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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. O “tango para pensar” de Astor Piazzolla e a crise argentina dos anos 50-60: o compositor como intelectual-crítico Avelino Romero Pereira Professor de História da Música da UNIRIO Mestre em História Social do Brasil pela UFRJ Doutor em História Social pela UFF Decepcionados, aún esperábamos algo de los hombres del espíritu, de aquellos a quienes no les parecía impuesta la compulsión de la práctica. Hombres vivos buscábamos,no sombras ilustres. 1 Em 1955, ao retornar de um período de estudos em Paris, o bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzolla apresentou um programa de renovação estética do tango que seria conhecido como “la revolución piazzolleana”. O músico vinha de uma crise artística, defrontado pelas opções entre ser um compositor “erudito” ou seguir atuando na música “popular”. Descartando os extremos, concebeu uma interseção, e aplicando técnicas composicionais “eruditas” às formas tradicionais da dança, propôs um “nuevo tango”. Em entrevista a uma rádio suíça, em 1983, referindo-se a seu papel na história do tango, diria que “había aparecido otro tango: el intelectual, un tango para pensar, no sólo para bailar o cantar”. 2 E confirma a tese em 1990, em suas memórias: “soy un hombre de tango, pero mi música hace pensar”. 3 O contexto histórico indica o entrelaçamento entre a crise estética resultante da renovação do tango que o compositor propõe e a crise política e social que se segue à queda de Perón, em 1955, e se aprofunda ao longo da década e já entrados os anos 60. No campo minado que é o debate cultural das décadas de 1950 e 60, o caráter identitário e político do tango funciona como um detonador para um debate a um tempo estético e político. A crise de 55, marcada pela “desperonização” da política e da cultura argentinas, coincide com a “revolución piazzolleana” e a polêmica em torno das inovações com que o compositor marca a diferença com o tango “tradicional”. Dentre as pedras de escândalo, o “nuevo tango” de Piazzolla abrigava a guitarra elétrica e um diálogo com o jazz. 1 VIÑAS, Ismael. La traición de los hombres honestos. Contorno. Buenos Aires, n. 1, nov. 1953, p. 3. In: Contorno. Edición facsimilar. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2007, p. 3. 2 PIAZZOLLA, Astor. Entrevista a Carlo Piccardi, Radio Svizzera Italiana, 1983. Transcrito do encarte de Adiós Nonino: El Concierto de Lugano, Interpretado por el Quinteto de Astor Piazzolla. Radio Svizzera Italiana, 1983; Piazzolla Music, 1998. 3 GORIN, Natalio. Astor Piazzolla: a manera de memorias. [2. ed.] Buenos Aires: Perfil, 1998, p. 15.

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Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

O “tango para pensar” de Astor Piazzolla

e a crise argentina dos anos 50-60:

o compositor como intelectual-crítico

Avelino Romero Pereira Professor de História da Música da UNIRIO

Mestre em História Social do Brasil pela UFRJ Doutor em História Social pela UFF

Decepcionados, aún esperábamos algo de los hombres del espíritu,

de aquellos a quienes no les parecía impuesta la compulsión de la

práctica. Hombres vivos buscábamos,no sombras ilustres.1

Em 1955, ao retornar de um período de estudos em Paris, o

bandoneonista e compositor argentino Astor Piazzolla apresentou um programa de

renovação estética do tango que seria conhecido como “la revolución piazzolleana”. O

músico vinha de uma crise artística, defrontado pelas opções entre ser um compositor

“erudito” ou seguir atuando na música “popular”. Descartando os extremos, concebeu

uma interseção, e aplicando técnicas composicionais “eruditas” às formas tradicionais

da dança, propôs um “nuevo tango”. Em entrevista a uma rádio suíça, em 1983,

referindo-se a seu papel na história do tango, diria que “había aparecido otro tango: el

intelectual, un tango para pensar, no sólo para bailar o cantar”.2 E confirma a tese em

1990, em suas memórias: “soy un hombre de tango, pero mi música hace pensar”.3

O contexto histórico indica o entrelaçamento entre a crise estética

resultante da renovação do tango que o compositor propõe e a crise política e social que

se segue à queda de Perón, em 1955, e se aprofunda ao longo da década e já entrados os

anos 60. No campo minado que é o debate cultural das décadas de 1950 e 60, o caráter

identitário e político do tango funciona como um detonador para um debate a um tempo

estético e político. A crise de 55, marcada pela “desperonização” da política e da cultura

argentinas, coincide com a “revolución piazzolleana” e a polêmica em torno das

inovações com que o compositor marca a diferença com o tango “tradicional”. Dentre as

pedras de escândalo, o “nuevo tango” de Piazzolla abrigava a guitarra elétrica e um

diálogo com o jazz.

1 VIÑAS, Ismael. La traición de los hombres honestos. Contorno. Buenos Aires, n. 1, nov. 1953, p. 3. In: Contorno. Edición facsimilar. Buenos Aires: Biblioteca Nacional, 2007, p. 3. 2 PIAZZOLLA, Astor. Entrevista a Carlo Piccardi, Radio Svizzera Italiana, 1983. Transcrito do encarte de Adiós Nonino: El Concierto de Lugano, Interpretado por el Quinteto de Astor Piazzolla. Radio Svizzera Italiana, 1983; Piazzolla Music, 1998. 3 GORIN, Natalio. Astor Piazzolla: a manera de memorias. [2. ed.] Buenos Aires: Perfil, 1998, p. 15.

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Ao situar o programa e a obra de Piazzolla, e as reações contrárias por ele

suscitadas, no debate em torno do “nacional” e do “popular” e da internacionalização da

cultura argentina, reconheço a música como um subcampo intelectual dotado de forte

poder de articulação ao pensamento social e político. Recorro, em apoio, às reflexões de

Edward Said em torno do “elemento transgressivo” na música, isto é, “aquela qualidade

que tem a música de viajar, atravessar, ir de lugar em lugar em uma sociedade, ainda

que muitas instituições e ortodoxias tenham tentado confiná-la”.4 Apoiando-se em

categorias gramscianas, Said considera a tradição da música clássica ocidental como um

dos produtos do trabalho intelectual constitutivos da “elaboração da sociedade civil”.

Isso lhe permite afirmar que “a música compartilha uma história comum de esforço

intelectual com a sociedade da qual forma uma parte orgânica” e que “podemos ver os

músicos como pertencentes à classe intelectual, mesmo se formando um subgrupo

distinto, com seus próprios procedimentos, associações, poderes e valores”.5 Negando a

tendência a se pensar a música como uma totalidade fechada sobre si mesma e alheia

aos embates sociais, Said propõe olhar para “todo o campo da música clássica como um

modo de sustentar a estrutura do status quo”, e para “seu destino como um campo de

realizações humanas desafiado de tempos em tempos por outras culturas, outras

formações não-elitistas, subculturas alternativas”.6 É neste sentido que a música de

Piazzolla parece-me desempenhar-se como um desses “elementos transgressivos” de

que fala Said, ao desafiar as categorizações e confinamentos tradicionais, criando novas

estruturas musicais na confluência de outras já existentes e pondo em cheque as

representações entre “erudito e popular”, “tradicional e moderno”, “nacional e

cosmopolita”, num convite à superação dos automatismos e simplificações conceituais.7

Nascido em Mar del Plata, em 1921, em uma família de origem italiana,

Piazzolla viveu parte da infância e da adolescência em Nova York, onde teve o primeiro

contato com a música – as primeiras lições, os discos de tango que o pai escutava, a

presença de Carlos Gardel, o interesse pelo jazz. Após retornar com a família ao país

4 SAID, Edward. Elaborações musicais. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 23. 5 Idem, Sobre os elementos transgressivos na música. In: Idem, p. 118. 6 Idem, p. 119. 7 Neste trabalho, destaco análises que constam do segundo capítulo de minha tese de doutorado, recentemente concluída: PEREIRA, Avelino Romero. Buenos Aires, história e tango: crise, identidade e intertexto nas narrativas “tangueras”. Tese de Doutorado em História Social. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense/UFF, 2012.

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natal, transferiu-se para Buenos Aires em 1938, já decidido a ser um músico de tango.8

No final do ano seguinte, entraria para a orquestra de Aníbal Troilo, que lhe pôs no

centro do movimento tanguero. Após um período de atuação com essa que era uma das

mais prestigiadas orquestras de tango, Piazzolla buscou um caminho pessoal. Formou

seu próprio conjunto, enquanto aprofundava os conhecimentos musicais com Alberto

Ginastera, então identificado com o modernismo nacionalista.

Ao se referir ao mestre, o compositor salienta que os ensinamentos de

Ginastera não se restringiam ao plano técnico, havendo-o despertado o gosto pela

leitura, pelas exposições de pintura, pelo cinema e pelo teatro: “Decía que un músico

debe saber de todo, porque la música es un arte totalizador”.9 E reforça esta impressão,

dizendo: “también me transmitió el humanismo de sus mensajes. Decía Alberto que el

músico no puede quedarse únicamente en sus partituras”.10 Para um músico de tango,

mergulhado na rotina das apresentações noturnas nos cabarés e a uma relação mais

comercial do que estética com a música, as lições de Ginastera devem ter cumprido com

a função transformadora e humanista com que o professor orientava sua própria vida e

as instituições em que atuou:11 “mi enfoque de la realidad fue cambiando. Le tomé más

bronca al cabaret, a los músicos que no estudiaban, a la noche”.12 O desconforto de

Piazzolla com o ambiente do tango e do cabaré é um tema a que sempre volta: “para mí

fue un impacto de alto voltaje. Estaba tocando con Troilo y con la mayoría de mis

compañeros sólo se podía hablar de fútbol y de escolaso”.13

Vivenciando essa tensa relação entre dois ambientes artísticos como uma

crise pessoal e identitária, após ser distinguido com uma premiação e uma bolsa de

8 A história de vida de Piazzolla está construída em relatos dele próprio transcritos por outros, e sistematizado em uma biografia e um documentário. Ver SPERATTI, Alberto. Con Piazzolla. Buenos Aires: Galerna, 1969; PIAZZOLLA, Diana. Astor. Buenos Aires: Corregidor, 2005 [1987]; GORIN, Natalio. Astor Piazzolla: a manera de memorias. Buenos Aires: Perfil, 1998 [1990]; AZZI, María Suzana, COLLIER, Simon. Astor Piazzolla: su vida y su música. Buenos Aires: El Ateneo, 2002 [2000]; DIBB, Mike (prod. e dir.) Tango Maestro. In: Astor Piazzolla in Portrait. DVD. Londres: BBC, 2004. Para estudos críticos de sua obra, ver KURI, Carlos. Piazzolla: la música límite. 2. ed. Buenos Aires: Corregidor, 1997 [1992]; GARCÍA BRUNELLI, Omar (org.). Estudios sobre la obra de Astor Piazzolla.

Buenos Aires: Gourmet Musical, 2008; FISCHERMAN, Diego, GILBERT, Abel. Piazzolla, el mal

entendido: un estudio cultural. Buenos Aires: Edhasa, 2009. 9 PIAZZOLLA, A. [Depoimento.] In: PIAZZOLLA, D. Astor, op. cit., p. 135. 10 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 68. 11 Ginastera fundou e dirigiu o Conservatorio de Música y Arte Escénico de La Plata, a faculdade de música da Universidad Católica Argentina, e o Centro Latinoamericano de Altos Estudios Musicales no Instituto Di Tella. Ver URTUBEY, Pola Suarez. Alberto Ginastera en 5 movimientos. Buenos Aires: Víctor Lerú, 1972, p. 14-5. 12 PIAZZOLLA, A. [Depoimento.] In: PIAZZOLLA, D. Astor, op. cit., p. 136. 13 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 68. “Escolaso” é o termo lunfardo para jogo.

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estudos, seguiu em 1954 para Paris, disposto a se tornar um compositor de música de

concerto. Ali, teve aulas de análise, contraponto e composição com Nadia Boulanger

(1887-1979), amiga e admiradora de Stravinsky. Boulanger defendia o que se costuma

chamar de “neoclássico” ou “nova objetividade”, em oposição às tendências

representadas por Schoenberg, Messiaen e Boulez. A crer nas memórias e depoimentos

de Piazzolla, as lições da professora valeram-lhe o encontro consigo mesmo e com o

próprio tango, que estivera disposto a abandonar. Aplicando as técnicas e os

conhecimentos adquiridos à sua própria música, deu origem ao “nuevo tango”, nascido

da interseção entre a tradição tanguera, as formas barrocas de Bach, o modernismo

neoclássico de Stravinsky, Bartok e Hindemith, o jazz de Nova York e ainda as

experiências de Gershwin, Bernstein, Villa-Lobos e Tom Jobim.

Ao retornar de Paris, em 1955, Piazzolla funda o Octeto Buenos Aires,

inovador mas inviável economicamente, e que dissolveria em 1958. O retorno ao país

natal dá-se no emblemático ano de 1955, correspondente ao colapso do regime peronista

e ao refluxo no movimento tanguero, com a inviabilização econômica dos bailes com

execução ao vivo, a redução dos quantitativos das orquestras e o deslocamento do tango

dos salões de baile para os palcos de espetáculos e clubes noturnos. É o próprio

Piazzolla quem diz que o tango estava morto e que a renovação por ele trazida seria a

condição de sua sobrevivência, ainda que em novas bases, capazes de atraírem o

interesse das gerações mais jovens, tocadas pela importação da música pop que marcava

as transformações da indústria cultural nacional e multinacional.

“It was like a war of one against all”.14 Num depoimento de 1989,

colhido pela BBC inglesa, assim se refere Piazzolla ao conflito instaurado por sua

aposta na renovação do tango. O compositor conta ter sofrido ameaças e agressões nas

ruas. Em uma entrevista de 1983, explica a reação dos tradicionalistas, que “por razones

de afecto y por los recuerdos de cuando bailaron su primer tango”15, teriam reagido

como se ele lhes estivesse roubando algo valioso. Relatos mais antigos do compositor,

porém, revelam não haver nada de casual em sua atitude, tendo ele optado

deliberadamente por um caminho de confronto. Num depoimento de 1963, ao falar do

impacto do Octeto, disse que “fue una verdadera revolución”.16 Em 1969, lembrava que

14 PIAZZOLLA, Astor. Tango Nuevo. Programa produzido e dirigido por Tony Staveacre, BBC, 1989. In: DAMME, Ferenc van, PETRI, Hans. Astor Piazzolla in portrait. DVD. Londres: BBC, 2004. 15 Idem. Entrevista a Carlo Piccardi, 1983, op. cit.. 16 Idem. [Entrevista.] In: BENARÓS, León. 7 para el tango. Buenos Aires: Corregidor, 2005, p. 73.

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escreveu de Paris aos futuros integrantes do grupo, recomendando-lhes que estivessem

alertas, porque formaria um conjunto “para matar”: “Éramos una furia que se llevaba

dentro y que al fin podía salir. Éramos ocho tanques de guerra y era 1955, cuando lo que

hacíamos era absolutamente revolucionario”.17

“Revolución” e “revolucionario” são palavras correntes nas falas de

Piazzolla. Nas décadas de 1950 e 60, seu uso não era nada simples, considerando-se o

nível de radicalização política a que chegara o país. Na retórica peronista, “Revolución”

se referia tanto ao golpe militar de junho de 1943, que terminaria levando Perón ao

poder, quanto à política social conduzida pelo líder desde a Secretaría de Trabajo y

Previsión primeiro, e a presidência da República depois. “Revolución Libertadora” foi

como os opositores de Perón chamaram o golpe militar que pôs fim a seu governo, em

setembro de 1955, quando Piazzolla exibia seus “ocho tanques de guerra”. E

“Revolución Argentina” seria o nome que os militares dariam a um novo período de

exceção, inaugurado em 1966 por novo golpe de Estado. A isso, é claro, podemos

somar a Revolução Cubana e a experiência de modernização desenvolvimentista de

Frondizi, eleito em 1958 e afastado em 1962, por pressão militar.

Claro que “revolución” em Piazzolla não pressupõe um programa social

ou político para o país ou a adesão às revoluções em curso ou em projeto, mas implica

uma ação micropolítica no campo da cultura tanguera. A “revolución piazzolleana”,

como se convencionou chamar, dava-se, ao menos a princípio, num plano estritamente

musical, que ele descreve pelo tratamento contrapontístico, por novas possibilidades

harmônicas nos arranjos e composições, por alterações na rítmica e pela exploração de

novos timbres. Porém o uso constante do termo “revolución” por Piazzolla me leva a

indagar sobre um possível diálogo com a noção de vanguarda artística, impulsionada

após a queda de Perón. Em seu estudo sobre as artes visuais na Argentina dos anos 60,

Andrea Giunta aponta que “vanguardia, internacionalismo y política, términos con los

que podrían ordenarse los proyectos dominantes del período, fueron mucho más que

palabras”, funcionando como argumentos e noções cujo significado estava em

permanente disputa, como “artefactos verbales de alta disponibilidad que se imponían a

todo individuo decidido a actuar en el campo artístico y cultural”.18 Piazzolla raramente

fala de sua música como de “vanguarda”, tendo usado a expressão “Tango Progresivo”

17 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 74. 18 GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política: arte argentino en los años sesenta. 2. ed. ampliada y corregida. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2008, p. 22.

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no primeiro disco do Octeto, e “Nuevo Tango”, para se referir a seu estilo e ao Quinteto

que formaria em 1961. Mas me parece muito apropriado entender o uso que faz do

termo “revolución”, tomando-o como um “artefacto verbal de alta disponibilidad”

naquele contexto.

Na proximidade com as vanguardas, pode-se considerar também o

caráter militante com que o compositor assume seu programa “revolucionário”, por

meio de declarações, entrevistas, debates, e também de um curioso “Decálogo”,

publicado pelo semanário De Frente, de Buenos Aires, em 10 de outubro de 1955.19 O

“Decálogo” é uma espécie de manifesto, análogo aos que as vanguardas costumavam

divulgar, e no qual o compositor expunha os princípios que norteariam seu programa de

trabalho à frente do Octeto Buenos Aires. Sintetizo os tópicos:

I.Preferência pelos fins artísticos sobre os comerciais;

II.Dedicação exclusiva dos integrantes, para obter maior eficácia;

III.Eliminação de influências estranhas: “hacer el tango tal como se siente”;20

IV.Participação musical destacada dos solistas, inexistência de diretor, e

reconhecimento da condução musical de Piazzolla;

V.Definição de um repertório formado por obras da “Guardia Vieja” e da

atualidade;

VI.Exclusão de obras cantadas, “para aprovechar en todas sus posibilidades los

recursos musicales del tango”;

VII.Não atuação em bailes, “considerando que el conjunto debe ser únicamente

escuchado por el público”;

VIII.Explicação das inovações – utilização da guitarra elétrica, de efeitos

percussivos e “la total estructuración de las obras con su giro moderno” – antes das

apresentações;

19 El Octeto Buenos Aires jerarquiza el arte del tango. De Frente. Buenos Aires, ano II, n. 82, 10 out. 1955. 20 Essa referência a “influências estranhas” provavelmente visava à orquestra de Mariano Mores, que Piazzolla reiteradamente desqualificaria por seu estilo internacionalizado, movido por fins comerciais. Todavia, considerando-se a inclusão da guitarra elétrica no conjunto, o item soa bastante contraditório. Mais ainda, pela vagueza da expressão “tal como se siente”. Curiosamente, uma das acusações a Piazzolla seria exatamente a de não “sentir” o tango, de ter uma atitude intelectualizada, cerebral diante da música.

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IX.Exclusão da improvisação: “las partituras estarán escritas dentro del mayor

perfeccionamiento musical posible que pueda lograrse en este género”;

X.O último item compõe-se de cinco ações ou objetivos: elevar a qualidade do

tango; convencer os que se afastaram e os detratores de seus “valores incuestionables”;

atrair os amantes de músicas forâneas; “conquistar al gran público, tarea descontada

como ardua, pero segura, tan pronto pueda escuchar los temas reiteradas veces”; levar

ao estrangeiro como embaixada artística “esta expresión musical del país donde el tango

tuvo su origen, para mostrar su evolución”.

Considerando os itens VI e VII, não seria forçado dizer que Piazzolla

propõe um correspondente musical à arte abstrata: quer deslocar o tango dos dois apoios

tradicionais, a dança e o canto, para focá-lo exclusivamente na música. É curioso o

argumento com que justifica a exclusão do canto, para aproveitar os “recursos

musicales”, isto é, abstrair a música dos conteúdos verbais. A recusa ao baile, no qual

identifica a face mais comercial do tango, estaria no cerne de suas falas, sempre que

caracterizava sua “revolución”. Anos depois, referindo-se ao Octeto, diria: “nada de

bailable. Una verdadera felicidad para nosostros, porque nos desintoxicábamos todos”.21

Por aí se vê o apreço que Piazzolla tinha pelo ambiente noturno dos cabarés... E mais

adiante, a propósito do Quinteto, reitera: “en este Quinteto todos son solistas, y se han

integrado para el lucimiento personal de cada uno. [...] En cuanto al tango bailable, le

repito: no toco para divertir a la gente, sino para que me escuchen y piensen un poco”.22

Eis aí o “elemento transgressor” do programa de Piazzolla, um fator instabilizador dos

condicionantes sociais e do lugar social atribuído ao tango como entretenimento

descompromissado. A principal decorrência, segundo o próprio compositor, é a

valorização dos músicos por seu aspecto intrínseco: “a mí los bailarines nunca me

importaron; lo importante era ver qué cara ponían los músicos al tocarla. Si ponían cara

rara, era mala señal. Si a ellos les gustaba, era mi felicidad”.23

Ao organizar o Octeto, Piazzolla selecionou instrumentistas tecnicamente

qualificados, cuja dedicação exclusiva deveria assegurar o melhor resultado possível na

interpretação de partituras complexas, que exigiam de cada um não o exibicionismo

técnico, mas a compreensão e a contribuição pessoal ao efeito de conjunto. Observo a

21 BENARÓS, L. Astor Piazzolla..., op. cit., p. 73. 22

Idem, op. cit., p. 74. 23 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 61.

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coerência destas falas também com o expresso nos itens I, II e IV do “Decálogo”,

sobretudo o IV, em que Piazzolla afirma sua condução musical, como autor dos

arranjos, mas nega a existência de um diretor, como contratante dos músicos. Este é,

aliás, um ponto sensível da “revolución piazzolleana”: já a orquestra que formou em

1946 funcionava como uma cooperativa, em que todos recebiam o mesmo valor pelas

atuações, cabendo a ele um diferencial pela elaboração dos arranjos. Era uma forma

concreta de marcar sua diferença quanto à relação “comercial” das outras orquestras,

que propiciaram o enriquecimento de diretores que ele abominava musicalmente. No

plano retórico, defende o conteúdo ético de seu programa estético, ao condenar “toda

esa gente que hizo un comercio del tango”.24 Reconhecia que a inspiração para a

cooperativa vinha do pianista e compositor Osvaldo Pugliese, que, fiel à sua militância

comunista, também organizara dessa forma seu conjunto.

Esse propósito de “emancipação dos músicos”, somado à ideia de que faz

um “tango para pensar”, à firmeza com que o compositor defende suas posições, e à

caracterização de si mesmo como um combatente solitário, me remetem à representação

proposta por Edward Said para o “papel público do intelectual moderno”, tomado como

um “outsider”.25 Said ressalta “mais um espírito de oposição do que de acomodação,

porque o ideal romântico, o interesse e o desafio da vida intelectual devem ser

encontrados na dissensão contra o status quo”.26 Ainda que Said tenha mais em mente a

luta política em defesa dos grupos desfavorecidos e pouco representados, sua análise

abre-se a formas variadas de atuação, ao citar como exemplo de intelectual não-

conformista o pianista canadense Glenn Gould, que já fora objeto de suas reflexões no

primeiro ensaio publicado no já citado Elaborações Musicais.27 Embora tenha assinado

contratos com grandes gravadoras, “isso não o impediu de ser um intérprete iconoclasta

e um comentador de música clássica com tremenda influência no modo como a

execução é realizada e julgada”.28 Para Said, esse tipo de artista-intelectual é “uma

vocação individual, uma energia, uma força obstinada, abordando com uma voz

empenhada e reconhecível na linguagem e na sociedade [...] questões [...] relacionadas

24 Idem, p. 67. 25 SAID, Edward. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1983. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 27. 26 Idem, p. 16. 27 Ver SAID, E. A Performance como Situação Extrema. In: Elaborações musicais, op. cit., p. 27-71. 28 SAID, E. Representações do intelectual, op. cit., p. 77-8.

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[...] com uma combinação de esclarecimento e emancipação ou liberdade”.29 Estes

critérios são ajustáveis a um “revolucionário” como Piazzolla, e sua propensão a

“causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável”, para usar palavras de

Said:30 pode-se entender Piazzolla como um inconformista engajado num programa de

renovação estética, que mesmo não implicando um discurso de modernização social ou

uma atitude política progressista, mostra, na esfera das ideias musicais, da composição à

performance, seu compromisso com essa combinação de “esclarecimento e

emancipação”. Há uma fala de Piazzolla, transcrita em 1969, muito interessante a

respeito disso: “yo no pregunto qué prejuicios tienen los que escuchan mi música, sólo

pretendo que me escuchen y se liberen de ellos, que sean objetivos”.31 Piazzolla jamais

deixou de externar sua opinião sobre o tango tradicional e a necessidade de renovação

do ambiente musical tanguero, envolvendo-se em polêmicas: “ataco cuando me atacan”,

justifica-se.32

Evidentemente, estou assumindo a mesma liberdade assumida por Said,

em lugar de considerar a qualificação de intelectual crítico exclusivamente ao ativismo

político e sobretudo de esquerda. E partindo das sugestões de Sirinelli, não desconsidero

o “peso da afetividade” e a “influência da sensibilidade” como dimensões importantes

na conformação do intelectual e de sua inserção nos laços de sociabilidade.33 Mas

reconheço que na contramão dessa aproximação com os paradigmas do intelectual

crítico está, por um lado, o perfil de um Piazzolla entre egocêntrico e exibicionista, e

por outro, sua rejeição do rótulo de intelectual: disse ao jornalista Alberto Speratti, ao

ser entrevistado em 1968, que “no me gusta que me confundan con un intelectual, ese

tipo de mito no lo aguanto”.34 Antes, porém, em 1962, entrevistado pelo diário La

Razón, falava da inauguração do 676, clube noturno em que atuaria com o Quinteto,

dizendo querer “reunir a mucha gente nueva, a ésa que todos los días lucha, trabaja y

trata de manera armónica de crear un clima intelectual serio”.35 Porém, já no fim da

vida, em 1990, tentando distanciar-se das polêmicas, reconheceria: “me sentía un

intelectual, y seguro debía ser un intelectualoide. Lo mío tenía algo de snob. Con el

29 Idem, p. 78. 30 Idem, p. 27. 31 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 119. 32 Idem. 33 Ver SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, Réné. (org.) Por uma história política.

2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 231-269. 34 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 130. 35 La Razón. Buenos Aires, 22 abr. 1962.

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tiempo asumí que gracias a otros snobs yo pude hacer gran parte de mi carrera: eran los

que me aplaudían en primera fila”.36 Independente de rótulos, porém, vale o registro de

Piazzolla como um artista consciente de seu trabalho, cioso da formação sistemática

construída em anos de estudo, e que defende sua música ante o que considera

leviandade ou má-fé de quem lhe ataca, a exemplo desta fala que Speratti recolheu no

livro de 1969:

Yo soy así, no puedo frenarme, no acepto que hablen de mi música con

mala fe, sin ningún principio ni conocimiento. Creo hacer las cosas en

serio y, equivocado o no, merezco respeto como cualquiera. Lo que

hago, lo hago con sinceridad. Si un crítico musical me ataca, es otra

cosa. Pero si un señor que tiene un programa de radio y cuyo oficio es

leer las etiquetas de los discos, decide atacarme, eso no puede ser.37

No fundo, é a fala de um músico compromissado com uma ética artístico-

profissional: “es un mundo que entiendo y recibo emocionalmente, y por eso no me

interesa, por ejemplo, ni la política ni la economía. Yo he estado siempre encerrado en

ese mundo y siempre lo estaré”.38 Um encerramento que não poderia ser absoluto, na

medida em que sua música, quisesse ele ou não, chocava-se com outros mundos. O fato

é que, além da renovação estética, Piazzolla também defendia uma ação artística livre

de pressões políticas, ao criticar a colaboração de diversos tangueros com o governo

peronista. A propósito disso, ao final do livro-entrevista, Alberto Speratti o provoca,

deslocando o eixo da conversa das vanguardas artísticas para a política. Era 1968,

estava em curso a “Revolución Argentina”, sob a ditadura do general Onganía, e

cobrava-se o posicionamento do artista. Diz Piazzolla:

Para todo el mundo he sido comunista siempre. Yo de comunista no

tengo nada, aunque, a lo mejor, soy el más comunista de todos, porque

los comunistas no hacen lo que he hecho yo. Cuando he tenido un

conjunto ha sido siempre en cooperativa y nunca le robé un centavo a

nadie. Siempre quise que mis músicos fueran felices, porque ese es el

único modo de que toquen como deben. [...] cuando uno sabe que el

director gana diez veces más que los músicos, nace un odio hacia ese

director que se trasluce en lo que se hace con la música.39

36 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 139. 37 SPERATTI, A., Con Piazzolla, op. cit., p. 120. 38 Idem, p. 109. 39 Idem, p. 133.

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E segue, esclarecendo, ou confundindo, ao dizer que não tem nada contra

os comunistas, mas também nada contra os oligarcas, “aunque sí, posiblemente estoy

más a favor de los comunistas que de los oligarcas en lo profundo. Pero en realidad, mi

política es mi música, mi lucha”.40 Diz nunca ter se afiliado a nenhum partido, nem

haver tocado para Perón, Frondizi ou Illía: “yo no hago beneficencia; si quieren que

toque, que me paguen”. O jornalista termina por lhe dar corda, para que se enforque,

perguntando se aceitaria ajuda de Onganía. Piazzolla diz que aceitaria, como um ato

concreto de apoio à música, mas que “con Perón no hubiera agarrado viaje”.41 Por fim,

Piazzolla diminui a importância de Ernesto Guevara, dizendo que “nuestra sociedad se

alimenta de mitos, como si fuera la mágica solución que pueda rescatar a la gente de su

mediocridad”, e se põe em posição de superioridade em relação ao líder revolucionário,

questionando por que “no vino a Argentina hacer lo que hizo en Cuba y Bolivia”,

enquanto ele, Piazzolla, podendo ir para a Europa ou os EUA, permanecia no país,

ganhando muito menos.42 Atacar, num só movimento, a Perón, a Evita e ao “Che”,

naquela sociedade que “se alimenta de mitos”, era mesmo como mexer no vespeiro.

Sem mais perguntas, o jornalista encerra a entrevista e o livro, e sugere ao leitor, que

ponha um disco para tocar, e escute a música de Piazzolla...

A análise das contradições no discurso do compositor revela que sua

atitude profundamente crítica a respeito do tango nem sempre correspondia à sua

avaliação política. Embora fosse capaz de se posicionar em relação ao peronismo, e ao

que considerava uma interferência negativa na vida artística ou um comportamento

subserviente de alguns colegas, demonstrava pouco apreço pelos valores democráticos.

Fechado em sua música, Piazzolla era incapaz de perceber o impacto que a ditadura de

Onganía vinha tendo sobre a vida cultural de Buenos Aires, da qual o próprio tango, e

ele incluído, dependia. Anos depois, em 1984, diria que “los 60 fueron los años más

bellos que tuvo Buenos Aires en su historia”.43 Lembrava-se nostalgicamente das

tanguerías – os nightclubs, em que se apresentava, para um público interessado em

escutar, não em dançar. Os palcos daquelas casas noturnas alternavam apresentações de

jazz e de nuevo tango, sob o aplauso de jovens entusiastas. Mas esquecia-se de que essa

Buenos Aires começou a acabar já em 1962, numa situação agravada depois de 1966,

40 Idem, p. 134. 41 Idem, p. 135. 42 Idem, p. 136. 43 El Clarín, 12 ago. 1984, citado por AZZI, M.S., COLLIER, S. Astor Piazzolla..., op. cit., p. 147.

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em meio a ações repressivas que tendiam ao fechamento dos espaços de sociabilidade

coletiva tomados como ameaças à ordem social.

A ambiguidade política de Piazzolla é notável também em sua obra. Em

1969, compôs com Horacio Ferrer Chiquilín de Bachín, cuja letra é tocada de profundo

sentido social, e em 1971, Homenaje a Córdoba, cujo título remete diretamente ao

“Cordobazo”, que sinalizou a falência da ditadura. Compôs também música para um

filme sobre o golpe militar no Chile, Llueve sobre Santiago, mas depois reutilizou-a em

canções sem qualquer vínculo com o tema. No início dos anos 70, ao ser cancelado um

contrato com a Municipalidad de Buenos Aires, para as atuações de seu conjunto,

Piazzolla partiu para a Europa, após ter votado em Perón na volta do líder ao país e à

presidência. Mais tarde, durante a ditadura de 1976-1983, despertaria a ira dos milhares

de argentinos exilados – incluindo sua filha, peronista de esquerda, que estava no

México, para fugir à repressão. Havendo comparecido com outros artistas a um almoço

promovido pelo general Videla na Casa Rosada, declarou à imprensa que os exilados se

queixavam injustamente do país. Durante a Guerra das Malvinas, inspirado por um

episódio do conflito, inadvertidamente, dedicou uma composição a “Los lagartos”,

grupo da Marinha sob comando de um dos mais crueis torturadores do regime militar.

Alertado sobre o equívoco, renomeou a composição, transformando-a na Tanguedia do

filme Tangos: el Exilio de Gardel, de Fernando “Pino” Solanas, a versão

cinematográfica do exílio parisiense, rodada em 1985.

Em 1990, Piazzolla defendeu-se de ter participado no almoço com

Videla, alegando que não aceitara um convite, mas o que lhe parecia ser uma intimação.

Mas a emenda saiu-lhe pior. Na entrevista, Natalio Gorín repete a armadilha de Speratti.

Em lugar de Onganía, cita o fato de haver aceitado tocar no Chile de Pinochet. Ante a

justificativa de ter ido como um profissional, o jornalista lhe pergunta sobre sua visão a

respeito do ditador chileno, ao que Piazzolla retruca que “a nosotros, los argentinos, nos

faltó un personaje como Pinochet. Quizás a la Argentina le faltó un poco de fascismo en

un momento de su historia”. Na sequência, critica os políticos de esquerda que mudam

o discurso ao chegarem ao poder, e termina por elogiar o comunista Pugliese: “por eso

admiro tanto a Osvaldo Pugliese, jamás renegó de todo su pasado”.44

Como sugerira Speratti em 1969: diante de suas declarações e oscilações,

melhor mesmo pôr um disco seu para tocar... 44 GORÍN, N., Astor Piazzolla..., op. cit., p. 85 e 86.