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346 O SUS que queremos: sistema nacional de saúde ou subsetor público para pobres? SUS that we want: national system of health or public sub-section for poor? Célia Almeida 1 Debater o artigo de Marta Arretche é um con- vite à reflexão, principalmente porque a autora trabalha com dimensões analíticas em especial políticas, relativamente pouco estudadas na li- teratura disponível sobre a gestão local da polí- tica de saúde no Brasil. Meus comentários pre- tendem contribuir com o debate, que conside- ro necessário e bem-vindo, mas em nada dimi- nuem o mérito de seu trabalho. Comparto a opinião de que a reforma do sistema de serviços de saúde no Brasil já acon- teceu, independentemente de consensos acadê- micos ou políticos sobre seu início, meio ou fim. Também concordo com seu principal ar- gumento: a descentralização do sistema de ser- viços de saúde para o nível municipal, sobretu- do da Atenção Básica e ambulatorial, é inegável; mas não são apenas os atributos da gestão local que garantem o cumprimento dos objetivos da reforma, pois controles e incentivos contidos no desenho institucional das políticas interferem na qualidade de ação dos governos. Entretanto, discordo de seu comentário final e penso que as evidências apresentadas são frágeis para res- paldar a conclusão de que apenas necessitamos amadurecer e melhorar os mecanismos imple- mentados. Se não se trata mais de avaliar os resultados de um “processo de reforma”, como afirma Ar- retche, a partir de que premissas seriam analisa- dos os mecanismos institucionalizados de ges- tão dessa política de mudança? A distinção (im- portante) entre reforma e mecanismos regula- res de gestão de uma política mereceria ser um pouco mais discutida. Considero que a análise do processo de re- forma da saúde no Brasil ainda está para ser feita. Por outro lado, avaliar a gestão de uma política de reforma cujos mecanismos de ope- ração institucionalizados foram o principal ei- xo de implementação da própria reforma pres- supõe levar em consideração a concepção de re- forma formulada, o legado das políticas passa- das e analisar em que medida esses instrumen- tos e mecanismos estão, de fato, possibilitando o alcance dos objetivos reformistas formulados inicialmente. É certo, como argumenta Arretche, que as estruturas estatais e o desenho institucional afe- tam o processo decisório a partir de mecanis- mos administrativos e políticos. Porém, a for- ma de implementação, os mecanismos e incen- tivos, os instrumentos de indução e controles escolhidos para operacionalizar e gerir deter- minada política, assim como as formas de me- dir seus resultados, refletem valores e escolhas políticas em momentos específicos, revelando os objetivos estratégicos de diferentes opções. E embora seja verdade que modificações nos ins- trumentos não significam, necessariamente, “modificação de paradigma, isto é, na hierar- quia de objetivos de uma política pública”, os instrumentos escolhidos e a forma de opera- cionalização do desenho institucional podem, de fato, alterar os objetivos iniciais de uma po- lítica. Uma vez implementadas, como se preten- dem transformadoras e interferem com interes- ses constituídos, as políticas de reforma mudam a agenda pública e os padrões de conflito entre grupos que impulsionam as mudanças subse- qüentes (Skocpol & Amenta, 1986). Sendo as- sim, as causas e objetivos originais de uma de- terminada política não são necessariamente os mesmos que determinam os seus desenvolvi- mentos. E isto se dá não apenas pela resistência dos perdedores ou oposicionistas, mas pela ine- rente dinâmica de sua operacionalização: fre- qüentemente a implementação de uma política de reforma traz resultados inesperados ou não previstos por seus formuladores. Daí a necessi- dade de um processo contínuo e permanente de avaliação, revisão e correção de rota, desde que os objetivos iniciais se mantenham vigentes, as- sim como a vontade política de alcançá-los. De fato, a reforma setorial e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) significaram, no plano legal, uma mudança bastante expressiva na política de saúde brasileira. Mas a pergunta a ser feita é: o direito legal de acesso universal e eqüitativo a ações e serviços de saúde em todos os níveis de complexidade vem sendo assegura- do a qualquer cidadão brasileiro, como registra- do na Constituição de 1988? Ou, em outras pa- lavras, em que medida o processo de implemen- tação do SUS tende a caminhar nessa direção? Concentrando a atenção na estrutura insti- tucional formal da política de saúde (arcabouço 1 Departamento de Administração e Planejamento em Saú- de. ENSP/Fiocruz. [email protected]

O SUS que queremos: sistema nacional de saúde ou subsetor ...0D/csc/v8n2/a03v08n2.pdf · ... a reforma setorial e a criação do Sistema Único de ... e autoridade sobre provedores

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O SUS que queremos: sistema nacional de saúde ou subsetor público para pobres?SUS that we want: national system ofhealth or public sub-section for poor?

Célia Almeida 1

Debater o artigo de Marta Arretche é um con-vite à reflexão, principalmente porque a autoratrabalha com dimensões analíticas em especialpolíticas, relativamente pouco estudadas na li-teratura disponível sobre a gestão local da polí-tica de saúde no Brasil. Meus comentários pre-tendem contribuir com o debate, que conside-ro necessário e bem-vindo, mas em nada dimi-nuem o mérito de seu trabalho.

Comparto a opinião de que a reforma dosistema de serviços de saúde no Brasil já acon-teceu, independentemente de consensos acadê-micos ou políticos sobre seu início, meio oufim. Também concordo com seu principal ar-gumento: a descentralização do sistema de ser-viços de saúde para o nível municipal, sobretu-do da Atenção Básica e ambulatorial, é inegável;mas não são apenas os atributos da gestão localque garantem o cumprimento dos objetivos dareforma, pois controles e incentivos contidos nodesenho institucional das políticas interferemna qualidade de ação dos governos. Entretanto,discordo de seu comentário final e penso queas evidências apresentadas são frágeis para res-paldar a conclusão de que apenas necessitamosamadurecer e melhorar os mecanismos imple-mentados.

Se não se trata mais de avaliar os resultadosde um “processo de reforma”, como afirma Ar-retche, a partir de que premissas seriam analisa-dos os mecanismos institucionalizados de ges-tão dessa política de mudança? A distinção (im-portante) entre reforma e mecanismos regula-res de gestão de uma política mereceria ser umpouco mais discutida.

Considero que a análise do processo de re-forma da saúde no Brasil ainda está para serfeita. Por outro lado, avaliar a gestão de umapolítica de reforma cujos mecanismos de ope-ração institucionalizados foram o principal ei-xo de implementação da própria reforma pres-supõe levar em consideração a concepção de re-forma formulada, o legado das políticas passa-

das e analisar em que medida esses instrumen-tos e mecanismos estão, de fato, possibilitandoo alcance dos objetivos reformistas formuladosinicialmente.

É certo, como argumenta Arretche, que asestruturas estatais e o desenho institucional afe-tam o processo decisório a partir de mecanis-mos administrativos e políticos. Porém, a for-ma de implementação, os mecanismos e incen-tivos, os instrumentos de indução e controlesescolhidos para operacionalizar e gerir deter-minada política, assim como as formas de me-dir seus resultados, refletem valores e escolhaspolíticas em momentos específicos, revelandoos objetivos estratégicos de diferentes opções. Eembora seja verdade que modificações nos ins-trumentos não significam, necessariamente,“modificação de paradigma, isto é, na hierar-quia de objetivos de uma política pública”, osinstrumentos escolhidos e a forma de opera-cionalização do desenho institucional podem,de fato, alterar os objetivos iniciais de uma po-lítica.

Uma vez implementadas, como se preten-dem transformadoras e interferem com interes-ses constituídos, as políticas de reforma mudama agenda pública e os padrões de conflito entregrupos que impulsionam as mudanças subse-qüentes (Skocpol & Amenta, 1986). Sendo as-sim, as causas e objetivos originais de uma de-terminada política não são necessariamente osmesmos que determinam os seus desenvolvi-mentos. E isto se dá não apenas pela resistênciados perdedores ou oposicionistas, mas pela ine-rente dinâmica de sua operacionalização: fre-qüentemente a implementação de uma políticade reforma traz resultados inesperados ou nãoprevistos por seus formuladores. Daí a necessi-dade de um processo contínuo e permanente deavaliação, revisão e correção de rota, desde queos objetivos iniciais se mantenham vigentes, as-sim como a vontade política de alcançá-los.

De fato, a reforma setorial e a criação doSistema Único de Saúde (SUS) significaram, noplano legal, uma mudança bastante expressivana política de saúde brasileira. Mas a perguntaa ser feita é: o direito legal de acesso universal eeqüitativo a ações e serviços de saúde em todosos níveis de complexidade vem sendo assegura-do a qualquer cidadão brasileiro, como registra-do na Constituição de 1988? Ou, em outras pa-lavras, em que medida o processo de implemen-tação do SUS tende a caminhar nessa direção?

Concentrando a atenção na estrutura insti-tucional formal da política de saúde (arcabouço

1 Departamento de Administração e Planejamento em Saú-de. ENSP/Fiocruz. [email protected]

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legal e engenharia institucional) e seu desenvol-vimento, objeto privilegiado na análise de Ar-retche, algumas questões suscitam debate. Entreas dimensões analíticas consideradas pela au-tora – influência do eleitor sobre decisões degoverno; natureza das relações intergoverna-mentais; relações entre sociedade civil e gover-nos; e autoridade sobre provedores dos siste-mas de saúde – parece-me que a primeira nãointegra as instituições formais do SUS e as ou-tras três interferem em sua implementação deforma diferenciada. Privilegiaremos apenas al-gumas questões.

Natureza das relações intergovernamentais

Parece-me difícil discutir essas relações sem le-var em consideração a especificidade do novopacto federativo brasileiro que começou a serdesenhado na década de 1980 e refletiu-se deforma particular na área da saúde, condicio-nando o ritmo de implementação da reforma ealguns de seus impasses.

O desenvolvimento histórico dos sistemasde saúde no século 20, nos distintos países, de-monstra que o que muda em cada país, além danatureza do federalismo, é o caráter da políticade saúde como política social (ordem e ritmoda intervenção estatal, escopo da legislação, for-mato institucional, esquema de financiamen-to), que condiciona o tipo de transferências eincentivos federais.

As relações entre federalismo e descentrali-zação são sempre complexas, configurando umaespecífica dinâmica entre difusão e concentra-ção de poder, espelhando um modelo compar-tilhado de nação e graus socialmente desejados(ou conseguidos) de integração política e eqüi-dade social (Almeida, 1996). No caso brasileiro,o compromisso federativo e o modelo subja-cente não são claros e os formatos implementa-dos são carregados de contradições, moldadosinicialmente pela transição política e, posterior-mente, pela dinâmica dos ajustes macroeconô-micos. Os dois fatores – econômico e político –ainda que concomitantes, tiveram pesos e in-fluências diversas, sendo que nos anos 80 os im-pulsos democratizantes foram mais importan-tes e, após 1988, os constrangimentos econômi-cos ganharam destaque (Almeida, 1995 e 1996;Melo, 1993; Melo & Azevedo, 1996).

O desenvolvimento peculiar do novo arran-jo federativo forjado na Constituição de 1988 –

forte descentralização das competências tribu-tárias, sem mecanismos de redistribuição hori-zontal; alta descentralização do gasto final degoverno; e elevado nível de autonomia orça-mentária, sem definição clara das respectivascompetências dos níveis e governo – e o poste-rior aumento da carga e recentralização tribu-tária (Afonso, 1994; Dain, 1995; Melo, 1996;Lesbaupin, 2000; Prado, 2001; Ferreira, 2002)tiveram duas conseqüências principais: não háqualquer orientação geral para a necessária ade-quação dos mecanismos de financiamento fe-derativo, sendo que grande parte do processode descentralização é comandado pela dinâmi-ca desse financiamento, e inverte-se a relaçãode determinação: é a descentralização financei-ro-orçamentária que define a descentralizaçãodos encargos, ou em outras palavras – a receitatende a gerar seus próprios gastos (Prado, 2001).Embora alguns municípios tenham ampliadode forma importante suas receitas próprias einovado de forma significativa a gestão local,os instrumentos que operam a distribuição dosrecursos entre níveis de governo ganham espe-cial importância, sendo essencial avaliar os me-canismos que determinam a capacidade de gas-to dos governos subnacionais, especialmente osmunicípios.

No âmbito das políticas sociais, a descentra-lização teve motivações diversas daquelas quegeraram a redefinição do pacto federativo e afalta de um centro de comando foi particular-mente importante, além de que, nos anos 90, aárea social foi negligenciada, em função dasprioridades estabelecidas pelo ajuste macroeco-nômico. E a descentralização setorial está inse-rida nesse processo mais amplo de passagem deuma forma extrema de federalismo centralizadopara alguma modalidade de federalismo coo-perativo, ainda não completamente definido.Agora o fato de esse processo ter se iniciado an-tes de 1988 está mais vinculado à dinâmica dademocratização e crise fiscal do Estado, do queespecificamente à política de reforma setorial.

Portanto, o recurso às normas operacionaispara implementar a descentralização na saúdefoi a resposta do executivo setorial frente a essasituação federativa e a partir delas tem-se ten-tado estruturar uma descentralização planeja-da de encargos entre níveis de governo. O SUS,como política nacional e como opção de im-plementação da reforma na saúde, não partiude um modelo acabado, mas foi se desenhandopaulatinamente, ao sabor dos dirigentes no po-der e das formas específicas encontradas para

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superar os freqüentes impasses conjunturais,financeiros e políticos. Por outro lado, a arenadecisória estruturada com a descentralizaçãopolitizou de forma importante o processo dedecisão. Daí os sucessivos ajustes que as diferen-tes normas proporcionaram. A forma anterioraos anos 90 de transferência de recursos aos es-tados e municípios teve características bastantediferentes daquelas verificadas ao longo da dé-cada. O importante é analisar os rumos que es-sas sucessivas correções de rota estão impri-mindo à reforma.

Mencionam-se como traços negativos dadescentralização setorial a excessiva normati-zação burocrática, redução do poder de deci-são local e controles funcionais desvinculadosda avaliação de resultados, levando à adesãoformal aos requisitos para ter acesso aos recur-sos. As diferentes transferências financeiras pa-ra distintos programas ou atividades não sãouma invenção brasileira nem um problema perse, podendo ser interpretadas como respostasespecíficas a distintos problemas. Mas a formade condução do processo e os mecanismos depagamento que balizam as transferências fi-nanceiras fazem toda a diferença.

O dilema que permanece é o da autonomiada gestão local versus implementação de polí-ticas de escopo nacional: a autonomia plena se-ria desejável em nome da democracia e da hete-rogeneidade, mas é fortemente dependente daeficiência e competência dos sistemas decisó-rios locais e tendente a produzir mais fragmen-tação e perpetuar desigualdades; a vinculaçãocondicionada transforma os municípios em“preenchedores de requisitos burocráticos”, ini-be a criatividade e o desenvolvimento de capa-cidade local para enfrentar demandas diferen-ciadas (Goulart, 2001; Barros, 2001). Aparente-mente essa dinâmica espelha, por um lado, afalta de confiança do nível central na capaci-dade de implementação local, que não é infun-dada, e o afã do executivo federal na definiçãode critérios “precisos”, que garantam o cumpri-mento de parâmetros de política nacional fixa-dos centralmente.

Na experiência de diversos países em geral,os aportes federais (ou estaduais) priorizam ati-vidades ou programas que induzem um nívelde gasto superior ao que resultaria de decisãoorçamentária local e se destinam à indução documprimento de determinados objetivos, defi-nidos pelos governos de níveis superiores ouacordados no pacto federativo, normalmentecom a finalidade de superar desigualdades e he-

terogeneidades, propiciar maior uniformidadenos padrões do gasto per capita, ou para aten-der situações emergenciais ou excepcionais. Epara tal, as condicionalidades são necessárias eamplamente utilizadas para induzir a adesão.

Embora seja difícil estabelecer uma base ló-gica simples de recomendação de mecanismosque induzam maior ou menor autonomia, umaanálise mais precisa dependeria de vários fa-tores, mas ressalta-se entre eles a necessidadede maior clareza sobre o padrão de autonomiamunicipal vigente na enorme diversidade darealidade local. Por outro lado, a vinculação éuma alternativa correta para o SUS, mas deveser formatada para ajustar as transferências efe-tuadas de forma dinâmica e eficiente, manten-do coerência entre os instrumentos introduzi-dos e os objetivos da política que se quer imple-mentar.

O sistema de transferência de recursos “embloco” (block grants), utilizado pelo SUS, é inde-pendente da contribuição do nível local para aprovisão de serviços, induz as áreas menos po-voadas a gastarem menos com saúde e privile-gia as áreas urbanas, estimulando a competiçãofiscal com municípios vizinhos; e o recurso a li-mites mínimos do gasto em saúde (EC 29) tam-bém tenderá a prejudicar aqueles municípiosmenores (menos de 10 mil habitantes), uma vezque os maiores já atingiram o patamar de gastopreconizado, além de praticamente pouco ounada alterar em relação ao gasto atual (Ferreira,2002; Médici, 2002). Uma alternativa, bastanteutilizada em outros países, são as chamadas“transferências casadas” (matching grant), emque o governo central paga uma parcela fixa dototal de gastos do nível local, regulado em fun-ção do seu interesse em incentivar um tipo es-pecífico de gasto, o que reduziria o custo mar-ginal do gasto social e tenderia a superar a di-minuição do gasto local. O problema seria queesse sistema exige um monitoramento rigorosopara coibir o incentivo às fraudes embutido nacontabilização dos gastos (Prado, 2001; Ferrei-ra, 2002).

Os incentivos, por sua vez, não necessitamser exclusivamente financeiros, podendo estardirecionados para as funções nobres do nível fe-deral (Barros, 2001), fundamentalmente redis-tributivas, isto é, destinadas a melhorar os níveisde eqüidade do sistema de serviços – investi-mento em capacidade instalada, avaliação tec-nológica, suporte técnico, regulação e distribui-ção da força de trabalho, sistemas de informa-ção e produção de indicadores de resultados etc.

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Por fim, a revisão da tendência municipalis-ta (NOAS 2001), com recuperação do papel donível estadual e a organização de regiões é bem-vinda e quase tardia. Nas últimas décadas ob-serva-se essa tendência à regionalização tam-bém nos distintos países, numa perspectiva defortalecer a condução coordenada do sistema,vinculada a metas de maior responsabilizaçãocom a coisa pública e medidas de desempenho.Poder-se-ia aproveitar, portanto, para desenca-dear um processo amplo de revisão do SUS, sejadas prioridades da política de reforma, seja dasrelações intergovernamentais, seja das formasde transferência e mecanismos de incentivos.

Priorização de atividades e programas

A priorização da Atenção Básica e o repasse derecursos per capita são recomendados para ospaíses com níveis elevados de pobreza e desi-gualdade de distribuição de renda, na perspec-tiva de garantir níveis mínimos de atendimen-to de serviços básicos, não proporcionados porboa parte dos governos locais.

Com as mudanças na alocação de recursospara a Atenção Básica (PAB, 1998), observa-sealguma melhora na redistribuição de recursos.Entretanto, essa nova sistemática distributiva,apesar de igualar valores per capita para o fi-nanciamento de atividades ambulatoriais con-sideradas básicas, não leva em conta as desi-gualdades inter-regionais, seja no que se refereàs necessidades de saúde, seja em relação à redeexistente de serviços nas diferentes regiões. E asdiferentes estratégias e incentivos para a Aten-ção Básica (PAC, PSF e PACS), por um lado, edos demais procedimentos de maior comple-xidade e a atenção hospitalar, por outro, não es-tão direcionados para induzir a maior integra-ção dos distintos níveis de complexidade daatenção e aumentar a resolutividade do siste-ma, configurando, de fato, um “pacote básico”e “gargalos” de acesso que dificultam a mobili-dade do usuário entre distintos serviços no sis-tema. Tampouco alteram as assimetrias históri-cas entre o setor público e o privado, cujo mixde serviços é diferente em cada localidade, es-truturado segundo uma lógica de oferta desor-denada e casuística, sem relação com as neces-sidades de saúde da população, perpetuando ascarências históricas. Portanto, o “efeito homo-geneizador do PAB”, embora possa ser mais re-distributivo pode não ser mais eqüitativo, umavez que o alcance da eqüidade pressupõe a dis-

tribuição desigual de recursos, para compensaras desigualdades.

De uma maneira geral, quando a demandae a necessidade podem ser quantificadas com al-guma precisão, o que não é tarefa fácil, mas nãoé impossível, a vinculação entre o recurso fi-nanceiro repassado e atividades específicas temgrande chance de ser bem-sucedida, como porexemplo, no controle das endemias (e outrosprogramas verticais). No caso brasileiro, essecontrole historicamente era realizado de formacentralizada, com relativo grau de sucesso, e foidesorganizado tanto pelo stress fiscal quantopelo processo de descentralização, com recru-descimento de epidemias (Reis et al., 2001). Eexistem indícios de que a descentralização tam-bém afetou de forma importante esses progra-mas, primeiro porque não foram contempladosnas primeiras normas, centradas fundamental-mente na assistência médica; e, segundo, peladesorganização local frente a retirada do nívelcentral que comandava e operava os programasverticais localmente (Brito, 2002).

Penso que o SUS enfrenta tanto o problemada necessidade de garantir um mínimo básico,quanto de hierarquizar o sistema, assegurandoa atenção integral – preventiva e curativa. Masas políticas implementadas não têm apontadona direção nem de corrigir as distorções do sis-tema, nem de preservar o que funcionava bem,evitando o desmonte desordenado.

Relação com a sociedade civil e construção de espaços de negociação

De fato a estrutura decisória formal configura-da com a reforma institucionalizou uma dinâ-mica inovadora que tem alterado a correlaçãode forças na arena decisória e permitido a ne-gociação na formulação e implementação dapolítica de saúde. E as diferentes normas ope-racionais que regulamentam o processo de des-centralização restauraram o poder de comandodo sistema pelo Ministério de Saúde, deslocan-do outras esferas de poder (como o Legislati-vo). Entretanto, essa dinâmica tem direcionadoos movimentos de participação e expressão naárea setorial para as Comissões Intergestoras(em nível federal e estadual), eminentementetecnoburocráticas. E a CIT cumpre papel arbi-tral nas complicadas negociações relativas àdescentralização política, administrativa e fi-nanceira do SUS, uma vez que reúne, em nívelfederal, os principais gestores da arena, e sua

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pauta de discussão é praticamente elaboradapelo executivo central. Essa institucionalizaçãoresgata, em certa medida, o poder da tecnobu-rocracia setorial e traz para esse fórum de nego-ciação entre gestores os conflitos inerentes àsrelações entre os diversos níveis de governo,tendendo a favorecer aqueles atores que histori-camente já detinham maior poder de barganha,ou que passam de um cargo a outro, permane-cendo na esfera de poder, não raro em diferen-tes níveis de governo. Mais ainda, essa dinâmi-ca legitima as propostas de política do governofederal.

Isso se dá também por um certo desprestí-gio e em detrimento dos foros colegiados comparticipação paritária da sociedade civil, comoos Conselhos de Saúde, nos diversos níveis, on-de persistem muitos problemas, mencionadosna literatura, desde a dificuldade de participa-ção em discussões técnicas, falta de rotativida-de das representações, até o desvirtuamento dopapel dos Conselhos e inefetividade prática desuas discussões e decisões (Cortes, 1998; Valla,1998; Carvalho, 1995; Labra, 2002).

Atualiza-se assim a discussão sobre os meca-nismos mais adequados para o exercício da de-mocracia participativa, além de suscitar a refle-xão sobre a funcionalidade e pertinência dessesarranjos institucionais (Santos, 1998; Lesbau-pin, 2000). A maior politização das discussõessobre a reforma setorial, a complexificação dasnegociações e a obrigatoriedade de exposiçãoao debate de diferentes “projetos” e perspectivasna implementação da reforma é um ganho emsi, mas não elimina ou minimiza a necessidadede ajustes e revisões de mecanismos.

Preferência do eleitorado (capacidade de veto aos governantes) e avaliação do impacto eleitoral na oferta de serviços

Estas são duas temáticas que podem ou não es-tar inter-relacionadas. Entretanto, os achadosempíricos de Cheibub & Przeworski (1997),que não encontraram relação entre desempe-nho econômico dos governos e sobrevivênciapolítica dos governantes, citados pela autora e,por extensão, assumidos por ela como aplicá-veis à área da saúde, não são confirmados porconsiderável literatura consagrada internacio-nalmente que analisa a política social em gerale a de saúde em particular. Skocpol & Amenta(1986) apresentam uma interessante resenhadessa literatura sobre a política social na qual

demonstram que os resultados da ação estatalpodem ser analisados de forma mais refinada edinâmica, desvendando as conseqüências polí-ticas das políticas anteriormente institucionali-zadas.

Mesmo entre nós, os regimes burocrático-autoritários instituíram políticas sociais, seg-mentadas e particularistas, manipulando e co-optando as “massas”, é verdade, mas que lhesgarantiram construção de capacidade estatal epermanência no poder. Além disso, na vida real,o que vem acontecendo na Argentina e mesmoo recente processo eleitoral no Brasil (Fiori,2002) tampouco confirmam os achados empí-ricos de Cheibub & Przeworski (1997).

Quanto à avaliação do impacto da compe-tição eleitoral na oferta de serviços, o fato denuma determinada pesquisa não possibilitar aafirmação de que a primeira tenha tido qual-quer efeito sobre a última não permite concluirque não exista correlação entre as preferênciasideológicas do eleitor (ao eleger este ou aquelecandidato) e a provisão de serviços em nível lo-cal. Embora não sejam fornecidos maiores de-talhes metodológicos, talvez os indicadores uti-lizados para avaliar a provisão de serviços nãosejam os mais sensíveis para apreender esse tipode correlação. Ou será que inovações gerenciaiscomo o Plano de Atendimento à Saúde-PAS, dagestão Paulo Maluf (PPR) em São Paulo (Cohn& Elias, 1999), e o Orçamento Participativo, in-troduzido na gestão Tarso Genro (PT) em Por-to Alegre (Ramminger, 1997; Fedozzi, 1997),não têm nada que ver com determinadas con-cepções sobre o sistema de saúde, opções polí-ticas, ideológicas e resultados? Seria necessárioutilizar indicadores mais refinados e apropria-dos para avaliar os resultados da gestão localdos sistemas de saúde, em diferentes adminis-trações de distintos partidos, e a preferência doeleitorado.

Controle do Estado sobre os provedores de serviços

Esta discussão a meu ver se vincula à questãodas dimensões do sistema que não foram to-cadas na reforma da saúde. Entre elas, algumasseguem sua própria dinâmica, como a naturezado mix público e privado de serviços, a produ-ção e distribuição de insumos médico-hospita-lares, a regulação da força de trabalho (tama-nho, distribuição, “dupla militância”, formas deremuneração, etc.); e outras estão sendo mexi-

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das há pouco tempo, como a regulação dos pla-nos de saúde privados, a vigilância sanitária eepidemiológica, a produção/distribuição de me-dicamentos. Essa assimetria entre o avanço noprocesso de descentralização e as áreas não to-cadas não é casual, nem é uma questão menore desvela a natureza da reforma de fato imple-mentada.

Conclusão

Sem desqualificar os avanços conseguidos (quenão são poucos) e a complexidade desse empre-endimento, num país continental, com enormeheterogeneidade e imensas desigualdades, até omomento o resultado do processo de reformanão tem apontado para a construção do SUS talcomo formulado na Carta Magna e nas leis queo instituíram. Inicialmente pensado como umsistema nacional de saúde, predominantemen-te público, que harmonizasse e regulasse o com-plexo mix público e privado de serviços (suamarca histórica e estrutural), o SUS é visto pelapopulação, policy makers, analistas, pesquisado-res e outros diferentes atores, como o “subsiste-ma” público, ou a “alternativa” para os que “nãopodem pagar”, ou a “oportunidade” de uso decertos serviços para os que pagam por serviçosprivados, mas dispõem de acesso diferenciadoao SUS a partir de canais privilegiados. A frag-mentação e dualidade do sistema têm sido con-firmadas; a heterogeneidade e as desigualdadesnão têm sido superadas.

Na minha opinião, o grande desafio da re-forma na saúde consiste em explicitar clara-mente o que se pretende com o SUS e dimen-sionar que tipo de ajuste é necessário. Na reali-dade nunca houve consenso sobre a “imagem-objetivo” do SUS entre os diversos atores. Masao olhar o lugar que ele ocupa hoje no sistemade saúde brasileiro constata-se que “vingou” adualidade, a segmentação perversa e o mix pú-blico/privado desordenado. Isto não quer dizerque não caminhamos nada. Ao contrário, cami-nhamos bastante, mas numa direção diferentedaquela preconizada pelo impulso inicial da re-forma contido na Carta Magna. Talvez assumiressa constatação como real seja o primeiro pas-so para mudar. E nesse sentido tenho dúvidasse é apenas uma questão de explorar plenamenteos instrumentos da estrutura institucional atuale amadurecer o uso dos instrumentos existentes,pois me parece que precisamos de mudançasmais profundas, de correção de rumo, e isso só

será possível repensando que sistema de saúdequeremos e quais os mecanismos a ser privile-giados na sua implementação. Decidir “paraquem” queremos o SUS. Se concordamos que éo subsistema público para os pobres, até queestamos indo bem, é só uma questão de aper-feiçoar mecanismos. Se queremos “outra coisa”,temos que repensá-lo.

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Determinantes do desempenho institucional do SUS municipal: controle de gestão ou capacidade de governo?The health system (“SUS”) performancedeterminants at local level: managementassessment or governability skills?

Carmen Fontes Teixeira 1

O artigo de Marta Arretche, “Financiamentofederal e gestão local de políticas sociais: o difí-cil equilíbrio entre regulação, responsabilida-de e autonomia” coloca em debate os resulta-dos, desafios e perspectivas do processo de des-centralização da gestão do Sistema Único deSaúde, problematizando, especialmente, o pa-pel desempenhado pelas instâncias de controledo processo de gestão municipal do SUS. Nessesentido, traz à tona uma questão central na aná-

1 Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. [email protected]

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Focalizando os desdobramentos dessa ques-tão na análise dos resultados do processo dedescentralização do SUS, a autora, em primeirolugar, sistematiza um conjunto de informaçõesque permitem caracterizar a elevação da parti-cipação municipal no gasto em saúde, ao tem-po em que ocorreu a municipalização da redeambulatorial e, conseqüentemente, a munici-palização da produção de serviços nesse nívelassistencial. Fruto da “indução” operada pelonível federal através das Normas OperacionaisBásicas, durante a década de 1990, particular-mente a NOB/96, a descentralização, ainda queapresentando resultados heterogêneos nos vá-rios estados, é um “fato inquestionável”, defini-dor da configuração atual do sistema público desaúde no país.

Posto isso, a autora trata de reafirmar argu-mentos contrários às crenças amplamente di-fundidas com relação às “vantagens” da descen-tralização no sentido de gerar, por si mesma, amelhoria do desempenho institucional dos go-vernos locais, chamando a atenção para o fatode que não há nenhuma garantia de que esseprocesso resulte em aumento de eficiência nagestão municipal do SUS ou implique, auto-maticamente, democratização do sistema. Con-cordo inteiramente com a distinção entre osprocessos de descentralização e democratiza-ção, que obedecem a lógicas distintas, emborapossam estar, em algum momento, interligadas.Além disso, enfatizaria a possibilidade de que,em nosso contexto, o processo de descentrali-zação venha a contribuir para reforçar práticaspolíticas patrimonialistas, clientelistas, e autori-tárias, bem como gerar a reprodução de práti-cas administrativas burocratizadas e ineficien-tes que caracterizam nossa administração pú-blica, em que pesem eventuais “ilhas de exce-lência”.

A autora, entretanto, ao assumir como hi-pótese que a “qualidade da ação dos governosdepende – em grande parte – dos incentivos econtroles a que estão submetidos”, se propõe aanalisar, exatamente, os mecanismos de contro-le da gestão do SUS que vêm sendo criados einstitucionalizados ao longo do seu processo deconstrução. Considerando, portanto, que o “de-

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políticos que disputam as eleições nos váriosníveis de governo, especialmente no nível mu-nicipal, refletem sua aprovação ou desaprova-ção com relação ao desempenho institucionaldo governo. Nesse sentido, é importante que seespecifique o papel que tem desempenhado oupode vir a desempenhar a expansão e reorien-tação da prestação de serviços de saúde no for-talecimento do poder político de determinadospartidos. Se bem, é certo que, como a autoraassinala, na fase de implantação da municipali-zação, a expansão da oferta de serviços não possaser associada a nenhuma corrente política emparticular, penso que podem existir diferençassignificativas na prática político-gerencial dosistema de saúde ao nível local, a depender dopartido ou da coalizão de forças políticas queocupem o Executivo e Legislativo nesse nível,diferenças essas que podem implicar a legiti-mação (ou não) de projetos políticos partidá-rios distintos.

Já com relação às instâncias de indução econtrole criadas especificamente no processo deconstrução do SUS (Comissões Intergestores eConselhos), gostaria de enfatizar alguns aspec-tos relevantes na análise efetuada no artigo deMarta, tomando a liberdade de acrescentar al-gumas inquietações e sugestões para outros es-tudos.

Em primeiro lugar, o reconhecimento dopapel das Comissões Intergestores como espa-ços de pactuação política em torno das regrasdo processo de descentralização, cujos resulta-dos se refletiram nas NOBs e na recente NOAS.Nesse sentido, duas questões merecem destaquee podem vir a ser objeto de estudos e pesquisasespecíficas: a) a problematização da NOAS, nosentido de sua capacidade de vir a promover ounão a redistribuição de recursos federais de mo-do a que sua implementação venha a contribuirpara a promoção da eqüidade e a redução dasdesigualdades regionais e estaduais no que dizrespeito à oferta de serviços de saúde; b) os limi-tes e possibilidades do processo de implementa-ção da NOAS induzir uma mudança significa-tiva no perfil de oferta dos serviços ao nível lo-cal, de modo que não ocorra apenas uma ra-cionalização da oferta de serviços em função daorganização dos “módulos assistenciais” e “mi-crorregiões de saúde”, mas também se estabele-ça um processo de mudança e transformaçãodo perfil de oferta dos serviços em função daheterogeneidade dos problemas e necessidadesde saúde da população nas diversas regiões, nosdiversos estados e municípios (Teixeira, 2002).

sempenho dos governos locais é, em geral, re-sultado do desenho institucional dos sistemasnacionais”, Marta apresenta, em um diagrama,as quatro dimensões da estrutura institucionaldo SUS que incidem sobre a gestão municipal,quais sejam, o controle exercido pelos eleitores,as comissões intergestores (CIT, CIBES), osConselhos de Saúde e as relações entre gestorese provedores de serviços. Pode-se perceber quea autora, embora admita que essas instânciassão responsáveis, apenas “em parte”, pela qua-lidade da gestão municipal, adota uma pers-pectiva que privilegia os controles “externos”ao sistema municipal de saúde, deixando de la-do, pelo menos, por ora, a análise do governomunicipal em si, aspecto que, particularmente,considero fundamental para se compreender oprocesso de gestão do sistema de saúde. Reto-marei, posteriormente, este comentário, mas,em princípio, gostaria de dialogar com a autoranos seus termos, ou seja, a partir da sua propos-ta de análise das instâncias e mecanismos de in-dução e controle da gestão local do SUS.

Assim, creio que uma primeira distinçãopode ser feita entre um controle “geral” sobre agestão municipal, exercida pelos eleitores, noprocesso democrático de escolha dos seus go-vernantes e representantes através das eleiçõesperiódicas, e as instâncias de controle “específi-co” sobre a gestão do sistema municipal de saú-de, quais sejam, as Comissões Intergestores e osConselhos de Saúde; as primeiras, responsáveispela negociação e pactuação das regras do pro-cesso de descentralização dos recursos e corres-pondente “responsabilização” das instâncias es-tadual e municipal do SUS com relação à orga-nização da prestação de serviços, e os segundos,instâncias colegiadas de gestão, controle e ava-liação da política e da gestão do sistema de saú-de em cada nível de governo. Uma segunda dis-tinção, a meu ver, deve ser feita entre essas ins-tâncias de gestão do sistema e as relações esta-belecidas entre gestores e provedores, já que em-bora todas essas relações sejam, de modo geral,“políticas”, as relações entre gestores e provedo-res têm um componente econômico pronun-ciado, principalmente as relações entre os ges-tores públicos e os prestadores privados (a redecontratada e conveniada).

Com relação ao controle “geral” sobre a ges-tão municipal exercido pelos eleitores, pensoser importante que se desenvolvam pesquisasna direção apontada pelo artigo de Marta, ouseja, que se investigue até que ponto as opçõesdo eleitorado em torno dos distintos partidos

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Em segundo lugar, cabe registrar a contribui-ção da autora na sistematização dos resultadosde vários estudos sobre a atuação dos Conselhosde Saúde no Brasil. Em que pesem as distintasinterpretações acerca dos seus determinantes, vá-rios estudos apontam as limitações dos Conse-lhos como instância de efetivo controle social, oque não invalida, segundo a autora, a possibili-dade de que venham a tornar-se efetivos, na me-dida em que ocorra sua consolidação. Comoprofissional que vem se envolvendo há mais dedez anos na capacitação de conselheiros de saú-de, e em algumas pesquisas sobre seu funciona-mento, concordo inteiramente que não se podedescartar sua potencialidade. Porém, como afir-ma Marta, é preciso analisar sua efetividade to-mando como referência a “disposição dos gover-nos para serem controlados”. Isso nos remete,novamente, à necessidade de investigar não ape-nas as instâncias e mecanismos de controle, mastambém as características do governo municipale das práticas de gestão do sistema de saúde de-senvolvidas. Como já sugeria Paim (1992) hácerca de 10 anos, é necessário se investigar “co-mo o governo governa”, o que pressupõe, em pri-meiro lugar, a identificação das forças político-partidárias nele representadas, seu projeto políti-co e, essencialmente, suas práticas – em outraspalavras, o “perfil” dos dirigentes e os “métodosde trabalho” utilizados para a tomada de decisãoe condução político-institucional, em nosso ca-so, do sistema de serviços de saúde, principal-mente ao nível municipal.

Concluindo o diálogo na perspectiva colo-cada por Marta, gostaria de tecer alguns comen-tários sobre a relação entre gestores e provedoresde serviços, que, na minha opinião, não chega ase caracterizar como uma instância de “controlepolítico” e sim como uma relação de mercado,especialmente entre os gestores públicos e osprovedores privados, que me parece ser a relaçãoque a autora problematiza ao chamar a atençãopara a possibilidade de “captura dos governos lo-cais por interesses privados”. Na verdade, o riscode que o processo de descentralização da gestãoconduzisse a um fortalecimento do processo deprivatização da assistência foi apontado desde osprimórdios da municipalização, por autores co-mo Paim (1991) e Mendes (1992), motivados, naépoca, pela crítica à lógica do financiamento es-tabelecida na NOB/91. Mendes apontava, maispropriamente, o risco de “inampização do SUS”,entendido como um processo que implicasse ofortalecimento do modelo médico assistencialprivatista e hospitalocêntrico, característico do

antigo Inamps. De fato, esse risco permanece atéhoje, desde que, mesmo com a mudança estabe-lecida na lógica do financiamento federal, com aNOB/96 – criação do PAB e transferência fundoa fundo – subsiste uma marcada ênfase na ofertade serviços médicos, ambulatoriais e hospitala-res, não só em função da permanência da rede“contratada e conveniada” como parte do níveloperacional do SUS, mas também pela reprodu-ção desse modelo no âmbito da “rede própria”,mesmo ao nível básico de atenção. A mudançadesse modelo, de modo a se criar um certo equi-líbrio entre as ações de assistência médica, asações de prevenção de riscos e agravos (vigilân-cia epidemiológica e sanitária) e as ações de pro-moção da saúde, ainda é o maior desafio enfren-tado no processo de construção do SUS, em quepesem os esforços que vêm sendo desencadeadoscom a implantação da Saúde da Família e a des-centralização das ações de vigilância (Teixeira,2002). Por outro lado, a implantação do sistemanacional de auditoria, controle e avaliação, bemcomo o fortalecimento das ações de regulaçãodas relações de compra e venda de serviços, prin-cipalmente no que diz respeito à média e altacomplexidade, em sua maior parte sob controleda rede privada, pode vir a contribuir para a re-versão do modelo de atenção, mas isso ainda éuma esperança, um caminho a ser construído enão uma certeza.

Concordo com a autora acerca da necessida-de de se desenvolver estudos que analisem os re-sultados alcançados até o momento com a im-plantação dessas ações e dessas propostas. Creioque podem vir a ser realizados tanto estudos decasos, em municípios que apresentem resultadosrelevantes e aspectos inovadores na gestão, quan-to estudos comparativos entre municípios cujasadministrações sejam distintas, tanto do pontode vista político-partidário quanto das práticasde gestão do sistema municipal de saúde. Comisso, será possível articular a compreensão do pa-pel desempenhado pelos mecanismos de “indu-ção” e pelas instâncias de controle gerencial econtrole social estabelecidas no desenho e noprocesso de construção do SUS, com a identifi-cação da singularidade de cada experiência con-creta, podendo-se até vir a investigar o papel de-sempenhado pelos “sujeitos” do processo de ges-tão, sejam os dirigentes e técnicos, sejam os pro-fissionais e usuários envolvidos nas instânciascolegiadas de decisão, acompanhamento e ava-liação da política municipal de saúde.

Nesse sentido, creio que a contribuição deMatus (1997; 2000), especificamente a noção de

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O arcabouço institucional institui, mas também excluiThe institutional outline institutes, but it also excludes

Emerson Elias Merhy 1

Comentar o texto de Marta Arretche não é umatarefa fácil. A autora consegue com bons argu-mentos e comprovações nos colocar diante dequestões interessantes e pertinentes para quemquer pensar os sentidos das políticas públicasna área da saúde, no Brasil atual, no qual, desde1988, vem se constituindo uma maquinaria es-tatal para operar projetos governamentais den-tro do arcabouço do denominado Sistema Úni-co de Saúde. Aponta para a idéia básica, ao fi-nal do seu texto, de que o principal da enge-nharia institucional já está feito, na saúde, paradar conta do que seria necessário na constru-ção de políticas sociais universalizantes, equi-tativas e eficientes. E que o problema centralseria a não utilização adequada desses arranjosnos casos em que tais políticas não são sinérgi-cas com estes princípios norteadores.

Arretche demonstra, desmitificando, o papelde certos atores nesse cenário da saúde. Mostracomo a força dos eleitores, a ação dos conse-lhos ou mesmo a filiação partidária dos gover-nos instituídos não parecem ter grandes pesospara a efetivação das ações governamentais. Hácomo que uma inércia operacional, não neces-sariamente negativa, que impõe uma agendapara a ação dos governos, nas várias esferas deatuação, que constrange suas ações na direçãode certos desenhos organizacionais na saúde enão de outros; porém, dentro de certos grausde liberdade, como reconhece a autora ao dizerque o município não precisa se subordinar aofederal, pois na prática os diferentes níveis go-vernamentais podem navegar em direções dis-tintas. Uns podem, por exemplo, realizar açõesmais privatizantes, enquanto outros podem fa-zer o oposto na construção de seus modos defabricar a saúde.

Entretanto, instituir quem é importantenesse jogo e quais os seus poderes não é tãoaberto assim, de tal modo que no arcabouço de-senhado, hoje, alguns atores não podem sim-plesmente dizer que não aceitarão certas regrase atuarão em outras direções; mesmo para aque-

“triângulo de governo” e a especificação doscomponentes da “capacidade de governo” – per-fil do dirigente, sistemas de trabalho e desenhoorganizativo –, bem como as reflexões mais re-centes de autores como Rivera e Artmann (1999;2001) acerca da questão da subjetividade na ges-tão, desenvolvidas a partir da revisão de autoresque têm trabalhado a proposta de “organizaçõesque aprendem”, podem vir a ser extremamenteúteis no desenvolvimento de estudos e pesquisasque contribuam para o conhecimento e aperfei-çoamento das práticas de gestão do SUS em to-dos os níveis.

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1 Departamento de Planejamento e Administração de Ser-viços de Saúde/Unicamp. [email protected]

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les que pertencem ao bloco político que se co-loca do lado de projetos sociais democratizan-tes e equitativos. Neste jogo é difícil escapardas imposições que o nível federal define paraa agenda local, como, por exemplo, na constru-ção da efetiva responsabilização do gestor localpela ação da rede básica convivendo com umabaixa capacidade de agir nos outros níveis.

Interessante essa dupla situação. De um la-do, o constrangimento em certos modos de ope-rar o setor saúde, com a legitimação de algunsatores como peças-chave; e de outro, a possibi-lidade de dar sentido para as ações de saúde demodos diferenciados, desde que consiga se afas-tar das principais determinações do arcabouçoinstitucional, que o reconhece como ator cen-tral, mas dentro de certas agendas, e não de ou-tras.

Qual a importância dessa situação que de-termina que o arcabouço institucional não sir-va igualmente a senhores do mesmo campo,que portam modos diferentes de operar o sis-tema?

Aproveito, no momento, deste possível de-bate que o texto permite, sem desconsiderar quehá muitos pontos instigantes a dialogar com aMarta. Por exemplo, seria possível perguntarsobre os vetos feitos pelo governo Collor às vá-rias propostas para a Lei Orgânica da Saúde,que mereceria alguma lembrança e problema-tização em um texto deste tipo, para mostrarcertos recuos, não sem conseqüências, a certaspretensões de construção do SUS; ou, ainda,poderia se perguntar de que modo certas NOBsforam negociadas e como as acirradas disputasem torno delas mostram que essa instituciona-lidade que a autora analisa não foi constituídasem sérias alterações de alguns projetos maisdescentralizadores, e o que isso implica em ter-mos de graus de ação e possibilidades finalísti-cas para as políticas implementadas. Porém,apesar dessas questões instigantes, volto à per-gunta do parágrafo anterior.

Esse arcabouço que veio se desenhando vemcontribuindo e respondendo à construção deque tipo de atores vitais para operarem o cená-rio da saúde? Há mudanças de alguns tradicio-nais? Aparecem novos? Como têm jogado? Oque eles têm negociado entre si? O que de rele-vante podemos perceber do processo? Por que,ao olhar para todos esses anos, as avaliações sãotão díspares, mesmo no interior de grupos quesempre estiveram apostando no processo deconstrução do SUS, no Brasil?

Estas questões não são escolhas gratuitas,

pois no texto a autora mostra que os atores quejogam com efetividade, neste momento, são: osagrupamentos governamentais dos vários ní-veis, com pesos significativos para o federal e osmunicipais, mas conformados principalmentepelos grupos dirigentes das máquinas governa-mentais da saúde; as tecnoburocracias médica esanitária, que vêm gerando uma infinidade deprojetos para organizar o SUS, em particular asdo Ministério da Saúde; os setores médicos pri-vados, que se apresentam sob as mais variadasformas organizacionais como prestadores, quenão são homogêneos e não atuam de modo uni-forme, o que, aliás, é uma marca de todos osatores deste cenário; e, finalmente, os empresá-rios capitalistas do setor, que podem se confun-dir em alguns casos com grupos médicos, masnão obrigatoriamente. Isto é, vejo que a autorademonstra, mesmo não sendo esse seu objetivo,que não são muitos os atores, no Brasil, que fo-ram instituídos por e neste arcabouço e que jo-gam estrategicamente no dia-a-dia da constru-ção da política de saúde, e, felizmente ou não, éassim. O cenário é mais pobre do que deseja-ríamos, mas é nele que vêm se constituindo pe-quenas e grandes questões. E vale verificar quemesmo nessa pobreza ele não é nada uniforme,os atores básicos se diferenciam internamente euns em relação aos outros.

Há grupos de secretários municipais quesão totalmente sinérgicos com a tecnoburocra-cia federal do setor, há outros que dizem quehouve “roubos” da autonomia municipal pelaatual política vigente, mas apontam para res-ponsabilidades sérias com a construção do SUS.Há grupos médicos que se colocam a favor denegociações estreitas com o sistema público, háoutros que só se interessam nas agendas gover-namentais que lhes permitem construir meca-nismos decisórios sob o modo de usar os fun-dos públicos. Há grupos que pedem a ação maisefetiva e reguladora dos governos sob os modosde agir do setor privado, há outros que dizemque isso é ir contra a regulação da lógica domercado, que é quem deveria operar o setor.

Enfim, se há alguma coisa de consenso nessecenário é que não é um cenário consensualiza-do entre os vários atores em cena, inclusive en-tre os que apostam quase na mesma direção: umSUS amplo, democrático, equânime e eficiente.

E, aí, o que disso podemos perceber mais,ou mesmo concluir?

No mesmo caminho da autora, podemos fa-zer várias perguntas sobre quem tem poder deditar o que deve e pode ser feito, só que reduzi-

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do ao que esses atores que nomeio podem com-portar, mas olhando para algumas questões emparticular, que, em parte, são de alguma formatambém colocadas pela autora.• Será possível a esses atores centrais construí-rem modos mais democráticos de se produzireme operarem as políticas públicas? Eles apostam,e como, na construção de um modo mais am-plo de construir as arenas institucionais da saú-de no Brasil? Será que apostam? Quais deles?• Que tipo de práticas de saúde esses atorescentrais estão indicando e o que eles têm nego-ciado nessa direção? Podem agir em qualquerdireção ou são determinados por parte do pró-prio arcabouço que os limita?• Até onde o arranjo institucional comportaos vários projetos que esses atores bancam, emespecial os que estão apontando para a constru-ção da universalidade, eqüidade e eficiência nasaúde?

Não é possível responder aqui a todas essasquestões, mas dá para indicar algumas refle-xões. E, nesta linha, entendo que não é seme-lhante o modo como jogam os quatro tipos deatores centrais, que identifiquei atrás – os agru-pamentos governamentais, a tecnoburocraciamédica e sanitária, os setores médicos privadose os empresários capitalistas do setor. Além denão serem blocos uniformes, como já apontei,o mais significativo, a meu ver, é que um mes-mo dispositivo institucional, como por exem-plo uma arena institucional específica, pode sertão diferente na mão de alguns deles que ela emsi não significa nada, em termos de desenho depolítica setorial. Isto é, não consigo pensar demodo separado o arranjo institucional dos su-jeitos sociais e políticos específicos em suasações, e o modo como se determinam mutua-mente.

Só a título de aprofundamento específico doque estou escrevendo, proponho imaginarmoscomo esses atores centrais olham para os váriosarranjos institucionais já cristalizados e vêem aconstrução das suas práticas, interrogando se es-tes arranjos lhes permitem fazer qualquer coisa.

Percebemos isso quando interrogamos omodo como o nível federal vem impondo, atra-vés de certos dispositivos instituídos, uma prá-tica autoritária na construção do modelo deatenção à saúde, ou mesmo vem impondo cer-tos dispositivos e modos de decidir sobre a po-lítica, que vem se chocando com as perspecti-vas de alguns atores governamentais ou fraçõesda tecnoburocracia médica e sanitária. Esses secolocam como defensores de modelos mais des-

centralizados nos níveis loco-regionais, para osquais a construção de certos dispositivos insti-tucionais, visando dar competência no operaras diferentes perspectivas, não consegue se en-quadrar no que está desenhado hoje – na ver-dade uma prática do nível central que os excluie os subordina como gestores da saúde no pla-no municipal, instituindo-os como restritosadministradores de programas e projetos defi-nidos e desenhados fora de seus âmbitos. E ointeressante é constatar que eles se constituematores centrais nesses mesmos arranjos.

Talvez, por isso, instiga a percepção de queapesar de esta ser uma queixa de muitos gesto-res locais, na prática, quando vemos sua açãopor outros desenhos institucionais que lhes ga-rantam mais governabilidade nos projetos quedesejam, eles se colocam, na maioria das vezes,nesse lugar instituído e de modo subordinadoàs regras do jogo. Vemos centenas de secretáriosmunicipais pedirem mais verbas, mas não osvemos propondo novos arranjos que possampermitir novos campos de intervenções nessecenário. Instiga-me pensar que dos milhares demunicípios brasileiros só uma centena tem redede serviços instalada, para dar conta de todos osníveis tecnológicos de ação, na saúde, e como osseus gestores não usam desse poder para criarnovos mecanismos institucionais que lhes per-mitam negociar outros papéis dentro do siste-ma. Assumem o seu limite instituído e abremmão de novas possibilidades de alterarem as re-gras do jogo, à semelhança da conclusão finalda autora que diz que praticamente o arcabou-ço institucional desenhado é este que está aí, eo certo é operá-lo.

De fato, não creio nisso. O que está instituí-do hoje não serve para outros tipos de açõesque não esse da subordinação que apontei, eisso se repete se olharmos para outras dimen-sões do debate, como o tipo de desenho que épossível para a construção das práticas de saú-de no nível local. Entendo que um nível federalque controla a média e alta tecnologia e um lo-cal que opera através da rede básica não é omelhor desenho de um modelo gerencial paraconstruir uma assistência adequada aos princí-pios da universalidade e eqüidade, para produ-zir modelos centrados nos usuários. O instituí-do obedece a certas regras do jogo e não admi-te outras. Por isso, vejo sob o mesmo ponto devista o debate em torno da construção do Pro-grama de Saúde da Família, que não entendodo jeito que o governo federal compreende ho-je, como um novo modelo assistencial, neces-

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sariamente contrário ao médico hegemônico.E, por tipos de argumentos, procuro indicarpossibilidades de dialogar com a autora, ques-tionando-a em torno de sua tese central: seráque o arcabouço institucional construído parao SUS nesses anos está praticamente bem enca-minhado na direção de uma política mais efi-ciente, universal e equânime?

Avançando na gestão descentralizada do Sistema Único de Saúde: a busca do federalismo cooperativoTowards decentralized management of the Brazilian health system: searching for a cooperative federalism

Francisco Carlos Cardoso de Campos 1

Maria Helena de Carvalho Brandão 1

Introdução

O artigo da professora Marta Arretche, que noscoube comentar, representa mais uma contri-buição dessa pesquisadora no entendimento docomplexo federalismo brasileiro. A sua extra-ção externa ao setor saúde, advinda do campoda ciência política, e sua relativamente recenteaproximação a esse “subsistema de políticas” ain-da lhe permitem um certo “olhar distanciado”,uma visão mais isenta dos movimentos nessaarena política tão ideologizada e conflitiva. Suareflexão instiga a tentação de se tecer comentá-rios a cada parágrafo, pela abrangência e pro-fundidade que alcançou em sua análise. No re-servado espaço dessas notas, limitamo-nos, comcerto pesar, a focalizar apenas algumas das ques-tões que julgamos relevantes para o momentopolítico-institucional por que passa o sistema.

A descentralização do sistema de saúde:expectativas e limites

Os resultados do prolongado processo de des-centralização da gestão do sistema de saúde bra-sileiro, que se iniciou na década de 1980, mesmo

antes da definição de seu arcabouço legal coma Constituição Federal de 1988 e as leis federaisno 8.080 e 8.142, ainda no bojo das Ações Inte-gradas de Saúde (AIS), aguardam um balançoaprofundado e definitivo, pautado em avalia-ções empíricas mais isentas, como nos alertaMarta Arretche, não diferindo, nesse ponto, dasexperiências dos demais arranjos descentrali-zados de políticas públicas implementados emoutros países. No nosso caso, observa-se umaclara contaminação das avaliações pelos varia-dos vieses ideológicos e posicionamentos polí-ticos dos autores que pretenderam envidar esseesforço avaliativo. A elevada conflitividade da“arena de políticas” que o SUS representa tal-vez possa explicar essa dificuldade analítica. Ase aceitar a categorização proposta por Theo-dore J. Lowy (1964), o sistema de saúde brasi-leiro pode ser classificado como uma arena ti-picamente “redistributiva”, a mais conflitiva detodas. Esse autor propõe a existência de “arenasde políticas”, delimitadas pelos impactos de seuscustos e dos benefícios que os grupos de interes-se esperam de sua implementação e as classificaem quatro categorias: 1) as políticas regulató-rias, formadas por normas e cuja coerção se exer-ce de forma direta e imediata sobre o comporta-mento individual; 2) as políticas distributivas,que consistem na repartição dos recursos me-diante sua desagregação em pequenas unidadesindependentes umas das outras e livres de todaregra general; 3) as políticas redistributivas, queimplicam o estabelecimento de critérios por partedo setor público, dando acesso a vantagens que seoutorgam não a sujeitos específicos, mas a classesde casos ou de sujeitos, sendo a “arena mais con-flitiva de todas”; 4) as políticas constitutivas,que traduzem em definições, por parte do poderpúblico, das regras do jogo em geral, podendo sig-nificar reformas constitucionais, institucionais ouadministrativas, apresentando um elevado graude conflito (idem).

As elevadas expectativas suscitadas pela des-centralização das políticas públicas no contextoda redemocratização do país alçaram-na a ver-dadeira consigna política, como historia MariaHermínia Tavares de Almeida (1995), pois setratava de desmontar e reconstruir as estrutu-ras centralizadas do regime autoritário ante-rior. O processo da Reforma Sanitária brasilei-ra não ficou infenso a esse influxo e elegeu adescentralização do sistema de saúde como umprincípio organizativo, conseguindo mesmo in-seri-lo com uma diretriz constitucional. O aler-ta da professora Marta Arretche quanto aos efei-1 DDGA/SAS/MS.

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por uma delas; a “resolução de problemas”, im-plicando interesses comuns, uma relativa abertu-ra ao intercâmbio de informação e a busca e sele-ção de alternativas que beneficiem a todas aspartes; a “gestão cooperativa”, que supõe algumaforma de acordo, que vai desde os informais atéconvênios formalizados por escrito e, finalmente,o “desenvolvimento das capacidades de cada ní-vel de governo”, que lhes permite adquirir as ha-bilidades de prever e influir nas mudanças, paratomar decisões bem fundamentadas, atrair, ab-sorver e gerir recursos e também para avaliar asatividades com vistas a adquirir referências paraações futuras.

Toda essa argumentação conflita com con-cepções bastante presentes no discurso de mem-bros da “rede de assunto” que permanentementediscutem o financiamento do SUS, que aspirampor um modelo de transferências globais semqualquer condicionamento, chegando alguns apropor o repasse da totalidade dos recursos pe-lo critério populacional, pura e simplesmente.

A experiência das transferências de recur-sos para cobertura das ações e serviços de Aten-ção Básica calculados sobre um valor per capitanacional (o Piso de Atenção Básica), emboravinculado a compromissos formais de execuçãode um rol de ações pactuado, demonstrou serum mecanismo indutor frágil das práticas desaúde coletiva, como sugerem avaliações realiza-das pelo Ministério da Saúde (dados não publi-cados). A debilidade dos mecanismos de acom-panhamento e controle sobre a utilização ade-quada daqueles recursos, bem como a inexis-tência de dispositivos que garantam a responsa-bilização dos gestores, resultou muitas vezes nonão cumprimento dos compromissos assumi-dos. A constatação dessas debilidades reforça asposições expressas pela autora, para quem nãoseria suficiente confiar que os incentivos à gestãoresponsável dos governos possam advir exclusiva-mente da ameaça de punição dos eleitores.

Por outro lado, há que se reconhecer os re-sultados positivos possibilitados pelas transfe-rências fundo a fundo do PAB fixo que, de for-ma pioneira, aportou recursos significativos pa-ra a quase totalidade dos municípios desenvol-verem ações de Atenção Básica (exceção de ape-nas 22 municípios ainda não habilitados emnenhuma forma de gestão), induzindo a estru-turação dos órgãos gestores municipais, bemcomo o exercício pleno de suas capacidades degestão sobre esses recursos.

Os citados questionamentos acerca da com-petência do nível federal em estabelecer meca-

tos adversos e as limitações dos processos dedescentralização, expresso em diversas publica-ções, além desta que comentamos, induz a umareflexão mais equilibrada sobre esse extensomovimento. A sua crítica ao automatismo entrea gestão descentralizada e o alcance de níveissuperiores de responsabilidade, acesso e eqüi-dade, e a sua vigorosa defesa de arranjos insti-tucionais adequados à indução de boas práti-cas de gestão, através de incentivos e controlespelos demais níveis de gestão, introduz uma vi-são diferenciada do discurso usual de uma re-levante parcela dos atores da arena setorial.

Indução, resistências e curtos-circuitosna rede intergovernamental

A necessidade e a adoção de incentivos que pro-movam a indução de boas práticas de gestãopelos níveis subnacionais, defendida pela auto-ra, são interpretadas, muitas vezes, por deter-minados atores constitutivos dessa arena, co-mo uma tendência recentralizadora promovidapelo Ministério da Saúde. Por outro lado, reco-nhece-se que a excessiva decomposição dos re-cursos do custeio do sistema em incentivos fi-nanceiros com destinação específica resultanuma exagerada complexidade do modelo definanciamento, dificultando até mesmo sua com-preensão pelos atores. A simplificação do mo-delo de financiamento, com a unificação de in-centivos para áreas mais abrangentes, talvez se-ja uma questão a ser inserida na agenda de ne-gociação intergestores num futuro próximo. Re-forçando a linha de raciocínio apresentada porArretche, aduzimos a contribuição de RobertAgranoff (1989) que relaciona entre os mecanis-mos de gestão intergovernamental, verificadaem outros sistemas de políticas, a “administra-ção de subvenções”, dentre outros mecanismos.

A gestão intergovernamental das políticaspúblicas pressupõe a utilização de diversos me-canismos ou técnicas de gestão. Muniz (1997)enumera várias de tais técnicas dentre as arrola-das por Agranoff (1989): a “regulação”, bem co-mo “alterações das rotinas intergovernamentais”,com a intenção de determinar o comportamentodas outras unidades de governo; a “administraçãode subvenções”, tanto por parte de quem as rece-be como de quem as concede, com o fim de cana-lizá-las para seus interesses; a “negociação” me-diante mecanismos mais ou menos formais desdeum enfoque, em que se concebem como perdaspara as demais partes os benefícios alcançados

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nismos indutores de políticas, e do condiciona-mento de transferências a compromissos bemestabelecidos por parte dos gestores, demons-tram a permanência de disputas quanto aos li-mites das competências e atribuições dos trêsníveis de governo, caracterizando ainda uma fa-se conflitiva nas relações intergovernamentaisno setor, típica da transição de um modelo cen-tralizado para um modelo descentralizado, ain-da em construção. Essa tensão permanente pa-rece indicar que, apesar da crescente consolida-ção dos mecanismos institucionais construídosno período, a Reforma Sanitária Brasileira apre-senta-se como um processo ainda inconcluso.Temos, no entanto, de concordar com MartaArretche, se passarmos a considerar essas mu-danças nos mecanismos institucionais mera-mente tópicas, sem ameaçar os fundamentos doparadigma de política pública representado pe-lo SUS, considerada aqui uma abrangente polí-tica de bem-estar social, elaborada e implemen-tada num contexto totalmente adverso, quan-do a maioria dos países se voltava para reformasinspiradas em propostas liberalizantes e “deses-tatizantes”.

A norma operacional da assistência e a busca de relações cooperativas entre os gestores

Se a descentralização da gestão do sistema im-plicou uma crescente participação relativa dosmunicípios na oferta dos serviços ambulatoriaise hospitalares, bem como um significativo in-cremento na participação dos recursos federaissobre o seu comando (como bem documenta aprofessora Arretche em seu artigo), esse movi-mento trouxe para a arena setorial um enormecontingente de novos atores. Atuando comoagentes, muitos deles tendem a buscar maximi-zar seus benefícios, inclusive eleitorais, desvi-ando-se muitas vezes dos objetivos gerais dosistema e ameaçando a necessária solidarieda-de com os demais gestores municipais. Apesarde sua elevada potência em promover a descen-tralização rápida da gestão do sistema, os dis-positivos normativos representados pelas Nor-mas Operacionais de 1993 e 1996, ao ampliar aautonomia local sem garantir instrumentos efi-cazes para a coordenação regional das políticaspor parte dos estados federados, possibilitarama intensificação do conflito redistributivo ine-rente ao sistema de relações intergovernamen-tais representado pelo SUS. As contradições

existentes entre municípios menores, despos-suídos de estruturas assistenciais completas, eaqueles com estruturas mais completas (pólosde referência) se ampliaram de forma crescente,a ponto de comprometer, em muitos casos, asnecessárias relações de cooperação, redundandoem perigoso risco de fragmentação do sistema.

A revisão desses dispositivos, através dasNormas Operacionais da Assistência à Saúde(NOAS SUS 01/01 e NOAS SUS 01/02) foi, emgrande parte, motivada pela tentativa de supe-ração dos conflitos intergestores, que passarama representar em dado momento, e ainda nãopodem se considerar plenamente equaciona-dos, barreiras ao acesso dos usuários do sistemaà totalidade dos serviços existentes nas suas re-giões. O esforço de regionalização do sistema,com o desenho de redes funcionais hierarquiza-das, perpassou ambas as normas, representan-do um mecanismo negociado de garantia deacesso a todos, através da indução de práticassolidárias entre os gestores públicos.

Análises preliminares dos Planos Diretoresde Regionalização (PDR), Planos Diretores deInvestimentos (PDI), e das Programações Pac-tuadas e Integradas (PPI) – instrumentos opera-cionais instituídos pelas NOAS – têm demons-trado avanços importantes na aproximação dosserviços aos cidadãos, condição inicial para sefalar em garantia de acesso e busca de eqüidade.Estudos mais aprofundados já se encontram emandamento e, esperamos, possam comprovarcategoricamente essa tendência redistributivista.

Em seu artigo, Arretche apresenta algunsdados sobre a evolução da produção ambulato-rial, consultas básicas, visitas domiciliares, ser-viços de alta complexidade e gastos com AIHs eSIA, entre os anos de 1997 e 1999. Embora ad-mita um crescimento da oferta de alguns dessesblocos de serviços e dos gastos, conclui, atravésda verificação dos desvios padrão, que aumen-taram no período, que teria havido uma maiorconcentração dos gastos e serviços entre os mu-nicípios. Seria mais adequado concluir, a nossoentender, apenas que tenha se verificado umalargamento da faixa de variabilidade dos valo-res per capita analisados. Ao se efetuar o cálculodos Índices de Gini para a totalidade dos recur-sos federais transferidos a todos os municípiosbrasileiros, para um período semelhante, pode-se chegar a conclusão exatamente oposta: a deque houve, de fato, uma redistribuição, emboratímida, mas com uma tendência inequívoca dedesconcentração dos recursos. Isso pode ser ve-rificado na figura 1.

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no mínimo equivocadas, expressas por algunsatores, de que o custeio da assistência à saúdeseria uma atribuição exclusiva do nível federal.

O desenho institucional do SUS: inovação e debilidades

A grande inovação que a “engenharia institu-cional” do SUS traz para o conjunto das políti-cas públicas é o formato que adquire o proces-so de negociação das diretrizes e mecanismosda descentralização. As Comissões Intergesto-res (Comissão Intergestores Tripartite, no nívelfederal; e Comissões Intergestores Bipartite, noâmbito estadual), introduzidas pela NOB/93,constituem importantes dispositivos de trata-mento e resolução dos conflitos inerentes aosistema de relações intergovernamentais, im-pedindo muitas vezes que esses conflitos extra-polassem os limites do campo setorial para osoutros espaços de resolução de conflitos do sis-tema político, como o Poder Legislativo e o Ju-diciário, aliviando as suas já sobrecarregadasagendas. Contribuiu, também, sobremaneira,para reduzir os espaços de poder discricionáriode cada nível de gestão, realidade com a qualmuitos atores não se conformam e tentam con-tinuamente subverter, utilizando-se de estraté-gias as mais variadas. A negociação, como re-gra básica da convivência e da construção soli-dária da gestão do sistema de saúde, passou a

Uma questão ausente no artigo de Arretche,mas que tem freqüentado a agenda intergover-namental, é a limitação da discussão dos recur-sos de financiamento aos recursos federais. Pa-ra a autora, a “concentração das funções de fi-nanciamento” no nível federal torna os gover-nos locais fortemente dependentes das transfe-rências do Ministério da Saúde. Cabe ponderarque a participação relativa dos demais níveis degoverno no financiamento de custeio tem cres-cido, como demonstram diversos estudos. Res-salte-se a crescente participação relativa dosmunicípios no financiamento do sistema veri-ficada nos últimos anos, que lamentavelmentenão tem sido, em geral, acompanhada de maiorparticipação dos estados. A edição da EmendaConstitucional n. 29, que vincula receitas orça-mentárias para a saúde, não tem sido rigorosa-mente respeitada por alguns estados, com ar-gumentações diversas, como a da não regula-mentação da Emenda.

No entanto, o conhecimento dos montan-tes disponíveis para o custeio e investimentono sistema, e a instituição de mecanismos dediscussão tripartite da destinação da totalidadedos recursos SUS, e não apenas dos montantestransferidos pelo nível federal, representariaum enorme salto qualitativo na relação inter-gestores. Tentativas empreendidas até o presen-te, no sentido de buscar a uniformização dasaberturas orçamentárias dos três níveis, têm si-do infrutíferas e dificultadas por concepções,

Figura 1Evolução do índice de Gini para as transferências federais para os municípios brasileiros, 1997-2001.

0,0000

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20012000199919981997 Ano

Índi

ce d

e G

ini

0,01742

0,022510,02275 0,02265

0,03929y = 0,0044x - 8,7464R2 = 0,6915

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ser um pressuposto da relação entre os níveis degoverno, até mesmo na elaboração das normasque regem essas mesmas relações.

Cabe aqui pontuar uma questão que consti-tui, a nosso ver, um fator limitante da eficácia doprocesso de negociação intergestores: a debilida-de da representação municipal nos fóruns inter-gestores. Tanto o governo federal quanto os esta-dos conseguem demarcar e unificar claramentesuas posições. Os gestores estaduais sistematica-mente se reúnem em assembléia para analisar aspautas da CIT. O relativamente reduzido númerode estados e, portanto, de interlocutores, facilita epossibilita a tomada conjunta de posições e umaintervenção mais coerente nesse fórum. Já os mu-nicípios, embora absolutamente majoritários nu-mericamente, tanto pelas suas contradições in-ternas quanto pela óbvia dificuldade de comuni-cação e articulação entre os milhares de secretá-rios municipais, tendem a apresentar uma repre-sentação menos uniforme. Essa debilidade estru-tural da representação municipal nas instânciasintergestoras somente pode ser superada por umgrande esforço de desenvolvimento e integraçãodas redes intergovernamentais no âmbito dos es-tados, como defende Campos (2001), um dos au-tores desses comentários, em artigo anterior.

Quanto à relação dos gestores com os presta-dores de serviço – públicos e privados –, não só aNorma Operacional da Assistência à Saúde – SUS01/01 (NOB 01/01), mas também a sua revisãomais recente (NOAS 01/02) estabeleceram forte-mente o princípio da unificação do comando so-bre os prestadores, ao contrário do que sugere aautora: embora esteja em curso uma mudança naconcepção de qual nível de governo deva ter autori-dade para regular quais tipos de provedores, per-manece a concepção de que o Estado deve ter auto-ridade para regular os prestadores de serviço (Ar-retche, 2002).

As “partilhas de gestão” entre os municípios eos estados foram possibilitadas pela NOB/96,que, embora reservando o comando único aosmunicípios na condição de Gestão Plena do Sis-tema, permitiu, nas suas disposições transitórias,que qualquer pacto acordado nas CIBs prevalece-ria sobre os dispositivos da própria norma. Essaabertura engendrou verdadeiras aberrações narelação com os prestadores de serviços, observan-do-se divisões de comando entre estados e muni-cípios (e fontes de pagamento diferentes, conse-qüentemente) para uma mesma entidade. Osprestadores submetidos a duplo comando, naverdade, tendem a não se submeter a comandoalgum, ou talvez, passem mesmo a manipular

quem lhes cabe regular.A idéia, portanto, de que a NOAS se orienta

pela ampliação da noção da Atenção Básica pelaqual os municípios seriam responsáveis, e reservan-do à União e aos estados a gestão da média e altacomplexidade, como sustenta Barros (2001), nãoresiste, de nenhuma forma, a uma leitura maiscuidadosa da própria norma. Mesmo aNOAS/2002 não define essa partição de gestão darede por nível de complexidade, muito pelo con-trário: o comando único passa a ser exercido pe-los municípios em condição de gestão Plena doSistema e, em caso de acordo na CIB, pelos esta-dos. Nunca, porém, o comando sobre os presta-dores fica dividido, como permitido nas normasanteriores.

Conclusão

O SUS tem demonstrado um amadurecimentodas práticas de negociação entre os gestores dostrês níveis de governo e o aperfeiçoamento con-tínuo dos dispositivos institucionais que possibili-tam a gestão cooperativa do sistema. No entanto,resta muito a ser feito e desenvolvido, principal-mente na simplificação dos mecanismos de finan-ciamento e melhoria dos mecanismos de controlee regulação das relações intergestores e das rela-ções dos gestores com os prestadores de serviçosde saúde. Mesmo se reconhecendo a legitimidadee oportunidade do estabelecimento de mecanis-mos de condicionamentos mínimos que induzamboas práticas de gestão e a execução de ações desaúde de forma uniforme em todo o território na-cional, essas questões devem freqüentar a agendados dirigentes do SUS no futuro próximo. A sim-plificação dos mecanismos de financiamento,bem como a consolidação dos seus diversos com-ponentes de custeio atualmente observados, apre-senta-se como um desafio a ser enfrentado no fu-turo próximo, sob pena de sobrecarregar os gesto-res com os inúmeros procedimentos administra-tivos que lhes correspondem.

A elevada conflitividade da arena de políticasdo setor dificulta o estabelecimento de relaçõesmais cooperativas entre os três níveis de governoe, mesmo entre gestores municipais e estaduaisque disputam por recursos e ampliação de seusbenefícios. Os recursos financeiros envolvidos nasnegociações têm se restringido àqueles arrecada-dos e transferidos pelo nível federal, não envol-vendo a totalidade dos recursos do SUS, restrin-gindo-se a transparência dos montantes envolvi-dos no financiamento solidário do sistema, con-

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Equilíbrio e ousadia: desafios atuais à gestão do SUSBalance and daring: current challenges to the management of SUS

Alcindo Antônio Ferla 1

Maria Luiza Jaeger 2

Comentar o artigo escrito por Marta Arretche éum exercício prazeroso, não somente por seurigor e consistência, senão também pela opor-tunidade da reflexão que coloca em circulação.A descentralização da gestão de políticas so-ciais, que vem amalgamando expectativa de tão“virtuosos” resultados, conforme registra a au-tora, vem demandando, igualmente, renovadasreflexões. A avaliação contínua e sistemática deresultados e condições de efetividade dos pro-cessos de mudança pode oferecer condiçõesadequadas para fomentar tais reflexões.

Dos possíveis recortes para o difícil exercí-cio de comentar a robusta reflexão apresentada,optamos por escolher algumas questões, segu-ramente marcadas pela recente experiência nagestão estadual do Rio Grande do Sul.

A primeira questão, recortada das conside-rações iniciais do artigo, refere-se à implemen-tação do processo de reformas do setor saúde.Se é verdadeiro o fato de que há um resultadoinstitucional, um arcabouço legal e um conjun-to de iniciativas que constituem concretude aoideário da reforma, será verdadeiro tambémque a reforma do setor saúde já aconteceu? Bas-tará visualizar alguns fluxos descentralizadorese/ou desconcentradores da instância federal degestão e a existência de estruturas institucionaispara compartilhamento da gestão de políticaspara constatar a implementação da reforma dosetor saúde?

Na nossa experiência de gestão e de reflexãosobre as políticas de saúde, temos alimentado aconvicção de que há outro plano de avaliaçãoque precisa ser considerado para fortalecer essaafirmação: as práticas institucionais, a operaçãoconcreta de fluxos e instrumentos da gestãodescentralizada, particularmente pelas esferasestaduais e pela federal. Nesse plano de reflexão,nossa experiência reencontra uma das conclu-sões do artigo, de que o desafio atual “consiste

dição fundamental para a sua gestão cooperativae a busca da desejada justiça distributiva.

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1 Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde. [email protected] 2 [email protected]

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mais em amadurecer a utilização dessa estrutu-ra institucional [criada no processo de reforma]e menos em redesenhá-la”. Ainda há o que fa-zer, e muito, para efetivar/tornar concreta a re-forma do setor saúde.

Mantendo apenas a “atividade e a responsa-bilidade de dirigir um sistema de saúde” comoo eixo da reflexão, segundo a definição de ges-tão que está registrada na NOB/96, é inegávelque há mais do que resquícios autoritários ecentralizadores na condução das políticas desaúde nas esferas estaduais e, principalmente,na federal. Não nos parece ser exatamente sufi-ciente avaliar a implementação de normas fede-rais para dimensionar a extensão da descentra-lização, se esta for entendida como um processode mudanças institucionais e reordenamentodos modos de relação entre as três esferas degoverno, com uma direcionalidade marcada pe-la idéia de horizontalidade. O volume de nor-mas federais, publicadas com uma velocidade euma regularidade de impressionar até mesmoas próprias estruturas federais de gestão da saú-de, por si, já mostra o limite dessa vertente ava-liativa. Mais do que alocar à idéia da descentra-lização uma marca contraditória, as normas in-fraconstitucionais têm criado, por vezes, ten-dências fortemente centralizadoras.

Tomando as disposições constitucionais co-mo um marco fundamental do processo de re-formas, é inegável perceber que os sucessivosrecortes de caráter predominantemente buro-crático produzidos pelos instrumentos norma-tivos federais para a definição de responsabili-dades e prerrogativas dos estados e municípiosnão vêm mostrando uma tendência compatívelcom as disposições da Carta Magna. A dimen-são processual de implementação da reforma,por vezes, tem sido submetida a retrocessos im-portantes (Carvalho, 2001). Fazendo alusão àsconclusões da autora, nos últimos anos, o pro-cesso de reforma tem sido mais marcado porsucessivas tentativas de redesenho dos meca-nismos institucionais e fluxos de gestão do quepropriamente pelo seu amadurecimento. Pareceestar havendo uma tentativa de tutela do proces-so de descentralização da gestão, pasteurizan-do-a a uma simples operação desconcentradade procedimentos e fluxos, inclusive no que serefere ao financiamento.

Por outro lado, também os outros dois pila-res da tríade de diretrizes constitucionais, indis-sociáveis no ideário da reforma, têm sido ate-nuados. Participação da população e integrali-dade da atenção têm sido objeto de negligência

não somente na esfera municipal, mas particu-larmente entre os estados e a União.

Julgamos ser indispensável considerar umcontexto mais amplo na análise dos mecanis-mos e fluxos da descentralização, já que a inten-cionalidade desse processo, como bem relem-bra a autora, já tem forte registro, inclusive naConstituição e na legislação complementar. Agestão do SUS, segundo as disposições legais,deve ter como objetivo principal a garantia doacesso equânime e universal às ações e serviçosque proporcionem a atenção integral à saúde.Ora, sendo a integralidade da atenção um con-ceito que deve estar associado à vida das pesso-as, seguramente é na dimensão local, com confi-gurações tão heterogêneas quanto é a realidade,que tem melhores condições de ser auferida eplanejada, devendo, portanto, ser expressa comparticular intensidade no âmbito municipal(Righi, 2002). Seguramente partiu dessa pre-missa a disposição constitucional de que os es-tados e a União caracterizem sua atuação comode cooperação técnica e financeira com os mu-nicípios.

Conforme afirmam diversos autores, entreos quais Carvalho (1997), a remodelação insti-tucional proposta de forma inovadora no pro-cesso de reforma tem por objetivo tornar o Es-tado capaz de implementar os princípios finalís-ticos da Reforma Sanitária, como a universalida-de, a eqüidade, a integralidade, expressivos do di-reito à saúde como um direito de cidadania. Se-gundo o autor o núcleo de idéias-força do pen-samento reformador prescrevia que o Estado de-veria ser aproximado da sociedade usuária epermeabilizado a suas demandas. As diretrizesconstitucionais de participação da comunidadee de descentralização, com direção única em ca-da esfera de governo (CF, Art. 198, I e III), como objetivo de fortalecer a expressão e a legiti-midade política das demandas da população epara aproximar dela a decisão sobre a aplicaçãode recursos e a execução de prioridades, são, naverdade, as idéias inovadoras fundamentais parao sistema de saúde tal como definido pela Cons-tituição e pleiteado pela Reforma Sanitária.

Vistos dessa perspectiva, os problemas rela-tivos ao equilíbrio entre regulação, responsabi-lidade e autonomia das instâncias municipaisnão podem ser identificados apenas pelo com-ponente local: a permeabilidade ou não do mu-nicípio ao controle social; o nível de eficáciaque demandas corporativas têm sobre as ins-tâncias locais; a capacidade criativa para a pro-posição de soluções adequadas aos problemas

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no interior do aparato desenhado nesse proces-so. Trata-se de analisar o contexto onde se de-senvolveram as inúmeras experiências exitosas,mesmo em meio às adversidades já rapidamen-te referidas. Essa emergência, por si só, mostra apotência do processo de reformas.

Nesse plano de análise, não há como des-considerar o fato de que, na sua maioria, essasexperiências estão localizadas nos municípios,o que nos mostra o risco de analisar os limites eproblemas do processo de descentralização ape-nas pela sua aparência local.

Nas análises que temos produzido acerca danossa experiência na gestão estadual do RioGrande do Sul no período de 1999 a 2002, queprocurou fortalecer mecanismos, instrumentose fluxos já configurados no processo de refor-ma da saúde, invariavelmente temos identifica-do evidências que reforçam a conclusão de queo território a ser “inventado” é, na realidade, deestratégias de aprofundamento dos mecanis-mos institucionais e do arcabouço legal que jáestão desenhados. O desafio é, todavia, vencera cultura instituída, que reforça a sedução doscontroles burocráticos, da indução administra-tiva, da gestão fragmentada e a subordinação daparticipação da população à formalidade dosrituais tecnocráticos. Dos diversos projetos im-plementados durante nosso período à frente dagestão estadual da Secretaria da Saúde do Esta-do do Rio Grande do Sul (SES/RS), que já fo-ram objeto de diversas análises (Ferla & Mar-tins Jr., 2001; Ferla, Jaeger & Pelegrini, 2002;Ferla & cols., 2002), queremos rapidamentedestacar um dos primeiros a serem implemen-tados – a Municipalização Solidária da Saúde –,que se caracterizou pela cooperação técnica efinanceira da SES/RS, principalmente por meiodas instâncias de gestão regional, com os mu-nicípios. Recursos financeiros estaduais foramrepassados a todos os municípios habilitados,independentemente da modalidade formal desua habilitação, fundo a fundo, sem qualquerdefinição prévia de sua utilização por parte dagestão estadual, para serem utilizados em pro-jetos e atividades definidas pelo gestor munici-pal e aprovadas pelo respectivo Conselho deSaúde, tendo como instrumento de prestaçãode contas o Relatório de Gestão. Os valores re-passados a cada município foram o resultadoda aplicação de critérios técnicos, horizontaisao conjunto dos 497 municípios existentes. Aampliação (real) da autonomia do municípiofoi acompanhada, na grande maioria deles, pelofortalecimento da participação da população e

configurados em cada realidade; a maior oumenor resistência dos governos locais em im-plantar as normas verticais emanadas da gestãoestadual e/ou federal; a capacidade ou não dosgovernos locais em utilizar os recursos em prolda população e de acordo com os princípios es-tabelecidos pela legislação; todos esses proble-mas têm equivalência nas esferas estaduais e fe-deral. Não é razoável, por exemplo, colocar emquestão a efetividade do processo de descentra-lização por decorrência da constatação de quealguns municípios são refratários ao controlesocial, dado que essa não é uma característicaexclusiva dos municípios e, mais do que isso, aspolíticas estaduais e federais têm feito muitopouco para fortalecer a rede de controle socialno país. Mesmo que se tenha de considerar al-gumas estratégias de capacitação de conselhei-ros e a definição formal de que alguns fluxosburocráticos para habilitação de estados e mu-nicípios devam ser aprovados pelos respectivosConselhos de Saúde, há um descompasso im-portante entre o rigor que as normas ministe-riais estabelecem para esse fluxo em compara-ção com outros rituais administrativos e buro-cráticos. Avaliações similares poderiam ser fei-tas com cada um dos aspectos citados.

Portanto, a constatação de que há proble-mas na regulação, responsabilidade e autono-mia nas instâncias locais, no nosso entendi-mento, gera duas evidências e ambas dizem res-peito diretamente à responsabilidade das esfe-ras estaduais e federal no contexto do processode descentralização: a expressão de uma culturapatrimonialista e tutelada de gestão pública e aincapacidade de gerar, de fomentar processosdescentralizadores por parte da União e dos es-tados. Se é verdade que há muito o que apren-der na operação de instrumentos e fluxos degestão descentralizada, também é verdade que,antes e na mesma medida, há muito o que de-saprender de gestão centralizada e burocrática,ainda visível, principalmente nas práticas dagestão estadual e federal. Novamente, nossa re-flexão reencontra a conclusão já referida do ar-tigo que está sendo comentado.

Dessa forma, mais do que identificar com-ponentes equivalentes na gestão estadual e fe-deral para os problemas verificados na gestãolocal, vai sendo aberto outro campo de possibi-lidades para analisar as condições de efetivida-de da gestão descentralizada e do processo dereformas que, no nosso entendimento, aindaestá em plena efervescência, particularmenteno seu componente de práticas institucionais

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de impactos positivos na organização dos res-pectivos sistemas municipais de saúde. O cru-zamento dos fluxos de acompanhamento e con-trole com outras estruturas e fluxos de partici-pação, como o Orçamento Participativo Esta-dual, suscitou movimentos de tornar públicasas insuficiências no funcionamento dos siste-mas de saúde e, particularmente, nos mecanis-mos de gestão, inclusive da gestão estadual, deforma potente para inserir a solução dos pro-blemas identificados nas agendas dos principaisatores envolvidos. Esse efeito, que é obtido mui-to raramente quando são utilizados os aindacomuns mecanismos burocráticos ou excessi-vamente formais de acompanhamento, tal qualreiteradamente “reinventados” nas sucessivasportarias ministeriais, confirma, novamente, aprincipal conclusão da autora.

Ou seja, se ainda há um caminho a ser per-corrido relativamente ao desenvolvimento demetodologias adequadas para avaliação das po-líticas sociais com gestão descentralizada, pro-cesso que o artigo apresentado fortalece comrigor e qualidade, é indiscutível que já existemexperiências que podem auxiliar nesse intentoe, da mesma forma, os problemas identificadosnas sucessivas aproximações feitas ao tema nãopermitem concluir que a estrutura institucio-nal e os mecanismos e fluxos que derivaram doatual estágio do processo de reformas na saúdeprecisam ser redesenhados. É preciso amadure-cer particularmente o componente das práticasno seu interior, conforme se afirmou.

Talvez devêssemos, sem receio de revisitar opassado, afirmar que a ousadia ainda é cumprira lei. Antes que as análises, correntes em nossomeio, que procuram evidências para o redese-nho dos impactos institucionais do processo dereformas, consigam gerar consensos discursivossuficientemente fortes para fazê-lo.

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Marta Arretche

Financiamento federal e gestão local de políticas sociais: o difícil equilíbrioentre regulação, responsabilidade e autonomia

Só tenho a agradecer a Patrícia Lucchese e aoseditores da revista Ciência e Saúde Coletiva pelaoportunidade de escrever este artigo, bem co-mo aos debatedores, profundos conhecedoresda política de saúde no Brasil, pela densidade eprofundidade dos comentários apresentados.

Será impossível nesta réplica responder atodos os comentários. Não apenas pelas limita-ções de espaço e tempo, mas também porqueme falta competência para fazê-lo com relaçãoa diversas das questões levantadas. Prefiro, as-sim, me concentrar em duas questões que meparecem centrais, seja em minha argumentação,seja nas críticas feitas pelos comentaristas. Estasdizem respeito à afirmação de que a reforma dasaúde já se completou e de que, para atingir osobjetivos da política nacional de saúde, trata-semenos de redesenhar a engenharia institucionaldo SUS e mais de aprofundar sua utilização.

Inicio pela distinção entre reforma e meca-nismos regulares de gestão de uma política pú-blica. Minha avaliação, de fato, toma como cri-tério o cumprimento de requisitos de naturezaformal, referentes à aprovação de uma legisla-ção reformadora e sua efetiva implementação.

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A reforma do setor elétrico, por exemplo, seconcluiu com a aprovação parlamentar das pri-vatizações e com a venda efetiva das respectivasestatais. O fato de que tenhamos sofrido umabrutal crise de energia não significa que a refor-ma não ocorreu. Significa que, tendo ocorrido,não foi capaz de cumprir suas promessas.

Portanto, concordo inteiramente com osargumentos de que a política de saúde mudou,mas “práticas institucionais conservadoras” per-manecem, assim como “a participação da popu-lação e integralidade da atenção têm sido negli-genciados”. E concordo inteiramente com os ar-gumentos referentes à vital necessidade de “umprocesso contínuo e permanente de avaliação,revisão e [eventualmente] correção de rota” doSUS, assim como que “ainda há o que fazer, emuito, para efetivar e tornar concreta[s]” suaspromessas. Penso apenas que avaliações dessanatureza – assim como outras tantas – e as me-didas necessárias para enfrentá-las fazem partedos mecanismos regulares de qualquer políticapública. Apenas para efeito de comparação, to-memos o sistema de saúde inglês. Avaliações erecomendações dessa ordem foram feitas comrelação ao NHS desde sua criação em 1948, combase no Plano Beveridge, até a reforma de seuparadigma de gestão em 1990, no governo That-cher. No entanto, é difícil afirmar que uma re-forma estivesse sendo implementada ao longodestes mais de 40 anos.

Concordo inteiramente com o argumentode que “instrumentos e a forma de operaciona-lização do desenho institucional podem alteraros objetivos iniciais de uma política”. Penso quetalvez eu não tenha sido suficientemente claracom relação a esse ponto, pois meu argumentose referiu ao critério para avaliar uma mudan-ça de paradigma e não, à estratégia adotada pa-ra efetivá-lo. Há estratégias de reforma – “revo-luções silenciosas” ou “reformas sem reforma”(Kirkman-Liff, 1997) – que, como resultado desucessivas e bem-sucedidas alterações nos me-canismos de gestão de uma política, acabampor alterar substantivamente a hierarquia deobjetivos de um modelo anterior. Penso mesmoque este fenômeno no Brasil ocorreu com rela-ção às políticas de habitação e saneamento nogoverno Fernando Henrique Cardoso. Mas nãotenho informações que me autorizem a avaliarque um fenômeno dessa natureza esteja emcurso no SUS.

Alguns comentaristas afirmam que há prá-ticas autoritárias e centralizadoras dos níveisfederal e estadual em relação aos governos lo-

cais e sugerem que essas práticas estariam emconflito (ou contradição) com os objetivos dareforma. Concordo com a primeira afirmação,mas discordo da segunda. O modelo de descen-tralização da saúde adotado no Brasil concentraautoridade no nível federal – isto é, no Minis-tério da Saúde – porque atribui a este último afunção de principal financiador da política na-cional, normatizador das regras nacionais e co-ordenador das relações intergovernamentais, oque, na prática, significa que pouco de norma-tização “resta” para os demais níveis. Combina-das ao processo centralizado de formação doEstado brasileiro – que historicamente concen-trou capacidades estatais no nível federal –, es-tas características do SUS fazem com que o Mi-nistério da Saúde seja simultaneamente a prin-cipal arena de formulação da política nacionalde saúde e o ator mais poderoso desta mesmaarena. A mesma assimetria de poder pode tam-bém se reproduzir no plano estadual. Assim, apossibilidade de práticas centralizadoras estáinscrita no próprio modelo; neste sentido, elasnão estão em contradição com o modo como oSUS foi construído.

Como resultado, as prioridades e o proces-so decisório da política nacional dependem emgrande parte da orientação que venha a contro-lar a pasta da Saúde. O governo Collor parece tersido até o momento o exemplo mais extremadode emprego dos instrumentos centralizadoresdo SUS para uma tentativa de reversão de seusobjetivos principais. A reação a esta tentativa –via NOB/93 e fortalecimento da CIT, por exem-plo –, na conjuntura favorável do governo Ita-mar Franco, institucionalizou direitos de par-ticipação política na política nacional de saú-de, instituindo arenas federativas para sua for-mulação – a CIT e as CIBs. Se é verdade que es-te não é “um jogo aberto”, em vista de todos osrecursos financeiros e institucionais de que dis-põe o Ministério da Saúde – e, em outra medi-da, também os governos estaduais –, é igual-mente verdade que ele é hoje menos fechado doque na “era Collor”, dada precisamente a bem-sucedida estratégia de institucionalização daparticipação dos governos locais no processodecisório. Entretanto, não há nenhuma garan-tia de que tentativas de reversão dos princípiosdo SUS não possam ocorrer no futuro, pois asorientações e as práticas do Ministério da Saú-de – e, por conseqüência, de todo o sistema –tendem e tenderão a variar de acordo com acoalizão política que estiver no poder no exe-cutivo federal.

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Na verdade, esta possibilidade não diz res-peito apenas à política de saúde, mas às demaispolíticas que envolvem relações intergoverna-mentais no Brasil. Não compartilho da visão –largamente difundida na literatura – de quenosso modelo de federalismo, tal como dese-nhado em 1988, dispersa autoridade política econstrange a capacidade de iniciativa do gover-no federal. Penso que essa avaliação minimizarecursos de poder do executivo federal, como orevelaram a aprovação da Lei de Responsabili-dade Fiscal, da Emenda Constitucional no 29/2000, do Fundef, para citar apenas alguns exem-plos. O que ocorre na área da saúde, entretanto,é que essa concentração de autoridade está tam-bém inscrita no próprio modelo de gestão dapolítica.

Passo ao argumento referente à “defesa” daestrutura institucional do SUS. Argumentei quepenso que esta foi instituída entre 1988 e 1993,período em que através da CF, da LOAS e daNOB/93 foram institucionalizados os princí-pios de formulação das regras do SUS. Procureidemonstrar ainda que os principais atores des-se processo decisório são os eleitores, os gover-nos locais, os governos estaduais e o Ministérioda Saúde. Distintas orientações com relação aoSUS se distribuem desigualmente entre essascategorias de atores e se expressam através dovoto, dos cargos no executivo e da representa-ção nos diversos conselhos. Procurei demons-trar ainda – e penso que não fui suficientemen-te clara a esse respeito – que estes distintos ato-res têm peso distinto na estrutura institucionaldo SUS, o que não necessariamente determina,mas condiciona tanto as decisões tomadas co-mo sua implementação.

Penso, assim, que os resultados eleitorais têmconseqüências, sim, sobre os rumos do SUS, namedida em que determinam quem controlará oscargos no executivo dos diversos níveis de go-verno. A estrutura do SUS e a natureza do pre-sidencialismo brasileiro – válida para qual-quer nível de governo – permitem a alavanca-gem da orientação política que controla essescargos, em detrimento das orientações de polí-tica não representadas no poder executivo. Emuma eventual situação de conflito, a orientaçãodo primeiro tende a prevalecer, dada a superio-ridade relativa dos recursos de poder do execu-tivo.

Não pretendi entretanto afirmar que nãoexiste nenhuma relação entre preferências par-tidárias, resultados eleitorais e as políticas efe-tivamente implementadas. Ao contrário, Edu-

ardo Marques e Renata Bichir (2002), ao exa-minar os investimentos da Secretaria de ViasPúblicas do Município de São Paulo, concluí-ram que a inclinação político-ideológica do pre-feito (...) torna previsível para os eleitores o enca-minhamento das políticas públicas a serem im-plementadas. Mais que isso, como bem chama-ram a atenção os comentaristas, experiênciasde gestão municipal e estadual confirmam umarelação entre orientação político-ideológica doexecutivo e suas políticas públicas. Entretanto,essa relação varia de acordo com as políticas,mais particularmente da autonomia decisóriado executivo local em cada política particular.Se esta é razoável na área de obras públicas, porexemplo, é bem mais reduzida na área da saúde,como concordamos todos.

Assim, na fase de implantação da reforma,os incentivos contidos nas sucessivas NOBs – is-to é, as regras do Ministério da Saúde – e o cál-culo dos potenciais benefícios eleitorais a seremobtidos com base na ampliação de serviços desaúde pesaram mais decisivamente do que a in-clinação político-ideológica dos prefeitos. Umavez implantada a reforma, a estrutura institucio-nal do SUS restringe a autonomia decisória dosgovernos locais, ao regulamentar com detalhe ascondições para a efetivação das transferências fe-derais, reduzindo assim a importância das prefe-rências político-ideológicas na gestão dessa po-lítica particular.

Pretendi argumentar, entretanto, que oseleitores têm instrumentos mais limitados doque os demais tipos de atores, seja para fiscali-zar a implementação da política, seja para in-fluir na formulação de suas regras de operação.Isso ocorre porque preferências e avaliaçõescom relação à política de saúde não são o únicocomponente da decisão do voto, porque o elei-tor médio tende a ser menos informado do queos “participantes ativos” com relação ao desem-penho de uma política e, finalmente, porque aparticipação episódica do voto é menos efetivado que a participação regular via representação.

Penso que – diferentemente das demais po-líticas sociais que envolvem relações intergo-vernamentais no Brasil – a política de saúde foia única em que o “jogo das regras” operou nosentido de institucionalizar – de direito e de fa-to – um sistema decisório que garante represen-tação e “voz” aos diferentes atores e interessesdiretamente envolvidos nesta política. Este sis-tema combina concentração de autoridade commecanismos de contrapeso a esta mesma con-centração de autoridade. Como observadora da

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política de saúde, constato que há majoritáriaaceitação das instâncias decisórias do SUS, em-bora haja um certo desapontamento quanto aseu modo de operação e divergência quanto aoconteúdo das decisões tomadas.

Ainda assim, considero justa a ressalva deque minha afirmação de que se trata mais deaprofundar e amadurecer o uso dos instrumentosexistentes e menos de redesenhar esta estrutura foiinconsistente, no sentido de que ela não podeser deduzida da argumentação que a antecede.Na verdade, minha afirmação decorre não ape-nas de um reconhecimento da superioridade daestrutura institucional do SUS, mas também dequestões de princípio.

Penso que não temos no Brasil uma tradi-ção de respeito pelas regras do jogo. Nossa his-tória política é abundante de exemplos de ade-são instrumental a princípios e instituições polí-ticas. Wanderley Guilherme Santos (1978) mos-tra a adesão instrumental ao liberalismo porparte de nossas elites políticas no Império e naPrimeira República, bem como o autoritarismoinstrumental do pensamento político da pri-meira metade do século 20. Ao analisar o golpede 64, Argelina Figueiredo (1993) demonstrouque todas as correntes políticas em disputa ti-nham uma visão instrumental da democracia,

isto é, cada ator considerava que as regras do jo-go só eram respeitáveis na medida em que per-mitissem alavancar os seus próprios objetivos.O reconhecimento mútuo dessa prática impli-cou a generalização da desconfiança e a impos-sibilidade de uma solução negociada para osconflitos. Assim, se os atores agem de modo areduzir a credibilidade nas regras instituídaspara solução de conflitos porque estas não con-duzem à realização de suas próprias preferên-cias, a própria possibilidade de uma solução ne-gociada de conflitos tende a ser inviabilizada amédio prazo.

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