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O seminário Seráfico Santa Maria dos Capuchinhos e as identidades sacerdotal e
franciscana na transição do Concílio Vaticano II (1953- 1987)
Edson Claiton Guedes1
INTRODUÇÃO
O texto que apresentamos faz parte de nosso projeto de pesquisa, em andamento, no
programa de pós-graduação em História, Cultura e identidades da Universidade Estadual de
Ponta Grossa, Paraná, na linha: Instituições e Sujeitos, Saberes e Práticas. Importa-nos nesta
pesquisa trabalhar as identidades sacerdotal e franciscana, portanto identidades religiosas, no
Seminário Seráfico Santa Maria dos Frades Capuchinhos na cidade de Irati, Paraná, no período
de 1953-1987. O período de análise abarca os trinta e quatro anos de funcionamento da
instituição, e assim o decidimos por duas razões: a primeira é que o elemento de tensão sobre as
identidades, o Concílio Vaticano II, está temporalmente localizado entre 1962-1965. A segunda
razão porque estando o Concílio em meados dos anos 60, prudentemente decidimos estender o
período de análise o que nos permitirá ter uma visão ampliada de como estas tensões foram
administradas ao longo do tempo no Seminário.
Por tratar-se de pesquisa em andamento e, portanto, sem os resultados finalizados,
propomo-nos apresentar o aporte teórico sobre o qual estamos construindo a pesquisa. Para tanto,
por questões didáticas, dividiremos este artigo em seções, onde destacaremos os conceitos nela
utilizados.
Na primeira seção apresentaremos um breve percurso histórico da instituição do
Seminário como local de formação e produção das identidades, de acordo com o discurso da
Igreja e da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, tendo em vista o seminário Santa Maria de
Irati, Paraná. Na segunda seção, trazemos o conceito de identidade, a partir dos autores citados,
1 Mestrando no programa de Pós-graduação em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR (UEPG). E-mail:
que nos apoiamos na pesquisa. Por fim, na terceira seção, apresentaremos o Concílio Vaticano II
como evento histórico e dialógico que acenou uma aproximação maior da Igreja Católica com a
sociedade moderna, especialmente após o fechamento promovido pelo Concílio Vaticano I, e
consequentemente, a ressignificação das identidades sacerdotal e franciscana.
O SEMINÁRIO CATÓLICO COMO INSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA E EDUCATIVA
Tagliviani ( 2007, p. 40) define o seminário como: “uma casa de formação que recebe
meninos de 10 a 11 anos de idade no mínimo, mantendo-os em regime de internato. Uma
condição para ser recebido no seminário é o desejo de ser padre. A esse desejo chama-se de
vocação e os vocacionados são chamamos de seminaristas”.
A instituição dos Seminários (sementeira) como ambiente exclusivo de formação para o
clero foi estabelecida no Concílio de Trento por meio do decreto Cum adolescentium aetas, de 15
de Julho de 1563. Além de ser uma forma de criar um clero disciplinado, foi também uma
resposta às duras críticas proferidas por Martinho Lutero2, que afirmava ser o clero católico
ineficiente e corrupto. Em 1564 o papa Pio IV, fundou o seminário Romano, o primeiro no
modelo tridentino, e entregou sua direção à nascente Companhia de Jesus, os jesuítas.
A experiência brasileira para formação de sacerdotes durante o período colonial está
ligada, de maneira geral, aos Jesuítas e seus colégios. Ainda que estes colégios não tivessem
como objetivo principal a formação sacerdotal, eles abriram suas portas para que os candidatos
seculares e de outras famílias religiosas pudessem completar seus estudos. Hoornaert ( 1983)
destaca quatro etapas no processo de implantação dos seminários no Brasil:
1) As confrarias dos meninos de Jesus, criados em Salvador na Bahia e Porto
Seguro, Vitória, São Vicente e também em Pernambuco e tiveram uma vida
efêmera de apenas uma década: de 1550 a 1560;
2 Uma das críticas mais ferrenhas de Lutero ao sacerdócio católico esta em seu livro “Do cativeiro Babilônico da Igreja”, editado
em 06 de outubro de 1520. Todo Texto é um ataque a Igreja de Roma e seus clérigos, que na época, segundo sua opinião,
mantinham a igreja cativa como outrora o povo de Israel ficou no exílio babilônico. Especialmente no seu comentário ao
sacramento da Ordem, onde refuta tanto a ideia de sacramento como a de uma ordem clerical na Igreja, ele diz que o papado
“criou uma sementeira de implacável discórdia para que os clérigos e leigos sejam mais distantes entre si que o céu e a terra”.
(LUTERO, 2008. p. 105).
2) Os colégios dos Jesuítas que datam de 1560 até meados do século XVIII,
um misto de escola e faculdade que acolhia também os candidatos ao clero;
3) Os seminários eclesiásticos, que foram criados para abrigar somente os
candidatos ao sacerdócio. O primeiro foi o de Belém de Cachoeira, sob a
iniciativa do padre Bartolomeu de Gusmão, Jesuíta. Também o padre Angelo
Siqueira, secular e o irmão Joaquim do Livramento, são nomes importantes
neste período.
4) Seminários Episcopais. Foi em 1756, sob a chancela do Bispo da Bahia D.
José Botelho, que o primeiro seminário episcopal do Brasil foi erguido, sob o
nome de Seminário nossa Senhora da Conceição. Porém, em 1759 com a
expulsão dos Jesuítas, o seminário foi extinto. Será o Seminário de Olinda3,
criado por Azeredo Coutinho em 1800 o único seminário episcopal em
funcionamento após a expulsão dos Jesuítas.
Entre os Capuchinhos, os seminários aparecerão a partir do século XIX, sob o governo
do Frei Bernardo Christen de Andermatt. Frei Bernardo foi Superior geral dos Capuchinhos entre
1884 a 1908, e promoveu a renovação dos estudos e a instauração efetiva dos seminários
seráficos em toda a Ordem. Os Capuchinhos eram reticentes quanto a importância dos estudos
para seu trabalho, alegando uma tradição franciscana 4 que via nos estudos um perigo para
santificação do frade.
Melchor de Pobladura, que foi quem primeiro estudou a instituição dos seminários
seráficos capuchinhos, os define como:
3 O Seminário de Olinda, ainda que pautado pela iniciativa de ser um lugar de formação do clero nos moldes do Concilio de
Trento, não teve, nos seus primeiros trinta e seis anos de funcionamento, uma orientação estritamente eclesial. De Acordo com
Alves (2001, p. 91), o bispo Azeredo Coutinho, imbuído da ideologia burguesa, deu a este seminário uma orientação “marcada
pela preocupação com o domínio do mundo material”, sendo, de acordo com o autor, a proposta pedagógica do bispo de Olinda
uma manifestação do “iluminismo luso-brasileiro”. 4 De acordo com D’Alatri (1998), nos dois primeiros séculos, os estudos humanísticos na Ordem Capuchinha foram praticamente
negligenciados. Apenas em 1757 houve uma preocupação de exigir aos candidatos que tivessem lições de língua latina. A
“tradição” alegada pelos primeiros capuchinhos é questionada por Merlo (2005). De acordo com este autor, em seu estudo sobre
os três primeiros séculos do movimento franciscano, ele demonstra que havia um grupo majoritário na Ordem, apenas 13 anos
após a morte de São Francisco, que constituiu como regra para ser recebido, ter uma cultura superior em gramática, lógica,
medicina, direito e teologia, de acordo com as constituições pré-narbonenses de 1239/1240. Logo, perdurou pouco tempo o desejo
de afastar os estudos como um risco a vocação do frade menor.
un colégio extraconventual de segunda enseñanza privada o no oficial, dependiente de la
Ordem, en donde los candidatos que se preparan para ingressar en ella, cursan los
estúdios clássicos o humanísticos, que pressupone el estúdio de la filosofia y de la
teologia, y reciben la educación civil, moral y religiosa franciscana, própria de quien
profesa entre los Menores Capuchinos la Regla de San Francisco en el estado sacerdotal
(POBLATURA, 1936, p. 03)5
Com a vinda dos Capuchinhos ao Paraná6, foram construídos, a partir de 1930, vários
seminários, conforme podemos observar:
SEMINÁRIO LOCALIZAÇÃO PERÍODO DE
FUNCIONAMENTO
Seminário Nossa Senhora das Mercês Curitiba 1930 a 1934
Seminário Santo Antônio Almirante Tamandaré 1934 a 1968
1973 a 1975
Seminário Santa Maria Irati 1953 a 1987
Seminário Vocacional São José Almirante Tamandaré 1955 a 1972
Seminário Vocacional Nossa Senhora de
Fátima Cruzeiro do Oeste
1963 a 1966
Seminário Vocacional Nossa Senhora de
Fátima Siqueira Campos
1967
Seminário Vocacional Assunção Uraí 1968 a 1993
Seminário Vocacional Frei Ricardo de
Vescovana Céu Azul
1971
Bona (2011)
Dentre os seminários Capuchinhos, o Santa Maria, fundado em 1953 e localizado na
cidade de Irati, sudoeste do Paraná7, simbolizou o apogeu do modelo trindentino-franciscano.
Bona (2011), contabilizou que, nos trinta e quatro anos de funcionamento, cento e vinte cinco
estudantes que passaram por este Seminário, tornaram-se freis Capuchinhos.
Sobre o regulamento dos Seminários Seráficos surgiu em 19 de março de 1893 com o
titulo de “Instrução para os responsáveis pelas escolas Seráficas”, escrito pelo ministro geral Frei
5 “O colégio seráfico, tal como nós o concebemos nestas páginas, é um colégio extra-conventual de ensino secundário privado ou
não oficial, dependente da Ordem, onde os candidatos que se preparam para ingressar nela, cursam os estudos clássicos e
humanísticos, que pressupõe o estudo da filosofia e teologia, e recebem educação civil, moral e religiosa franciscana, própria de
quem professa entre os Menores Capuchinhos a regra de São Francisco no estado sacerdotal”. Tradução nossa. 6 A presença dos Capuchinhos no Paraná se dá em dois períodos distintos. Quaresma (1990) afirma que no período entre 1840 e
1912, ou seja, no período que abrangeu o II Império até o início da república, os frades da região de Gênova, na Itália, vieram para
trabalhar com os indígenas nos aldeamentos da Província do Paraná, de forma a cumprir com o que exigia a legislação indigenista
na metade do século XIX. A partir de 1920, os Capuchinhos retornaram para o trabalho missionário na Diocese de Curitiba, que
no início do século XX abrangia todo estado. 7 Os Capuchinhos chegaram em Irati em 1948 para assumir o trabalho pastoral na Paróquia Nossa Senhora da Luz.
Bernardo de Andermatt. Nesse Documento, de acordo com Lehmann, o ministro geral expressa-
se a respeito dos objetivos do Seminário Seráfico da seguinte maneira:
O primeiro objetivo é preservar o contágio do século e educar cristãmente as crianças
que tem qualquer esperança de vocação religiosa, e o segundo propósito é a diligente
instrução dos elementos que devem preceder os estudos das ciências. Tal estudo é
necessário para abrir a mente das crianças, para amadurecer as suas vocações a para
provar suas atitudes nos estudos (LEHMANN, 2010, p. 398).
A geração dos frades educados no Seminário Seráfico Santa Maria antes do Concílio,
foram influenciados pela noção de sociedade perfeita, de obediência incondicional aos superiores,
onde, de acordo com Serbim (2008, p. 117), a negação do mundo requeria que os membros de
ordens religiosas adotassem pseudônimos e, a Igreja e seus seminários, punham-se acima da
história.
Os seminários foram e continuaram sendo centros de formação do clero na Igreja, além de
núcleos de identidade e identificação dos jovens católicos com sua doutrina. No seminário, a
identidade sacerdotal será inculcada por meio do compartilhamento de um cultura religiosa
comum, e, no caso dos religiosos, do carisma da congregação, a qual o jovem deve aderir.
Em nossa pesquisa, estudamos o seminário como instituição identitária e escolar, o que
nos possibilita ampliar o seu conceito a partir de pesquisas como as de Goffman 1974; Foucault,
1999; Benelli, 2012, Nosella e Buffa (2009), Magalhães (2004), Saviani (2007;2013) entre
outros.
Goffman (1974) em seu livro Manicômios, prisões e conventos, indica que certos
mecanismos de estruturação de uma instituição determinam a sua condição de instituição total e
acarretam consequências na formação do eu do indivíduo que nela participa sob determinada
condição. Será que o seminário, como formador de identidade, reforça nos indivíduos esta
condição por meio de mecanismos próprios? Podemos enquadrar o Seminário como uma
“instituição total”, conforme propõe Gooffmam?
As relações de poder descritas por Foucault (1999) em sua obra “microfísica do poder”
demonstram que há sempre tensões entre o instituído nas normas e disciplinas e as resistências
suscitadas no ambiente. As resistências são produzidas pelos indivíduos a partir do momento que
sentem-se sujeitos neste processo. Em meio a este jogo de poder, as tensões, de tempos em
tempos, se confrontam e cedem deixando transparecer a subjetividade. Ainda que o “objeto de
poder” seja o corpo, como lembra Foucault, há sempre o espaço para a “construção da
subjetividade”. A subjetividade, diz Benelli (2007, p.23-24) não é o que está dentro dos
indivíduos, mas aquilo que os “atravessa ou os tranversaliza e os constitui coletivamente”(...) e,
além disso, ela se organiza “como um espaço poroso, permanentemente aberto à passagem de
forças e fluxos de matéria e de energia, mutante, constantemente diferindo de si mesma.” Ou seja,
ela se constitui num processo contínuo, em constante devir, no contato com o outro.
Nas pesquisas sobre instituições escolares, Nosella e Buffa, lembram que vários aspectos
precisam estar presentes, tais como:
o contexto histórico e as circunstâncias específicas da criação e da instalação da escola;
seu processo evolutivo: origens, apogeu e situação atual; a vida da escola; o edifício
escolar: organização do espaço, estilo, acabamento, implantação, reformas e eventuais
descaracterizações; os alunos: origem social, destino profissional e suas organizações; os
professores e administradores: origem, formação, atuação e organização; os saberes:
currículo, disciplinas, livros didáticos, métodos e instrumentos de ensino; as normas
disciplinares: regimentos, organização do poder, burocracia, prêmios e castigos; os
eventos: festas, exposições, desfiles (NOSELLA E BUFFA, 2009, p. 18).
Para além da materialidade da instituição educativa, Magalhães (2004, p. 66) lembra que
a própria pedagogia institucional “alarga-se ao grupo e às representações que subjazem aos
intervenientes na relação educativa [...] A identidade dos sujeitos, suas memórias, destinos e
projetos como a memória e a representação da instituição, cruzam-se e fecundam-se mutuamente
enquanto construção histórica.” Neste sentido, a análise histórica do seminário precisa
contemplar que tanto a instituição quanto a educação por ela oferecida, são articuladas na ação
dos sujeitos. Neste caso, diz Saviani (2013, p. 29) “estamos diante da instituição em ato, ou seja,
voltamo-nos para o próprio modus operandi da instituição”. A própria instituição é constituída
para satisfazer uma necessidade que tem caráter permanente. O Santa Maria tinha como
finalidade ser um centro de preparação para o ingresso dos jovens na Ordem dos Capuchinhos,
uma etapa num longo processo de enquadramento no sistema religioso. No entanto, como lembra
Saviani (2013, p. 35), apesar da transitoriedade da instituição, ela “se define pelo tempo histórico,
e não, propriamente, pelo tempo cronológico, e muito menos, pelo tempo psicológico”.
A QUESTÃO DAS IDENTIDADES
Como bem frisou Stuart Hall, existe atualmente uma “explosão discursiva em torno do
conceito de identidade” (2014, p.103). Isso porque, chegou-se atualmente a conclusão de que a
identidade não é dada, não está geneticamente definida, mas ela
permanece sempre incompleta, esta sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. As
partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com
ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida
adulta. [...]. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que ja esta dentro de
nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que e “preenchida” a partir de nosso
exterior (HALL, 2002, p. 38-39).
Na modernidade, esta identidade esta sendo descentrada, fragmentada, deslocada. Isso
implica dizer que há uma crise de identidade, porque uma “identidade plenamente unificada,
completa, segura e coerente é uma fantasia” (Hall, 2014, p. 12). Este deslocamento da identidade
é uma percepção compartilhada também por outros autores como Giddens (2002), Castells
(1999), Bauman (2005).
De acordo com Giddens (2002), a auta-modernidade, tem influenciado fortemente esta
movimentação da identidade, de maneira mais veloz e até traumática, porque o sujeito tem uma
infinidade de opções nesse jogo dialético de construção e reconstrução identitária. Nas culturas
tradicionais tudo permanecia inalterado, geração após geração, e a novidade era sempre
ritualizada. Já na sociedade da auta-modernidade, a identidade precisa ser “explorada e
construída como parte de um processo reflexivo de conectar mudança pessoal e social”
(GIDDENS, 2002, p. 37). Já não é mais um processo natural, coletivo, mas evoca a participação
do indivíduo que tem papel preponderante nesta construção.
Já para Castells, a identidade é construída a partir de múltiplos fatores que a compõe:
A construção de identidades vale-se da matéria prima fornecida pela história, geografia,
biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias
pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso (CASTELLS, 1999, p.
23)
A identidade nunca se constrói a partir de si mesma, mas sempre a partir de uma realidade
maior que se chama coletivo. É na coletividade que a identidade é moldada, construída. Neste
quadro, a questão da identidade aprofunda-se ainda mais num mundo em constante
transformação. Baumam caracteriza este período com um adjetivo sagaz: líquido. É nesta
realidade líquida, amorfa, que os indivíduos procuram no coletivo um local seguro de identidade.
Isso porque, as identidades “perderam suas âncoras sociais que faziam parecer naturais, pré-
determinada e inegociável, a identificação se torna cada vez mais importante para os indivíduos
que buscam desesperadamente um nós a quem podem pedir acesso” (BAUMAM, 2005, p.30).
Na busca de um lugar de identificação o indivíduo tende a se agregar num ambiente
determinado. Neste local, o indivíduo moldará sua identidade a partir da observação dos pares e
sob a pressão deles. Disso dependerá sua aceitação ou não no grupo, como diz Goffmam
Quando um indivíduo chega diante de outros, suas ações influenciarão a definição da
situação que se vai apresentar. Às vezes, agira de maneira completamente calcada,
expressando-se de determinada forma somente para dar aos outros o tipo de impressão
que ira provavelmente leva-los a uma resposta específica que interessa obter. Outras
vezes, o individuo estará agindo calculadamente, mas terá, em termos relativos, pouca
consciência de estar procedendo assim. Ocasionalmente expressar-se-a intencional e
conscientemente de determinada forma, mas, principalmente, porque a tradição de seu
grupo ou posição social requer este tipo de expressão, e não por causa de qualquer
resposta particular que não a de vaga aceitação ou aprovação (GOFFMAN, 2002, p. 15).
Enfim, na perspectiva de refletir a respeito do conceito de identidade e de seus
desdobramentos, conceito extremamente complexo, concentramos nossa análise nas identidades
sacerdotal e franciscana a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). Por certo, o Concílio
simbolizou uma ruptura com o modelo de formação tridentino, mas foi a recepção de seus
documentos e orientações no interior das congregações que denotam as tensões por ele
produzidas.
O CONCÍLIO VATICANO II COMO EVENTO HISTÓRICO, DIALÓGICO E AGENTE DE
TENSÃO DAS IDENTIDADES SACERDOTAL E FRANCISCANA
Classificar o Vaticano II como “evento histórico”, é inseri-lo, à sombra da teoria de
Koselleck8, no rol de acontecimentos marcantes ou historiograficamente significativos, ao menos
de compreensão, palavra aliás, que “domina e ilumina os estudos do historiador”, como afirmava
Bloch (2001, p. 128). O Vaticano II marcou, para além da Igreja, a sociedade ocidental pós 1965
porque, apesar da laicidade da sociedade ocidental, o mundo está “encharcado” de práticas e
discursos religiosos. A Igreja através de suas instituições, está presente neste ambiente, e sua
presença dialoga, interage com a sociedade recebendo desta elementos que caracterizam,
inclusive, a linguagem dos documentos finais do Concilio. É neste sentido que podemos chamá-
lo também de evento dialógico9, a partir das teses de Bakhtin10, um evento “repleto de vozes, com
todos os jogos de interesses dentro de si, com todas as contradições possíveis. Essa é sua riqueza.
Essa é sua pobreza. Assim são as instituições” (MIOTELLO Apud WOLFFART, 2013, p. 06).
Como evento eclesial, Libâneo (2005, p.09) propõe a possibilidade de duas leituras. A
primeira delas seria de total ruptura com a ordem anterior. Seu inicio poderia ser encontrado na
década de 1930, na Europa. Uma outra leitura é uma leitura de continuidade, ou seja, o Concílio
Vaticano II seria apenas um desenvolvimento natural dos outros vinte Concílios. Para Santos
(2005, 08) as metas principais do Concílio Vaticano II seriam: desenvolvimento da fé católica; a
renovação da vida cristã dos fiéis; a adaptação da disciplina eclesiástica às exigências do tempo
presente. Uma palavra tornou-se símbolo deste Concílio: aggiornamento, ou seja, atualização.
8 Reinhardt Koselleck, em sua obra “futuro passado: para uma semântica dos tempos históricos”, fala que o evento, por ter uma
cronologia natural, um antes e um depois, está de certa forma preso aquele momento histórico. No entanto, afirma Koselleck
“cada evento produz mais, e ao mesmo tempo, menos, do que está contido nas circunstâncias prévias: dai advém sua
surpreendente novidade”(p. 139). Por isso torna-se importante a análise para além da cronológica, porque senão “a história seria
diminuída, se ela se obrigasse somente a narração, em detrimento de uma análise de estruturas cuja efetividade está em outro nível
temporal” (p. 140). 9 Segundo Silveira (2012, p. 21) “na perspectiva Baktiniana, o conceito de dialogismo está relacionado aos sentidos produzidos
entre os falantes em enunciados postos em diálogo/interação”. 10 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895- 1975): filósofo e pensador russo, teórico da cultura europeia e das artes. Seus escritos, em
uma variedade de assuntos, inspiraram trabalhos de estudiosos em um número de diferentes tradições (o marxismo, a semiótica, o
estruturalismo, a crítica religiosa) e em disciplinas tão diversas como a crítica literária, história, filosofia, antropologia e
psicologia.
No entanto, alguns anos após o Vaticano II e a promulgação de suas determinações,
houve, segundo Libânio (1984, p.12) uma “sensação de desorientação, provocando reações bem
diversas, conflitantes”. Esta sensação tomou conta do imaginário social católico, e correntes
opostas e saudosistas das estruturas definidas do passado começaram aos poucos a se movimentar
no interior da igreja. De maneira mais concreta, a partir do pontificado de João Paulo II, forças
mais tradicionalistas tomaram vigor. Esse papado, diz Hobsbawm (2009, p. 59) assinalou “um
retorno a uma concepção mais tradicional da Igreja do que o relativo liberalismo que marcou o
catolicismo das décadas de 1960 a 1970”.
É nas tensões geradas pelos modelos Tridentino e o Vaticano II que os embates se
forjarão a partir de então. A formação seminarística deste período pós-conciliar torna-se um
importante lócus de análise porque pensamos ser possível monitorar neste ambiente um certo
movimento destas identidades em questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As identidades sacerdotal e franciscana não sofreram muitas mudanças nos quatrocentos
anos após o Concílio de Trento, que impôs à Igreja no mundo todo um modelo único, uniforme e
bem delimitada que podia ser reconhecida em qualquer parte, especialmente pelos sinais
exteriores como o uso da batina, missas em latim, autoridade inquestionável, etc. Estas
características no entanto, chegaram no século XX desgastadas e apoiadas a movimentos internos
e ao contexto de mudanças ocorridos após a segunda guerra, obrigaram a Igreja a revê-los.
O Seminário Santa Maria, problematizado nesta pesquisa para compreendermos este
movimento da identidade sacerdotal e franciscana, representa o ambiente sensível onde estas
mudanças foram ou não implantadas, o quanto foram ou não e de que maneira. A análise do
quotidiano no seminário Capuchinho nos proporcionará um campo de compreensão das
dinâmicas que envolveram as implementações do Concílio e que incidiram sobre estas
identidades.
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