17
1716 O SERTÃO REBELDE: IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA DITADU- RA CIVIL-MILITAR NO NORTE DE MINAS GERAIS 1 DAYRELL, Carlos Alberto Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPPGDS - UNI- MONTES [email protected] CESAR, fabiano cordeiro Mestre pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES [email protected] FERNANDES, Cristina Rodrigues Historiadora, colaboradora da Comissão Verdade e Memória Grande Sertão [email protected] SANTOS, Lilian Maria Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS –Unimon- tes – Bolsista Fapemig [email protected]. Resumo Este artigo propõe contribuir com o debate que se tem feito acerca dos resultados da ação da ditadura civil-militar em uma ampla gama da população brasileira que vivia e ainda vivem nas áreas rurais dos mais variados ecossistemas brasileiros, que se mantinham vastos e habitadas. Centra o foco em um caso de resistência de posseiros que viviam na região da Serra Azul, limi- tes dos municípios de Jaíba, Verdelândia, Varzelândia, Itaracambi e Matias Cardoso. O objetivo é trazer para o debate a análise feita pela Comissão Verdade e Memória Grande Sertão acerca da violência imposta pelo regime militar às comunidades rurais do Norte de Minas Gerais. Num contexto de liberdades democráticas suprimidas, o aparelho do estado foi utilizado pelas elites para se apossarem de extensas áreas onde viviam secularmente comunidades com siste- mas agrícolas e regimes agrários os mais diferenciados. Utilizamos a pesquisa bibliográfica, entrevistas, audiovisuais com lideranças afetadas pelos grandes projetos e oitivas realizadas pela Comissão Grande Sertão. As ações que promoveram a desestruturação nos territórios das comunidades, que se afirmam tradicionais, estão associados com políticas desenvolvimentistas empreendidas pelos governos militares em articulação com políticas e programas empreendidas pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Discutindo a proposição de reparação coletiva para as comunidades vitimadas pelas ações da ditadura civil-militar eufemisticamente denominadas de políticas de desenvolvimento rural. 1 Título emprestado do evento promovido pelo 4ª na Pós – PPGDS UNIMONTES realizado no dia 12 de junho de 2018 em Montes Claros, MG.

O SERTÃO REBELDE: IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA … SERTAO REBELDE... · Resumo Este artigo propõe contribuir com o debate que se tem feito acerca dos resultados da ação da

  • Upload
    lenhu

  • View
    228

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1716

O SERTÃO REBELDE: IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA DITADU-RA CIVIL-MILITAR NO NORTE DE MINAS GERAIS1

DAYRELL, Carlos AlbertoDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPPGDS - UNI-

[email protected]

CESAR, fabiano cordeiroMestre pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

[email protected]

FERNANDES, Cristina RodriguesHistoriadora, colaboradora da Comissão Verdade e Memória Grande Sertão

[email protected]

SANTOS, Lilian MariaDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS –Unimon-

tes – Bolsista [email protected].

Resumo

Este artigo propõe contribuir com o debate que se tem feito acerca dos resultados da ação da ditadura civil-militar em uma ampla gama da população brasileira que vivia e ainda vivem nas áreas rurais dos mais variados ecossistemas brasileiros, que se mantinham vastos e habitadas. Centra o foco em um caso de resistência de posseiros que viviam na região da Serra Azul, limi-tes dos municípios de Jaíba, Verdelândia, Varzelândia, Itaracambi e Matias Cardoso. O objetivo é trazer para o debate a análise feita pela Comissão Verdade e Memória Grande Sertão acerca da violência imposta pelo regime militar às comunidades rurais do Norte de Minas Gerais. Num contexto de liberdades democráticas suprimidas, o aparelho do estado foi utilizado pelas elites para se apossarem de extensas áreas onde viviam secularmente comunidades com siste-mas agrícolas e regimes agrários os mais diferenciados. Utilizamos a pesquisa bibliográfi ca, entrevistas, audiovisuais com lideranças afetadas pelos grandes projetos e oitivas realizadas pela Comissão Grande Sertão. As ações que promoveram a desestruturação nos territórios das comunidades, que se afi rmam tradicionais, estão associados com políticas desenvolvimentistas empreendidas pelos governos militares em articulação com políticas e programas empreendidas pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Discutindo a proposição de reparação coletiva para as comunidades vitimadas pelas ações da ditadura civil-militar eufemisticamente denominadas de políticas de desenvolvimento rural.

1 Título emprestado do evento promovido pelo 4ª na Pós – PPGDS UNIMONTES realizado no dia 12 de junho de 2018 em Montes Claros, MG.

1717

Palavras-Chave: Ditadura Civil-Militar, Desenvolvimento Rural, Confl itos socioambientais, Comunidades Tradicionais.

O SERTÃO REBELDE: IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DA DITADURA CIVIL-MILITAR NO NORTE DE MINAS GERAIS

A HISTÓRIA 1.

Este artigo propõe contribuir com o debate que se tem feito acerca dos resultados da ação da ditadura civil-militar2 em uma ampla gama da população brasileira que vivia e ainda vivem nas áreas rurais dos mais variados ecossistemas brasileiros, que se mantinham vastos e habitadas. Centra o foco em um caso de resistência de posseiros que viviam na região da Serra Azul, limites dos municípios de Jaíba, Verdelândia, Varzelândia, Itaracambi e Matias Cardoso3. As planícies sanfranciscanas nesta porção da bacia do rio São Francisco tem, na Mata da Jaíba, uma extensa área de matas secas e caatingas que fazem conexão com áreas de planaltos e ser-ras4, no extremo norte de Minas Gerais e nas proximidades com a divisa sudoeste da Bahia.

O caso em estudo tem como palco as extensas áreas planas da Mata da Jaíba e arredo-res, de terras férteis, boa parte situadas sobre esboço geológico de origem cárstica (calcárea), cobiçadas como área de expansão das fazendas principalmente a partir dos anos 1950. A expan-são das fazendas encontraram diversas frentes de resistência, uma delas a que fi cou conhecida regionalmente como o enfrentamento do posseiro Saluzinho contra um fazendeiro infl uente ligado às elites de Montes Claros5 e que tomou conta do noticiário regional e mesmo nacional na época. Dois sujeitos se confrontaram em 1967 em uma arena que tinha como primeiro pano de fundo, a disputa pela terra. De um lado, o posseiro Saluzinho que, após anos de labuta no oeste paranaense, retornou para a terra onde nasceu, Limoeiro, município de Varzelândia, se di-rigindo em seguida para as terras devolutas da Jaíba, colocando aí sua posse, juntamente com a família se refazendo como viúvo e viúva – ele Saluzinho, de Limoeiro (proximidades de Morro Redondo), ela D. Dúlcia, de Olhos D’Água (proximidades de Brejo do Mutambal). De outro o fazendeiro Oswaldo Alves Antunes, advogado e dono de um periódico, “O Jornal de Mon-tes Claros”, personalidade infl uente da elite do Norte de Minas. Na defesa de seus interesses, mobilizou a imprensa regional criando um clima de medo contra o avanço do comunismo, e acionou as forças militares e a polícia política de Minas Gerais (DOPS) para caçar o comunista 2 Refere-se ao golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 1964 e que perdurou até 1988, quando da pro-mulgação da constituição brasileira.3 Antes da reforma de 1990 que criou os novos municípios, a área em questão tinha como confi nantes os municípios de Varzelândia, Itacarambi e Manga.4 Onde predomina o cerrado, com suas veredas, várzeas, chapadas, campos, morros e serras drenadas pelo vale do rio São Francisco e divisores das bacias do Jequitinhonha e Pardo5 Na época, o fazendeiro, advogado e dono de um jornal local fez as pontes com as forças policiais e políticas dos grupos que se tornaram majoritários com a implantação da ditadura civil-militar no Brasil.

1718

que acabou entrincheirado em uma gruta na região de Varzelândia (CAMPOS, 2014). Neste confronto, Saluzinho perdeu uma das batalhas, mas emergiu como sujeito de um

feito extraordinário: “enfrentador de fazendeiro e de polícia” (MOREIRA, 2010:98). Enfrentou um batalhão de polícia da PM, um grupamento de policiais do DOPS de Belo Horizonte, uma imprensa mobilizada que noticiava Saluzinho como um “perigoso comunista” que estava or-ganizando uma guerrilha no meio rural norte mineiro. Foi só após seis dias escondido em uma gruta, sem água e sem alimentos e três feridos (um jagunço e dois policiais), que conseguiram fi nalmente que ele se entregasse, sem o risco de ser assassinado de imediato. Esta passagem foi registrada por poetas populares, entre estes o Nemésio Rodrigues Costa Filho, o ex líder Jaca-randá, em uma poesia escrita em 1987 na localidade Nova Cachoeirinha, no então município de Manga. Diz assim umas das estrofes

De dentro de uma gruta,Fazendo uso das armasQue usavam os grileiros,Suportou o sofrimentoDe ver sua mulher em tormentoMaltratada por pistoleiros. Suportando até as bombas,Que dentro da loca lançaramTentando assim o matar,Resistiu heroicamente,Atirando como um demente,Em quem ali tentasse entrar. Por vários dias fi cou escondido.Estava abastecidoDe água, comida e munição.Ali teve um grande momentoQuando derrubou a tiros um sargentoQue queria pegá-lo a mão....A história desse homem Tem que ser um caso à parteContada com exatidão,Pois sua bravura de outroraPassou para a história,Na memória do sertão.

(Nemésio, publicada na internet em 08/08/2005). Passados cinquenta anos deste feito, o assunto é retomado com a criação da Comissão

Verdade e Memória Grande Sertão na cidade de Montes Claros. A criação da comissão tem rela-

1719

ção com a difi culdade da apuração dos crimes cometidos pela ditadura militar como a realizada pela Comissão Verdade e Memória6 que não pautou os crimes contra os que viviam no campo ou nas cidades distantes dos grandes centros, a não ser em casos isolados. Em particular junto às comunidades indígenas, quilombolas e também, como começam a surgir nos horizontes da diversidade étnica brasileira, ao grande número de sujeitos políticos (Arruti, 1997) que se afi r-mam etnicamente diferenciado se afi rmando como povos e comunidades tradicionais.

Após cinquenta anos a história foi recobrada, agora com a Comissão Verdade e Me-mória Grande Sertão - CVMGS, instalada em Montes Claros durante evento realizado no dia 20 de agosto de 2014 no salão da Câmara Municipal de Montes Claros. Pessoas, temas e fatos foram levantados para busca de documentos, informações e depoimentos. Entre estes os casos relacionados com o “Confl ito de Cachoeirinha”7 e o de Saluzinho, este ocorrido então em um imaginário distante, mas não tanto assim como posteriormente fi camos sabendo, pois não pas-sava de oitenta quilômetros em linha reta, da antiga Cachoeirinha até o local onde se encontrava a “lapa”, a gruta onde Saluzinho alojou para se defender dos ataques dos militares.

Conseguiu-se em um primeiro momento o levantamento de pesquisas, publicações8, além da indicação ou busca de pessoas que pudessem dar depoimentos acerca das questões que tencionaram os direitos humanos do período mencionado. Foi feita articulação com a Comissão Verdade em Minas Gerais - COVEMG9 e até 2017 foram realizados dois eventos na região, sen-do uma oitiva na cidade de Verdelândia onde foram ouvidos os atingidos pela ditadura da região de Cachoeirinha, e uma audiência pública em Montes Claros onde foram relatados diversos casos de camponeses e comunidades que sofreram violações em seus direitos durante o período da ditadura militar. Neste momento, os familiares diretos de Saluzinho não foram encontrados, mas os registros de publicações e entrevistas com pessoas que tiveram conhecimento do mesmo foram sufi cientes para que, no relatório fi nal da COVEMG, o mesmo fosse contemplado com informações que percorreram sete paginas. O registro foi intitulado como “Saluzinho: um mito da resistência” (MINAS GERAIS, 2017:106). No entanto, as informações sobre a sua esposa, D. Dúlcia Gonçalves de Araujo, foram escassas e insufi cientes, constando, no entanto, entre as recomendações, a investigação sobre D. Dúlcia e o contexto do falecimento, se, “na verdade, morreu em decorrência das torturas sofridas na região de Varzelândia, onde vivia” (MINAS GERAIS, 2017:166).

Foi assim, percorrendo as pistas sobre os familiares de Saluzinho, fi nalmente chegamos

6 A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi instalada no Brasil no fi nal de 2011, durante o Governo Dilma Rousseff, tendo como função principal a reconciliação do Estado com a sociedade; tratava-se de uma ten-tativa de recuperar a memória daqueles atingidos pelos processos de violação dos direitos humanos entre os anos de 1948 a 1988 (CANABARRO, 2014).7 O Confl ito de Cachoeirinha foi muito bem registrado e analisado por Sônia Nicolau em sua dissertação de mestrado “À procura da terra prometida – para uma reconstituição do confl ito de Cachoeirinha (1985).8 Como a de Luiz Chaves (2006) “Saluzinho e a luta pela terra no Norte de Minas”, o livro de Leonardo Álvares da Silva Campos (2014) intitulado “Saluzinho, luta e martírio de um bravo – a sociologia dos confl itos agrários no Brasil. Neste caso, o próprio autor, além de doar o livro, participou e contribuiu nas ações iniciais da CVMGS.9 A Comissão da Verdade de Minas Gerais (COVEMG) teve como origem um projeto de lei apresentado à Assembleia Legislativa de Minas Gerais em 2012 pela deputada Liza Prado. Quando se tornou a Lei 20.765 em 17/07/2013 (MINAS GERAIS, 2017).

1720

em Itacarambi em janeiro de 2018. Ouvimos a história de Saluzinho e de D. Dúlcia na versão dos fi lhos. Fomos com ele até o povoado de Serraria que, na época, era denominado de Patrimô-nio. Em seguida fomos até a área onde era a antiga posse da família e até a gruta. Neste percurso encontramos um posseiro que foi contemporâneo do Saluzinho e uma senhora sem-terra que mora em Serraria mas que possui uma gleba de terra fruto de uma ocupação em Serra Azul e que encontra-se em disputa pelo fato de lá ser uma unidade de conservação de proteção inte-gral. Foi a partir desta escuta que apresentamos, na seção seguinte, o registro de suas memórias. Importante ressaltar que apresentamos os conteúdos de entrevistas realizadas, para compor a história e a discussão aqui apresentadas, com os fi lhos de Saluzinho, que chamaremos de fi lho 01 e fi lho 02; um posseiro contemporâneo de Saluzinho, que chamaremos desse mesmo nome; e uma sem-terra, que também chamaremos do mesmo nome10.

A MEMÓRIA2.

Os Filhos de SaluzinhoI. 11

A lembrança do acontecido com Saluzinho na década de 1960

Na hora que os homens chegaram lá eu estava dormindo. Mas depois que passou o tiroteio, ouvi falando que o Saluzinho tinha atirado nos homens lá, aí nós deixamos a casa que nós morávamos, nós fomos para a casa do Velho Marçal que morava assim adiante, aí no outro dia de tarde o policial chegou lá, oito policiais, cada um com um fuzil, caçando ele, ele já estava perto da gruta, na boca da gruta para esconder, naquele tempo era tempo das águas, já ia para novembro, começava a chover. Eles tinham decidido para ele fi car lá12. Aí a policia chegou, pegou o velho Marçal, amarrou os braços dele, as mãos e pendurou ele no pau, deixou ele dependurado no pau, nós éramos pequenos13, fi quei com muito medo, os meninos que estavam, todo mundo olhando de longe, calado, sem poder fazer nada. Aí todo dia cedo eles viam, aí começou a chover, de noite os cachorro latia demais, ninguém dormia, no outro dia os homens chegavam, todo dia eles olhavam dentro da casa no barraco do ve-lho Marçal, mexia nas coisa, eles passavam perto de nós com muita bala na cintura, a gente olhava as balas na cintura, para que tanta bala? nós tínhamos medo, nós fi cávamos com vontade de correr para o mato. Aí eles acharam ele na gruta, nós fi camos na casa do velho Marçal uns três dias, aí nós falamos ou

10 Optamos por ocultar os nomes dos entrevistados por entender que desta forma resguardamos a privaci-dade e segurança dos mesmos. As entrevistas foram realizadas por Carlos Dayrell e Luciano Dayrell.11 Primeira entrevista, realizada no dia 20 de janeiro de 2018, em Itaracambi.12 O Saluzinho tinha reunido com um grupo de posseiros relatando o caso do primeiro enfrentamento onde fi caram feridos dois jagunços, onde um deles era policial. Decidiram então que Saluzinho deveria fi car escondido em uma gruta e que a mulher e os fi lhos fossem para a casa de um tio, o seu Marçal.13 Ele tinha na época cerca de 8 – 9 anos de idade.

1721

que nós tínhamos que dar um jeito de sair daqui porque nós não comíamos, nós não dormíamos de noite, aí eu mais mãe e os meninos, resolvemos ir para a casa de nossa tia que morava no lugar com o nome de Olhos D’Água, aí nós chegamos na casa de minha tia Tomásia, já estava escurecendo, parece que ela estava nos esperando, nós, quando nós chegou, aí ela foi recebendo nós, levou para dentro de casa, colocou comida para nós, que sossego, aí o pau estava comendo lá. Só que ai ouvi falar, o meu avô falar, olha, disse que está procurando o gado seus, ué, será eles vão levar os gados seus? será que vai levar o nosso gado, porque as nossas galinhas, os nossos porcos, as nossas coisas, tudo fi cou lá, só que o gado não levou, tinha outra pessoa olhando o gado lá. Aí eles chamaram mãe para Montes Claros, eu não fui a Montes Cla-ros não (FILHO 01).

Eu lembro de muita história, que a minha mãe foi levada para a gruta. O que mais me chocou, eles fi zeram muita sacanagem com ela, tipo estupro né, judiaram muito, tem muita gente que viu, chocou muito, muitas e muitas historias que aconteceram. Como o meu pai foi tirado também da gruta, fi cou cinco dias lá sem comer, foi uma historia de horror, não só com ele, mas toda a comunidade, tem historia do começo, as primeira perseguições, tem historia que a imprensa nem sabe. O engenheiro foi lá medir as terras, fi zeram picadão cercando varias propriedades de posseiro, a mando do fazendeiro, de Osval-do Antunes, a ordem era tirar, meu pai ajuntou alguns homens e foram lá, e deu prazo, fez para poucos minutos para ele retirar, mandou tirar, a partir daí começou a perseguição, até helicóptero foi lá, suspeito que este helicóptero foi a mando de alguém, saiu procurando, não sabe na real o que foram fazer lá, voaram baixinho, perto do barraco, helicóptero, veio lá, homens armados, perto do nosso barraco, rodeavam, rodeavam, não encontraram o Saluzinho. Meu pai escondido debaixo de madeira caída, daí a poucos dias eles vieram, aí uns dias vieram os policiais, quando trocaram tiro, o revolver que caiu, fi cou caído lá, muitas historias de horror mesmo (FILHO 02).

Os últimos anos de Saluzinho

Nós já morávamos aqui a tempo, nós trabalhávamos, né, roça, tirávamos madeira, nós morávamos na roça. Ele foi fi cando mais calmo, o pessoal dava conselho para ele, não teve mais problema com ninguém, trocou o revolver por uma bíblia seguindo a igreja evangélica (FILHO 01).

Comissão Verdade de Minas Gerais e a expectativa sobre o papel do estado

Acho que devia indenizar nós, ao menos um pouquinho, perdemos as coisas que nós tínhamos, nós fomos para casa de parente, tem dia que tinha café, tem dia que não tinha, nós sofremos muito, nós vendemos a terra, saímos para

1722

trabalhar (FILHO 01).

Moço, concordo, são cinquenta anos que passou, nenhum amparo da justiça, parte do estado, nunca nem procurou a gente, é uma parte que precisa ser esclarecida, não só para a família, mas para sociedade. Meu pai tinha muito sonho, sonhava com o Brasil livre, com a democracia bem boa mesmo, onde o brasileiro pudesse viver em paz, com os seus direito garantidos, sonhava com a reforma agrária, ele sempre ele falava, que não concordava como que pode nós viver num planeta no qual que nós fazemos parte e uma família não ter um pedaço de terra pra fazer uma casa? Era coisa que ele mais falava, uma família, como é que mora uma família pode viver debaixo da ponte? É uma injustiça muito grande que os homens cometem aqui na terra, ele sem-pre relatava isso, esta é uma parte da historia que a sociedade não conhece, só conhece por Saluzinho que brigou, que atirou, que revidou, não conhece a historia de Saluzinho humano, um homem que sofreu muita perseguição. Nós tivemos que passar a nossa vida nas brenhas das matas, a gente se privou, não tivemos contato com a sociedade melhor, não pudemos estudar muito, ter uma profi ssão, não tivemos como estudar, até hoje (vivemos) como caipira na cidade sem profi ssão, deste jeito né, meu pai sonhava com esta liberdade, o trabalhador rural ter o seu pedaçinho de terra. Depois veio a lei ambiental, nós trabalhávamos onde é o Vale do Peruaçu, hoje, o Parque do Peruaçú, nós tra-balhávamos com extração de madeira, naquele tempo era uma profi ssão legal, aí eles vieram e proibiram, foi mais um golpe, não tomou conhecimento de todos os trabalhadores que trabalhavam naquela prática, da madeira, de criar roça, veio simplesmente criaram a lei lá, hoje nem tem direito de passar lá, eles nunca olharam que existia seres humanos lá, nós vivíamos como índio lá, foi mais um golpe, meu pai já estava velho, mas nós que não sabíamos fazer outra coisa, não sabia ler direito, eu mesmo nunca passei de ano, aí tivemos que deixar a roça e vir para cidade sem ser da cidade, foi mais um golpe (FI-LHO 02)..

Um posseiro contemporâneo de SaluzinhoII. 14

A história do posseiro e do lugar

Nasci na Bahia, vim para cá em 1955, cheguei em Janaúba, depois vim lavrar madeira aqui onde é Agropeba, mudei para aqui, daqui estou morando até hoje. Vim remando devagar, tinha as posses aí, o povo tirando a posse por aí, mexendo por aí, a vida era dura, tinha um bocado de morador, era posseiro. Tirei a posse, depois a Ruralminas precisava da terra, aquilo outro, fomos

14 Entrevista realizada no dia 12/04/2018 com um posseiro que, na época do confl ito com Saluzinho, mo-rava nas redondezas, do outro lado da Serra Azul e tinha convivência com ele e com a família. Hoje é, talvez, o último remanescente dos antigos posseiros que mora nas redondezas. Referência: P1660040: Saluzinho e Dulcia / Dia 2 / Cartão 2 / DCIM 166_PANA.

1723

pegado para a gente a sair, disse que precisava da terra, disse que era da Ru-ralminas, depois vim aqui para Serraria, depois os fazendeiros compraram lá15, trabalhei lá vinte e tantos anos, trabalhei para o fi nado Chiquito, lá de Sete Lagoas, depois ele morreu, os fi lhos dele venderam, então eu mudei para aqui, mudei aqui para a Serraria. Depois o povo tirou a posse aí16, depois me chamaram para vir aqui. Tenho 91 anos. Mexendo aí, doente. To mexendo aí (POSSEIRO 1).

O que conta de Saluzinho, da luta e das mudanças que ocorreram

Conheci quando morava (onde hoje é) na Agropeva, mudei para aqui, sempre passava lá (na casa de Saluzinho), tomava café lá e tudo, ele panhava água na cisterna nossa lá, depois do outro lado da serra, ele vinha pegar água, depois começou a anarquia do Dr. Gêronimo aí, que queria tirar ele aí, queria matar ele aí, eu só escutava a zoada, mas Deus ajudou, ele era fi lho de Deus, sofreu lá e não morreu, fi cou oito dias lá, tinha os posseiros que tinham aí, foram lá na lapa com ele, andou pegando uns aí, levou para Montes Claros, prendeu uns, prendeu outros, andou castigando uns aí, prendeu outros, poucos dias também (POSSEIRO 1).

Ele tinha posse aí, aí o fazendeiro entrou lá e quis tirar ele, o Dr. Osvaldo, queria tirar, queria tomar a posse dele, ele disse que não saía, aí começou essa anarquia. Ele tinha uma companheira mais ela, eu lembro dela, era uma morena, era do lado dos Brejo (Brejo do Mutambal), desse lado aí, era uma morena, gostava de (inaudível). Pegou ele e Levou ele para Montes Claros, depois nunca mais vi ele não.

A imagem de Saluzinho

Era baixinho, franzininho, até que parece um menino, de olho verde, bem verdinho, baixinho, era boa pessoa, todo mundo aí gostava dele, era boa pes-soa né patrão, passava lá na casa dele, tomava café, almoçava lá, eu e outros companheiros que moravam na serra, tinha muita gente perto dele, lá morava um bocado de gente aí. Só ouvi a zoada de bocado de tiro para lá, era do outro lado da serra, ele entrou de dentro da gruta, fi cou escondido lá dentro (...) sei onde é a serra, não conheço lá não (POSSEIRO 1).

Como era o lugar

Tinha muito posseiro aí na Serraria, tinha muito aqui, lá na Serra azul já tinha mais pouco, muitos perderam, outros venderam as posses, venderam os direi-tos que tinham, um bocado foram para Serraria, para a beira do rio, sumiram no mundo, foram embora para Pernambuco, outros fi caram aí, hoje tem os mais novos, gente da região. Tinha uns posseiros aqui, saiu tudo, vendeu para Antonio do banco (inaudível) hoje tudo é fazenda, venderam tudo aí. O tempo

15 Onde ele tinha morado, aí voltou como assalariado.16 Ele faz referencia que ao acampamento que a Liga promoveu em uma área de capoeira dentro do que fi cou sendo a Reserva Biológica Serra Azul.

1724

antigo era bom, a gente sofria, mas era um tempo bom, a gente andava, andava para tudo que é canto, a gente ia trabalhar andava 10 a 11 léguas, hoje o povo não anda mais, tem estrada para tudo que é canto, a vida era dura, é, a vida era dura. A gente abria a picada no facão e foice, para ir onde tinha estrada prá lá, era sofrimento, né patrão? (POSSEIRO 1).

A chegada da Ruralminas

Morava na posse lá, do outro lado da serra, tinha o tenente Pimenta, eu tra-balhei mais ele lá um ano, ele ia comprando para quando a Ruralminas preci-sasse, ele ia comprando as fazendas que o povo vendia, comprava as posses que o povo vendia, eles chegaram disseram que tinham terreno17, o povo foi saindo, saindo, o povo vendia as posses, pagava uns direitos aí, passou para os fazendeiros. Trabalhei com carteira assinada 22 anos. Vendeu, jogou fora18 (POSSEIRO 1).

O que pensam sobre a história de Saluzinho

Ele tinha razão, ele estava na posse dele, sossegado lá, trabalhando, aí o fa-zendeiro chegou querendo tomar conta de tudo (POSSEIRO 1).

Sem-Terra 2III. 19

O que você sabe sobre o Saluzinho?

Minha mãe cozinhou pra eles. Ela contava, ainda não era casada, aí foi a época que eles buscaram ela para cozinhar para a turma, chegou lá era um batalhão. Diz ela que quando soltava as bombas, o estrondo era muito forte dava o estrondo. Era cena de medo. Ela conheceu D. Dúlcia, Saluzinho, inclu-sive o dia que tirou ele lá de dentro, ela disse que lembra dele assim: viu ele saindo da gruta, magrinho, só pôde tomar água e um pedaço de pão. Era uma historia que a gente fi cava assim sem saber. Ele lutar pelo que lutou, (inau-dível) ... violência. Minha mãe escutava o povo falando, amanhã vamos por fogo lá dentro, soltava fumaça, soltava bomba. Minha mãe falava, eram uns 100 homens. Dizendo ela que quando eles colocavam as comidas, as gamelas eram bem grandonas, a lona que montaram, não cabia o pessoal. (inaudível), dizendo ela que era muita gente, tinha os que eram policiais, tinham os que não eram policiais, eram as pessoas da fazenda, capataz, tudo para pegar o homem (SEM-TERRA 2).

17 Faz referência aos fazendeiros que chegavam e diziam que tinham comprado o terreno.18 Faz referência ao fazendeiro que morreu e depois os fi lhos venderam.19 Neta do Posseiro 1 que o considera como pai, e que também mora em uma área retomada nas proximi-dades.

1725

Crime ou luta pelo direito ao território

Este que é o mistério, talvez a pessoa diz assim, acho que não, ele queria defender, ele queria defender era a posse dele. Quem queria mandar naquela época eram os fazendeiros, que eram os mais fortes. Eles queriam que ele saísse para tomar a terra dele, ele, como qualquer outra pessoa, ia defender o que era dele. Quem conheceu conta até hoje. O lugar que ele fi cou, que até hoje (inaudível) ele conhecia muito bem a região, do lugar que ele fi cava, dava para ele ver tudo, e ninguém via ele, jogava bomba, ele estava por riba, sabia muito bem onde estava pisando. Ele foi um lutador, ele foi um guerreiro, ele não lutou por ele, ele lutou por que era dele, e lutou com sabedoria, hoje não tem guerreiro igual ele não, para quem viveu esta historia, pode contar detalhe por detalhe, eu estava falando com o meu esposo, mãe contava detalhe porque ela viveu aquilo, quem viveu esta historia hoje para contar, é uma lição de vida o que ele fez, para gente né? Uma historia desta contada por uma pessoa que conhece, vai dar uma lição, meu pai dá uma lição para mim, é bonita ela ser contada mesmo (SEM-TERRA 2).

Antes das fazendas

Meu pai fala, inclusive o terreno de meu pai, hoje é tudo fazenda, foi aonde que os fazendeiro vieram, foi tomando, foi tomando, ele não podia sustentar, ele acabou saindo. Eu brigo com ele, o sonho é a roça20, ele é o meu orgulho, dos fi lhos dele a maioria mora longe, só tem eu e uma tia, eu casei, a gente vive com ele, a roça é a cultura da gente. Eu moro na Serraria, não é para o meu gosto, a ocupação daqui foi beleza, não teve nhenhenhem de policia, só teve uns casos daqui de dentro mesmo (inaudível) a gente só ocupa onde a gente vai mexer. Aqui era uma fazenda, como parte da fazenda fi cou sem mexer, fi cou um capoeirão, nós entramos foi no capoeirão, a gente não pode é por aroeira no chão, a gente aproveita (inaudível) o nosso aqui tem muito capim plantado, estão dizendo eles que não podem tirar nós daqui. Disse que levou ela (D. Dúlcia) para a frente da gruta, retirou a roupa no meio da mul-tidão, quando ele chegava com ela, trazia ela, ela dizia que torturou muito (SEM-TERRA 2).

MEMÓRIAS E HISTORIAS NA AFIRMAÇÃO DE DIREITOS3.

Naquela época, nóis num tinha nem ideia de um conversar como o outro, porque eles não deixava.

D. Mariquinha, posseira de Cachoeirinha21 20 Faz referencia ao fato do pai (avô) insistir em morar na roça, sobre a preocupação da família em ele fi car na posse sozinho.21 Depoimento de D.Mariquinha em julho de 1984 ( In: SANTOS, 1988:55) relatando o contexto de medo

1726

A escuta dos sujeitos acima aponta a existência de uma trama complexa ocorrida na re-gião da Mata da Jaiba que envolveu o Saluzinho, sua família e um número ainda não especifi ca-do de posseiros e de nativos que viviam na região de Serra Azul. História que permanece incrus-tada junto aos moradores da localidade de Serraria, anteriormente denominada de Patrimônio22. Observando a fi gura a seguir, vemos que Serraria não fi ca tão distante de Cachoeirinha, hoje denominada de Verdelândia, como também de Brejo dos Crioulos. A fi gura mostra também o local de nascimento de Saluzinho (comunidade de Limoeiro) e de D. Dúlcia (comunidade de Olhos D’Água).

Figura 1: Localização de Serraria em relação a Cachoeirinha e Brejo dos Crioulos

Fonte: Pesquisa de Campo – Dayrell, 2018

Como se pode ver, as categorias “posseiro” e “nativos” fazem parte do vocabulário junto aos grupos entrevistados e também registrado em diversas pesquisas na região. Posseiros é uma categoria mais abrangente, refere-se às famílias que tomaram posse em um lugar e que, a partir das décadas de 1950/60 ganha um signifi cado político com a luta dos camponeses pela terra. Nativo, refere-se àqueles que se afi rmam do lugar, nascidos e criados no lugar, assentados em

dos posseiros de Cachoeirinha em função dos assassinatos e das ameaças que recebiam constantemente pelos fazendeiros e do aparato militar envolvido em dois despejos seguidos, o primeiro em setembro de 1964, logo após o Golpe Civil-militar de 1964, e o segundo em junho de 1967. 22 Informação fornecida por um dos fi lhos de Saluzinho.

1727

uma historicidade, um mundus social que organiza o passado frente ao presente (DAYRELL, 2014).

A proximidade e os relatos mostram que os antigos moradores de Serraria tinham rela-ções com Brejo dos Crioulos (localidade de Igrejinha) e Cachoeirinha. Sônia Nicolau dos San-tos (1988)23 analisou o Confl ito de Cachoeirinha, quando o acompanhou entre os anos de 1982 a 1984 visitando a comunidade, entrevistando lideranças e moradores locais, acompanhando ações por eles realizadas neste período em Belo Horizonte e Montes Claros, participando de atos públicos e reuniões. Paralelamente foi em busca de outras fontes, na imprensa, em cartó-rios, em centros de documentação. João Batista de Oliveira Costa vem realizado pesquisas em Brejo dos Crioulos desde meados dos anos 199024, oportunidade em que objetivou o relatório antropológico que levou ao reconhecimento da comunidade como um quilombo e, paralela-mente, apontou a existência de um “campo negro” no que denominou como “Território Negro da Jahyba” (2016).

Um dos focos de refl exão de Sônia Nicolau está relacionada com a busca da compreen-são da resistência obstinada dos posseiros de Cachoeirinha em permanecer no lugar. Ela analisa que o foco da resistência não é o econômico, mas todo o universo simbólico que não se confi gu-ra como valores capitalistas. Segundo a autora, a centralidade da resistência empreendida pelos nativos e posseiros de Cachoeirinha são valores que estão relacionados com a identidade, com a religiosidade, com uma noção de justiça que é invocada em todos os momentos, em todos os lugares. Ela destaca a importância do povoado de Cachoeirinha, como Terra de Santo, ter sido também espaço de refúgio das famílias vitimadas pela violência da expropriação e que foi lugar privilegiado a alimentar a esperança de retomarem as terras roubadas pelos fazendeiros.

Outro aspecto que merece análise refere-se à justifi cativa pela “utilização farta de depoi-mentos dos próprios lavradores” (p.124) como um elemento fundamental que a autora utiliza para realçar a imagem dos lavradores por eles mesmos. Ela percebe, com as entrevistas atentas à história dos nativos, a recorrência com que vão buscar na memória suas afi rmações de direito. Ao enfrentamento contra os grandes fazendeiros com suas escrituras de propriedade, os lavra-dores passaram a erguer sua própria história, pois é nela que estão inscritos os seus direitos. E ela afi rma:

Assim, transmitida dia a dia pelos descendentes dos primeiros fundadores, a história desses que domaram a terra quando ali só havia “a lagoa da Jaíba e o céu” age como prova dos direitos sobre o território e alicerça a identidade social dos lavradores na sua luta pela reconquista de um mundo perdido. (SANTOS, 1998, p. 125).

A autora utilizou como categoria principal a de lavradores e de posseiros, em algum momento ela cita a categoria de nativos (p. 17). Embora ela não a desenvolva, esta categoria, dos nativos, além de ser local, é a que dá para eles a historicidade, um mundus social que os

23 Dissertação que foi defendida em 1988 na PUC MG, intitulada “À Procura da Terra Perdida: para uma reconstituição do confl ito de cachoeirinha”. 24 Em 1999 defendeu a dissertação de mestrado na UNB intitulada “Do tempo da fartura ao tempo de penúria: a identidade através de um rito em Brejo dos Crioulos”.

1728

organiza desde o passado, que sustenta a noção dos direitos à que eles recorrem, que articula com as religiosidades que se apresentam de maneira tão signifi cativa em diversos relatos.

Quando se analisa a data do primeiro despejo, setembro de 1964, tendo como coman-dante do batalhão o mesmo que esteve à frente ao deslocar em direção à Brasília, DF, o 10º Batalhão da Polícia de Militar como força de sustentação ao Golpe Civil-Militar empreendido pelas forças armadas brasileiras em 01 de abril de 1964, compreende-se a fala de Bruno25, so-bre o Coronel Georgino. Comandante que utiliza a pecha de “comunistas”, quando se refere aos posseiros de Cachoeirinha que enfrentavam os fazendeiros. Bruno diz que o Cel Georgino afi rmou que ele tinha procurado comunistas em diversos lugares do país, mas que ele “veio en-contrar aqui dentro de Cachoeirinha” (SANTOS, 1988:46). E continua: “e que esses comunistas tinha que desocupar essa área de terra, que essas fazendas aqui era dos fazendeiros e nós não era dono” (SANTOS, 1988:46).

Outra marca da ação é o envolvimento de policiais militares, com jagunços e os próprios fazendeiros envolvidos diretamente no despejo. São ações violentas que não fi caram resumidas à própria violência do despejo, quando queimaram os barracos, destruíram as sacas de manti-mentos, mataram ou dispersaram os animais de criação. Não arrendam as terras para cultivo, proíbem a pesca, e quando permitem que algumas famílias cultivem alimentos próximos ao rio, soltam os animais nas áreas de roça quando os produtos estão já desenvolvidos. Coadunando com o clima de repressão política e de supressão de liberdades, os posseiros são ameaçados, impedidos de se organizarem, de expressarem o sofrimento que passam:

... que a gente não tinha liberdade de falar nisso. E quando alguém às vezes citava nesse assunto, ele ia pego, apanhava, ia limpar rua, ia dormir no molha-do, quando era preso, você entendeu? Quando era meia noite eles colocavam a pessoa prá molhar o chão, prá poder dormir, como se fosse um porco. De-poimento de Seu Sula em 1984. (SANTOS, 1988:56)

Os estudos de João Batista de Almeida Costa, a partir de sua dissertação de mestrado (1999), demonstram que a expropriação que teve inicio em 1964 junto aos posseiros de Cacho-eirinha, ela aconteceu sobre o que ele denominou “Território Negro da Jahyba” e de uma forma muito mais abrangente. Ao registrar a historicidade da comunidade de Brejo dos Crioulos, ele cita o “o tempo da fartura”, “o tempo dos fazendeiros” e, fi nalmente, “o tempo da penúria”. O primeiro fazendo referência ao tempo que remonta ao período colonial onde as terras eram livres e intensamente manejadas pelas famílias, porém com a mata em pé, representado pela abundância das colheitas e da produção. As terras não eram cobiçadas pelos fazendeiros pois a malária era endêmica em toda a região da mata e os negros conviviam com ela. Em seguida vem do “tempo dos fazendeiros”, que vão chegando a partir das margens do território, esti-mulados pela chegada da ferrovia que atravessou o sertão em direção à Bahia e pelo inicio da desinfecção da malária, a partir de meados da década de 1940. Momento de chegada de novos posseiros porém, concomitante, de chegada também dos fazendeiros com as medições e poste-rior cercamento das terras. Finalmente, “o tempo da penúria”, marcado pela institucionalização da expropriação, tanto através do aparelho repressivo, como pelas instituições do estado que 25 Lavrador que foi despejado em 1964, conforme Santos, 1988.

1729

regularizam as terras para os fazendeiros e empresas agropecuárias. Veja a citação de um nativo explicando como se deu o processo de perda das terras neste período:

Os fazendeiros aqui faziam a lei. Matavam o gado e falavam que matavam as pessoas também. Era para sair da terra que eles tinham comprado a troco de um copo de pinga. Aqui não tinha e nem tem justiça. Os fazendeiro não deixam ela descer para os fracos. Eles fazem o que querem. Quando comadre Lizarda perdeu as terras dela, a gente procurou o povo lá da Ponte (São João da Ponte), mas esqueceram da gente daqui. Eles mandaram foi a política para defender os fazendeiro daqui, e não povo fraco. Geraldo de Araruba, 1988, citado por COSTA, 2016:60.

Foram tempos de muitas e rápidas mudanças. E a expropriação não fi cou resumida ape-

nas com a grilagem institucionalizada das terras. Ela contou também com o apoio de programas e políticas públicas que viabilizam fi nanceira e politicamente os novos negócios rurais. Costa analisa que, neste processo, as camadas superiores da hierarquia social do Norte de Minas, da qual os fazendeiros são partícipes, atualizaram suas relações com os membros das camadas dominantes que detêm o poder, não apenas regionalmente, como também nas esferas políticas nacionais e com o empresariado nacional (COSTA, 2016).

Ao trazermos até aqui a memória daqueles que viveram, ouviram falar ou conviveram com os personagens da história de Saluzinho ou contemporâneo a ela, constatamos que ela re-presenta o contexto de luta e violência vivenciadas por centenas de outrs comunidades rurais no Norte de Minas à época da ditadura militar. Quando buscamos os relatos destas pessoas, provo-camos a emergência da memória, onde os interlocutores trazem os eventos e tem a oportunidade de organizá-los através do discurso e produzir sentido sobre o que foi e sobre os acontecimentos de agora e do futuro. A memória além de reconstituir um passado, também organiza um presen-te, pois remonta os fatos originários deste.

E consideramos pertinente trazer ainda uma outra dimensão a ser explora-da: o discurso como (locus de?) memória. Estudos sobre memória têm nos mostrado que o discurso constitui lembranças e esquecimentos, que ele orga-niza e mesmo institui recordações, que ele se torna um locus da recordação partilhada – ao mesmo tempo para si e para o outro – locus portanto, das esferas pública e privada. Sob os mais diversos pontos de vista, a linguagem é vista como o processo mais fundamental na socialização da memória. A possibilidade de falar das experiências, de trabalhar as lembranças de uma forma discursiva, é também a possibilidade de dar às imagens e recordações embaçadas, confusas, dinâmicas, fl úidas, fragmentadas, certa organização e estabilidade. Assim, a linguagem não é apenas instrumental na (re) construção das lembranças; ela é constitutiva da memória, em suas possibilidades e seus limites, em seus múltiplos sentidos, e é fundamental na construção da história (SMOLKA, 2000, 187).

1730

Analisando a história de Saluzinho contada pelos fi lhos, pelos companheiros que con-vivam com ele e por quem é muito próximo de quem conviveu com ele, vemos que as histórias se compõem e o que foi vivenciado mistura-se com o que ouviram falar e com o que imaginam que aconteceu. Quando os interlocutores narram os acontecimentos da vida e da luta, evocam também o contexto político, social e econômico que confi guravam as cenas protagonizadas pelos que a viveram e, a partir daí, se identifi cam com os fatos, articulam acontecimentos que produzem signifi cados para suas próprias lutas. Percebem que há um processo de continuidade em relação às práticas de expropriação das terras no Norte de Minas, refl etem sobre o papel do estado e expressam a dimensão subjetiva da relação dos nativos com a terra. Podemos inferir que estamos discutindo sobre a memória coletiva que, para Halbwachs (1990), trata de uma construção que é coletiva, mesmo quando achamos que estamos tendo a lembrança de uma experiência unicamente individual. Para o autor as lembranças são conce-bidas a partir das experiências de grupo, pois uma rememoração individual diz respeito a uma ótica da vivência que é sempre coletiva. O que é lembrado e o que é esquecido têm a ver com o quanto o indivíduo está envolvido subjetivamente com o grupo o qual faz parte e que viven-ciou o fenômeno rememorado. A presença de um testemunho ajuda e reforça a lembrança um do outro, o que acaba por compor uma história afi nada sobre os acontecimentos. Quando as lembranças são evocadas, elas se tornam vivas para aqueles que narram essas memórias, ascen-dem nos ouvintes recordações daqueles mesmos fatos e produzem um sentido para o presente daqueles que rememoram. Contar a história de Saluzinho é acender a memória de um período histórico que remete a violência sofrida não somente por ele, mas por todo um grupo social e, estas lembranças, neste caso, se tornam vivas porque perduram para aqueles que narram e para os grupos os quais fazem parte.

São estas algumas das questões que apontam este rápido retorno no tempo a partir das memórias que ainda hoje perduram nas mentes das pessoas e das coletividades em que elas encontram-se inseridas. Para Ivo Canabarro (2012), a memória coletiva é fundamental para avançar na compreensão dos períodos autoritários, para compreender os sentimentos e impac-tos promovidos pela ditadura militar que deixaram sequelas na sociedade em função das segui-das violações de direitos ocorridas no tempo e no espaço.

Com o panorama da época, a participação social foi expressamente limitada, a liberdade de expressão não era permitida, ao contrário duramente reprimida. Nesses períodos, cabia aos cidadãos respeitar ordens autoritárias, calar-se e conter-se com as regras e normas editadas pelo Estado e, portanto, quanto mais dócil era a postura do cidadão, melhor seria sua vida por não ameaçar a nação. Se na Europa vivenciava-se o processo democrático, Maio de 1968, com clamor à liberdade de expressão, no Brasil, por sua vez, experienciava-se o auge do autoritarismo com o Ato Institucional número 5 (AI5)2. Vivia-se num mundo à parte, longe de qualquer forma de manifestação da liberdade ou de imaginação ao poder. Em outras palavras, o poder signifi cava a repressão do cidadão, a imaginação era para os militares e não para a sociedade civil. (CANABARRO, 2012: 217)

1731

Se a memória traumatizante para as famílias que sofreram diretamente, ela também o é para Estado que permitiu ou sustentou a violações, cabendo a este mesmo estado as repara-ções.

CONSIDERAÇÕES 4.

O que está colocado é que nestas imensas planícies ao longo do São Francisco interme-diada pela Mata da Jaíba, região de ocupação antiga, desde os índios, passando pelos negros, mais adaptados às áreas endêmicas de malária, brancos à procura de um lugar para viver, cons-tituiu-se aí o “Território Negro da Jahyba” (COSTA, 2016:11-12). A medição das terras, a de-sinfecção da malária que chegou antecedendo a ligação ferroviária, a chegada dos fazendeiros e, em seguida, a implementação de políticas publicas promovidas pela geopolítica civil-militar promoveu drásticas transformações na paisagem regional com impacto direto em centenas de comunidades que aí viviam centenariamente.

Fica claro, analisando a luta e resistência dos posseiros de Cachoeirinha, de Brejo dos Crioulos e da região de Serra Azul, área destinada para a implantação do Projeto Jaíba, a recor-rência utilizada pelas elites fazendeiras em taxar os nativos do lugar que resistem à expropria-ção, como comunistas, subversivos, dando sustentação para a intensa perseguição política no período da ditadura civil-militar. Da mesma maneira, a imensa difi culdade dos posseiros em se organizar e lutar pelos seus direitos. Além dos aparelhos repressivos, os fazendeiros utilizaram do aparelho do estado, no caso, a RURALMINAS, órgão encarregado pela regularização das terras públicas do Estado de Minas Gerais, para a legalização dos terrenos que foram expropria-dos dos posseiros e comunidades de nativos. E dos programas e das políticas públicas gestadas durante a ditadura para viabilizar novos negócios sobre as terras griladas.

Jacson Roberto Cervi (2012) analisando o papel do Estado acerca dos processos de re-paração, aponta que os mesmos devem extrapolar os limites das indenizações pecuníárias. Ele defende a construção de políticas públicas mais abrangentes, visando uma reparação integral (2012). E é este o tema que precisamos nos debruçar ao analisar as políticas desenvolvimen-tistas que foram implantadas no período da ditadura civil-militar brasileira, em particular no Norte de Minas Gerais e que afetou centenas de comunidades negras, quilombolas, geraizei-ras, vazanteiras, veredeiras e indígenas que vivem nesta porção do semiárido mineiro. E que encontram-se a espera da reparação.

1732

BIBLIOGRAFIA

ARRUTI, J.M.A. “A emergência dos ‘remanescentes: notas para o diálogo entre indíge-nas e quilombolas. In Mana 3(2):7-38, 1997.

CANABARRO, I. Caminhos da Comissão Nacional da Verdade(CNV): memórias em construção. In Seqüência (Florianópolis), n. 69, p. 215-234, dez. 2014.

CERVI, J.C. O dano e o dever de reparação do estado por crimes lesa-humanidade come-tidos no período da ditadura militar in Verdade, memória e justiça [recurso eletrônico]: um debate necessário/ Rogério Gesta Leal organizador. – Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2012.

CHAVES, Luiz Antonio. “Saluzinho e a luta pela terra no Norte de Minas”. in Revista Verde Grande Vol.1, no 3 (dez/fev 2006). Montes Claros: UNIMONTES, 2006. págs 98-107.

COSTA, J.B.A Brejo dos Crioulos: processos sociais, identidade e resistência quilombola / João Batista de Almeida Costa; Emmanuel de Almeida Faria Junior, coord. Alfredo Wagner Berno de Almeida, Ed. – Rio de Janeiro: Casa 8. 2016

HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vérti-ce, 1999.

MINAS GERAIS, Governo do Estado. Comissão da Verdade em Minas Gerais [recurso eletrônico]: Relatório / Governo do Estado. - Belo Horizonte: COVEMG, 2017.

MOREIRA, H. F. “Se For Pra Morrer de Fome, Eu Prefi ro Morrer de Tiro”: O Norte de Minas e a formação de lideranças rurais. UFRRJ/CPDA Dissertação de Mestrado. RJ, 2010.

SANTOS, Sônia N. À procura da terra prometida - para uma reconstituição do confl ito de Cachoeirinha, Dissertação (Mestrado) UFMG/ FAFICH, Belo Horizonte,1988.

SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A memória em questão: uma perspectiva histórico-cultu-ral. Educação & Sociedade, ano XXI, nº 71, Julho/2000. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/es/v21n71/a08v2171.pdf> Acesso em abril de 2018.