xadrez, durante

horas a fio. Raquel, a esposa de Jairo, acompanhava-o nessas visitas à

Fortaleza Antonia. Passava horas com a esposa de Pilatos, Cláudia Prócula.

A amizade entre as duas era cada vez maior, apesar das óbvias diferenças.

Cláudia era uma romana de imensa envergadura. Não apenas era a esposa

do procurador da Palestina, mas também a neta de um césar e a filha

adotiva predileta de outro. Em contraste, Raquel era uma judia de uma

das famílias mais nobres de Israel. Mas essas duas mulheres de origens

tão diversas encontravam-se para partilhar o que tinham em comum,

como esposas de homens poderosos e, acima de tudo, como mães.

A filha de Raquel, Ismédia, muitas vezes acompanhava a mãe

nessas visitas. A menina adorava brincar nas salas elegantes. À medida

que foi se tornando mais velha, Cláudia permitiu-lhe o acesso a seus

cosméticos e loções. Aos doze anos, Ismédia estava a caminho de se tornar

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Ismédia.

Cláudia sentia um afeto especial por Ismédia, que costumava

brincar com seu próprio filho, Pilo. Com sete anos de idade, o filho de

Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula era um mistério para a maioria das

pessoas em Jerusalém. Eram bem poucos os que sequer sabiam que

Pilatos tinha um filho. Pilo tinha uma deformidade na perna esquerda

que limitava seus movimentos, deixando-o confinado na fortaleza. Pilatos

não revelava a existência do filho para o mundo porque sabia que o

menino jamais cresceria para se tornar um soldado, nunca seguiria os

passos do pai. Uma criança nascida em desprazer tão óbvio dos deuses

era um péssimo presságio para um romano.

Cláudia, porém, via um lado de Pilatos que os outros não

conheciam. Sabia como ele chorava pelo menino na calada da noite,

quando julgava que ninguém podia vê-lo ou ouvi-lo. Pilatos gastara

metade de sua fortuna em médicos caríssimos da Grécia, em curandeiros

de muitos outros lugares. Cada uma dessas sessões terminara com Pilo se

desmanchando em lágrimas de dor e frustração. Cláudia abraçava o

menino enquanto ele soluçava até dormir. O pai saía furioso da fortaleza e

permanecia por longas horas à distância de ambos cada vez que isso

acontecia.

A jovem Ismédia tinha infinita paciência com o menino. Sentava-se

com ele contando histórias e cantando as mais diversas canções. Cláudia

sorria para si mesma ao observá-los pelo canto dos olhos, enquanto

trabalhava em bordados com Raquel. O que Pilatos diria se ouvisse o filho

cantando em hebraico? Mas Pilatos quase nunca entrava nos aposentos da

esposa e por isso ela sabia que nunca teria de se preocupar com essa

possibilidade.

Foi numa dessas visitas que Cláudia Prócula ouviu falar pela

primeira vez de Easa, o nazareno. Raquel mostrava-se fascinada pelo

homem e seus feitos. Regalava Cláudia com as histórias das curas e

milagres de Easa. O marido de Raquel, Jairo, não permitia que ela falasse

do nazareno, que era considerado um adversário de Jônatas Anás e

Caifás. Esses homens consideravam Easa um renegado, alguém

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desrespeitoso com a autoridade do Templo. Jairo não podia se permitir

qualquer relação com esse homem.

E, no entanto, o primo de Jairo, Judas, era agora um dos

seguidores eleitos de Easa. Isso era às vezes embaraçoso para Jairo,

mas ele conseguia conciliar muito bem a situação. E Raquel exultava

sempre que ouvia mais relatos sobre os milagres do nazareno.

— Você deveria levar Pilo para ver esse Easa — sugerira Raquel

um dia.

Os olhos de Cláudia tornaram-se turvos de pesar.

— Como poderia? Meu marido nunca nos permitiria sermos vistos

na companhia de um pregador nazareno itinerante. Seria inadmissível.

Raquel não tornara a mencionar o assunto, por deferência à

amiga. Cláudia, contudo, nunca parara de pensar a respeito. Ismédia

contraíra a febre terrível que a fazia definhar. Poucos dias depois, Pilo

também ficara doente.

Já havia uma multidão enlutada em torno da casa de Jairo.

Famílias de agregados do Templo e muitos cidadãos de Jerusalém,

beneficiados pela generosidade de Jairo e Raquel, compareceram para

expressar seu apoio. Ismédia, a filha amada, havia morrido.

Judas abriu caminho através da multidão, avançando apressado

para a casa do primo. Easa e Maria seguiam logo atrás. Easa segurava

firme a mão de Maria, a fim de não perder a esposa tão pequena no

meio da multidão. André e Pedro vinham em seguida, como proteção

extra. Era óbvio para os nazarenos que a criança sucumbira à febre,

mas isso não os desanimou. Entraram na casa.

Na Fortaleza Antonia, Pôncio Pilatos e Cláudia Prócula ouviram a

sentença de morte do filho único. Os médicos haviam desistido. Não

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havia mais nada que pudessem fazer pela criança e, no final das contas,

ele já não nascera fraco? Pôncio Pilatos deixou o quarto sem dizer nada

e passou o resto da noite trancado, sozinho, lendo filósofos estóicos.

Encontrara um meio de aceitar a perda, ao melhor estilo romano.

Cláudia ficou sozinha com Pilo, que definhava cada vez mais.

Mantivera-o na cama e chorava baixinho porque seu filho tão doce e

corajoso estava morrendo. Foi assim que o escravo grego encontrou sua

ama ao entrar no aposento.

O escravo adiantou-se

— Minha ama, trago notícias da casa de Raquel e Jairo. São de

grande tristeza, mas talvez haja também uma esperança. A adorável

Ismédia acaba de morrer.

— Não!

Cláudia ficou angustiada. Era demais para suportar. Que

justiça podia haver quando uma jovem tão adorável quanto a filha de

Rachel deixava este mundo na mesma noite em que o seu amado filho

fora desenganado?

— Espere, minha ama, pois há mais. Raquel me pediu para avisar

que Easa, o curador nazareno, estará em sua casa esta noite. Mesmo que

seja tarde demais para Ismédia, pode não ser para Pilo.

Cláudia tinha pouco tempo para considerar as conseqüências.

Era evidente que Pilo se encontrava à beira da morte.

— Vamos agasalhá-lo e levá-lo para casa de Raquel. Providencie o

transporte. E depressa, por favor.

O grego, que amava muito o menino, providenciou tudo. Carregou o

menino até o veículo, acompanhado por Cláudia. Ela não deixou qualquer

aviso para Pilatos. Achava que o marido nem notaria sua ausência. Além

do mais, era perfeitamente capaz de tomar sozinha uma decisão tão

importante. Afinal, não era a neta de um césar?

Pilo resistiu. Ainda respirava quando o grego e a mãe o levaram.

Cláudia tinha o rosto coberto por véus, pois não queria parecer

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ostensivamente imperial ao chegar à casa de uma família judia enlutada.

O escravo grego conduziu o veículo tão depressa quanto podia através da

multidão, até que não dava mais para continuar. Então saltou, ajudou

sua ama a descer e seguiram pelo resto do caminho a pé. Não foi fácil.

Espalhara-se a notícia de que o milagroso Messias da Galiléia estava a

caminho e havia inúmeros curiosos ocupando as ruas próximas, além

dos fiéis. Mas o pequeno grupo que saíra da Fortaleza Antonia era

determinado e conseguiu alcançar a porta da casa.

— Gostaríamos de falar com Raquel, a esposa de Jairo — disse o

escravo grego. — Por favor, avise que Cláudia, sua amiga querida, está

aqui.

A porta foi aberta, mas eles não puderam passar no mesmo

instante, pois Judas montava guarda no lado de dentro. Disse ao guarda

no lado de fora que nenhum observador poderia entrar até que Easa

fosse embora. Judas não queria testemunhas, para a proteção de Easa.

Jairo era um fariseu e havia outros membros do Templo rondando a casa,

esperando para ver o que aconteceria... homens que não eram tão

favoráveis à missão do nazareno. Se Easa não conseguisse ressuscitar

Ismédia, seria condenado como um impostor. Se fosse bem-sucedido em

seus esforços, poderiam alegar feitiçaria ou algum tipo de embuste. A

acusação seria terrível não apenas para Easa, mas também para Jairo.

Afinal, se fosse feita por um fariseu que testemunhara a cena, poderia

acarretar a pena de morte. O curso de ação mais seguro era manter toda

e qualquer testemunha fora da casa, onde só ficariam as pessoas mais

próximas da família.

Cláudia Prócula ouviu apenas a instrução de Judas de que não

eram permitidos visitantes. Mas quando a porta foi aberta, ela teve um

vislumbre da atividade no interior da casa. Viu Ismédia no leito de morte,

branca e sem vida, sua pira fúnebre ao lado, através da densa cortina de

incenso. Raquel se sentava ao seu lado, segurando a mão da filha, a

cabeça baixa, em rendição à dor angustiante. Uma mulher com o véu

vermelho de sacerdotisa nazarena estava de pé ao lado de Raquel, uma

torre de força e compaixão no cenário trágico. Jairo, um homem que

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Cláudia conhecia como orgulhoso e forte, estava arriado no chão, inerte,

aos pés de Easa, o Nazareno. E suplicava a Easa que curasse sua filha.

Mais tarde, depois que tudo naquela noite assentara, Cláudia falou

sobre sua primeira visão de Easa:

— Nunca me senti assim antes. Apenas vê-lo me proporcionou um

sentimento de calma, como se estivesse na presença de amor e luz.

Mesmo naquele breve instante, compreendi o que ele era... que era mais

do que humano, que estávamos todos abençoados pela eternidade por

nos encontrarmos em sua presença, mesmo que apenas por alguns

segundos.

A porta não foi logo fechada, como Cláudia esperava. Judas

amparava o primo Jairo, dominado pelo desespero, enquanto o guarda do

lado de fora se mantinha fascinado demais pelo que acontecia lá dentro

para lembrar que devia fechá-la. Cláudia observou quando Easa deslocou-

se para o lado da cama. Olhou para a mulher de vermelho, que Cláudia

saberia mais tarde que era sua esposa, Maria Madalena, e pôs as mãos

nos ombros de Raquel. Sussurrou em seu ouvido alguma coisa que

ninguém mais pôde ouvir, mas Raquel ergueu a cabeça pela primeira vez.

Depois, Easa inclinou-se para a criança e beijou sua testa. Pegou a mão de

Ismédia entre as suas e fechou os olhos para orar. Depois de um momento

longo e silencioso, em que ninguém ousava sequer respirar, Easa abriu os

olhos e disse:

— Levante, criança.

Cláudia não recordou depois tudo o que aconteceu em seguida. Foi

como um sonho estranho, que nunca é lembrado duas vezes da mesma

maneira. A criança mexeu-se lentamente, a princípio, depois sentou-se

na cama e chamou a mãe. Raquel e Jairo gritaram, ao se adiantar para

abraçar a filha. Em determinado momento, Cláudia caíra de joelhos,

enquanto a multidão avançava. Houve aclamações entre os seguidores

do nazareno e amigos da família, celebrando o milagre da ressurreição de

Ismédia. Mas também houve vaias e assovios, com fariseus e adversários

do nazareno gritando que era uma blasfêmia, alegando ser tudo aquilo

magia.

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Cláudia entrou em pânico. Com o avanço da multidão, ela e o grego

foram afastados da porta. Pilo estava desesperadamente doente e ela

sabia que o filho poderia morrer ali mesmo, na frente da casa de Jairo.

Fora arriscado, até mesmo cruel, trazer o menino para aquele lugar,

quando ele poderia exalar o último suspiro no conforto de sua cama. E,

agora, tudo parecia inútil. O nazareno estava indo embora, cercado por

seus seguidores, e Cláudia não conseguiria alcançá-lo.

Toda a esperança já se esvaía de Cláudia quando viu Maria Madalena

parar no meio da multidão. Alguma coisa aconteceu entre as duas nesse

instante, a comunicação mística entre mães em momentos difíceis.

Seus olhos se encontraram por alguns segundos. Depois, Maria olhou

para a criança nos braços do escravo grego. Sem dizer nada, Maria

pôs a mão no ombro de Easa. Ele parou, virando-se para ver o que

Maria queria. Fitou Cláudia e sorriu para ela, uma expressão de pura

esperança e luz. Cláudia nunca foi capaz de dizer quanto tempo isso

durou, já que sua atenção foi logo desviada pelos gritos do filho.

— Mamãe! Mamãe! — Pilo debatia-se nos braços do grego. — Ponha-

me no chão!

Cláudia podia ver que a cor voltava ao rosto de Pilo. Ele parecia

saudável e forte outra vez. Em menos de um instante, o filho agonizante

de Pilatos e Cláudia recuperara por completo a saúde. E quando o

menino ficou de pé no chão, tornou-se patente para Cláudia e o grego

que Pilo não tinha mais a perna deformada. Ele se encaminhou para a

mãe, em passos firmes.

— Olhe só, mamãe! Posso andar!

Cláudia abraçou seu lindo filho, enquanto observava os vultos do

curador nazareno e da pequena esposa, se afastando e desaparecendo no

meio da multidão delirante de Jerusalém.

— Obrigada — sussurrou ela.

E por mais estranho que pudesse parecer, embora os dois

estivessem agora tão longe que não podia mais vê-los, Cláudia teve certeza

de que a ouviram.

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A cura de Pilo foi uma espada de dois gumes para Pôncio Pilatos.

Sentia-se maravilhado porque o filho estava completamente curado. Era

agora saudável de uma maneira que ele e a mulher jamais haviam julgado

que fosse possível. Era agora um herdeiro apropriado de um legado

romano, um menino que poderia se tornar um homem e um soldado.

Mas o método da cura era perturbador. Pior ainda, Cláudia e Pilo

mostravam-se agora obcecados pelo nazareno, que se tornava um

problema cada vez maior para as autoridades romanas e os sacerdotes

do Templo.

Pilatos reunira-se com Caifás e Anás, a pedido deles, no início do

dia, para discutir os acontecimentos no portão leste da cidade. O

nazareno chegara montado num burro, do modo previsto por um dos

profetas judeus. Isso desagradara os sacerdotes, que achavam que a

atitude era uma declaração de proporções messiânicas. Embora as brigas

religiosas dos judeus não fossem um problema imediato para Pilatos,

corria o rumor de que aquele nazareno vinha se intitulando Rei dos

Judeus, o que era considerado traição contra o césar. A medida que a

Páscoa se aproximava, Pilatos sentia a pressão para agir contra Easa, se

ele efetuasse mais algum ato controvertido em Jerusalém.

Para complicar a situação, Herodes, o tetrarca da Galiléia,

manifestara-se contra Easa, numa mensagem particular que mandara

para Pilatos: “Tenho informações de que esse homem quer se tornar rei

de todos os judeus. Ele se tornou perigoso para mim, para você e para

Roma.”

Esses eram os problemas logísticos para Pilatos. Suas preocupações

filosóficas eram muito diferentes.

Que força aquele nazareno controlava ou canalizava que lhe

permitia fazer coisas como ressuscitar uma criança? Se não fosse por

Pilo, Pilatos teria considerado que os milagres de Easa não passavam

de embuste e aceitaria as acusações de blasfêmia feitas pelos fariseus.

Mas Pilatos sabia melhor do que ninguém que a doença e a deformidade

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de Pilo eram muito reais. Ou pelo menos haviam sido. Porque agora não

existiam mais.

Havia alguma coisa que tinha de ser explicada. A razão romana

exigia uma resposta, uma compreensão do que ocorrera. E Pôncio Pilatos

sentia-se muito frustrado porque não conseguia encontrar nada.

Sua esposa, entretanto, não precisava ser convencida de coisa

alguma. Testemunhara dois grandes milagres, exultara na presença e

glória do nazareno e seu Deus. Ficara ao mesmo tempo insatisfeita e

desapontada quando o marido recusara-se a permitir que comparecesse

a qualquer das pregações de Easa em Jerusalém. Gostaria de levar o filho,

permitir que Pilo conhecesse aquele espantoso nazareno, que era mais

do que um homem. Mas Pilatos proibira, veementemente.

O procurador romano era um homem complexo, cheio de dúvidas,

medo e ambição. A tragédia de Pôncio Pilatos viria quando todas essas

coisas superassem o que outrora tivera de amor, força ou gratidão.

Já era bem tarde quando os nazarenos chegaram à casa de José.

Easa, como sempre, estava bem desperto e pronto para mais uma

reunião com seus seguidores, antes de se retirar. Precisavam avaliar as

opções em Jerusalém no dia seguinte. Maria permaneceu na sala para

ouvir a conversa, a fim de obter uma indicação do que o dia seguinte lhes

reservaria. O incidente na casa de Jairo deixava claro que o povo de

Jerusalém estava dividido na questão de Easa como o Messias. Havia

mais partidários do que detratores. Todos, porém, desconfiavam de que

os detratores eram homens poderosos, ligados ao Templo.

Judas falou para os homens reunidos. Parecia esgotado e exausto,

mas a exultação do que testemunhara no leito de morte de Ismédia

mantinha-o desperto.

— Jairo me chamou de lado quando estávamos de partida. Sente-

se mais propenso a nos apoiar, agora que constatou que Easa é o

verdadeiro Messias. Ele advertiu que os conselhos de fariseus e saduceus

ficaram perturbados pelas multidões de partidários nazarenos que

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entraram na cidade. Somos mais fortes em número do que eles jamais

imaginaram. Sentem medo de nós e podem fazer alguma coisa, se

acharem que representamos uma ameaça, para eles ou para a paz do

Templo durante a Páscoa.

Pedro cuspiu no chão, indignado:

— Todos nós sabemos qual é o motivo. A Páscoa é a época mais

lucrativa do ano no Templo, a ocasião em que se fazem mais sacrifícios,

em que entra mais dinheiro.

— O tempo da colheita para os mercadores e agiotas —

acrescentou seu irmão, André.

— E, entre todos, os que mais lucram são Jônatas Anás e seu

genro, Caifás — concordou Judas. — Não será surpresa se

constatarmos que os dois se encontram à frente da campanha para

nos desacreditar. Precisamos tomar todo o cuidado ou eles vão

pressionar Pilatos a ordenar a prisão de Easa.

Easa ergueu a mão quando os discípulos começaram a falar ao

mesmo tempo, em sua agitação.

— Paz, meus irmãos. Iremos ao Templo amanhã e mostraremos a

nossos irmãos Anás e Caifás que não temos a intenção de desafiá-los.

Podemos coexistir pacificamente e não precisamos excluir uns aos

outros. Participaremos como celebrantes na semana sagrada, junto com

nossos irmãos nazarenos. Eles não podem nos negar a admissão e talvez

possamos decidir uma trégua.

Judas hesitava.

— Não creio que consiga arrancar qualquer concessão de Anás.

Ele nos despreza e a tudo que ensinamos. A última coisa que Anás e

Caifás querem neste momento é que as pessoas acreditem que não

precisam do Templo para alcançar Deus.

Maria levantou-se de seu lugar no chão e sorriu afetuosa para

Easa, no outro lado da sala. Seus olhos se encontraram e ele respondeu

com o mesmo sorriso terno. Maria virou-se para sair pela porta dos

fundos. Sentia-se cansada demais para tratar de estratégia naquele

momento. Além do mais, se Easa decidira fazer uma demonstração no

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Templo, no dia seguinte, ela tinha um forte pressentimento de que todos

precisariam descansar um pouco.

Maria partilhava um quarto com as crianças, como sempre fazia

quando viajavam. Achava que isso lhes proporcionava uma sensação de

segurança, um elemento necessário para crianças que muitas vezes leva-

vam uma existência nômade. Os dois eram angelicais no sono. João-José

com suas pestanas escuras sobre as faces azeitonadas e Sara-Tamar,

aninhada numa nuvem de cabelos castanho-avermelhados lustrosos.

A mãe resistiu ao impulso de beijá-los. Tamar em particular tinha

um sono leve e Maria não queria acordá-la. As crianças precisariam

descansar se quisessem acompanhá-la a Jerusalém no dia seguinte;

achavam a cidade excitante e pitoresca. Enquanto permanecessem sãs e

salvas em Jerusalém, ela permitiria a visita. Mas se a situação se

tornasse difícil para Easa, teria de tirar as crianças da cidade o mais

depressa possível. Se o pior acontecesse, nem mesmo as terras de José

seriam seguras. Teria de levá-las para Betânia, para a segurança da casa

de Marta e Lázaro.

Maria finalmente acomodou-se em sua cama e fechou os olhos

para o dia movimentado. Mas o sono não veio com facilidade, embora ela

desejasse e precisasse muito. Havia muitos pensamentos e imagens em

sua cabeça. Em sua imaginação, viu a mulher de véu, a que trazia uma

criança, na frente da casa de Jairo. Maria compreendera duas coisas no

mesmo instante em que olhou para ela. Primeiro, que não era uma judia

nem uma plebéia. Havia algo em sua atitude e na qualidade do véu que

não correspondia a qualquer tentativa de se fundir com as pessoas

comuns. E Maria sabia muito bem quando uma mulher tentava se

disfarçar; não fizera isso muitas vezes, quando a situação exigia?

A segunda coisa notada por Maria fora o profundo desespero da

mulher. A angústia emanava dela, quase como se sua dor clamasse pela

ajuda de Easa. Quando observara a mulher, Maria percebera o mesmo

senso de perda que toda mãe experimenta quando se descobre impotente

para salvar sua criança. E um sofrimento que não distingue raça, credo

ou classe, uma aflição que só pode ser partilhada por pais que também

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sofrem. Durante os três últimos anos de ministério, Maria já vira aquela

expressão inúmeras vezes. Mas também observara a expressão passar do

desespero à alegria.

Easa salvara muitas crianças de Israel. E, agora, ao que tudo

indicava, também salvara uma criança de Roma.

Easa e seus seguidores foram para o Templo, conforme combinado,

no dia seguinte. Maria levou as crianças para Jerusalém, parando para

testemunhar a atividade e debate que ocorriam fora dos muros sagrados.

Easa se encontrava no centro de uma multidão cada vez maior,

pregando o Reino de Deus. Alguns homens na multidão contestavam e

faziam perguntas, a que Easa respondia com a calma habitual. As

respostas eram meticulosas e incorporavam os ensinamentos das

escrituras. Não demorou muito para que se tornasse evidente para todos

que seu conhecimento da lei não podia ser questionado.

Mais tarde, mediante informações fornecidas por Jairo, eles

descobriram que Anás e Caifás haviam infiltrado seus agentes na

multidão. Tinham instruções para fazer perguntas deliberadamente

desafiadoras. Se qualquer das respostas de Easa pudesse ser

interpretada como uma blasfêmia, ainda mais tão perto do Templo e na

presença de tantas testemunhas, os sacerdotes teriam provas adicionais

para usar contra ele.

Um homem adiantou-se para fazer uma pergunta sobre a questão

do casamento. Judas reconheceu-o. Sussurrou no ouvido de Easa que

era um fariseu que descartara a esposa mais velha para se casar com

outra mais jovem.

— Gostaria que me dissesse uma coisa, rabino — questionou o

homem. — É legítimo para um homem deixar a esposa por qualquer

causa? Ouvi-o dizer que não é, embora a lei mosaica determine o

contrário. Moisés até escreveu uma lei para o divórcio.

Easa elevou a voz, para que soasse alta e clara por toda a multidão.

A resposta foi incisiva, pois ele sabia das muitas transgressões daquele

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homem.

— Moisés escreveu esse preceito por causa da dureza de seu

coração.

A maior parte dos homens na multidão era de habitantes de

Jerusalém, que conheciam aquele fariseu. Houve um murmúrio geral,

por causa do insulto implícito. Mas Easa ainda não acabara. Cansara-se

daqueles fariseus corruptos, que viviam, como reis decadentes, dos

donativos de judeus pobres e devotados. Considerava o atual grupo de

sacerdotes, homens que eram incumbidos de respeitar a lei com absoluta

integridade, como hipócritas. Pregavam uma vida santificada, mas não

era assim que viviam. Durante os últimos anos de seu ministério, Easa

passara a compreender que o povo de Jerusalém fora intimidado por

aqueles homens; temia o poder dos fariseus tanto quanto o de Roma. Sob

muitos aspectos, os homens do Templo eram tão perigosos para os

judeus comuns quanto os romanos, porque tinham a autoridade de

interferir em vários pontos de sua existência cotidiana.

— Não leu as escrituras? — A pergunta de Easa era outra agressão

ao homem que sabia ser um sacerdote. Ele correu os olhos pela multidão.

— Aquele que criou tudo fez o homem e a mulher e disse: “Por isso o

homem deixará seu pai e sua mãe e se ligará à mulher e os dois se

tornarão uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu.” E

eu digo que aquele que abandona uma esposa, o que só se justifica se

houver adultério, também estará cometendo adultério.

— Se assim é, talvez seja melhor não casar — gracejou alguém na

multidão.

Easa não riu. O sacramento do casamento e a importância da

vida familiar eram fundamentais para o modo de vida dos nazarenos.

Ele manifestou-se contra a idéia:

— Alguns homens nascem eunucos, enquanto outros se

tornam eunucos. O casamento só é inaceitável para esses homens.

Todos os homens capazes de receber o sacramento do casamento devem

recebê-lo, pois essa é a vontade do Senhor Nosso Pai. E que cada um se

mantenha fiel à sua esposa até que a morte os separe.

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Furioso, o fariseu revidou:

— E qual é o seu caso, Nazareno? A lei de Moisés determina que

qualquer homem que for o ungido deve se casar com uma virgem, nunca

com uma prostituta, nem mesmo com uma viúva.

Era um ataque ostensivo a Maria Madalena, que se mantinha um

pouco afastada da turba, com as crianças. Optara por se vestir com

simplicidade naquele momento, para se fundir à multidão, sem usar o véu

vermelho de sua posição. Sentiu-se contente por isso naquele momento,

enquanto esperava pela resposta de Easa, que foi outra indagação para o

fariseu:

— Sou da casa de Davi?

— Não é essa a questão — protestou o homem.

— E Davi foi um grande rei, um ungido de nosso povo?

O fariseu respondeu na afirmativa, consciente de que era levado

para uma armadilha, mas sem saber como se esquivar.

— Não pediria que eu emulasse Davi, se fosse seu herdeiro? Quem

aqui não pensaria que é uma coisa certa e honrada seguir pelo mesmo

caminho de Davi?

A pergunta de Easa ressoou pela multidão, os homens

reconhecendo com movimentos de cabeça e gestos que seria mesmo certo

acompanhar os passos do Grande Leão de Judá.

— Pois é exatamente isso o que eu fiz. Assim como Davi se casou

com a viúva Abigail, uma filha de Israel bem criada, também me casei

com uma viúva de sangue nobre.

O fariseu sabia que caíra em sua própria armadilha e sumiu no

meio da multidão. Mas os homens da estrutura de poder do Templo não

se deixavam dissuadir com tanta facilidade. À medida que disparavam

perguntas para Easa, as repostas se tornaram como flechas afiadas,

atingindo o alvo em cheio. Outro homem, esse vestido com um traje

sacerdotal fez uma pergunta agressiva:

— Ouvi dizer que você e seus discípulos violam a tradição dos

anciãos. Por que eles não lavam as mãos quando comem pão?

A multidão se tornava mais e mais irrequieta a cada pergunta.

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Havia dissidência no ar e Easa sabia que teria de assumir uma posição

firme. Aqueles homens de Jerusalém não eram como os cidadãos da

Galiléia e outras regiões. Ali, na cidade grande, os homens exigiam ação.

Podiam seguir um rei que os livraria do cativeiro, mas primeiro ele teria de

provar sua força e valor.

A voz sonora de Easa ressoou ao redor, não em defesa dos

nazarenos, mas em condenação aos sacerdotes:

— Por que vocês violam os mandamentos de Deus com sua tradição?

São todos hipócritas. — O insulto ricocheteou nas paredes de pedra do

Templo. — Meu primo João chamava-os de víboras e tinha toda a razão.

A referência ao Batista era uma hábil inclusão, a fim de conquistar

o apoio dos mais conservadores entre a multidão.

— João era conhecido como Isaías reencarnado e foi Isaías quem

disse: “Esta pessoa me honra com os lábios, mas seu coração está

longe de mim.” Vejo agora que os fariseus se fazem limpos por fora, mas

por dentro estão cheios de ganância e iniqüidade. O Senhor não fez o

que está fora tanto quanto o que está dentro?

Easa ergueu a voz para o argumento final:

— E essa é a diferença entre os nazarenos e os sacerdotes.

Gostamos da pureza de nossas almas, a fim de podermos manter o Reino

de Deus assim na Terra como no céu.

— Isso é blasfêmia contra o Templo! — gritou alguém.

Houve um grande tumulto, alguns se manifestando em

concordância, outros em oposição.

A escalada na agitação não parava. Observando de um espaço

elevado, perto do Templo, Maria pensou a princípio que era apenas uma

reação às palavras ousadas de Easa. Na verdade, boa parte da

consternação dos homens de Jerusalém derivava disso. Mas vários

discípulos nazarenos abriam caminho pela multidão para alcançar

Easa, levando um grupo de homens e mulheres que haviam ouvido falar

das curas milagrosas. Era um bando lamentável, tragédias que eram

consideradas menos do que humanas em sua cegueira ou aleijão.

Os agiotas e mercadores protestaram contra a invasão do complexo

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do Templo por essas pessoas estropiadas. Aquela era sua semana mais

lucrativa e o bando afastaria os visitantes. Quando um cego esbarrou na

mesa de um mercador, derrubando os produtos ali expostos, os tempera-

mentos se exaltaram. O mercador foi atrás do cego com uma vara,

gritando insultos contra o pobre coitado e os nazarenos. Easa partiu

em ajuda do cego. Ajudou-o a se levantar quando caiu, gentilmente, e

sussurrou alguma coisa em seu ouvido. Gesticulou para que os

discípulos levassem a massa de estropiados para o lado, depois virou-se

para o cruel mercador, que atacara o cego. Gritou bem alto, a ser ouvido

acima do burburinho crescente:

— Está escrito que o Templo de Deus deve ser uma casa de

orações. Vocês o transformaram num covil de ladrões.

Outros mercadores gritaram em desafio a Easa, enquanto ele

atravessava o complexo do Templo. O caos beirava uma explosão quando

Easa ergueu as mãos e pediu que os discípulos o seguissem até a frente

do complexo do Templo. Os infelizes com suas enfermidades e deformações

foram levados até ali. E Easa, começando pelo cego, curou cada um e

todos.

As multidões em torno do Templo se tornaram ainda mais

numerosas. Apesar das palavras incisivas de Easa — ou talvez por causa

delas —, os homens e mulheres de Jerusalém se mostravam cada vez

mais interessados naquele nazareno, o homem que curava em segundos

as enfermidades de muitos anos. Maria não podia mais vê-lo. Além disso,

Tamar e João estavam irrequietos, tinham a energia de crianças

pequenas num ambiente excitante. Maria afastou-se do espetáculo,

levando-os para o mercado.

Ao percorrerem as ruas de calçamento de pedras, Maria avistou à

sua frente as túnicas pretas de dois fariseus. Teve certeza de ouvir um

deles mencionar o nome de Easa. Puxou o véu para cobrir a maior parte

do rosto e decidiu acompanhá-los, exortando as crianças a andarem

mais depressa. Os homens falavam em voz alta, mas em grego...

provavelmente porque pensavam que as pessoas comuns ao redor não

entenderiam. Mas Maria, nobre e instruída, falava grego fluentemente.

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E compreendeu muito bem quando um dos fariseus olhou para o

outro e declarou:

— Enquanto esse nazareno estiver vivo, não teremos paz. Quanto

mais cedo nos livrarmos dele, melhor para todos nós.

Maria encontrou Bartolomeu no mercado. Ele fora incumbido de

comprar provisões para os outros discípulos. Maria pediu-lhe que

procurasse Easa, para avisar que ele e os discípulos não deveriam passar

aquela noite na casa de José. Precisavam sair de Jerusalém, pela

segurança de Easa. Maria achava que a casa que outrora partilhara com

Lázaro e Marta, em Betânia, era a melhor opção. Ficava a uma distância

segura de Jerusalém, mas não precisariam de muito tempo para voltar à

cidade... ou sair às pressas.

Easa encontrou-se com Maria e as crianças em Betânia, ao final

daquela tarde. Alguns discípulos permaneceram com eles na casa de

Lázaro, enquanto os outros iam para a casa vizinha de Simão, um amigo

de confiança. Fora com a ida à casa de Simão que Maria desobedecera às

ordens de Lázaro e João, tantos anos atrás, com conseqüências tão

desastrosas. Os discípulos reuniram-se naquela noite para avaliar os

acontecimentos do dia e planejar o que os aguardava.

Maria estava preocupada. Sentia que a opinião em Jerusalém se

dividia, metade a favor do extraordinário nazareno que fazia milagres e

defendia os pobres, metade contra um arrivista que desafiava o Templo e

suas tradições, de uma maneira tão agressiva. Maria relatou a conversa

dos sacerdotes que ouvira no mercado. Enquanto ela falava, Judas

chegou da casa de Jairo, trazendo mais notícias.

— Ela tem razão — disse ele para Easa. — Jerusalém está se

tornando um lugar perigoso para você. Jairo diz que Caifás e Anás pedem

sua execução como blasfemo.

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Pedro ficou furioso.

— Mas que absurdo! Easa nunca disse uma blasfêmia... não

poderia, mesmo que quisesse. Eles é que são os blasfemos, aquelas

víboras!

Easa não parecia preocupado.

— Não tem importância, Pedro. Os sacerdotes não têm

autoridade para condenar um homem à morte. Somente Roma pode

fazer isso e os romanos não reconhecem as leis de blasfêmia dos judeus.

Os homens discutiram noite afora sobre o melhor curso de ação

para o dia seguinte. Maria queria manter Easa fora de Jerusalém por um

dia, para permitir que alguma calma retornasse à cidade. Mas ele não

quis saber. Esperavam multidões ainda maiores no dia seguinte, à medida

que se espalhassem por Jerusalém as notícias sobre os ensinamentos e

as curas extraordinárias de Easa. Não desapontaria os que viajassem

até Jerusalém para vê-lo. Também não se curvaria à pressão dos

sacerdotes. Agora, mais do que nunca, precisava ser um líder.

Maria preferiu permanecer em Betânia, com as crianças e Marta,

no dia seguinte. O peso da gravidez já cobrava seu tributo e a longa

caminhada de volta a Betânia, às pressas, deixara-a exausta. Manteve

as crianças ocupadas em casa, enquanto tentava não pensar nos

perigos que Easa poderia enfrentar dentro dos muros da cidade.

Sentada no jardim da frente, observando Tamar brincar na relva,

Maria avistou uma mulher toda de preto se aproximar. Tinha o rosto e

os cabelos cobertos. Era impossível determinar se a visitante era

conhecida ou não. Não poderia ser uma amiga de Marta ou uma nova

vizinha que Maria não conhecia?

A mulher chegou mais perto e Maria pôde ouvir uma risada

reprimida:

— Qual é o problema, irmã? Não me reconhece depois de tanto

tempo?

O véu foi retirado para revelar a mulher como sendo Salomé, a

princesa herodiana. Seu rosto perdera a aparência roliça da infância e

adquirira o viço intenso da maturidade. Maria correu para abraçá-la e

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assim ficaram por um minuto inteiro. Depois da morte de João,

tornara-se muito perigoso para Salomé ser vista em companhia dos

nazarenos. Sua presença era uma ameaça para Easa. Se queriam

conquistar os seguidores de João, não podiam manter qualquer ligação

com a mulher que era injuriada como a responsável pela prisão de João,

se não mesmo por sua morte.

A separação compulsória fora difícil para ambas. Salomé sentia-se

desesperada por não poder completar o treinamento para sacerdotisa e

pela separação das pessoas que passara a amar mais do que a sua própria

família. Para Maria, era amargura também, depois do julgamento injusto

sobre as duas pela execução de João.

Salomé soltou um grito de alegria quando viu a pequena Tamar na

relva.

— Olhe só para ela! Está igual a você!

Maria acenou com a cabeça, sorrindo.

— Por fora. Porque por dentro ela já está se desenvolvendo na

imagem do pai.

Maria relatou algumas histórias de Tamar, como ela se mostrara

especial desde o momento em que começara a andar. Curara um cordeiro

que caíra numa vala, em Magdala, com o toque de sua mão infantil.

Tinha apenas três anos, mas já falava tudo... em grego e aramaico.

— Ela é uma criança afortunada por ter pais assim —

comentou Salomé, com uma expressão sombria. — Deve continuar a ter

pai e mãe, o que é o motivo para minha presença aqui. Recebi informações

do palácio, Maria. Easa corre um grande perigo.

— Vamos entrar, para conversar num lugar em que poderemos ter

certeza de que pequenos ouvidos como aqueles... — ela gesticulou

para Tamar — ...não poderão nos ouvir.

Maria inclinou-se para pegar Tamar, mas a barriga enorme

dificultou o movimento. Salomé estendeu os braços.

— Venha com sua irmã Salomé.

Tamar hesitou. Olhou para a desconhecida, depois para a mãe, à

espera de uma garantia. Um sorriso de dentes pequenos e perfeitos

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surgiu no rosto de Tamar, quando foi para o colo da princesa herodiana.

Entraram na casa juntas. Maria pediu a Marta para ficar com

Tamar. Marta pegou a menina.

— Vamos procurar seu irmão, minha princesinha.

João estava lá fora, andando pelas terras, em companhia de Lázaro.

Marta compreendeu que devia sair também, a fim de permitir que

houvesse privacidade na conversa entre Maria e Salomé.

— Quero que preste atenção, porque é muito urgente. Meu

padrasto esteve hoje na casa de Pôncio Pilatos e fui em sua companhia.

Ele deve viajar para Roma dentro de dois dias e precisava de um relatório

completo do procurador. Usei a desculpa de visitar Cláudia Prócula, a

esposa de Pilatos, para ir junto. Sabia que meu padrasto não negaria

esse pedido. Mas é claro que não era esse o meu motivo. Sabia que

você, Easa e os outros estavam aqui. E onde está a Grande Maria?

— Também veio para cá. Passará a noite com algumas mulheres

na casa de José. Mas posso levá-la ao seu encontro amanhã, se você

quiser.

Salomé assentiu com a cabeça e continuou o relato:

— Usei a desculpa de visitar Cláudia para saber quais eram as

notícias em Jerusalém sobre os nazarenos. Não imaginava o quanto

Cláudia tinha para me contar. Não é espantoso, Maria?

Maria não sabia a que Salomé se referia.

— O quê?

Os olhos escuros e exóticos de Salomé se tornaram ainda maiores.

— Ainda não sabe? Ah, Maria, é extraordinário! Na noite em que

Easa ressuscitou a filha de Jairo, se lembra de uma mulher que apareceu

na multidão no momento em que vocês saíam? Estava acompanhada

por um grego, que carregava uma criança doente, um menino.

Tudo voltou à mente de Maria agora. Por duas noites vira o rosto

daquela mulher antes de dormir.

— Claro que me lembro. Falei com Easa, que se virou para curar

a criança. Isso é tudo o que sei com alguma certeza, além do fato de a

mulher não parecer plebéia nem judia.

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Salomé riu:

— Maria, aquela mulher é Cláudia Prócula. Easa curou o filho

único de Pôncio Pilatos!

Maria ficou atônita. Tudo fazia sentido agora... o sentimento de

presciência, de saber que alguma coisa estava acontecendo além da

própria cura.

— Quem sabe disso, Salomé?

— Ninguém além de Cláudia, Pilatos e o escravo grego. Pilatos

proibiu a esposa de falar a respeito. E diz a quem indaga sobre a milagrosa

recuperação do menino que foi a vontade dos deuses romanos. — Salomé

fez uma careta para demonstrar seu desagrado. — A pobre Cláudia estava

morrendo de vontade de contar a alguém e sabia que eu fui uma

nazarena.

— Você ainda é uma nazarena — disse Maria, gentilmente,

enquanto se levantava para deixar que o bebê crescendo em seu ventre

ajustasse a posição.

Ela precisava refletir sobre aquela importante informação. Era

sensacional, mas ainda não ousava esperar muito do fato. Com toda a

certeza, a ocorrência só podia ser parte dos desígnios de Deus para Easa.

Ele dera a Cláudia uma criança doente, para que Easa pudesse curá-la e

provar sua divindade para Pilatos? E se o destino de Easa fosse parar nas

mãos de Pôncio Pilatos, ele não poderia aplicar uma sentença ao homem

que salvara a vida de seu filho, não é mesmo?

— Mas há mais, irmã. — A expressão de Salomé voltou a se

tornar sombria. — Quando eu estava lá, o horrível Jônatas Anás e seu

genro apareceram, para conversar com Pilatos e meu padrasto.

Ela fez uma pausa, sorrindo.

— Quando ouvi os dois serem anunciados, supliquei a Cláudia que

me indicasse o melhor esconderijo para escutar a conversa.

Maria também sorriu para Salomé, que continuava tão impetuosa

quanto antes.

— Pilatos não queria saber dos sacerdotes e seus argumentos e

tentou descartá-los, como se não fossem importantes, a fim de terminar

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a reunião com Herodes. Pilatos só está interessado na apresentação de

um relatório favorável em Roma, realçando sua competência como

governador. Quer obter um posto no Egito.

Maria escutava, paciente, o coração batendo forte, enquanto

Salomé continuava:

— Mas meu padrasto... o arrogante Herodes... ficou do lado

daqueles dois sacerdotes idiotas. Conseguiram envolvê-lo, dizendo que

Easa se intitulava Rei dos Judeus e queria roubar o trono dos Herodes.

Maria sacudiu a cabeça ao ouvir isso. Era um absurdo, é claro.

Easa não tinha o menor desejo de se sentar num trono deste mundo. Era

o rei no coração do povo, aquele que lhes daria o Reino de Deus. Não

precisava de palácio ou trono para isso. Mas um Herodes inseguro

sentia-se ameaçado por causa das manipulações de Anás e Caifás.

— Ouvi Pilatos procurar Cláudia pouco depois... ele não podia ver

onde eu me escondia... e dizer: “Minha querida, receio que o destino esteja

contra seu Easa, o Nazareno. Os sacerdotes clamam por sua cabeça e

darão um jeito de prendê-lo antes da Páscoa.” Também ouvi Cláudia

dizer: “Mas é claro que você providenciará para que ele seja poupado.”

Pilatos não disse nada e Cláudia insistiu: “Não é?” Depois, não ouvi mais

nada, até que Pilatos se retirou. Quando tive certeza de que ele não estava

mais ali, saí do esconderijo e encontrei Cláudia desesperada. Ela disse

que o marido não a fitara ao sair. Ah, Maria, ela está tão preocupada com

o que pode acontecer com Easa! E eu também estou. Você deve tirá-lo de

Jerusalém.

— Onde seu padrasto pensa que você está agora?

Salomé deu de ombros.

— Eu disse a ele que passaria o dia comprando sedas. Ele está

preocupado demais com sua viagem a Roma para saber ou se importar

onde passarei a noite. Tem suas próprias diversões em Jerusalém.

Maria tentava criar uma estratégia. Devia esperar até que Easa

voltasse para casa naquela noite, para lhe contar tudo. E sabia que não

precisaria de muito estímulo para convencer Salomé a ficar e relatar os

detalhes.

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Salomé ficou e sentiu a maior alegria quando a Grande Maria

apareceu para visitá-las, ao final da tarde. A estimada mãe de Easa levara

as duas outras Marias mais velhas, sua irmã, Maria Jacobina, e sua

prima, Maria Salomé, que era a mãe dos dois mais leais seguidores de

Easa. Era uma honra para Salomé estar na companhia daquelas sábias

mulheres, as fortes — embora com freqüência silenciosas — líderes da

tradição nazarena. Sua alegria, porém, foi de curta duração, assim

como a de Maria Madalena.

— Vejo muitas trevas no horizonte, minhas filhas — disse a

Grande Maria. — Vim até aqui para me encontrar com meu filho.

Devemos todos estar preparados para o teste de força e fé que a Páscoa

nos trará.

As notícias de Jerusalém eram perturbadoras. Multidões ainda

maiores haviam recebido Easa e os nazarenos à entrada da cidade naquela

manhã, causando inquietação entre os guardas romanos. Os nazarenos

haviam se instalado fora do Templo, onde Easa pregara e respondera às

perguntas e desafios. Como acontecera no dia anterior, representantes do

sumo sacerdote e do Templo infiltraram agentes na multidão. A

inquietação aumentara quando mercadores e agiotas censurados no dia

anterior se adiantaram para protestar contra a presença nazarena.

Finalmente, num esforço para manter a paz e evitar um possível

derramamento de sangue, Easa se retirara, com os nazarenos mais leais.

Mais tarde, naquela noite, em Betânia, a combinação das

observações de Salomé, das informações de Jairo e da profecia da Grande

Maria criou um clima de consternação e preocupação. Somente Easa

parecia indiferente às circunstâncias cada vez mais ameaçadoras,

enquanto formulava planos para o dia seguinte.

Simão e Judas, que haviam passado o dia reunidos com seus

irmãos zelotes, tinham um plano:

— Há quantidade suficiente de homens para lutar contra

qualquer um que queira prendê-lo — garantiu Simão. — A multidão

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no Templo amanhã será imensa. Se você enfatizar para o povo que o

Reino de Deus como o conhecemos libertará o povo da opressão de

Roma, a multidão haverá de segui-lo.

— Com que finalidade? — indagou Easa, calmamente. — O resultado

de uma ação assim seria o derramamento do sangue de muitos judeus

inocentes. Esse não é O Caminho. Não, Simão, não estimularei uma

revolta que derrame o sangue de nosso povo na véspera de um dia

sagrado. Como posso mostrar que o Reino de Deus está em cada um e

em todos os homens e mulheres se peço que sangrem e morram por

isso? Não estão considerando o sentido d'O Caminho, meus irmãos.

— Mas O Caminho não existe sem você — interveio Pedro,

bruscamente.

A tensão dos últimos dias aparecia em Pedro mais do que nos

outros discípulos. Ele sacrificara tudo por sua fé em Easa e n'O Caminho.

E não suportava admitir qualquer resultado adverso.

— Está enganado, meu irmão. — Não havia censura no tom de

Easa, que acrescentou para Pedro, afetuoso: — Pedro, tenho dito isso

para você desde que éramos crianças. Você é a pedra sobre a qual nosso

ministério vai florescer. Seu legado viverá por tanto tempo quanto o meu.

Pedro não parecia confortado, nem os outros discípulos. Easa

percebeu isso. Levantou as mãos.

— Meus irmãos e irmãs, quero que me escutem. Lembrem-se do

que eu lhes dei, a compreensão de que o Reino de Deus vive dentro de

cada um e que nenhum opressor jamais poderá tirá-lo. Se mantiverem

essa verdade em seus corações, nunca conhecerão um dia de dor ou

medo.

Depois, ele estendeu as mãos para os discípulos e conduziu-os na

Oração do Senhor.

Easa deixou seus seguidores naquela noite para uma conversa em

particular com a Grande Maria. Depois, ele se despediu da mãe e procurou

a esposa.

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— Não deve ter medo do que vai acontecer, pombinha — disse

Easa, gentilmente.

Maria examinou seu rosto. Easa costumava esconder suas visões dos

seguidores, mas raramente fazia isso com ela. Era a pessoa com quem ele

partilhava quase tudo. Mas, naquela noite, Maria sentiu que ele se

continha.

— O que está vendo, Easa?

— Vejo que meu Pai no Céu formulou Seus desígnios e que devemos

segui-los.

— Para a realização das profecias?

— Se for Sua vontade.

Maria ficou calada por um momento. As profecias eram específicas:

indicavam que o Messias deveria ser levado à morte por seu próprio

povo.

— E o que me diz de Pôncio Pilatos? — indagou Maria, com alguma

esperança. — Tenho certeza de que foi enviado para curar seu filho para

que ele pudesse testemunhar pessoalmente quem e o que você é. Não

acha que isso faz parte dos desígnios de Deus?

— Maria, escute com atenção o que vou dizer, pois é uma grande

compreensão do Caminho Nazareno. Deus cria seu plano e põe cada

homem e mulher em seu lugar. Mas não os obriga a entrarem em ação.

Como qualquer bom pai, o Senhor orienta seus filhos, mas também lhes

dá a oportunidade de tomarem suas próprias decisões.

Maria aplicou a filosofia de Easa à situação atual.

— Acredita que Pôncio Pilatos foi posto em seu lugar por Deus?

— Acredito. Pilatos, sua boa esposa, seu filho.

— E se Pilatos vai ou não nos ajudar... isso não é uma determinação

de Deus?

Easa sacudiu a cabeça.

— O Senhor não nos determina nada, Maria. Ele nos orienta. Cabe

a cada pessoa escolher seu mestre e isso se reduz a uma opção entre

o plano de Deus e os desejos terrenos. Não se pode servir a Deus e servir

também a essas necessidades terrenas. O Reino do Céu vem para aqueles

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que optam por Deus. Não posso dizer o que o senhor Pôncio Pilatos vai

escolher quando chegar seu momento.

Maria escutava com absoluta atenção. Conhecia bem as idéias

nazarenas, mas o exemplo de Pôncio Pilatos apresentado por Easa tornava

seu postulado claro e convincente. Num relance de presciência, ela sentiu

a necessidade de saborear as palavras do marido, de lembrá-las com

precisão, mesmo enquanto ele falava. O momento viria em que teria de

ensiná-las a outros, da mesma forma como Easa ensinara.

— O sumo sacerdote e seus partidários estão determinados a

mandar me prender... e sabemos que não podemos evitar isso —

continuou Easa. — Mas pediremos que me mandem para Pilatos, a

quem apresentarei minha defesa. Caberá, então, à sua fé e consciência

tomar uma decisão. Não importa qual seja, devemos demonstrar por

nossas ações o que sabe mos ser a verdade: quando permitimos que o

Reino de Deus viva dentro de nós, nada neste mundo pode mudar isso...

nem um império, nem um opressor, nem o sofrimento. Nem mesmo a

morte.

Os dois conversaram a noite toda e Easa apresentou seus planos

para o dia seguinte. Maria fez a pergunta que pesava em seu coração

apenas uma vez.

— Não podemos simplesmente deixar Jerusalém esta noite? Voltar

a nossas pregações nas colinas da Galiléia, até que Anás e Caifás

encontrem outra presa para perseguir?

— Você, entre todas as pessoas, devia saber que isso não é

possível, minha Maria. As pessoas nos observam atentamente agora.

Devo dar o exemplo.

Ela moveu a cabeça compreendendo. Easa relatou sua conversa

com a Grande Maria. Haviam decidido que o comparecimento ao Templo

em Jerusalém no dia seguinte seria muito perigoso. Havia a possibilidade

de inúmeros inocentes saírem feridos em tumultos. A maior

preocupação de Easa era com a proteção de seus discípulos. Era ele que o

sumo sacerdote queria pegar, não os outros. Era essa a informação de

Jairo. Não havia motivo para arriscar os outros desnecessariamente. Os

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seguidores mais chegados teriam uma reunião particular, numa

propriedade de José, para uma refeição da Páscoa. Ali, Easa daria

instruções a cada um sobre seu papel no ministério, se ele enfrentasse

um longo período de encarceramento, como acontecera com João... ou

se algo pior acontecesse. Passariam a noite na propriedade de José em

Getsêmani, sob as sagradas estrelas de Jerusalém.

E, ali, Easa deixaria que o prendessem.

— Vai se entregar às autoridades do Templo? — perguntou Maria,

incrédula.

— Não posso fazer isso. As pessoas perderiam toda a fé em nosso

Caminho, se isso acontecesse. Mas devo cuidar para que minha prisão

ocorra fora da cidade, de tal maneira que não haja tumultos e sangue der

ramado. Pedirei a um dos nossos para “me trair”, denunciando às

autoridades onde me encontro. Os guardas irão a Getsêmani, onde não

haverá multidões. Evitaremos, assim, qualquer tumulto.

A mente de Maria era um turbilhão. Tudo acontecia muito

depressa. Um pensamento terrível ocorreu-lhe:

— Ah, Easa... quem poderia ser? Qual entre os nossos teria coragem

suficiente para fazer isso? Não pode imaginar que Pedro ou André seriam

capazes. Muito menos Filipe ou Bartolomeu. Seu irmão Tiago derramaria

o próprio sangue primeiro e Simão, o sangue de outros.

A resposta aflorou de repente e os dois disseram ao mesmo tempo:

— Judas.

A expressão de Easa era solene:

— E é isso o que tenho de fazer agora, minha pombinha. Devo

conversar com Judas e dizer a ele que foi escolhido para essa missão por

causa de sua força.

Ele beijou o rosto da esposa ao se levantar para sair. Ela observou-

o partir com um senso crescente de medo pelo que o dia seguinte traria.

Eles se reuniram na tarde seguinte para fazer uma refeição juntos,

como fora planejado. Easa, seus doze eleitos e todas as Marias. As crianças

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permaneceram em Betânia, com Marta e Lázaro.

Easa iniciou a noite com uma versão do ritual da unção. Era a sua

própria versão, em que ele lavou os pés de cada pessoa na sala. Explicou

que assim reconhecia cada uma como uma criança de Deus, com a

missão especial de pregar a palavra do Reino.

— Dou este exemplo para que façam com outros o que foi feito aqui

com vocês. Para que reconheçam os outros como seus iguais perante

Deus. E lhes darei esta noite um novo mandamento... que amem uns aos

outros da maneira como amo vocês. Pois quando saírem para o mundo,

as pessoas reconhecerão que são nazarenos pela maneira como amam

uns aos outros.

Depois de lavar os pés de todos os seguidores ali reunidos, Easa

levou-os à mesa, para a ceia da Páscoa. Partiu um pedaço de pão ázimo,

abençoou-o e disse:

— Peguem isto e comam, pois este pão é o meu corpo.

Ele pegou também um cálice com vinho e murmurou uma prece de

graças, antes de fazê-lo circular pela mesa.

— Este é meu sangue do novo testamento, que é derramado por

muitos.

Maria observava em silêncio, junto com os outros. Só ela e as

outras Marias conheciam os detalhes dos acontecimentos iminentes.

Quando Easa desse o sinal, Judas deixaria a ceia e procuraria Jairo. Este o

levaria a Anás e Caifás, apresentando Judas como um traidor. Judas

pediria trinta moedas de prata, o que faria com que sua traição parecesse

autêntica. Em troca pelo dinheiro, ele levaria os sacerdotes ao refúgio de

Easa. Ali, longe das multidões imprevisíveis da cidade, seria fácil prendê-

lo.

A tensão era evidente no rosto de Judas, para aqueles que

quisessem ver. Os outros discípulos não haviam sido informados do

plano, pois Easa não queria correr qualquer risco. Não queria que

argumentassem, muito menos que tentassem resistir. Mais tarde,

Maria choraria por Judas e a injustiça da situação. A esta altura, porém,

já seria tarde demais para Judas Iscariotes. Deus criara um lugar para

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ele e Judas decidira ocupá-lo.

Easa virou-se para Judas agora. Entregou-lhe um pedaço de pão

embebido em vinho, dando o sinal combinado.

— O que deve fazer, faça depressa.

Enquanto observava Judas sair da sala, Maria sentiu um aperto

no coração. Não haveria como voltar atrás. Ela fitou a Grande Maria, que

também observava Judas sair, com o destino de Easa nas mãos. As duas

trocaram um olhar nesse instante, cada uma orando silenciosamente

para que Deus protegesse o amado Easa.

Os guardas apareceram em maior número e com uma

impetuosidade que Maria não previra. A noite já seguia avançada quando

Judas surgiu no alto da colina com os soldados do sumo sacerdote. Houve

caos quando o grupo fortemente armado apareceu no local, acordando os

apóstolos. As mulheres mantinham vigília a alguma distância, ao lado de

uma fogueira. Com exceção de Maria Madalena, que esperava junto com

Easa.

Pedro levantou-se de um pulo. Arrancou a espada de um dos

soldados mais jovens, que ficou tão chocado que não reagiu a tempo.

— Senhor, lutaremos por você! — gritou Pedro.

Ele avançou para um homem que reconheceu, Malco, um servo do

sumo sacerdote. Cortou a orelha do homem com a espada. O sangue

escorreu abundante do ferimento. Easa levantou-se e adiantou-se, muito

calmo.

— Já chega, irmãos — disse ele, para Pedro e os outros. Para os

guardas, ele acrescentou: — Guardem suas armas. Ninguém aqui vai

atacá-los. Dou-lhes minha palavra.

Ele foi até Malco, que caíra de joelhos e comprimia a túnica contra a

orelha, a fim de estancar o sangue. Encostou a palma na orelha ferida.

— Você já sofreu o suficiente por isso.

Quando ele retirou a mão, o fluxo de sangue cessara e a orelha

estava curada. Easa ajudou Malco a se levantar e lhe disse:

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— Caifás envia este grupo de homens armados contra mim, como

faria com um ladrão ou assassino? Por quê? Quando eu ia todos os dias

ao Templo, ele não fez qualquer tentativa de me prender, nem de indicar

que eu era um perigo. Esta é mesmo uma hora de trevas para o nosso

povo.

Um dos soldados, um homem usando o emblema de líder,

adiantou-se e perguntou, numa tentativa gutural de falar o aramaico:

— Você é Easa, o Nazareno?

— Sou eu mesmo — respondeu ele, em grego.

Vários seguidores gritaram acusações e perguntas para Judas.

Easa aconselhara-o a não dizer nada se isso acontecesse e Judas

permaneceu obediente. Em vez disso, deu um beijo no rosto de Easa,

gentilmente, esperando com esse gesto que alguns dos discípulos

compreendessem o que ele fora encarregado de fazer.

O soldado no comando do grupo leu as acusações para a prisão e

Easa foi levado para seu destino nas mãos dos sacerdotes.

Maria Madalena manteve-se em vigília, junto com as outras Marias.

Não podiam chegar perto dos homens, pois seria muito arriscado. As

emoções eram intensas e as mulheres não podiam dar a perceber o

quanto já sabiam sobre os acontecimentos da noite.

As Marias empenharam-se em orações e confortaram umas às

outras. Já era de madrugada quando viram uma tocha atravessar o vale

de Quidom, na direção do refúgio. Era um grupo pequeno, dois homens e

o que parecia ser uma mulher pequena. Maria levantou-se quando o

grupo se aproximou e ela pôde reconhecer a princesa herodiana. Correu

para Salomé e abraçou-a. Foi somente então que ela percebeu que o

homem com a tocha era um centurião sem o uniforme... o mesmo

homem de olhos azuis a quem Easa curara do doloroso braço quebrado.

— Irmã, há pouco tempo — disse Salomé, ofegante, indicando

que haviam corrido para chegar ali. — Venho da Fortaleza Antonia.

Cláudia Prócula enviou-me para apresentar seus respeitos e sua

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profunda compaixão pela injusta prisão de seu marido.

Maria meneou a cabeça, encorajando Salomé a continuar e

reprimindo o medo que provocava um frio em suas entranhas. Se a esposa

do procurador romano enviava mensageiros reais no meio da noite, era

porque havia alguma coisa muito errada.

— Easa será levado a julgamento perante Pilatos pela manhã —

continuou Salomé. — Mas Pilatos está sob uma terrível pressão para

condená-lo à morte. Ele não quer fazer isso, Maria. Cláudia diz que

Pilatos sabe que Easa curou seu filho, ou pelo menos se mostra disposto,

à sua maneira romana, a tentar aceitar esse fato. Mas meu

abominável padrasto insiste em exigir a morte de Easa, o mais depressa

possível. Herodes viajará para Roma no Sabá. Disse a Pilatos que quer

uma solução para o “Problema do Nazareno” antes de sua partida. Você

precisa compreender como a situação é grave, Maria. Eles podem executar

Easa. Amanhã.

Tudo acontecia muito depressa. Nenhum deles esperava por isso,

não daquela maneira. Esperavam um longo período de encarceramento,

em que Easa teria a oportunidade de argumentar em sua defesa perante

Roma e perante Herodes. Sempre houvera uma possibilidade de que o

pior acontecesse, mas não tão depressa.

— Cláudia Prócula nos mandou até aqui para buscá-la. Esses

dois homens são de confiança.

Maria levantou os olhos e viu a luz se refletir no rosto do homem

silencioso por trás da tocha. Reconheceu-o agora. Era o grego que

carregava o menino doente na frente da casa de Jairo.

— Eles a levarão até o lugar em que Easa está preso. Cláudia

providenciou para que os guardas não interferissem, até o amanhecer.

Esta pode ser sua última oportunidade de vê-lo. Mas tem de partir o mais

depressa possível.

Maria pediu que esperassem um momento, enquanto ia falar com

a Grande Maria. Sabia que a mulher mais velha nunca seria capaz de

caminhar com a rapidez necessária para alcançar Easa a tempo, mas

era um sinal de respeito oferecer seu lugar à mãe. A Grande Maria

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beijou-lhe o rosto.

— Dê um beijo em meu filho. Diga a ele que estarei lá amanhã,

aconteça o que acontecer. Vá com Deus, minha filha.

Maria e Salomé tiveram de se apressar para acompanhar os

homens silenciosos, que seguiram em passos largos para o leste da

cidade. Maria trocara o véu vermelho, que a identificava como

sacerdotisa nazarena, por um véu preto simples, como o que Salomé

usava. A princesa herodiana disse a Maria, enquanto andavam:

— Mandei um mensageiro para Marta. Easa quer ver as crianças.

Foi o que disse ao mensageiro de Cláudia. — Ela indicou o escravo grego.

— Easa sabia que você não teria tempo de ir a Betânia e voltar com as

crianças, se quisesse vê-lo.

Os pensamentos de Maria eram tumultuados. Não queria que

Tamar e João testemunhassem qualquer coisa traumática no dia

seguinte. Mas, se o pior acontecesse, Easa precisaria ver as crianças pela

última vez. O pequeno João era seu filho tanto quanto Tamar; ele tinha

um amor incondicional pelos dois. A proteção e segurança de todos seria

um problema quando amanhecesse. Maria orou silenciosamente por

um momento, mas agora tinha pouco tempo para pensar a respeito.

Aproximaram-se da prisão em que Easa estava. Até agora, a escuridão os

protegera e não haviam atraído qualquer atenção. Mas seriam obrigados a

descer por um longo lance de escada externa, iluminada por tochas.

O centurião sussurrou instruções. Esperaram por um

instante, enquanto o grego fazia um reconhecimento da área. O escravo

foi até o fundo da escada e fez sinal de que podiam descer. Salomé

permaneceu no alto da escada, de vigia, enquanto o grego assumia o

mesmo papel lá embaixo. Maria e o centurião desceram apressados e

entraram nos corredores da prisão. Ele estendeu a tocha à sua frente,

para iluminar o caminho no espaço subterrâneo. Maria seguia logo

atrás, tentando bloquear os gritos de dor e desespero que ecoavam pelas

paredes de pedra ao seu redor. Sabia que nenhum daqueles sons vinha

Page 412: O Segredo do Anel - Visionvox · horas tenebrosas, em que lembranças mais aterradoras do que pesadelos recusavam-se a ser contidas. Sua filha era agora a única outra sobrevivente

de Easa... não importava quanta dor sofresse, ele nunca gritaria, pois não

estava em sua natureza. Mas ela sentia uma profunda compaixão pelos

outros pobres coitados, que aguardavam seu destino numa prisão

romana.

O centurião tirou uma chave de sob a túnica e a enfiou na

fechadura. Abriu a porta e deixou Maria entrar na cela do marido. Maria

descobriu, muitos anos depois, como Cláudia e Salomé conseguiram

obter as chaves e afastar os guardas. Envolvera grandes quantias em

suborno e um alto custo pessoal para a princesa herodiana. Maria seria

grata pelo resto da vida à romana, Cláudia Prócula, e à sua amiga, a

incompreendida Salomé... não apenas pelo que aconteceu naquela noite,

mas também pelo dia terrível que se seguiria.

Maria teve de resistir ao impulso de gritar em desespero quando viu

Easa. Ele fora espancado... brutalmente. Havia equimoses em seu belo

rosto e ela o viu estremecer quando se levantou para abraçá-la. Ela

sussurrou uma pergunta, enquanto examinava o rosto desfigurado:

— Quem fez isso em você? Os homens de Caifás e Anás?

— Quero apenas que me escute, minha Maria. Há pouco tempo

e muito para dizer. Não há lugar para atribuição de culpa, pois isso só

acarreta a vingança. Quando perdoamos, estamos mais próximos de

Deus. Estamos aqui para ensinar isso aos filhos de Israel e ao resto do

mundo. Leve isto com você e ensine a todos que quiserem escutar, em

minha memória.

Foi a vez de Maria estremecer. Não suportava ouvir Easa falar de si

mesmo daquela maneira, como se a morte fosse inevitável. Ao sentir o

desespero de Maria, ele falou gentilmente:

— Ontem à noite, em Getsêmani, fui orar para o Senhor Nosso

Pai. Pedi-Lhe que me tirasse esse cálice, se fosse essa a Sua vontade. Mas

Ele não o fez. E não fez porque é essa a Sua vontade. Não há outro

meio, entende? O povo não poderá compreender o Reino de Deus sem

um exemplo supremo. Serei esse exemplo. Mostrarei que posso morrer

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pelos outros sem dor ou medo. Nosso Senhor me mostrou o cálice e eu

bebi dele, com alegria. Está feito.

Maria não podia conter o fluxo de lágrimas, mas fazia um esforço

para não soluçar. Qualquer barulho poderia denunciar sua presença. Easa

tentou confortá-la.

— Deve ser forte agora, minha pombinha, porque levará com você o

verdadeiro Caminho Nazareno e terá de ensiná-lo ao mundo. Os outros

também farão o melhor que puderem. Dei instruções a cada um depois

da ceia. Mas só você conhece tudo que há em meu coração e minha

cabeça. Por isso, deve se tornar a próxima líder de nosso povo e nossos

filhos depois de você.

Maria tentava pensar com clareza. Precisava se concentrar nos

últimos pedidos de Easa, não em sua própria dor. Teria tempo para

lamentar mais tarde. Agora, precisava se mostrar à altura da confiança

de Easa, como líder dos nazarenos.

— Nem todos os homens me amam, Easa, como você sabe muito

bem. Alguns não me seguirão. Embora os tenha ensinado que devem

tratar as mulheres como iguais, receio que depois de sua morte... essa

compreensão vá definhar. Como devo comunicar a todos que você me

escolheu para liderar os nazarenos?

— Pensei a respeito esta noite. Primeiro, você é a única que tem

O Livro do Amor.

Easa passara uma grande parte de seu ministério escrevendo sobre

as convicções nazarenas e seus comentários pessoais, num volume que

chamavam de O Livro do Amor. Os outros discípulos sabiam de sua

existência, mas Easa nunca o partilhara com ninguém além de Maria. Era

guardado em segurança na casa da Galiléia.

— Eu sempre disse que O Livro do Amor nunca veria a luz enquanto

eu vivesse, pois seria incompleto durante minha permanência aqui.

Cada pessoa que conheci me ensinou mais sobre a natureza de Deus.

Escrevi tudo n'O Livro do Amor. Quando eu partir, você deve fazer com

que seja a base de todos os ensinamentos que se seguirão.

Maria acenou com a cabeça em compreensão. O Livro do Amor era,

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sem dúvida, um vigoroso memorial a tudo que Easa pregara ao longo da

vida. Os discípulos se sentiriam honrados e reverentes por aprender do

livro.

— Há mais uma coisa, Maria. Darei um sinal aos homens,

alguma coisa para demonstrar de maneira clara que você é a

escolhida para minha sucessora. Não tenha medo, minha

pombinha, pois farei o mundo saber que você é minha discípula mais

amada.

Easa pôs as mãos na barriga estufada de Maria. Ainda havia muito

para dizer.

— Esta criança que você espera, nosso filho, tem o sangue de

profetas e reis, assim como nossa filha. Os descendentes ocuparão seu

lugar no mundo, pregando o Reino de Deus e as palavras escritas n'O

Livro do Amor, para que todas as pessoas conheçam a paz e a justiça, no

mundo inteiro.

O bebê se mexeu em resposta à profecia feita pelo pai.

— Esta criança tem um destino especial nas ilhas ocidentais, por

onde se espalhará a palavra d'O Caminho. Dei a meu tio José instruções

sobre sua criação. Você deve confiar em José e permitir que esta criança vá

para onde Deus a levar.

Maria aceitou. José era um grande homem, sábio, forte e experiente.

Viajava muito, em seu ofício de mercador de estanho. Quando jovem, Easa

acompanhara José até as ilhas verdes e nevoentas a oeste da Gália. Dissera

uma ocasião a Maria que tivera ali a premonição de que O Caminho

conquistaria fiéis entre o povo feroz e de olhos azuis que habitava as ilhas.

— E você deve lhe dar o nome de Yeshua-Davi, por mim e pelo

fundador de nossa linhagem real. O maior rei a reinar neste mundo sairá

de seu sangue.

Maria concordou com o pedido de Easa e perguntou em seguida:

— O que devo fazer em relação a Sara-Tamar?

Easa sorriu à menção de sua preciosa filha.

— Ela deve ficar com você até que seja crescida, quando fará sua

opção. Nossa Tamar tem a sua força. Mas Israel não será um lugar seguro

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para você e as crianças. Já combinei com José para levar vocês e todos

os outros que quiserem para o Egito. Alexandria é um importante centro

de estudos e um lugar seguro para nossa gente. Você pode ficar ali ou

continuar a viagem para terras do oeste. Deixarei a decisão a seu critério,

Maria. Deve decidir o que é melhor para que os ensinamentos dos

nazarenos se espalhem pelo mundo. Siga o seu coração e confie em Deus

para guiá-la.

— E o que fazer com o pequeno João?

Easa sempre tratara a criança como a um filho, mas seu sangue e

destino sempre seriam diferentes, como ambos sabiam.

Os olhos de Easa ficaram turvos de preocupação.

— Mesmo ainda tão pequeno, João tem uma vontade forte e é

irrequieto. Você é a mãe e terá de orientá-lo, mas João precisará da

influência de homens para moldar sua inquietação. Ele é muito amado por

Pedro e André. Quando ficar mais velho, pode ser guiado por Pedro ou

seu irmão.

Easa não precisava explicar mais nada; Maria sabia o que ele queria

dizer com isso. Pedro e André haviam sido seguidores do Batista. Todos

se conheciam desde crianças na Galiléia, freqüentando o templo em

Cafarnaum. Pedro e André reverenciavam o pequeno João como ao filho

de um grande profeta, além de ser o filho adotado por Easa.

— Tenho palavras de agradecimento e conforto para mais uma

pessoa — continuou Easa. — Para a romana, Cláudia Prócula, eu

gostaria de dizer que deixei este mundo em débito com ela. A mulher

sacrificou muito para trazê-la até aqui e lhe sou grato por isso. Diga a ela

que não deve julgar o marido com muito rigor. Pôncio Pilatos precisa

escolher seu senhor e já vi que escolherá mal. Ao final, no entanto, sua

decisão consumará os desígnios de Deus para todos nós.

Easa deu outras instruções para a esposa, algumas de natureza

espiritual, algumas práticas, antes das palavras finais para confortá-la:

— Seja forte, não importa o que aconteça amanhã. Não tenha

medo por mim, já que eu mesmo não sinto medo. Sinto-me contente em

aceitar o cálice de nosso Pai e ir ao Seu encontro no céu, Maria. Seja uma

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líder do povo e não tema. Lembre-se de quem você é, em todas as ocasiões.

E uma nobre, é uma nazarena e é minha esposa.

Uma abalada Maria caminhou pelas ruas de Jerusalém, os passos

trôpegos, atrás de Salomé, no momento em que começava a amanhecer, a

primeira claridade espalhando-se pelo céu. A princesa tinha uma casa

em que ficariam seguras. Instruíra o mensageiro a levar Marta e as

crianças para lá. Depois que Maria se encontrava abrigada na casa, sã e

salva, esperando que a cunhada aparecesse com João e Tamar, Salomé

saiu à procura de outro mensageiro, para avisar a Grande Maria e os

outros, em Getsêmani.

Em outro lugar de Jerusalém, outra nobre, Cláudia Prócula,

sentia o enorme fardo que aguardava sua família naquele dia. Tivera

um sono irrequieto, quando a exaustão finalmente a dominara, já de

madrugada. Depois que o grego viera comunicar que sua missão com a

esposa do nazareno fora bem-sucedida, ela se permitira fechar os olhos.

Acordou suando frio. O sonho angustiante a sufocava. Podia sentir

que se agitava por todo o quarto, ao seu redor. Fechou os olhos, mas as

imagens persistiram, assim como o som de um canto que enchia sua

cabeça. Um coro de vozes, centenas e centenas, talvez milhares, repetia a

frase: “Crucificado sob Pôncio Pilatos, crucificado sob Pôncio Pilatos.”

Havia outras coisas no canto, repetidas obedientemente pelas vozes em

seu sonho, mas ela registrava apenas essas quatro palavras.

Por mais perturbadores que fossem os sons do pesadelo, as cenas

eram ainda piores. Começara como um sonho lindo, com crianças

dançando numa colina coberta de relva, ao sol da primavera. Easa estava

no meio de um círculo, cercado pelas crianças, vestidas de branco. Pilo era

uma das crianças queriam e dançavam, como Ismédia. A colina era

ocupada agora por pessoas de todas as idades, vestidas de branco,

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sorrindo e cantando.

Cláudia reconheceu um dos homens. Era Pretório, o centurião que

tivera a mão curada. O homem lhe contara em confidência sua própria

cura, depois de ouvir os rumores sussurrados sobre o milagre de Pilo.

Mas quando ela compreendeu que cada uma das almas risonhas no

sonho, adultos e crianças, haviam sido curadas por Easa, a paisagem

mudou. A dança cessou e o céu foi se tornando mais e mais escuro,

enquanto o canto se tornava mais e mais alto: “Crucificado sob Pôncio

Pilatos, crucificado sob Pôncio Pilatos.”

Cláudia contemplava a paisagem de sonho quando seu amado Pilo

caiu no chão. A imagem à sua frente, quando acordou, foi de Easa, o

nazareno, inclinando-se para levantá-lo. Ele carregou Pilo sem olhar para

trás, enquanto os outros ao redor também caíam. Ela avistou Pôncio,

gritando numa agonia inútil para o vulto se afastando de Easa, o

Nazareno, que levava no colo o corpo sem vida de Pilo. Um raio riscou o

céu, enquanto o som do canto seguia-os pela encosta abaixo.

— Crucificado sob Pôncio Pilatos!

— Crucifiquem-no!

Aquele era um som novo, não o canto fantástico do pesadelo, mas

um som real de ódio, ressoando além das muralhas da Fortaleza Antonia.

— Crucifiquem-no!

Cláudia levantou-se e vestiu-se. O escravo grego entrou correndo no

quarto.

— Deve ir antes que seja tarde demais, minha senhora. O amo

preside o julgamento e os sacerdotes clamam por sangue.

— Quem está gritando lá fora?

— Uma enorme multidão. Como ainda é cedo, presumo que os

homens do Templo devam ter trabalhado durante a noite para mobilizá-

la. A sentença será dada antes que o resto de Jerusalém tenha a

oportunidade de se reunir para protestar.

Cláudia terminou de se vestir sem o cuidado habitual. Não tinha

interesse por sua aparência naquele dia. Só precisava estar bastante

decente para se mostrar aos homens no tribunal. Ao se contemplar no

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espelho, um pensamento ocorreu-lhe:

— Onde está Pilo? Ainda não acordou?

— Não, minha senhora. Continua deitado.

— Melhor assim. Fique com ele e não o deixe sair do quarto. Não

quero que ele veja ou escute o que está acontecendo na cidade.

— Claro, minha senhora.

Cláudia saiu correndo do quarto, na missão mais importante de

sua vida.

Cláudia Prócula fez o melhor que podia para esconder o desespero

e a repulsa quando entrou no pátio, convertido num tribunal

improvisado. Pilatos fizera essa concessão aos sacerdotes, que não

queriam entrar nas câmaras romanas formais, para não correr o risco

de profanação na Páscoa. Era uma área murada e privada, que não os

expunha à multidão crescente lá fora. Pôncio Pilatos mandara levar sua

cadeira romana para o pátio, a fim de presidir o julgamento. Por trás dele,

havia dois guardas de confiança, Pretório, de olhos azuis, e o homem

rude que Cláudia detestava, chamado Longinus. Pilatos era flanqueado

no tablado por Anás e Caifás, de um lado, com um enviado de Herodes

no outro. O enviado do Templo, Jairo, era conspícuo por sua ausência.

No chão, na frente deles, amarrado e sangrando, estava Easa, o

Nazareno.

Cláudia ficou observando Easa de trás da cortina. Ele levantou os

olhos como se sentisse sua presença, antes de vê-la. Nesse momento,

Cláudia experimentou o mesmo sentimento de puro amor e luz que

sentira na noite em que Pilo fora curado. Não tinha o menor desejo de

desviar o olhar ou se desviar do calor daquele homem. Será que os outros

não sentiam? Como era possível que se mantivessem naquele espaço

fechado sem serem afetados pelo brilho e calor de sol que se irradiava

daquela criatura sagrada?

Ela limpou a garganta, a fim de alertar o marido para sua presença.

Pilatos virou o rosto e avistou-a.

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— Cavalheiros, peço que me dêem licença.

Pilatos deixou o julgamento para ir ao encontro da esposa. Cláudia

levou-o para um ponto em que os outros não poderiam ouvi-los. Entrou

em pânico ao ver o rosto muito pálido do marido. O suor escorria pela

testa e têmporas do procurador romano, embora a manhã estivesse fresca.

— Acho que o resultado não será fácil, Cláudia.

— Não pode permitir que eles matem esse homem, Pôncio. Sabe o

que ele é.

Pilatos sacudiu a cabeça:

— Não, não sei o que ele é, e é isso que torna tão difícil determinar

uma sentença.

— Mas sabe que ele é apenas um homem que semeou boas ações

por toda parte. Sabe que ele não cometeu qualquer crime que exija

uma punição severa.

— Estão dizendo que ele é um rebelde. Se for considerado uma

ameaça a Roma, não posso permitir que continue a viver.

— Mas sabe que isso não é verdade!

Pilatos desviou os olhos da esposa por um longo momento. Respirou

fundo, antes de tornar a fitá-la:

— Cláudia, estou num tormento. Esse homem desafia toda a razão

e lógica romana. Toda filosofia que já estudei é contestada pela situação

com que nos defrontamos agora. Meu coração e meu instinto dizem que

ele é inocente... e não devo condenar um homem inocente.

— Então não condene! Por que é tão difícil assina? Você tem o poder

de salvá-lo, Pôncio. Salve o homem que nos devolveu nosso filho.

Pilatos passou as mãos pelo rosto para remover o suor.

— É difícil, porque Herodes exige a execução, o mais depressa

possível.

— Herodes é um chacal!

— É verdade, mas é um chacal que parte para Roma ao final da

tar de e tem o poder de me destruir junto a César, se eu desagradar-lhe.

O homem pode nos liquidar, Cláudia. Vale a pena? A vida de mais um

rebelde judeu vale a perda de nosso futuro?

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— Ele não é um rebelde!

A conversa foi interrompida pelo enviado de Herodes, que chamou

Pilatos de volta ao julgamento. Quando ele se virou, Cláudia segurou-o

pelo braço.

— Pôncio, tive um sonho terrível na noite passada. Temo por você e

por Pilo se não salvar esse homem. A ira de Deus cairá sobre todos nós.

— É possível. Mas que Deus? Devo acreditar que o Deus dos judeus

tem poder sobre Roma?

Outros homens chamaram-no de volta ao julgamento, Pilatos

fitou a esposa nos olhos e acrescentou:

— É um dilema, Cláudia. O maior desafio que já enfrentei. Pensa

que sinto esse fardo menos do que você?

Ele voltou ao pátio, a fim de interrogar o prisioneiro. Cláudia

continuou a observar por trás da cortina.

— Os sacerdotes de sua nação trouxeram-no para mim, pedindo

a pena de morte — disse Pilatos ao prisioneiro nazareno. — O que você fez?

É o Rei dos Judeus?

Easa respondeu com sua calma habitual:

— Você mesmo formulou essa pergunta, pelo que conhece a meu

respeito? Ou os outros pediram que a fizesse?

— Responda à pergunta. Você é um rei? Se disser que não é, eu o

devolverei aos sacerdotes, para que seja julgado por suas próprias leis.

Jônatas Anás apressou-se em interferir:

— Não temos leis para condenar um homem à morte, procurador.

Foi por isso que viemos procurá-lo. Se ele não fosse um malfeitor e

perigoso, nunca o teríamos incomodado com esse problema.

— O prisioneiro terá de responder — insistiu Pilatos, ignorando a

intervenção de Anás.

Easa respondeu, olhando apenas para Pilatos. Cláudia teve a

impressão de que os dois homens não viam nem ouviam as outras

pessoas no pátio. Tudo acontecia só entre os dois, uma dança de destino

e fé que mudaria o mundo. Cláudia sentiu um calafrio percorrer seu

corpo.

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— Vim a este mundo para mostrar às pessoas O Caminho de Deus

e dar testemunho da verdade.

O filósofo romano em Pilatos não podia deixar passar aquela

oportunidade:

— A verdade... Diga-me, nazareno, qual é a verdade?

Os dois fitaram-se em silêncio por um longo momento, seus

destinos entrelaçados. Pilatos rompeu a interação ao se virar para os

sacerdotes:

— Eu direi o que é a verdade. A verdade é que não encontro

qualquer culpa neste homem.

Pilatos foi interrompido pelo anúncio da chegada de um

retardatário. A sessão parou quando Jairo entrou e cumprimentou os

outros sacerdotes. Pediu desculpas a Pilatos pelo atraso, alegando

questões urgentes relacionadas com a Páscoa.

— Não tem importância, Jairo. — Pilatos sentia-se aliviado pela

presença do judeu que se tornara seu amigo. Tinham um segredo

partilhado. — Acabo de comunicar a seus irmãos que não encontro

qualquer culpa nesse homem e não posso condená-lo.

Jairo balançou a cabeça, com uma expressão compreensiva:

— Entendo...

Caifás virou-se para Jairo:

— Você sabe como esse homem é perigoso.

Jairo olhou para seu irmão sacerdote e de novo para Pilatos, fazendo

um esforço para não fitar o prisioneiro.

— Mas é a Páscoa, meus irmãos. Um tempo de justiça e paz entre

nosso povo. — Para Pilatos, ele acrescentou: — Conhece o nosso costume

nesta época do ano?

Pilatos percebeu o que Jairo tentava fazer e aproveitou a

oportunidade:

— Claro que conheço. Todos os anos, nesta época, vocês escolhem

um prisioneiro para receber clemência e ser libertado. Levaremos esse

prisioneiro à presença do povo para que decida seu destino?

— Excelente!

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Jairo sabia que Anás e Caifás estavam acuados, e não podiam

recusar a generosa oferta de Roma. Também sabia que na multidão lá fora

havia muitos partidários dos sacerdotes... e mais do que uns poucos

mercenários, que haviam sido bem pagos para criar uma manifestação

contra o nazareno, se isso fosse necessário. Jairo só podia torcer para que

os nazarenos e seus partidários já tivessem chegado, trazendo

seguidores em grande quantidade.

Pilatos mandou que os centuriões levassem o prisioneiro para a

muralha da fortaleza. Caifás e Anás pediram licença para não segui-los,

porque não queriam ser vistos em companhia de romanos naquela

manhã. Voltariam depois que fosse tomada a decisão de salvar um

prisioneiro. Pilatos desconfiou de que os sacerdotes quisessem sair para

incitar a multidão contra Easa, mas não podia fazer nada. Olhou para

Jairo quando ele também pediu licença para se retirar. Os dois trocaram

um olhar significativo, pouco antes de cada um se afastar para cumprir

seus deveres.

Pilatos fez o anúncio da Páscoa diante da multidão cada vez maior,

a voz ressoando na manhã de Jerusalém:

— Sei que vocês têm um costume. Por isso, libertarei um dos

prisioneiros em homenagem à sua Páscoa.

Easa foi arrastado bruscamente para o lado de Pilatos. O

procurador lançou um olhar furioso para Longinus por sua brutalidade

desnecessária.

— Já chega! — disse ele ao centurião, em voz baixa, antes de se virar

de novo para a multidão. — Devo soltar este homem, o Rei dos Judeus?

Houve uma atividade frenética na multidão, vozes disputando

umas com as outras para serem ouvidas. Alguém gritou:

— Não temos rei além de César!

Outro homem acrescentou:

— Soltem Barrabás, o zelote!

Essa sugestão foi recebida com gritos de aprovação. Algumas vozes

intrépidas ainda tentaram:

— Soltem o nazareno!

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Mas foi em vão. Os seguidores do Templo haviam sido bem

instruídos e o coro para soltar Barrabás tornou-se ensurdecedor.

— Barrabás! Barrabás! Barrabás!

Pilatos não tinha opção que não soltar o prisioneiro favorecido pela

multidão. Barrabás, o zelote, foi libertado para celebrar a Páscoa,

enquanto Easa, o Nazareno, era condenado ao flagelo. Cláudia Prócula

interceptou o marido quando ele descia da muralha.

— Vai açoitá-lo?

— Paz, mulher! — disse Pilatos, ríspido, puxando-a para o lado. —

Ele terá de ser açoitado publicamente, mas ordenarei que Pretório

e Longinus sejam brandos. Talvez isso satisfaça a sede de sangue da

multidão e as pessoas deixem de clamar por sua crucificação.

Ele suspirou fundo, soltou a esposa, e acrescentou:

— É tudo o que ainda posso fazer, Cláudia.

— E se não for suficiente?

— Não me faça a pergunta se não quiser ouvir a resposta.

Cláudia balançou a cabeça, consternada. Já desconfiara que era

essa a situação.

— Pôncio, eu queria lhe pedir mais uma coisa. A família desse

homem... a esposa e os filhos... estão nos fundos da fortaleza. Queria

que você adiasse o flagelo apenas pelo tempo suficiente para que ele possa

vê-los. Pode ser sua última oportunidade de falar com as pessoas que

ama. Por favor.

Pilatos concordou, com um brusco movimento de cabeça.

— Está bem, mas não por muito tempo. Mandarei Pretório levar o

prisioneiro. Ele merece confiança em tudo que se relaciona com o

nazareno. Mandarei Longinus preparar a punição pública.

Pôncio Pilatos cumpriu sua palavra. Permitiu que Easa fosse levado

a um aposento nos fundos da fortaleza, para um encontro com Maria e

as crianças. Easa abraçou o pequeno João e Tamar, disse-lhes que

deveriam ser corajosos e cuidar da mãe. Beijou-os e acrescentou:

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— Lembrem-se, meus filhos queridos, que estarei sempre com

vocês, não importa o que possa acontecer.

Quando o tempo estava quase esgotado, ele abraçou Maria

Madalena pela última vez.

— Preste atenção, minha pombinha, pois é muito importante.

Depois que eu deixar meu corpo de carne, não deve se apegar a ele. Deve

me deixar partir, com a certeza de que estarei sempre com você em

espírito. Feche os olhos e vai me encontrar.

Ela tentou sorrir através das lágrimas, fazendo um grande esforço

para se mostrar corajosa. O coração estava abalado e sentia-se atordoada

de angústia e terror, mas não queria deixar que ele percebesse. Sua força

era a dádiva final que podia lhe oferecer.

Pouco depois, Pretório entrou na sala para levar Easa. Os olhos

azuis do centurião estavam avermelhados. Easa procurou confortá-lo:

— Faça o que tem de fazer.

— Vai se arrepender de ter curado minha mão — balbuciou o

centurião, quase sufocando com as palavras.

Easa sacudiu a cabeça em negativa:

— Não, não vou. Prefiro saber que o homem no outro lado é um

amigo. Saiba agora que o perdôo. Mas, por favor, pode me dar mais um

momento?

Pretório balançou a cabeça e saiu para esperar lá fora. Easa virou-

se para as crianças. Pôs a mão em seu coração.

— Lembrem-se de que estou bem aqui. Sempre estarei.

João e Tamar inclinaram a cabeça, solenemente. Os olhos escuros

de João estavam imensos e sérios, enquanto os olhos da pequena

Tamar enchiam-se de lágrimas, embora não compreendesse a terrível

situação. Easa virou-se para Maria e sussurrou:

— Prometa que não deixará as crianças verem o que vai

acontecer hoje. E eu não gostaria que você testemunhasse o que

acontecerá em seguida. Mas no final...

Ela não o deixou terminar. Abraçou-o e apertou-o com toda a

força, por um último momento, marcando em seu cérebro e corpo como o

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sentia exatamente em carne e osso. Guardaria aquela lembrança

enquanto vivesse.

— Estarei lá com você — sussurrou Maria. — Não importa o que

possa acontecer.

— Obrigado, minha Maria.

Easa desvencilhou-se, gentilmente. Disse as palavras finais com um

sorriso, como se fosse voltar para jantar em casa ao final da tarde.

— Nunca sentirá minha falta, porque não irei embora. Será melhor

do que é agora, porque nunca mais vamos nos separar.

Maria e as crianças deixaram a Fortaleza Antonia com o escravo

grego de Cláudia Prócula. Maria pediu para se encontrar com Cláudia,

pois queria agradecer pessoalmente. Mas o escravo sacudiu a cabeça em

negativa e respondeu em sua língua nativa:

— Minha ama está consternada com os acontecimentos deste dia.

Ela me disse que não pode encará-la. Tentou tudo que podia para salvá-

lo.

— Diga-lhe que sei disso. E que Easa também sabe. Diga ainda

que espero que um dia possamos nos encontrar e transmitirei

pessoalmente meus agradecimentos e de Easa.

O grego inclinou a cabeça, humilde, e depois se retirou para ir ao

encontro de sua ama.

Maria e as crianças saíram para o caos que era Jerusalém

naquela sexta-feira sagrada. Precisava tirar as crianças dali, levá-las

para o mais longe possível, antes que os sons da flagelação alcançassem os

seus ouvidos. A casa segura oferecida por Salomé ficava ali perto. Maria

decidiu ir até lá para encontrar Marta e instruí-la a levar as crianças de

volta para Betânia.

A Grande Maria e as duas Marias mais velhas estavam na casa.

Mas Marta saíra para procurar Madalena e as crianças, sem saber que

voltariam para a casa. Maria Madalena tinha o difícil encargo de relatar

os acontecimentos da manhã para a mãe de Easa. A Grande Maria

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balançou a cabeça, as lágrimas aflorando aos olhos idosos, que

revelavam uma imensa sabedoria e compaixão.

— Ele viu isso acontecer há muito tempo — murmurou ela, depois

de um longo momento. — E eu também vi.

As mulheres decidiram sair e enfrentar a multidão de Jerusalém.

Encontrariam Marta e providenciariam para que João e Tamar fossem

levados para um lugar seguro, longe dali... e depois procurariam Easa. Se

ele fosse condenado e crucificado hoje, não o deixariam. Maria prometera.

Easa clamara apenas por ela e a mãe naquelas horas finais.

Ao se prepararem para deixar a casa, a Grande Maria aproximou-se

da nora, estendendo o véu vermelho de sua posição.

— Use isto, minha filha. Você é uma nazarena e uma rainha,

agora mais do que nunca.

Maria Madalena pegou o véu vermelho e passou-o em torno do

corpo, plenamente consciente de que sua vida nunca mais seria a

mesma.

— Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!

O coro da multidão ressoava por toda parte. Pilatos observava com

uma mistura de impotência e repulsa. O brutal derramamento de sangue

do nazareno não satisfizera a multidão. Ao contrário, parecia ter insuflado

as pessoas a clamarem com mais veemência pela morte do prisioneiro.

Um homem se adiantou com uma coroa de espinhos afiados. Jogou-a na

direção de Easa, ainda arriado no poste em que fora açoitado, os

ferimentos abertos ao sol forte da manhã.

— Aqui está sua coroa, se você é mesmo um rei! — escarneceu ele,

arrancando risadas desdenhosas dos espectadores.

Pretório desamarrou Easa. Tirava-o do poste quando Longinus

pegou a coroa de espinhos e fincou-a cruelmente na cabeça de Easa. A

carne do couro cabeludo e da testa foi rasgada. O sangue misturou-se

com o suor e escorreu para os olhos de Easa, enquanto a multidão hostil

berrava em aprovação.

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— Já chega, Longinus! — resmungou Pretório para seu

companheiro.

Longinus soltou uma risada, um som estridente e amargo:

— Você está ficando mole. — Ele cuspiu na direção dos pés de

Pretório. — Não demonstrou a menor satisfação ao açoitar esse Rei dos

Judeus.

Quando Pretório respondeu, foi com uma voz tão ameaçadora que

fez um calafrio subir pela espinha do calejado Longinus:

— Toque nele sem necessidade outra vez e cuidarei para que

tenha uma cicatriz igual na outra face.

Pilatos interpôs-se entre os dois, sentindo a possibilidade de

violência entre seus próprios homens. Não podia permitir que isso

acontecesse, não hoje. O que os dois quisessem fazer um com o outro,

mais tarde, longe da vista da multidão, era uma coisa; mas ali e naquele

momento ele tinha de assumir o controle antes que a situação se

deteriorasse ainda mais. O procurador romano levantou as mãos para

falar à multidão:

— Olhem para esse homem. Apenas um homem, eu digo, porque

acho que não é um rei. Não vejo culpa nesse homem e ele já foi flagelado

de acordo com a lei romana. Não há mais nada que possamos fazer aqui.

— Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!

O coro da multidão era implacável, como se fosse ensaiado e

encenado. Pilatos ficou furioso com a manipulação da multidão, que o

deixava numa situação difícil. Encostou a mão em Easa e inclinou-se

para lhe falar.

— Escute, Nazareno, esta é sua última oportunidade de se salvar.

Por isso, eu lhe pergunto. Você é um Rei dos Judeus? Porque, se disser

que não é, não terei motivos para crucificá-lo, pela lei romana. E tenho

o poder para libertá-lo.

A última frase foi dita em tom de extrema urgência. Easa fitou

Pilatos em silêncio por um longo momento.

Maldito seja! Fale logo!

Foi como se Easa lesse os pensamentos de Pôncio Pilatos, pois

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respondeu num sussurro:

— Não posso tornar a situação mais fácil para você. Nossos

destinos foram escolhidos para nós, mas você deve agora escolher seu

senhor.

A tensão na multidão aumentava, com mais berros ressoando no

cérebro de Pôncio Pilatos. Havia muitos gritos em favor do nazareno,

mas eram abafados pelos clamores sedentos de sangue dos mercenários

que haviam recebido um generoso pagamento dos sacerdotes para

realizar aquele serviço sórdido. Os nervos de Pilatos estavam tão

tensos quanto um arco esticado, enquanto via pesarem seus deveres,

suas ambições, sua filosofia e sua família, sobre os ombros daquele frágil

nazareno. Um grito à sua esquerda surpreendeu-o. Virou-se para avistar

o enviado de Herodes, o tetrarca da Galiléia.

— O que é? — perguntou Pilatos.

O homem entregou um pergaminho com o sinete de Herodes.

Pilatos leu o que estava escrito ali.

Gostaria que resolvesse imediatamente o problema do nazareno, pois

quero partir mais cedo para Roma, sabendo que poderei apresentar a César

um relatório favorável sobre a maneira como você lida com as ameaças

contra Sua Majestade Imperial.

Era o golpe final para Pôncio Pilatos. Ele releu o pergaminho, só

então percebendo que estava manchado de sangue... o sangue do

nazareno, que escorrera para suas mãos quando o tocara. Chamou um

servo e pediu que lhe trouxesse uma bacia de prata com água. Pilatos

lavou as mãos, fazendo um esforço para não ver a água se tornando

vermelha com o sangue do prisioneiro.

— Lavo o sangue desse homem de minhas mãos! — gritou ele para

a multidão. — Crucifiquem seu rei, se é isso o que estão decididos a fazer.

Pilatos virou-se, sem olhar mais para Easa, e voltou para a

Fortaleza Antonia. Mas ainda não acabara para ele. Caifás foi procurá-lo

momentos depois, acompanhado por vários homens do Templo.

— Já não fiz o suficiente para vocês em um dia? — perguntou Pilatos

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ao sacerdote.

— Quase, Excelência — respondeu Caifás, com um sorriso

presunçoso.

— O que mais vocês querem de mim?

— A tradição determina que uma placa seja pendurada na cruz,

um título para mostrar ao mundo o crime que o homem cometeu.

Gostaríamos que escrevesse que ele era um blasfemo.

Pilatos pediu os materiais para escrever o título para a placa que

seria pendurada na cruz.

— Escreverei aquilo pelo qual o condenei, não o que vocês me pedem.

Essa é a tradição.

E ele escreveu a abreviação INRI, com o significado logo abaixo: Easa,

o Nazareno, Rei dos Judeus. Pilatos olhou para seu servo.

— Providencie para que isso seja pregado na cruz, acima do

prisioneiro. E mande o escriba escrever a mesma coisa em hebraico e

aramaico.

Caifás ficou consternado.

— Não deve dizer isso! Se for preciso, escreva: “Ele alegou que era o rei

dos judeus”, para que as pessoas saibam que não o respeitamos como tal.

Pilatos já se cansara daquele homem e suas manipulações, hoje e

para sempre. Irradiava uma ira intensa ao responder:

— O que escrevi, está escrito.

E ele virou as costas para Caifás e os outros. Retirou-se para o

sossego de seus aposentos, onde permaneceu trancado pelo resto do dia.

A multidão cada vez maior parecia se movimentar como se

fervilhasse, arrastando Maria e as crianças. Ela agarrava os filhos com

firmeza, um em cada mão, enquanto tentava atravessar, à procura de

Marta. Pelos comentários, Maria sabia que Easa fora condenado e estava

sendo levado para o Gólgota, onde seria executado. Avaliando o

movimento da turba, ela compreendeu que Easa se encontrava no meio

da procissão que se arrastava pela rua. Seu desespero aumentava cada

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vez mais. Tinha de encontrar Marta, providenciar para que as crianças

fossem levadas para longe, sãs e salvas, a fim de que ela pudesse passar

os momentos finais ao lado de Easa.

E foi nesse instante que ela ouviu. A voz de Easa soou tão nítida em

sua cabeça como se ele estivesse ao seu lado:

— Peça e receberá. É simples assim. Deve pedir ao Senhor Nosso

Pai pelo que queremos e ele providenciará para as crianças que ama.

Maria Madalena apertou as mãos das crianças e fechou os olhos.

— Por favor, Senhor, ajude-me a encontrar Marta, para que ela

leve meus filhos até um lugar seguro. Assim, poderei ficar junto de

meu amado Easa em seu momento de sofrimento.

— Maria! Estou aqui, Maria!

A voz de Marta atravessou a multidão para alcançar a cunhada,

segundos depois da oração. Maria abriu os olhos para avistá-la se

aproximando. As duas se abraçaram, emocionadas.

— Eu a descobri no meio de todo esse povo porque está usando o

véu vermelho — explicou Marta.

Maria fez um esforço para conter as lágrimas. Não havia tempo a

perder, mas a presença de Marta era um grande conforto para ela.

— Venha comigo, minha princesinha. — Marta pegou Tamar no

colo. Segurou João pela mão. — Você também, meu jovem.

Maria deu um abraço apertado em cada criança, prometendo

que voltariam a se encontrar em Betânia, o mais depressa possível.

— Vá com Deus, irmã — sussurrou Marta para Maria. —

Cuidaremos das crianças até que você possa voltar para casa. Tome

cuidado.

Ela beijou a cunhada, mais jovem, agora uma mulher adulta com

porte de rainha, depois tornou a enfrentar a multidão, levando as

crianças.

Maria Madalena precisou fazer um grande esforço para avançar

pelo meio da multidão. Conseguiu ficar à frente de todos, mas não foi

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capaz de se aproximar de Easa. Avistou os véus vermelhos da Grande

Maria e das outras Marias e seguiu-as, pelo caminho sinuoso que levava

ao Gólgota. Tentou alcançá-las, mas foi ficando para trás, espremida pela

multidão que seguia sua presa.

Quando os centuriões chegaram ao alto do morro conhecido como o

Lugar do Crânio, ela verificou que estavam pelo menos cem metros à sua

frente. Lá estavam o vulto encurvado de Easa e os véus vermelhos de sua

mãe e das outras Marias. A multidão à frente ainda era densa,

bloqueando a passagem de Maria. Ela não se importava com mais nada.

Não havia tempo para pensar em qualquer outra coisa que não alcançar

Easa. Maria contornou a multidão, deixou o caminho e começou a escalar

a encosta rochosa. Havia pedras pontiagudas e espinheiros, mas nada

disso tinha qualquer importância para Maria Madalena.

Estava tão empenhada em alcançar seu destino que não notou a

princípio que o céu começava a escurecer. Escorregou numa rocha,

rasgando a parte inferior do véu. Um espinheiro abriu cortes em sua

perna. Ao cair, ouviu o som, o estrépito angustiante e comovente que a

atormentaria todas as noites, pelo resto de sua vida: metal contra

metal, martelo batendo em prego. Houve um grito de agonia quando

Maria escorregou de novo, mas só mais tarde ela compreendeu que o grito

saíra de seus próprios lábios.

Encontrava-se tão perto agora que não podia permitir que nada a

detivesse. Enquanto subia, Maria percebeu, aturdida, que as rochas

estavam molhadas e escorregadias. O céu se tornara negro e a chuva

caía, como lágrimas divinas sobre a Terra ressequida e condenada,

onde o Filho de Deus acabara de ser pregado numa cruz de madeira.

Maria Madalena alcançou a cruz momentos depois, juntando-se à

sogra e às outras Marias em sua vigília. Havia dois outros homens

sofrendo no Gólgota naquele dia, em cruzes que ladeavam a de Easa.

Maria não olhou para eles; só tinha olhos para Easa. Estava determinada

a não ver os ferimentos; em vez disso, concentrou-se no rosto, que

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parecia sereno e calmo, os olhos fechados. As mulheres mantinham-se

paradas ali, juntas, amparando umas às outras, orando a Deus para

livrar Easa do sofrimento. Maria olhou ao redor e constatou que não

conhecia ninguém na multidão... e pelo resto do dia não viu nenhum dos

discípulos.

Os romanos mantinham as pessoas afastadas do local da

execução. Ao olhar para os centuriões, Maria constatou que Pretório

estava no comando. Fez uma oração silenciosa de agradecimento a ele,

pois tinha certeza de que era o responsável por permitir que a família

tivesse alguma privacidade ao pé da cruz.

Todas ficaram imóveis quando ouviram Easa tentar falar. Era

muito difícil, pois o peso do corpo sobre o diafragma tornava quase

impossível respirar e falar ao mesmo tempo.

— Mãe... olhe para seu filho.

As mulheres chegaram mais perto da cruz para ouvir suas

palavras. O sangue escorria do corpo todo ferido, misturando-se com as

gotas de chuva que caíam nos rostos das mulheres.

— Minha amada... — sussurrou ele para Maria Madalena. — Olhe

para sua mãe.

Easa fechou os olhos e acrescentou, a voz baixa, mas muito clara:

— Está acabado.

Ele baixou a cabeça e ficou imóvel. Houve silêncio. Ninguém se

mexia na multidão. O céu ficou todo preto nesse instante, não da cor de

um céu com nuvens de tempestade, mas preto como breu, desprovido de

toda e qualquer luz.

A multidão no monte começou a entrar em pânico, com gritos de

confusão espalhando-se pelo ar. Mas a escuridão durou apenas um

instante, logo passando para um cinza opaco. Dois soldados

aproximaram-se de Pretório.

— Temos ordens para apressar a morte dos prisioneiros, para que

seus corpos possam ser removidos antes do Sabá dos judeus.

Pretório olhou para o corpo de Easa.

— Não há necessidade de quebrar as pernas desse homem. Ele já

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morreu.

— Tem certeza? — perguntou um dos soldados. — Normalmente

os homens levam muitas horas para sufocar da crucificação, às vezes

até alguns dias.

— Esse homem está morto — insistiu Pretório. — Não toquem nele.

Os dois soldados eram bastante perceptivos para compreender

a ameaça no tom de seu chefe. Com seus porretes, foram cumprir a

desagradável tarefa de quebrar as pernas dos outros dois prisioneiros, a

fim de apressar o processo de sufocação.

Pretório estava tão ocupado em dar ordens que não viu Longinus

se aproximar do outro lado da cruz. Já era tarde demais quando tornou

a focalizar Easa com seus olhos azuis. Longinus, com a lança na mão,

espetou-a na lateral do corpo do prisioneiro nazareno. Maria Madalena

gritou em protesto. A risada de Longinus em resposta foi dura e sádica:

— Só estou conferindo. Mas é verdade. O nazareno está morto. —

Ele virou-se para Pretório, que estava pálido de raiva. — O que

pretende

Pretório fez menção de falar, mas logo se conteve. Quando

finalmente respondeu, sua voz era calma:

— Nada. Não preciso fazer nada. Você criou sua própria maldição

pelo que fez.

— Baixem esse homem! — ordenou Pretório.

Um mensageiro da fortaleza de Pilatos trouxera uma mensagem

para tirar da cruz o corpo do nazareno e entregá-lo à família, para ser

sepultado antes do pôr-do-sol. Era uma decisão excepcional, pois de um

modo geral as vítimas de crucificação eram deixadas em suas cruzes, os

corpos se decompondo, como uma advertência para o povo. Mas o caso de

Easa, o Nazareno, era diferente.

O tio rico de Easa, José, o mercador de estanho, fora à Fortaleza

Antonia, em companhia de Jairo, e conversara com Cláudia Prócula. Fora

ela quem Obtivera permissão para a remoção imediata do corpo, para

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sepultamento. Ao chegar ao Gólgota, José confortou a Grande Maria,

enquanto seu filho era retirado da cruz. A mãe de Easa estendeu os

braços quando os soldados pegaram o corpo, murmurando:

— Quero abraçar meu filho pela última vez.

Pretório pegou o corpo de Easa e foi depositá-lo, gentilmente, no colo

da Grande Maria. Ela abraçou-o, permitindo-se chorar pela perda de seu

amado filho. Maria Madalena ajoelhou-se ao seu lado. A Grande Maria

estendeu um braço para incluí-la no abraço, enquanto o outro braço

aninhava a cabeça de Easa.

As duas permaneceram nessa posição de luto, juntas, por um

longo tempo.

José comprara um sepulcro para a família num cemitério não

muito longe do Gólgota. Foi para lá que os nazarenos levaram o corpo de

Easa. Nicodemo, um nazareno que trabalhava para José, levou mirra e

aloé para o túmulo. As Marias iniciaram a preparação do corpo para o

sepultamento, envolvendo-o com a mortalha. Mas, quando chegou o

momento de ungir Easa com a mirra, a Grande Maria estendeu o pote

para Maria Madalena.

— Só você pode ter essa honra.

Madalena cumpriu os deveres de uma viúva no ritual fúnebre.

Beijou Easa na testa e despediu-se, as lágrimas misturadas com a mirra.

Ao fazê-lo, teve certeza de ouvir a voz de Easa no sepulcro, fraca, mas

firme:

— Estou sempre com você.

Juntas, as nazarenas despediram-se e deixaram a tumba. Uma

enorme laje de pedra fora providenciada para tapar a tumba, a fim de

proteger o corpo de Easa. Foi preciso recorrer à força de vários homens,

uma roldana e tábuas, para colocar o bloco de pedra em seu lugar. Isso

feito, o grupo desolado retirou-se para a segurança da casa de José.

Maria Madalena desfaleceu ao chegar lá e dormiu até o dia seguinte.

Na tarde de sábado, diversos apóstolos foram à casa de José para

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uma conversa com Maria Madalena e as Marias mais velhas. Partilharam

seus relatos sobre os acontecimentos do dia anterior e consolaram-se

mutuamente. Foi um tempo de desespero, mas também um tempo que

serviu para uni-los ainda mais. Ainda era cedo para tratar do futuro do

movimento, mas aquele espírito de união era um bálsamo para as

sensibilidades abaladas.

Maria Madalena, contudo, estava preocupada. Ninguém vira ou

tivera notícias de Judas Iscariotes desde a prisão de Easa. Jairo esteve na

casa de José para saber de seu paradeiro. Informou que Judas ficara

desesperado depois da prisão. Chorara para Jairo toda a noite,

indagando:

— Por que ele me escolheu para esse ato? Por que fui o indicado para

cometer esse crime contra o meu povo?

Maria explicou para o círculo íntimo de discípulos que Easa

instruíra Judas a entregá-lo às autoridades. Mas as outras pessoas não

sabiam — e não podiam saber — da verdade. Por isso, o nome de Judas

estava se transformando rapidamente em sinônimo de “traidor” por toda

Jerusalém, uma fama que se espalhava além. A reputação adquirida de

Judas era mais uma da longa série de injustiças ocorridas naquele curso

de destino e profecia. Maria orou para que um dia pudesse restaurar o

nome de Judas. Mas ela ainda tinha de saber como fazê-lo.

Judas nunca saberia se Maria seria capaz de restaurar a honra

para seu nome. Descobririam depois que já era tarde demais, que outra

tragédia ocorrera naquela tarde sinistra. Incapaz de aceitar que seu

nome ficasse ligado para sempre à morte de seu Senhor e Mestre,

Judas Iscariotes acabou com a própria vida no Dia das Trevas. Foi

encontrado numa árvore, enforcado, fora das muralhas de Jerusalém.

Maria Madalena teve um sono irrequieto naquela noite. Havia

muitas imagens em sua mente, muitos sons e lembranças. Começou

com um sentimento de apreensão, uma vaga noção de que havia algo

errado. Maria levantou-se e atravessou, em silêncio, a casa de José. O céu

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ainda estava escuro, pois faltava pelo menos uma hora para o amanhecer.

Não havia ninguém acordado e tampouco qualquer coisa errada na casa.

E, de repente, ela soube. Teve aquele relance de profecia, que

combina saber com ver. Easa. Precisava ir até sua tumba. Havia alguma

coisa acontecendo no lugar em que ele fora sepultado. Maria hesitou por

um momento. Deveria acordar José ou um dos outros para acompanhá-

la? Talvez Pedro?

Não! Você deve ir sozinha.

Ela ouviu a resposta dentro da cabeça, mas ressoou ao seu redor.

Envolta pela fé e um véu de luto, Maria Madalena saiu pela porta sem

fazer barulho. Fora da casa, correu para a tumba, tão depressa quanto

suas pernas podiam levá-la.

Ainda estava escuro quando ela alcançou a parte do jardim em que

ficava o sepulcro. O céu era púrpura em vez de preto; o amanhecer viria

em breve. Havia claridade apenas suficiente para que Maria pudesse ver

que o enorme bloco de pedra — que precisara da força de uma dúzia de

homens para deslocá-lo — fora removido da entrada da tumba.

Maria correu até lá, o coração disparado de medo. Baixou a cabeça

para entrar na tumba, e viu que Easa não se encontrava mais ali.

Estranhamente, havia luz no sepulcro, um brilho diferente, que iluminava

toda a câmara. A mortalha de linho estava estendida sobre o bloco de

pedra. Os contornos do corpo de Easa eram visíveis na mortalha, mas

essa era a única indicação de que ele estivera ali.

Como acontecera? Os sacerdotes sentiam tanto ódio de Easa que

haviam chegado ao extremo de roubar seu corpo? Não, não podia ser.

Então quem fizera aquilo?

Ofegante, Maria saiu da tumba, voltando ao jardim. Desabou no

chão, chorando pelo que pensava ser mais uma indignidade sofrida por

Easa. Enquanto chorava, os raios do sol iniciaram a jornada de luz

através do céu. Os primeiros raios dançavam em seu rosto quando ela

ouviu uma voz de homem por trás dele:

— Mulher, por que chora? A quem procura?

Maria não levantou os olhos no mesmo instante. Pensou que

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talvez um jardineiro tivesse chegado ao amanhecer para cuidar da relva e

das flores em torno das tumbas. E depois pensou que talvez ele tivesse

visto alguma coisa e pudesse ajudá-la. Ela falou através das lágrimas,

enquanto erguia o rosto:

— Alguém levou meu Senhor e não sei para onde. Se sabe onde ele

está, suplico que me diga.

— Maria...

A voz que a chamava agora era inconfundível. Ela ficou imóvel, por

um momento com medo de se virar, sem saber o que encontraria quando

olhasse.

— Maria, estou aqui.

Maria Madalena virou-se, enquanto o sol da manhã iluminava o

belo homem à sua frente. Easa estava parado ali, vestindo uma túnica

branca impecável, sem qualquer vestígio dos ferimentos que sofrera.

Sorriu para ela, seu lindo sorriso de afeto e ternura. Quando ela se

adiantou, Easa ergueu a mão.

— Não se apegue, Maria. Meu tempo neste mundo passou, embora

eu ainda não tenha ascendido ao encontro de meu Pai. Tinha de lhe dar

este sinal agora. Procure nossos irmãos e diga-lhes que subirei agora ao

encontro de meu Pai no céu, aquele que também é seu Pai e o deles.

Maria acenou com a cabeça, reverente diante de Easa. Podia sentir

a luz pura e terna de sua bondade irradiando-se ao redor.

— Meu tempo aqui passou. Agora é o seu tempo.

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CAPÍTULO VINTE

Château des Pommes Bleues

29 de junho de 2005

Maureen estava sentada no jardim com Peter. O chafariz de Maria

Madalena borbulhava suavemente atrás deles. Ela tivera de levá-lo para

respirar um pouco de ar fresco, longe dos outros. O rosto do primo estava

pálido e contraído, de insônia e estresse dos acontecimentos daquela

semana. Parecia ter envelhecido pelo menos dez anos nos últimos dias.

Maureen até notou que, nas têmporas, havia alguns fios de cabelos

brancos, que nunca vira antes.

— Sabe qual é a parte mais difícil de tudo isso?

A voz de Peter era um sussurro quase inaudível. Maureen sacudiu

a cabeça. Para ela, aquela era a mais inebriante de todas as

circunstâncias possíveis. Mas sabia que muito do que Peter acreditara,

por que vivera, fora contestado pelas coisas que lera no evangelho de

Maria. E, no entanto, as palavras de Maria confirmavam a mais sagrada

premissa do cristianismo, a ressurreição.

— Não, não sei. Qual é?

Peter fitou-a, os olhos injetados. Queria que ela compreendesse o

que estava pensando.

— E se... e se negamos durante dois mil anos o derradeiro desejo

de Jesus Cristo? E se negamos o que o evangelho de João tentava nos

dizer desde o início, quando Jesus aparece primeiro para Maria

Madalena... que ela é a sucessora escolhida? Não seria irônico se

tivéssemos negado em seu nome um lugar a Maria Madalena, não

apenas como apóstola, mas também como líder dos apóstolos?

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Ele fez uma pausa, tentando definir os desafios que haviam

aflorado em sua mente... e também em sua alma.

— Não se apegue. É o que ele diz a Maria Madalena. Sabe como isso é

importante?

Maureen sacudiu a cabeça e esperou pela explicação.

— Os evangelhos não são traduzidos assim... mas como “não me

toque”. É possível que o verbo grego nos originais tenha sido apegar em

vez de tocar, mas ninguém jamais pensou dessa maneira. Entende a

diferença? — Todo o conceito era uma revelação para Peter, como

estudioso e como lingüista. — Percebe como a tradução de uma única

palavra pode mudar tudo? Mas nos evangelhos de Maria o verbo usado é

com certeza apegar. Ela até usa duas vezes, citando Jesus.

Maureen tentava acompanhar a intensa reação de Peter a essa

única palavra.

— Não resta a menor dúvida de que há uma diferença entre não

me toque e não se apegue.

— Isso mesmo — confirmou Peter, enfático. — A tradução “não

me toque” tem sido usada contra Maria Madalena, para demonstrar

que Cristo a repelia. O que constatamos aqui, quando Cristo diz para ela

não se apegar quando ele partir, é uma indicação de que ela deve seguir

seu próprio caminho, se destacar por si mesma.

O suspiro de Peter foi profundo, impregnado de exaustão.

— É uma imensa diferença, Maureen... imensa!

Maureen estava começando a perceber os desdobramentos da

história de Maria.

— Acho que a descrição das mulheres como líderes no movimento é

um dos elementos mais importantes na história — comentou ela. —

Pete, detesto piorar as coisas para você neste momento, mas o que acha

dessa perspectiva sobre a Virgem? Madalena chama-a de Grande Maria

e refere-se a ela, claramente, como uma líder de seu povo. Maria é um

título dado a uma líder feminina. E há também o véu vermelho...

Peter sacudiu a cabeça, como se pudesse dessa maneira desanuviá-

la.

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— Ouvi uma ocasião o argumento de que o Vaticano declarou que a

Virgem seria apresentada apenas em branco e azul como um meio de

reduzir seu poder, de esconder sua importância original como líder

nazarena... que usava um véu vermelho, como vimos. Sinceramente,

sempre achei que tudo isso era bobagem. Parecia óbvio para mim que a

Virgem era apresentada em azul e branco para demonstrar sua pureza.

Peter fez uma pausa. Levantou-se, cansado, enquanto

acrescentava:

— Mas agora nada mais me parece óbvio.

Cape Cod, Massachusetts

30 de junho de 2005

No outro lado do Atlântico, em Cape Cod, Eli Wainwright, o magnata

do mercado imobiliário, estava sentado numa poltrona, olhando pela

janela, através do gramado de sua extensa propriedade. Não recebia

notícias de Derek havia quase uma semana, o que o deixava muito

preocupado. Existia um contingente americano na França para celebrar o

dia de João Batista. O líder desse grupo telefonara para Eli quando Derek

não apareceu para recebê-los. Eli vasculhava o cérebro, tentando pensar

como Derek. O filho sempre fora um pouco independente, mas sabia o

quanto aquilo era importante. Tudo o que tinha de fazer era se ater ao

plano, permanecer perto do Mestre da Justiça e descobrir tanto quanto

pudesse sobre seus movimentos e motivações. Depois que tivessem um

relatório completo, os americanos poderiam começar a planejar seu

golpe para tirar do contingente europeu a estrutura de poder da Guilda.

Na última reunião, nos Estados Unidos, Derek mostrara-se

insatisfeito com o prazo dilatado que Eli propusera para alcançarem os

objetivos. Eli era um estrategista, mas o filho não herdara as qualidades

de paciência e planejamento que convertera os Wainwright em bilionários.

Seria possível que Derek tivesse feito alguma coisa precipitada e estúpida?

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A resposta veio naquela tarde, quando o grito da esposa de Eli

Wainwright abalou o tranqüilo ar marinho de Cape Cod. Eli saltou da

poltrona e correu para o vestíbulo, onde a esposa caíra no chão, tremendo

toda.

— Pelo amor de Deus, Susan, o que aconteceu?

Susan não conseguiu responder. Os soluços eram histéricos e a

tentativa de falar resultou apenas numa algaravia ininteligível. Ela

apontou para a caixa da Federal Express internacional caída no chão, ao

seu lado.

Eli respirou fundo. Tirou da caixa um pequeno caixão de madeira.

Abriu-o para ver o anel de formatura de Derek em Yale.

E o anel estava enfiado no que restava do dedo indicador cortado

da mão direita de Derek Wainwright.

Château des Pommes Bleues

30 de junho de 2005

Mesmo em circunstâncias normais, Maureen tinha um sono leve. E,

com tantos problemas relacionados aos pergaminhos agitando seus

pensamentos, ela descobriu que o sono era esquivo, apesar do cansaço

geral. Ouviu passos no corredor, perto de sua porta, e se sentou na

cama. Os passos eram leves, como se a pessoa estivesse fazendo um

esforço para não ser ouvida. Maureen escutou atentamente, mas não se

mexeu. Era um vasto castelo, com muitos cômodos e criados que

provavelmente nem conhecia, pensou ela.

Maureen tornou a se deitar e tentou dormir, mas foi perturbada de

novo pelo barulho de um carro lá fora. O relógio indicava que eram quase

três horas da madrugada. Quem poderia ser? Maureen levantou-se e foi

até a janela, que dava para a frente do castelo. Esfregou os olhos para ter

certeza de que via direito.

O carro que passou em frente à janela e saiu pelo portão era o seu

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carro alugado... com o primo Peter ao volante.

Maureen correu até o quarto de Peter. Acendeu a luz, confirmando

a ausência das coisas do primo. A mala preta desaparecera, assim como

os óculos, a Bíblia e o rosário de contas, todos os itens que ele mantinha

ao lado da cama.

Por um minuto, Maureen procurou, frenética, por alguma

informação deixada por Peter. Um bilhete? Qualquer coisa? Mas ela nada

encontrou.

O padre Peter Healy sumira.

Maureen tentou analisar os acontecimentos das últimas vinte e

quatro horas. Haviam conversado ao lado do chafariz, quando Peter

explicara a importância das palavras “não se apegue”. Ele parecia

transtornado, mas Maureen atribuíra isso à insônia e às emoções da

semana. O que o levara a pegar suas coisas em plena madrugada e

partir? Peter não era de fazer isso. Nunca a abandonara, nem mesmo a

decepcionara. Ela sentiu o pânico se insinuar. Se perdera Peter, não teria

mais ninguém. Ele era toda a sua família, a única pessoa no mundo em

quem depositava uma confiança implícita.

— Reenie?

Maureen teve um sobressalto ao ouvir a voz atrás de si. Tammy

estava parada na porta, esfregando os olhos para afugentar o sono.

— Desculpe. Ouvi o carro e depois movimentos aqui. Acho que esta

mos todos um pouco nervosos. Onde está o padre?

— Não sei. — Maureen fez um esforço para não parecer exaltada.

— Peter guiava o carro que deixou o castelo. Não sei por que ou para

onde ele foi. O que isso pode significar?

— Por que não liga para o celular dele?

— Peter não tem um celular.

Tammy fitou-a, perplexa.

— Claro que tem. Eu o vi falando a um celular.

Foi a vez de Maureen se mostrar confusa.

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— Peter detesta celulares. Diz que não tem tempo para

aprender novas tecnologias e acha os celulares bastante desagradáveis.

Sempre se recusou a levar um celular para emergências, mesmo quando

eu suplicava.

— Eu o vi falando ao celular duas vezes, Maureen. E, pensando a

respeito agora, nas duas ocasiões ele estava sentado no carro. Detesto

dizer isso, mas acho que há algo de podre em Arques.

Maureen teve a sensação de que ia vomitar. E, pela expressão de

Tammy, compreendeu que as duas pensavam a mesma coisa.

— Vamos!

Maureen saiu em disparada pelo corredor do castelo. Desceu a

escada para o escritório de Sinclair. Tammy seguiu-a, a meio passo de

distância.

Pararam na porta. Estava entreaberta. Desde a chegada dos

pergaminhos, a porta permanecia fechada e trancada, mesmo que um

deles estivesse ali. Maureen engoliu em seco e respirou fundo ao entrar

na sala escura. Por trás dela, Tammy encontrou o interruptor da luz... e

as duas viram que não havia nada na mesa. A superfície de mogno

faiscava no reflexo da luz. Vazia.

— Os pergaminhos sumiram... — balbuciou Maureen.

Ela e Tammy revistaram a sala, mas não encontraram qualquer

sinal dos pergaminhos de Maria Madalena. As únicas provas restantes de

sua existência eram os jarros de barro no canto, fora do caminho das

pessoas. Mas os jarros estavam vazios. O verdadeiro tesouro

desaparecera.

E tudo indicava que o padre Peter Healy, a pessoa em quem

Maureen mais confiara em toda a sua vida, levara os pergaminhos.

Maureen sentou-se no sofá de veludo, as pernas trôpegas. Não

podia falar. Não sabia o que dizer, nem mesmo o que pensar. Apenas

deixou-se cair no sofá, olhando fixamente para a frente.

— Maureen, tenho de falar com Roland. Vai ficar aqui? —

Voltaremos num instante.

Maureen acenou com a cabeça, atordoada demais para falar.

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Continuava na mesma posição quando Tammy e Roland entraram na

sala, acompanhados por Berenger Sinclair. Roland ajoelhou-se ao lado do

sofá e disse, gentilmente:

— Mademoiselle Paschal, lamento muito pelo sofrimento que esta

noite lhe causará.

Maureen fitou o enorme occitano, que se inclinava para ela com

tanta preocupação. Mais tarde, quando pudesse se dar ao luxo de

recordar aquele tempo em detalhes, pensaria em como ele se revelara

um homem extraordinário. O mais valioso tesouro de seu povo acabara de

ser roubado e sua preocupação principal era com o sofrimento de

Maureen. Roland, mais do que qualquer outra pessoa que ela já

conhecera, ensinava-lhe muita coisa sobre a verdadeira espiritualidade. E

passaria a compreender por que eles eram chamados de les bons hommes.

Os bons homens.

— Ah, estou vendo que o padre Healy escolheu seu senhor —

comentou Sinclair. — Eu já desconfiava de que isso poderia acontecer.

Sinto muito, Maureen.

Maureen sentiu-se ainda mais confusa.

— Esperava que isso acontecesse?

Sinclair confirmou com um movimento de cabeça.

— Esperava, minha cara. Suponho que tudo ficará às claras

agora. Sabíamos que seu primo trabalhava para alguém, só não tínhamos

certeza de quem era.

Maureen estava incrédula.

— O que está insinuando? Que Peter me traiu? Que planejava

desde o início me trair?

— Não posso alegar que sei quais são os motivos do padre Healy.

Mas sabia que ele tinha motivos. E desconfio de que saberemos a

verdade antes do final do dia de amanhã.

— Alguém pode fazer o favor de me explicar o que está acontecendo?

A pergunta foi de Tammy, e Maureen compreendeu que ela também

não sabia de nada. Roland se sentou ao seu lado e ela fitou-o com uma

expressão acusadora:

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— Estou vendo que há muita coisa que vem escondendo de mim.

Roland deu de ombros.

— Era para sua proteção, Tamara. Todos temos segredos, como

sabe. Eram necessários. Mas acho que agora é hora de revelarmos tudo de

uma forma objetiva. Creio que é justo que mademoiselle Paschal saiba

de tudo. Ela já demonstrou seu valor.

Maureen teve vontade de gritar, em estresse e confusão. A

frustração deve ter transparecido em seu rosto, porque Roland inclinou-

se para ela e pegou sua mão.

— Venha, mademoiselle. Quero lhe mostrar algumas coisas.

Depois, ele virou-se para Sinclair e Tammy e fez algo que Maureen

nunca o vira fazer antes: deu ordens.

— Berenger, peça aos criados para nos levarem café e depois se

encontre conosco na Sala do Grão-Mestre. Tamara, venha conosco.

Percorreram corredores sinuosos e entraram numa ala do castelo

em que Maureen nunca estivera antes.

— Devo lhe pedir que seja um pouco paciente, mademoiselle

Paschal — disse Roland, olhando para trás. — Preciso explicar algumas

coisas primeiro, antes de responder às suas perguntas mais urgentes.

— Está bem.

Maureen sentia-se atordoada, enquanto seguia Roland e Tammy.

Não sabia o que dizer. Pensou no dia em que se encontrara com Tammy

na marina, na Califórnia Meridional. Era muito ingênua na ocasião;

parecia ter acontecido duas vidas atrás. Tammy a comparara a Alice no

País das Maravilhas. A comparação parecia bastante apropriada agora,

pois Maureen tinha a sensação de que passara pelo espelho. Tudo o que

pensava que sabia sobre a vida mudara por completo.

Roland destrancou a enorme porta dupla à frente com uma chave

que tinha pendurada ao pescoço. Um bip estridente soou quando

entraram na sala. Roland digitou o código no painel para desligar o

alarme. A luz ativada iluminou uma sala enorme e toda ornamentada.

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Era uma linda sala de reunião para reis e rainhas da França. Em sua

elegância, parecia-se com as salas do trono em Versailles e

Fontainebleau. Duas cadeiras de braços iguais, lavradas e douradas,

destacavam-se num estrado no centro. Cada uma exibia as maçãs azuis

em destaque.

— Este é o coração de nossa organização, a Ordem das Maçãs Azuis

— explicou Roland. — Todos os seus membros são da linhagem real, em

particular da linha de Sara-Tamar. Somos descendentes dos cátaros e

fazemos o melhor que podemos para manter suas tradições vivas, na

forma mais pura possível.

Ele levou-as até um retrato de Maria Madalena, pendurado atrás

das cadeiras que pareciam tronos. Era parecido com o quadro de

Madalena pintado por George de la Tour que Maureen vira em Los

Angeles, com uma importante diferença.

— Lembra-se da noite em que Berenger lhe disse que um dos

quadros mais importantes de De la Tour não estava à disposição do

público? É porque o quadro está aqui. De la Tour era membro de nossa

sociedade e nos deixou este quadro. Foi chamado de Madalena penitente

com o crucifixo.

Maureen contemplou o quadro com reverência e admiração. Como

todos os quadros do pintor francês, era uma obra-prima de luz e sombra.

Mas naquele quadro Maria Madalena posava de uma maneira diferente

da que Maureen já vira em todos os outros. Aquela versão mostrava

Maria com a mão esquerda no crânio — que ela compreendia agora ser o

crânio de João Batista —, enquanto a mão direita erguia um crucifixo. Ela

olhava para o rosto de Cristo.

— O quadro era muito perigoso para ficar à vista do público. A

referência é clara para os olhos que quiserem ver: Maria faz penitência

por seu primeiro marido e olha com amor para Jesus, seu segundo

marido.

Ele levou as duas até um quadro imenso, em outra parede.

Mostrava dois santos idosos sentados numa paisagem rochosa,

empenhados numa conversa animada, talvez mesmo uma discussão.

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— Tamara pode contar a história deste quadro.

Roland sorriu para Tammy e deu um passo para o lado. Maureen

olhou para Tammy, à espera da explicação.

— O quadro é do pintor francês David Teniers, o Jovem. E

chamado Santo Antonio, o Eremita, e São Paulo no deserto. Não é o

mesmo São Paulo das cartas do Novo Testamento, mas outro santo

regional, que também era um eremita. Berenger Saunière, o sacerdote

de Rennes-le-Château, adquiriu esse quadro para a Sociedade. Isso

mesmo, ele era um dos nossos.

Maureen estudou o quadro atentamente e começou a ver os

elementos que agora se tornavam familiares. Apontou-os.

— Vejo um crucifixo e um crânio.

— Isso mesmo — confirmou Tammy. — Este aqui é Antonio. Usa

aquele símbolo que parece a letra T na manga, mas é na verdade a

versão grega da cruz, chamada Tau. São Francisco de Assis

popularizou-a entre nós. Antonio levanta os olhos de seu livro... que é

uma representação d'O Livro do Amor, e contempla o crucifixo. Olhe agora

para Paulo. Ele está fazendo o gesto de “Lembre-se de João” com a mão.

Debate com o amigo quem foi o primeiro Messias, João ou Jesus. Há livros

e pergaminhos espalhados em torno de seus pés, para indicar que há

muito material a considerar na discussão. É um quadro muito

importante... na verdade, esses dois quadros são indiscutivelmente os

mais importantes em nossa tradição. A aldeia representa Rennes-le-

Château, no alto da colina, e ali na paisagem... já viu quem está aqui?

Maureen sorriu.

— É a pastora e suas ovelhas.

— Isso mesmo. Antonio e Paulo estão debatendo, mas a pastora

assoma por trás deles para lembrar que A Escolhida um dia encontrará

os evangelhos ocultos de Maria Madalena, para acabar com toda a

controvérsia, revelando a verdade.

Berenger Sinclair entrou na sala em silêncio, enquanto Roland dizia:

— Eu queria mostrar essas coisas, mademoiselle Paschal, para

que saiba que meu povo não guarda qualquer ressentimento contra os

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seguidores de João Batista. Somos todos irmãos e irmãs,

descendentes de Maria Madalena. Gostaria que pudéssemos viver em

paz.

Sinclair entrou na conversa.

— Infelizmente, alguns desses seguidores são fanáticos e sempre

foram. Constituem uma minoria perigosa. E o que acontece em todos os

lugares do mundo em que um grupo de fanáticos ofusca as pessoas

pacíficas que acreditam na mesma coisa. Mas a ameaça desses homens

permanece muito real, como Roland pode lhe dizer.

O rosto expressivo de Roland se tornou sombrio.

— É verdade. Sempre tentei viver de acordo com as convicções de

meu povo. Amar, perdoar, ter compaixão por todas as coisas vivas. Meu

pai tinha a mesma convicção... e eles o mataram.

Maureen sentiu a profunda tristeza do occitano pela perda do pai,

mas também pelo intenso desafio a seu sistema de convicção que derivava

do assassinato.

— Mas por quê? — indagou Maureen. — Por que mataram seu pai?

— Minha família é muito antiga nesta região, mademoiselle

Paschal. Aqui, só ouviu as pessoas me chamarem de Roland. Mas o

nome de minha família é Gelis.

— Gelis? — Maureen sabia que o nome era familiar. Olhou para

Sinclair. — A carta de meu pai foi escrita para um monsieur Gelis.

Roland acenou com a cabeça.

— Isso mesmo. Foi escrita para meu avô quando ele era Grão-

Mestre da Ordem.

Tudo começava a se tornar compreensível. Maureen olhou para

Roland e depois para Sinclair. O escocês respondeu à pergunta que não

fora formulada:

— É verdade, minha cara. Roland Gelis é o nosso Grão-Mestre,

embora seja muito humilde para anunciar isso pessoalmente. É o líder

oficial de nosso povo, como foram seu pai e seu avô antes. Ele não me

serve nem eu o sirvo... servimos juntos como irmãos, como determina a

lei d'O Caminho.

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“As famílias Sinclair e Gelis assumiram o compromisso de servir a

Madalena, na medida em que qualquer um de nós pode traçar a

linhagem.” Tammy interveio:

— Maureen, lembra quando estávamos na Tour Magdala, em

Rennes-le-Château, e eu falei sobre o velho sacerdote que foi assassinado,

ao final do século XIX? Seu nome era Antoine Gelis... o tio-bisavô de

Roland.

Maureen olhou para Roland.

— Por que toda essa violência contra sua família?

— Porque sabíamos demais. Meu tio-bisavô era o guardião de um

documento chamado O livro da Escolhida, em que as revelações de todas

as pastoras, por mais de mil anos, foram registradas pela Sociedade. Era

o nosso instrumento mais valioso para tentar encontrar o tesouro de

nossa Madalena. A Guilda dos Justos matou-o por isso. Mataram meu

pai por razões similares. Eu não sabia na ocasião, mas Jean-Claude era o

informante. Mandaram a cabeça e o dedo de meu pai para mim num

cesto.

Maureen estremeceu ante a macabra revelação.

— Esse derramamento de sangue vai acabar agora? O que acha

que eles farão?

— E difícil saber — disse Roland. — Eles têm um novo líder, que é

muito radical. E o mesmo homem que matou meu pai.

Sinclair acrescentou:

— Falei com as autoridades locais, as que ainda são simpáticas às

nossas convicções, digamos assim. Maureen, você ainda não sabe disso,

mas se lembra de Derek Wainwright, o americano?

— O que se vestia como Thomas Jefferson — explicou Tammy. —

Meu velho amigo.

Ela sacudiu a cabeça, desolada, à lembrança dos anos de impostura

de Derek... e pela probabilidade de seu trágico destino. Maureen esperou

que Sinclair continuasse.

— Derek desapareceu em circunstâncias macabras. Seu quarto

no hotel estava... — Ele observou a crescente palidez de Maureen e

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decidiu poupá-la dos detalhes. — Digamos apenas que havia indícios

evidentes de um crime.

Sinclair fez uma pausa.

— As autoridades acham que os aspectos desagradáveis envolvidos

no desaparecimento do americano... seu assassinato, quase com

certeza... farão com que a Guilda dos Justos se mantenha retraída por

algum tempo. Jean-Claude está escondido em algum lugar de Paris. E

desconfiamos de que o líder, um inglês, tenha voltado para o Reino Unido,

pelo menos temporariamente. Não creio que eles nos incomodem no

futuro imediato. Ou pelo menos espero que não.

Maureen olhou subitamente para Tammy.

— E a sua vez. Também não me contou tudo. Levei bastante

tempo para chegar a essa conclusão, mas agora quero saber o resto. E

também gostaria de saber o que está acontecendo entre vocês dois.

Ela apontou para Tammy e Roland, quase colados um no outro.

Tammy soltou sua risada gutural:

— Sabe como adoramos esconder as coisas à plena vista por

aqui. Qual é meu nome?

Maureen franziu o rosto. O que ainda não percebera?

— Tammy... — E, de repente, ela compreendeu: — Tamara. Tamar-a.

Ó Deus, como sou idiota!

— Não é, não — disse Tammy, ainda rindo. — Mas recebi esse nome

por causa da filha de Madalena. E tenho uma irmã chamada Sara.

— Mas você me disse que nasceu em Hollywood! Ou isso também era

uma mentira?

— Não, não era uma mentira. E mentira é uma palavra muito

dura. Vamos chamar de inverdades necessárias. Nasci e fui criada na

Califórnia. Meus avós maternos eram occitanos, profundamente

envolvidos na Ordem. Mas minha mãe, que nasceu aqui, no Languedoc,

foi para Los Angeles trabalhar como estilista de moda. Entrou no

cinema graças à amizade com o pintor e diretor de filmes francês Jean

Cocteau... outro membro da Ordem. Ela conheceu meu pai americano e

ficou por lá. A mãe dela foi morar conosco quando eu era criança. Creio

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que é desnecessário dizer que fui muito influenciada por minha avó.

Roland virou-se para apontar as duas cadeiras, lado a lado.

— Em nossa tradição, homens e mulheres são completamente

iguais, como Jesus ensinou, pelo seu exemplo com Maria Madalena.

Escolhi Tamara para ser minha Maria e se sentar ao meu lado aqui.

Agora, tenho de convencê-la a se mudar para a França, a fim de poder lhe

pedir que se torne uma parte ainda maior de minha vida.

Roland passou o braço em torno de Tammy, que se aconchegou

contra ele.

— Estou pensando a respeito — murmurou ela, timidamente.

Foram interrompidos por dois criados, que trouxeram o café, em

bandejas de prata. Havia uma mesa de reuniões no outro lado da sala.

Roland indicou que pusessem as bandejas ali. Os quatro se sentaram e

Tammy serviu o café, puro e forte. Roland olhou para Sinclair, no outro

lado da mesa, e meneou a cabeça para que ele começasse.

— Maureen, vamos contar tudo o que sabemos sobre o padre Healy

e os evangelhos de Madalena, mas achamos que, antes, você precisava

conhecer alguns fatos, para poder compreender a situação.

Maureen tomou um gole do café, grata pelo calor e a energia.

Escutou atentamente, enquanto Sinclair explicava:

— A verdade é que permitimos que seu primo levasse os

pergaminhos.

Maureen quase deixou a xícara cair.

— Permitiram?

— Isso mesmo. Roland deixou a porta destrancada de propósito.

Desconfiávamos de que o padre Healy pudesse tentar levar os

pergaminhos para a pessoa para quem trabalhava.

— Espere um instante. Para quem ele trabalhava? O que isso

significa? Que meu primo Peter era um espião da Igreja?

— Não exatamente.

Maureen notou que Tammy também escutava com toda a

atenção, o que indicava que ela também não sabia de tudo.

— Não sabemos com certeza de quem ele é espião — continuou

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Sinclair. — Foi por isso que permitimos que levasse os pergaminhos... e

porque não estamos muito preocupados. Pusemos um rastreador em seu

carro alugado. Sabemos exatamente onde ele está e para onde vai.

— Qual é o lugar? — indagou Tammy. — Roma?

— Achamos que seu destino é Paris.

A informação partiu de Roland.

— Maureen... — Sinclair pôs a mão de leve em seu braço. —

Lamento informar-lhe, mas seu primo vem relatando o que você tem

feito para autoridades da Igreja desde o dia em que chegou à França... e

provavelmente há mais tempo.

Maureen ficou atordoada; experimentou a sensação de que levara

um tapa na cara.

— É impossível. Peter não faria isso comigo.

— Durante a semana passada, enquanto o observávamos

trabalhar, tornou-se cada vez mais difícil para nós a idéia de um espião

como seu primo, tão simpático e erudito. A princípio, pensamos que ele

queria apenas protegê-la de nós. Mas acho agora que estava vinculado

demais às pessoas que o empregavam para conseguir se desvencilhar,

mesmo depois de ler a verdade nos pergaminhos.

— Não respondeu à minha pergunta. Acha que é para o Vaticano

que ele trabalha? Os jesuítas? Quem?

Sinclair recostou-se na cadeira.

— Ainda não sabemos. Mas posso lhe dizer uma coisa. Temos

pessoas em Roma investigando. Talvez você fique surpresa se souber

das altas esferas a que estendemos nossa influência. Tenho certeza de

que teremos todas as respostas amanhã à noite... ou no dia seguinte, o

mais tardar. Agora, precisamos ter paciência.

Maureen tomou outro gole do café, olhando para o retrato da

penitente Maria Madalena. Teria de esperar quase vinte e quatro horas

para ter todas as respostas.

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Paris

1° de julho de 2005

O padre Peter Healy estava além da exaustão quando chegou a

Paris. A viagem de carro desde o Languedoc não fora fácil. Mesmo sem o

tráfego intenso na cidade, ao final da manhã, a viagem exigira oito horas.

Também parara, a fim de preparar o pacote para Maureen, o que levara

mais tempo do que previra. Mas a energia emocional necessária para

tomar a decisão fora enorme e ele sentia que toda a vida fora sugada de

seu organismo.

Peter levava sua carga preciosa na mala preta. Atravessou o rio, a

caminho da enormidade gótica da Notre Dame, onde foi recebido numa

entrada lateral pelo sacerdote francês, padre Marcel. Foram para os

fundos da catedral e entraram numa sala, a porta camuflada por uma

ornamentada treliça.

Peter esperava encontrar ali seu mentor, o bispo Magnus O'Connor.

Em vez disso, foi recebido por uma importante autoridade eclesiástica,

um italiano imponente, usando a batina vermelha de cardeal.

— Sua Eminência... — balbuciou ele. — Perdoe-me, mas eu não

esperava por isso.

O italiano manteve o rosto impassível, enquanto estendia a mão

para a mala.

— Posso presumir que trouxe os pergaminhos?

Peter moveu a cabeça afirmativamente.

— Ótimo. — O cardeal pegou a mala. — Agora, meu filho, vamos

conversar sobre os acontecimentos da última semana. Ou talvez

devamos conversar sobre os acontecimentos dos últimos anos? Deixarei

que você decida por onde começar.

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Château des Pommes Bleues

1° de julho de 2005

Houve uma atividade frenética no castelo durante o dia inteiro.

Sinclair e Roland se encontravam a todo instante, conversando em

francês e occitano, falando com os criados e pelos celulares. Em duas

ocasiões, Maureen teve a impressão de ouvir Roland falar em italiano,

mas não teve certeza e não quis perguntar.

Ela passou algum tempo na sala de comunicações, em companhia

de Tammy, que procurava imagens para seu documentário sobre a

linhagem real. Conversaram sobre a maneira como os pergaminhos de

Maria Madalena mudariam a perspectiva de Tammy como cineasta.

Maureen sentiu um respeito ainda maior pela amiga ao verificar como era

competente e criativa, capaz de se dedicar ao trabalho mesmo quando

estava estressada, como acontecia com todos naquele momento.

Maureen, por outro lado, sentia-se absolutamente inútil. Não

conseguia se concentrar em coisa alguma, não era capaz do menor foco.

Sentia que devia tomar notas, tentar extrair da memória tanto quanto

pudesse sobre o material de Madalena. Mas descobria-se incapaz de

fazê-lo. Sentia-se desanimada demais pela traição pessoal de Peter.

Quaisquer que fossem seus motivos, ele partira sem dizer nada e levara

uma coisa que não lhe pertencia. Maureen pensou que muito tempo

passaria antes que se recuperasse desse golpe.

O jantar naquela noite foi um tanto silencioso, apenas os três,

Maureen, Tammy e Sinclair. Roland saíra, mas não deveria demorar,

segundo Sinclair e Tammy. Fora buscar um visitante no aeroporto

particular em Carcassonne, explicou Tammy. Depois que esse misterioso

visitante chegasse, teriam mais informações. Maureen meneou a cabeça

em compreensão. Há muito que aprendera que pressionar por explicações

ali de nada adiantava. As pessoas só revelavam segredos no momento em

que decidiam fazê-lo; era parte da cultura em Arques. Mas ela notou que

Sinclair parecia mais tenso do que o habitual.

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Pouco depois de tomarem café no escritório, um criado apareceu

para falar com Sinclair, em francês.

— Nosso visitante chegou — informou ele para Tammy e Maureen.

Roland entrou na sala em companhia de um homem igualmente

imponente. Vestia um terno escuro, elegante, feito com o melhor tecido

italiano. Tinha um ar aristocrata e era evidente que se sentia à vontade

em sua posição de poder e influência. Passou a comandar a energia na

sala desde o momento em que entrou. Roland adiantou-se:

— Mademoiselle Paschal, mademoiselle Wisdom, é com imenso

prazer que apresento nosso estimado amigo, cardeal DeCaro.

DeCaro estendeu a mão para Maureen primeiro e depois para

Tammy. Ofereceu um sorriso efusivo às duas.

— É um prazer. — Ele apontou para Maureen e perguntou a Roland:

— Essa é a nossa Escolhida?

Roland confirmou com a cabeça.

— Desculpe, mas você disse cardeal? — indagou Maureen.

— Não se deixe enganar pelo terno — comentou Sinclair, por trás

dela. — O cardeal DeCaro é um dos homens de maior influência no

Vaticano. E talvez seu nome completo possa ajudá-la a compreender. É

Francesco Bórgia DeCaro.

— Bórgia? — repetiu Tammy.

O cardeal inclinou a cabeça para confirmar, uma resposta simples

para a indagação tácita de Tammy. Roland atravessou a sala.

— Sua Eminência gostaria de passar algum tempo a sós com

mademoiselle Paschal. Por isso, vamos nos retirar agora. Por favor,

avisem se precisarem de qualquer coisa.

Roland abriu a porta para Sinclair e Tammy, enquanto o cardeal

DeCaro gesticulava para que Maureen se sentasse à mesa de mogno. Pôs-

se sentado à frente dela.

— Signorina Paschale, quero lhe dizer primeiro que me encontrei

com seu primo.

Maureen ficou surpresa. Não sabia o que esperava, mas não era

aquilo.

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— Onde está Peter?

— A caminho de Roma. Estive hoje com ele em Paris. Seu primo está

bem e os documentos que você descobriu estão seguros.

— Seguros onde? E com quem? O que...

— Tenha paciência e lhe contarei tudo. Mas há uma coisa que eu

gostaria de lhe mostrar primeiro.

O cardeal tirou algumas pastas de arquivo vermelhas da mala que

levara para a sala. Tinham uma etiqueta com o nome EDOUARD PAUL

PASCHAL. Maureen ficou aturdida.

— Mas é o nome de meu pai!

— Isso mesmo. E estas pastas contêm fotos de seu pai. Mas

preciso prepará-la. O que está prestes a ver é perturbador, mas muito

importante para que compreenda a situação.

Maureen abriu a pasta de cima. Largou-a na mesa quando suas

mãos começaram a tremer. O cardeal DeCaro explicou, enquanto ela

olhava as fotos impressionantes dos ferimentos do pai.

— Ele era um estigmatizado. Sabe o que é isso? Significa que tinha no

corpo os mesmos ferimentos de Cristo. Aqui estão os pulsos e os pés.

Este quinto ferimento, por baixo das costelas, é o lugar em que o

centurião Longinus espetou Nosso Senhor com uma lança.

Maureen, atordoada, não conseguia desviar os olhos das fotos.

Vinte e cinco anos de especulações sobre a suposta “doença” do pai

corroeram a opinião que ela tinha a seu respeito. Agora, tudo se

encaixava: o medo e a hostilidade da mãe, a raiva que nutria pela Igreja. E

explicava também a carta de seu pai para a família Gelis, que estava nos

arquivos do castelo. Ele escrevera para os Gelis por causa de seus

estigmas... e porque queria proteger a filha do mesmo destino torturante.

Maureen fitou o cardeal através das lágrimas.

— Eu... sempre fui informada de que ele cometeu suicídio por

causa de sua doença mental. Minha mãe disse que ele estava insano

quando morreu. Não tinha a menor idéia... ninguém jamais me disse

nada a respeito...

O cardeal moveu a cabeça, solene.

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— Seu pai foi incompreendido por muitas pessoas, infelizmente.

Mesmo por aqueles que poderiam ajudá-lo, os membros de sua Igreja. É

neste ponto que seu primo entra em cena.

Maureen escutava com toda a atenção. Podia sentir um calafrio

percorrer todo o seu corpo, enquanto o cardeal continuava:

— Seu primo é um bom homem, signorina. Espero que não o

julgue com muito rigor pelo que aconteceu, depois que eu lhe contar

tudo. E devemos começar pelo tempo em que era criança. Quando seu pai

desenvolveu os estigmas, foi pedir ajuda a um padre que integrava uma

organização clandestina dentro da Igreja. Somos, como todas as

pessoas... humanos. E, embora a maior parte da Igreja seja dedicada ao

caminho do bem, há alguns que querem proteger certas convicções a

qualquer custo.

DeCaro fez uma pausa.

— O caso de seu pai deveria ter sido comunicado a Roma, mas

isso não aconteceu. Nós poderíamos tê-lo ajudado, trabalhado com ele

para encontrar a fonte ou compreendido o significado sagrado dos

ferimentos. Mas os homens que interceptaram seu pai decidiram por

conta própria que ele era perigoso. Como eu disse, formavam uma

organização clandestina dentro da Igreja, com propósitos exclusivos. E

tinham uma influência que se estendia aos altos níveis, como só

recentemente descobri.

O cardeal discorreu sobre a vasta rede que se irradia do Vaticano, as

dezenas de milhares de homens e mulheres que trabalham no mundo

inteiro para preservar a fé. Com tantas pessoas envolvidas, por toda parte,

é impossível descobrir os motivos pessoais de indivíduos ou mesmo de

grupos. Uma organização clandestina radical surgira depois do Vaticano

II, um quadro de sacerdotes que se opunha com veemência às reformas na

Igreja. Um jovem padre irlandês chamado Magnus O'Connor fora recrutado

para ingressar na organização, assim como vários outros irlandeses. Era

O'Connor quem estava na paróquia nos arredores de Nova Orleans

quando Edouard Paschal aparecera em busca de ajuda.

O'Connor ficara assustado com os estigmas de Paschal, mas se

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mostrara ainda mais perturbado com as visões de Jesus com uma

mulher ao seu lado e Jesus como um pai com crianças. O padre irlandês

avaliara o caso em sua organização secreta, em vez de consultar os

canais oficiais da Igreja. Depois que Edouard Paschal se matara, por

desespero e confusão pelos estigmas, a organização clandestina passara a

vigiar sua esposa e filha. A pequena Maureen Paschal tinha visões como as

do pai desde o momento em que começara a andar. O'Connor

convencera a mãe, Bernadette, a afastar a criança da família Paschal.

Fora nessa ocasião que a mãe de Maureen voltara para a Irlanda e

revertera ao nome de solteira, Healy. Tentara mudar o nome da filha,

mas aos oito anos de idade Maureen já era bastante determinada. A

criança recusara, insistindo que seu nome era Paschal e que não o

mudaria por motivo algum.

Fora bastante conveniente para Magnus O'Connor, agora elevado a

bispo, que a menina Paschal tivesse um parente próximo com vocação

religiosa. Quando Peter Healy ingressou no seminário, O'Connor traba-

lhou o vínculo irlandês da mesma maneira com que dera certo com

Bernadette. Peter foi informado da história de Edouard Paschal e instado

a ficar de olho na prima, fazendo relatórios regulares sobre seu progresso.

Maureen interrompeu o cardeal para pedir um esclarecimento.

— Está querendo dizer que meu primo me vigiava e relatava

minhas ações para esses homens desde que eu era criança?

— Essa é a verdade, signorina. O padre Healy, no entanto, só fez isso

por amor. Esses homens manipularam-no, levaram-no a pensar que era

tudo no interesse de protegê-la. Não sabia que eles haviam se recusado a

ajudar seu pai. Ou pior, que talvez fossem culpados, por seu triste

falecimento.

O cardeal fitou-a com profunda compaixão.

— Creio que os motivos de seu primo em relação a você sejam

puros e louváveis. Também acredito que ele tenha optado por entregar os

pergaminhos à Igreja pelas razões certas.

— Mas como é possível? Ele sabe o que há nos pergaminhos. Como

pode querer suprimir as revelações?

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— Seria fácil julgá-lo de forma errada com base nas informações

limitadas que você tem. Mas não creio que o padre Healy quisesse

suprimir qualquer coisa. Temos razões para desconfiar de que o bispo

O'Connor e sua organização pressionaram-no com ameaças à sua

segurança. Quero que compreenda, por favor, que isso está inteiramente

fora das atividades oficiais da Igreja e não é aprovado por Roma. Mas seu

primo levou os pergaminhos para O'Connor em troca de sua segurança.

Maureen permitia-se absorver tudo, sem saber como deveria se

sentir. Havia algum senso de alívio por saber que Peter, o único aliado

autêntico e confiável que tivera em toda a sua vida, não a traíra em

qualquer sentido real. Mas havia muita informação nova para digerir.

— Como descobriu tudo isso? — perguntou ela.

— A ambição de O'Connor levou a melhor. Ele esperava utilizar a

descoberta dos evangelhos de Maria para promover sua ascensão na

hierarquia aceita da Igreja. Com isso, teria mais poder e acesso a

informações do mais alto nível, em benefício de sua organização

clandestina e seu programa de intolerância. — O sorriso do cardeal

DeCaro era apenas um pouco presunçoso. — Mas não se preocupe.

Estamos trabalhando para dar um jeito em O'Connor e seus

companheiros, agora que identificamos todos. Nossa rede de inteligência

não fica atrás de nenhuma outra.

Isso não surpreendeu Maureen, que sempre pensara na Igreja

Católica como uma organização onipotente, com braços que se

estendiam pelo mundo inteiro. Sabia que era a organização mais rica do

planeta e dispunha dos melhores recursos que o dinheiro pode comprar.

— O que acontecerá com os pergaminhos de Maria? — perguntou ela,

preparando-se para uma resposta desagradável.

— Se quiser ser honesto com você, devo dizer que é difícil saber.

Tenho certeza de que pode compreender que essa é a descoberta mais

importante de nosso tempo, se não mesmo a mais importante na

história da Igreja. É uma questão que terá de ser discutida nos mais

altos níveis, depois que os pergaminhos forem autenticados.

— Peter contou o que há neles?

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O cardeal inclinou a cabeça numa resposta afirmativa:

— Contou. Também li algumas de suas anotações. Signorina

Paschal, isso pode surpreendê-la, mas não nos sentamos em tronos de

prata no Vaticano e planejamos conspirações durante o dia inteiro.

Maureen riu com ele por um momento, para depois perguntar,

séria de novo:

— A Igreja tentará me deter se eu escrever sobre minhas

experiências aqui... e, ainda mais importante, se eu escrever sobre o que

está nos pergaminhos?

— É livre para fazer qualquer coisa que quiser e ir para onde seu

coração e sua consciência a guiarem. Se Deus trabalhou por seu

intermédio para revelar as palavras de Maria, ninguém teria o direito de

impedi-la de cumprir seu dever sagrado. A Igreja não se empenha em

suprimir informações, como muitos acreditam. Está interessada na

sobrevivência e propagação da fé... e tenho a convicção pessoal de que a

descoberta do evangelho de Maria Madalena pode nos proporcionar uma

nova oportunidade de atrair mais pessoas, ainda por cima mais jovens,

para o nosso rebanho. Mas... — Ele ergueu a mão. — ...sou apenas um

homem. Não posso falar pelos outros, muito menos pelo Santo Padre. O

tempo dirá.

— Até lá, o que acontece?

— Até lá, o Evangelho de Arques segundo Maria Madalena será

preservado na biblioteca do Vaticano, sob os cuidados de um certo

padre Peter Healy.

— Peter vai ficar em Roma?

— Vai, sim, signorina Paschal. Será o supervisor da equipe oficial de

tradutores. É uma grande honra, mas achamos que ele merece. E não

pense que esquecemos a sua contribuição. — O cardeal tirou um cartão de

sua pasta e entregou-o. — É o meu telefone particular na Cidade do

Vaticano. Quando estiver disposta, gostaríamos que aceitasse um convite

para ser nossa hóspede. Seria ótimo ouvir seu relato sobre a jornada

que a trouxe até aqui. E também pode falar com seu primo por este

número, até que ele tenha sua própria linha. Ele vai trabalhar

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diretamente comigo.

Maureen olhou para o nome no cartão.

— Francesco Bórgia DeCaro — leu ela, em voz alta. — Se me perdoa

por perguntar...

O cardeal riu agora, um sorriso sincero, espalhando-se por todo o

rosto.

— É verdade, signorina. Sou filho da linhagem, assim como você é

filha. Ficará surpresa ao saber quantos de nós existem... e onde vai nos

encontrar, quando souber onde procurar.

— É uma noite perfeita de lua cheia. Concederia a honra de me

acompanhar num passeio pelo jardim, antes de se retirar para seu

quarto?

Berenger Sinclair fez o convite para Maureen depois que o cardeal foi

embora. Ela aceitou. Sentia-se agora à vontade em sua companhia, como

costuma ocorrer com freqüência a duas pessoas que suportaram juntas

circunstâncias difíceis. E havia poucas coisas mais belas do que uma

noite de verão no sudoeste da França. Com os refletores iluminando o

imponente castelo e o luar refletido nos caminhos de mármore, o Jardim

da Trindade se transformara num lugar de pura magia.

Maureen relatou toda a conversa com o cardeal. Sinclair escutou

com interesse sincero. Quando ela acabou, Sinclair perguntou:

— O que fará agora? Acha que escreverá um livro sobre sua

experiência? Pretende revelar ao mundo as palavras do evangelho de

Maria?

Maureen contornou o chafariz de Madalena, passando um dedo

pelo mármore frio e liso, enquanto pensava na resposta.

— Ainda não decidi que forma terá. — Maureen levantou os olhos

para a estátua. — Espero que ela me oriente. Mas, qualquer que seja a

forma, espero fazer justiça a Maria.

Sinclair sorriu.

— Tenho certeza de que fará. Ela escolheu-a por uma razão.

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Maureen retribuiu a expressão afetuosa:

— Ela também o escolheu.

— Creio que todos nós fomos escolhidos para desempenhar

papéis, cada um à sua maneira. Você, eu, Roland, Tammy. E o padre

Healy também, é claro.

— Quer dizer que não despreza Peter pelo que ele fez?

Sinclair respondeu sem hesitar:

— Não. Absolutamente não. Peter pode ter feito a coisa errada, mas

foi pelas razões certas. Além do mais, que tipo de hipócrita eu seria se

sentisse ódio contra um homem de Deus depois da descoberta desse

tesouro? A mensagem de nossa Madalena é de compaixão e perdão. Se

todos no mundo assumissem essas duas virtudes, não acha que teríamos

um planeta muito melhor para viver?

Maureen fitou-o com admiração... e com o despertar de uma

emoção que era novidade para ela. Pela primeira vez em sua vida tão

agitada, sentia-se segura.

— Não sei como lhe agradecer, Lorde Sinclair.

O sotaque escocês ficou ainda mais patente na maneira como ele

prolongou o erre em seu nome.

— Agradecer pelo quê, Maureen?

— Por isso. — Ela gesticulou para o exuberante jardim ao redor. —

Por me apresentar a um mundo que a maioria das pessoas nunca

sequer sonhou existir. Por mostrar meu lugar em tudo isso. Por me fazer

sentir que não estou sozinha.

— Nunca mais ficará sozinha. — Sinclair pegou a mão de Maureen

e levou-a pelo jardim, em que predominava a fragrância das rosas. —

Mas deve parar de me chamar de Lorde Sinclair.

Maureen sorriu e chamou-o de “Berry”, pela primeira vez, um

momento antes de ser beijada.

Na manhã seguinte, Maureen recebeu um pacote no castelo. Fora

enviado de Paris no dia anterior. Não havia nome nem endereço do

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remetente, mas ela não precisava disso para saber quem o enviara.

Reconheceria a letra de Peter em qualquer lugar.

Maureen abriu a caixa, ansiosa em saber o que Peter mandara.

Embora não sentisse raiva dele, o primo ainda não sabia disso. Teriam de

passar por um período embaraçoso de desculpas e manter uma conversa

séria sobre a história partilhada, mas Maureen não tinha a menor dúvida

de que voltariam a ser tão íntimos quanto antes.

Ela deixou escapar um pequeno grito de surpresa e satisfação ao

descobrir o que havia na caixa. Eram cópias de todas as anotações de

Peter sobre os três livros do evangelho de Maria Madalena. Tudo estava ali,

das primeiras transcrições às traduções finais. Na página de cima,

arrancada de um dos blocos de anotações, havia um bilhete de Peter:

Minha querida Maureen

Até que eu possa explicar tudo pessoalmente, quero lhe confiar isto.

Afinal, você é a legítima guardiã, muito mais do que as pessoas a que me

vejo obrigado a entregar os originais.

Por favor, apresente minhas desculpas e meus agradecimentos

aos outros. Espero poder fazer isso em pessoa o mais depressa possível.

Entrarei em contato com você muito em breve.

Peter . .

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... Só muitos anos mais tarde é que tive a oportunidade de

agradecer pessoalmente a Cláudia Prócula pelos riscos que ela correra

para ajudar Easa. A tragédia de Pôncio Pilatos e sua decisão de escolher

Roma como seu senhor foi o fato de que não salvou sua carreira nem

serviu para realizar suas ambições, no final. Herodes foi para Roma no

dia seguinte à paixão de Easa, mas não falou bem de Pilatos para o

imperador. Um autentico Herodes até o fim, ele tinha outros planos,

um primo que desejava ver no cargo de procurador. Disse palavras

insidiosas no ouvido de Tibério. Pilatos foi chamado a Roma para ser

submetido a julgamento pelos erros cometidos na administração da

Judéia.

As próprias palavras de Pôncio Pilatos foram usadas contra ele

em seu julgamento. Enviara uma carta para Tibério relatando os

milagres de Easa e os acontecimentos do Dia das Trevas. Os romanos

usaram suas palavras contra ele, não apenas para privá-lo de seu

título e sua posição, mas também para exilá-lo e confiscar suas terras.

Se Pilatos perdoasse Easa e enfrentasse Herodes e os sacerdotes, seu

destino não seria diferente.

Cláudia Prócula permaneceu leal ao marido nos momentos mais

difíceis. Contou-me que o filho, Pilo, morreu poucas semanas depois

da execução de Easa. Não houve explicação para isso. O menino

simplesmente definhou diante dos olhos da mãe. Cláudia disse que a

princípio tivera de recorrer a toda a sua força para não culpar o marido

pela morte do filho, pois sabia que Easa não gostaria de que fizesse

isso. Só precisava fechar os olhos para ver o rosto de Easa na noite em

que curara Pilo... e foi assim que Cláudia Prócula encontrou o Reino de

Deus. Essa romana de sangue real tinha uma extraordinária

compreensão do Caminho Nazareno. E vivia-o sem qualquer esforço.

Cláudia e Pilatos mudaram-se para a Gália, onde ela vivera

quando era criança. Disse que Pilatos passou o resto de sua vida

tentando compreender Easa... quem ele era, o que queria, o que

pregava. Durante muitos anos, ela lhe disse que O Caminho de Easa

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não era algo a que ele pudesse aplicar sua lógica romana. Era preciso

ser como uma criança para compreender a verdade. As crianças são

puras, receptivas e honestas. São capazes de aceitar o bem e a fé sem

questionar. Embora Pilatos não pensasse que podia assumir O

Caminho da maneira como Cláudia fizera, ela sentia que ele também se

tornara um convertido, à sua maneira.

Cláudia relatou-me uma história extraordinária sobre o dia

anterior à sua partida da Judéia para sempre. Pôncio Pilatos foi ao

Templo, à procura de Jônatas Anás e Caifás, exigindo que o recebessem.

Pediu que o fitassem nos olhos, no local mais sagrado de seu povo e

respondessem a uma pergunta: “Executamos ou não o Filho de Deus?”

Não sei o que é mais extraordinário, o fato de Pilatos procurar os

sacerdotes para fazer a pergunta ou o fato de ambos os sacerdotes

confessarem que haviam cometido um erro terrível.

Depois da ressurreição de Easa para Nosso Pai no céu, diversos

homens se apresentaram para dizer que nossos seguidores haviam

removido seu corpo físico do sepulcro. Esses homens haviam sido pagos

pelo Templo para fazer isso, pois os sacerdotes temiam agora uma reação

implacável se as pessoas descobrissem a verdade. Anás e Caifás

confessaram isso. Pilatos contou para a esposa que achava que aqueles

homens estavam sinceramente arrependidos, que sofreriam todos os dias

pelo resto de suas vidas neste mundo pelo conhecimento de suas ações

inomináveis.

Se ao menos eles tivessem me procurado para dizer isso, eu lhes

daria os ensinamentos d'0 Caminho e lhes asseguraria que Easa os

perdoara. Pois no dia em que o Reino de Deus despertar em seu coração,

você nunca mais precisará sofrer.

O EVANGELHO DE ARQUES SEGUNDO MARIA MADALENA

O LIVRO DOS DISCÍPULOS

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CAPITULO VINTE E UM

Nova Orleans

Outubro de 2005

Maureen guiava o carro alugado pelo suave crepúsculo do

outono no sul dos Estados Unidos. Tinha as janelas abaixadas. O ar

que entrava era fresco, trazendo o aviso de que o verão ficara mesmo

para trás e o outono chegara para ficar. Ao parar o carro no

estacionamento ao lado do cemitério suburbano, a claridade

evanescente ainda iluminava a pequena igreja logo depois dos

portões do cemitério.

Desta vez, ela não se desviou dos portões. A filha de Edouard

Paschal entrou no cemitério de cabeça erguida. Nunca mais alguém

teria de visitar as sepulturas de pessoas amadas num cemitério

dos desajustados, dominado pelo mato. Ou pelo menos não ali. Os

portões haviam sido mudados para incorporar as sepulturas antes

patéticas, graças à influência e à subvenção de um certo cardeal

italiano.

O mármore branco da nova lápide na sepultura do pai parecia

brilhar por dentro quando Maureen se aproximou. Havia uma coroa

de rosas e lírios encostada no mármore, pouco abaixo da enorme

flor-de-lis dourada e da inscrição que dizia:

EDOUARD PAUL PASCHAL

Amado pai de Maureen

Ela ajoelhou-se junto da sepultura e teve uma conversa longa

e há muito adiada com o pai.

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O senso de paz interior de Maureen era uma novidade para ela, e

muito bem recebida. Tinha apreensões pelo que o amanhã traria, mas no

geral sentia mais a antecipação do que o medo. No dia seguinte, em

Nova Orleans, teria um encontro, na hora do almoço, com membros do

clã Paschal, tios e primos que jamais conhecera. Depois disso, voaria para

o aeroporto Shannon, na Irlanda, de onde seguiria de carro para a

pequena cidade de Galway. Ficaria hospedada na fazenda da família

Healy. Peter se encontraria com ela ali. Seria a primeira vez em que os dois

se veriam, desde que o primo deixara o Château des Pommes Bleues.

Haviam se falado pelo telefone várias vezes, mas sem qualquer contato

pessoal. Peter marcara um encontro na Irlanda, longe das multidões e de

olhos curiosos. Ali, poderiam conversar à vontade e ele teria tempo e

oportunidade de informá-la sobre a posição oficial do Evangelho de

Arques.

Maureen pensava em todas essas coisas ao passear pelo Quarteirão

Francês, que começava a se agitar, ao lindo crepúsculo daquela sexta-

feira, ao final de outubro. Enquanto ela andava, o som suave de música

de saxofone flutuou na brisa sulista. Ao virar uma esquina, atraída pela

música, Maureen avistou o músico. Os cabelos escuros eram compridos, o

que realçava sua aparência frágil e romântica. Quando ela chegou mais

perto, o músico levantou o rosto. Seus olhos se encontraram por um

momento.

James St. Clair, o músico de rua de Nova Orleans, piscou para

Maureen. Ela sorriu ao passar, os acordes em saxofone de “Amazing

Grace” flutuando no ar em sua esteira.

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CAPITULO VINTE E DOIS

Condado de Galway, Irlanda

Outubro de 2005

Há um silêncio que existe no coração dos campos irlandeses, um

sossego que envolve a terra depois que o sol se põe. É como se a noite

exigisse que não houvesse barulho, fizesse questão de uma tranqüilidade

absoluta.

Para Maureen, essa paz era uma trégua, um descanso necessário

do caos dos meses anteriores. Ali, em seu isolamento, estava segura...

uma solidão que incluía seu próprio coração e mente. Não se permitira

processar os acontecimentos recentes de uma perspectiva pessoal; isso

viria mais tarde. Ou talvez nem acontecesse. Era tudo muito sufocante,

de conseqüências profundas... e absurdo demais. Ela cumprira seu

papel como A Escolhida, por força do destino para o qual fora escolhida...

talvez mesmo a providência divina.

Seu trabalho acabara. A Escolhida era uma criatura espectral,

vinculada no tempo e no espaço ao Languedoc... e felizmente deixada na

França. Mas Maureen Paschal era uma mulher de carne e osso, exausta

ainda por cima. E aspirando o doce aroma do lar de sua infância, Maureen

foi se deitar, conquistando um repouso por muito tempo esperado.

Seu sono não seria isento de sonhos.

Ela vivenciara uma cena similar antes... uma figura na sombra,

um homem inclinado sobre uma mesa antiga, o rangido da pena, as

palavras fluindo sobre o papel. Quando observou por cima do ombro do

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escritor, viu que um brilho azul parecia emanar do papel. Quando o vulto

se virou e ficou sob o foco da luz do lampião, Maureen prendeu a

respiração.

Já tivera vislumbres daquele rosto em sonhos anteriores,

momentos fugazes de reconhecimento, que se evaporavam no instante

seguinte. Ele agora concentrava toda a força de sua atenção em Maureen.

Paralisada no estado de sonho, ela ficou olhando para o homem à sua

frente. O homem mais bonito que já vira.

Easa.

Ele sorriu para Maureen, uma expressão de tanta divindade e

carinho que ela sentiu como se fundisse nele. Era como se o próprio sol

se irradiasse daquela expressão simples. Maureen permaneceu imóvel,

incapaz de fazer qualquer coisa que não contemplar sua beleza e graça.

— Você é minha filha, com quem estou muito satisfeito.

A voz era uma melodia, uma canção de união e amor que ressoava

no ar ao redor de Maureen. Ela flutuou naquela música por um momento

de eternidade, antes de baixar ao som das palavras seguintes:

— Mas seu trabalho ainda não acabou.

Com outro sorriso, Easa, o Nazareno, o Filho do Homem, tornou a se

virar para a mesa, onde estavam as páginas que escrevera. A luz que

emanava das páginas foi se tornando mais brilhante, as letras

tremeluzindo com uma claridade azul e violeta, as cores dançando no

papel que parecia linho.

Easa deslizou sem esforço pelo espaço que os separava e foi parar na

frente de Maureen. Não falou mais nada. Em vez disso, inclinou-se para a

frente e deu um único beijo, paternal, no alto de sua cabeça.

Maureen acordou encharcada de suor. O couro cabeludo ardia,

como se tivesse sido marcado a fogo, sentia-se completamente tonta e

desorientada.

Olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira e sacudiu a cabeça

para desanuviá-la. A primeira claridade do amanhecer insinuava-se

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através das cortinas. Mas ainda era cedo demais para telefonar para a

França. Permitiria a Berry mais algumas horas de sono.

Depois, ligaria para ele... e pediria todos os detalhes sobre o último

paradeiro conhecido d'O Livro do Amor, o único e verdadeiro evangelho de

Jesus Cristo.

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POSFÁCIO

“Que é a verdade?”

— Pôncio Pilatos, João 18:38

Minha jornada pela Linhagem Madalena, à procura da resposta

para a indagação de Pôncio Pilatos, começou com Maria Antonieta,

Lucrécia Bórgia e uma rainha-guerreira celta do século I. Conhecida pela

história como Boadicea, esta última tinha um grito de guerra impetuoso:

“Y gwir erbyn y byd”, que traduzido do galês significa: “A verdade

contra o mundo.” Mantive essas palavras como meu mantra pessoal,

numa busca que se estendeu por toda a minha vida adulta e me levou

por um caminho tortuoso, através de dois mil anos de história.

Há muito tempo me sinto compelida a desenterrar grandes

histórias que não foram contadas, camadas da experiência humana

que estão sepultadas de forma silenciosa e muitas vezes deliberada nos

relatos acadêmicos. Como minha protagonista Maureen nos lembra: “A

história não é o que aconteceu. A história é o que foi escrito.” Com

bastante freqüência, o que sabemos e aceitamos como história foi criado

por um cronista com uma visão política comprometida. Essa

compreensão me transformou numa folclorista desde cedo. Obtenho

imensa satisfação em explorar culturas diretamente, em procurar o

historiador local ou o contador de histórias para descobrir as

verdadeiras crônicas humanas, que não estão disponíveis nas bibliotecas

ou nos livros didáticos. Minha herança irlandesa me faz sentir um enorme

apreço pelo poder dos registros orais e tradições vivas.

Meu sangue irlandês também me induziu a tornar-me escritora e

ativista e, como tal, envolvi-me na tumultuada política da Irlanda do

Norte ao longo da década de 1980. Foi durante esse período que desenvolvi

uma perspectiva cada vez mais cética sobre a história registrada e, por

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isso mesmo, aceita. Como testemunha de eventos históricos,

compreendi que, em todas as circunstâncias, a versão relatada quase

nunca correspondia ao que eu observara acontecer. Em muitos casos, os

relatos das ocorrências, em jornais, noticiários de televisão e, mais tarde,

em livros de “história”, eram quase irreconhecíveis para mim. Todas essas

versões documentadas foram escritas sob camadas de distorções

políticas, sociais e pessoais. A verdade estaria perdida para sempre...

exceto, talvez, para aqueles que observaram os acontecimentos

pessoalmente. De um modo geral, essas testemunhas eram apenas

pessoas das classes trabalhadoras, que só queriam continuar suas vidas;

não escreveriam várias cartas não publicadas para os jornais de

circulação nacional, nem procurariam uma editora para registrar a sua

versão para a posteridade. Enterrariam seus mortos, rezariam pela paz

e fariam o melhor possível para seguir em frente. Mas também

preservariam sua experiência como testemunhas da história de uma

forma pessoal, através dos relatos para a família e a comunidade.

Minhas experiências na Irlanda reforçaram a convicção na

importância das tradições orais e culturais, porque costumam ser a fonte

mais rica à nossa disposição para a compreensão da experiência humana.

Aqueles acontecimentos nas ruas de Belfast tornaram-se meu

microcosmo. Se foram considerados muito importantes para serem

reconstituídos e alterados pela grande imprensa, como se aplicaria o

conceito ao macrocosmo da história do mundo? A tendência a manipular a

verdade não se tornaria maior e mais absoluta ao lançarmos um olhar

mais distante para o passado, para um tempo em que apenas os muito

ricos, muito instruídos e politicamente vitoriosos eram capazes de

registrar os acontecimentos?

Comecei a sentir uma obrigação premente de questionar a história.

Como mulher, queria levar essa idéia um passo adiante. Desde o início

dos registros escritos, que a vasta maioria dos materiais que os

estudiosos consideram aceitáveis, em termos acadêmicos, foi criada por

homens de determinado nível social e político. Acreditamos, em geral sem

questionar, na veracidade de documentos simplesmente porque podem

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ser “autenticados”, ou seja, remontando a um período específico.

Quase nunca levamos em consideração que foram escritos durante dias

mais sombrios, quando as mulheres eram menos valiosas que o gado e

até mesmo se acreditava que não tinham alma. Quantas histórias

magníficas se perderam porque as mulheres que as estrelaram não eram

consideradas bastante importantes, nem sequer humanas o bastante,

para merecer qualquer mérito? Quantas foram completamente removidas

da história? E isso não se aplicaria com mais certeza às mulheres do

primeiro século da era cristã?

Há também aquelas mulheres que foram tão poderosas e

fundamentais em governos mundiais que não podiam ser ignoradas.

Muitas que encontraram seu lugar nos livros de história foram descritas

como notórias vilãs... adúlteras, conspiradoras, impostoras, até mesmo

assassinas. Essas caracterizações seriam justas ou não passavam de

propaganda política usada para desacreditar mulheres que ousaram

asseverar sua inteligência e poder? Armada com essas indagações e com

meu crescente senso de desconfiança daquilo que o mundo acadêmico

aceita como prova histórica, empenhei-me em pesquisar e escrever um

livro sobre mulheres infames, que foram denegridas e incompreendidas ao

longo do tempo. Comecei estudando as já mencionadas, Maria Antonieta,

Lucrécia Bórgia e Boadicea.

Maria Madalena foi inicialmente apenas um dos múltiplos objetos

de minha pesquisa. Esforcei-me em adquirir uma percepção maior desse

enigma do Novo Testamento, em termos de sua importância como

seguidora de Cristo. Sabia que a noção de Madalena como uma prosti-

tuta era preponderante na sociedade cristã e que o Vaticano envidara

algum esforço para corrigir essa injustiça. Esse foi o meu ponto de parti-

da. Era minha intenção incorporar a história de Maria Madalena como

uma das muitas dentro do contexto de trabalho, que se estendia por

vinte séculos.

Mas Maria Madalena tinha um plano diferente para mim.

Comecei a ter uma série de sonhos angustiantes e recorrentes, que

se concentravam nos acontecimentos e personagens da Paixão.

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Ocorrências inexplicáveis, como as experiências de Maureen, levaram-me a

investigar indicações de pesquisa envolvendo as lendas de Maria

Madalena, em locais tão diversos quanto McLean, na Virgínia, e o

deserto do Saara. Viajei da montanha de Masada às ruas medievais de

Assis, das catedrais góticas da França às colinas ondulantes do sul da

Inglaterra e através das ilhas rochosas escocesas.

Tive de fazer um esforço para equilibrar os elementos cada vez mais

surrealistas da minha vida, andando por uma linha ao melhor estilo de

Dalí, oscilando entre a típica mãe da pequena comunidade suburbana e

Indiana Jones. Viria a compreender que a maior parte da minha vida fora

vivida em preparação para essa jornada específica de descoberta. Minhas

experiências pessoais e profissionais começaram a se enquadrar num

padrão elaborado, levando-me a descobrir uma série de segredos de família

que antes me seriam inconcebíveis. Cheguei até a lidar com o choque de

saber que muita coisa que eu fora induzida a acreditar, sobre determi-

nadas pessoas da família, era completamente inverídica. Quase vinte

anos depois que eles se foram, descobri que meus avós paternos, conser-

vadores e muito tradicionais — minha doce avó, uma típica beldade sulista

dos Estados Unidos, e seu devotado marido, um batista do sul —, esti-

veram profundamente envolvidos com a atividade de sociedades secretas e

com a maçonaria. Descobri que minha avó tinha um parentesco de sangue

com algumas das mais antigas famílias da França, um fato que

mudaria não apenas o curso da minha pesquisa, mas também minha

vida. O supremo choque ocorreu com a revelação de que minha data de

nascimento era o assunto de uma profecia relacionada com Maria

Madalena e seus descendentes, a Profecia de Orval, tal como foi enunciada

por Berenger Sinclair. Essas “coincidências” pessoais tornaram-se a

chave mestra para destrancar portas que haviam sido proibidas para pes-

quisadores que me precederam.

Meu interesse pelo folclore de Maria transformou-se em obsessão à

medida que vivenciei antigas e fascinantes tradições culturais, preserva-

das com amor e uma fervorosa paixão por toda a Europa Ocidental. Fui

convidada para o santuário interior de sociedades secretas e me reuni

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com os guardiões de informações tão sagradas que me espanta até hoje

que eles existam com o conhecimento que protegem... há dois mil anos.

Posso afirmar que não tinha a menor intenção de explorar

assuntos que questionam o sistema de convicções de um bilhão de

pessoas. Nunca pensei em escrever um livro que tratasse de um problema

tão importante como a natureza de Jesus Cristo ou seu relacionamento

com as pessoas mais íntimas em sua vida. Como minha protagonista,

no entanto, descobri que às vezes o caminho é traçado para nós. Depois

que descobri a maior história de todos os tempos sob a perspectiva de

Maria Madalena, não havia como voltar atrás. A idéia me possuiu na

ocasião, como o faz até hoje. E tenho certeza de que sempre será assim.

Dois mil anos de controvérsias fizeram com que Maria Madalena se

tornasse a pessoa mais difícil de compreender no Novo Testamento. Em

minha busca para descobrir a mulher real por trás do mito, compreendi

que não tinha o menor desejo de reaproveitar todas as fontes tradicio-

nais, conforme interpretadas pelos suspeitos habituais. Envolvi-me com

o manto quente da folclorista e parti em busca de um mistério mais pro-

fundo. Descobri que o vasto folclore e a mitologia envolvendo Maria

Madalena, na Europa Ocidental, é tão rico quanto antigo. O segredo do

anel e os livros subseqüentes nesta série exploram teorias sobre a identi-

dade e impacto dessa controvertida Maria, inspiradas por subculturas no

sul da França e outros lugares da Europa.

O folclore e tradições da Europa também proporcionaram uma nova

percepção sobre alguns mistérios de Maria, aqueles que nunca foram

explicados, por qualquer teoria plausível, pelos estudiosos tradicionais.

Um trecho no evangelho de Marcos (16:9) tem sido usado contra Maria há

séculos: “Tendo ressuscitado na manhã do primeiro dia da semana,

Deus apareceu primeiro a Maria de Magdala, da qual expulsara sete

demônios.” Essa única frase levou a alegações radicais sobre o estado

mental de Maria, inclusive livros dedicados à idéia de que era possuída

por demônios ou mentalmente doente. Foi só depois que tomei conheci-

mento da perspectiva de Arques — segundo a qual Jesus curou Maria

depois que ela foi envenenada por uma mistura letal conhecida como

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Veneno dos Sete Demônios —, é que a frase de Marcos passou a fazer sen-

tido para mim.

Numa época em que as mulheres eram definidas por seus relaciona-

mentos, Maria Madalena não é identificada como a esposa de ninguém

no Novo Testamento, muito menos de Jesus Cristo. Esse fato isolado

levou os estudiosos a proclamarem definitivamente que a idéia de casa-

mento entre Maria e Jesus é uma impossibilidade. Mas isso cria outro

enigma, já que ela é também a única mulher nos quatro evangelhos a ser

identificada como uma pessoa independente. Ela é uma personagem iso-

lada, indicando que seu nome seria facilmente reconhecido pelas pessoas

de seu tempo e logo depois. Creio que os relacionamentos complicados de

Maria — sua situação como nobre que se torna viúva e casa com outro —

eram algo problemático. Seria constrangedor e até politicamente incorreto

tentar identificar Maria em termos de seus relacionamentos com os

homens. Em conseqüência, ela torna-se conhecida apenas por seu nome

e título: Maria Madalena.

Além disso, a iconografia de Madalena sempre me deixou perplexa.

Apesar da natureza enigmática de sua lenda, ela virou um dos temas

mais populares dos grandes pintores da Idade Média, Renascença e

período barroco. Há centenas de retratos de Maria Madalena, de mestres

italianos como Caravaggio e Botticelli a modernos europeus, como

Salvador Dali e Jean Cocteau. Há um elemento comum nos retratos

muito diferentes de Madalena. Ela é apresentada muitas e muitas vezes

com os mesmos acessórios: um crânio, que representaria a penitência;

um livro, que simbolizaria os evangelhos; e o pote de alabastro, que ela

usou para ungir Jesus. Usa sempre vermelho, uma tradição antiga na his-

tória, o que em geral se acredita ter uma relação com a concepção de

Madalena como uma prostituta.

Mas acredito agora que a iconografia esteja ligada a essa versão

secreta de sua história, preservada pelo movimento clandestino europeu.

Para mim, o crânio é obviamente uma representação de João, por quem

ela sempre fará penitência. O livro é uma referência a seu próprio

evangelho, ou a O Livro do Amor, escrito por Easa. E a túnica e véu

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vermelhos são representativos de sua posição de rainha na tradição

nazarena. Creio no fundo do coração que muitos dos grandes pintores e

escritores da Europa aceitavam a “heresia” de Maria Madalena... e a rica

herança que ela deixou no continente.

Ao longo desta estrada, as histórias jamais contadas de heróis e

anti-heróis do Novo Testamento são reveladas, em detalhes

surpreendentes. O leitor encontra nestas páginas uma interpretação

muito diferente — e espero que muito humana — do papel da infame

Salomé. João Batista é um homem diferente quando visto através dos

olhos de Maria Madalena... e daqueles que a reverenciaram durante dois

mil anos. Tenho uma fervorosa esperança de que o leitor não considere

muito rigorosa minha descrição de João Batista. Tanto Maria quanto

Easa reiteram que João Batista foi um grande profeta. Também creio que

ele foi um homem de seu tempo e de sua terra, um homem empenhado

no cumprimento da lei, sem concessões, um homem que era inflexível

em sua oposição a reformas. Creio que não sou a primeira pessoa a

indicar uma rivalidade entre os seguidores de João e Jesus — e não serei

a última —, mas também sei que essa idéia de João como o primeiro

marido de Maria é chocante para muitos. Literalmente, levei anos para

processar a informação, antes de me sentir preparada para escrever a

respeito. O legado de João, por intermédio de seu filho com Maria

Madalena, continuará a se revelar em meus futuros livros.

Apaixonei-me pelos apóstolos Filipe e Bartolomeu durante esse pro-

cesso. Vistos pelos olhos de Maria, eles foram heróis extraordinários.

Pedro adquiriu vida para mim de uma maneira muito além do “homem

que negou Jesus”. Também desenvolvi uma nova perspectiva sobre Judas

e seu papel trágico e eterno na Paixão.

Talvez eu tenha ficado muito sensibilizada pelas informações que

surgiram sobre Pôncio Pilatos e sua heróica e comovente esposa, uma

nobre romana conhecida como Cláudia Prócula. Há documentos catalo-

gados nos arquivos do Vaticano e uma fascinante tradição real francesa

para apoiar a incrível história do envolvimento de Jesus com a família de

Pilatos. É um relato que confere autenticidade a seus milagres e explica

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as ações mais enigmáticas de Pilatos no evangelho de João. Creio que o

material de Pilatos é fundamental para uma compreensão dos aconteci-

mentos relacionados com a Paixão. Fiquei fascinada ao descobrir que

Cláudia é uma santa dentro das tradições ortodoxas, assim como Pôncio

Pilatos também é, nas igrejas abissínias/etíopes.

Trabalhei para validar o novo material de Madalena por muitos

ângulos diferentes, usando a correspondência de Cláudia Prócula do

século I, conforme publicada pela Issana Press, as múltiplas versões dos

Apócrifos do Novo Testamento, os primeiros textos dos Pais da Igreja,

diversas e valiosas fontes gnósticas e até mesmo os Pergaminhos do mar

Morto. Compreendo que esta versão dos acontecimentos pode ser sur-

preendente, até assombrosa, mas tenho a esperança de que cada leitor

será pessoalmente inspirado a explorar sua compreensão desses misté-

rios. Há um vasto tesouro de informações, a maior parte escrita entre os

séculos II ao IV, que não estão incluídas nos cânones tradicionais da

Igreja. Há milhares de páginas de material a descobrir, como evangelhos

alternativos, Atos de Apóstolos e textos diversos, que revelam detalhes e

percepções sobre a vida e os tempos de Jesus que serão completamente

novos para os leitores que nunca foram além dos quatro evangelistas.

Creio que a exploração de todo esse material, com a mente e o coração

abertos, pode construir uma ponte de luz e compreensão entre as muitas

divisões do cristianismo e além.

Ao longo de meus anos de pesquisas, discuti, questionei,

argumentei e até admiti muitos pontos com clérigos e adeptos de várias

fés. Sou abençoada por ter amigos e colegas de muitas arenas espirituais,

inclusive padres católicos, ministros luteranos, praticantes gnósticos e

sacerdotisas pagãs. Em Israel, conheci estudiosos e místicos judeus,

assim como guardiões ortodoxos dos lugares sagrados do cristianismo.

Meu pai é batista, meu marido é um devoto católico. Todas essas

pessoas tornaram-se uma parte do mosaico de meu sistema de convicções

e, em última análise, uma parte desta história. Apesar das inúmeras

diferenças em suas filosofias, cada uma dessas pessoas me abençoou

com a mesma dádiva: a capacidade de trocar idéias e se empenhar num

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diálogo livre e sem raiva.

Há elementos desta história que não posso confirmar por meio de

qualquer das fontes acadêmicas “aceitáveis”. Existem nas tradições orais

e foram preservados em ambientes altamente protegidos pelos que

temiam repercussões por séculos. Ao preparar este livro, decidi optar por

desenvolver uma argumentação para minha teoria através de dois mil

anos de provas circunstanciais. Embora não possa apresentar uma prova

inequívoca, tenho muitas testemunhas interessantes e uma enorme

quantidade de evidências corroborativas, muitas criadas por nada menos

que os grandes mestres da Renascença e barrocos. Apresento minha

argumentação no contexto dessas evidências e deixarei que o júri dos

leitores determine seu veredicto.

Devo ser circunspecta sobre a fonte primária das novas

informações apresentadas aqui, por razões de segurança. Mas uma coisa

posso dizer. O conteúdo do evangelho de Maria Madalena, como o

interpreto neste livro, é extraído de material nunca antes revelado.

Nunca foi liberado para o conhecimento público. Tomei uma licença

poética na interpretação para torná-lo mais acessível a leitores do século

XXI. Mas creio que a história relatada é genuína e sobrevive por si

mesma.

Em minha necessidade de proteger a natureza sagrada dessas

informações e as pessoas que as guardam, não tive opção que não

escrever este livro — e os subseqüentes nesta série — como ficção.

Contudo muitas das aventuras da protagonista e quase todos os seus

encontros sobrenaturais estão baseados em experiências da minha própria

vida. Em numerosos casos, Maureen recebe informações exatamente da

mesma maneira com que as obtive durante as minhas pesquisas... como

acontece com Tammy. Embora os personagens modernos sejam todos

fictícios, fiz o melhor possível para proporcionar aos leitores uma

experiência autêntica.

Este livro levou quase vinte anos para ser preparado. Ao longo do

caminho, muitas vezes traiçoeiro, recebi a valiosa ajuda de inúmeras

almas intrépidas. Sou grata pelos conhecimentos que me foram confia-

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dos e partilhados, pelas pessoas mais extraordinárias, algumas das quais

correram enormes riscos para me ajudar. Em muitas e muitas oportuni-

dades, especulei sobre meu mérito para escrever esta história. Não creio

que tenha dormido uma noite inteira durante os últimos dez anos,

enquanto me afligia pelos detalhes neste livro e as suas repercussões em

potencial.

Só posso torcer para que o produto final esteja à altura desses

guardiões da verdade de Maria Madalena, que contam comigo para

contar sua história. Acima de tudo, espero que transmita a mensagem de

Maria, de amor, tolerância, perdão e responsabilidade pessoal, de uma

maneira que os leitores possam achar inspiradora. É uma mensagem de

união e de não-julgamento para todas as pessoas e todos os sistemas de

convicções. Ao longo desse processo, permaneci devotada aos

ensinamentos de paz de Cristo e com a convicção de que podemos criar o

céu na Terra. Minha fé n'Ele — e n'Ela — amparou-me através de algumas

noites muito escuras da alma.

Compreendo que me tornarei o alvo de estudiosos e acadêmicos,

muitos dos quais me chamarão de irresponsável por apresentar uma ver-

são que não pode ser confirmada pelas fontes aceitáveis. Mas não pedirei

desculpas pelo fato de ter me oposto às práticas acadêmicas aceitas, no

relato desta história. Minha perspectiva baseia-se na convicção pessoal,

talvez radical, de que é irresponsabilidade aceitar o que foi escrito. Usarei o

emblema escarlate de “antiacadêmica”, com algum orgulho e com o grito

de guerra de Boadicea. Só os leitores poderão determinar que versão da

história de Maria encontra um eco em seus espíritos.

A todos os autores e pesquisadores que têm teorizado, postulado,

argumentado, especulado e formulado intrepidamente, ao longo de dois

mil anos de indícios e pistas falsas, no caminho da compreensão da natu-

reza de Maria Madalena e seus filhos, estendo a mão em amizade. As

divergências veementes sobre o papel da nossa Madalena — e os muitos

escritores e artistas plásticos que a representaram — talvez estejam na

própria essência da busca pela verdade. Espero que eles julguem por bem

me chamar de irmã, depois de que tudo for dito e feito.

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Dois mil anos depois, ainda é a verdade contra o mundo.

KATHLEEN McGOWAN

22 de março de 2006 Cidade dos Anjos

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AGRADECIMENTOS

Agradecer a todas as pessoas que me ajudaram ao longo dos

últimos vinte anos é uma tarefa digna de um livro inteiro e,

infelizmente, não seria possível neste espaço tão finito. Farei o melhor

que puder para incluir aqueles que foram fundamentais para me

ajudar a terminar este livro.

A meu agente e amigo, Larry Kirshbaum, que se tornou meu

arcanjo pessoal através desse processo, ofereço minha ilimitada

admiração e gratidão. Sua paixão pela história de Maria e sua

determinação em me ajudar a levá-la ao conhecimento do público

foram a força orientadora que permitiu que tudo acontecesse.

Sou grata além das palavras pelo apoio firme, orientação

profissional e conselhos fraternais de minha editora, Trish Todd. Meu

reconhecimento a ela — e a toda a equipe de extraordinários

profissionais na Simon and Schuster/Touchstone Fireside — não tem

limites.

Foi preciso um enorme sacrifício para minha família me apoiar ao

longo dos anos de pesquisa. Durante todo o processo, meu

marido, Peter McGowan, foi o meu fiel. Apoiou-me em termos

financeiros e emocionais, defendendo o forte e mantendo a família

unida enquanto eu viajava. Nunca duvidou de minhas experiências

nem perdeu a fé em minhas descobertas, por mais extravagantes que

parecessem, a princípio... o que é muito mais do que posso dizer de

mim mesma. Meus maravilhosos filhos, Patrick, Conor e Shane,

aturaram uma mãe que às vezes estava ausente e perdeu muitas das

competições esportivas de que eles participaram. E, no entanto, meu

marido e meus filhos testemunharam tantos milagres comigo, ao longo

do caminho de descoberta, que todos achamos que não havia opção se

não seguir até a conclusão, apesar dos riscos muitas vezes

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consideráveis. Espero que este livro esteja à altura de seus sacrifícios.

Foi mesmo uma história de família e uma parte de tudo o que faço

e tudo o que sou pertence a meus pais, Donna e Joe. Seu amor e apoio

foram a base de minha vida e eles sofreram alguns momentos difíceis em

conseqüência do espírito cigano da filha. Agradeço-lhes por tudo, mas

me sinto abençoada em particular pelo amor incondicional que

demonstram pelos netos.

Partilho este e os meus futuros trabalhos com meus irmãos,

Kelly e Kevin, e suas famílias. A meus extraordinários sobrinhos e

sobrinhas, Sean, Kristen, Logan e Rhiannon, espero que as revelações

deste livro os inspirem um dia para realizarem seus destinos singulares.

No mesmo dia em que concluí a versão final do manuscrito, recebemos

neste mundo minha mais nova sobrinha, Brigit Erin. Ela nasceu no dia

22 de março de 2006. Ficarei observando com interesse afetuoso,

enquanto seus pezinhos crescem para calçar os sapatos da Escolhida

que veio antes dela.

Toda a minha família deve a nossa felicidade à Unidade de

Tratamento Intensivo da UCLA por salvar o bebê Shane. Na verdade,

eles salvaram todos nós. Para alguém que duvida de milagres, sugiro

que passe alguns dias na UTI neonatal. Ali, pode-se constatar que há

mesmo anjos neste mundo. Usam jalecos brancos e estão disfarçados

de médicos, enfermeiras e terapeutas de respiração. O milagre de Shane

foi o catalisador que me forçou a terminar este livro.

Viajei por quilômetros incontáveis desta jornada com Stacey K,

que tem sido minha irmã, companheira de pesquisa e amiga querida.

Ela merece uma menção especial por aceitar as missões mais

extravagantes sem hesitar... como seguir vozes desencarnadas

chamando “Sandro” através do Louvre ou ir atrás de homenzinhos

estranhos através da Basílica do Santo Sepulcro. Eu não seria capaz de

completar este livro sem sua fé e lealdade.

Tenho uma dívida e um apreço interminável por “Auntie Dawn”,

por sua generosidade sobre-humana e por agir como uma espantosa

âncora de amizade e lealdade.

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Uma gratidão literalmente eterna vai para Olivia Peyton, minha

irmã espiritual e mestra na pesquisa. Curvo-me à sua genialidade

como mulher e como sibila cibernética e presto uma homenagem a seu

brilhante romance, Bijoux, que tem a chave para tantos mistérios.

Apresento agradecimentos especiais a Marta Collier, por sua

contribuição e convicção na música de Finn MacCool, além de seu apoio

decidido ao clã McGowan em todas as circunstâncias.

Ofereço os mais sinceros agradecimentos a Ted Grau, meu grande

amigo e sempre corajoso cavaleiro do Graal. Não creio que ele tenha

compreendido realmente como sua contribuição foi importante. Mas eu

sei.

Obrigada a Stephen Gaghan por seus comentários perceptivos —

embora agoniantes — sobre os primeiros esboços da história. Sua

honestidade inflexível obrigou-me a efetuar melhorias críticas.

Go raibh mile math agat a Michael Quirke, o místico entalhador do

condado de Sligo, que por acaso também é o maior contador de

histórias do mundo. Desde o dia em que entrei em sua loja “por

acaso”, quando estava perdida, no verão de 1983, tenho vivido no outro

lado do espelho. Mais do que qualquer outra pessoa ou acontecimento,

Michael me fez compreender que a história não é o que está registrado

no papel, mas sim o que foi escrito nos corações e almas dos seres

humanos... e gravados na terra em que viveram suas maiores alegrias e

seus mais profundos pesares. Mil agradecimentos por me dar olhos para

ver e ouvidos para escutar.

Agradecimentos adicionais vão para:

Patrick Ruffino, que me ensinou o significado da amizade e por

evitar que eu me perdesse na Zsx Avenue;

Linda G, que faz malabarismos com os arquétipos de Martha e

Vivienne com tanta graça;

Verdena, por incorporar o espírito de Madalena e me ensinar

mais do que umas poucas coisas sobre fé, milagres e imensa coragem;

R. C. Welch, por atuar como tradutor no Museu Moreau e por

uma extraordinária conversa sobre a vida e escrever, num banco de

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Saint-Sulpice;

Branimir Zorjan, por levar sua amizade, luz e cura a nossa casa;

Jim McDonough, o mais adorável magnata da mídia no planeta e

um grande amigo nosso;

Carolyn e David, que estão apenas começando a perceber seu

papel em tudo isso;

Joyce e Dave, meus mais novos amigos;

Joel Gotler, por combater o bom combate e trabalhar para que a

história de Maria tenha uma audiência maior;

Larry Weinberg, meu advogado e amigo, por acreditar em mim

tanto quanto no livro;

Don Schneider, por me fazer rir;

Glenn Sobel, por sua ilimitada paciência e apoio no passado;

Cory e Annie, que compraram o primeiro exemplar.

Também tenho uma dívida de gratidão com a rainha de Áries,

Linda Goodman, a falecida astróloga e escritora que foi a primeira

pessoa que sussurrou esse segredo em meu ouvido, muito antes de eu

estar preparada para compreendê-lo. Ela alterou o curso de minha vida

com essa informação e ao me deixar suas traduções das Tábuas de

Esmeralda (cuja importância se tornará evidente em livros posteriores).

Meu destino permanece estranhamente entrelaçado com o de Linda, um

fato que proporcionou a ambas uma angústia surpreendente, mas

também uma imensa alegria. Gostaria que ela tivesse permanecido

conosco pelo tempo suficiente para ver a prova revelada de suas próprias

ligações com a linhagem.

Também sou grata porque o caminho através da vida de Linda me

levou a outra grande escritora e astróloga, Carolyn Reynolds. Carolyn

foi meu rochedo em dias muito sombrios, com o seu grito de batalha:

“Ninguém pode roubar seu destino.” Agradeço a ela com toda a força do

meu coração.

Também apresento agradecimentos especiais às iluminadas

mulheres do Foro das Tábuas de Esmeralda, por seu apoio e amor ao

longo dos anos.

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Às vezes é preciso metade de uma vida para compreender por que

determinados acontecimentos moldam seu destino. Jackson Browne

mudou minha vida jovem e impressionável quando completei dezessete

anos, nos bastidores do Pantages Theater. Creio sinceramente que este

livro não existiria se ele não tivesse feito isso. Como ativista adolescente,

fui o alvo de seu discurso arrebatado sobre o poder de uma pessoa de

fazer uma diferença no mundo... e de seu elogio à minha jovem

necessidade de questionar qualquer situação injusta. Ele me segurou

pelos ombros para dar ênfase, ao dizer: “Nunca pare de fazer o que você

faz. Nunca.” Agradeço a ele por esse catalisador (embora meus pais prova-

velmente não agradeceriam) e por uma vida inteira de música inspirada,

em particular por “The Rebel Jesus”. Creio que Easa aprovaria.

Também apresento meus agradecimentos sinceros a Ted Neeley

e às lembranças afetuosas do falecido Carl Anderson. Eles e muitos

outros me comoveram com seus retratos de inspiração divina de Easa e

Judas. (É uma coincidência que Andrew Lloyd Weber tenha nascido no

dia 22 de março?) Qualquer um bastante afortunado para passar

algum tempo na presença radiante de Ted sabe o quanto ele

personifica a beleza do espírito nazareno.

Os talentosos membros do Screenwriter's Refuge me

proporcionaram terapia de grupo e um tremendo apoio durante os

últimos anos. Cindy, Robert, James, Mel, Kathy, Fitchy, Teddy, Chris e

Wenonah, vocês merecem minha admiração e meus mais profundos

agradecimentos. É maravilhoso estar nas trincheiras com amigos de

confiança.

Meu coração vive na Irlanda e minha gratidão está

especificamente no condado de Cavan, onde meus parentes afins, John

e Mary, sempre me trataram como se fosse de seu próprio sangue.

Meu amor e agradecimentos também se estendem a toda a minha

família irlandesa: Brian, Bridie & Pat, Susan, Philomena, Pam & Paul,

Geraldine & Eugene, Peter & Laura, e Noeleen, David & Daniel.

Agradeço a toda a turma de Drogheda por me mostrar a

essência da cidade que sobreviveu a Cromwell. São pessoas muito

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especiais e amigos maravilhosos. E aquele ponto de referência é

chamado de Torre de Madalena por uma razão, não é mesmo?

Durante a pesquisa, Los Angeles foi meu lar, a Irlanda meu

refúgio, e a França minha inspiração. Sou grata à equipe do Hotel Place

du Louvre, que sempre me fez sentir bem-vinda em Paris, e por me

apresentar à história da Cave dos Mosqueteiros. Há muitas pessoas na

França que me deram pedacinhos de seu coração e alma. Não se passa

um dia sem que eu suspire pela beleza do Languedoc, Camargue, Midi,

Provence... e pelas pessoas extraordinárias que habitam essas regiões

mágicas.

A essência da Madalena é de compaixão e perdão e, nesse

espírito, eu ofereceria um ramo de oliveira às pessoas a quem posso

ter ofendido ao longo do caminho. Em particular, a meu tio, Ronald

Paschal, pois sua paixão pela nossa excepcional herança francesa foi

uma coisa que não pude absorver na ocasião em que ele tentou me

mostrar.

Também ofereço este livro a Michele-Malana. Nossa amizade não

sobreviveu ao caminho tumultuado em que nos lançamos, mas sua

generosidade e inspiração nunca serão esquecidas. Se ela algum dia ler

isto — e seu amor por nossa Madalena indica que pode ler —, espero

que me encontre.

Devo agradecer às pessoas maravilhosas na Issana Press por

publicarem as traduções das cartas de Cláudia Prócula. Recomendo o

livreto Relíquias de arrependimento... bem pequeno, mas sem dúvida

poderoso. Agradeço-lhes por me confirmarem que Pilo era mesmo o nome

do filho de Pilatos... e por desafiar meu cérebro com a informação de que

pode haver outros filhos de Pilatos!

Creio que é necessário que os escritores homenageiem aqueles

que abriram as portas para passarmos. Assim, devo agradecer a autores

bastante controvertidos, Michael Baigent, Henry Lincoln e Richard Leigh,

que levaram ao mundo O Santo Graal e a linhagem sagrada, na década de

1980. Esse livro foi o terremoto que despertou o público para a idéia de

que alguma coisa importante estava acontecendo no sudoeste da

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França. Obviamente, cheguei a conclusões diferentes e encontrei um

foco alternativo para minhas pesquisas. Mesmo assim, respeito a

coragem, tenacidade e espírito pioneiro desses três homens honrados e

o que conseguiram realizar... e por introduzir o mundo esotérico por

intermédio do enigmático e misterioso Berenger Saunière.

Finalmente, a todos os brilhantes artistas que ansiaram para

que as informações fossem descobertas em suas próprias vidas, ofereço

minha gratidão por nos proporcionarem os mapas e indicações que

eram necessários para descobri-las. Agradeço em particular a

Alessandra Filipepi, que foi de fato “um filho dileto dos deuses” e

continua a me encantar, através do tempo e do espaço.

Encontrarei todos muito em breve, na Catedral de Chartres, na

entrada do labirinto, ao iniciarmos nossa busca por O Livro do Amor.

Vocês já têm um mapa. Mas podem querer levar seus velhos exemplares

das obras completas de Alexandre Dumas e se envolverem com uma

tapeçaria de unicórnio...

Lux et veritas, KDM

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Et In Arcadia Ego

On the road to Sion, I met a woman

A shepherdess so fair

She spoke these words in a secret whisper

Et In Arcadia Ego

I traveled east through the red mountains

By the cross and this horse of God

Saint Anthony the hermit said,

“begone, begone”

I hold the secrets of God.

In the harvest time I rested

seeking the fruit of the vine

in the mid-day sun I saw them

blue apples, blue apples

Et In Arcadia Ego

In the shadow of Mary

I found the secrets of God

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(Et In Arcadia Ego

Na estrada para Sião encontrei uma mulher

Uma pastora tão bela

Ela falou essas palavras em segredo

Et In Arcadia Ego

Viajei para leste através das montanhas vermelhas

Pela cruz e este cavalo de Deus

Santo Antonio, O Eremita, disse:

“vá embora, vá embora”

eu tenho os segredos de Deus.

No tempo da colheita descansei

procurando o fruto da videira

ao sol do meio-dia eu vi

maçãs azuis, maçãs azuis

Et In Arcadia Ego

A sombra de Maria encontrei

os segredos de Deus)

Do álbum Music of the Expected One, de Finn MacCool Letra e música de Peter McGowan e Kathleen McGowan Visite www.theexpectedone.com para ouvir o áudio

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P A P E L

CHAMOIS-FINE a l c a l I n o

Este livro foi impresso em papel Chamois Fine Dunas 75g/m2, da Ripasa S/A., fabricado em harmonia com o meio ambiente.

Este livro foi impresso na Editora JPA Ltda. Av. Brasil, 10.600 — Rio de Janeiro — RJ

para a Editora Rocco Ltda.

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